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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUANDO SOPRA O VENTO / James Patterson
QUANDO SOPRA O VENTO / James Patterson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Frannie O’Neill é uma jovem e talentosa veterinária do Colorado, que está atormentada com o misterioso assassinato do marido, David, um médico local.
Ao voltar tarde da noite para casa, a dra. Frannie depara, perto dos bosques que cercam sua clínica, com um estranho fenômeno que mudará para sempre o curso de sua vida. Seu nome era Max.
Embora não consiga se aproximar da menina, que escapa voando, a descoberta coloca Frannie no rastro de um vasto esquema de pesquisa ilegal em bioengenharia, com laboratórios secretos instalados ali mesmo, no Colorado. Um complexo que crianças submetidas a mutações chamavam ”a Escola”.
Na perigosa caçada em que se vê envolvida por circunstâncias cada vez mais estranhas e incontroláveis, a jovem médica esbarra num antigo agente do FBI, Kit Harrison, que durante muito tempo vinha perseguindo as bases clandestinas montadas por expoentes da engenharia genética. Empenhado em acelerar a evolução somática da humanidade, este excêntrico grupo de cientistas cumpria um programa intensivo de cruéis experimentos com seres humanos.
De prosa vigorosa, fragmentada em pequenos capítulos de leitura ágil, Quando sopra o vento é uma história notável e comovente, repleta de suspense e magia.
- Alguém por favor me ajude! Ninguém está ouvindo? Será que alguém pode me ajudar?
Os gritos da menina cortavam o ar límpido da montanha. A garganta e os pulmões estavam começando a doer, a queimar.
Max, a menina de onze anos, corria o mais que podia, fugindo da detestável, da sórdida Escola. Era forte, mas já começava a ficar cansada. Enquanto corria, o cabelo louro saltava atrás dela como um bonito cachecol de seda. Era bonita, embora estivesse com olheiras muito roxas dos dois lados do rosto.
Sabia que os homens que a perseguiam queriam matá-la. Podia ouvi-los correndo pelo bosque.
Esticou dolorosamente o pescoço e olhou, de relance, pelo ombro direito. Viu mentalmente a imagem de seu irmãozinho, Matthew. Onde estaria ele? Os dois só haviam se separado do lado de fora da Escola, ambos correndo, gritando.
Teve medo de que Matthew já estivesse morto. Provavelmente tio Thomas o teria pegado. Thomas traíra os dois, o que a deixava a tal ponto magoada que não suportava sequer pensar no assunto.
As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Seus perseguidores iam se aproximando. Podia sentir os passos pesados, velozes, golpeando com força a crosta da terra.
Uma bola palpitante de sol, vermelha e laranja, afundava no horizonte. Logo estaria escuro como breu e frio naquele primeiro contraforte das montanhas Rochosas. E ela usava apenas uma camisola branca de algodão, sem mangas, folgada no pescoço e na cintura. Nos pés, sapatilhas de bale, de sola fina. Mexa-se!, ela ordenava ao corpo dolorido, fatigado. Podia correr mais depressa. Sabia que sim!
Ao se aproximar de um pedregulho, coberto de um musgo esverdeado, a trilha sinuosa foi se fechando. Max, então, lutou para se agarrar, pois era difícil avançar pelo emaranhado mais denso de galhos e folhagens.
Parou de repente. Não podia mais continuar.
Uma cerca imensa brotara do matagal. Três metros de altura, no mínimo. Fileiras de arame farpado, afiadas como navalhas, se enrolavam, se enroscavam no alto.
Uma placa de metal dizia: Máximo Perigo! Cerca Eletrificada. Máximo Perigo!
Max se sentou, segurando com as mãos os joelhos descobertos. Estava ofegante, sem fôlego, tentando prender o choro.
Seus perseguidores estavam quase lá. Podia ouvir, cheirar, sentir a terrível presença deles.
Então, com uma súbita sacudidela, desenrolou as asas. Brancas, com pontas prateadas, pareciam ter-se soltado de alguma coisa, e flutuaram, num gesto talvez involuntário, para um ponto acima de sua cabeça. Tinham três metros de envergadura e o sol fazia cintilar todo o leque da plumagem.
Max começou a correr de novo, batendo as asas com força, cada vez mais depressa. De repente, os pés com sapatilhas se ergueram do chão pedregoso.
E ela voou sobre o alto arame farpado como um pássaro.
Cinco homens armados corriam silenciosa e agilmente entre as rochas seculares, os elevados alamos, os enormes pinheiros. Embora ainda não pudessem ver a garota, sabiam que logo iam alcançá-la.
Mantinham um ritmo regular, mesmo que de vez em quando o homem que ia na frente desse uma ou duas passadas significativamente mais rápidas. Todos eram caçadores competentes, bons em seu trabalho, mas ele era o melhor, um líder natural. Mais atento, mais controlado. Um autêntico rastreador.
Pareciam calmos por fora, embora por dentro fosse outra história. Estavam num momento crítico. A menina tinha de ser capturada e trazida de volta. Ela não devia ter escapado nem chegado tão longe. O sigilo era fundamental, sempre fora, mas nunca tão intensamente quanto naquele momento.
A garota só tinha onze anos mas possuía ”dons”, o que podia criar graves problemas do lado de fora. Seus sentidos eram aguçados e era incrivelmente forte para seu tamanho, sua idade, seu sexo. Naturalmente, é claro, havia a possibilidade de que tentasse voar.
De súbito, puderam vê-la subindo a trilha; viram-na com nitidez, contra o fundo muito azul do céu.
- Tinkerbell. A noroeste, cinqüenta graus - informou o líder do grupo.
Chamavam-na Tinkerbell, mas o homem sabia que ela detestava o nome. O único nome a que respondia era Max, que não era abreviatura de Maxine ou Maximillian, mas de Máxima. Talvez porque sempre desse o máximo de si. Talvez porque sempre aceitasse os desafios. Exatamente como fazia naquele momento.
Lá estava ela, em todo o seu esplendor! Corria a toda velocidade e estava muito próxima do perímetro cercado. Não tinha meios de saber daquela cerca. Nunca havia chegado tão longe de casa.
Todos os olhares estavam pousados nela. Ninguém, nem por um instante, desviava os olhos. Com o cabelo comprido serpenteando atrás da cabeça, Max parecia patinar pela íngreme encosta rochosa. Estava em grande forma; era incrível que uma menina tão novinha pudesse correr daquele jeito. Lá fora, em campo aberto, era sem dúvida uma adversária a ser levada em conta.
Harding Thomas, que corria na frente, parou de súbito, erguendo o braço para deter os outros. A princípio ninguém entendeu o que houve, pois achavam que já estavam quase nos calcanhares de Max.
Então, como Thomas, o líder, pressentira que aconteceria, a menina saltou. Voava. Estava atravessando o arame farpado da cerca de três metros de altura no perímetro de segurança.
Assombrados, os homens contemplavam a cena em silêncio absoluto. Olhos se arregalavam. O sangue disparava para os cérebros, martelando nos ouvidos.
Ela abriu integralmente as asas; o movimento pareceu natural. Era uma bela e espontânea criatura. Batia para cima e para baixo as asas brancas e prateadas. Para cima, para baixo. O ar parecia levá-la sem esforço, como uma folha no vento.
- Sabia que ia tentar passar por cima. - Thomas se virou para os outros e cuspiu as palavras. - Isto é péssimo!
Apoiou o rifle no ombro. A menina estava quase desaparecendo sobre a crista do primeiro paredão de rocha. Mais um ou dois segundos, estaria fora de vista.
Então ele puxou o gatilho.
Kit Harrison rumava para Denver, vindo de Boston. Era suficientemente bem apessoado para atrair olhares no avião: elegante, mais de um metro e oitenta, cabelo louro com uns tons de ruivo. Tinha também um diploma da faculdade de direito da Universidade de Nova York. Sentia-se, no entanto, um fracassado.
Transpirava terrivelmente no 747 da American Airlines, espremido numa daquelas poltronas claustrofóbicas que ficam no meio do corredor. Sua expressão ficara tão ostensivamente patética que a simpática e atenciosa comissária de bordo parou para perguntar qual era O problema. Estava doente?
Kit respondeu que estava ótimo, mas era outra mentira, a mãe de todas as mentiras. Sua condição era rotulada como desordem estressante pós-traumática, uma coisa que às vezes se manifestava por desagradáveis ataques de ansiedade. Esses ataques o deixavam com a sensação de que poderia morrer imediatamente. Vinha sofrendo da desordem havia quase quatro anos.
Sim, claro, estou doente, madame comissária. Só que não é só isso.
Para começar, eu não devia estar indo para o Colorado. Devia estar de férias em Nantucket. Devia estar procurando me acalmar, esfriando a cabeça, tomando consciência do risco de ser chutado do meu emprego de doze anos, pensando na alternativa de não ser mais um agente do FBI, alguém que ainda poderia subir na hierarquia do Bureau.
Em vez disso, aceitara o risco de ter de abandonar qualquer pretensão a qualquer coisa.
O nome impresso pelo computador na passagem era Kit Harrison, mas não era o nome verdadeiro. Seu nome era Thomas Anthony Brennan. Fora o agente Brennan, um veterano do FBI, e já tinha sido considerado uma das carreiras mais promissoras dentro do serviço. Aos trinta e oito anos, no entanto, pela primeira vez na vida, começava a sentir o peso da idade.
Certo, daquele momento em diante esqueceria o antigo nome. Esqueceria também os problemas no trabalho.
Sou Kit Harrison. Indo caçar e pescar no Colorado, nas montanhas Rochosas. vou me apegar a essa história simples. A essa mentira simples.
Kit, Thomas, tom, não importa o nome, havia quase quatro anos não pisava num avião. Não desde 9 de agosto de 1994. Mas não queria pensar nisso naquele momento.
Então fingiu que estava dormindo enquanto o suor continuava a lhe escorrer pelo rosto, pelo pescoço, enquanto o medo dentro dele procurava conviver com o que parecia ser um nível de perigo. Não conseguira um descanso para sua mente, nem mesmo de alguns minutos. Mas tinha de estar naquele avião.
Tinha de viajar para o Colorado.
Tudo estava relacionado a 9 de agosto, não estava? Certamente que sim. Foi quando a síndrome do estresse começara. Envolvera Kim, Tommy e Michael - o pequeno Mike, o Bebezão.
E... ô, claro! Tudo aconteceu para trazer grandes benefícios a mais ou a menos para todo mundo no planeta. Muito estranho, mas este último e extravagante detalhe era absolutamente verdadeiro, assustadoramente verdadeiro. Em sua opinião, nada na história era mais importante que aquilo que ia investigar.
A não ser que estivesse louco.
O que não era uma possibilidade remota.

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LIVRO UM - GÊNESIS CAPÍTULO 1
O dia começou a ficar um pouco atrapalhado quando Keith Duffy e a filha pequena trouxeram aquela pobre corça atropelada para o Inn-Patient, minha pequena clínica veterinária em Bear Bluff, no Colorado, cerca de cinqüenta minutos a noroeste de Boulder, seguindo a rodovia ”Pico a Pico”.
Sheryl Crow cantava com a voz muito rouca no toca-fitas. Ejetei a impertinente Sheryl quando vi Duffy entrar carregando o pobre animal e parar como um palerma diante do Abstração:Rosa Branca II, um pôster de Geórgia O’Keeffe, que naquele momento era o meu favorito.
Reparei que a corça, além de muito ferida, estava prenha. Parecia também apavorada e se debatia quando Duffy pousou-a na mesa. Na realidade, antes parecia tremer que se debater, e suspeitei de que tivesse quebrado a coluna ao meio ao ser atingida pelo Chevy, 4 ponto 4, que Duffy dirigia.
A menina soluçava e o pai parecia angustiado. Achei que ele também ia perder o controle.
- Dinheiro não é problema - disse.
E de fato dinheiro não era o problema, pois vi que nada conseguiria salvar a corça. O filhote, no entanto, tinha uma chance. Se a mãe, é claro, estivesse perto de dar à luz. Se ele não tivesse sido muito esmagado pelas duas toneladas do caminhão. E mais alguns ”sés”.
- Não posso salvar a corça - reafirmei para o pai da menina. - Sinto muito.
Duffy abanou a cabeça. Era um mestre-de-obras e um dos caçadores locais. Um verdadeiro bronco, na minha modesta opinião. Estupidez seria provavelmente a palavra-chave para descrevê-lo, e talvez fosse esta sua melhor qualidade. Pude imaginar como se sentia naquele momento, justamente ele, que normalmente se vangloriava dos animais que matava. Imaginei o mal-estar de ver a filha pequena lhe implorando para salvar a vida do animal. Entre outros maus hábitos, Duffy tinha a coragem de passar de vez em quando na clínica para dizer alguma piada. Uma inscrição no pára-choque do seu 4 ponto 4 dizia: Defenda a Vida Selvagem. Junte-se ao Bando.
- O filhote? - perguntou.
- Talvez - disse eu. - Ajude-me a sacrificar a mãe e vamos ver.
Pousei com cuidado a máscara sobre o focinho da corça. Depois chutei o pedal, e o gás halógeno começou a assobiar pelo tubo. Os olhos castanhos da corça mostravam terror, mas também uma assombrosa tristeza. Ela sabia.
A menininha abraçou a barriga do animal e começou a chorar muito sentidamente. Ela me agradou bastante. Os olhos revelavam coragem e caráter. Duffy fizera pelo menos uma coisa boa na vida.
- Droga, droga - disse o pai. - Quando dei conta, ela já estava rolando pelo capo. Veja o que pode fazer, Frannie.
Afastei delicadamente a menina da corça, pus a mão em seus ombros e fiz com que me olhasse de frente.
- Como você se chama, baixinha?
- Angie - ela soluçou.
- Angie, escute o que eu vou dizer, querida. A corça está anestesiada, você entendeu? Não vai sentir nenhuma dor. Prometo.
Angie encostou o rosto em meu corpo e apertou com toda sua força de criança. Esfreguei-lhe as costas e expliquei que teria de sacrificar a corça, mas que se quiséssemos salvar o bebê havia muito trabalho pela frente.
- Por favor - dizia Angie. - Pelo menos o bebê, por favor!
- Vão precisar de uma cabra - disse ao pai. - Para dar leite. Talvez duas ou três.
- Não é problema - disse Duffy, que seria capaz de adquirir filhotes de elefante se eu desse a idéia. Naquele momento, só queria ver sua garotinha sorrindo de novo.
Pedi que os dois fizessem o favor de sair da sala e me deixassem trabalhar. Eu tinha de fazer uma cirurgia sangrenta, complicada, desagradável.
CAPÍTULO 2
Eram sete da noite quando os Duffy chegaram ao Inn-Patient e talvez já tivessem se passado doze minutos desde então. A pobre corça estava fria e eu me sentia péssima. Frannie, a trabalhadora infatigável - era assim que minha irmã Carole me chamava. Era também uma das denominações preferidas de meu marido David.
Havia pouco menos de um ano e meio, David fora baleado e morto no estacionamento do Hospital Comunitário de Boulder, na área reservada aos médicos. Eu ainda não tinha me recuperado; o golpe continuava doendo muito. Ajudaria um pouco se a polícia tivesse pegado o assassino, mas não foi o que aconteceu.
Cortei longitudinalmente o abdômen com o bisturi. Depois puxei o útero, que saiu intacto do corpo aberto do animal. Fiz um novo corte, desta vez na parede uterina. Comecei a retirar o filhote, rezando para não ser obrigada a jogá-lo fora.
O filhote tinha cerca de quatro meses, e a hora do nascimento estava próxima. Aparentemente não havia lesões. Usei os dedos para limpar cuidadosamente as passagens de ar do bebê e pus uma pequena máscara em seu focinho.
Depois bombeei oxigênio. O peito do animalzinho vibrou. Ele começou a respirar.
De repente berrou. Deus, que som maravilhoso! Uma nova vida! Incrível como a mágica da coisa ainda fazia meu coração se mexer. Frannie, a trabalhadora infatigável!
Limpei com a manga o sangue que respingara em meu rosto durante a cirurgia. O filhote bramia na máscara de oxigênio, e resolvi deixar o pequeno órfão se aconchegar alguns momentos sobre o corpo da mãe. Para o caso de as corças terem alma, para o caso... Bem, que pelo menos a mãe dissesse adeus ao filho!
Então cortei o cordão umbilical, enchi uma seringa e sacrifiquei a corça. Foi rápido. Ela jamais saberia dizer em que momento passou da vida para a morte.
Havia uma caixa de leite de cabra no refrigerador. Enchi uma mamadeira, que coloquei alguns segundos para esquentar no microondas.
Removi a máscara de oxigênio, enfiei o bico da mamadeira na boca da pequena corça e ela começou a sugar. Era um filhote realmente bonito, com adoráveis olhos castanhos. Deus, às vezes gosto muito do meu trabalho!
Quando entrei na sala de espera, pai e filha estavam sentados lado a lado no meu antigo sofá-cama.
Entreguei o filhote a Angie.
- Parabéns - disse eu -, é menina!
 Acompanhei os três membros da família até o caminhão amassado e sujo. Dei-lhes a caixa de leite de cabra, meu número de telefone e um aceno de adeus. Por um instante, refleti sobre a ironia de o filhote estar indo para casa no mesmo veículo que causara a morte de sua mãe.
Depois me ocorreu a imagem de um fumegante banho quente, um copo quase gelado de Chardonnay, talvez algumas batatas com queijo Cheddar - essas pequenas compensações. Estava me sentindo um tanto orgulhosa e há muito tempo não me sentia assim. Não, pelo menos, desde que a morte de David mudara praticamente tudo em minha vida.
E foi quando ia entrar que vi o carro no estacionamento, um reluzente jipe Cherokee preto.
A porta se abriu e um homem saltou devagar. Os faróis o atingiram por trás e por um instante ele ficou envolto num halo de luz.
Era alto, magro, mas musculoso, com farto cabelo louro. Seus olhos rapidamente inventariaram o lugar. A grande varanda equipada com bebedouros para os beija-flores e uma biruta em cada extremidade. Minha mountain bike, finamente empoeirada. Flores silvestres por todo lado: lírios, margaridas, pequenos cravos.
Agora é a parte um tanto estranha: Eu nunca o vira antes. Mas meu cérebro límbico, um orgãozinho estúpido, tão primitivo que nem alcança o pensamento lógico, cravou-se em sua imagem e lá ficou. Ao contemplá-lo, então, senti o avanço de alguma coisa próxima ao reconhecimento. E meu coração, que nos últimos anos virará uma pedra de gelo, vibrou, estremeceu; por um ou dois minutos voltou à vida. Mas foi só isso.
Fosse quem fosse aquele homem, o momento de mistério já estava perdido.
- Não abrimos à noite.
Ele me olhava. Sem ao menos se desculpar por ter invadido minha área da frente.
E de repenfe me chamava pelo nome.
- Dra. O’Neill?
- Ela está lhe devendo dinheiro? - Uma velha tirada da minha reserva de humor, mas eu gostava. E precisava de alguma coisa com um mínimo de graça depois da eutanásia da corça.
Quando ele sorriu, os olhos azul-claros se iluminaram e achei que não ia conseguir esquivar-me deles.
- Francês O’Neill?
- Sim, sou a Frannie.
Procurei manter um ar de indiferença, mas experimentei um toque de calor, pois a força daquele olhar parecia me pregar no chão. O nariz era bonito; o queixo, forte. As feições se combinavam admiravelmente bem. Uma certa semelhança comtomCruise, talvez alguns traços de Harrison Ford, algo do gênero. Pelo menos foi o que pareceu naquela noite, sob o brilho dos faróis do jipe.
Ele puxou o chapéu caído de lado e um cabelo farto, meio louro, meio ruivo, ondulou cintilante. Estava parado na minha frente com seu mais de um metro e oitenta. Como a foto lustrosa de um book da L.L.Bean ou da Eddie Bauer. Ainda que tivesse uma expressão muito séria.
- Venho da Hollander & Cowell.
- É corretor de imóveis? - perguntei, meio irritada.
- Desculpe. - Pelo menos era educado. - Sei que cheguei numa hora ruim.
- Por que está dizendo isso? - perguntei, embora soubesse perfeitamente que a calça jeans estava ensopada de sangue e o suéter parecia uma tela de Jackson Pollock.
- Bem, espero não ter de olhar para o cara que perdeu a briga - explicou avaliando minha aparência. - Ou será que deu problema no caldeirão?
- Há quem chame meus trabalhos de medicina veterinária - disse eu, logo perguntando: - Mas por que está aqui? Por que foi mandado pela Hollander & Cowell a esta hora da noite?
- Sou o seu novo inquilino. - Torceu o polegar para o centro de Bear Bluff, onde ficava a imobiliária. - Assinei o contrato hoje à tarde. Disseram que tinha deixado tudo nas mãos deles, que são profissionais.
- Está brincando. Alugou minha cabana?
Quase tinha esquecido que havia posto a cabana para alugar. Ficava a quatrocentos metros dali, na mata atrás da clínica, e fora usada como cabana de caça até eu me mudar com David para lá. Após a morte de David, comecei a dormir num pequeno quarto da clínica. Um monte de coisas se modificou para mim desde então, nenhuma para melhor.
- Então? Posso ver o lugar? - perguntou o sujeito do bookda L.L.Bean.
- É só seguir a trilha atrás da clínica - respondi. - Vai andar uns cinco minutos, não mais que isso. A porta não está trancada.
- Uma excursão sem guia?
- Adoraria ir, mas tenho de sacrificar umas galinhas e fazer uns trabalhinhos antes de dormir. Empresto uma lanterna...
- Tenho uma no carro.
Fiquei parada na porta enquanto ele caminhava para o jipe. Tinha um jeito bonito de andar; confiante, mas não arrogante.
- Ei! - gritei. - Como você se chama? Ele se virou; hesitou por meio segundo.
- Kit. Meu nome é Kit Harrison.
CAPÍTULO 3
Nunca vou esquecer o que aconteceu depois. Foi um choque, um chute no estômago que me causou uma espécie de convulsão.
Kit Harrison se aproximou do jipe... e fez o inimaginável. Tirou um rifle de caça de uma caixa de metal prateado. Aquele filho-da-puta!
Não podia acreditar no que estava vendo. Minha carne se arrepiava.
Berrei com ele, muito alto -justo eu que nunca berro!
- Ei, espere! Ei! Pare um instante, está ouvindo? Pare! Ele se virou para me encarar. Tinha um ar sereno, mas frio.
- O que é?
Será que estava me desafiando? Teria essa coragem?
- Escute... - Deixei a grande porta de vaivém batendo atrás de mim e marchei veloz e firme pelas pedrinhas de brita. Estava fora de cogitação deixar alguém entrar com um rifle de caça em minha terra. De jeito nenhum! Nem passando por cima do meu cadáver ou do dele.
- Mudei de idéia. Este lugar não é bom. E a coisa não vai dar certo. Não pode ficar aqui. Nada de caçadores aqui. Não há jeito, não há como!
O olhar de Kit Harrison se virou para o interior do jipe e a mão deu um golpe, agora fechando o porta-luvas. Que depois foi trancado. Ele nem parecia estar me ouvindo.
- Desculpe - disse sem me olhar.-Temos um contrato.
- O contrato acabou! Não entendeu o que eu disse?
- Negativo. Trato é trato.
Tirou uma lanterna comprida do compartimento da porta, uma mochila avermelhada e, com a outra mão, apanhou o hediondo rifle. Alucinada, continuei aos berros.
- Escute aqui!!
Mas ele me ignorava, nem parecia estar ouvindo.
Deu um chute para fechar a porta do jipe, acendeu a lanterna Durabeam e foi avançando normalmente pela trilha da mata. Da mata que tragou a luz da lanterna e o barulho dos passos dele se afastando.
O sangue batia nos meus tímpanos com força e muita velocidade.
A porra de um caçador estava se instalando em minha
casa!
CAPÍTULO 4
Escurecera quase por completo e os caçadores ainda não tinham encontrado o corpo da menina. Morriam de frio, estavam famintos e muito decepcionados. Também estavam com medo porque teriam de enfrentar as conseqüências se falhassem.
Precisavam achar a garota.
E o menino também - Matthew.
Os cinco atravessavam o trecho densamente arborizado onde acreditavam que a garota tinha caído. Só podia estar ali! Tinham de localizar aquele espécime chamado Tinkerbell. Tinham de destruí-la, se ela já não tivesse morrido devido à queda e ao tiro.
Pôr Tinkerbell para dormir, Harding Thomas pensava enquanto comandava a equipe de busca. Um eufemismo que usava para tornar mais fáceis momentos como aquele: pôr alguém para dormir. Do modo como fazem com os animais. Nada de morte, nada de extermínio - só um sono tranqüilo.
Achava que conhecia a área exata onde a garota caíra. Caíra, sem dúvida, como um pedaço de chumbo, só que não havia qualquer corpo estatelado no chão ou pendurado nos imensos pinheiros.
Certamente não podiam simplesmente abandoná-la, não podiam correr o risco de o corpo ser encontrado por alguém fazendo uma caminhada ou acampando. Seria um desastre titânico!
- Tinkerbell, está me ouvindo? Se machucou, querida? Só queremos levá-la pra casa. Só isso.
Thomas procurava falar com o máximo de gentileza. Não era tão difícil, pois sempre gostara de Max e de Matthew.
Tinkerbell era um codinome, e foi como sempre a chamaram. Peter Pan era o codinome do menino Matthew. Ele, Thomas, era o tio Tommy.
- Tinkerbell, cadê você? Venha cá, venha. Não vamos machucá-la, meu bem. Não estou aborrecido com você. E o tio Tommy quem fala. Confie em mim. Se não tiver confiança em mim, em quem vai confiar? Não está me ouvindo? Vamos lá, menininha. Sei que está aí. Pode confiar no tio Thomas. Sou a única pessoa com quem pode contar.
CAPÍTULO 5
Estava viva. Incrível, incrível, incrível!
Max, porém, estava machucada, baleada, e não sabia se o ferimento era grave ou não. Provavelmente não seria dos piores, pois ela ainda não morrera nem parecia haver muito sangue.
Havia horas se mantinha agarrada no alto de uma árvore, escondida entre galhos frondosos. Pelo menos esperava estar escondida. Procurava ficar quieta. Silenciosa. Invisível.
Mas tremia e tudo parecia estar saindo de controle.
Queria muito, muito mesmo que Matthew estivesse ali. Trocariam energia, esperança, palavras de sabedoria. Fora sempre assim com os dois. Eram inseparáveis na Escola. A sra Beattie, a única pessoa realmente boa que havia lá, chamava os ”mseparáveis de nascença” e ”gêmeos de uma cabeça só”, não importa o que queria dizer com isso. Quando a sra Beattie morreu, as coisas ficaram ruins. Realmente ruins. Brabas.
O bosque estava coalhado de homens. Gente péssima as piores criaturas que se poderia imaginar. Havia pelo menos meia dúzia. Caçadores. Matadores. Estavam freneticamente atrás dela e também de Matthew. Tinham rifles e lanternas.
Tio Thomas era um deles, e era o pior. Fingira ser amigo... mas era a pessoa que fazia dormir. Fora um professor, um cientista. Agora não passava de um assassino.
Ninguém vai machucar você, meu bem. - Max sabia imitar a voz dele, otomfalso da voz, a falta de sinceridade.
O único lado positivo da coisa era que não precisava vêlos andar pela mata. Tinha uma audição incrivelmente aguçada. Capaz de distinguir os sons que cabiam num milésimo de segundo. Era esse um de seus melhores dons. Podia ouvir o ínfimo zumbido de mosquitos distantes e o menor trinado dos nervos de uma cambaxirra. Escutava as folhas dos alamos a quase um quilômetro. Mas não sabia se Matthew estava ali por perto. Também estaria escutando? Será?
- Tinkerbell, não está me ouvindo?
Sim, podia ouvir o bando patético que vinha atrás dela. Conseguira ouvi-los quando ainda estavam muito longe. Escutava cada passo, cada leve tosse e fungadela, cada hálito quente e fedorento que ela adoraria ver transformado num último suspiro.
Um dos homens falou e ela reconheceu um guarda particularmente brutal da Escola.
- A gente devíamos ter trazido os cachorros. Um dos outros emparelhou com ele e riu.
- A gente devíamos e a gente podíamos, mas nóis num fez. É uma menina. Os dois são guris. Se a gente não puder achar uma garotinha, é melhor empacotar a mochila.
Cães! Max sufocou um grito. Cães poderiam achá-la. Pelo menos nisto os cães eram melhores, porque eles também possuem poderes especiais. Os humanos eram a espécie mais fraca. Talvez por isso é que conseguem ser os mais ordinários animais.
O vento tornou a soprar, furioso, uivante, lembrando a menina de como estava frio lá fora. Max agarrou-se com força na árvore, prestando atenção, até não ouvir mais barulho algum dos caçadores. Por um momento, pareceu que eles nem existiam.
Devagar, dolorosamente, foi escorregando pelo pinheiro e pisou com cuidado num pedaço de chão entre as árvores.
Correu. Tinha de encontrar um esconderijo. Tinha de encontrar Matthew antes que fosse tarde demais.
CAPÍTULO 6
Seu garotinho de três anos, Mike, costumava dizer que tinha um ”medo brabo do escuro”. Kit simplesmente adorava a expressão.
Ele ria muito e apertava Mike, o Bebezão, contra o peito sempre que ele dizia isso. Ainda podia sentir os abraços gostosos do garoto. A lembrança deixava-o ansioso, vazio, como se o tivessem aberto para jogar fora todos os seus miolos.
É claro que, naquele momento, sentia todo tipo de coisa. Afinal, investigava o que acreditava ser o mais importante caso de sua carreira.
E pensar que nem devia estar ali, pois fora afastado da investigação. Quem sabe o caso já tivesse até sido arquivado.
Sim, estava com um ”medo brabo”.
Deixou seu equipamento e suas roupas de montanhismo guardados na cabana. Queria que tudo parecesse normal se estivesse sendo vigiado ou se resolvessem dar uma busca no lugar. Era possível, até mesmo provável, que Frannie O’Neill ou alguém mais quisesse espioná-lo.
A antiga cabana de caça era modesta, com pouca decoração, mas surpreendentemente confortável e quente. Havia uma lareira, estilo Rumford, construída com o granito da cidade.
Toscas lanternas de metal cobriam a maior parte do console. Na cama, havia uma espessa pele de carneiro.
Baixou as persianas e tirou rapidamente a roupa. Depois apagou as luzes, deitou-se e empurrou o rifle para baixo da cama. A arma era parte de seu disfarce de caçador, mas não se importava de tê-la por perto como proteção extra. Mal não ia fazer.
Oficialmente, estou de férias em Nantucket. Gastando um pouco de minha energia, pondo a cabeça em ordem. Talvez eu devesse ter ido mesmo para lá - mas não fiz isso, não foi? É a segunda vez que me enrolo com essas escapadas.
O primeiro rolo foi em 9 de agosto de 1994.
Fechou os olhos, mas não dormiu. Esperou.
Com os olhos bem fechados, recordou sua conversa particular com o diretor-assistente do FBI. Tivera de passar por cima de seu chefe para conseguir a entrevista.
Lembrava-se dos pontos importantes, como se tivesse acontecido na véspera.
O diretor-assistente tinha um certo ar no rosto, como se fosse um ser incrivelmente superior e não pudesse acreditar que seu tempo estivesse sendo desperdiçado por um agente de campo.
- Eu falo, você escuta, agente Brennan.
- O que talvez torne sem sentido este nosso encontro ele dissera.
- Acho que não está entendendo o sentido da coisa.
- Não, senhor, acho que não.
- Estamos tentando ser tolerantes por causa da tragédia que enfrentou em sua vida pessoal. Mas está tornando as coisas difíceis, quase impossíveis para nós. Escute bem o que vou dizer. Quero que pare com esta investigação estúpida. Quero que encerre hoje a sua caça às bruxas. Quero que esqueça os médicos sumidos ou nós é que teremos de fazê-lo sumir do FBI. Compreendeu?
Deitado no escuro, Kit recordou a intenção, senão as palavras exatas do diretor-assistente. Sim, ele compreendia.
E lá estava no Colorado, porque obviamente fizera uma opção, encerrando conscientemente uma carreira. Um caso perdido.
CAPÍTULO 7
Eram onze e quinze daquela noite quando jogou para o lado a manta de pele de carneiro e pulou da cama.
Vestiu-se depressa, no escuro. Uma camisa preta e uma calça preta de malha sobre seus oitenta quilos de corpo. Um boné preto de beisebol. Um suéter de gola alta com a etiqueta de Larry Bird, sua grife desde os dez anos de idade, quando corria pelas ruas e pelos brinquedos dos playgrounds na zona sul de Boston.
A lua cheia brilhava do lado de fora. Ele esquadrinhou os altos pinheiros, olhando da esquerda para a direita através da janela do quarto. Repetiu o procedimento até se certificar de que não havia ninguém por lá - alguém à espreita, à espera de que saísse.
Abriu a porta da cabana, caindo no ar frio, cortante da noite. Sentiu-se um pouco parecido com o Mulder do Arquivo X. Pior. Sentiu-se muito parecido com o Mulder - e o Mulder era de longe a coisa mais esquisita do seriado.
Kit Harrison foi seguindo a trilha sinuosa que serpenteava entre as árvores na direção da clínica veterinária. Sabia que Francês O’Neill tinha um quarto lá, sabia que estava morando na clínica desde que o marido David morrera. Também tinha alguma informação sobre o Dr. David Mekin. Na realidade, sabia mais sobre David que sobre a esposa.
David Mekin havia estudado embriologia no MIT nos anos
80. Depois trabalhara em San Francisco. Uma dúzia de páginas da agenda de Kit estavam repletas de anotações sobre o Dr. Mekin. Mas, como fizera um bom dever de casa, não deixara de descobrir alguma coisa a respeito de Frannie.
Era formada em medicina veterinária pelo hospital-escola da Universidade do Estado do Colorado, em Fort Collins. A Universidade do Colorado era também o centro nacional de referência para biologia da vida selvagem e Frannie fizera um curso de extensão em vida selvagem. O hospital-escola tinha boa reputação, especialmente em cirurgia. Frannie fundara um grupo local de ”apoio a animais perdidos” e tivera uma brilhante prática veterinária até a morte do marido. Fora Frannie quem sustentara a família. Ultimamente, tinha se descuidado do lado comercial da clínica.
Kit levou menos de três minutos para chegar ao Inn-Patient, como Frannie batizara a clínica veterinária. A seu ver, era por ali que devia começar.
Havia uma luz forte na varanda da frente e uma luz trêmula, amarelada, na janela de um dos lados da casa. Numa outra janela, havia um gatinho coto. Estava de guarda, cravando, desconfiado, os olhos nele sem mover um só fio do bigode.
Quando parou para tomar fôlego ou, talvez, para acalmar as batidas do coração, olhou atentamente ao redor. Queria saber se havia mais alguém ali fora.
Precisava dar uma boa olhada no interior da clínica, mas provavelmente não naquela noite. Kit Harrison se esgueirou por trás de uma dupla de pinheiros, iguais inclusive na altura, e encontrou-se a menos de três metros da janela iluminada.
De repente deu um salto para trás.
Jesus! Aquilo o arrepiara até o fundo da alma.
Frannie O’Neill estava bem ali na janela, emoldurada pela luz suave. Nua como no dia em que veio ao mundo. Ele deu um suspiro rápido que logo engoliu. Era a última coisa que esperava ver. Fora como levar um murro no olho.
Ela não o tinha visto, graças a Deus. Estava ocupada, secando o cabelo comprido, castanho, com uma toalha branca e fofa. Lindo cabelo. Tudo lindo, sem dúvida.
Era bem mais atraente do que deixara transparecer no primeiro contato. Muito bonita, olhos muito vivos. Magra e em boa forma. Em muito boa forma. A pele tinha um brilho de saúde. Trinta e três anos, ele se lembrava das anotações. O marido, Dr. David Mekin, morrera aos trinta e oito. Fora assassinado aos trinta e oito.
Kit se afastou. Ela ainda estava de pé; portanto, estava fora de questão revistar a clínica naquela noite. E não queria ficar na frente daquela janela espionando a Dra. O’Neill sem roupa. Isto o fazia se sentir como uma pequena merda rastejante. Kit podia ser muita coisa, sem dúvida, mas não era um voyeur.
Seguiu novamente a trilha de volta para a cabana. Com a imagem de Frannie O’Neill na cabeça. Na realidade, ela estava marcada a ferro e fogo no seu nervo ótico. Por isso os olhos tinham um brilho especial sugerindo uma disposição de ânimo que ele não sentira durante o encontro inicial dos dois. Frannie era definitivamente mais bonita do que imaginava.
E podia ser uma assassina.
CAPÍTULO 8
Finalmente havia chegado a manhã de terça-feira .
Anne Hutton esperara com muita ansiedade aquele dia, mas agora já se sentia bem, estranhamente relaxada e pronta.
Na realidade, Annie Hutton sempre experimentava uma boa dose de conforto e bem-estar quando visitava a clínica de fertilização in vitro do Hospital Comunitário de Boulder. A equipe da unidade parecia querer manter sob controle todos os efeitos potenciais, negativos ou positivos, que a técnica pudesse ter sobre as prováveis mães. Eram pessoas simplesmente incríveis e Annie sentia-se muito feliz por tê-las à sua volta.
A sóbria sala de espera tinha cálidas paredes amarelas e um largo rodapé muito branco. Sempre havia flores recentemente colhidas. E uma bela coleção de todas as últimas edições das revistas certas: Mirabella, AD, Town & Country, Parents, Child.
Melhor que tudo era a equipe ”pra cima”, positiva, bem treinada, e especialmente o médico, John Brownhill. Era ele quem falava agora com Anne, fazendo as perguntas de praxe no check-up dos oito meses completos. Parecia realmente interessado em saber como ela estava se sentindo. Não estava sentindo as contrações de Braxton Hicks ou alguma coisa fora do comum?
- Não, está tudo bem, pode bater na madeira. - Com um sorriso otimista, Anne espelhava a confiança que sentia pelo médico e pelo resto do pessoal.
- Isso é ótimo - disse o Dr. Brownhill retribuindo o sorriso. Não em excesso, não de uma forma condescendente ou algo desse tipo, apenas na medida certa. - Vamos fazer alguns testes e tirá-la daqui a tempo de ver o Rosie Show.
Annie sabia que, por mais que estivesse relativamente animada, continuava sendo uma paciente de alto risco. Fora informada pelo Dr. Brownhill que sua placenta era insuficiente. Agora o médico e sua assistente, a enfermeira Jilly, iam usar um monitor cardíaco fetal (FHM) para avaliar o nível de estresse do feto durante as contrações. A antecipação do teste com o FHM a deixava um pouco nervosa, mas ainda assim tentou ficar tão positivamente motivada quanto o Dr. Brownhill e a enfermeira.
Jilly espremeu uma geléia eletrocondutora no estômago de Annie. Annie reparou que a geléia fora pré-aquecida para seu conforto. Pensavam em tudo. Jilly, então, colocou duas largas tiras de plástico em volta de sua barriga. Muito delicadamente.
- Está bem assim? - perguntou o Dr. Brownhill. Alguma sugestão?
- Estou ótima, realmente. A geléia está na temperatura certa.
Aconteceu tão de repente; quase como num sonho mau.
- A batida do coração do bebê está caindo - disse o Dr. Brownhill. Sua voz crepitou: - Cem, noventa e sete, noventa e cinco. - Virou-se para Jilly. - Temos de segurar... Coragem, Annie. Agüente firme.
Depois disso, a coisa correu muito rápido, uma tensa situação de crise enfrentada com eficiência. Primeiro tudo ficou meio nublado para Annie e, em seguida, ela apagou.
Menos de quarenta minutos mais tarde, muito antes do previsto, o Dr. John Brownhill levava pessoalmente o recémnascido para o berçário dos prematuros. De acordo com os índices de Apgar, medidos na sala de parto, o menino tinha uma saúde excelente, mas ainda assim todas as precauções estavam sendo tomadas.
Um tubo esterilizado foi inserido na traquéia da criança; um capacete pressurizado, ajustado em volta da diminuta cabecinha. Isto assegurava que um suprimento contínuo de oxigênio em baixa pressão seria direcionado para as bolsas dos pulmões, ainda relativamente pouco desenvolvidos.
Um exame de sangue foi feito com a ajuda de um tubo plástico enfiado no umbigo.
Um termômetro eletrônico foi preso à pele do bebê.
Um tubo nasogástrico de alimentação foi inserido no nariz. Leite materno foi conduzido através dele, para o caso de o menino ainda não ser capaz de sugar.
Um especialista em cuidados neonatais intensivos pairava junto do precioso menininho de Annie Hutton, checando tudo, verificando se ele estava realmente em forma.
- Está indo bem. Tudo perfeito - disse um dos especialistas ao Dr. Brownhill. - É ótimo o estado do garoto, John. Quarenta e um centímetros de cabeça, o que acha? Grande cabeça para pensar.
- Ele vai precisar.
John Brownhill finalmente deixou o berçário dos prematuros e, subindo dois lances de escada, chegou ao andar onde Annie Hutton se recuperava da cesariana.
A mãe de vinte e quatro anos não parecia tão bem quanto o filho. Molhados de suor, pequenos cachos do cabelo louroescuro iam se grudando no couro cabeludo. Os olhos pareciam embaçados, remotos. Sem dúvida a aparência de quem saíra havia muito pouco tempo de um não-programado tratamento de choque.
O Dr. Brownhill foi diretamente para sua cabeceira, inclinou-se, chegou a pegar na mão dela. O tom foi o de sempre
- suave, tranqüilizador.
- Sinto muito, Annie. ”Não conseguimos salvá-lo. Perdemos o seu menino.
CAPÍTULO 9
O bebê Hutton chegou à Escola horas depois de seu nascimento na clínica Boulder. Uma equipe com trajes que lembravam os trajes espaciais veio correndo receber a ambulância e levou imediatamente o menino para o interior do prédio. Havia um clima de grande entusiasmo, de grande alegria, quase de exaltação.
O médico-chefe da Escola comparecera para os primeiros exames. Acompanhava tudo de perto, supervisionando, dando algumas orientações.
Batimento cardíaco, respiração, cor da pele, tônus muscular, reflexos, tudo foi verificado. O bebê Hutton alcançava um dez imaculado.
Registraram a altura e o peso. Fizeram testes para conferir o ritmo cardiovascular, a pressão arterial, a circulação subconjuntival, a visão, os traços da sexualidade. Verificaram a inexistência de fraturas na clavícula, displasia na região do fêmur ou manchas na pele.
Havia uma pinta, um diminuto sinal de nascença no lado direito da cintura. Foi registrado como ”imperfeição”.
A maioria dos testes envolveram a coordenação motora geral e específica do garoto, assim como a aptidão para manipular o ambiente. O médico-chefe ficou todo o tempo no laboratório, assistindo a cada procedimento, tecendo comentários à medida que cada teste ia sendo concluído.
- A cabeça tem quarenta e um centímetros de circunferência. O que seria normal para uma criança de quatro meses. Foi uma das razões, é claro, que tornou a cesariana necessária.
 O coração também é maior que o padrão, e mais eficiente. Seu batimento cardíaco é inferior a cem, o que é simplesmente incrível. Próprio de um pequeno campeão. E o médico-chefe acrescentou:
- Mas observem o bebê. Estão vendo? É a chave. É onde se acha o verdadeiramente notável. Ele está nos ouvindo e está prestando atenção. Conseguem perceber? Vejam os olhos. Recém-nascidos não fixam o olhar em nada e não acompanham ninguém com os olhos. Nunca. Mas este realmente observa cada um de nós. Compreendem o que isso significa?
Ele continuou:
- Os bebês nunca se lembram dos objetos depois que eles desaparecem. Este não. Tenham certeza, está gravando tudo. Vejam os olhinhos. Ele já tem memória porque é realmente um superbebê !
CAPÍTULO 10
Acordei procurando tomar fôlego, chorando baixo por causa do sonho que tive com meu marido David. Um pesadelo terrível, arrasador. Era aliás desse modo que vinha acordando quase todos os dias.
Sentia muita falta de David e a saudade não diminuíra desde aquela noite, há um ano e meio, quando ele foi atingido por um tiro na cabeça no meio de um estacionamento deserto em Boulder.
Eu e David havíamos sido inseparáveis antes de sua morte. Esquiamos de uma ponta à outra do Colorado e do resto do Oeste. Passamos muitos domingos num exótico spa em Pueblo. Lemos tantos livros que podíamos ter montado bibliotecas públicas nas duas pequenas casas que compramos. E tivemos mais amigos do que podíamos dar conta. Sem dúvida adorávamos viver e vivemos uma vida plena em cada minuto do dia.
Eu possuía uma florescente clínica veterinária para animais de qualquer porte. No início de cada manhã, visitava fazendas e sítios onde atendia cavalos e outros animais de grande porte. No resto do dia, gente de todo o condado levava seus bichinhos de estimação para o Inn-Patient. Acabei tendo meu trabalho publicamente reconhecido e fui chamada ”a veterinária dos anos 90” pelo Denver Post.
Tudo, no entanto, se modificara. O arco de minha vida fora se voltando para o lado errado e o movimento não parecia reversível. Eu não parava, é claro, de pensar no assassinato de David. Chateei tanto a polícia de Boulder que os policiais me pediram para deixá-los em paz. Quanto a meu trabalho, passei a não atender mais as chamadas a domicílio, deixando que as pessoas me procurassem.
Pulei da cama. Vesti a camisola xadrez (uma velha e fiel camisola azulada) e enfiei os pés nos chinelos que havia ganho no Natal. Fora o presente de duas crianças engraçadinhas, donas de um filhote de coiote que eu conseguira costurar.
Os chinelos tinham o formato de focinhos de cocker spaniels: olhos baixos olhando para cima, línguas rosadas caindo de lado, orelhas caídas - um serviço completo.
Liguei o toca-fitas. O inconfundível gemido rouco de Fiona Apple; dezoito anos e cheia de um clima irado, amargo e criativo de piração. Gosto disso numa diva.
Abri a porta da ”suíte principal” e entrei no laboratório, onde fui recebida pelo meu pôster favorito naquele mês: ”A caça à raposa é o execrável movimento atrás do não comestível. ” Oscar Wilde.
Começando do início, enchi a cafeteira, comi um wafer de baunilha com avelãs e, assim que o café começou a ferver, fui virando os olhos para meus pacientes.
Frannie O’Neill, esta é a sua vida.
A Enfermaria número Um era uma sala de quatro por quatro com uma pia, uma janela e duas fileiras bem arrumadas de jaulas limpas. Na fileira do fundo havia três hóspedes: dois cachorros e a colega de quarto de um deles, uma vulgar galinha leghorn.
Um dos cachorros, um poodle do tipo padrão, tinha rasgado de novo o cateter, apesar da focinheira que eu lhe colocara.
 Conversei com ele usando todas as dezesseis palavras que eu sabia de francês. Depois recoloquei o tubo no lugar, afaguei o seu topete e o perdoei.
-Je t’aime.
A Enfermaria Dois é uma réplica ligeiramente menor da Enfermaria Um, mas sem nenhuma janela. Alguns de meus ”exóticos” ficam engaiolados lá: um coelhinho com pneumonia (provavelmente não vai superá-la), um hamster que recebi pelo correio sem qualquer nota de explicação...
E também o Frank, um cisne que minha irmã Carole resgatou de um lago junto à trilha de enduro. Carole se julga a Santa Teresa da vida selvagem. No momento estava de férias, acampando num dos parques estaduais com as filhas. Quase fui com ela.
Meu café estava pronto. Enchi uma xícara bem quente, acrescentando leite e açúcar. Humm, hummm, bom.
Pip estava na minha perna. É um terrier de pêlo cinzento, um sujeitinho engraçado que apareceu como cachorro de rua, mas que provavelmente tinha sido abandonado. Ficou em pé nas patas traseiras e executou um pouco da dança que sabia que eu gostava. Dei-lhe um beijo e fui buscar uma vasilha de ração, onde pus um resto de pasta de arroz com frango.
- Gostoso?
- Uff...
- É bom saber.
Fui andando até a frente do prédio e foi lá que vi o jipe com tração nas quatro rodas e direção hidráulica do cara do book da L.L.Bean. Kit Qualquer Coisa. O caçador de volta à minha calçada. Parado ao lado do jipe com o rifle pendurado no ombro.
Então, num relance, vi um contorno mole no banco de trás.
Não, meu Deus! Já matara alguma coisa! Já baleara um animal na minha área. Este safado, este merda!
Já encontrara muitas carcaças e corpos de animais na mata, mas ali era minha terra, minha propriedade, uma área que considerava um refúgio, um lugar preservado da loucura do mundo.
- Ei, você! - gritei. - Aí! O que é isso aí?
Eu já partira da varanda em erupção vulcânica quando ele recuou um passo para abrir a porta do jipe. Percebi, então, que o contorno tinha a cor errada para ser um animal.
Era avermelhado. Parecia mais uma mochila.
Ele se virará ao som do meu grito e chegara a ensaiar um aceno, sorrindo daquele jeito meio irresistível. Minha resposta, porém, foi um olhar fervente, capaz de fazê-lo entrar em combustão instantâneae se transformarnum punhado decinzas.
- Bom-dia - disse ele. - Como isso aqui é bonito, meu Deus! Um pedaço do céu, não acha?
Agarrando a frente da camisola para ela não abrir, abaixei-me para pegar a ”gazeta fúnebre”, como eu chamo o Post, sempre tão cheio de más notícias.
Depois dei meia-volta no meu ego ferido e entrei pateando o chão.
CAPÍTULO 11
A distinção era evidente.
A tarde, sem dúvida, ficara muito quente e úmida em Boulder, mas não embaixo dos majestosos pinheiros que rodeavam o terreno amplo e discreto nos fundos da casa do Dr. Francis McDonough. E certamente não no azul luminoso da piscina de vinte e cinco metros de comprimento, em que a água, como quase sempre acontecia, estaria ao redor de vinte e dois graus.
Os móveis de ferro trabalhado que cercavam a piscina tinham arabescos sugerindo folhagens. Havia também grandes e confortáveis canapés, uma cadeira de encosto com motivos florais e jarros de flores da estação entre os guarda-sóis de lona.
Frank McDonough continuava dando voltas na piscina e achava incrível que, quase vinte anos depois de ter sido um nadador de primeira linha na Universidade de Berkeley, ainda preferisse nadar no sentido contrário aos ponteiros do relógio.
O Dr. McDonough gostava tremendamente de sua vida na área de Boulder. A enorme casa térrea, estilo campestre, tinha uma fantástica vista da cidade e das planícies que se estendiam para o leste. Ele adorava o ar cortante, selvagem, e o profundo azul do céu. Chegara a visitar o Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica para ver se descobria por que o lugar era assim, por que o céu ali era tão azul? Viera havia seis anos de San Francisco e nunca pensara em voltar.
Nunca pensaria. Especialmente num dia como aquele, apreciando os montes Flatiron, que se erguiam não muito longe dali, e esperando Barbara, a esposa, que devia chegar do trabalho em menos de uma hora.
Provavelmente fariam um churrasco de peixe ao ar livre, abririam uma garrafa de Zinfandel e talvez telefonassem para os Solies. Ou quem sabe não conseguiriam tirar Frannie O’Neill de perto de seus animais em Bear Bluff? Frank McDonough nadara com Frannie na universidade e gostava muito de sua companhia. Além disso, desde a trágica morte de David, vivia preocupado com ela.
McDonough parou de nadar no meio de uma braçada. Deteve-se quando ia atingir a ponta sul da piscina e completar sua nonagésima primeira volta. Vira o lampejo de um movimento apressado no pátio. Perto da churrasqueira Weber.
Alguém estava lá fora com ele.
Não. Era mais de uma pessoa. Eram várias pessoas, sem dúvida, o que lhe provocou uma ferroada de medo. O que era aquilo?
Frank McDonough ergueu a cabeça da água e os óculos Speedo, de mergulho, gotejaram quando foram puxados. Quatro homens em roupa esporte (jeans, camisas caqui, camisas pólo) avançavam em sua direção.
- Precisam de alguma coisa? - ele gritou. Seu instinto natural era reagir de modo simpático, pensando sempre o melhor das pessoas, sendo gentil, educado.
Os homens não responderam. Em vez disso, continuaram atravessando o deque. Estranho como diabo, ele pensou. E meio irritante.
De repente começaram a correr!
Uma mesa foi derrubada na borda da piscina. Velas decorativas se partiram, jornais e revistas voaram.
- Ei! Ei! - Olhava perplexo para eles.
Todos os quatro tinham pulado na parte rasa, ao lado de Frank McDonough.
- Que porra é essa? - McDonough começou a gritar seriamente com os intrusos. Não entendia o que estava acontecendo, e estava assustado.
Caíram em cima dele como uma matilha de cães. Agarraram seus braços e pernas, apertaram, torceram. Ele ouviu um terrível claque e sentiu que o pulso esquerdo fora quebrado. O rápido, poderoso movimento doía extremamente! Podia avaliar a força do grupo porque ele, que também era forte, fora imobilizado como um menino de quarenta quilos.
- Ei! Ei! -tornou a gritar, engasgando-se porque o nariz já estava cheio d’água. Tinham empurrado sua cabeça para trás e ele olhava direto para o infinito azulado do céu.
Então começaram a forçar a cabeça. A forçá-la para descer. McDonough ainda tentou tomar fôlego, mas só conseguiu um punhado de água com cloro tapando a garganta.
Eles o seguravam, prendiam suas pernas e braços num violento torniquete para que não viesse à tona. Frank McDonough estava se afogando. Ô Deus, a coisa não fazia nenhum sentido!
Procurou se debater.
Procurou se livrar.
Procurou se acalmar.
Frank ouviu o próprio pescoço estalando. Não podia resistir a eles. Sentia sua força vital se escoar, fluir para fora do corpo.
Percebia os vultos de roupas ensopadas ondulando na água cintilante, muito limpa e azul. Os olhos de Frank estavam muito arregalados e a boca, muito aberta. A água fluía por sua garganta e penetrava, num jorro apavorante, em seus pulmões. O peito parecia que ia implodir, e ele realmente queria que isso acontecesse. Queria o fim da agonia e da terrível pressão interna.
Num instante, o Dr. Frank McDonough compreendeu. Viu a verdade tão claramente quanto podia ver sua própria morte se aproximando.
O problema fora com Tinkerbell e com Peter Pan.
Eles tinham escapado de sua vigilância.
CAPÍTULO 12
Se você pisa realmente fundo, se realmente voa, são cerca de quarenta minutos de Bear Bluff a Boulder.
Esforcei-me ao máximo para dirigir de modo controlado, não de todo insano, mas essa intenção foi um desastre total. A estrada e a noite passavam por mim como um fantasma borrado.
Não parava de ver o Frank McDonough que eu conhecia havia seis anos - sorridente, incrivelmente cheio de vida. Eu não vinha saindo muito de Bluff. De fato já não saía de lá havia 493 dias. Mas naquele momento, tinha de ir a Boulder.
Frank McDonough morrera. Barb, a esposa, me telefonara chorando. Era realmente difícil de acreditar. Não podia suportar a imagem tão dolorosa, tão pavorosa e terrível.
Primeiro David e agora Frank. Parecia absurdo.
Tentei falar com Gillian, uma grande amiga que trabalhava no Hospital Comunitário de Boulder. Quando a secretária eletrônica atendeu, deixei um recado que me pareceu coerente.
Tentei ligar para minha irmã Carole, que certamente não atenderia o telefone no camping onde estava de férias com as duas filhas. Mas droga, eu precisava dela!
Ouvi o cruel gemido das sirenes de polícia antes mesmo de chegar à casa de Frank e Barb McDonough. Moravam perto do Hospital Comunitário de Boulder, o que fazia sentido, pois ambos trabalhavam lá. Barb era enfermeira cirúrgica, Frank, o chefe da pediatria.
Frank era um pediatra. Meu Deus, agora estava morto! Um amigo meu, um amigo de David. Como podia ter acontecido?
As sirenes da polícia tocavam num nível de perfurar os tímpanos e pareciam tão sinistras, tão pessoais... Como se estivessem soando para mim.
O simples fato de ouvir as sirenes me trazia muitas lembranças e todas extremamente desagradáveis. Passei muitos meses insistindo para a polícia de Boulder solucionar o assassinato de David. Tentei investigar sozinha, só Deus sabe como. Interroguei gente que trabalhava no estacionamento, médicos que usavam o estacionamento tarde da noite.
Naquele momento, todas as más recordações do assassinato de David transbordavam sobre mim. Era insuportável.
CAPÍTULO 13
- Sou a Dra. O’Neill - disse ao passar por um policial alto e forte da delegacia de Boulder. Ele estava parado junto à entrada caiada que eu conhecia tão bem. - Sou amiga de Barb e de Frank. Ela me telefonou.
- Sim. Ela está lá dentro. A senhora pode seguir direto
- disse o homem, tirando seu boné com visor.
Quase nem reconheci a comprida casa de rancho ou a imaculada paisagem que Frank adorava. Ele planejara tudo pensando na conservação das águas. Frank era assim. Sempre preocupado com as outras pessoas, sempre pensando à frente. Agora os luxuriantes gramados verdes sumiam entre a parafernália colorida do aparato policial.
Estava atônita e pelo menos parcialmente incrédula. Os McDonough eram o casal com quem eu e David tivemos mais intimidade quando ele trabalhava no hospital. Os dois correram para nossa casa na noite em que David foi baleado. Barb, Carole e minha amiga Gillian Pur isso passaram a noite comigo. Agora lá estava eu em Bouldèr, sob as mesmas circunstâncias. Uma mulher atravessou a porta de vaivém quando avancei pela escada. Não era Barb McDonough.
- Deus, Gillian... - sussurrei. Gillian era a melhor amiga que eu tinha no mundo. Abraçamo-nos na varanda. Choramos as duas, uma agarrada à outra, ambas tentando compreender a tragédia. Fiquei contente ao ver que ela também estava lá.
- Como Frank pôde se afogar? - murmurei.
- Ah, Frannie! Não sei o que aconteceu. O pescoço de Frank estava quebrado. Ele deve ter tentado mergulhar na parte rasa... E você? Você está bem? Não, claro que não! Nem a pobre Barb. Isto é cruel, é terrível.
Chorei no ombro de minha amiga. Ela chorou no meu.
Gillian era médica pesquisadora no Hospital Comunitário de Bouldèr, e uma excelente profissional. Tão boa que podia se dar ao luxo de ser uma rebelde ”conseqüente”, pois estava sempre em alerta contra os burocratas, os corruptos, os idiotas da administração. Gillian também era viúva e mãe de um filho pequeno, Michael, por quem eu tinha verdadeira adoração.
Como fora direto do trabalho para a casa de Barb, ainda estava usando os trapos do hospital. Não tirara sequer o crachá do jaleco do laboratório! Que dia longo e terrível para ela. Para todas nós.
- Tenho de falar com Barb. Onde ela está?
- Venha comigo - disse Gil -, eu mostro o caminho. Você me dá força. Eu dou força a você.
Entrei com Gillian na casa familiar, mas agora estranhamente escura, silenciosa, sombria. Encontramos Barb na cozinha com outra amiga íntima, Gilda Haranzo. Gilda era enfermeira da pediatria no hospital e também fazia parte de nossas relações.
- Barb, sinto muito, muito... - murmurei, mas as palavras parecem nunca funcionar nesses momentos.
Chorando, caímos nos braços uma da outra.
- Eu não imaginava como podia ter sido com David. Ah, Frannie, eu não podia imaginar! - Barb soluçava convulsivamente em meu peito. - Eu devia ter sido mais atenciosa!
- Você foi maravilhosa, Barb, e acho que é uma grande amiga. Gosto muito de você. - Era verdade, por isso a coisa me machucava tão intensamente. Podia sentir a perda que ela estava sentindo. Como se tivesse acontecido outra vez comigo.
Todas procurávamos nos abraçar e, na medida do possível, nos consolar. Parecia que um segundo atrás ainda tínhamos nossos maridos e nos encontrávamos nos churrascos, nas piscinas, nas reuniões de caridade, nas rodas de amigos em que ficávamos horas conversando.
Barb finalmente nos largou. Abrindo uma das portas do armário em cima da pia, pegou uma garrafa de Crown Royal, rasgou o lacre e encheu quatro copos grandes de uísque.
Olhei pela janela da cozinha e vi gente do hospital na parte de trás do terreno, quase ao lado da piscina. Rich Pollett, o principal assessor da diretoria, estava lá. Fora um bom amigo de Frank, um parceiro de pesca.
Depois vi Henrich Kroner, o diretor - Rick para os amigos. Henrich era um elitista esnobe. Através do foco estreito que mantinha sobre a vida, julgava-se alguém muito especial, não o sujeitinho ordinário que de fato era. Achei muito estranho que justamente Henrich tivesse comparecido. A única explicação era a casa dos McDonough ficar tão perto do hospital. Se bem que... não havia como negar, todos gostavam de Frank.
Foi então que me ocorreu um doloroso lampejo de memória, algo que cortou meu coração como faca. Anos atrás, eu e David tínhamos feito um pouco de canoagem, descendo umas corredeiras com Frank e Barbara. Depois, no entanto, passamos a nadar em águas mais tranqüilas, em que Frank era um verdadeiro peixe. Nunca vou esquecer seu elegante estilo em nado livre.
Como pôde morrer na piscina?
Como admitir a morte dos dois, de Frank e David?
Tomando mais um trago do uísque estimulante, não conseguia atinar com uma resposta. Sentia-me como um pião que não parava de rodar. Então tomei outro copo, e outro, até ficar alta.
Gillian parecia quase tão preocupada comigo quanto com Barbara. Era o seu jeito desde a morte de David, principalmente depois que resolvi não deixar o crime impune. Era como se eu fosse uma criança que ela tivesse adotado. Gillian me fazia lembrar a imagem que tenho de Emma Thompson: esperta, mas sensível, atenciosa, engraçada também.
- Fique lá em casa esta noite - disse ela com ar de súplica. - Por favor, Frannie! Acendo a lareira e a gente conversa até cair de sono.
- O que da minha parte não vai demorar, Gil - disse eu balançando a cabeça. -Não posso ir. Vão me trazer um collie machucado de manhã cedo e o Inn-Patient está cheio.
Gillian virou os olhos, mas acabou sorrindo.
- No fim de semana então. Sem desculpas. Você vai...
- Vou estar lá, prometo.
Ajudei a levar Barbara para a cama. Depois dei um beijo em Gillian, um até logo para Gilda e fui embora.
CAPÍTULO 14
A placa familiar, tranqüilizadora, apareceu entre as brumas rodopiantes de um nevoeiro cinza-azulado: Próxima Saída BearBluff. Fiz sinal para virar à direita, entrei no trevo e senti os dois quebra-molas.
Então completei a conversão e dobrei na Fourth of July Mine & Run Road, uma estradinha estreita de mão dupla que atravessa nove quilômetros não-sinalizados de bosques até chegar a Bear Bluff. O lugar é basicamente uma cidadezinha de beira de estrada. Tem um posto de gasolina, uma lanchonete com estacionamento, uma locadora de vídeo e eu. Quando escurece, fecha tudo. Há um dito local: Felicidade é dar uma olhada rápida em Bear Bluffno retrovisor.
Não podia esperar a hora de chegar em casa e escapar para um abençoado sono. Sentia-me distante, irreal. Mesmo assim, antes de dormir, ainda ia beber mais alguma coisa.
A estrada sem iluminação circundava as rochas que brotavam na mata e, só com relutância, o amontoado de árvores abria caminho para a pista de concreto, a pista exígua onde dançavam os faróis do meu Suburban.
Diminuí a marcha e me concentrei no último estirão que me deixaria na porta de casa. Tinha medo de esbarrar em alguma corça saindo da mata. A última coisa que eu queria era encerrar a noite tomando decisões veterinárias diante de um animal à beira da morte.
Então vi uma coisa estranha, um clarão branco riscando os bosques à minha direita.
Pisei suavemente no freio, diminuindo ainda mais a velocidade, procurando olhar com atenção para as sombras que passavam na mata.
Torci para estar errada: o clarão branco parecia uma menina correndo! Mas o que estaria fazendo uma menina ali fora, àquelas horas da noite?
Pisei de novo no freio até o carro parar. Se a garota estivesse perdida, poderia levá-la para casa. Senti, no entanto, que havia alguma coisa errada. Alguém a estaria perseguindo? Estaria perdida?
Deixei o motor ligado e saltei do Suburban. A névoa se abrira um pouco e resolvi avançar alguns passos na direção da mata. Minha pele formigava de apreensão.
Pare.
Olhe.
Escute.
- Olá - gritei em voz baixa, numtomde quem sondava o terreno. - Quem está aí? Sou Frannie O’NeilI. A Dra. O’Neill. A veterinária da cidade!
Então tornei a ver o risco branco, desta vez saltando de trás de um álamo muito alto, verde-azulado. Olhei em volta, depois prestei atenção no vulto, me concentrei nele, apertei febrilmente os olhos.
Era uma garotinha, sim!
Tinha cerca de onze ou doze anos, um cabelo louro, comprido, e usava uma roupa folgada, que parecia rasgada e manchada. Será que ela estava bem? Olhando do ponto onde me encontrava, não achei que estivesse.
A menina me ouvira, me vira. Tinha de ter visto! Corria. Parecia estar com problemas, parecia assustada. Não conseguia enxergá-la muito bem. A neblina tinha voltado, meio esfiapada.
- Pare! - gritei. - Não deve ficar aí sozinha. O que está fazendo? Por favor, pare!
Ela não parou. Na realidade acelerou até tropeçar num tronco e cair sobre um dos joelhos, gritando uma coisa que não consegui entender.
Meu coração passou a bater mais depressa. Sim, havia alguma coisa errada. Comecei a correr na direção da garota. Podia estar ferida. Talvez estivesse drogada, quem sabe? Isso tinha algum sentido. Quem sabe não era mais velha do que parecia àquela distância. Era difícil dizer por causa dos fiapos de neblina.
Só havia a luminosidade muito fraca de uma fatia de lua. Difícil ter certeza, mas achei um pouco estranhas as proporções do corpo da garota. Os braços pareciam cobertos de alguma coisa...
Parei de correr. Bruscamente! Meu coração saltou pela boca. Podia escutá-lo. :
Não era possível.
Obviamente não.
Quase gritei. Procurei me apoiar contra um grande pinheiro para tomar fôlego.
A menininha parecia ter asas brancas e prateadas.
CAPÍTULO 15
O que eu vi estava além de minha capacidade de imaginar, além de minha compreensão, de meu sistema de crenças e, talvez, de minha capacidade de comunicar a experiência a outras pessoas. Os braços da menina estavam dobrados para trás de um modo muito característico, mas quando se ergueram - sim, a plurnagem se abriu como leque!
Não era humanamente possível, mas lá estava: uma menina com asas!
Penas saltavam diante dos meus olhos, dançando coloridas, com fulgurantes tons de amarelo e vermelho. Sem dúvida eu estava um pouco alta por causa do Crown Royal, mas não bêbada. Ou será que tinha realmente me embriagado? Ou será que a morte de Frank McDonough tinha me afetado a ponto de causar alucinações?
Feche os olhos, Frannie.
Torne a abri-los agora, devagar...
Ainda estava lá! A uns vinte metros de distância, no máximo. E também me observava.
Não desmaie, Frannie. NÃO SE ATREVA, eu disse a mim mesma.
Vá devagar. Avance, mas realmente devagar. Não faça nenhum barulho ou movimento brusco que possa assustá-la.
Vi a menina recuperar desajeitadamente o equilíbrio. Uma das asas estava dobrada para trás; a outra se mexia com uma certa dificuldade. Será que estava ferida?
- Ei! - tornei a chamar, agora em voz baixa. - Tudo bem, calma.
A menininha loura se virou para mim. Achei que teria quase um metro e cinqüenta de altura. Os olhos eram grandes, com grandes órbitas, e me atiravam um olhar febril. Eu tinha parado entre as samambaias de uma pequena clareira, sob a brancura da lua. Tudo ao redor eram sombras em movimento. Eu a encarava - atordoada, sem fôlego, sem saber quem estava mais assustada, ela ou eu.
Depois de me lançar um feroz olhar de terror, a menina correu de novo, entrando ainda mais nos bosques, mergulhando no escuro que cercava a Fourth of July Road. Logo se transformava apenas num borrão.
Fui atrás dela até não conseguir enxergar mais nada entre o denso amontoado de árvores. Finalmente me encostei num tronco e procurei avaliar as experiências dos últimos minutos. Não consegui. Minha cabeça não parava de rodar.
Não sei como pude voltar ao Suburban, mas de repente me vi entrando no carro. Fiquei sentada lá dentro, no escuro.
- Não, eu não vi uma menina com asas - murmurei um pouco alto.
Não podia ter visto.
Não podia, mas tinha certeza de que tinha visto.
Quando comecei a dirigir, tomei o rumo da delegacia de polícia de Clayton, um lugarejo vizinho com cerca de três mil habitantes. Na realidade, a delegacia era apenas um posto policial subordinado a um escritório central em Nederland. Parei o Suburban na rua Miller, a menos de uma quadra do prédio.
Queria desesperadamente continuar descendo a tranqüila rua da cidadezinha, mas não pude, não consegui.
Tinha bebido... e tinha dirigido alta. Já passava das duas da manhã e a hora das histórias de bruxa em Clayton devia ser por volta da meia-noite.
Além disso, eu não estava mais vendo aquela garota. E já nem estava completamente segura do que havia visto. Era simplesmente impossível contar a história aos policiais do lugar. Pelo menos naquela noite. Talvez no dia seguinte.
Fui para casa. Queria dormir para pensar melhor... ou, mais provavelmente, queria dormir para não pensar.
CAPÍTLO 16
Kit estava suando, exatamente como no vôo de Boston da American Airlines. Maldição, ele ainda não conseguia voar tranqüilo! Tinha, porém, de se acostumar.
O olhar do piloto do helicóptero Bell atravessou a cabine em sua direção. O homem não se preocupou em ocultar um sorriso de superioridade.
- Algum problema, está se sentindo mal, Sr. Harrison? Nunca tinha voado numa batedeira, hein? Talvez devêssemos voltar...
Kit quase perdeu o sangue-frio com o cara. Porque aquele piloto era um verdadeiro corno. Na realidade, eleja voara em centenas de helicópteros - avançando às cegas por tempestades de neve, cortando temporais, cumprindo missões perigosas. Nunca tinha havido qualquer problema antes de agosto de 94.
Fora um bom agente, um dos melhores. Competente, dedicado, esperto, com a tempera certa. Tudo registrado em sua ficha. Que droga, então, tinha acontecido com ele?
- O verde é minha cor normal, tudo bem. - Tentava um certo humor autogozador. - Estou ótimo!
- Como quiser, parceiro. O saco de moedas é seu.
Sim, o saco de moedas era dele e não estava cheio o bastante para ser desperdiçado em frustradas incursões de reconhecimento. Sentira realmente a necessidade de uma inspeção aérea. Precisava de uma visão de conjunto, precisava entender a configuração do terreno, mesmo que o grande quadro daquela situação fosse uma coisa abstrata, relacionada a temas tão delicados e importantes quanto a sobrevivência do gênero humano. Acreditava nisso ou não estaria ali por conta própria.
Kit tentou olhar novamente para o topo das árvores. Acres de exuberantes pinheiros entremeados com choupos. De vez em quando, os ”brancos” - pilhas de árvores derrubadas pelas ventanias de inverno. E naturalmente os picos nevados da Vertente Continental.
Existia um laboratório perto da Vertente. Era a única coisa que ele sabia. Não sabia onde ficava.
O helicóptero sobrevoou a Grande Represa. Harrison, então, pôde ver a área de esqui de Eldora e a cidadezinha de Nederland. Depois outra pitoresca represa, provavelmente Barker, se é que estava lendo corretamente os mapas. Localizou, à distância, a Flagstaff Mountain. Mais perto havia uma estrada, Magnolia Road, e o Sunshine Canyon.
Sabia o que investigava... O fim da civilização que nós conhecemos. O admirável mundo novo. Era isso. Tudo em algum lugar lá fora.
Tornou a pensar no Dr. Frank McDonough. McDonough estava na sua lista. Assim como David Mekin e esposa. Devia ter se encontrado com o Dr. McDonough, um pediatra com formação em embriologia.
Infelizmente, chegara com um dia de atraso. O culpado fora seu chefe, Peter Stricker. Não. O culpado fora ele mesmo.
O Dr. McDonough era a vítima número quatro. Pelo que sabia, quatro médicos já tinham sido mortos. Quatro médicos com passados duvidosos, presentes suspeitos e agora sem futuro algum.
Viu alguns pára-pentes a distância. Pareciam tão livres. Pareciam estar realmente voando.
- Tudo bem, vamos descer - disse por fim ao piloto do helicóptero fretado. Já tivera sua vista aérea; já estudara a configuração do terreno. Era, sem dúvida, o primeiro passo para a investigação.
O piloto arreganhou os dentes e confirmou sacudindo o polegar para baixo. Uma porra aquele cara!
- Força no estômago... companheiro.
No seu, bosta aérea, Kit pensou. Não disse nada, não queria criar um caso. Especialmente não lá em cima.
O helicóptero se inclinou, iniciando um mergulho íngreme. Kit sabia que era uma impossibilidade física, mas sua barriga parecia ter descido muito antes das pás e do conteúdo do cortador de grama.
Irritado, tenso, deixou o pequeno aeroporto de High Pines por volta das dez e meia da manhã. Precisava de ajuda, mas não poderia buscá-la no escritório. Estava agindo por conta Própria e tinha de encarar isso de frente.
CAPÍTULO 17
Tenha fé e persiga o desconhecido fim, dissera Oliver Wendell Holmes, e Kit tinha acreditado. Ainda acreditava; era por isso que estava lá, nas montanhas Rochosas. Perseguindo o desconhecido fim e tentando com desespero não perder a fé.
Ou porque precisava de respostas ou apenas para ouvir uma voz familiar, ligou para a sala de Peter Stricker, em Washington. Era uma situação delicada, mas que tentaria manter sob controle. Quem sabe não conseguiria um pequeno auxilio do escritório?
Peter Stricker era o responsável pela área nordeste do FBI e muito seu amigo. Na realidade, até dois anos e meio atrás, Peter trabalhara como seu subordinado.
Mas o mundo ’tinha virado de cabeça para baixo e Kit é que acabou subordinado a Peter. E, na semana anterior, Peter ameaçara colocá-lo no olho da rua se sua lista de prioridades pessoais continuasse não coincidindo com as prioridades do Bureau. Peter, aliás, fizera a advertência por escrito.
A ameaça oficial fora precedida de alguns sinais. Sua promoção, por exemplo, fora preterida após o acidente em 1994
- embora só Deus soubesse se tinha sido essa a verdadeira razão. Mais provavelmente a carreira no FBI fora comprometida por sua teimosia, sua insubordinação, além de uma predileção obsessiva pelos casos que mexiam e atiçavam a merda do espírito vivo que ainda havia nele. Como o caso que o levara até o Colorado. Kit Harrison sempre podia encontrar novos indícios, novos problemas e novas possíveis soluções onde outros já não enxergavam nada.
Sempre fora um agente ”diferente”. E disseram que justamente por ser diferente é que o haviam recrutado na escola de Direito da Universidade de Nova York! Durante as entrevistas, fora informado de que o Bureau precisava dele porque eram muito bitolados, muito conservadores e, portanto, previsíveis demais. Kit deveria encarnar um novo tipo de agente, mais evoluído. E certamente fora esse o papel que desempenhara! Pelo menos durante algum tempo.
Souberam vender a idéia de que precisavam de alguém capaz de romper as amarras, capaz de sair da proteção das tocas. Contudo, uma vez dentro da organização, Kit descobriu que o FBI realmente não queria mudar muita coisa. Na realidade, o Bureau tentara mudá-lo, quando ele, Kit Harrison, continuou o mesmo, todos ficaram bastante ressentidos.
- Não fomos nós que passamos a fazer parte de você, Tom - disse um de seus superiores. - Você é que passou a fazer parte de nós. Por que não esquece essa mania de primadona e segue o roteiro como todo mundo?
Porque ele era diferente. E devia ser diferente. Era esse o trato. E trato era trato.
Só que o Bureau não estava cumprindo sua parte.
Não gostavam das jaquetas de veludo listrado, dos bonés de beisebol meio de lado, das calças jeans, dos mocassins que ele usava todo dia (não só às sextas-feiras). Também se ressentiam das coisas ”sérias” que Harrison gostava de ler, como os romances Underworld, Mason & Dixon ou qualquer história de Toni Morrison. E também não gostavam que de vez em quando chegasse e saísse do escritório de Boston numa bicicleta Cannondale de corridas.
Ficavam, ainda, um tanto irritados com o cabelo comprido, o hábito de fazer a barba dia sim dia não e o jeito de balançar um pouco o corpo, o que não acontecia por provocação, mas pelo fato de ele andar o dia inteiro com música tocando na cabeça.
O que mais enfurecia o Bureau, no entanto, era a frouxa observância da disciplina. Desde o início, Kit fora conhecido como alguém de hábitos e formação incomuns.
Pior é que provavelmente era verdade. Tinha sido um aluno bastante barulhento e avesso às regras na escola secundária; niais tarde, um valente peso médio nos ringues de boxe da Boston Golden Gloves; por fim, um estudante nada convencional na faculdade de Direito da Universidade de Nova York. Embora fosse apenas um dos cinco filhos de um motorista de ônibus, conseguira chegar a uma boa escola secundária e a uma faculdade de Direito. Por que, então, haveria de se colocar um freio depois de formado?
Permanecer fora dos limites era mais fácil nas escolas que no FBI. O Bureau não absorveria ninguém fora dos trilhos. Nem mesmo alguém como ele, que resolvera pelo menos dois homicídios ”insolúveis” nos últimos cinco anos.
Arre, pare de delirar!, ele disse a si mesmo. O fato é que vinha se encrencando havia um ano e meio, desde que se envolvera com o caso das ”experiências com seres humanos”. Contra as ordens recebidas. Não fora, aliás, a primeira nem a última vez que desobedecera a ordens vindas do alto da cadeia de comando. Ainda estava desobedecendo a ordens, e de um modo brutal.
- Tom Brennan para o agente Stricker - recitou mecanicamente quando a assistente de Stricker atendeu. Era uma moça extremamente simpática, eficiente, e ele pôde passar de imediato ao informal: - Como vai, Cindy? Será que Peter pode atender?
- Que bom falar com você, Tom! Um momento, por favor. - Cindy, como sempre, francamente gentil... - Só tenho de ver se ele está na sala. Já dou o retorno.
Surpreendentemente, Stricker pegou de imediato o telefone. Falava em sussurros - sempre. Obrigava o sujeito a prestar atenção. Era a marca registrada de Stricker.
- Tom, o Terrível! Como vai o paraíso? Como está Nantucket? Devia estar velejando, fazendo surfe! Esticado na praia.Tire o telefone da cabeça!
- Estou ligando da praia - Kit deu uma boa risada, daquelas que acontecem entre velhos amigos. - Tenho me cuidado muito bem, acredite! vou acabar sendo condecorado como cidadão-modelo das praias. É só um probleminha...
- Isso é que é ruim, Tom! Sempre um probleminha extra, sempre aquele puxão no braço... Devia estar se acostumando a não dar importância aos probleminhas. - E Stricker perguntou com a mesma voz baixa: - Foi essa a nossa combinação, não foi?
- Foi, eu sei. E estou gostando de passar essas semanas aqui. Só que... andei navegando na Rede hoje de manhã e encontrei, por acaso, um tal de Dr. Frank McDonough, um homem que se tinha afogado ontem no Colorado. A coisa realmente chamou minha atenção. Soube da história, Peter?
Stricker não pôde mascarar nem mais um segundo a irritação; o murmúrio subiu um ponto.
- Esqueça, Tom, por favor, este caso fantástico. Fique algum tempo fora da Internet. Por Deus, rapaz. Está acabando de arruinar a tremenda carreira que ainda tinha pela frente!
- Nem tanto, Peter. E você sabe que havia um Dr. McDonough no grupo original de pesquisa da Berkeley. Tenho certeza disso! Só quero que me ajude a colocar um ponto final no caso. Talvez o outro nome dele fosse Michael Fescoe? Ou Manny Patino? Só para minha tranqüilidade mental, Peter... Dê uma checada para ver se não é o mesmo Frank McDonough.
Podia apostar que Stricker não estava de todo contente com o rumo do telefonema.
- Está bem, Tom. Posso fazer isso por você. vou dar uma checada no morto. Dr. Frank McDonough, não é? Mas procure esquecer os demônios pessoais e pegar um pouco de sol. Quem sabe não encontra uma boa garota de Nantucket para trepar com você. Faça amor, não faça a guerra.
- Se for o mesmo McDonough, ele é o número quatro, Peter! Doutores Kim, Heekin, Mekin, McDonough...
- Conheço todas as particularidades do caso. Está pensando, eu sei, que existe um elo perdido, embora as pessoas aqui, em Quantico, não vejam a coisa assim. Estou percebendo... Por que não se concentra no sol e no mar, Tom?
- Obrigado pela ajuda, Peter. Você é grande. Quando vai me passar a checagem do McDonough? Amanhã está bem?
Kit Harrison ouviu o suspiro na linha. Se fosse possível, Stricker estaria falando com a voz ainda mais baixa.
- Qual é o seu número na ilha? Dou o retorno assim que puder.
- Não, não há problema - disse Kit -, eu mesmo telefono. Ligo amanhã. Tudo bem, agora o sol e o mar estão me chamando. Acho até que já encontrei a garota. Pelo menos o visual é incrível! Obrigado de novo pela força, Peter.
Quase não dava para ouvir a resposta de Stricker:
-Não há de quê, mas procure relaxar. Você prometeu. Esqueça este caso, não tem mais que se preocupar com ele. Nada de sair novamente dos trilhos, porra! Foi o nosso trato. Tudo bem, vou lhe passar a informação sobre o Dr. McDonough. Faço isso pela nossa amizade.
Kit desligou o telefone público e deixou escapar um suspiro profundo. Rapaz, ele detestava ficar mentindo para Peter, mas é o que vinha fazendo por uma questão de sobrevivência! De repente, aliás, toda a sua vida se transformara numa mentira.
CAPÍTULO 18
Pare com isso, Matthew! Não mexa com a minha cabeça agora. Não estou no clima.
Max tinha acabado de pensar em outra tirada de Matthew: Os pilotos kamikazes, por que eles usavam capacetes? Não tinha graça alguma. Podia ouvir Matthew rindo como um bobalhão das próprias piadas. Uma espécie de riso forçado. Era o jeito dele. Irritantes aquelas palhaçadas...
O fato é que ainda não achara seu irmão menor nem sabia mais onde procurar. Talvez naquela incrível casa em estilo moderno, bem ali na sua frente, na mata. Bem, talvez pudesse pelo menos conseguir alguma coisa para comer. E um pouco d’água...
C-o-m-i-d-a era o que tinha na cabeça. Era praticamente só o que tinha na cabeça: c-o-m-i-d-a!
Ela se lembrou de um dos seus anúncios preferidos: Ah, esse espaguete! Lembrava-se de praticamente tudo que via na TV. Cada show, cada comercial (por mais idiota que fosse), cada personagem de seriado. A TV fora sua babá, sua mãe e seu pai, sua centena de amigos íntimos na Escola.
Ao parar de andar e parando de pensar nessas coisas inúteis, Max observou com atenção a casa diante dela.
Agora calma. Sempre com muita calma.
A casa parecia escura, silenciosa, o que a deixou desconfiada e aumentou o aperto no estômago. Uma roseira crescia em volta. Por favor, que não me joguem nesses espinhos!
Foi avançando devagar ao longo dos primeiros galhos da roseira e subindo o barranco íngreme que levava à moderna construção com grossos vidros laminados e madeira crua.
Ninguém em casa, ninguém em casa. Por favor que não haja ninguém em casa. Por favor, por favor.
Que tenha C-O-M-I-D-A!
Com o coração disparando, subiu na ponta dos pés um lance de degraus de madeira até a varanda de trás e espreitou através das portas corrediças. Eram de vidro e precisavam de uma boa lavada com aquele Spic & Span do anúncio. Costumava reparar nesse tipo de coisa. A genialidade estava nos detalhes, certo?
Proibido encontrá-la, proibido!, pensava. Que ninguém a visse ali! Em hipótese alguma. A vida de quem a encontrasse também ficaria por um fio.
Pôs os dedos no encaixe da moldura da porta e puxou. Junto ao polegar, o leque de suas asas se transformava em mão e os dedos trabalhavam muito bem. Fora feita assim.
A porta cedeu, se abriu.
Tinha entrado!
Na ratoeira!, ela pensou, mas já era tarde demais.
CAPÍTULO 19
Tudo bem, não era uma ratoeira. Não havia ninguém esperando no interior da casa. Sem dúvida, os donos eram bastante tolos ou muito descuidados, pois tinham deixado a porta de trás sem tranca, totalmente desprotegida. O que importa é que não havia ninguém para capturá-la ou, quem sabe, matá-la.
A casa parecia uma bagunça, um caos. Certamente era uma família que morava ali. Teve certeza pela quantidade de coisas que havia para a garotada, tipo bicicletas, patins, videogames.
- Matthew... - sussurrou, esperando, contra todas as expectativas, que ele tivesse encontrado a mesma casa. Quem sabe não estaria escondido lá dentro. - Onde você está? Sou eu, a Max!
Avançou furtivamente até a cozinha. Havia uma coisa muito barulhenta. Uma geladeira - ô, Deus, sim! Ela escancarou a porta e se expôs ao ar frio, à luz congelada da lampadazinha interna. Os olhos, famintos, reviravam as prateleiras.
Agarrou uma lata de soda: Sprite. Respeite sua sede!
Tudo bem, acho que vou respeitar.
Teve um breve momento de culpa, pois sabia que roubar comida e soda na embalagem pop era errado, simplesmente não era uma coisa legal de se fazer.
Merda. Levei um tiro. Estão me perseguindo. Preciso comer e ingerir alguns líquidos. Fim de papo.
Max bebeu, depois começou a devorar a comida. Voar realmente deixava a pessoa com fome, consumia uma soma absurda de energia.
Puxou o plástico que protegia uma travessa de vidro. Ah, esse espaguete! Empurrou o espaguete frio pela goela adentro. Não fazia mal que estivesse gelado, desde que fosse comida. Não uma boa comida, uma grande comida, só uma comida. Comida!
E leite, não vai? Uau! Também havia leite. Cheirou... Estava bom. Passável... Tomou diretamente da caixa.
Encontrou uma faca, que usou para cortar uma grande e suculenta fatia de torta de maçã.
O melhor pedaço de torta que já comera, não havia o que discutir. Infelizmente não havia o rebote, a retorta, isto é, outro sabor para comparar. Sorriu. Gostava do jogo de palavras, gostava de qualquer tipo de jogo. Mesmo quando eram maus. OK, ela parecia inteligente - realmente inteligente. Fora feita assim.
Olhou as novidades do congelador.
Ôôôhh! Ôôôhhh! Dá uma espiada no congelador! Tijolos inteiros de sorvete - uma embalagem família com três! O que você não faria por cada tijolo da Klondike?
Comeu dois tijolos da Klondike, um para cada mão. Precisava muito de açúcar.
E de repente dedinhos de apreensão começaram a subir na sua nuca - como fiapos de penas tomando conta do cangote. Atenta, Max curvou os ombros.
Onde estariam seus perseguidores? Será que o tio Thomas estava ali perto, pronto a cair sobre ela? Talvez para levá-la de volta. Talvez para fazê-la dormir.
Morria de vontade, é claro, de dar uma olhada na casa. A curiosidade matou o gato, pensou. Não a menina!
Rastejou em silêncio pela sala. Não havia como resistir. Uma casa de verdade e todo mundo fora. Que prato!
- Gatinhos, gatinhes... - ela chamou. Apenas uma lembrança da Escola, de quando era muito, muito pequena e tinha pensamentos de menininha com gatinhes imaginários. A mania vinha provavelmente da sra Beattie, que fora sua babá, depois sua professora. Tudo de bom na vida dela acontecera antes de a sra Beattie morrer.
No final do corredor, apareceu um banheiro. Atrás de uma porta de lambris. Grande! E tudo preto lá dentro. Vaso sanitário preto, banheira preta, pia preta, até sabonete preto. Max contemplou ansiosamente o boxe, com a ducha preta e brilhante atrás de uma porta transparente. Sentia-se pegajosa, imunda dos pés à cabeça, nojenta! A vontade de tomar banho era ainda maior que a vontade de dormir. Queria sentir água quente jorrando pelo corpo e pela asa ferida, bem acima da segunda junta. Sem dúvida, o ferimento não era grave. Provavelmente, apenas uma contusão.
Max ajeitou o longo cabelo louro atrás das orelhas e ficou imóvel para ver se havia algum barulho.
Tudo em silêncio. Tinha certeza. E seus dedos encontraram o interruptor de luz. Alisaram o interruptor. Apertaram!
A luz inundou o banheiro preto. Foi terrível.
Pensou em correr... mas parecia uma estupidez. Estava sozinha e por isso entrou batida no banheiro e fechou a porta. Com o trinco.
Observou-se no espelho.
Um metro e trinta com as mais belas asas jamais vistas em qualquer criatura viva. Jamais, jamais, jamais.
Pôs a mão no cabelo, inclinando o rosto ligeiramente para a frente.
- Bonita - ela murmurou. - Sou realmente bonita, não é? Uma boa garota e uma graça. Por que então estão querendo me matar?
CAPÍTULO 20
Gillian telefonou de manhã cedo.
- Acho terrível que esteja sozinha nessas montanhas. Você está bem, Frannie?
- Estou ótima. Que horas são? De onde está ligando?
- Do hospital, de onde poderia ser? São oito horas. Tem certeza de que dormiu bem?
- Como um anjo, Gillian.
- Mentira.
Eu rija quase totalmente desperta. Estava bonito do lado de fora da janela.
- É, a gente se conhece.
- O que me parece ótimo - disse Gillian. - Para nós duas.
Deixei-a voltar ao trabalho e tive uma sensação... um tanto desagradável. Um medo completamente irracional, mas intenso, de que alguma coisa pudesse acontecer a Gillian, de que todos os meus amigos estivessem sob algum tipo de risco.
Não fazia sentido, é claro. Mas ainda assim eu pressentia. Gastei uma parte da manhã voltando de carro ao lugar onde havia parado na noite anterior. Onde teria, ou não teria, visto... visto o quê?
Sentia-me hipersensível, talvez um pouco de ressaca, quem sabe meio mística. Era o departamento da ressaca, no entanto, que abria espaço para a maioria dos meus pensamentos... e dúvidas. Teria ficado bêbada na noite passada?
Será que a morte de Frank McDonough afetara minha mente já tão traumatizada?
Infelizmente, quanto mais tentava me convencer de que não vira nada, mais me convencia de que vira realmente tudo.
Dois fluxos de idéias correram então pela minha mente.
Insuficiências congênitas, isto é, problemas de nascença, e...
O admirável mundo novo da biotecnologia.
Tinha algum conhecimento de ambos os campos, por isso deixei a mente divagar enquanto dirigia o Suburban azul e empoeirado à procura de minha amiga alada. Pensei comigo: vamos fazer uma pequena excursão mental pela trilha das anormalidades genéticas, malformações, desordens, síndromes aberrantes. Na realidade, enquanto pensava no assunto, lembrei-me de ter passado uma tarde conversando com David sobre o tema. Tínhamos até mesmo entrado em contato com o prestigiado Mutter Museum, que faz parte do Instituto de Medicina da Filadélfia.
O museu gostava de exibir exemplos de deformidades encontradas em anos recentes. O acervo ia de meninos no México com pêlos de macaco por todo o corpo a crianças com duplicação de partes do corpo, passando por anormalidades pituitárias, como no caso de anões e gigantes, e doenças de pele que deixavam algumas pessoas mais parecidas com lagartos que com seres humanos.
Não me lembro exatamente o que me levou a discutir com David sobre o assunto, mas sei que passamos dois finais de semana insistindo nisso. Ele também me mandou ler um dos muitos livros que tratavam do assunto em sua biblioteca particular: Anomalias e curiosidades da medicina. Achei que guardara esse Anomalias, mas não consegui localizá-lo naquela manhã. Talvez estivesse na cabana, fazendo companhia a Kit Harrison, o moderno homem de Neanderthal.
Ao me aproximar de Clayton, depois de ter atravessado a periferia de Bear Bluff, tentei expurgar esses pensamentos mais complicados. Afinal, ainda nem completara o trabalho preliminar de eliminação lógica, em que chegara a considerar a possibilidade de visitantes extraterrestres! Mas já rejeitara a hipótese de que a menina fosse um novo ET, embora talvez não devesse ter sido tão apressada...
Tenho uma memória muito boa. Fui primeira aluna na escola secundária e até hoje me surpreendo com a quantidade de informação que meus arquivos mentais são capazes de armazenar. Já tive oportunidade de examinar um hermafrodita, uma criança que tinha, simultaneamente, órgãos reprodutores masculinos e femininos. Também já havia deparado com animais e seres humanos sem determinadas partes do corpo e outros com partes duplicadas. Já vira duas orelhas num dos lados do crânio de uma menina. Já vira um menino com seis dedos em cada pé e uma moça com quatro seios. Também tivera oportunidade de constatar, na escola de veterinária, as alterações que as toxinas e os pesticidas podem provocar nos descendentes. Não foi um espetáculo bonito, nem uma coisa que se possa esquecer.
Já vira fotografias de ”dedos que se formaram” (isto é, de chifres que se formaram) numa cabeça humana. E de um cavalo, de início aparentemente perfeito, que começara a desenvolver, como parasita, um segundo corpo eqüino. E também de uma segunda cabeça crescendo na cabeça de um bezerro. Em algum lugar atrás de meu cérebro, brotava um rumor da antiga Babilônia: ”Uma criança nascida com face de leão indicará que o rei não terá rival.” Sim, vira uma vez uma criança com orelhas de leão.
Mas nunca tinha visto uma menina com um par de asas brancas e prateadas! Uma menina linda, com uma aparência que de outro modo seria normal! Talvez ela fosse realmente uma extraterrestre.
”Naturalmente, havia também a biotecnologia, a engenharia genética - sério e desafiador campo de investigação. Fora a área escolhida por David, sublinhei para mim mesma.
Os arquivos de minha memória no âmbito da especialidade de David eram um pouco menos abrangentes do que eu esperava. Costumávamos compartilhar a maioria das coisas, mas ele não gostava de falar muito sobre seu trabalho.
O que agora, aliás, me parecia estranho. David raramente trazia trabalho para casa. Em compensação, eu estava sempre pronta a conversar sobre o Inn-Patient ou sobre o bonito potro que, com minha ajuda, nascera às quatro da manhã na fazenda de algum criador de cavalos.
Afinal, o que sabia eu de biotecnologia? Num sentido muito amplo, a biotec envolve tirar proveito dos processos biológicos naturais de micróbios, animais e células vegetais. Pesquisas e experiências de cruzamento de espécies entrariam também pelo campo da biologia molecular. David era biólogo molecular, e um dos bons, embora nunca tivesse ganho muito dinheiro como pesquisador.
Lembrei-me de certas conversas que podiam ter algum vínculo com uma menina (confesse, Frannie) com belas asas brancas e prateadas. Quando a versão cinematográfica de O parque dos dinossauros chegou a Boulder, David me disse que a idéia de um trabalho genético envolvendo cruzamento de espécies estava bem mais próxima do nosso cotidiano do que podíamos imaginar vendo aquele filme. Disse que experiências do gênero vinham sendo feitas em diversos laboratórios independentes. Experiências às vezes ilegais.
A biotecnologia era definitivamente a nova fronteira da ciência. Podia levar, e sem dúvida levará, a evolução mais longe e com mais rapidez que em qualquer outra época da história. A questão, no entanto, é saber se as pessoas estão prontas, em termos emocionais e morais, para o que seremos capazes de criar num futuro muito próximo. Eu me lembrava de David ter dito que um trabalho seriíssimo estava sendo realizado com a mosca-das-frutas, o que me transmitiu uma sensação profundamente tranqüilizadora.
Um dos comentários de David, em especial, adquiria um novo significado à luz do que eu tinha visto na mata. Ele falara
que, na área da manipulação genética, ”as coisas sempre avançavam de modo tortuoso”.
- Isto sempre acontece, Frannie. E precisamos dançar conforme a música.
As coisas sempre avançavam de modo tortuoso.
CAPÍTULO 21
Fora um dia agitado e produtivo para Kit. Ele se sentira de novo como um agente do FBI em ação. E ficara muito bem, com um ânimo excelente. Estava trabalhando sem nenhum apoio, mas pelo menos se soltara da rédea comprida e opressora do Bureau.
Chegara a entrevistar a viúva de Frank McDonough, Barbara, que não parecia saber coisa alguma além do óbvio. Quanto mais conversavam, no entanto, mais ele se convencia de que o Dr. McDonough fora realmente assassinado. Para começar, o médico tinha sido um excelente nadador, um verdadeiro astro do esporte universitário. Além disso, Frank supostamente quebrara o pescoço ao mergulhar no raso, mas Barbara garantiu que o marido nunca mergulhava na piscina.
Conversara com três colegas de McDonough no Hospital Comunitário de Boulder. Também pedira aquele favor a seu bom amigo no FBI. O eventual laço entre o nome McDonough e cada médico que trabalhava na área de Boulder estava sendo verificado. Queria encontrar conexões sólidas, o que era mais ou menos tudo o que podia realisticamente fazer em seu primeiro dia na cidade.
Kit tinha acabado de chegar de Boulder, quando viu Frannie O’Neill andando na mata, atrás do chalé que ele estava ocupando. Eram quase cinco da tarde.
Frannie parecia nervosa, desorientada. Naturalmente, Kit não a conhecia muito bem, mas foi a impressão que teve. Para onde ela estaria indo?
Andava depressa, como alguém com um objetivo definido. Mas que objetivo? Achou que valia a pena investigar, mesmo porque não tinha nada melhor para fazer nas próximas duas
horas.
Frannie usava uma bermuda caqui, uma camisa xadrez de flanela vermelha, e Kit Harrison não podia esquecer da presença dela na noite anterior. Sim, a imagem daquele primeiro contato ainda ardia em sua mente. Uma imagem tão bela que talvez não estivesse disposto a deixá-la escapar.
Seguiu a Dra. Frannie pelo bosque, sempre a uma distância segura. Sem dúvida, ela estava procurando alguma coisa, mas em momento algum se virou para trás. Na realidade, andava tão depressa que Harrison acabou perdendo-a de vista.
Inferno!
Pegou seu binóculo Rangemaster e focalizou-o para todo lado à procura de Frannie O’Neill. Imagens pulavam, proporcionando-lhe os closes mais pormenorizados da casca dos pinheiros, do formato das folhas, de uma fatia de céu azul...
Mas acabou encontrando de novo a camisa xadrez vermelha. Com a mochila muito azul nas costas e um ar de concentração, Frannie continuava atravessando a passo rápido aquele trecho da mata. Parecia realmente preocupada e desatenta ao deslocamento furtivo de Kit por entre as árvores. Parecia, não é?
Que diabo estava fazendo ali? Será que aquilo tinha alguma relação com o trabalho do marido? Com a morte dele, quem sabe... Ou com a morte de McDonough?
Então ela virou bruscamente à direita. Não se meta aí, Frannie. Que merda! Que merda! Novamente ela desapareceu no meio dos pinheiros, dos chaparros, dos alamos. Quinze minutos depois de segui-la por encostas e várzeas, Kit passara a se interessar pelos pontos mais altos, de onde seria mais fácil não perdê-la de vista entre o denso arvoredo. Se avançasse sempre para cima, continuaria sempre a vê-la em algum ponto mais baixo.
Segundos mais tarde, Frannie O’Neill tornou a entrar em seu campo de visão e o sol do final de tarde se derramou em seu rosto. Era bonita, sem dúvida; beleza autêntica do MeioOeste - ele gostava do tipo. Os olhos verdes e azuis brilhavam e continuavam a procurar alguma coisa.
A trilha estreita que ela seguia se abriu um pouco; logo depois, desembocou numa estrada de terra, bem mais larga. Mas onde aquilo ia dar? O que havia de importante naquela área da mata? Algum prédio? Quem sabe algum laboratório escondido nos bosques? Um laboratório onde Frannie O’Neill talvez trabalhasse...
Ela avançava, acelerando ainda mais, parecendo se mover com muita facilidade entre as árvores. Já conhecia mesmo o caminho, não é?
Kit achou que estava ouvindo barulho de carros. Tinha quase certeza.
- Como podia ser? - disse à meia voz. - Carros ali?
A estrada de terra saiu nos fundos de um estacionamento asfaltado, um retângulo escuro atrás de um minimercado. Frannie parecia ter seguido um atalho pela mata até Clayton. Pois sem dúvida tinham entrado nas proximidades de Clayton! O que ela estava fazendo?
Já meio perplexo, Kit viu-a parar ao lado de uma pedra chata e baixa na orla da mata. Frannie tirou a mochila azul das costas, abriu-a e começou a pôr no chão pequenas latas e pratos de papel.
- Que diabo é isso? - Não percebia absolutamente nada. A coisa não fazia sentido.
Ajustou melhor o foco do binóculo para examinar mais de perto o que saíra da mochila. Podia escutar a voz de Frannie e, mesmo naquelas circunstâncias misteriosas, gostou do som melodioso.
- Pessoal! - ela chamava.
Pessoal? Que pessoal? Pessoas de onde? Não era mais horadepiquenique!
- Vamos lá, garotos... Garotos? Crianças?
Viu-a esvaziar latas de comida nos pratos de papel.
De repente, um incrível número de gatos começou a se materializar. Saíam debaixo dos carros, detrás das caixas de papelão nos fundos do mercado, do meio do mato alto. Com as caudas em pé, vinham em disparada, respondendo aos chamados de Frannie.
- Gatinhos - dizia ela e Kit Harrison percebeu quem era o pessoal. - Hora do lanche, gatinhes.
Ele continuou com o binóculo firme nos olhos, fascinado pela grande horda de gatos do mato. Havia os pretos como carvão, os alaranjados, os malhados, os listrados, o de três patas e o que tinha um filhote. Todos se reuniram em volta do rango trazido por Frannie. Parecia generosa. Uma pessoa bastante doce e muito simpática. E agia exatamente do modo como parecia. Como alguém realmente decente.
- Vamos lá, gatona - ele a ouviu chamando a mãegato. Estava sorrindo, um sorriso realmente amigo: grande, sincero. Chamava os outros: - Venha cá, bichão! Grande... Garoto! Ei, Esquizóide! Mamãe Susie, como vai a senhora?
Tudo bem, aquela Frannie O’Neill era alguém para se ficar de olho. Era a chave de tudo, sem dúvida.
CAPÍTULO 22
Kit finalmente começou a rir e devia ser a primeira vez desde que chegara ao Colorado. Por sorte, sempre fora capaz de rir de si mesmo. Sentou-se por um momento para ver as coçadinhas no pêlo, os tapinhas, as cabecinhas. Para ver ”o pessoal”.
Negativo! Para ver Frannie O’Neill. Admirava o seu jeito com animais, escutava a música de sua voz, gravava o seu corpo, que ele achava perfeito. Deus, isso é que era paixão de Pré-adolescente! Perfeitamente inofensiva, é claro. Só que aquela não era a hora nem o lugar de pensar nisso.
Virou-se disciplinadamente e correu de volta pela mata. Um momento ideal para dar uma olhada, uma espiada na casa dela. Lógico, estava pensando e agindo outra vez como um
agente de campo. E violar sua confiança seria também um bom meio de isolar o perigo de uma paixão infantil.
Frannie não trancava as portas, é óbvio, e Kit logo esquadrinhava o quarto onde ela dormia no Inn-Patient. Era bom na coisa. Frannie jamais saberia que alguém tinha entrado lá.
O problema é que se sentiu culpado por invadir o prédio. Talvez ela nada soubesse dos envolvimentos do marido. Mas podia saber. E podia estar envolvida também. Kit conhecia muito pouca coisa de Frannie O’Neill para escolher uma hipótese. Frannie sem dúvida poderia surpreendê-lo e ser extremamente perigosa.
Faria algumas anotações. Ainda se preocupava em seguir as normas para a elaboração de um relatório, embora talvez não fosse mais necessário fazer relatórios.
Bom, apenas roupas e objetos de uso pessoal. Jeans, botas de vaqueiro, camisetas com bolso... Nenhum indício de que gastasse muito com o visual.
Todavia, um gosto apurado. Coisas simples, mas bonitas, de estilo clássico - mais ou menos o que esperava encontrar.
Uma pequena coleção de casinholas de passarinhos. Por que essas casinholas...? Fotos de casamento, uma do casal se beijando embaixo de um guarda-chuva azul. O guarda-chuva era um Mac Performa 575. Um modelo antigo, dos baratos.
Aqui e ali, algum toque extravagante: um vestido de seda preta para a noite, um anel com diamante e safira, um pequeno frasco de Eau d’Hermès.
Pensou em como gostaria de vê-la no vestido de seda preta, de cheirar seu perfume.
”Nenhum papel, de teor científico ou de qualquer teor. Nada do trabalho de David - o que era meio estranho. Onde estariam os papéis de David? Certamente ela não iria jogá-los fora. Ou será que iria?
Livros - alguns abertos por todo o quarto: Se desejos fossem cavalos: a educação de um veterinário; Epidemiologia veterinária; Para o éter; Em busca dos primordios da humanidade; Meia-noite no jardim do bem e do mal. Nada que comprometesse, muito pelo contrário.
Uma comovente recordação. Um modelo de barco que o marido tinha construído, assinado e datado. ”Navio de David.
22 de março de 1969.”
Sobre a geladeira uma moldura com um desenho de criança. ”Para a Dra. Frannie. Nós te adoramos. Os amigos Emily e Buster.” Era uma menina com um cachorro sorridente.
Finalmente ele enfiou o bloco de notas no bolso de trás, deu uma última olhada em volta e saiu antes que Frannie O’Neill voltasse. Em certo sentido, o resultado da busca fora muito negativo. Harrison ficou acreditando que ela não estava envolvida.
Ainda assim, sentia-se chegando mais perto de alguma coisa. O fundo de sua alma sabia disso, soubera desde o início.
Por que ninguém tinha lhe dado crédito?
CAPÍTULO 23
Passava um pouco das dez; os bosques e as montanhas pareciam fechados para a noite, mas eu continuava alerta. Pensava de novo na menina com asas.
Pela enésima vez, considerei seriamente a possibilidade de telefonar para o xerife de Clayton ou para a Polícia Estadual do Colorado, mas como seria possível? O que eu ia dizer? ”Tudo bem? Estou há algum tempo em Bear Bluff, moro sozinha e gozo de perfeita saúde física e mental. Para encurtar a história: tenho certeza absoluta de que vi uma menininha com asas. Era de noite, eu tinha bebido um pouco e estava meio alucinada com a morte de um amigo, mas sei o que vi. Venham até aqui se quiserem confirmar. Aproveitem e tragam logo uma daquelas redes...para mim!”
Fiquei acordada, trabalhando até tarde no Inn-Patient, pensando no que devia fazer, considerando todas as opções possíveis. Já tinha conversado no celular com Barb McDonough e com Gillian. E tinha acabado de anestesiar a gatinha selvagem que trouxera de uma de minhas missões beneméritas a Clayton.
Muito concentrada na máquina elétrica, barbeava cuidadosamente a barriga da gata (que eu ia castrar) quando ouvi alguém atrás de mim:
- Olá? Alguém em casa?
Devo ter dado um salto de três metros, pois estava numa fase de extrema sensibilidade. Como se minha cabeça andasse com macacos nos sótão, esse tipo de coisa.
- Olá?Dra. O’Neill?
Virei-me para a porta de vaivém e vi nada mais nada menos que Kit Harrison parado lá. Olhei-o como se fosse matálo ou deixá-lo incapacitado pelo resto da vida.
- Está vendo o que eu fiz por sua causa? Por favor vá embora!
Ele entrou e chegou mais perto, espreitando minha paciente.
- O que foi?
- A máquina cortou a ponta do mamilo, não está vendo?
Ele recuou e realmente pediu desculpas, o que talvez indicasse alguma consideração. Ao menos eu acreditei na sinceridade ao ver os malditos olhos azuis. E ele foi logo explicando que a porta estava aberta, que chamara e ninguém respondera.
- Foi sério? - perguntou, olhando de novo para a gata. Não me virei.
- Bem, pode-se considerar encerrada a carreira dela como dançarina topless.
De fato, fora uma lesão mínima. Além disso, ela não ia mais precisar dos mamilos. Pus na posição o corpo da gatinha, que lambuzei vigorosamente com Betadina. Depois, cobri o meio das patas traseiras com um pano esterilizado. Havia uma fenda por onde a ação ia acontecer.
- Vire essa luz para cá - disse eu. - Por favor. Surpreendentemente, ele fez o que mandei. Acho que pensou que ia dormir comigo, pois parecia o tipo de homem que freqüentemente conseguia o que queria.
Com o bisturi, dei um talho pegando toda a parte de baixo da barriga da gata, até a cavidade pélvica. Olhei de lado para vercomo o Sr. Kit Harrison enfrentava a operação. Parecia bem, o que me desanimou. A esperança era que desmaiasse.
O cabelo louro parecia um pouco úmido, como se ele tivesse saído do banho. Como todo bom e obsoleto americano típico cheirava a sabonete Ivory. Nem pensar na linha Hermes para aquele cara.
- Então como vai indo? - perguntei enquanto operava.
- Tem toalhas que cheguem? A água está esquentando? Serviço nota dez?
- A cabana é ótima - disse ele -, pode colocar cinco estrelas na porta. Estou gostando muito.
Que pena. Ele continuou:
- Ouvi falar num lugar gostoso para se comer em Clayton.
- Há mais de um. Provavelmente metade das casas é um lugar gostoso para se comer. Desde que o convidem para jantar, o que parece improvável. As pessoas de lá não confiam muito no pessoal de fora. Outra opção é o Danny’s Grill. E no Villa Vittoria há uma pizza e um ravióli muito bons.
- Por que não pega um rango comigo quando acabar por aqui - disse ele. - De repente até conseguimos um convite para comer numa daquelas casas.
- Não, obrigada. - Manejei o bisturi, sacudindo-o entre o polegar e o indicador. - Se quiser fazer uma coisa realmente simpática, uma coisa que eu realmente agradeceria, basta empacotar você, sua arma e cair fora.
Kit limpou a garganta antes de falar.
- Parece que não começamos lá muito bem, Dra. O’Neill disse atrás de mim. - Mas não sabe... realmente não sabe
nada a meu respeito. Realmente não sabe quem eu sou.
Voltei a me concentrar na gata, fiz o ligamento uterino e miciei a sutura. A gatinha começava a ronronar, o que significava que o efeito da anestesia estava passando. Bem, ela ia ficar com medo. Ia fazer um escarcéu.
Eu mesma estava um pouco assustada e não gostava disso. Um calafrio inoportuno me dominava. Tinha deixado a porta aberta, havia um homem sentado atrás de mim e, como ele tinha dito muito bem, eu não sabia nada a seu respeito.
Virei a cabeça para encará-lo, mas o banco estava vazio.
Fora embora como chegara: em silêncio.
CAPÍTULO 24
Max tinha dormido realmente bem dentro da casa, não importa quem fosse o dono. Uma casa incrível, maravilhosa, apinhada de coisas boas, onde morava uma família desarrumada, bagunceira. Agora estava na varanda, ao raiar do dia; o céu era um feixe de diferentes tons de rosa e vermelho derramados num fundo azul.
- Bom-dia, floresta! Bom-dia, lindo céu! Bom-dia, sol! Sinto vontade de voar bem alto até as Rochosas. Quem não gostaria. Talvez hoje eu me encontre com o Matthew!
Continuava na varanda da casa onde se escondera, perfeitamente equilibrada num parapeito de madeira. Ainda estava vestida como no dia da fuga: camisola branca de algodão, sem mangas, e sapatilhas de bale. Vibrava de entusiasmo, pois era um dia perfeito para voar.
Matthew? Matthew? Droga, onde você está? Não quer voar comigo? Vamos lá, Matthew. Só espero que não esteja morto, por favor!
O vento soprava barulhento no morro íngreme atrás da casa e ela podia sentir a corrente fria passando nas pernas. Então levantou as asas, só um pouco. Testando: um, dois, três, quatro.
Quis checar para ver se havia dor e se poderia suportá-la ou não. Confirmou o que já sabia: estava se sentindo muito bem. O ferimento não era profundo. Ia viver, pelo menos era o que parecia naquele momento.
O ar batia em suas penas como um suave toque de tambor, um rufar muito delicado. O batimento do coração se acelerava de expectativa.
Max tragou um profundo e gostoso sopro do ar da montanha, o ar das flores silvestres, das folhas dos pinheiros e, antes que tivesse tempo de ficar com medo, decolou!
Desta vez estava mais preparada para a vertigem, para a sensação de que o estômago realmente se deslocava para dentro do peito. O instinto tomou a rédea. Ela batia as asas com força contra o ar. Batendo contra a gravidade, dizia a si mesma. A sra Beattie lhe ensinara tudo sobre vôo na Escola, mas ela nunca fora autorizada a praticar. Voar era proibido.
Quando os antebraços balançavam, os ossos do ombro giravam fácil e naturalmente nas cavidades. As juntas do cotovelo automaticamente se abriam, os pulsos se expandiam e as penas se espalhavam.
Quando se deu conta, subia sem nenhum esforço especial! E era incrivelmente tranqüilo lá no alto. Parecia cem vezes mais fácil viajar no ar que fazer natação. Era mais fácil até que andar.
Max subia num vórtice térmico. O ar parecia vivo, empurrando-a de baixo para cima. Sabia alguma coisa sobre vórtices térmicos. Lera tudo que podia na Escola e normalmente conseguia reter a maior parte do que lia. Dentro do vocabulário da Escola, era considerada um gênio. Assim como Matheu, é claro. Mas onde ele estava?
Max ouvia piados, mas ainda não via muitos pássaros. E continuava a subir, fazendo círculos sem a menor dificuldade. Voar era a melhor coisa do mundo. Sem a menor dúvida. Não admira que fosse algo proibido para ela e para Matthew.
Nem recorrendo a drogas gente comum experimentaria algo semelhante ao que estava sentindo. Cada pena se conectava diretamente ao sistema nervoso, de modo que o cérebro participava em detalhe do vôo.
Quando estava tão alto que podia tapar a casa com a ponta do dedo, ela descobriu outro pequeno milagre.
O morro atrás da casa estava conectado com outros morros, formando uma crista que chegava aos limites do seu campo visual. O vento soprando contra a crista só podia subir, o que criava uma firme onda de ar ao longo de toda a crista montanhosa.
Max abraçou o ar com as asas abertas e pegou a onda. O vento fazia o longo cabelo louro ondular atrás dela. O cabelo era um rio no ar.
O solo corria em silêncio lá embaixo. Max só ouvia o sopro de ar atravessando as penas. Era o único ruído. Planando como se estivesse isenta das leis de gravidade, observou que outras criaturas também se aproveitavam do mesmo fluxo de ar.
Um falcão de cauda vermelha, uma dupla de abutres e um bando de corvos flutuavam tão facilmente quanto ela. O falcão a rodeou, a examiná-la. Max enfrentou os olhos negros, duros.
- Xô!
Antes de mergulhar na direção da escura sombra da mata, passou rente ao topo das árvores e circundou-as. Chegou a roçar de leve nos galhos com as pontas das asas.
Completava a descida como um chicote, cortando perigosamente o espaço entre as árvores.
Que passeio! Fora incrivelmente conectada ao mundo natural, ao resto do universo.
Fora feita para isso!
Diminuiu bruscamente a velocidade. O solo se aproximava veloz e ela aterrissou depressa demais, com força demais. A dor foi se transmitindo pelo corpo até o machucado no ombro. Levantou bem a cabeça e não pôde acreditar no que viu.
Era aquela mulher de novo.
Alguns metros à frente.
CAPÍTULO 25
- Maldito demônio que fez isso! - xinguei bem alto, a voz ressoando com o eco. - Maldito demônio!
Abaixei-me e puxei um terrível prendedor de patas. A armadilha estava sob um amontoado de folhas úmidas e lamacentas no fundo do barranco. Felizmente nenhum pobre animal tinha pisado.
De repente, ouvi alguma coisa andando na mata. Era um barulho perto. Sem a menor dúvida, um animal grande. Quem sabe não seriam os passos do desgraçado montador de armadilhas.
Fiquei paralisada com o prendedor balançando na mão. Virei-me devagar.
- Ô, meu Deus! - exclamei num sussurro. A meninapássaro estava a uns vinte metros de distância. A mesma garotinha que eu tinha visto. E ela me encarava, de olhos muito arregalados. Claro, aquilo era impossível. Mas lá estava. E definitivamente a menina tinha asas.
O rosto, e provavelmente também o cabelo louro comprido, me fizeram lembrar de Jessica Dubroff, a menina-piloto de sete anos de idade que morrera tragicamente alguns anos atrás, quando seu avião caiu. A garotinha parada na minha frente transmitia o mesmo tipo de coragem e espírito aventureiro - a coisa estava no olhar. Ainda assim, se excluíssemos a plumagem e as belíssimas asas, ela pareceria uma menina bastante normal.
Eu tremia muito. Tinha as pernas tão bambas quanto minha velha mesa de cozinha.
Não está acontecendo. Não pode estar acontecendo. Quero que se controle já! Respire fundo.
A menina parou de caminhar. Seu vestido branco, na realidade uma camisola, estava rasgado e muito sujo. O cabelo louro parecia emaranhado, cheio de nós.
Ficara muito quieta, me olhando. Como um falcão, por assim dizer. Eu a encontrara ou fora justamente o contrário? Será que ela é que seguira o meu rastro?
Desta vez eu estava extremamente sóbria. E era dia claro.
Sim, era real! Tão real quanto eu sou (pelo menos acho que sou) real. E a poucos passos de mim. Por um longo momento de silêncio, uma apenas olhou para a outra, e eu nunca tinha visto olhos verdes tão brilhantes.
De repente, o verde dos olhos ganhou um reflexo amarelado e áspero. Os olhos não mostravam medo, mas a linguagem do corpo era de muita cautela.
- Ei... - chamei em voz baixa. - Não vá embora, por favor.
Vi os olhos baixarem para minhas mãos.
Eu ainda segurava a armadilha. Feios dentes e mandíbulas de metal ligados a uma corrente enferrujada! O aparelho, feito para aleijar, parecia asqueroso.
E então vi a menina assustada. Tão assustada que se virou e começou rapidamente a se afastar.
Com certeza achou que a armadilha fosse minha! Não é de admirar que ficasse com medo.
- Não é minha - gritei. - Espere, por favor! Larguei o detestável aparelho e fui atrás dela, começando
a subir uma encosta bastante íngreme. A menina se movia muito depressa. Vi um risco branco, mas já um tanto longe.
De onde em nome de Deus viera ela? Seria algum protótipo de malformação inata ali nas montanhas? Fruto de alguma experiência? As coisas sempre avançavam de modo tortuoso.
Enquanto eu subia, o terreno parecia lutar contra mim. Pedrinhas de terra escorregavam sob os meus pés e rolavam para o fundo do barranco. Disse a mim mesma para não correr ou ela ia pensar que eu a perseguia. Ainda assim, corri um pouco. Não queria perdê-la.
- Não vou machucá-la - gritei. - Sou veterinária, médica.
Para minha surpresa, a menina acelerou ainda mais. Por quê? Por que eu tinha dito que era médica? Avancei o mais depressa que pude através da vegetação densa, emaranhada. Mas logo vi que a perdera.
Fiquei me sentindo bastante mal, intensamente frustrada. Tivera duas grandes chances de fazer contato e talvez agora nunca mais a encontrasse. Será que mais ninguém vira aquela menina?
Então ouvi o barulho forte de madeira estalando.
Que parecia vir diretamente de cima de mim.
Levantei a cabeça.
Ela estava pousada num galho forte de um grande carvalho e realmente não teria mais que onze ou doze anos. De novo me observava e de novo achei que ela é que poderia ter me escolhido. Por que eu? Por que razão? Comecei a pensar em David, mas não entendi. Que relação David poderia ter com aquela menina?
- Por favor, não fuja. Não vou machucá-la. A armadilha não era minha. Eu queria desarmá-la, porque também acho uma coisa detestável. Meu nome é Frannie. Como você se chama?
Será que podia ou sabia falar? De qualquer modo não respondeu. Em vez disso, abriu as magníficas asas. Lembravam asas de águia, ou melhor, asas de anjo!
De repente, saltou do galho. Fiquei atônita. Fora como um mergulho acrobático numa piscina, o melhor que eu já vira ou que ainda poderia ver.
Bem na frente dos meus olhos, ela começou a voar.
Como um pássaro, realmente. Ou melhor, como uma menininha, ou uma mulher, ou um homem voariam se as pessoas estivessem habilitadas a voar. Agora já estava lá em cima, planando.
O que mudou para sempre o curso de minha vida.
CAPÍTULO 26
Com nove anos de idade, Matthew não conseguia parar de tremer. Era como um boneco de molas se sacudindo ou um condenado nos íngremes e frios degraus de pedra que levavam ao calabouço. Desde que, por razões de segurança, tivera de se separar de Max na saída da Escola, ele não conseguira mais se acalmar.
Para a direita, Max.
Para a esquerda, Matthew.
É a grande chance. Vamos, vamos!
Um dia a gente se encontra.
Será que algum dia voltaria a se encontrar com a irmã mais velha? Não podia imaginar a vida longe de Max e era quase insuportável ter passado os últimos dois dias sem notícias dela.
Nunca haviam se separado por mais que algumas horas, e eram castigados na Escola justamente assim: sendo obrigados a ficar longe um do outro. Isso representava o absoluto fim do mundo para os dois, como tio Thomas, o pérfido traidor, sabia muito bem. Thomas fingira ser amigo, mas agora estava lá fora à procura deles. E era tio Thomas quem ia querer fazê-los dormir.
Matthew precisava arejar as idéias, pelo menos por ora. Não podia ficar ali, naquele esconderijo sujo e escuro, alimentando saudades de Max. O problema, a coisa grave, é que era a primeira vez na vida que se via privado de alguma coisa. Tudo bem, talvez já tivesse ficado sem um videocassete, mas não por muito tempo. Até da comida ruim da Escola ele já sentia falta, principalmente porque estava morrendo de fome. Talvez também estivesse com saudades da sra Beattie, que morrera. Provavelmente assassinada.
Tentou contar mentalmente uma piada, fazer uma gracinha qualquer para rir sozinho: Como ganhou, o otário, o dinheiro que perdeu no conto-do-vigário? Ele não riu, não naquela hora, naquele escuro, no frio, com o rosto encostado na sujeira do chão.
Ele e Max tinham prometido que iam se encontrar de novo, em algum lugar; era isso que o mantinha vivo. Rapaz, sentia falta do sorriso de Max! Sentia falta até da sua boca, uma verdadeira máquina de falar.
Matthew esticou a cabeça e prestou atenção. Ouvira um ruído nas proximidades, bem perto do solo. Folhas roçando no chão? Passos?
Só o vento assobiando nas árvores. Só isso. Teve um suspiro de alívio. E então...
- Matthew, o Grande? Vamos lá, garoto! Saia daí. Eu sei que está aí. Tenho as suas pegadas. Tenho o nariz em cima de você, filho. Está sozinho ou com sua adorável irmã?
Era o tio Thomas e agora a tremedeira de Matthew chegava a um estágio bem mais avançado. Sentia um enjôo no estômago, uma certa falta de ar. Achou que podia morrer de ataque cardíaco aos nove anos de idade.
- Sempre foi um bom garoto. Nós dois sabemos disso, hein rapaz? Por que não sai daí por vontade própria para eu não me aborrecer com você? Palavra do dedinho, ha?
Fora sempre um bom garoto. Obediente. Matthew tinha plena consciência disso. Mas detestava ouvir o babaca do tio Thomas dizendo ”palavra do dedinho”. Isso era um jogo entre ele e Max, de mais ninguém. Juntavam os dedos mindinhos e um prometia alguma coisa ao outro. Palavra do dedinho. Coisa dele e de Max.
Bem, a encrenca estava feita, ele pensou se equilibrando nas pernas bambas. Nenhuma saída. Rapaz, ele estava tremendo dos pés à cabeça: as pernas, os braços, os músculos do rosto, até a bunda! Também estava imundo, fedendo como o diabo, o que o deixava meio envergonhado.
Espreitou do esconderijo.
Estava lá o tio Thomas. Com um monte de capangas. Cara, como gostaria de poder confiar neles! Porque tinha uma certa vontade de voltar para casa.
- Ah, achei você, Matthew, achei! -disse o tio Thomas. Parecia gente muito fina, um verdadeiro amigo.
Tio Thomas viu o incrível menino louro avançar aos poucos. Matthew era bonito, assim como a irmã. Tinha asas esbranquiçadas, com marcas prateadas e azul-marinho. Um espécime extraordinário.
Matthew adorava fazer gracinhas, principalmente quando estava nervoso ou assustado. Fez uma naquele momento:
- Se importa de usar um silenciador se for atirar em mim? Não gosto do pá-pá-pá...
Tio Thomas só atirou uma vez. Nem foi preciso silenciador. Matthew, o grande garoto, desabou no chão da floresta.
LIVRO DOIS
TINKERBELL ESTÁ VIVA
CAPÍTULO 27
Harding Thomas sentou-se no chão, ao lado do Matthew, de nove anos. Falou baixo, até mesmo com ternura.
- Desculpe, mas tive de usar uma arma paralisante. Sabe como eu gosto de você e da Max.
Os olhos de Matthew estavam muito vermelhos e ainda lacrimejavam. Não era difícil ficar com pena do garoto, mas Thomas sabia que o momento não era apropriado para sentimentalismos. Havia uma tarefa a ser cumprida.
-Não acredito mais no que você diz-sussurrou Matthew.
- Antigamente acreditava em mim. Éramos amigos. Estou aqui agora porque sou seu amigo. Havia quem quisesse colocálo para dormir. Eu discordei. Não podia fazer isso com você, filho. Mas quero que me ajude a encontrar Max. Tem de me ajudar a salvá-la.
Matthew falou tão baixo que foi difícil escutá-lo.
- O que devo fazer? Como posso salvar minha irmã? Thomas balançou a cabeça com um ar de aprovação e finalmente sorriu para o garoto.
- Quero que voe e depois chame por Max. É o único que pode ajudá-la.
Ele mostrou uma coisa. Parecia linha de pescar, um grande carretel.
- Escute com atenção - disse. - É impossível romper esta linha. É usada para pegar atuns de quinhentos quilos no Pacífico. vou lhe dar uma folga de cem metros para você não se sentir aprisionado. Venha comigo...
- Está bem, tio Thomas.
- É um bom garoto e está me ajudando. O resgate da Max agora só depende de você. Não se esqueça disso!
Tio Thomas amarrou uma ponta da linha de pesca no colete caqui que Matthew teve de prender em volta do peito e da cintura. A outra ponta foi enrolada no tronco grosso de um grande carvalho que havia na encosta da montanha. Aquilo não podia deixar de dar certo. A isca para Max fora montada.
Thomas checou a linha para ver se estava firme. Fora criado em fazendas e ranchos. Sabia muita coisa sobre animais, sobre pássaros. Sabia como tratá-los.
- Vá em frente, voe! Tem a minha autorização. E também está autorizado a chamar pela sua irmã. Agora voe. Vamos lá, Matthew!
Matthew, ansioso para deixar o chão, fez exatamente como ele mandava. Com uma sacudidela, desdobrou as asas e começou a correr, o mais depressa possível, para longe do grande carvalho.
De repente, sentindo que tinha velocidade suficiente para decolar, bateu com força as asas (que ainda pareciam meio desengonçadas) e se viu transportado pelo ar.
Começou, então, a executar um círculo vagaroso, ascendendo num lento redemoinho para o sol nascente.
Teve tamanha sensação de liberdade que, na emoção dos primeiros segundos, quase esqueceu por que é que estava voando e o que devia fazer. Mas de súbito ouviu o tio Thomas em seu esconderijo lá embaixo. Claro, não acreditara numa palavra que saíra da boca de Thomas. Ele e os outros guardas estavam ali com rifles. Formavam um esquadrão de fuzilamento. Eram matadores; iam atirar em Max assim que ela aparecesse.
- Chame sua irmã! Não estou ouvindo você chamar, Matthew!
Matthew se afastou o máximo possível de Thomas, de sua voz de deboche, da árvore grossa onde estava amarrado.
Procurava apenas pensar nas palavras.
Está me vendo, Max? Está me vendo voar? Está por aí?
Mas finalmente começou a gritar com toda a força de seus pulmões:
- Max! Max! Max! Está me ouvindo? Ei, está me ouvindo? Matthew tomara a decisão. Sabia o que tinha a fazer para
salvar Max e começou a berrar cada vez mais alto.
- Fique aí. Fique longe de mim. Max! É uma cilada! É o tio Thomas com os outros. Fique longe daqui, Max! Eles estão armados.
CAPÍTULO 28
Max estava bem longe do lugar onde o irmão menor dava seus gritos de alerta. Outra manhã nascera. Ela atravessara mais uma noite sem ser apanhada pelos homens e sem ser comida por um urso ou por um puma depois de rasgada em pedacinhos.
Tomou um grande café da manhã e pôs um CD-ROM: o jogo era o Tomb Raider II. Adorava Lara Croft, a heroína. Queria ser como Lara Croft.
Por volta das sete e meia, deixou a casa segura onde estava escondida. Queria explorar o terreno.
De repente, ao espreitar pela rede de galhos e folhas de uma moita cheia de grandes amoras maduras, viu uma coisa que a deixou ao mesmo tempo interessada e apavorada. Seus olhos deram duas piscadelas rápidas e fortes. Disparando, o pulso deve ter ultrapassado todos os índices médios.
Por entre os pés de amora, via um menino e uma menina pequenos. Bastante parecidos com ela. Com ela e com Matthew, sem dúvida. Obviamente também queriam dar um bom passeio nos bosques naquele início de manhã. Já a teriam visto?
A menina vestia um macacão jeans, uma camiseta Red Dirt e tênis de cano alto. Um conjunto muito adequado para o ar frio. Uma parte do cabelo ruivo fora presa num grande grampo roxo; o resto eram cachinhos em volta do rosto. As amoras que estava pegando tinham a mesma cor do seu assustador esmalte de unhas.
O menino teria entre quatro e cinco anos e lembrava Matthew quando era daquela idade. Vinha batendo ritmadamente num balde de alumínio com a ponta de um galho e cantava uma música que Max nunca tinha ouvido.
Um-rai-um-ratum-rabum.
Um-rai-um-ratum-rabum.
A pele de Max se arrepiou. Sua voz interior mandava que fugisse imediatamente, mas ela estava paralisada. Tinha de ficar um instante ali. Queria, sem dúvida, bombardear os guris com algumas perguntas. Precisava desesperadamente de ajuda e tinha segredos a compartilhar. Deus, tinha de fato grandes segredos para contar. O que Lara Croft faria numa hora dessas?
Um-rai-um-ratum-rabum.
Sentia-se realmente assustada, mas não sabia muito bem do que estava com medo. Afinal, era maior que os dois guris. E muito mais forte, não havia o que discutir. Além disso, possuía dons especiais e, muito provavelmente, era também mais esperta. Nenhuma razão, mas estava com medo.
O menino levantou a cabeça do balde-tambor e seus brilhantes olhos azuis flagraram os olhos verdes de Max. Ele deu um passo atrás, gritando:
- Ei! Estou vendo! Ei! Como você se chama? Ei! Muito nervosa, Max gritou, fazendo as outras crianças também começarem a gritar.
A menina se controlou primeiro. Agarrou o irmão pela mão e deu-lhe uma boa e forte sacudida.
- Pare com isso, Bailey! - Ela manteve distância, é claro, mas também não recuou. Os olhos se arregalavam de medo. Quem é você? Esta propriedade é de nossa família! E uma área particular. Existem avisos nas árvores, você deve ter visto!
A menina teria uns oito anos. Ofegante, com o rosto vermelho como beterraba, parecia realmente zangada, embora aquela brava defesa de irmã mais velha fosse pura encenação.
Max estava impressionada. Deus, queria muito conversar com aquelas crianças, brincar com elas. Precisava muito falar com alguém.
- Quem é você? - a menina tornou a perguntar.
Sem dúvida, uma boa pergunta, Max pensou. E enquanto pensava numa resposta, a outra continuou falando. Aparentemente com a nervosa intenção de mostrar a Max como estava tudo bem. - Eu me chamo Elizabeth Ellers. Este é Bailey, meu irmão caçula. Tem cinco anos. Eu tenho nove. Já falei, agora é sua vez. Me diga o que está fazendo.
O pequeno Bailey contemplou Max de cima a baixo; depois se afastou da irmã e chegou mais perto. Deu uma grande volta ao redor de Max.
Ela ia rodando junto com o garoto, achando graça, mas também querendo impedir que o menininho descobrisse as asas.
- O que você tem nos braços? - perguntou ele meio numtomde choro.
Max hesitou. O que aqueles dois pensariam das asas? Teria coragem? O fato é que ela queria, queria realmente mostrar as asas.
De repente sacudiu os ombros, pôs os cotovelos em posição e foi lentamente desdobrando os antebraços, fazendo as penas se alinharem com um ruído sedutor, sussurrante.
Manchadas de cascas de amoras, as bocas de Bailey e Elizabeth se abriram... muito.
- ÔÔÔ... - Bailey começou a entoar, enfiando também os dedos sujos na boca.
Max sabia como as asas eram bonitas. As penas principais se enfileiravam em camadas brancas como a neve, e as beiras de cada camada se encaixavam com força umas nas outras, formando um lacre inviolável. Os lados de dentro das asas estavam cheios de penas secundárias, menores, e a pele de Max brilhava entre elas. Uma pele rosada devido à recente oxigenação do sangue.
- ÔÔÔÔ!
CAPÍTULO 29
Puxa, caramba! -exclamou Bailey. O que era aquilo, afinal? Cara, caramba? Será que era mesmo desse jeito que os garotos falavam naqueles matos do Colorado? Devia ser. Puxa, caramba? OK, está bem assim.
Max estendeu os dedos indicadores, forçando as asas a se abrirem ao máximo. A envergadura era quase da altura dela.
- ÔÔÔ!
Bailey foi se encolhendo para perto da irmã e seus olhos azuis nunca tinham estado tão grandes. Mas ainda parecia um garoto muito esperto.
- São de verdade? - Elizabeth Ellers finalmente tomou coragem para falar de novo. - Parecem tão reais!
Max sorriu. Sabia que estava tentando fazer os dois gostarem dela.
- É claro que são de verdade.
- Eu queria ver - sussurrou. Bailey - Por favor. Voepra gente ver.
Elizabeth também não tirava os olhos de Max. E também sussurrou, como se estivesse na entrada de uma igreja ou algo do gênero.
- Não vamos contar a ninguém, promessa...
Com ar solene, o menininho sacudiu duas vezes a cabeça de cima para baixo e uma para o lado. Depois fez um apressado sinal da cruz no lugar onde ficava o coração.
- Juro pela minha mãe. Ela também jura pela minha mãe. Por favor, só um pouco. Só para a gente ver.
- Se eu fizer, não podem mesmo falar, fica só entre nós disse Max. - E nunca jurem pela mãe de vocês. Ela pode morrer.
- Vamos ficar de boca fechada - disse o menino.
- Se falar, volto aqui para pegá-lo.
- Você é um vampiro ou coisa parecida? - perguntou Bailey. Parecia nervoso e novamente assustado. Seus olhos rodavam.
- Éééé, sou um vampiro!! - Ela riu. - É claro que não, garoto! Você é que parece um homenzinho verde! Tem mesmo certeza de que não veio de Marte?
Elizabeth deu uma risada alta e Max teve vontade de abraçá-la.
- Acertou na mosca. Ele é mesmo de Marte. E você, como se chama?
- Ha... Tinkerbell.
Os três deram uma boa gargalhada. Ela queria exibir-se, mas também queria compartilhar suas experiências. Gostava realmente das pessoas. Sempre fora uma menina meiga, atenciosa, gentil com todo mundo. Acreditava que conviver com os outros era essencial para uma vida saudável. Havia uma coisa absolutamente verdadeira que aprendera na Escola: quem dá recebe em troca.
Vendo que o caminho à sua frente era plano, sem rochas ou raízes, Max começou a correr.
Só precisou dar quatro ou cinco passos para sentir a pressão em volta das pontas grossas das asas. Logo as correntes de ar a ergueram e a mantiveram no alto.
- Cara, caramba!! - ela gritou. Os garotos tinham de estar percebendo que aquele seu vôo era mesmo uma graça.
Quando chegou lá no alto, iniciou um rasante sobre Bailey e Elizabeth. Instintivamente os dois se abaixaram e Max subiu de novo, morrendo de rir. Gostava de brincar com outras crianças. Era do que mais gostava. E precisava com desespero, realmente com desespero, contar-lhes os seus segredos. Só que, se fizesse isso, colocaria em perigo não só a mãe por quem os dois juraram, mas eles próprios.
Max batia as asas sem parar, sem parar. Agora já flutuava livremente e fazia um círculo bem lá no alto, trilhando o contorno de uma nuvem. Inclinando devagar à esquerda, depois à direita.
No solo, Elizabeth e Bailey Ellers assistiam a tudo em assombrado silêncio. Tinham posto as mãos sobre os olhos por causa do ofuscamento do sol e acompanhavam o vôo sem piscar.
Logo ficaram muito pequenos. Mesmo assim, Max ainda podia ver as caras voltadas para cima e o grande ”O” desenhado pelas bocas abertas. Sabia que não poderiam ajudá-la. Eram muito novos; eles próprios pareciam indefesos - indefesos e muito medrosos. Seria insuportável, aliás, se fossem feridos por causa dela e do que sabia.
Acenou com a mão.
- Tchau, tchau.
Bailey e Eiizabeth acenaram também.
- Não vamos dizer nada! - gritava Bailey. - Juramos... Nada, nada!
- Volte! - berrava Eiizabeth Ellers. - Podemos ser amigas.
Antes mesmo de perdê-los de vista, Max já sentia terrivelmente a falta deles. Bailey e Eiizabeth. Gente boa. Bons garotos. Quem sabe a essa alturajá não fossem amigos se, em vez de voar, tivesse sido um pouco mais terra-a-terra com eles?
É claro, as saudades maiores eram de Matthew. Sentia muita falta do irmãozinho menor. Uma falta que cravava um enorme, um tremendo buraco no centro do peito.
Planando alto sobre o pasto dourado que fazia limite com a mata, sentiu-se dolorida e solitária. Em algum lugar dentro dela, havia a certeza de que não fora feita para ficar sozinha.
Ela própria não passava de uma garotinha.
Um-rai-um-ratum-rabum.
Um-rai-um-ratum-rabum.
CAPÍTULO 30
Os braços de David estavam jogados sobre meus ombros e eu o arrastava por um deserto muito árido, de areia muito branca, um deserto que me parecia familiar. O sol era um grande relógio no céu e o ponteiro mais fino marcava os segundos entre a vida e a morte. De fato eu já estivera naquele lugar.
- Depressa, Frannie, por favor - David ofegava, um sussurro áspero contra meu pescoço. - Sinto muito, querida, mas você tem de correr. Não dispomos de muito tempo.
Estava cansada, muito cansada de arrastar o corpo mole de David, mas não podia abandoná-lo.
- Agüente firme - eu dizia. - Por favor, agüente. Sentia o sangue quente e pegajoso na nuca e meu cabelo se arrepiava. Lágrimas rolavam em meu rosto.
- Ainda estou aqui - dizia ele. - Sempre estarei aqui, à sua espera.
Era muito pesado, os pés arrastavam na areia. Segurei-o com mais força e não parei de avançar. Os músculos do meu braço, no entanto, pareciam incrivelmente fatigados, doloridos. Eu podia sentir o coração dele batendo nas minhas costas, um batimento fraco, quase extinto.
Como de hábito, David começou a falar das peripécias de nosso casamento. Coisas alegres, coisas felizes que lembravam como nossa vida fora plena. Mencionou as ocasiões em que conversamos seriamente sobre a conveniência de ter um filho, talvez dois ou três se tudo desse certo.
- Devíamos ter deixado vir, Frannie. Não devíamos ter esperado.
- Não, David. Por favor, não. Não quero ouvir isso. Mas ele não quis parar.
- Lembra do nosso quinto aniversário de casamento? Ficamos naquela pousada incrível de Vermont, você sabe qual. Transávamos o dia inteiro, Frannie. Tomávamos o café da manhã na cama, almoçávamos e jantávamos na cama.
- É claro que eu me lembro, David. Nunca vou esquecer de Vermont.
Então ele começou a murmurar uma canção. Era o tema fascinante, obcecante de Um homem e uma mulher. Ele tinha adorado o filme. Eu também. Vimos cinco ou seis vezes.
De repente, parei de andar e David perguntou:
- Estamos mesmo aqui?
Olhei para o horizonte. Vi apenas o clarão, o brilho do calor no deserto sem limites.
- Sim. Estamos aqui.
Deixei David escorregar de minhas costas e deitei-o com carinho ao sol. Depois abri seus braços fortes, estendendo-os para os lados. As mãos e os pés sangravam, assim como a perfuração da bala perto do coração.
- Desculpe o que eu fiz - disse ele. - Sinto muito, Frannie.
Não entendia aquelas palavras, não sabia por que se desculpava, mas balancei a cabeça. Pouco depois, tirei todas as minhas roupas e enrolei-as para transformá-las num travesseiro macio. Com cuidado, pus esse travesseiro sob a cabeça dele. Foi a coisa mais pungente que fiz em toda a minha vida.
- Obrigado - disse David, me observando com olhos brilhantes, amorosos. - Sempre achei que não ia me deixar morrer.
E j usto nesse momento Dav id morria de novo-exatamente como fazia a cada manhã.
O despertador no peitoril da janela disparou e acordei do meu sonho deprimente. Parecia tão real, mas David, é claro, morrera num estacionamento em Boulder, não em algum deserto misterioso.
Abri os olhos no minúsculo quarto da clínica veterinária. Tinha os braços nus esticados para trás, segurando a cabeceira da cama. Havia lágrimas em meus olhos e o rosto parecia úmido. O peito doía, como se tivesse levado um golpe de martelo. Lembrei que, não havia muito tempo, a vida fora boa, pois havia alguém que me amava, alguém que eu também amava.
Quando chutei o amontoado das cobertas, fiquei um tanto chocada com a imagem que vi. Naquele momento em que o sonho se dissolvia, em que me sentia pendendo as fantasias do pesadelo no deserto, fui envolvida por uma súbita vergonha.
Via um homem de cabelo louro e camisa de brim, que trazia um sorriso claro como o sol. Quando me dei conta, estava me aproximando dele.
Então, sem entender por que me sentia tão envergonhada, saí depressa da massa de cobertores a que se reduzira minha cama e dei uma piscadela para afastar a intrometida imagem de Kit Harrison.
Fui até a janela que dava para os bosques nos fundos do prédio. Abri-a de par em par e respirei fundo. Podia quase sentir o gosto dos pinheiros, do mato.
A leve brisa da manhã roçou em minha pele úmida e comecei a me sentir melhor. Foi quando já me afastava da janela que ouvi aquilo. Um som aterrador que me congelaria até os ossos.
CAPÍTULO 31
O longo grito de dor que vinha da mata, mas de algum ponto não muito distante, era medonho. Não levei mais que um minuto para enfiar a calça jeans, as botas e a mesma camiseta que usara na véspera.
Parei no mini laboratório o tempo suficiente para encher uma seringa com ketamina e arrumar o anestésico na mochila. Pip latia alto pedindo o café da manhã, mas teria de esperar. Não havia tempo a perder.
- Não vou demorar - gritei ao trancar a porta e sair correndo.
O grito estridente parecia furar os meus típanos. O orvalho molhava meus sapatos e escorreguei duas vezes. Continuei, porém, correndo o mais que podia.
Seguia o som terrível, quase certa de que sabia de onde ele vinha e o que tinha acontecido.
A mata nos fundos de minha clínica desce em direção a um córrego caudaloso, quase um pequeno rio. As águas do degelo de inverno cavavam profundos sulcos no terreno, No verão, esses sulcos se conservavam secos, parcialmente cheios de raízes e frutos secos, transformando-se nos pontos onde os predadores costumavam caçar seus roedores.
Que eram também os pontos onde os caçadores montavam as armadilhas ilegais.
O grito estridente ficou ainda mais alto e depois parou abruptamente, como se o animal estivesse sem fôlego. Quando recomeçou, partiu meu coração.
Cruzei a beira de um barranco e finalmente vi a raposa. Preso por uma das patas dianteiras e agitando inutilmente a outra, o belo animal de pêlo castanho-avermelhado estava pendurado sobre a ravina. Era uma visão horripilante, arrasadora.
Logo percebi o que tinha acontecido: uma armadilha se fechara sobre a pata.
Fui me aproximando da beira da ravina para tentar libertála. A pata fora presa pelos dentes e pela corrente do aparelho e o corpo do animal batia e se arranhava contra a parede da ravina.
Meu estômago dava um nó. Uma tortura tão medonha, tão cruel! E para quê? Para alguém usar um casaco caro em Aspen ou Denver? A fêmea parecia em agonia; muito naturalmente, entrava cada vez mais numa agitação frenética.
- Agüente firme - eu disse à raposa em voz baixa, sem traço de ameaça. - Estou chegando.
Deus, eu não vou machucá-la, grande raposinha! A corrente da armadilha tinha duas fileiras de anéis e estava presa na árvore. Sacudi o fecho com força, mas ele não abriu.
- Maldito!
Pensei em suspender a raposa pela corrente, mas ela me morderia. Além disso, eu tinha esquecido de trazer minhas luvas e havia a possibilidade de ela ter hidrofobia.
Afobada, procurei um lugar para descer. A parede da ravina estava cheia de cascalho. Encontrei um ponto que me pareceu mais firme e decidi experimentar. Não era bom. O cascalho deslizou e completei os três metros de descida com a bunda.
O barulho de minha aproximação só serviu para aumentar o medo e o desespero da raposa. Ela estava aterrada, babando, estalando as mandíbulas. Vi que a perna fora espetada até o fundo, que os dentes do aparelho agarravam diretamente no osso.
- Calma, garota...
Fiquei embaixo da raposa e procurei uma posição para injetar-lhe a ketamina. No nível dos meus ombros, havia uma saliência na encosta, mas muito fina e estreita. Não achei que fosse possível segurar-me ali e ao mesmo tempo aplicar a agulha na pata.
O gemido estridente, contínuo, da raposa estava me deixando louca. Ela não ia demorar a entrar em choque e logo depois morreria.
Percebi que não conseguiria salvá-la sozinha.
CAPÍTULO 32
Kit completava o longo arco de um home run sobre a famosa cerca ”Green Monster” do Boston’s Fenway Park*. Seus dois garotos o assistiam dos lugares mais próximos da primeira base. De repente, ele foi arrancado dessas façanhas beisebolísticas e dos restos de sono.
Era uma batida alta, insistente na porta da cabana. Ele pôs a mão no rifle que mantinha sob a cama e o fez deslizar pelas tábuas corridas do chão.
- Sim? Quem é? - Ergueu o corpo, sentando-se na cama para poder olhar pela janela.
Abrindo com cuidado a cortina, viu Frannie Oneill com o ar sério que geralmente assumia em sua presença, aquele jeito que sempre a fazia parecer uma pessoa generosa.
E então? O que ela queria?
Vestiu a calça jeans, puxou o zíper, fechou o botão. Mais impaciente a batida na porta. Onde havia uma camisa limpa? Porra de camisa.
- Já you.
Abriu a porta, mas antes de poder perguntar que crime havia cometido, Frannie irrompeu num jato sombrio de palavras rápidas e pouco inteligíveis.
-Preciso que me ajude, por favor, eu realmente preciso que me ajude, Sr. Harrison.
Sr. Harrison?
- Claro. Sem problemas. Só os sapatos.
Ele entrou depressa para apanhar os mocassins e voltou sem camisa para acompanhá-la.
Frannie disparou na frente até um barranco na rocha, a cerca de uns cem metros, em plena mata. Kit mal conseguiu emparelhar. Frannie realmente sabia aproveitar as pernas compridas. Pior era aquela história de Sr. Harrison.
- Qual foi... - Ele parou no meio da frase.
Estádio de beisebol de Boston. O home run é o tiro em profundidade para fora da cancha. (N. do T.)
Um ou dois segundos depois, identificava o que estava pendurado nos repelentes dentes de metal e nas correntes que se agitavam com um ruído metálico.
- Ô, Deus, Frannie!
A raposa era uma imagem terrível e ele enfim compreendeu por que Frannie tinha tanta aversão a caçadores, por que ficara tão furiosa desde que o vira chegar... com um rifle.
O pêlo castanho-avermelhado do pobre animal estava ensopado, emplastrado de sangue. O pêlo e a carne da pata dianteira tinham sido descascados desde o cotovelo pelos dentes das mandíbulas do aparelho. A respiração da raposa estava difícil e o gemido intermitente já parecia rouco, fraco.
- Não consigo alcançar - disse Frannie com a voz ofegante. Parecia realmente sem fôlego. - Tentei fazer sozinha. Não consegui.
Frannie parecia que ia perder o controle e Kit ficou engasgado pela mesma emoção. O que acontecera com a jovem raposa era cruel, extremamente chocante e ele também sentiu muita raiva. Como alguém podia agir assim com um animal?
- O que vai querer que eu faça? Como posso ajudar? Ela pegou e segurou com força a seringa.
- Tenho de aplicar na pata.
- Tudo bem. vou dar um jeito.
Kit deixou-se escorregar pelo barranco íngreme, lamacento, e examinou a ravina de alto a baixo. Depois tornou a subir.
Agachou-se sobre a raposa que estava suspensa a cerca de um metro da beirada. Mediu, pesou o animal com os olhos e começou a esquadrinhar rapidamente o mato em busca de um galho caído.
- Isto deve servir.
Tinha cerca de um metro de comprimento e só uns cinco centímetros de grossura. Frannie parecia confusa.
- O que vai fazer? Para que isso?
Como era mais fácil mostrar do que explicar, Kit se abaixou até ficar com o rosto e os ombros bem debruçados sobre a borda da ravina. Ouviu a voz de Frannie:
- Por favor, tome cuidado.
Ele aproximou o galho da boca da raposa. O animalzinho •á borrifava espuma quando soltava o ar dos pulmões e tinha os olhos embaçados. Kit achou que talvez nem conseguisse enxergá-lo.
Encostou a madeira no focinho.
Ela mordeu freneticamente, cravando fortemente os dentes ao redor do galho, tentando quebrá-lo.
Será que o galho ia agüentar? Devagar, bem devagar, Kit foi puxando a raposa até... fazê-la ultrapassar a beira do barranco.
- Dê a injeção - disse ele com a voz abafada. Frannie, que estava a seu lado, espetou a agulha na pata
traseira. Empurrou o embolo. A raposa deu coices no ar; depois adormeceu, quando a droga fez efeito.
Kit suspendeu o animal como se estivesse pegando um casaco de peles.
-A idéiafoi ótima-disse Frannie.-Deus, conseguimos!
Pegou a raposa e deitou-a delicadamente no chão. Kit puxou o mecanismo de disparo da armadilha e Frannie libertou a pata com cuidado.
- Uau! Muito bom - disse ela. - Obrigado. Foi grande nos primeiros socorros. Muito obrigado mesmo.
-Não há de quê. Gostei de trabalharmos juntos. Que dupla, hein? Como foi bom poder ajudar esta senhora.
E, maravilha das maravilhas, Frannie O’Neiü finalmente lhe concedeu um sorriso.
Um sorriso que quase valeu a espera.
CAPÍTULO 33
larruuu, beleza pura!
Max estava voando de novo. Não pudera resistir às nuvens fofas, ao assobio alto do vento, aos céus profundamente, perfeitamente azuis sobre as montanhas Rochosas. Quem resistiria? Avançava com calma, descontraída, apreciando um lago lá embaixo e as matas nas cristas dos morros ao seu redor.
O azul quase preto da superfície do lago a fez chegar mais < perto. Max podia ver as inversões termais refletidas na ondulação da água. Sua professora, sua amiga, a sra Beattie, falara sobre correntes de vento e sobre como o calor e o frio afetavam o vôo. Max ainda retinhatoda a informação; reter todas as coisas era um de seus dons.
As asas abertas atiravam uma sombra alongada nas copas das árvores. Max contemplava a sombra, corria com ela. Mergulhava, depois subia, depois voltava. Como se brincasse de pique, voava cada vez mais depressa sobre a orla da terra.
Pensou de novo na sra Beattie. Pensou na Escola, seu verdadeiro lar.
Podia se lembrar de tudo com nitidez, só que em geral não queria isso. Mas era impossível não lembrar... em especial das coisas piores. E eram tantas que dava até para escolher.
Um dia, de manhã cedo, a sra Beattie entrara no pequeno quarto onde ela e Matthew dormiam. Três anos atrás a sra Beattie era a professora deles. Antes da sra Beattie, tinha havido babás e tutores, mas estavam sempre sendo substituídos. Nenhum se mostrara afetuoso, carinhoso, o que aliás não era permitido na Escola. Só a ciência, o trabalho, a disciplina, as avaliações, avaliações, avaliações...
- Matthew... Max... - sussurrara a sra Beattie. Max acordara instantaneamente, bem antes de a professora chegar à sua cabeceira.
-Estamos acordados-fora o Matthew quem resmungara.
- Ouvimos a senhora se aproximar.
- É claro que sim, querido. Agora prestem atenção. Não falem até eu terminar.
Era alguma coisa ruim - Max tinha certeza. Mas nem ela nem Matthew disseram nada.
- Às vezes coisas ruins acontecem a gente boa - murmurou a sra Beattie, que além de professora também era médica. Administrava exames, especialmente os testes de inteligência: Stanford-Binet, WPPSI-R, WISCIII, os testes de Beery, o Act In e todo o resto.
-Vão nos fazer dormir, vão nos matar, certo? - Matthew não conseguia ficar muito tempo calado. - Estávamos esperando por isso.
- Não, meu bem. Vocês dois são muito especiais. São crianças-prodígio. Não têm de se preocupar. Mas o pequeno Adam, querido, foi posto para dormir ontem à noite. Sinto muito ter de contar.
- Não, o Adam não! - Matthew protestava. - Não o Adam!
Ele e Max abraçaram com força a sra Beattie e não conseguiam parar de chorar, parar de tremer. Adam não passava de um bebezinho. Tinha os olhos azuis mais bonitos do mundo, era tão esperto.
- Tenho de ir agora, queridos. Não quis que ouvissem isto do Sr. Thomas. Gosto muito de você, Max. E de você também, Matthew. - Ela os apertou.-Não quero que fiquem pensando mal de mim.
Logo depois a sra Beattie também se fora. Isto é, simplesmente nunca mais voltara à Escola e eles nunca souberam nem ouviram mais nada a seu respeito. Max tinha certeza de que a tinham feito dormir.
Ela percebeu que estava voando depressa demais, sem olhar para onde. Sim, a recordação da Escola a deixava nervosa.
Mudando de rumo, começou a arremeter na direção do sol. O brilho fragmentava a visão, transformando tudo num mosaico de tons multicoloridos. Ofuscada, Max continuou subindo, sugando um ar que parecia cada vez mais ralo e caía cada vez mais frio em seus pulmões.
Por fim, quando viu que não poderia ficar nem mais um segundo respirando daquele jeito, começou a inverter o loop, iniciando o mergulho de cabeça.
Sentia-se avançar diretamente para a tremulante água azul do lago.
Era como se as asas tivessem grudado do lado do seu corpo, o ar rugia nas orelhas. Os pulmões queimavam. E ela atingiu a agua num ângulo perfeito.
Splash!
Incrível!
Deus, como adorava voar!
CAPÍTULO 34
Harding Thomas parou para ingerir um pouco de açúcar no Quik Stop, em BearBluff.
- Café - disse ao rapaz do balcão. - Preto como o meu coração.
Foi quando ouviu os garotinhos corados, de olhos arregalados, irritando a mãe deles. Estavam perto do freezer cheio de sorvete da Ben & Jerry’s.
Thomas, que começava a tomar o café, não estava realmente prestando atenção nos dois até que...
- Era como um pássaro grande, mãe, muito bonito! Como um Power Ranger, só que não era um avião, mas uma menina.
Harding Thomas ficou em posição de alerta máximo por causa daquelas boquinhas cheias de novidades. Quase derramou o café. Chegou a respingar um pouco nas botas de caça.
A mãe dos garotos estava se aproximando da caixa, hipnotizada pela última edição da revista People. Suas sandálias de correia davam chineladas no sinteco arranhado, meio amarelo e marrom. Tinha uns trinta e cinco anos e um pneu rolando sobre a cintura da bermuda baggy, da Champion. Os garotos eram engraçadinhos, claro, e sem dúvida estavam muito animados.
Thomas sacou um pacote de pães de mel da prateleira sobre o balcão da lanchonete e foi também para a fila da caixa. Ficou atrás da mãe e dos guris.
A mãe tinha acabado de mandar que parassem de falar bobagens na frente dos outros. Um bom conselho, mas um pouco tardio.
- Ouvi a conversa dos seus meninos - disse Thomas com um sorriso e um risinho simpático. - Uma mocinha voadora vindo do espaço cósmico. Exatamente o que vem nesse jornalzinho maluco, o Star. - Ele curvou o polegar para um dos tablóides expostos junto da caixa.
- Nós realmente vimos uma menina voadora - insistiu o garoto, quebrando mais uma vez o voto de silêncio. - Não foi, Elizabeth?
A irmã lançou-lhe um olhar de advertência, mas o garoto não se tocou. Thomas tinha um ar cético, o que parecia apenas natural. Esperava tirar mais alguma coisa dos guris e era excepcionalmente bom em lidar com eles.
Dois rapazes pararam as bicicletas na entrada do minimercado. Sujos de lama, tinham os capacetes e os tênis do pessoal que faz trilha. Thomas torceu para não terem ouvido nada. Felizmente, foram andando normalmente para os fundos da loja.
- Bailey! - a mãe reclamava. - Bailey! Não sei mais o que fazer com você.
Virou-se para Thomas, alisando o cabelo pintado e enfrentando com timidez o olhar dele.
- Viram o Hook no vídeo a noite retrasada. E o que ele encontra agora? Uma menina chamada Tinkerbell voando sobre a mata, nada mal! Insiste nisso e acho que é uma coisa positiva.
- Sorriu. - É sinal de uma hiperimaginação. Dizem que mais tarde favorece a criatividade.
A voz do garoto explodiu num tom ofendido, furioso.
-Não estou inventando! Vi a garota na mata perto daqueles pés de amoras. Ela disse que se chamava Tinkerbell e que sabia voar muito mais alto que as árvores. Juro pela minha mãe.
Harding Thomas achou que conhecia o lugar a que estavam se referindo. Passara algumas vezes por uma moita de amoras com sua equipe de busca, mas ninguém percebera qualquer traço de Max. Ele atirou duas moedas para a moça da caixa.
- Até mais - disse, mais ou menos na direção da mulher e seus dois filhos.
CAPÍTULO 35
Num Range Rover quase branco, Thomas seguiu a mulher e os garotos. A família tinha uma velha picape Isuzu, amassada, cheia de podres, e a mãe não parecia ter pressa para completar o trajeto do Quik Stop até a casa deles. Nada podia ter sido mais fácil que ir atrás.
E, acompanhando a picape, Thomas refletiu sobre sua vida. Antigamente ensinava ciência natural na Academia da Força Aérea. Era capitão. Um dia o Dr. Peyser entrara em contato com ele e o recrutara para um trabalho. Explicou-lhe seu sonho, que Harding Thomas compreendeu e aceitou desde a primeira hora. E não foi o único. Ainda achava que o sonho, a visão do futuro, valia a pena ser protegido. Por isso estava seguindo a família Ellers desde o Quik Stop.
Quando a picape entrou numa rampa de acesso esburacada e cheia de mato, Thomas entendeu por que a família não tinha pressa de chegar. A casa era uma ruína.
A pintura bege, cheia de bolhas, descascava por todo lado. A varanda da frente parecia arqueada, sugerindo que era meio perigoso passar por ali. A grama em volta da casa tinha pelo menos meio metro de altura, e o nome Ellers quase sumira da caixa de correio.
Quando a mulher saltou com os filhos, Thomas acelerou e estacionou atrás da Isuzu. Ela virou a cabeça, assustada. As duas crianças também.
Harding Thomas pulou do Range Rover, estendeu as mãos, exibiu um grande sorriso. Representava o tio Thomas. Sabia parecer amigo de todo mundo quando era preciso.
- Ei, não se lembram de mim? Não precisam ter medo. Sorriam, vocês acabam de ser sorteados!-Virou-se para a mãe.
- É que eu tive uma idéia sobre o que os garotos viram na mata... E achei que podia lhe interessar.
- Eu não disse que vi - protestou a menina -, mesmo  porque não vi. E meu irmão extraterrestre também não viu. Ele
é um grandíssimo mentiroso, só isso.
- Acho que o senhor... - a mulher começara a dizer alguma coisa.
- Eles viram uma menina de onze anos com asas Harding Thomas deteve-a no meio da frase. - Acredito no que seu filho disse. A verdade é que também vi a garota. Gostaria de contar o que sei e acho que eles podem fazer o mesmo.
Não houve resposta.
- Posso entrar um minuto? Acredite, é extremamente importante. Seus meninos estão dizendo a verdade, por mais estranho que possa parecer.
Harding Thomas mostrou a carteira, onde havia um cartão que o apresentava como advogado do Ministério da Justiça. Ele nada tinha a ver com a Justiça, mas a identidade carregava a força de um encantamento.
A família Ellers devia ser interrogada, e depois, infelizmente, devia desaparecer.
Porque tinham visto Tinkerbell.
Entraram e Harding Thomas procurou tornar o estágio das perguntas o menos ameaçador possível.
- Sei como é esquisito, e meio assustador, garotos! Eu mesmo fiquei um tanto chocado.
- O senhor não quer um café? - perguntou a mulher. Ele não sabia muito bem se o falso cartão de identidade funcionara com as crianças, mas a mãe parecia realmente impressionada.
-Não me chame de senhor. E acho que um café seria ótimo. Tinha acabado de tomar uma xícara quando nos encontramos, mas numa hora dessas não há como recusar outro cafezinho.
A mãe saiu para fazer o café - provavelmente solúvel, mas pelo menos deixaria um instante o caminho livre.
- Podem me chamar de tio Tommy - disse ele, observando os olhos muito abertos das duas crianças.
- Não vimos nada- insistia a menina. - Meu irmão está louco varrido.
- Vimos a menina com asas - o garoto proclamava de queixo empinado. - Vimos quando ela voou!
- Não, não vimos. - A irmã tentava dominá-lo com o olhar.
Harding Thomas deixou o punho cair na mesinha de centro.
- Sim, vocês viram! Viram a garota e a viram voar. E agora vão me contar tudinho em detalhe. Isto é, se não quiserem que eu machuque vocês e a mãe de vocês. Estão vendo os meus olhos? Tenham certeza de que não estou brincando.
As duas crianças, que não tiravam os olhos de Thomas, tiveram certeza. E contaram todos os detalhes da garota com asas.
CAPÍTULO 36
Kit fez o trajeto de sessenta quilômetros entre Bear Bluff e Boulder. Estava realmente começando a se sentir de novo um agente, a se sentir como otomBrennan dos velhos tempos.
Estacionou o jipe preto numa ruazinha congestionada, a algumas quadras do Hospital Comunitário de Boulder. Caminhando para lá, viu traços da celebrada característica da cidade: uma mistura de hippies dos anos 60, yuppies dos 70 e 80, udigrudis e um bocado de gente com aparência relativamente normal, além, é claro, dos autênticos nativos das montanhas Rochosas.
Passou, no entanto, a maior parte do tempo olhando pelo ombro, com medo de que alguém já o estivesse seguindo.
Precisava falar com um certo Dr. John Brownhill na clínica de fertilização in vitro do hospital. Antigamente o Dr. Brownhill mantivera vínculos com dois dos médicos assassinados em San Francisco e em Cambridge, no Massachusetts. Tudo estava registrado nos primeiros relatórios que Kit fizera no FBI.
Sentado na recepção, não pôde deixar de reparar como a clínica era aconchegante. As paredes estavam pintadas de amarelo-claro e havia flores recentemente podadas nas mesinhas das revistas. Era um bom ambiente para as futuras mamães e também para ele, pois do que mais precisava era relaxar um pouco.
- O doutor vai recebê-lo, Sr. Harrison - disse uma recepcionista negra, alta, que parecia alegre e simpática. Aliás, todos na clínica tinham aquele ar tranqüilizador, prestativo. - A sala dele fica no corredor, a primeira porta à direita. O senhor não tem como errar.
Kit seguiu com passo firme o macio carpete bege até a porta do Dr. Brownhill, mas respirou fundo antes de entrar. Aí vamos nós!
Brownhill era uma figura impressionante. Fios prateados começavam a aparecer no cabelo comprido, castanho-avermeIhado, mas a pele era corada e ele parecia estar em excelente forma. Tinha um sorriso franco, tipo Andy Hardy, que desarmava qualquer um. Kit achou que teria modos extremamente tranqüilizadores junto às clientes.
- Confesso que estou curioso, Sr. Harrison. Afinal veio sozinho. Quer se consultar sobre sua esposa? Talvez uma namorada...
Kit ainda não sabia muito bem como devia conduzir a delicada entrevista. Havia um bom número de caminhos a seguir.
- Sou agente do FBI - disse ele numtommeio pomposo, raramente usado em trabalho de campo. - Vim ao Colorado para ajudar numa investigação de assassinato.
Foi uma coisa sutil, que só demorou um instante, mas ele captou um leve tremor sob o olho direito de John Brownhill.
- Não estou entendendo - disse o médico. - Uma investigação de assassinato?
O rosto de Kit não revelou qualquer emoção.
- O senhor veio de San Francisco, não é, onde atendia no hospital da universidade? Outra clínica de fertilização in vitro?
Brownhill assentiu.
- Foi há cinco anos e nunca lamentei a mudança. Mas não sou capaz de imaginar o que o FBI pode querer de mim. Investigação de assassinato? Eu ajudo casais a ter os filhos que eles não conseguem engendrar sozinhos.
Kit espreitou os olhos do médico, tentando avaliá-los.
- Conheceu o Dr. James Kim quando trabalhava em San Francisco?
- Sim, conheci James Kim. Não muito bem. Estivemos na Califórnia mais ou menos na mesma época. Por favor, diga qual é o sentido destas perguntas. Há mulheres grávidas à minha espera.
Kit abanou a cabeça com ar compreensivo.
- Entrevistei o Dr. Kim em maio. Ele esteve envolvido com experiências ilegais na área da baía. E me disse que um médico chamado Anthony Peyser andava escondido aqui, no Colorado. Disse que ambos, ele e o senhor, tinham trabalhado com o Dr. Peyser.
Brownhill sacudiu a cabeça.
- Espere aí! Isto simplesmente não é verdade. Sim, o Dr. Peyser foi acusado de práticas antiéticas no laboratório que supervisionava em Berkeley. Mas não tive qualquer relação com o laboratório ou com as experiências. Nunca fui acusado de qualquer deslize e certamente não estou me escondendo aqui!
Kit baixou a voz.
- Sabe que James Kim morreu? Foi assassinado há uma semana na Califórnia. É parte da razão da minha vinda.
- Não sabia. - John Brownhill parecia genuinamente surpreso. - E sinto pelo Dr. Kim. Mas ainda não sei como poderia ajudar. Não tenho a menor idéia do que aconteceu ao Dr. Peyser.
Brownhill tentou se levantar para sair, mas Kit estendeu a mão.
- Há mais uma coisa, e é importante, doutor - disse ele.
- Que informações teria sobre o Dr. David Mekin? Trabalhou com o Dr. Mekin, tanto aqui quanto em San Francisco. Sei que era amigo dele. David Mekin também foi assassinado. Não parece coincidência demais?
Brownhill se levantou da cadeira atrás da escrivaninha.
- Vai ter de me dar licença. Tenho pacientes à espera. David Mekin era um amigo e eu não gostaria de reviver mais uma vez sua morte.
Kit também se levantou, devagar. Logo, no entanto, estava saindo da clínica com a consciência do dever cumprido.
Vira um médico com uma grande expressão de desconforto, numa atitude de defesa e provavelmente mentindo. Sem dúvida, tinha mexido com algumas casas de marimbondos, e isso era um bom começo.
CAPÍTULO 37
Um resto de azul ficara escuro como breu e tudo se cobrira de estrelas cintilantes. A noite fechara sobre as encostas a leste das Rochosas. A equipe de segurança estava agachada na entrada da clareira, perto da casa de campo.
Com óculos para visão noturna, lembravam uma força de choque da polícia ou do exército momentos antes de desencadear uma ação perigosa.
Tinham a garota. Fora localizada não muito longe da moita de amoras.
A casa era um perfeito refúgio yuppie, um moderno chalé suíço com enormes janelas que davam para as montanhas. Seus donos eram emergentes do sul da Califórnia e só passavam lá os fins de semana.
Harding Thomas inventariou todos os detalhes. Passava um pouco das dez e a escuridão era praticamente total. Exceto pela luminosidade cinza-azulada num dos cômodos do andar de baixo. Mais adiante... uma luz quase branca.
Havia uma televisão ligada e ela adorava TV. Na Escola, costumava chamar a TV de ”mamãe e papai”, sua ”babá”, sua ”colega”.
- Vamos pegá-la agora - Thomas sussurrou para os outros. - Cuidado. Ela tem onze anos, mas é forte. Mais forte que muitos homens. O peito e os ombros foram projetados.
- O que ela é, a mulher maravilha? - alguém perguntou.
- Mais ou menos - respondeu, Harding Thomas. - Vão ver por si mesmos se fizerem algum movimento em falso. Não se iludam achando que é só uma menina de onze anos.
Os degraus de madeira para o primeiro nível da varanda eram praticamente novos, mas rangiam. Harding Thomas circundou os vasos de gerânios enfileirados no patamar. Os patins espalhados, Roces Barcelonas, formariam três pares.
Os caçadores ajustaram os óculos de visão noturna e, fazendo novos rangidos, subiram correndo o outro lance de degraus. Passaram roçando nas cadeiras de metal da varanda, acelerando cada vez mais. Era a mesma equipe que cuidara do Dr. Frank McDonough naquela piscina.
A luz que cruzava o vidro da janela continuava a brilhar, a tremer. Vinha, sem a menor dúvida, de uma televisão. Thomas deu uma espiada e viu uma grande sala de estar.
Só havia lâmpadas fluorescentes, todas apagadas. E um telescópio num tripé. E um videocassete DUB. No estofamento das poltronas, que evocava grandes sacas de café, podia-se ler: ”Produzido na Guatemala, 50-lbs” e ”Produzido no lêmem,
50-Ibs”.
Logo abaixo da janela, havia um sofá com grandes almofadas. Max estava deitada nele. Dormia, enrascada nas próprias asas.
- Graças a Deus - foi o murmúrio muito baixo de Harding Thomas.
CAPÍTULO 38
Max ouviu o range, range, range. O barulho vinha do exterior, da varanda. Mentalmente, passou em revista tudo que havia lá fora.
Mantinha os olhos fechados, mas estava acordada, alerta, sabendo que algo de muito errado acontecia na frente da casa. Tinha cochilado um pouco embaixo daquele velho e meio mofado cobertor indiano. Agora sentia uma sombra fria cair entre ela e a lua.
Foi abrindo os olhos de mansinho, esticando a cabeça e lá estava: tinha sido encontrada pelo tio Thomas. O traidor, o tremendo mentiroso.
Ele estava em pé atrás do vidro da janela. E viera com os comparsas. Três ou quatro. Animais! Caçadores! Matadores!
Então a cabeça e o corpo de Max gritaram: VOAR!
VOE, VOE, FUJA DAQUI!
Mas não havia como voar. Não naquele living de teto rebaixado, entre as quinas da mobília pesada.
Você é forte. Incrivelmente forte.
Mostre esta força!
Então Max deu um salto do sofá, um salto realmente brusco. Uma mesa ficou de pernas para o ar. Revistas começaram a voar: Los Angeles, Variety, Hollywood Repórter, Details.
Uma cadeira de metal jogada lá de fora estilhaçou o vidro da janela! Num reflexo, Max levantou os braços para proteger o rosto. Os cacos e lascas de vidro que explodiam à sua volta chegaram a cortá-la, mas não com gravidade.
- NÃO! - ela gritou com toda a força de seus pulmões. Fiquem longe de mim! Fiquem longe!
O comprido corredor entre o living e o quarto estendia-se na sua frente, convidativo.
Mostre esta força! Desapareça!
O luar, branco como osso, atravessava aporta do quarto. Era aquela porta meio aberta no final do corredor que deixava ver um Jacuzzi estacionado no mosaico verde-limão do calçadão de mármore. Max disparou a toda velocidade e com toda a sua energia para o quarto.
Não olhepra trás! Só ande, ande, ande! É bem mais rápida do que eles imaginam. E talvez, apenas talvez, não estejam querendo realmente matá-la.
A janela do quarto estava aberta - sua portinhola de escape. Ela a deixara assim, justamente para o caso de precisar fugir. Cara, ela ia sempre precisar fugir!
Decolou na metade do corredor. Estava voando, voando em velocidade e dentro de casa, o que parecia além de todo o seu arsenal de truques, de sua esperteza, além de toda lógica.
A dúvida era se conseguiria passar pela janela. Será que ia funcionar? Podia funcionar?
Então se viu disparando pela janela aberta como um míssil com cauda. Só que além da cauda, que pôde passar, havia também as asas, que prenderam na moldura. Lascas de madeira! A dor foi como um punhal no ombro ferido!
- Au! - gritou.
Mas de repente estava voando de novo e, pela segunda vez, havia alguém atirando. Atirando para matar? Ou só para feri-la, capturá-la?
- Vá à merda, tio Thomas! - gritou com toda a força dos pulmões, mas não se preocupando em olhar para trás.-Vá para o inferno!
Ele berrou:
- Peguei o Matthew! Resolvi o problema do seu irmão, está me ouvindo? Volte aqui! Peguei o Peter Pan.
CAPÍTULO 39
Max tremia muito escondida na copa do pinheiro mais alto e mais cheio de galhos que encontrou. Como não conseguia ver os caçadores, imaginava que eles também não pudessem vê-la. Era verdade? Era assim que funcionava? Rezava para que fosse.
E o que era mesmo que o tio Thomas tinha gritado? As exatas palavras? Peguei o Matthew?... Resolvi o problema do seu irmão?
Estariam ali para matá-la? Ou só queriam levá-la de volta à Escola?
Max sabia o seguinte:
Tinham chegado visitantes à Escola, gente que queria encontrar-se com ela e com Matthew, que queria examiná-los cuidadosamente, que queria conversar e... o que mais?
Não podia parar de tremer, não podia fazer os dentes pararem de bater. Batiam com tanta força que chegava a doer. Começou a chorar. Não conseguia parar de chorar. Soluçava como um bebê.
Bebezinho!, zombava de si mesma. Chore, bebê! Chore, bebê! Chore, chore mesmo, até colocar seus olhos de bebê pela boca.
Estava de bruços, apoiada na barriga e nas coxas. Os braços se agarravam freneticamente a um galho forte, cheio de calombos. Logo foi dominada pela exaustão e os olhos começaram a se fechar. Exatamente assim, todos os sistemas foram saindo de ação.
Max dormia. Por vontade própria. Ninguém a fizera dormir. Ninguém a pegara. Pelo menos ainda não.
Quando abriu novamente os olhos, a mente se agitava num torvelinho. Nem podia acreditar que caíra no sono - e por quanto tempo? Questão de minutos? Horas? Onde estariam agora o tio Thomas e os outros guardas de segurança? Seu pequeno bando de matadores?
Ainda era noite e continuava abraçada ao grande galho retorcido, como se ele fosse o melhor e o único amigo que tinha no mundo. A aproximadamente um quilômetro e meio de distância, a casa onde ficara era apenas uma silhueta contra o céu enluarado. Todas as luzes estavam agora apagadas.
Não conseguia perceber qualquer som ou movimento na mata. Não havia caçadores. Nem o tio Thomas.
Só quando teve certeza de que o perigo imediato havia passado, sentiu a dor terrível, a dor aguda de mais uma perda. A casa já não era segura e ela estava novamente sem lar. Desejava que Matthew estivesse ali, uma lembrança que encheu seus olhos de lágrimas.
Peguei o Matthew!
Resolvi o problema do seu irmão!
Tinha de pensar, lembrar o som exato das palavras.
Que acontecera? O irmãozinho estava vivo ou o teriam feito dormir? O pobre Matthew já estaria morto?
O rumor estranho e intenso que penetrou em seus pensamentos foi sempre crescendo em volume. Hummmmmm. O som era esse.
Ao erguer a cabeça, Max viu pequenas luzes atravessando o céu. As luzes foram se aproximando e o barulho ficou cada vez mais alto.
Era um pássaro... um avião ou... Era um avião!
De vez em quando, vira aviões sobrevoando a Escola. American Airlines, America West, United ou jatinhos e pequenos aviões a hélice. Sempre que via um avião, queria voar. Mas estava proibido. Você voa... Você morre! Era a divisa da Escola. Interessante, ha?
As estrelas piscavam, brilhavam por toda parte, e a lua cheia banhava suavemente seu rosto. Era como se o próprio homem da lua estivesse olhando para ela. Parecia um sujeito legal, mas naquele momento Max não confiava em ninguém.
Foi então que teve uma idéia. Uma idéia maluca, talvez, mas tipicamente sua. A divisa também podia ser vista como uma alternativa: ou você voa... ou você morre.
E assim ficou de pé no galho grosso, resistente, balançandose um pouco na sola dos pés. Ainda conservava a confiável sapatilha de bale, que aliás já estava um tanto gasta.
Estendeu as asas, que se ergueram sobre sua cabeça. Inspirou devagar, bem fundo, e soltou o ar. Inspirou de novo, um trago como o primeiro.
- Você voa... você morre - sussurrou.
Ela deu um pulo e voou.
CAPÍTULO 40
Incrível!
O ar da noite, que ela atravessava com a rapidez de um míssil, era frio, úmido, pesado. O ar aderia a seu rosto, deixava o nariz dormente, fazia as lágrimas escaparem dos olhos.
Deus, era tão gostoso, tão magnífico, tão esplêndido voar! Ninguém podia imaginar a sensação. A não ser que a própria pessoa conseguisse voar, coisa que, no entanto, só ela, Max, era capaz de fazer. O prazer de voar em liberdade sobrepujava qualquer pensamento, qualquer outra impressão corporal. E ela simplesmente deixava a coisa fluir. Esticava as asas. O ar, como se por vontade própria, parecia sugá-la para cima.
No lugar dos polegares, as álulas, ou asas secundárias, sabiam automaticamente o que fazer. Num ato reflexo, Max as estendia para fora e imediatamente elas passavam a agir como flapes, drenando o ar através das fendas, restabelecendo o fluxo do ar sobre o topo das asas, ajudando na sustentação.
Continuou subindo, subindo, chegando a alturas onde nunca estivera. Tudo lá embaixo ia ficando muito distante, muito pequeno. Estava quase nivelada com um avião, cujo ronco se aproximava.
O ar em volta dos motores do avião causava turbulência em toda a atmosfera noturna e, pela primeira vez, Max compreendeu o tremendo poder daquela máquina feita pelo homem. Por mais que batesse as asas, achou que não conseguiria sair do lugar.
Então, por uma fração de segundo, estava perto da cabine fortemente iluminada. A vinte ou trinta metros, talvez. Podia ver o interior.
O piloto se virou, e Max achou que ele a tinha visto. Claro, apenas por um instante. Tempo provavelmente insuficiente para ele ter certeza do que estava vendo.
Max deu uma piscadela. Fez uma careta. Adorava brincar e simplesmente não pôde resistir.
Então fechou as asas e fez um fantástico loop que a impeliu para longe do aparelho, eliminando qualquer risco de colisão.
Viu isso, meu comandante? Não preciso de uma máquina fabricada pelo homem para voar. Só preciso de um pouco de espaço no céu.
Fui feita assim.
CAPÍTULO 41
Bati na porta da cabana, a cabana que era minha, a pequena casa onde, um dia, eu e David tínhamos morado. Era a coisa mais estranha que já tinha feito, e olhem que de vez em quando eu gostava de conversar com gansos e esquilos.
Sem dúvida, desde que Kit Harrison ajudara a tirar do aperto, literalmente, um futuro paciente meu, por ele ser muito bonito, achei que era apenas uma questão de justiça aceitar o convite para jantar naquela noite. Ele se comprometera até mesmo a fazer a comida.
Vesti uma camisa de cambraia meio desbotada e calças jeans limpas. Roupas lavadas, semipassadas - dá para imaginar? Até umas gotas de perfume Hermes que um dia havia comprado em Aspen. Para não falar da garrafa de um honesto Pinot Noir embaixo do braço.
Muito, muito estranho. Levar uma garrafa de vinho como presente para minha própria casa.
Quando Kit Harrison escancarou a porta, logo reparei em três coisas: a barba feita, o cabelo cortado, o cheiro do bom e antiquado sabonete Ivory.
- Onde cortou o cabelo?
- Não gosta? - disse ele, parecendo um tanto ofendido. Era espantoso que ele fosse sensível a isso (ou a qualquer
outra coisa). Não parecia o tipo. Se bem que, sob muitos aspectos, ele estava me surpreendendo. Eu fora muito dura no início e Kit parecia ter encarado tudo com naturalidade.
- Cortei num boxe da cidade, um lugar chamado Bob’s Hair. Acha que ficou assim tão mal?
- Não, eu gosto. Acho até que está muito bom... Ficou ótimo, se quer saber. Bob Hatfield fez um grande trabalho!
- Obrigado. - Ele mostrou uma variação do seu sorriso cover detomCruise. Do jeito do Cruise em Jerry McGuire, simultaneamente arrogante e vulnerável. Depois pegou a garrafa de vinho, abriu-a com uma contorção dos braços e encheu dois copos.
- Você é que parece muito bem - disse ele. - Pode acreditar, está linda.
- Obrigado. - De repente era eu quem passava a tímida e vulnerável. Em minha própria casa.
Kit me entregou um dos copos de vinho. Se não estava enganada, eu comprara os copos no Marshall Field’s, em Chicago. Tomei um gole, depois fui até a geladeira e pus umas pedras de gelo.
- Água que dilui o vinho... - disse ele, sorrindo de novo. - Para o jantar não sair dos eixos.
- Não é isso, eu sempre tomo vinho com gelo. - Uma pequena e inofensiva mentira. Nunca havia gelo nas comemorações com David: nem em Boulder, nem em Bear Bluff ou Denver. Ao menos por algum tempo, a vida tinha sido boa para nós.
Na realidade, havia um ano e meio que eu não pisava naquela sala acompanhada de um homem. Ali, a imagem e o gosto de David estavam por toda parte: derramavam-se pelas estantes, pelo sofá familiar, pelotompastel das aquarelas compradas no norte de Wisconsin. Quantas horas eu não passara remoendo a morte estúpida de David! Sim, estava assustada, embora não pudesse dizer a Kit por quê. Também começava a me sentir um tanto culpada, embora não houvesse razão. Não havia, não é?
Fiz algumas observações engraçadas e gentis sobre a raposa e seu estado de saúde. Depois perguntei se não poderia ajudá-lo a acabar de fazer o jantar.
- Acho que tenho tudo sob controle. De qualquer modo, obrigado.
Era mais que um mero controle; Kit parecia estar trabalhando como mestre os peitos de galinha, o tempero de ervilhas com alho, as batatas grelhadas, a salada mista. O cheiro fazia minha língua se levantar nas patas traseiras e implorar.
Ele ficou de costas para mim, o que era bom. Dei um suspiro muito longo e fundo. Parecia inacreditável que estivesse tão ansiosa, tão agitada, com os nervos tão à flor da pele.
Esbarrei por acaso nas nádegas dele quando fui tirar uma baixela de prata da gaveta. Firmes, esculturais, boas para esbarrar de novo, o que me fez novamente respirar com força.
- Onde aprendeu a cozinhar? - perguntei.
- Minha esposa completou o que eu tinha aprendido de minha mãe, que era estritamente especializada em comida italiana. Assim que expandi meus conhecimentos de arte culinária, passamos a nos revezar na cozinha. Virou uma rotina divertida.
Aquilo me fez abrir as defesas. Não pensara nele desse jeito, casado. Ou melhor, não pensara nele de jeito algum. Muito menos com mãe italiana. Não sabe nada a meu respeito, dissera Kit.
- Minha mulher morreu.
- Sinto muito. - Fiquei realmente com pena, pois ele já me comovera com aquela idéia de alternar com a esposa as noites na cozinha. David nunca tinha feito isso.
- Foi há quase quatro anos.
Pude ver a dor estampada em seu rosto. Gostava da esposa, era evidente.
- O que aconteceu, Kit? Se importa de falar no assunto?
- Não, agora estou bem. - Forçou um sorriso. - De vez em quando, é claro, gosto de um visual de mártir.
- Ei, você se julga muito severamente, não acha?
- Acho que sim. Foi um acidente com um pequeno avião. -A voz era tão baixa que mal pude ouvir. Era como se estivesse falando sozinho. - Minha esposa. Meus dois filhos pequenos.
Deixou escapar um suspiro e quase perdeu a firmeza quando continuei a olhá-lo espantada, em silêncio.
A cabana parecia silenciosa demais. O barulho do peito de frango na frigideira e a brisa batendo nas vidraças finas da janela ganhavam um caráter explosivo. Tive vontade de abraçá-lo, de estabelecer algum tipo de contato humano, de fazer a terrível dor e tristeza saírem de seus olhos azuis.
- Eu devia levar todo mundo de carro para Nantucket disse ele. - Férias em família, havia muito prometidas e merecidas. Então tive um compromisso de última hora, porque estava profundamente envolvido em minha, hum, carreira... E eles resolveram ir sozinhos, de avião. - Baixou a cabeça. - O avião caiu entre Rhode Island e Nantucket. Foi em 9 de agosto de 94.
- Sinto realmente muito.
Agora me sentia culpada com meu modo de agir desde nosso primeiro encontro. O juízo que fizera acerca de Kit Harrison estava completamente errado e eu me sentia muito mal com isso.
CAPÍTULO 42
Kit se recusou a ficar muito tempo remexendo no passado; e pelo menos naquela noite eu fiz o mesmo. Acabamos tendo uma hora e meia de conversa descontraída, quando demos boas e honestas risadas. Gostei de sua companhia e deixei-me impressionar com a gama de assuntos que ele era capaz de discutir: curiosidades do cotidiano, educação dos filhos, hóquei profissional, ficção, nãoficção, antigüidades e por aí vai.
A história pessoal também era bastante interessante e o que me contou bastou para aguçar meu apetite. O pai era irlandês e fora motorista de ônibus em Boston; a mãe era italiana, enfermeira num hospital infantil. Os dois, Mike e Maria, ainda vivos e bem de saúde, moravam em Vero Beach, na Flórida. Ele tinha quatro irmãos, ”todos mais inteligentes e mais bonitos”. Estudara no Holy Cross College em Worcester, Massachusetts, graças a uma bolsa de estudos. Depois conseguira completar, ainda que num sufoco, a faculdade de Direito da Universidade de Nova York. Na seqüência, veio o FBI. Kit era um agente do FBI, de férias no Colorado.
Percebi, é claro, que omitia certos detalhes, mas talvez fosse só impressão. Além disso, por que haveria de sentir-se obrigado a contar-me tudo a seu respeito. Só porque tínhamos passado a conversar como amigos?
- Hoje tem lua, vamos sair - disse eu após acabarmos nosso jantar, um jantar que nada ficou a dever aos mais caros restaurantes de Denver. A verdade é que eu ainda não estava com vontade de ir para minha outra casa. - Você falou em beber alguma coisa em Clayton. Por que não hoje à noite? Eu pago.
Kit achou uma boa idéia e fomos em seu jipe até o Vüla Vittoria, um barzinho italiano fechado, onde cansados moradores locais e turistas mais cansados ainda pareciam conviver em relativa harmonia.
Naquela noite em particular, um dos garçons mais velhos estava tocando piano e cantando, se é que se podia chamar aquilo de canto. Eu conhecia o homem, Ângelo, uma pessoa muito gentil, ótimo chefe do serviço, mas constrangedoramente mau como cantor. Era tio do proprietário, o que de certa forma explicava por que o deixavam cantar no meio da semana, em noites como aquela, sem movimento.
Eu e Kit sentamos ao balcão, o mais longe dele possível. Tentamos conversar em meio à excruciante cantoria, mas foi impossível, pois Ângelo tinha microfone. Por fim começamos a rir, tomando cuidado para ninguém perceber o que provocava aquele nosso acesso de risadinhas.
- O homem parece que está morrendo naquele microfone - sussurrei. - Tenho muita pena dele.
- Pelo menos está esvaziando a boate, e bem depressa. Nunca vi música ao vivo com tamanho resultado. - De repente, Kit se levantou do banco. - Guarde o lugar, eu já volto.
Com crescente curiosidade, vi que se aproximou de Ângelo e falou alguma coisa. Os dois começaram a rir conspiratoriamente; depois olharam na minha direção.
Por que me olhavam? Aquilo não me agradava. Não sabia o que podiam estar aprontando.
- Temos um pedido da audiência para cantar Nel Blu dipinto Di Blu, também conhecido como Volare - Ângelo anunciou e fiquei encolhida, imaginando a carnificina que a bela e antiga canção ia sofrer. Ele continuou: - Para me ajudar no vocal, direto do Conservatório de Música da Nova Inglaterra, o Sr. Kit Harrison!
Direto do Conservatório de Música da Nova Inglaterra?
Ângelo tocou uma pequena introdução à velha canção de Domenico Modugno e reparei que, pelo menos no piano, ele não era assim tão mau. Mas e a apresentação de Kit? Será que iam fazer um dueto?
Kit parecia senhor de si ao se debruçar sobre o microfone. Pelo menos tinha um ar bastante seguro.
- Dedico esta canção - disse ele - à Dra. Frannie O’Neill, uma esplêndida médica veterinária, autêntica salvadora de vidas. Espero que minha interpretação pelo menos tente ficar à sua altura,
Balancei a cabeça com ar de modéstia e dei um sorriso nervoso. Honestamente, não sabia o que dizer ou pensar. Nem sobre Kit Harrison, nem, especialmente, sobre o fato de estar ganhando uma serenata dos dois na boate local.
Kit começou a cantar Volare e não foi apenas digno de mim; cantou realmente muito bem. Tinha uma bela voz de tenor e soube controlá-la do início ao fim.
Conservatório da Nova Inglaterra? De verdade ou de brincadeira? Quem seria aquele homem? Todos nas mesas e no balcão tinham parado de falar para ver e ouvir, pois Kit realmente soube impressionar com sua interpretação, conquistando inclusive a atenção dos garotões locais e respectivas namoradas.
No final, houve muitas palmas, assobios de aprovação e algumas mesuras cômicas entre Kit e Ângelo. Depois Kit Harrison voltou para o meu lado no balcão.
- A adorável signora gostou? Estava bom? Não consegui sequer ser irreverente.
- Obrigada, achei incrível, esplêndido*. Estou realmente assombrada... Conservatório da Nova Inglaterra?
- Na realidade um bar pertinho do conservatório. Sparks era o nome. E foi assim, tocando e cantando, que consegui pagar o curso secundário e a faculdade de Direito. No verão também trabalhava no Cape.
Flashback:
Eu e Kit lado a lado, socorrendo a raposa. Ele me convidando para jantar em Clayton. Pequenos atos de generosidade que me despertavam um sentimento de simpatia e me deixavam, talvez, vulnerável demais... e depressa demais. Então a súbita ternura que comecei a sentir já me provocava um incômodo físico. Fiquei também consciente de que, naquele momento, poderia ser facilmente magoada.
- De novo calada? - disse ele. -Não faça isso. Por favor. Não foi esse o efeito que pretendi.
- Só estava pensando.
Não podia dizer, é claro, que estava pensando nele e no efeito que ele exercia sobre mim. Ia dizer outra coisa. Confie em mim tinham sido suas palavras na hora do resgate da raposa e, por alguma razão, eu agora realmente confiava.
- Outro dia - comecei quando nos sentamos -, vi algo interessante na mata... Uma coisa que você vai achar totalmente louca. Nem sei, aliás, se vou ter coragem de dizer a você. A você ou a qualquer outra pessoa.
Fiz uma pausa antes de continuar e Kit parecia um tanto alarmado. Sem a menor dúvida, sua atenção fora conquistada.
- O que você viu, Frannie? Conclua o que ia dizer. Encarei os olhos muito azuis.
Que Deus me ajudasse.
Mordi o lábio.
E se eu estivesse cometendo um erro?
Não sabe nada a meu respeito, ele dissera.
- Vi uma menininha... De onze ou doze anos, eu acho. Uma menina bastante arisca. E agora a parte maluca, Kit. Ela tinha... asas. A menina tem asas como um pássaro.
Com a boca meio aberta e caída, o rosto dele congelou. Tive vontade de engolir minhas palavras, mas não era possível. O estrago estava feito.
- Sei que parece inacreditável, Kit. Mas ela era tão real quanto eu, que estou sentada aqui e agora. Vi uma menina com asas. E vi quando ela voou.
CAPÍTULO 43
Kit teve a sensação de que o alto de sua cabeça acabara de explodir, mas procurou não deixar isso transparecer. Afinal era um profissional, um agente do FBI, uma pessoa sadia e inteligente. Claro, tivera toda razão ao imaginar que havia alguma coisa ali e fizera muito bem em levar a investigação ao Colorado. Como, aliás, a teria levado a qualquer outro lugar se houvesse justificativa. Mas por que cargas d’agua fora retirado do caso pelo Bureau? Não fazia sentido. Oh! Jesus, Frannie O’Neill tinha visto uma garotinha com asas! E fora o que acabara de lhe dizer! O que também era significativo. Significava que não estava envolvida na coisa, não é?
-Quando foi?-perguntou. Não queria interrogar Frannie, mas tinha de saber o que ela vira. Uma menina com asas? Experiências com seres humanos? Que tipo de experiências? O que exatamente estava acontecendo?
- Acredita em mim? - perguntou Frannie, revelando uma expressão dupla: primeiro de surpresa, depois de satisfação.
Kit achou que, ao olhá-lo daquele jeito, ela conseguiria fazêlo acreditar que a terra era plana, que a lua era feita de queijo reno, que existiam coisas como amor à primeira vista, relações felizes para sempre, menininhas que voavam...
- Acredito em você, Frannie.
- Bom, porque vi a menina duas vezes.
A própria Frannie ficou parecendo uma menina ao narrar as duas visões com extrema riqueza de detalhes, forte entusiasmo, emoção evidente. Seus braços chegaram a esvoaçar quando descreveu a garota e contou como ela começara a voar. Tinha os olhos esbugalhados e falava mais depressa que o normal. Nem por um momento houve qualquer expressão de dúvida.
Claro que tanta inocência e exuberância também deixaram Kit com vontade de contar o que sabia, detalhes do caso, coisas que não devia contar a ninguém, principalmente a uma mulher cujo marido podia ter estado envolvido.
Não devo mentir para Frannie. Isso pode prejudicar as relações que vou ter com ela.
- Começamos amanhã - disse ele por fim. - De manhã cedo saímos para procurar a garota Vamos juntos. Vamos achá-la.
- Então realmente acredita em mim? - Frannie parecia um tanto perplexa, talvez um pouco ansiosa.
- Acredito - repetiu Kit com uma boa piscadela. - Fui treinado para saber quando a pessoa está mentindo.
Ele se aproximou de Frannie, puxando-a para seus braços. De leve, muito de leve, beijou-a no silencioso canto do balcão.
E Frannie O’Neill acabou fazendo a surpresa: retribuiu o beijo.
  LIVRO TRÊS
ATIREI O PAU NO GATO, MAS O GATO
CAPÍTULO 44
O barulho de vidro se quebrando interrompeu o silêncio da casa num rico subúrbio de Denver. Um ruído súbito, que tirou o Dr. Richard Andreossi de um pacífico cochilo.
Sam, o bebê, estava adormecido no peito dele, tendo ambos embarcado numa soneca no meio da tarde. Desfrutavam sonhos doces, doces da melhor espécie, com visões de bombons dançando nas cabeças.
Mas o vidro quebrou, fazendo chover estilhaços no piso de tábua corrida. Deus, o barulho estava vindo do escritório!
O Dr. Andreossi tirou Sam do peito cuidadosamente para ele não acordar, e estendeu o menino no berço que fora improvisado com almofadas no sofá.
- Volto logo, grande Sam... - sussurrou. - Continue dormindo. Tranqüilo, rapaz, tranqüilo...
Richard Andreossi precisava cortar um galho que estava batendo na janela do estúdio. Mas andava muito cansado, muito ocupado com as responsabilidades de pai de recém-nascido. Não era fácil deixar de lado a comodidade de seus quarenta e sete anos e se adaptar àquilo, mas Megvvin queria desesperadamente o bebê e agora já não era possível voltar atrás.
Ajustou as largas calças azuis de xadrez em volta da ampla cintura e, ao pisar no tênis creme usado como chinelo, ouviu outro barulho. Parecia um abajur caindo! Droga!
Será que tinha entrado algum animal? Um esquilo? Um passarinho?~Arrastou rapidamente os pés pelo corredor e deu uma espiada.
Enfrentou alguns segundos de confusão antes de apreender o que via; mesmo então, o entendimento não foi integral.
Havia um sujeito alto, musculoso, encapuzado, com uma jaqueta cinza e tênis Nike. Metodicamente ia jogando as coisas no chão, transformando o estúdio numa completa desordem. Desordem, no entanto, que parecia calculada. O homem fazia aquilo de propósito e o Dr. Andreossi reconheceu quem ele era.
- O que veio fazer? - finalmente perguntou Andreossi. Por que está aqui? O que você quer?
O intruso tinha jogado no chão a metade dos livros e das folhas soltas de papel que estavam na escrivaninha antiga, com tampo de correr. O Dr. Andreossi podia sentir o suor rolando pela nuca, pelos lados do rosto.
Avaliou a distância que o separava do invasor. Estava preocupado com sua própria segurança, mas ainda mais com a segurança do pequeno Sam.
- Não vai funcionar - disse o homem. - Não vai ter a rapidez necessária.
De repente, como um atirador de faroeste, o sujeito sacou de uma pistola e apontou-a para o rosto do médico.
- O que está querendo de mim? - A mente do Dr. Richard Andreossi disparava entre uma rede de possibilidades lógicas. Era um homem brilhante, cujo cérebro estava agora operando a plena capacidade.
- Não quero nada, absolutamente nada - disse o sujeito com a arma, uma Smith & Wesson semi-automática. - Já não se pode fazer mais nada. Duas crianças escaparam da Escola. O senhor nos deixou com um problema terrível, doutor!
Então o Dr. Andreossi admitiu o fato de que a hora da sua morte estava próxima. O corpo ficou frio. A cabeça em brasa. As entranhas gritavam: Sam, Sam, Sam!
- Meu bebê? - sussurrou. - No sofá.
- Não se preocupe, Megwin logo vai chegar - disse o matador com um olhar frio. - O garoto vai ficar bem. Não vamos machucá-lo, não somos monstros.
E Harding Thomas puxou três vezes o gatilho.
CAPÍTULO 45
jvlax estava muito assustada, mas decidida a não deixar que o medo a impedisse de fazer a coisa certa. Tinha de agir agora como uma pessoa adulta. Precisava voltar à cena do crime; precisava pegar o rumo de casa. Tinha de ver se Matthew estava lá e investigar uma outra coisa inquietante. Uma coisa importante, não havia dúvida alguma. Algo de que não poderia se esquivar. Pr a casa de novo, pra casa.
Naturalmente, voar à noite, sem o auxílio de um radar ou piloto automático, era superperigoso e talvez não fosse a decisão mais inteligente de sua vida. Certamente ela gostaria que a visibilidade fosse melhor. Além disso estava nublado, ameaçando chover.
Cuidado! Quase batera de cabeça num morro ao sair de uma camada de neblina esfiapada, mas ainda bastante densa. Felizmente conseguira guinar rapidamente para a esquerda, batendo as asas com força e rapidez. Logo se erguia de novo no ar frio, nevoento. Fora por pouco. Por um triz.
Estava pensando na Escola, era impossível não fazê-lo. Soubera pelo ”tio” Thomas que o modelo de funcionamento vinha das academias militares. Também ficara sabendo que o próprio Thomas fora militar, que dera aulas na Academia da Força Aérea, que já tinha inclusive criado os próprios filhos. Ela e Matthew viviam num pequeno dormitório. Tudo na vida dos dois fora incluído num programa rigoroso, sem dispersões: café da manhã, estudo, avaliações, exercício, almoço, projetos de trabalho, estudo, mais avaliações, jantar, estudo, depois cama. Aí repetiam tudo de novo. E de novo. E mais uma vez.
Fora sempre desse jeito até a vinda da Sra. Beattie. Ela fazia os deveres com eles e os submetia a todos aqueles testes irritantes, mas também introduziu um novo, um fascinante conceito: diversão. A Sra. Beattie nunca fora ligada à estrutura militar e ambos gostavam dela. Até que a fizeram dormir.
Mais ou menos na época da vinda da Sra. Beattie houve também outros melhoramentos. Foi instalada uma nova coleção de jogos eletrônicos, assim como um novo computador Apple.
E nos fins de semana tinham trabalhos manuais e o estúdio de arte. Max desconfiava de que ”arte” fazia parte da constante avaliação, mas não se importava. Afinal, só teriam a ganhar se os testes fossem mais divertidos.
A Escola usava tecnologia de última geração. Por exemplo, era uma ”casa inteligente”, onde o computador mantinha tudo limpo, disponível e, é claro, em bom funcionamento. Todas as luzes, termostatos e fechaduras de portas obedeciam a um rígido programa. Tudo sempre monitorado por um sistema de segurança de vídeo. Os guardas usavam os telefones celulares para abrir as portas, até mesmo para liberar um banheiro ou um chuveiro.
Talvez fosse por isso que ela amava tanto a recém-conquistada liberdade.
De repente, viu a Escola lá embaixo. Já estava quase novamente em casa. Voava com facilidade, as asas muito estáveis agora, asas que mergulharam quase verticalmente para o complexo das instalações. Era naquele momento - agora ou nunca. Era pegar ou largar, Máxima.
Mas havia algo errado; ela percebeu imediatamente. Interrompendo o mergulho, bateu com nervosismo as asas e quase estolou, mas conseguiu pousar silenciosamente entre as árvores.
Sentiu a pele formigando de medo no pescoço, nas costas, e se engasgou com um suspiro mais fundo. Não pôde, no entanto, conter inteiramente a respiração ofegante. Deus, Oh! Deus, isto foi o seu pior medo.
Observou vários homens se movimentando no escuro, terríveis uniformes de pára-quedistas entrando e saindo dos prédios. Levavam caixas pesadas para grandes caminhões cinzentos, quase tão assustadores quanto eles próprios. Era como se estivessem de mudança, desativando o lugar, fechando a Escola.
Havia um número muito grande de uniformes rondando pelo complexo. Seria inconcebível chegar mais perto e ainda mais inconcebível penetrar nas instalações.
Depois de ouvir alguns guardas conversando nos bosques, ela se afastou andando furtivamente. Tinha de continuar livre. Era insuportável a idéia de ser apanhada naquele momento. Teve vontade de chorar, mas não podia se dar ao luxo de perder o controle.
Não posso ser apanhada. Não posso! Sou a única esperança, disse a si mesma. Sou a única pessoa que pode contar o que houve.
Deixou que a raiva fosse tomando conta dela e a raiva lhe deu mais energia. Era sempre assim, nunca falhava.
Voltou para o fundo da mata.
Salva por enquanto. Não tinha idéia da hora, mas a manhã não devia estar longe. Havia luz suficiente para ver, e para ser vista, por aqueles vermes que se arrastavam na mata.
Ouviu movimento por perto. Atrás dela. Havia gente ali. Gente que se aproximava depressa.
Max se virou - e percebeu tarde demais que sua interpretação fora errada. A coisa era muito pior do que imaginava. Era o fim. Sem nenhuma saída!
O puma estava perto demais, a menos de três metros. Era cinza e castanho-avermelhado, com cerca de um metro e meio da cabeça à cauda. Devia pesar quase uns cem quilos e tinha parado de se mover quando Max se virou.
Os dois iniciaram então um jogo de sobrevivência. Quem tinha coragem de encarar, de fazer o primeiro movimento, de fazer qualquer coisa além de ficar absolutamente apavorado, revelando este pavor nos olhos?
O grande felino começou a rosnar e ela viu dentes poderosos, enormes, com manchas amarelas e vermelhas. Max não sabia se fora por medo, não sabia se o animal sentira alguma coisa diferente em torno dela; o fato é que o puma ainda não fizera o ataque mortal.
Ela se perguntava se daria para correr e depois, quem sabe, levantar vôo... Talvez ficasse em segurança se conseguisse decolar. Talvez conseguisse sobreviver para contar a história.
O puma continuava com um rosnado baixo, a boca entreaberta. Ambos, no entanto, permaneciam imóveis e se encaravam. Max achava bastante improvável que aquele impasse acabasse com um resultado a seu favor.
Precisava tomar fôlego. Estava sufocando, o que limitava suas opções. Realmente tinha de arriscar!
Começava a tragar vagarosamente o ar... quando o grande gato atacou. Pulara como relâmpago em cima dela. Soubera exatamente quando atacar. Instinto!
Max gritou, mas surpreendentemente foi um grito de raiva feroz, não de medo.
Ela se esquivou com um rodopio - um movimento mais rápido do que achou que seria capaz de fazer, mais rápido que tudo que já fizera.
Sou veloz... como este gato, pensou. E torceu, rezou para ser verdade, e finalmente soube que era.
O grande felino parou e deu uma guinada. Foi um ágil, poderoso movimento de reação, em que as enormes garras atuaram como freios, riscando o chão. Ele parecia um tanto surpreso.
Max deu um forte golpe no lado da cabeça do puma. O animal cambaleou, mas logo investia de novo.
Max, que mostrara rapidamente uma ponta da asa, recolheua com rapidez ainda maior. Depois golpeou novamente o felino, acertando com solidez o maxilar. Nem pôde acreditar no resultado. O animal rodopiou sem controle.
Isto deu tempo a Max de correr alguns passos e levantar vôo. Furioso com a perda da caça, o puma correu atrás dela e pulou, tentando decolar como se também tivesse asas. As grandes mandíbulas estalaram febrilmente, mas só abocanharam um sanduíche de ar.
Max continuou a subir nos degraus de vento até se sentir segura. Então se virou, olhou para o animal frustrado lá embaixo e fez uma careta.
- Miau - ela berrou esticando o vôo.
CAPÍTULO 46
Eu e Kit demos uma batida nos bosques fechados e montanhosos no alto da rodovia ”Pico a Pico”. A Colorado 119 (a estrada chamada ”Pico a Pico”) corre pelos primeiros contrafortes das grandes montanhas que se estendem para oeste. Sem dúvida, nossa iniciativa parecia um tanto fútil, pois éramos como dois cães de caça que tivessem perdido o faro.
Eu nunca fizera esse tipo de coisa. Na realidade, parecia estranho para nós dois, e ainda mais estranho pelo fato de estarmos fazendo aquilo juntos.
Pelo menos mostrávamos grande disposição. Kit vestia uma bermuda verde de corrida e não muita coisa mais. Para suportar o calor e a umidade, já tinha tirado a camiseta com os dizeres Dartmouth Law. Eu enfiara uma bermuda caqui, botas de alpinista e um boné com uma inscrição que me desejava boa sorte; infelizmente, até ali, tal desejo não se concretizara.
A menina tinha de estar em alguma parte, mas onde? Onde eu, por exemplo, me esconderia se houvesse alguém me perseguindo? Como uma menina de onze ou doze anos estaria raciocinando?
Minha curiosidade a seu respeito era agora muito intensa. Eu fora excelente aluna na escola secundária, ganhara o prêmio jovem cientista da Westinghouse e ficara entre os primeiros lugares ao optar pela área biomédica. Se quisesse, poderia perfeitamente ter ingressado numa faculdade de medicina para tratar de pessoas, não de animais. Queria descobrir tudo que pudesse sobre a menina com asas. Quem não ia querer? Quem conseguiria resistir ao desafio?
O agradável frio da manhã cedera lugar a uma típica e sufocante tarde de verão. Minha mochila estava muito cheia, pesada, e eu não via a hora de poder arriá-la, ao menos um instante.
Ouvi Kit ofegando ligeiramente do meu lado e achei ótimo não estar olhando naquele momento para seus olhos azuis.
Na noite anterior, eu o beijara com o coração cheio de sentimento; o resto de mim estava alto, pois tinham sido sessenta dólares de conhaque. Apesar de tudo, sentira algo de diferente nele, uma sensibilidade que eu não encontrara na maioria dos homens, e que, no início, não me permitira reconhecer.
 Talvez ele tivesse se modificado devido ao que acontecera com a esposa e os dois filhos, mas preferi pensar que Kit sempre fora daquele jeito. Por outro lado, como ele mesmo tinha dito: você não sabe quem eu sou.
- O que acha? - perguntou ao atingirmos um ponto elevado da trilha. - Para que lado seguimos? Tem alguma idéia?
Certamente eu estava cheia de idéias.
- Voto pela encosta sul daquele morro. Se eu fosse uma fugitiva, talvez me escondesse onde pudesse ter uma boa vista do vale.
- Aquela encosta? - perguntou ele virando os olhos.
- Fica de três a cinco quilômetros daqui.
- De três a cinco? - ele gritou.
Uma gracinha. Um engraçadinho. Kit era realmente isso, mas tinha um lado sério de que eu gostava ainda mais. Na véspera, à noite, me dissera que não era caçador, se bem que eu ainda não descobrira exatamente o que ele era...
- Podemos chegar em duas horas se estivermos realmente dispostos - disse eu. - Vai ver como é fácil.
- Está bem, capitão. Você manda.
- É esse o espírito pioneiro, Kit Harrison. Assim foi conquistado o Oeste.
Após duas horas resvalando, escorregando, testando nosso equilíbrio em aclives e declives de rocha, chegamos ao lado sul da encosta que dá nome à cidade: Bear Bluff, Penhasco do Urso.
- Vamos dar uma parada - disse ao homem que transpirava do meu lado. Na realidade, Kit ficava ainda melhor com aquele brilho de suor cobrindo-lhe o corpo. Acho que ele também sabia disso. Era uma daquelas raras pessoas que conseguem ser ligeiramente convencidas sem se tornarem antipáticas. Parecia muito autoconfiante, sem dúvida, mas havia também um toque de humildade que me agradava.
- Não precisa me tratar como um garoto mimado - disse ele sorrindo. - Para alguém que veio da cidade, estou mais ou menos em forma.
Sim, está realmente em forma, pensei rindo comigo mesma. Mesmo para alguém que não tivesse vindo da cidade.
Tirei a mochila das costas e consultei o relógio. Faltava pouco para as cinco da tarde. Consegui encontrar duas laranjaslimas na mochila e atirei-lhe uma. Foi um mau arremesso, mas ele conseguiu pegar.
- Bom na rebatida - disse eu, sorrindo como uma caipira idiota. E devo ter gostado de parecer uma simplória. Sem dúv ida, já confiava o suficiente nele para externar aquele meu ego rural.
Enquanto devorávamos as laranjas, que eram doces e cheias de suco, fiquei olhando com atenção em volta, mas nada vi que me parecesse fora do comum. Alguma relva amassada onde provavelmente uma corça tinha dormido. Uma gruta sem profundidade, pequena demais para abrigar alguém. Urubus nos circundando como se fôssemos presas.
O que esperava encontrar ali?
Um ninho aconchegante para a menina-pássaro com uma cama de quatro colunas e uma coleção de Barbies incluída?
Kit se aproximou por trás. Eu cheirava a laranjas e suor.
- Frannie - disse ele em voz baixa. Tinha realmente uma bela voz. Um suave tom de barítono. Seria capaz de ouvi-lo cantar durante horas e já tivera uma demonstração na noite anterior.
- Sim?
Estava apontando para a parte mais íngreme da encosta.
- Olhe. Ali adiante. Não é o que nos interessa? Virei a cabeça na direção que o dedo de Kit indicava.
No meio da encosta, havia um aglomerado de pinheiros e rochedos; sobre eles, uma grande coisa voadora.
Não um falcão. Nem um urubu.
Era o que nos interessava, sem dúvida.
A menina com asas!
Estava planando bem acima de nós, como águia majestosa, só que ainda mais impressionante.
- Deus! - Kit já não conseguia parar de repetir a exclamação enquanto a menina executava círculos grandes e lentos. É de verdade mesmo.
CAPÍTULO 47
Kit já estava em choque, absolutamente assombrado, talvez até à beira de negar o que tinha visto. Ele e Frannie saíram atrás dela
- uma garotinha que parecia normal em quase tudo, menos nas asas e na possibilidade de voar.
Ela flutuava a uns 150 metros de altitude.
E os dois escalavam as encostas em seu rastro.
Tendo às vezes de rastejar por aclives mais acentuados.
Rapidamente descobrindo que a distância mais curta entre dois pontos era... voar.
Kit ergueu a cabeça para a escarpa do penhasco e se perguntou como Frannie conseguia achar lugares onde pôr os pés quando ele via apenas rocha escorregadia oferecendo risco de vida ou, no mínimo, risco de quebrar gravemente um osso. Pusera a camiseta pelo avesso. Como se ela pudesse protegê-lo no caso de uma queda.
Não era um homem de Neanderthal. Não se sentia diminuído quando uma mulher fazia coisas melhor que ele, mas aquilo começava a ficar um tanto ridículo. Frannie não estava somente em boa forma - estava em ótima forma. Atingia quase um nível olímpico naquela disparada por cristas, penedos e vales.
O mais notável era que não se queixava. Ao contrário, era ela quem se mostrava encorajadora e com melhor disposição na maior parte do tempo.
- Não olhe pra baixo - dizia. - Olhe pra mim.
- Eu sei fazer isso - disse Kit. - Gosto de fazer. Mas obrigado pelo aviso. Não parece, mas realmente ajuda. Como é mesmo? Olhar para Frannie. Fazer como ela, certo? Frannie não está caindo em nenhum abismo. Você também não vai cair.
Ao se aproximar da saliência onde Frannie já chegara, a mão de Kit encontrou uma raiz grossa e agarrou-a, enquanto seu pé se introduzia numa fenda estreita. Estava indo bem.
Então escorregou.
Deslizando alguns metros para uma ravina rochosa. Não, Deus, não!
Segurou-se no tronco de uma árvore, num broto que quase quebrou.
Mas que agüentou, graças a Deus!
- Vamos lá, L. L. Bean, você vai conseguir - gritava Frannie lá de cima. - É só tomar cuidado! E não se distrair.
Ofegando, com medo de se tornar uma pilha sangrenta de carne e ossos quebrados, ele voltou atentar, desta vez avançando mais devagar. Kit era assim. Não desistia tão facilmente. Logo conseguia se erguer sobre a borda da saliência rochosa.
Normalmente teria feito um comentário mordaz sobre as advertências de Frannie, mas o fôlego que tinha sobrado não dava para isso.
- Por que me chamou assim? - ele se limitou a dizer com voz ofegante.
- Assim como?
Kit conseguiu ficar de gatinhas e depois se levantar. Finalmente deu uma guinada para perto de Frannie. Ela estava sentada numa rocha, massageando os dedos dos pés - belos dedos compridos, magros, muito flexíveis.
- Por que me chamou de L. L. Bean? Frannie olhou de lado e abanou os ombros.
- Suas roupas, eu acho. São novas e de boa grife, garotão da cidade. Tipo book de modelo da L. L. Bean.
- Está me ofendendo, não acha?
Frannie não resistiu. Curvou a cintura, abraçou os lados do corpo e começou a rir às gargalhadas. As lágrimas chegaram a rolar pelo seu rosto. Ao vê-la desse jeito, Kit também começou a rir, o que dava uma estridência histérica a suas ainda arquejantes e difíceis tomadas de ar.
- Bem, não foi assim tão engraçado - disse Frannie quando pôde falar de novo.
- Eu sei - Kit conseguiu dizer. - Não teve metade da graça. Mas é a situação. Imagine nossa figura aqui em cima.
O que disparou novamente o riso histérico dos dois.
Foi Frannie quem se controlou primeiro, enxugando o rosto com as costas da mão. Logo estava remexendo na mochila e pegando o kit de primeiros socorros que atirou para ele.
- Seu estômago. Há sangue na camiseta. Aaahhh, não suporto a visão de sangue! - ela brincou.
Kit encostou na barriga um pedaço de gaze com álcool sem estremecer. Frannie o observava com uma expressão de frieza.
- Arre! - disse ele quando acabou de passar o álcool. Depois sorriu e, olhando em volta, revistou os morros com os olhos.-Bem, nem de longe conseguimos alcançá-la. Ela sumiu de novo.
- Não paro de me perguntar quem serão os pais - disse Frannie. - De onde ela pode ter vindo, onde mora?
Não houve qualquer comentário de Kit. Só um tremendo silêncio.
Então Frannie cravou os olhos nele.
- Espere um minuto. Já sabe de alguma coisa sobre a menina, não é?
Kit expeliu com força o ar dos pulmões.
- Sei que existe algo em movimento. Eu sou, ha, um agente do FBI, Frannie, como disse a você ontem à noite. Não é por acaso que estou aqui no Colorado. Há três anos venho trabalhando no caso.
- O quê? - Frannie ficou pálida e soltou um jato de palavras: - No caso? Agora sou parte de um caso?
- Calma, não precisa se irritar. Escute com atenção... Tudo começou em Cambridge, no Massachusetts, pelo menos acho que foi lá. Um médico chamado Anthony Peyser estava fazendo experiências com o objetivo de acelerar o desenvolvimento humano.
- Tentando intervir na evolução do homem, Kit? É isso que está me dizendo?
- Algo nessa linha. Não temos certeza. Eu não tenho certeza. Peyser e uma equipe de estudantes escolhidos a dedo se envolveram em alguma coisa de vulto. Houve um certo vazamento e eles tiveram sérios problemas em Boston. Foram acusados de fazer experiências com seres humanos: desocupados moradores de rua, de vez em quando algum estudante precisando de dinheiro extra. O fim justifica os meios, esse tipo de coisa. Provavelmente você já leu como pequenos laboratórios e até mesmo centros de pesquisa em universidades vêm sendo acusados. O exército, por exemplo, tem feito coisas muito questionáveis.
- Sim, já ouvi falar. Quem não ouviu? Mas você já sabia da existência de um grupo de médicos atuando à margem da lei. Foi por isso que acreditou quando falei na menina, certo?
- Eu confio em você, ponto! -disse ele.-Foi por isso que acreditei. Que tal agora confiar um pouco em mim? Combinado?
- Combinado - respondeu Frannie. - E vamos passar a noite acampados aqui.
Era dura quando tinha de ser. Mas de certa forma ele gostava disso.
CAPÍTULO 48
Precisava pensar um pouco mais no assunto, mas já suspeitava de que estava de acordo com o que ele tinha me dito até agora. No essencial, eu já confiava em Kit. Gostava do que via em seus olhos.
- Vou à mercearia - disse quando me virei para entrar no bosque perto de nosso acampamento. - Quer alguma coisa?
Ele brincou:
- O Denver Post, M&Ms com amendoins, um Prozac.
- Você fica encarregado do fogo.
Kit balançou a cabeça, roncou como um homem das cavernas, depois lançou-me outro de seus sorrisos patenteados. Continuava a me sentir um tanto espantada ao ver como nos dávamos bem.
Havia um riacho a menos de cem metros do ponto onde nos encontrávamos. Amarrei uma linha na vara dobrável de pescar que trouxera na mochila. Descendo as rochas com espumas que pareciam ferver e borbulhar, o riacho desaguava no pequeno lago que eu vira da outra vez que estivera lá. Acho que numa caminhada com David.
Havia muitas minhocas no húmus formado pelas folhas junto ao riacho. Pus uma no anzol e atirei a linha na água escura. Fiquei à espera de ver o nosso jantar se aproximar a nado.
Só levei alguns minutos para pegar uma truta colorida. Cortei e prendi na margem aquele pedaço de linha, deixando o peixe na água. Em seguida, tornei a lançar o anzol. A truta teria no máximo uns trinta e cinco centímetros, mas meia hora depois eu ainda não pegara outra e não ia demorar a escurecer.
Uma truta de porte médio. Era ela que teríamos de jantar. Como trouxera alguns tomates e batatas, a coisa não ia ficar assim tão ruim.
Tivera uma estranha percepção, uma espécie de sexto sentido me dizendo que a menina estava por ali. Quando ela aparecera, quase cheguei a acreditar que estivesse caçoando de nós. Quem sabe não nos teria atraído propositalmente para aquele lugar? E nesse caso por quê? Queria que a encontrássemos? Queria nos mostrar alguma coisa? Mas nos mostrar o quê? E onde vivia? Como vivia? Estaria querendo compartilhar algum segredo conosco?
Tirei a truta do riacho frio, matei-a rapidamente com uma pedra, tornei a encher o cantil e voltei.
Encontrei Kit no lugar do acampamento improvisado. O homem do FBI. O agente que estava lá por causa de uma investigação, uma investigação importante, sobre a qual não estaria certamente disposto a falar muita coisa. Bem, seria realmente possível esconder um laboratório ali em cima. Hippies empedernidos não tinham vivido anos escondidos naquelas montanhas?
- Bela fogueira - disse eu, e estava de fato uma beleza.
- O melhor fogo da região.
Ele tirara as batatas da mochila, deitando-as para cozinhar nas brasas. Um selvagem domesticado - que ótimo! Passei-lhe o cantil de água e mostrei o peixe. Kit assobiou, mostrando sua aprovação. Uma mulher de trabalho duro - que ótimo!
Eu estava limpando o peixe numa pedra chata com uma faca Swiss Army e Kit lambia os beiços. Fui eu que falei:
- Podia me dispor a dividir minha truta com você, mas... sob uma condição.
Despertara sua curiosidade. E o sorriso dele estava novamente aceso. Pelo menos eu o divertia.
- Você me conta, sem tentar me enganar, um pouco mais do que está se passando - disse eu. - E ganha a comida.
- Está bem, a senhora venceu, Dra. O’Neill. Mas quero ver a metade do peixe no meu prato antes de falar.
- Combinado.
Coloquei o filé de truta numa frigideira e pousei a frigideira nas brasas incandescentes. O aroma era incrível, de dar realmente água na boca.
Aproximei-me de onde Kit estava sentado e me ajoelhei a seu lado para ver a vista. Como num cenário de filme, o sol caía no horizonte. Eram pinceladas de roxo, rosa e amarelo colorindo o céu.
-Maldição - ele murmurou.-Já não fazem mais um céu como este na região de Boston!
Senti-me estranhamente gratificada, como se fosse eu quem tivesse pintado o pôr-do-sol. Ao menos naquele instante, tudo me parecia uma grande aventura, uma aventura realmente espantosa. Tudo era fascinante.
O peixe não demorou a ficar pronto. Tirei as batatas das brasas e cortei o tomate. Kit pôs tudo nos pratos.
Eu e ele comemos e acompanhamos a cena fantástica do crepúsculo naquela mesa de jantar em pleno céu. Falávamos em voz baixa e sempre comendo. Logo as espinhas do peixe estavam jogadas nas cinzas e eu tomava um café com ele. Como prometera, Kit começou a me falar do que sabia.
Repetiu o que tinha me dito na véspera e adicionou alguma informação nova. Ainda manteria a coisa meio incompleta, o que achava inevitável. A presente crise emanava de um laboratório clandestino de biologia que começara a funcionar com estudantes e alguns professores do MIT no final dos anos 80. Sem a menor dúvida, o laboratório estivera envolvido em experiências com seres humanos. O homem que comandava esse grupo radical chamava-se Anthony Peyser.
Eu disse que jamais ouvira falar dele, pois sem dúvida teria me lembrado do nome. Achei também que não conhecera ninguém que se enquadrasse na descrição feita por Kit.
- Houve denúncias em Boston - disse ele -, mas a polícia não pôde apresentar nenhuma prova significativa. O grupo se mudou para San Francisco, depois para Nova Jérsei. Em seguida, fez uma curta passagem pela Inglaterra, talvez para obter financiamento europeu, e voltou a Boston.
Ele continuou:
- Na segunda vez que estiveram em Boston, consegui pôr as mãos neles, ou pelo menos foi o que eu pensei. Faziam experiências com pessoas sem-teto, gente que, supostamente, estaria sofrendo de doenças terminais. Sem dúvida, ajudavam alguns a morrer um pouco mais cedo. O fato é que todos os envolvidos conseguiram ser soltos sob fiança e depois desapareceram da face da terra.
- Continuam desaparecidos?
- Alguém do grupo fez contato com dois antigos parceiros. Acho que os dois tinham entrado em crise, enfrentando problemas de moralidade e ética. Eu me pergunto por que este ataque de consciência. O fato é que o Dr. James Kim em San Francisco e o Dr. Heekin em Cambridge, Massachusetts, acabaram morrendo. Eles realmente não gostam de quem cria problemas, Frannie. E atuam com objetividade, claro, como se poderia esperar dos cientistas que são.
Não gostei do tom do comentário, mas entendi a idéia.
Kit parou repentinamente de falar e desviou os olhos para o sol que descia no horizonte. Eu sabia que ele só me contara uma parte da história.
Foi então que experimentei uma sensação engraçada, peculiar, estranha, embora logo tenha começado a perceber o que se passava comigo. Sim, não havia dúvida! Estava gostando de ver seu rosto forte, o queixo, os maxilares quadrados. Gostava também da suavidade dos olhos. Aquilo nunca tinha acontecido comigo antes, nem mesmo com David. Eu podia especular como bem entendesse sobre a situação, mas o fato é que estava ficando caída por Kit Harrison. E mesmo assim, caída, me sentia flutuar,
voar...
- E isso é tudo que sabe? - perguntei. - Jura?
- É do que eu tenho certeza, Frannie. E é do que você tem direito por meia truta neste jantar.
- Tudo bem, acho que é justo. Como está o arranhão na barriga?
- Eu jogava rugby no Holy Cross - disse ele -, depois joguei no Boston e nas ligas de Washington. Acho que posso superar isso.
Não gostei da atitude de durão.
- Pôs alguma coisa para desinfetar?
-Não é assim tão grave, doutora. É um arranhãozinho, um esfolado.
Vagalumes voavam sem parar na crescente escuridão. Antigamente eu sabia muita coisa sobre vagalumes, mas não consegui me lembrar de nada. Pensava nos tufos de cabelo dourado no peito de Kit e na escoriação manchando a pele perfeita. Lembrava-me da suavidade de seus lábios, do toque delicado.
Eu estava me virando. Ele estava me puxando. Rapaz...
Não havia animais doentes para me distrair, nada para limpar ou arrumar. Queria um cigarro, ainda que não fumasse. Uma bebida podia servir.
- Acho que eu devia examinar o ferimento. - Não sei a razão, mas falei num sussurro.
Nem pensei que Kit fosse me responder, pois estava muito calado. Mas então ele pigarreou.
- Examinar como médica?
- Não - consegui balbuciar. - Examinar como parceira de viagem.
-Tudo bem-disse ele. - Fico nas suas hábeis mãos. Vou tirar a camisa.
- Hum, gostoso.
Os olhos azuis de Kit tornaram a piscar.
- Dra. O’Neill? Acabou mesmo de dizer ”hum, gostoso”?
- Pode me chamar de Frannie, eu já lhe disse isso. E sim, foi o que eu falei: hum, gostoso...
CAPÍTULO 49
Max apreciava os dois de uma distância segura, ou pelo menos esperava que fosse. Sua mente rodava a mil quilômetros por hora.
Lágrimas quentes desciam pelo seu rosto e ela não conseguia fazê-las parar. Isso a deixou com raiva. Odiava demonstrar qualquer fraqueza e quase nunca o fazia, mas acontecera tanta coisa num espaço de tempo tão curto. Tinha de correr dali. Pior, tinha de voar dali!
Sabia que era estupidez, mas simplesmente não conseguia impedir que as lágrimas corressem. E não tirava da cabeça uma determinada imagem... Sim, ficara chocada ao ver a pedra atingir a cabeça do pobre peixe. A doutora fora tão fria. Exatamente como eram na Escola. Frios, frios, frios.
Como ela teve coragem de matar aquele peixe? De fazê-lo dormir?
Era um ser vivo.
Provavelmente teria filhos e um bom lugar para morar naquele belo riacho lá embaixo.
Agora estava morto porque a doutora o pusera para dormir.
Max sentou-se num galho, tremendo e chorando baixinho. Nunca estaria a salvo naquele mundo e se sentia tremendamente triste e sozinha. Sentia tanta falta de Matthew que não suportava sequer pensar nele. Como o tio Thomas sempre dissera, o mundo fora da Escola era muito assustador. E, sem dúvida, o terror que vivera nos últimos dias não era de desprezar.
Pelo menos encontrara um lugar alto e seguro de onde podia observar o homem, a mulher e a fogueira crepitante, brilhante. Não gostava de admitir, mas o peixe frito tinha um cheiro extremamente bom. Seu estômago roncava, lembrando-a de quanto tempo se passara desde a última vez que algo sólido caíra dentro dele.
Gostaria de ter alguém para conversar.
A doutora e o amigo dela estavam sentados na borda do morro contemplando o pôr-do-sol. E o sol descendo era de fato uma beleza. Como marmelada de laranja e geléia de uva misturadas. C-O-M-I-D-A, ela pensava. G-E-L-É-I-A. Sentada ali, apreciando o mesmo crepúsculo que eles, Max não se sentia sozinha. Estaria fazendo mau juízo dos dois? Será que a ajudariam se chegasse perto e falasse com educação? Às vezes gostava de imaginar que a vida funcionava do modo mais fácil. Mas não era assim. Sabia que não era.
Ficou espiando o homem e a mulher ao redor do fogo. Eles conversavam. Podia apostar que um gostava do outro.
Tinha pensamentos conflitantes acerca da doutora. Queria desesperadamente confiar nela. Era o seu instinto. O problema era aquele não se preocupe, eu não vou machucar você, sempre num tom meloso, tranqüilizador. Sabia que eram palavras para não serem levadas a sério.
O casal estava jantando e Max sentiu uma fome terrível. Ouvia os dois conversando, rindo. Chegava a entender algumas palavras: Um espinho do lado... passando o morro... alguma coisa para desinfetar...
Gostaria de poder sentar com eles e comer pelo menos uma batata cozida. Batatas também eram seres vivos, mas nesse caso ela podia contornar.
Esticou o corpo para observar, para enxergar melhor. O que estava acontecendo agora? O que estavam fazendo?
Enquanto Max contemplava do galho da árvore, a doutora se aproximou do homem, sentou a seu lado e começou a tirar as roupas dele, a camisa primeiro. O homem, no entanto, era maior e agarrou-a! O que estava fazendo?
Ele se deitou em cima da bela doutora, que estranhamente não o empurrou, não ofereceu absolutamente qualquer resistência. Estavam sorrindo, rindo e logo começaram a se beijar.
- Estão acasalando - sussurrou Max.
CAPÍTULO 50
Tinha um estojo de primeiros socorros na mão e me ajoelhei ao lado do Kit. Abri cuidadosamente os botões de sua camisa. Quando cheguei ao que ficava mais próximo da cintura, tive de puxar o amontoado de tecido que havia dentro da calça. Ele estremeceu com a fricção do pano na pele arranhada.
- Desculpe - disse eu. - Desculpe.
- Tudo bem, Frannie. Adoro sofrer.
Contemplei a luz da fogueira dançando sobre bem desenhados músculos do peito e uma esteira de anéis de cabelo claro. Estendi a mão para o tubo de pomada, mas fui desajeitada e quase o deixei cair. A tampa rolou para o chão.
Coloquei um pouco da pasta nos dedos e cuidadosamente encostei no corpo dele. Estranho. Meus dedos tremiam um pouco. Podia ouvir minha própria respiração, bem alta nos ouvidos, mas estava certamente concentrada na tarefa que tinha pela frente.
Tão concentrada que fiquei espantada quando Kit agarrou levemente o meu pulso.
- Machuquei?
-Não-disse ele -, mas acho que perdi acabeça, Frannie.
Ele pôs o braço livre em volta da minha cintura, ergueu-me num movimento suave e, depois de me pousar de costas na grama e nas folhas de pinheiro, me cobriu parcialmente com seu corpo. Sem dúvida era forte, provavelmente tinha uns oitenta quilos, mas também era delicado.
Meus braços estavam no alto, apertando seu pescoço. Kit me puxou e o senti, por inteiro, contra minha coxa. Eu não tinha quaisquer medos ou dúvidas sobre o que estava fazendo, de modo algum. A coisa me pegou de repente e me chocou, é fato, mas eu já sabia que a bola ia derrubar as garrafas.
Quis alcançar sua boca e pouco depois ela foi toda minha, doce e refrescante como eu tinha esperado. Sem dúvida era tudo
Tive vontade de dizer: e daí? Mas em vez de falar senti uma onda de quase insuportável tristeza. Uma pequena partícula de matéria cerebral ainda era racional. Sim, ela me dizia que eu não ia ter relações com Kit e acordar no dia seguinte como se nada houvesse. Eu não esqueceria daquela noite nas montanhas nem esqueceria dele.
Assenti com a cabeça.
- Tudo bem.
- Tudo bem? - disse ele.
- Tudo bem. Você tem razão. Não sei onde eu estava com a cabeça. Vamos parar antes de cometermos um erro fatal.
-Desculpe - disse ele junto ao meu cabelo, suspirando de novo. - Eu realmente quero fazer isto. Estou adorando trepar com você. É só que...
Pus o indicador nos lábios dele.
-Não - disse eu. Ficamos abraçados por um bom e longo tempo, pelo menos o suficiente para os nossos corações baterem mais devagar. Eu tinha parado de desejá-lo - pelo menos tão ardentemente.
Trocamos mais um beijo, desta vez um beijo mais polido, mais civilizado. Para mostrar como podíamos ser amigos, certo? Então eu me levantei e vesti a bermuda.
Encontrei o saco de dormir no monte onde o deixara havia algumas horas e arrastei-o para o outro lado do fogo. Como eu podia ter me sentido tão bem e agora, de repente, estar me sentindo tão insuportavelmente mal?
- Frannie - disse Kit.
- Uh? - murmurei. Minha voz soava pastosa. Uh?
- Traga seu saco de dormir para perto de mim. Hesitei e balancei a cabeça em silêncio. Uma negativa.
Achei que meu orgulho exigia uma pequena distância. Pare? Espere?
- Faça isso - disse ele, e depois mais gentil: - Por favor. Sou o agente especial, está lembrada? Você é a paisana. A arma está comigo. Ficará mais segura perto de mim.
Ah, é. Ele realmente tinha a arma.
Ao diabo com meu doutorado em medicina veterinária. Pouco importava que eu pudesse passar a perna nele, que pudesse deixá-lo para trás numa escalada, que játivesse dormido outras vezes naquelas montanhas sem arma e sem homem. Peguei o saco de dormir e desenrolei-o junto dele. Fiz o que me pedira.
- Desculpe - ele sussurrou antes que eu adormecesse. Desculpe mesmo.
Muito nobre de sua parte, Kit.
CAPÍTULO 51
Kit não pôde acreditar no que os seus olhos viam. As crianças estavam voando. Os dois pareciam uma dupla de anjos, belos e livres.
Fizeram um elegante loop e ele teve a súbita e terrível sensação de que podiam cair no abismo. Mas estavam a centenas de metros, voando na altitude de um pequeno avião.
Olhou ao redor procurando Frannie, mas ela não estava lá. Kit não sabia onde podia ter ido.
Começou a gritar, torcendo para ser ouvido pelas crianças.
- Grande Mike, Tom, desçam já daí. Por favor! Antes que vocês caiam! É o papai. Papai quer que vocês desçam daí!
As crianças não podiam ouvi-lo pois estavam muito alto, muito longe.
Então seus dois garotos começaram a cair - na vertical, como pedras.
Nenhum deles tinha asas. Vinham em queda livre.
Queria socorrer os filhos, mas só conseguiria aparar um deles. Teria de escolher, mas era impossível. Teria de escolher um dos filhos.
De repente, viu Tom e o pequeno Mike baterem horrivelmente no chão. Não fora capaz de salvar nenhum deles. De algum lugar surgiam ambulâncias de resgate, carros da polícia de Rhode Island e os destroços de um pequeno avião.
Estava na cena do pesadelo e dentro do avião fumegante. Contemplava os assentos retorcidos, amassados, os passageiros mortos.
Encontrou a esposa e os dois filhos pequenos no meio dos apavorantes destroços. Tocou levemente neles, sem acreditar que estavam mortos.
E acordou. Era de manhã cedo, um traço rosado tingia o azul do céu. Estava no Colorado. Nas montanhas.
Frannie O’Neill se debruçava sobre ele.
- Xxüii - murmurava. - EJa está ali. Posso vê-la.
CAPÍTULO 52
Max acordou com um terrível sobressalto.
Não sabia quanto tempo havia se passado, mas obviamente adormecera. Era manhã de novo. Tinha o rosto úmido de sereno. Tremia por causa do frio que assolara a montanha entre o pôr-do-sol e o amanhecer.
Sentia-se insignificante, sozinha, completamente abandonada naquela encosta de montanha. Tinha saudades de Matthew e chegava a experimentar, num grau infinitesimal, saudades da sua Escola terrível e abjeta.
Não! Não posso pensar assim. Não vou começar a agir como uma fracassada. Fracassados fracassam!, disse a si mesma. Não sou uma perdedora.
Ergueu a mão para enxugar o rosto e foi nesse momento que sentiu a coisa. Uma espécie de teia de aranha caindo sobre ela. Uf! Ela passou a mão e a coisa irritante, grudenta, se deslocou... mas não saiu de seu rosto.
O que era aquilo? O que estava acontecendo? Arregalou os olhos. Oh, Deus!
Percebeu vultos se curvando sobre ela. Pessoas! Não saberia dizer quantas!
Estavam de pé entre ela e o sol, e Max demorou um instante para entender o que acontecera. Quando entendeu, encheu os pulmões de ar e gritou.
Gritou como uma alucinada, o que assustou as pessoas. Os vultos recuaram e se cristalizaram como a doutora e o homem. Tinham feito a emboscada enquando ela dormia. Desgraçados! Vermes!
Tornou a gritar, mais alto do que jamais gritara em toda a sua vida. Tinha a mente branca de medo. Nem conseguia pensar direito, só sabia golpear freneticamente a rede. O que fazia as cordas repuxarem, prenderem nos seus dedos, nas asas, nas pernas, nos pés.
Oh, Deus, Deus!, O que era aquilo?O que podia fazer? Tinha, tinha de escapar!
Caíra numa espécie de rede para pegar animais. Fora apanhada! Vermes!
Foi recuando o mais que podia até se ver espremida contra a casca de uma faia preta. Folhas trincaram e se esmigalharam quando ela tentou se pôr de pé. Chorava e gritava, batendo furiosamente as asas, ferindo-se e tentando ferir de alguma maneira seus captores. Não conseguia. Eram muito espertos, muito humanos.
A doutora estava falando. Max, no entanto, não podia, não queria ouvir o que ela dizia.
Ninguém ia fazê-la dormir! Ela não ia desistir agora! Não era uma perdedora!
O homem se esticou para tocá-la, mas ela aplicou-lhe uma bordoada na mão. Não esquecera como o tio Thomas costumava agarrá-la para mantê-la sob controle, para fazê-la obedecer.
A mão do homem voltava a avançar. Primeiro disfarçando, depois agarrando. Sujeito dissimulado, infame!
Claro, estava tentando segurá-la e conseguiu. Ela mordeulhe a mão, machucou-o de verdade e ouviu o palavrão que ele disse.
Chutou-o com força com suas pernas fortes. Errou o chute.
- Calma - dizia ele. - Só tenha calma. Jesus, como ela é forte, Frannie!
A mão tornou a se aproximar, chegando perto do rosto dela, querendo alcançar as asas.
Max pensava no tio Thomas. Via o rosto desprezível. Uf.Uf!
Ela cobriu a cabeça, vergou o corpo, transformou-se numa bolinha, mas era impossível escapar daquela terrível rede. A coisa caía em dobras sobre ela e não tinha saídas.
Cometi um terrível engano. Não devia ter ficado aqui observando os dois. Não devia ter relaxado.
A doutora estava falando com ela. Pelo menos tentando. Típico jogo de médico. Sempre tão macio, com tantos cochichos, as mentiras brotando com tamanha gentileza, com tanta facilidade. Exatamente como o tio Thomas e os outros vermes.
- Tudo vai ficar bem. Por favor confie em nós. Por favor, querida. Não vamos machucá-la.
Mentirosos! Vocês estão me machucando. JÁ ESTÃO ME MACHUCANDO!
Max gritava de novo, desta vez ainda mais alto. Não havia palavras, só gritos!
A voz retornava no ar da montanha. Um eco que zombava dela.
Aquilo era tão injusto. Era tão cruel!
A médica tentava chegar cada vez mais perto. Max via alguma coisa em sua mão. Não uma arma, mas uma coisa igualmente má.
Nada disso, era muito pior! .
Sabia o que era.
Uma agulha!
Max não seria posta para dormir.
- NÃO! NÃO! NÃO! SAIA DE PERTO DE MIM! VOU MORDER! VOU MATAR VOCÊ!
Encarava a doutora com todo o ódio e selvageria que pôde reunir. Depois atirou o olhar contra o homem, que estava cercando a rede para vir por trás, sorrateiro. Já não sabia para quem olhar. Não sabia qual deles seria mais perigoso.
Voltou a observar a médica. Depois novamente o homem. Ficava cada vez mais difícil acompanhar os movimentos deles.
A médica começou a berrar:
- Agarre, Kit. Agarre já!
Max teve vontade de pedir socorro, mas percebeu que ninguém ia atender. Não havia ninguém, em lugar algum, capaz de ajudá-la. Com a possível exceção de Matthew. Mas Deus, onde estaria Matthew, onde estaria seu valente irmãozinho?
Tragou mais um pouco de ar e abriu a boca para gritar de novo. O grito nem chegou a passar da garganta.
CAPÍTULO 53
Tínhamos a garota numa ”rede fina”, na realidade duas redes superpostas. Normalmente essas redes eram usadas para apanhar grandes pássaros selvagens que quiséssemos identificar pondo anéis nas patas.
A rede era muito leve de modo que não machucaria muito as asas ou o frisado das penas. Na realidade, antes emaranhava que prendia, impedindo a menina de fazer qualquer coisa além de se sacudir. E como ela se sacudia!
Senti-me à beira do terceiro (talvez quarto) ataque cardíaco nos últimos dois dias.
Estava suficientemente perto da menininha para tocá-la. E foi rapidamente o que fiz. Encostei nela. Tudo bem, era de verdade. Existia mesmo. Era carne, sangue e meus dedos tinham tocado exatamente na asa miraculosa. Embaixo das asas e a elas de algum modo ligados ficavam os braços. Ou seja, a menina tinha membros duplos, que deviam funcionar muito bem e tinham ótima aparência.
Eu estava fatigada, mas ela certamente não, pois continuava lutando furiosamente contra a rede. Lindas penas brancas e azulprateadas flutuavam ao meu redor e eu morria de medo de que ela pudesse se machucar. Estava, sem dúvida, num verdadeiro estado de fúria.
- Tudo vai ficar bem - dizia eu. - Não vamos lhe fazer mal. Sou médica. Está tudo bem.
Ou não me compreendeu ou não acreditou em mim, pois abriu de um modo impossível a boca e gritou novamente. Seu grito era o mais terrível som que eu já ouvira. Havia uma estridência animal mas havia também um meio-tom meio humano que me fazia pensar nos gritos das mamães focas, ou talvez das mamães baleias, quando suas famílias estão em perigo.
Eu me perguntava se a menina teria uma laringe humana, uma siringe avicular ou ambas as coisas. A siringe não tinha cordas vocais, só um saco no fundo da traquéia. Ela se contrai para forçar o ar a sair. Quem sabe eu não a estaria ouvindo a pleno vapor.
Escutá-la me feria os ouvidos. Meus olhos, contudo, nunca se davam por satisfeitos.
Exatamente como eu tinha pensado... Quase tudo nela era, digamos... humano, mas não nas proporções convencionais. Os olhos redondos, incrivelmente intensos, pareciam inteligentes ou, pelo menos, muito concentrados. O cabelo era louro claro, bastante comprido e caindo bem abaixo dos ombros. Algumas penas também eram louras, o que fazia sentido, pois penas e cabelo eram feitos do mesmo material, ceratina.
Enquanto eu não me fartava de apreciá-la, a menina aplicava murros na direção de Kit.
Dei realmente uma boa olhada nos seus apêndices misteriosos, absolutamente incríveis. Havia músculos e articulações como nos braços humanos, mas os antebraços eram mais curtos. Os dedos, alongados, pareciam cobertos com penas até as últimas juntas.
Porque eram feitos para voar, Frannie!
Jesus, Jesus! Ela era um milagre, não podia existir, e contudo... lá estava! Eu me perguntava como podia ter acontecido. Como ela podia estar ali. Como eu podia estar ali, na frente dela.
A bela plumagem das asas tinha uma brancura muito pura e, sob as primeiras luzes da manhã, pude ver o brilho, a cintilação azul e prateada. Uma estranha sensação se apoderou então de mim - quase uma sensação de inveja. Pois ela era tão bonita e tão abençoada pelo dom de voar!
Aquela menina podia fazer o que todos nós gostaríamos: voar. Como em nome de Deus acontecera uma coisa dessas? Seria mesmo um milagre a menininha? Seria um anjo? Não.
Porque os anjos podem desaparecer, podem escapar de uma rede.
Consegui me libertar daquele transe nos meus pensamentos íntimos. Era a hora errada e o lugar errado para devaneios.
A menina entrara em pânico. Poderia machucar as asas, assim como poderia facilmente passar a um estado de choque. Já vira animais morrerem de medo. Seus corações pareciam simplesmente explodir.
Quando Kittentou tocá-la, ela se sentiu obviamente ameaçada por aquela mão indo em sua direção. Quando eu tentei, ela também ficou em pânico, mas de um modo menos frenético, o que talvez estivesse me sinalizando alguma coisa... Sim, mas sinalizando o quê? Teria sido maltratada por homens? Onde e por quem?
- Fique segurando a rede - eu disse a Kit. - Tome conta.
Corri o mais depressa que pude para o lugar onde tínhamos acampado. A menina de asas teria de ser subjugada e só Deus sabia como isso ia depender de uma agulha em sua veia. Só Deus sabia, porque eu ainda não percebera inteiramente.
Quando voltei momentos mais tarde, a situação estava exatamente como antes: terror, histeria e o rosto da criança cada vez mais vermelho, com veias perigosamente salientes. Eu disse a Kit que ela teria de ser contida o mais depressa possível.
Ele disse alguma coisa sobre armar no meio de campo e eu tinha visto suficiente futebol nas tardes de domingo para perceber a intenção. Comecei a falar novamente com a garotinha. Na realidade me limitava a produzir murmúrios musicais, sons para acalmar, o tipo de ruído que a pessoa faz quando está tentando se aproximar de um cavalo apavorado para agarrar o cabresto. Eu imitava um pássaro canoro.
Kit se colocou atrás da garota. Bom, bom. Se ela continuasse a olhar para mim...
Esperei até o último momento para tirar a seringa.
Mas a menina viu e gritou de novo, dando murros no ar. Nesse momento, Kit executou um rápido e desesperado mergulho. Num lance que teria deixado orgulhoso qualquer campeão do Green Bay Packers, agarrou-a no momento exato em que ela ensaiava um pulo e rolou com a menina aninhada nos braços, amortecendo com precisão a queda.
Tínhamos pegado! Tínhamos pegado!
E agora?
CAPÍTULO 54
Foi como se eu estivesse assistindo a um sonho ao mesmo tempo aterrador e fascinante, um sonho do qual eu fazia parte e no qual não acreditava de todo. A menina resistiu a Kit como um homem adulto. Era incrivelmente forte, valente, mas também obstinada, sempre decidida a escapar. Quem sabe isso não traria alguma pista, por mais estranha que fosse, sobre suas origens ou, pelo menos, sobre o modo como conseguira fugir.
Felizmente, Kit era mais forte que a maioria dos homens e fazia parte daquele um por cento que parecia conhecer a própria força. Soube dominar a menina sem machucá-la. Ela era forte, mas também devia ser leve... para voar. Especulei que talvez os ossos fossem ocos.
Dei imediatamente um salto e espetei a agulha. A droga derrubou-a como um peso morto. Seus gritos estridentes ainda faziam eco nas encostas e pairavam no ar, mas iam ficando cada vez mais fracos.
Então ela apagou.
Só percebi que Kit fora mordido quando o vi agachado com a mão direita enfiada sob a axila esquerda. Isso não era nada bom; podia até ser muito mau. Peguei a mão e examinei a marca da mordida. A menina deixara uma perfeita impressão dos dentes superiores e inferiores, mas não chegara a rasgar a pele, graças a Deus. Será que não tivera a intenção de feri-lo? E se foi isso, por quê?
- Tem certeza de que está bem? - perguntei.
- Estou ótimo, Frannie. Cuide dela.
Respirando fundo, comecei a trabalhar. Ajudada por Kit, tirei a maior parte da rede de cima da menina e examinei-lhe o pulso. Tinha as sessenta e quatro batidas normais por minuto. Estava dormindo profundamente, embora eu não soubesse por quanto tempo.
Comecei a tirar fios molhados de cabelo de seu rosto. Havia olheiras roxas sob os olhos e os lábios estavam secos, rachados. De novo fui visitada pela assustadora sensação de que aquela criança sofrerá algum tipo de abuso físico. O que dava um nó em meu estômago.
- Por quanto tempo ficará desacordada? - perguntou Kit.
- Não tenho certeza, mas se o metabolismo funciona no mesmo ritmo, digamos, do metabolismo de um cachorro grande, ficará apagada por duas horas. Tudo bem, pelo menos acho que é isso...
Ele balançou a cabeça e continuamos a observar a garota em silêncio. Parecia impossível deixar de apreciá-la. Eu me perguntava o que Kit teria na cabeça, o que sabia. Parecia absorto, talvez atordoado. Pus minha mão em seu ombro.
- Vamos descer com ela - disse eu.
Experimentei uma poderosa fantasia de escola dominical: talvez aquele pequeno anjo fosse um mensageiro de Deus, mas... nesse caso qual era a mensagem? E a quem se destinava?
CAPÍTULO 55
Harding Thomas parecia furioso, absolutamente fora de si. Chutou com força o monte de cinzas no lugar onde a fogueira fora acesa. Uma nuvem de fuligem saía do chão.
As brasas estavam frias e não se podia dizer quanto tempo havia que a fogueira fora apagada ou quem estivera lá.
Mas ele achara uma comprida pena branca no chão. Max estivera por perto, talvez não houvesse muito tempo
Virou-se para Matthew, sua isca num plano que, pelo menos até aquele momento, não parecia estar dando certo.
- Ela já está perdendo as preciosas penas.
- Pode crer-disseMatthew num tom de escárnio, embora houvesse medo em seus olhos; ele sabia-, só que é mais esperta que você, mil vezes mais.
- Talvez sim, mas logo vamos achá-la. Não está longe. Thomas pôs a pena branca na aba do boné e puxou um
celular do estojo de couro que levava na cintura. Não queria fazer aquela chamada, mas era indispensável. Era seu dever. Digitou alguns números e foi conectado.
A ligação parecia clara como o ar da montanha. Thomas pesou e mediu cada palavra ao falar com a pessoa na outra ponta da linha.
- Max ainda está aqui, não à vista, é verdade, mas estamos muito perto. Talvez, infelizmente, esteja recebendo ajuda. Alguém pode tê-la encontrado na mata ou pode ter sido encontrado por ela. Não, não tenho certeza, e não sei quem poderia ser. Talvez gente que estivesse acampando ou caminhando. Logo vamos descobrir. Infelizes filhos-da-puta, sejam lá quem forem.
CAPÍTULO 56
A dose de cetamina tinha se dissipado e a menina estava literalmente derrubando as paredes. Minha cabana ficava longe o bastante de qualquer coisa para alguém ouvir os golpes violentos, as pancadas altas, mas eu podia escutar. Kit podia escutar. Não estávamos preocupados com o barulho. Estávamos com medo de que ela se machucasse.
Sentei-me ao lado da porta do quarto de hóspedes. Falava com ela através da porta, procurando acalmá-la.
Naturalmente, eu não tinha idéia do que dizer, por onde começar, ou mesmo como me comunicar com ela. Mas sabia que aquela seria provavelmente a mais importante conversa de toda a minha vida.
- Meu nome é Frannie - comecei, tentando parecer o menos ameaçadora possível. - Gostaria de ser sua amiga.
Quero ajudá-la. Desculpe o que aconteceu lá em cima na montanha.
As pancadas pararam um instante, depois recomeçaram, ainda mais altas, mais selvagens, mais raivosas.
- Estou realmente muito chateada com o que houve, minha querida. Sei que não acredita nisso, mas está em segurança. Tivemos de capturá-la para conseguir ajudar. E não gosto de estar retendo você contra a sua vontade.
Os chutes, os murros, os gritos estridentes e frustrados continuaram. Eu não tinha idéia se ela estava entendendo alguma coisa do que eu dizia. À primeira vista, sem dúvida, parecia que não.
De qualquer modo continuava falando.
Falando muito devagar, com calma, expliquei que era veterinária, uma médica que cuidava de animais e que se interessava por eles. Era realmente verdade, mesmo que implicasse um autoelogio. Talvez fosse um bom fio para iniciar um diálogo.
- Queria saber alguma coisa a seu respeito - disse eu. Desde que a vi pela primeira vez, naquela noite na estrada, tenho me preocupado com você. Tenho certeza de que está com fome. Não é verdade? Não sei se existe alguém que goste de você e esteja agora à sua procura...
Ela ficou um momento em silêncio e suspirei de alívio. Será que finalmente entendera?
Então a barulhenta comoção foi reiniciada. A garota passou a chutar as paredes e cheguei a ficar com medo de que o lugar viesse abaixo. Se eu achava que ela antes fora selvagem, frenética, agora parecia realmente alucinada. Soltou um guincho tão alto que podia ter estilhaçado um vidro laminado. Que siringe a dela!
Baixei minha voz. Nem mesmo sabia se ela era capaz de me ouvir, mas comecei a falar de novo.
- Está com fome? - perguntei. - Meu amigo é um ótimo cozinheiro e está preparando o almoço. Espaguete com molho de tomate. Gosta de espaguete?
Parei de falar; parei de respirar.
E ouvi o nítido som do soluço. Não mais um grito histérico, antes um choro exausto, pungente, um som que me partia o coração.
Ela compreendia? Às vezes parecia que sim, mas eu não tinha certeza. Eu realmente queria ajudar. Estranho... Porque também queria que a menininha gostasse de mim.
Sabia o que tinha a fazer em seguida. Respirei bastante fundo e soltei lentamente o ar.
- Vou abrir a porta. Prometo que não vou machucá-la. Eu prometo, prometo... Não me machuque, está bem?
Abri a porta, apenas uma fenda, e dei uma olhada. Ela estava enrascada na cama, apertada contra a parede. Parecia uma pilha, incrivelmente tensa, pronta, talvez, para saltar sobre mim. Deus! Passou-me na cabeça a idéia de que era maior que alguns felinos.
Não tenha medo dela, pelo menos não demonstre.
Resvalei cautelosamente para dentro do quarto. Minhas pernas eram definitivamente um meio trêmulo e nada confiável de transporte. Minha boca estava seca.
Então fiz o impensável. Fechei a porta atrás de mim.
Frannie, a imbatível.
Ajoelhei-me para não me debruçar sobre ela. Os animais se sentem menos ameaçados quando faço isso. Que me importava se eu ficasse completamente exposta, de todo vulnerável a um ataque... De qualquer modo, não acho que ela fosse correr atrás de mim.
Vi lágrimas rolando pelos dois lados de seu rosto e a expressão era terrível, incrivelmente triste, esgotada. Ela estava fungando, soluçando, chorando, tudo ao mesmo tempo. Parecia tão humana e parecia estar sofrendo tanto. Partia meu coração e eu não sabia o que fazer para ajudá-la.
Só uma menininha. Completamente sozinha e obviamente triste. O que tinha havido com ela?
- Ah, meu Deus - eu disse em voz baixa. - Quem dera eu soubesse o que fazer por você, meu bem! Realmente, realmente não vou machucá-la. Nem o Kit.
A menina enxugou o rosto no braço. O gesto era familiar e tranqüilizador, muito humano, infantil. Ela ainda me encarava.
Os olhos, brilhantes e verdes, com as lágrimas quase transbordando, eram extremamente bonitos.
Então abriu a boca pequena. Como se estivesse tentando comunicar alguma coisa. O que seria?
- Quero um pouco de espaguete, por favor.
CAPÍTULO 57
QUERIA UM POUCO DE ESPAGUETE, POR FAVOR.
A menininha podia falar.
Kit precisava ver aquilo. Sem demora. Queria que visse e ouvisse. Bom Deus Todo-Poderoso! Queria que a totalidade do mundo civilizado ouvisse.
Nesse exato momento, Kit gritou:
- Frannie, o rango está pronto.
Não tenho a menor idéia de como pode ter sido a expressão do meu rosto. Mas eu estava lutando para manter o controle quando disse à menina:
- Não quer se sentar à mesa conosco? Esse é o Kit. Acho que o espaguete está pronto.
- Queria lavar as mãos - ela sussurrou.
Lavar as mãos? Estávamos realmente iniciando uma conversa. Estávamos, não era? Meu Deus!
- Só um minuto - gritei para o Kit. Ele não fazia idéia! Minha voz era um grasnido abafado, mas achei que tinha me ouvido.
Abri a porta para a menina e ela passou. Eu lhe pedira para confiar em mim; tinha de mostrar alguma confiança também. Ela deu alguns passos, depois se virou.
Hesitava. Havia uma pergunta em seus olhos.
- Ah, claro - eu disse sorrindo. - Vire à direita.
Ela me devolveu o sorriso. A menina sorriu e me conquistou. Era realmente bonita e também charmosa. Uma menina, pelo amor de Deus! Não podia ter mais que onze ou doze anos!
Dei-lhe uma toalha de banho e uma toalha de rosto limpas.
- Obrigada - disse ela, fechando a porta do banheiro. Ouvi-a usar o vaso sanitário e achei fantástico. A água correu na pia, depois parou. Kit não ia acreditar. Puxa, eu mesma quase não acreditava!
Pouco depois, a maçaneta do banheiro virou lentamente e a menina abriu a porta. Saiu devagar, primeiro espreitando com cuidado pela fresta. Deus, havia outra coisa! Seus olhos investigavam os meus; eram olhos inteligentes! O rosto fora lavado até ficar rosado e brilhante. Que belezinha ela era! Como afinal acontecera um milagre desses? Como podia ter acontecido?
- Vamos - disse eu. - Venha comer.
- Espaguete? Ou o rangol - ela perguntou e sorriu. Eu também sorri.
Claro. Fizera uma brincadeira.
- Você é engraçada, que ótimo.
- É. Sou uma gracinha. É o que eles dizem. Eles? Que ”eles ”afinal seriam esses?
- Por aqui. - Apontei. - É só seguir o corredor.
CAPÍTULO 58
Quando nós duas entramos na minúscula sala de jantar, Kit trazia um jarro cheio de refresco para a mesa. Quase deixou cair o jarro, mas conseguiu apará-lo quando ele já embicava para o chão. Boas mãos.
Recuperou admiravelmente o sangue-frio. O grande agente. Pousou cuidadosamente o jarro na mesa e enxugou as palmas das mãos no lado da calça.
- Ei, pessoal - disse -, acho que resolvemos nossas pequenas diferenças.
- Talvez - disse a menina. - Vamos ver.
Vi o queixo de Kit realmente cair quando ela falou. Uns dez centímetros de queda.
- Ô, bem, é ótimo ouvi-la!
Era espantoso que a selvagem criatura de poucas horas atrás, a mesma que tentara quebrar os ossos dele, a mesma que o mordera estivesse agora conversando. E que fosse espirituosa e engraçada.
Onde aprendera a falar, a se comportar? De onde viera?
- Este é meu amigo Kit - disse eu.
- Alô - ela cumprimentou num tom amável. - Você é o cozinheiro, certo?
O queixo de Kit tornou a cair. Ele balançou a cabeça.
- Sim, sou o mestre-cuca e um fazedor de refrescos. Puxei uma cadeira e a menina se contorceu e sentou.
- Obrigada. - Também era educada.
Fui até a cozinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo ir até lá. Sozinha, tentei controlar os pensamentos, achar um freio. Logo estava levando atravessa de salada, os pratos, os guardanapos e um prato fundo para a menina. Coloquei tudo na mesa.
Meus braços, minhas pernas, minhas mãos pareciam estranhamente desconectados, desconjuntados. As mãos ainda por cima tinham ficado pegajosas. Era como se meu corpo estivesse perdido no espaço. Também sentia uma pequena ardência na vista. Fora isso, tudo bem.
Não consegui despregar os olhos dela enquanto tentava mexer a salada.
- Kit... - disse eu.
- Sim, Frannie? - ele me olhara sem compreender.
- O espaguete. Há gente morrendo de fome.
-Ô, certo. -Ele tropeçou numa cadeira, endireitou-a e foi até a cozinha. Logo estava de volta com a tigela fumegante do espaguete.
Enquanto isso, a menina observava cada movimento nosso. Eu ainda tentava mostrar indiferença, embora me perguntasse se pelo menos um deles não estaria escutando meu coração. As batidas lembravam uma bomba num velho poço de petróleo. Será que a menininha realmente confiava em nós? Será que não ia se levantar bruscamente da mesa? Para tentar, por exemplo, fugir da cabana?
- Posso pegar o seu prato? - perguntou Kit, parecendo incrivelmente calmo.
Ela assentiu e Kit puxou delicadamente o prato, encheu-o ao máximo de espaguete e derramou o molho de tomate. Depois sentou-se perto de mim. Serviu a mim e, finalmente, a si próprio.
Com olhos verdes, perfeitamente redondos e brilhantes, a menina o observava. Era como se estivesse esperando alguma coisa. Esperando o quê? Estávamos atentos a cada palavra dela. Como seria possível não estar? O que ia nos dizer agora? O que teria para revelar?
- Vá em frente - disse Kit, sorrindo com aquele seu jeito fascinante. - Coma, por favor.
- Comer o rango - disse ela num tom absolutamente inexpressivo.
Kit não entendeu, mas nós duas rimos de novo. Não era apenas inteligente, mas tinha um bom traquejo social. Onde o adquirira? Onde fora criada? Sem dúvida não era a primeira vez que se via entre adultos.
Ela cruzou apertadamente as mãos sobre a mesa e fechou os olhos. Sua voz era pouco mais alta que um sussurro:
- Obrigada, Senhor, por esta boa comida, por este excelente espaguete. Amém.
E lágrimas brotaram de meus olhos.
CAPÍTULO 59
Max se jogava para frente e para trás na antiga cadeira de balanço da varanda, exatamente como uma menina comum numa bonita manhã de verão.
Estava com o walkman, ouvindo Meredith Brooks cantar um pequeno rock chamado Bitch. Sentia-se calma, pelo menos mais calma. Queria confiar nos dois, mas continuava com medo, meio paranóica, meio pirada.
Com medo de sua própria sombra, não é, Máxima?
O homem alto e louro chamado Kit estava dentro da casa, conversando com alguém ao telefone. Não sabia muito bem quem era ele. Fazia realmente um bom espaguete (o melhor que já provara), mas isso não significava que pudesse lhe confiar o que sabia, seus mais negros, mais profundos segredos, a verdade e nada mais que a verdade a respeito da Escola.
Frannie saíra para dar um passeio, dizendo que estaria de volta em cerca de dez minutos, talvez mais cedo. Prometera trazer uma surpresa. Era esperar para ver se voltaria mesmo tão cedo... e qual era surpresa.
Max sabia que nem todas as surpresas eram boas. Eufemismo do ano! A maioria das surpresas de sua vida tinham sido de arrasar.
Queria ser ajudada por Frannie e Kit, mas precisava descobrir se eram de fato pessoas decentes, se seriam dignos de sua confiança. Sem dúvida gostava do fato de que pareciam confiar nela, o que tornava a coisa mais fácil. Frannie tinha dito que ela podia entrar e sair de casa quando muito bem entendesse. Frannie parecia realmente simpática, de convivência agradável. O mesmo se aplicava a Kit.
Aporta de saída da Escola estava sempre trancada, Max se lembrava, sentindo um tremor pelo corpo. Mas recordações inundavam seu cérebro.
Ela e Matthew chamavam a Escola de Cadeia Sem Teto. Duas boas razões. A primeira era que os dois queriam desesperadamente fugir do que consideravam uma prisão. A segunda era que os pousos e decolagens estavam interditados lá dentro. Ou seja: Cadeia Sem Teto. Um protesto!
Max também fora absolutamente proibida de sair da Escola Sob pena de ser posta para dormir.
Mas ali estava. Desperta. Esperta. Ouvindo Bitch.
Na única vez que os guardas deixaram uma porta aberta, na única vez que cometeram um descuido, ela e Matthew tinham escapado (tinham puxado o carro e feito a festa, como dizia Matthew).
Encaixando os joelhos sob o queixo, admirou como suas pernas ficavam bem na calça preta e justa que ganhara de Frannie. Também gostava da grande camisa azul que Kit lhe emprestara. FBI- era o que estava escrito.
Teve um pensamento de desconfiança. A camisa azul cobria suas asas para que não pudesse voar.
Mas estava limpa, cheirava bem e não queria voar. Não de imediato. Queria ficar sentada na velha e rangente cadeira de balanço, ouvindo o rock, comendo biscoitos de chocolate recheados até eles saírem pelo nariz. Deus, biscoitos ilimitados! Que idéia.
O rock continuava e ela gostava do ritmo, que parecia se emparelhar com as batidas de seu coração. Eraesse o truque, não era?
Estava pensando que se a ”surpresa” de Frannie fosse boa, talvez ela lhe contasse um dos segredos a respeito da Escola
Mas só um.
Talvez sobre Matthew.
Ou talvez sobre Adam. Se não fosse melhor começar pela pobre Eve...
Terrível, terrível a noite em que fizeram os dois dormir.
Talvez Kit e Frannie pudessem ajudá-la a encontrar o Matthew.
Suas mãos cerraram-se involuntariamente. O terreno era muito perigoso, e ela continuava perturbada ao extremo. Podia se meter em problemas ainda maiores se falasse.
As pessoas podiam morrer. Primeiro ela, depois qualquer um com quem tivesse conversado.
CAPÍTULO 60
Pip estava me puxando pelo bosque como se fosse a locomotiva de um trenzinho desgovernado. O apito era um ganido que tocava muito perto e muito longe. Tudo parecia um sonho, mas definitivamente não era.
- Espere, seu maluco! - eu gritava, mas Pip me ignorava completamente.
Eu carregava todo tipo de coisa na mochila: roupas para Max, uma bolsinha preta, uma câmera 35 mm - e Pip estava decidido. Queria chegar imediatamente à cabana.
Por fim, a coleira escapuliu da minha mão e ele continuou em disparada, arrastando a corrente, ganindo como um alucinado.
- Venha cá, seu merreca! Pip!
A menina não tivera a menor chance de ouvi-lo com aquedes malditos fones na cabeça. Larguei a mochila e corri, mas era tarde. Pip já estava em cima dela. Meu Deus! Será que ela ia entender que Pip era apenas um cachorrinho de nada, ansioso demais? E que não havia nenhuma razão para ter medo?
Então pude ouvi-la rindo e o cachorrinho brincalhão ganindo, o que parecia o mais belo som do mundo. Foi o que bastou para me deixar novamente animada.
Kit veio voando pela porta da frente no momento em que atingi a escadinha da varanda. Parecia preocupado, mas logo teve a percepção correta do que estava acontecendo.
- Era esta a surpresa? - perguntou a menina enquanto o naco de cachorro se contorcia e a lambia de cima a baixo.
- Pip, tenha modos! - disse eu. - É, ele é a surpresa.
- Temos cachorros na Escola - disse a menina. - Bandit e Gomer.
Olhei de relance para Kit. Deixaríamos os presentes da mochila para mais tarde.
- Este é o Pip. É um bom filhote.
- Alô, Pip - disse a menina sorrindo.
Ela pegou uma vareta e Pip se iluminou; armava o bote, sacudia o pedaço de cauda e gania como a coisinha maluca que era.
A menina ficou um instante pensativa.
- Eu me chamo Max - disse por fim e era a primeira vez que ouvíamos seu nome. Ela atirou a vareta - Pip, vá pegar!
CAPÍTULO 61
Precisava examinar Max para saber se havia ferimentos ou seqüelas provocadas por falta de alimento. Não via a hora de começar. O suspense, o drama eram esmagadores. A maioria dos médicos faria tudo para ter uma oportunidade dessas (talvez alguns tenham realmente feito).
Parei na frente da porta do quarto de hóspedes de minha casa, uma porta familiar, geralmente não-ameaçadora, e dei uma das mais profundas respirações de todo o meu dossiê respiratório. Kit e eu tínhamos acabado de conversar sobre a hipótese de apresentar Max às ”autoridades”, como a polícia local ou mesmo a unidade em Boulder da Universidade do Colorado.
- Eu sou a polícia - ele argumentara, mostrando-se rigorosamente contrário à iniciativa. - Por ora, nem tenho certeza em quem poderíamos confiar. Tenho trabalhado na área, Frannie. Por favor me dê mais um dia ou dois para tirar umas coisas a limpo.
Sua reação não parecia muito tranqüilizadora, mas eu tinha minhas próprias reservas sobre as autoridades locais em Nederland ou mesmo em Boulder. Não achava em absoluto que estivessem à altura do problema. Não achei desde o primeiro momento.
E então Max estava atrás da Porta Número Um esperando que eu lhe fizesse um exame físico completo. Já me dissera que, para ela, aquilo não era nada do outro mundo - estava acostumada.
Para mim, é claro, era uma coisa do outro mundo.
Deixei Kit na varanda da frente, dando telefonemas para os quatro cantos do país. Ele tinha duas agendas cheias de informações sobre o grupo clandestino de cientistas que podiam ter se estabelecido naquela área. Já entrevistara dezenas de médicos que conheciam alguém do grupo. Disse que investigar aquele caso era como tentar atravessar o país usando uma rede de velas escuras. Naquele momento, por certo, tinha esquecido seu. sorriso de um milhão de dólares. Admitiu que se sentia frustrado e inseguro acerca do que ia acontecer. O fato é que nem eu nem ele sabíamos exatamente no que estávamos nos metendo. Como poderíamos saber?
Bati delicadamente na porta e ouvi a voz de Max.
- Pode entrar.
Abri a porta. Entrei carregando minha maleta médica preta e tentando não deixar o nervosismo transparecer.
Max largou a revista People, que dizia ler toda semana e, como já tínhamos discutido antecipadamente o exame físico, começou a tirar as roupas sem eu ter de pedir. Tive muita curiosidade de saber quem a examinara antes.
O que eu via naquele momento era de tirar o fôlego. Vibrava de contentamento, mas também me sentia com medo, mais nervosa que nunca. Era como se de repente tivessem me recrutado para representar o Comitê Nacional de Bioética. Aquilo era definitivamente história médica. E era um milagre!
A menina parada na minha frente não tinha mamilos, nem vestígio de seios. Era incrível a profundidade compacta no lugar dos seios. Quando a vi pela primeira vez, o caimento da camisola e o volume da camisa de Kit sobre ela tinham disfarçado uma caixa torácica duas vezes mais profunda que a minha.
Era compreensível, eu pensava enquanto me preparava para examiná-la. Para conseguir voar, Max tinha de carregar uma tremenda quantidade de musculatura naquele peito. Além disso, os músculos usados durante o vôo tinham de estar ancorados em algo bastante sólido. Talvez um osso dianteiro muito forte ou uma clavícula em forma de Y. Como acontecera? Quem a criara
- e por quê? Aquilo me deixava tonta, perplexa.
Cheguei mais perto.
- Estetoscópio - disse, e ela balançou a cabeça para indicar e tudo bem.
Seus ombros eram largos e os músculos peitorais estavam presos num enorme esterno chamado crista peitoral. Absolutamente extraordinário. Quando pressionei o estetoscópio contra suas costas, ou ”carena esternal”, ela respirou fundo e depois soltou o ar.
Sabia exatamente o que devia fazer. Sem dúvida, estava acostumada a ser submetida a exames. Mas quem a examinava? Por que motivo? O que era, afinal, a tal Escola?
- O estetoscópio está frio demais? - perguntei.
- Não - disse Max. - Está no ponto.
Falava muito bem para uma menininha, com uma linguagem colorida e sucinta. Percebi como sabia usar simultaneamente o humor e a ironia. Era esperta.
Qual a explicação? Quem a ensinara a falar? A se comportar? A ser educada e gentil, como de fato era?
- Pode respirar fundo de novo?
Max balançou a cabeça e fez o que pedi. Estava sendo muito cooperativa e em geral se mostrava delicada comigo. Parecia uma menina muito meiga.
Não pude acreditar no que ouvi dentro de seu peito. Ela não possuía a ação tipo onda dos pulmões dos mamíferos. Os seus eram relativamente pequenos e, pelo que pude ouvir, ligados a sacos de ar, tanto anteriores quanto posteriores. Que pulmões! Poderia escrever um livro apenas sobre aqueles pulmões. Rapaz, ô rapaz! Acho que naquele momento fiquei com uma pequena dificuldade de respirar.
Eu não tinha certeza, mas a seqüência lógica era que os ossos fossem ocos e que alguns sacos de ar entrassem por esses interiores ocos.
- Obrigada, Max. Foi incrível.
- Tudo bem, eu entendo - disse ela dando de ombros. Sou uma anomalia.
- Não, é apenas especial.
Virei-a de frente e pus o estetoscópio em seu coração. Jesus! Em repouso, tinha um índice de sessenta e quatro batidas por minuto, mas ele retumbava.
Max tinha o coração de um atleta, de um grande atleta. O órgão era enorme. Imagino que pesasse quase um quilo. O coração de um cavalo de grande porte.
Um grande, poderoso coração podia bombear muito sangue. A cadeia de sacos de ar indicava um fluxo de ar numa só direção. Uma grande bomba e uma imensa massa de ar capazes de proporcionar um meio exatamente eficiente de trocar dióxido de carbono por oxigênio. Era compreensível, fazia sentido. O sistema lhe daria a resistência necessária para voar longas distâncias e manteria as células saturadas de oxigênio em altas altitudes, onde a atmosfera fosse rarefeita.
Como se tivesse lido minha mente, Max começou a bater as
asas.
CAPÍTULO 62
- Não é a primeira vez que vejo você fazer isso - eu disse sorrindo. Não podia deixar de sorrir. Era uma menina tão natural. Relaxada, bem educada, engraçada.
- Já fiz isso milhões de vezes - disse Max.
Ela se levantou uns trinta centímetros do chão e ficou pairando no ar.
Fiquei de pé no primeiro degrau de uma escadinha, pus de novo o estetoscópio no peito e ouvi seu coração. Agora batia depressa demais para que eu pudesse contar. Parei de escutar e olhei para Max. Sim, estava maravilhada. Mas parecia que minha mente começava a ser virada pelo avesso.
- Posso chegar a duzentas batidas por minuto sem grande esforço - disse ela, acrescentando com uma piscadela. Muito natural, ha?
- Muito natural - repeti, colocando as mãos em sua cintura - Tudo bem. Acho que podemos dar o coração por encerrado. Obrigada.
- Não há de quê.
Ela parou de bater as asas, pousou no assoalho, e, tentando me manter sob controle, medi-a da cabeça aos pés.
- Cento e quarenta e três centímetros - ela apitou. Certo. Tinha exatamente um metro e quarenta e três. Os
braços e pernas mostravam uma leve desproporção; as pernas eram mais compridas. Os dedos mínimo e anular de ambas as mãos eram parcialmente ligados, mas só olhando de perto se podia reparar. Havia uma pequena membrana entre eles.
Essas adaptações lhe permitiam usar as mãos e os pés como uma espécie de leme, tornando dispensável uma cauda. Havia ainda um pouco de plumagem na barriga das pernas. O que também ajudaria no vôo ao fortalecer o mecanismo de orientação.
O pescoço era muito flexível. Os reflexos pareciam muito, muito melhores que os meus (ou que os de qualquer outra pessoa). Sua visão periférica e à distância eram aguçadas. Não, não. Eram ordinárias. Max era superior em quase tudo. A melhor entre os humanos, a melhor entre os pássaros.
Como eu já desconfiava, as asas emplumadas tinham encaixes absolutamente perfeitos. Se tivesse apalpado de olhos vendados, eu ia jurar que pertenciam a um grande pássaro capaz de voar uma enorme distância só planando. Falcões, por exemplo, ou aqueles pássaros que pescam no oceano. Seria Max parcialmente humana e parcialmente falcão? Mas como, como, como isso tinha acontecido?
Encostei a trena na ponta de uma asa, e, sem eu pedir, Max abriu as duas asas.
- Dois metros e setenta e cinco - disse ela com orgulho. A voz suave tinha um certo tom sussurrante, como o vento soprando num milharal seco.
- Obrigada - respondi. - Um pouco mais de nove pés de envergadura. - Asas maiores do que eu jamais teria imaginado numa menina de onze anos.
Pedi que Max se deitasse na cama. Apalpei a cavidade abdominal e procurei dar um toque em cada um de seus órgãos, que estavam nos pontos certos, mas eram pequenos.
De novo era uma coisa lógica e compreensível. Voar só era possível se as asas pudessem erguer o corpo. Daí os músculos fortes no peito, os órgãos pequenos e, a menos que eu tivesse me confundido muito, ossos não apenas leves e ocos, mas bastante resistentes para suportar as consideráveis tensões do vôo.
Um projeto impecável, pensei.
Porque ela fora projetada, não é?
- Vai me fazer um exame ginecológico? - perguntou Max.
Então ela passava por exames ginecológicos? Fiquei chocada, mas não deixei a sensação de mal-estar transparecer.
- Não. Não vou.
- Bem, acho que não precisa - disse ela vestindo a calça e sorrindo. - Posso lhe contar: sou ovípara.
Ovípara, é claro. Isso explicava por que não tinha seios. Se a produção fosse possível, seus descendentes não viriam ao mundo por meio de partos. Nem ela teria de amamentá-los.
Os bebês sairiam de ovos.
CAPÍTULO 63
Nesse ponto do exame físico, meus pensamentos estavam voando com uma rapidez frenética. Como se minha cabeça tivesse decolado para entrar permanentemente em órbita. A oportunidade de descobrir quem era ou o que era aqueda criatura mágica me deixara ansiosa. Agora que a examinara, tinha dificuldades para absorver o que havia encontrado. Era a versão feminina do super-homem, não era?
Um projeto impecável.
Mas quem tinha sido o projetista? Ou projetistas?
Precisava de uma máquina de raios X. Precisava de equipamento para exames de sangue. Precisava de especialistas em medicina e zoologia que pudessem me ajudar na interpretação dos dados. Tinha muito mais perguntas agora que antes.
- Mas me diga, Max, de onde você vem? - perguntei, arrumando o estetoscópio na maleta.
Ela me lançou um de seus sorrisos travessos.
- De um canteiro de repolhos. Fui deixada lá por uma cegonha.
E os olhos verdes se estreitaram.
- Por que eu tenho asas e você não?
- Não sei. Mas esta, claro, é a grande questão.
Max pareceu ofendida Estaria pensando que eu sabia de alguma coisa e não queria dizer, que estava escondendo o jogo? Na expressão de mágoa que tomou conta de seu rosto, percebi que ela realmente esperara de mim uma resposta adequada, Quem sabe ”eles” não ateriam mantido em completa ignorância acerca de si mesma?
- Vou tentar descobrir - disse -, mas me dê algum tempo. Tudo isso é novo e fantástico para mim. Por favor, Max, tenha confiança.
- Não confio em ninguém - ela bradou e vi em seus olhos uma centelha de raiva, amargura e alguma humilhação.
Teria convivido com pesquisadores da área biomédica? Gente moça? Técnicos de laboratório? Reparava que seu modo de falar era às vezes muito coloquial, multo jovem e costumava testá-la com figuras de linguagem.
- Acha que os adultos são as pessoas que mentem, é isso?
- Talvez - ela respondeu dando de ombros. - Vou brincar com o Pip, tudo bem? Posso ir? Tenho autorização? Ou agora que já conseguiu o que queria vou ter de ficar aqui dentro?
- Não, Max. Vá brincar.
Ela disparou do quarto. Estava com raiva. Talvez com raiva de mim ou de alguma coisa que eu tivesse dito. Fosse lá por que fosse, estava começando a chorar. Sim, era capaz de chorar, o que me parecia assombroso. Imaginei uma águiaplanando sobre uma terra devastada pelo homem e sendo capaz de chorar por isso. Ou a mãe-pássaro chorando diante do filhote ferido que ela não podia ajudar.
Encontrei o Kit na varanda, onde eu o deixara, e ele desligou o celular quando me viu.
- O que houve lá dentro? Acho que ela estava chorando.
- Bem, ela não me disse onde mora - respondi em voz baixa - Mas a submeti a um exame completo e o resultado me deixou atordoada. A menina é um momento privilegiado da história médica. Não importa como aconteceu...
- Pode me contar-disse ele, cujos olhos ficaram brilhantes e indagadores. Lembrei-me de suas palavras: eu sou a polícia.
- Não sei exatamente por onde começar. Acho que se trata de um ser humano gerado para voar. Max é efetivamente humana. Tem um cérebro humano, tem emoções, mas o resto é um amálgama de pedaços, de partes de gente e de ave. As partes humanas parecem dominar. E a tal ”escola” de que ela fala é certamente um lugar onde trabalham cientistas.
Kit tinha um ar severo.
- Como chegou a essa conclusão?
- Percebi que está acostumada a ser examinada e conhece um bom número de termos médicos. Aliás, ela me disse que é ovípara. Isto é, que põe ovos.
Houve um silêncio entre nós, quebrado apenas pelo barulho de Max brincando com Pip no jardim.
- Está dizendo que ela é uma espécie de cruzamento entre um ser humano e um pássaro? - Kit murmurou. - Acha possível?
- Não, acho que não. A não ser que seja fruto de alguma nova pesquisa médica...
- Como a do grupo que estamos investigando - disse Kit terminando a frase. - Meu Deus!
Max colocava Pip nos braços e ouvimos um bater de asas. Logo estava no ar. Voando sobre as copas das árvores com Pip, que parecia não estar nem aí.
CAPÍTULO 64
O momento era absolutamente crítico. Nada mais podia dar errado. Os erros graves dos últimos dias estavam sendo retificados. O balanço dos prejuízos ia sendo feito.
As ”visitas” importantes tinham começado a chegar à periferia de Denver o mais discretamente possível. Cálculo e planejamento haviam precedido cada detalhe daquelas jornadas individuais, procurando essencialmente manter em segredo a presença dos recém-chegados, não apenas ante o mundo em geral, mas ante os próprios colegas de trabalho e familiares.
Todos sabiam o que estava em jogo. Todos compreendiam o significado daquele momento e sabiam que, a partir de padrões aristocráticos, deviam se sentir privilegiados em participar dele. E todos tinham consciência do tremendo risco de serem apanhados. Ocorreram, é claro, algumas negativas convincentes, mas mesmo nesses casos as pessoas se prontificaram a ajudar se fosse preciso.
Duas das figuras mais importantes chegaram como marido e mulher, o que era o mais simples e o melhor dos disfarces. O grupo maior incluía quatro alemães que vinham como entusiásticos pescadores de água doce, ávidos para atirar seus anzóis na Vertente Continental.
De uma grande corporação de Tóquio chegariam dois homens. Se alguém perguntasse, estavam ali para ver o Shakespeare Festival do Colorado. Ficariam hospedados numa pousada histórica, o Boulder Victoria Historie Inn., e tirariam toneladas de fotos como turistas no estereótipo básico. Outro visitante representaria uma das maiores e mais importantes corporações da França. Segundo a história, seu interesse era participar do Festival de Música Folclórica de Chautauqua e do Festival de Ragtime de Niwot. Todos tinham concordado em ficar em pequenas cidades das vizinhanças, lugares com nomes como Lafayette, Nederland, Louisville, Longmont, Blackhawk.
O casal, que era de Londres, acampou numa tenda do Parque Nacional das Montanhas Rochosas, no mais típico estilo americano. A tenda ficava cerca de oitenta quilômetros a noroeste de Boulder. Um importante pesquisador de Bernandsville, em Nova Jérsei, se hospedaria num bela pousada serrana, o esplêndido Gold Lake Mountain Resort.
Cada visitante fora designado para uma cidade específica. Tinham sido instruídos para se vestirem e agirem como turistas em férias, para se hospedarem em pousadas e pequenos hotéis como o Black Dog Bed & Breakfast, o Hotel Boulderado, o Briar Rose. Como teriam a possibilidade de circular num ambiente de lazer dentro de suas esferas de interesse, fizeram exatamente o que lhes mandavam.
Diante de cada um, o quadro geral: a história da humanidade estava prestes a mudar.
CAPÍTULO 65
Não podia haver provas.
Não podia haver testemunhas.
Harding Thomas conduzia uma dúzia de caçadores pelo ”pente fino”, num trecho que ia da Rough Rider Road à rodovia Pico a Pico. Agora tinham cachorros, grandes cães de caça atiçados pelo cheiro da menina com asas. Guardando uma distância de três metros uma da outra, as duplas de homem e cachorro iam penetrando, num ziguezague de linhas paralelas, cada vez mais fundo nos bosques. A maior parte dos homens, exoficiais do Exército, preferia acreditar que aquela marcha estava dentro do espírito da defesa nacional; talvez da própria sobrevivência da América.
Fizeram uma parada depois de atravessarem o trecho demarcado. Logo retomariam a marcha pela seção seguinte. Bateriam, assim, sucessivas ”grades” de terreno em busca do menor vestígio da menina desaparecida.
Naquele dia, não falavam, não contavam piadas, nem mesmo acendiam cigarros. Os únicos ruídos eram as pesadas botas achatando o mato e o farejar constante, frenético dos cães muito bem treinados.
Do outro lado da estrada Pico-a-Pico, ficava o impressionante contraforte das Rochosas. Dois lenhadores iam escoltá-los a partir dali. Todos estavam equipados com equipamento infravermelho que podia escanear grandes extensões da área. Um visor registraria qualquer criatura de sangue quente que passasse por ali: corças, alces, ursos, coelhos, pássaros, qualquer coisa grande ou pequena.
A menina, agora, não ia escapar. Chance zero; possibilidade zero. Não poderia esconder-se por muito tempo dos raios infravermelhos. Ou dos caçadores, rastreadores metódicos em dupla com cães adestrados.
De certa forma, no entanto, era exatamente o que Max vinha fazendo até então. A menina parecia ter sumido no ar.
Estavam andando havia várias horas e o sol caía rapidamente. Mas não importava. A intensa busca continuaria pela noite adentro, se necessário. Já tinham solicitado mais ajuda, envolvendo médicos e pesquisadores da área de Denver e Boulder, gente que se mostrava cada vez mais preocupada com a situação, homens e mulheres que trabalhavam na Escola e podiam ter de se confrontar com a verdade.
Haviam inventado uma justificativa pública, é claro, e uma das boas, porque era verdadeira: andavam atrás de uma menina perdida na mata.
Max era agora uma ameaça a tudo.
CAPÍTULO 66
Achei que precisava desesperadamente parar para tomar fôlego. De fato já nem podia respirar e Kit havia sugerido que eu retomasse a minha rotina de vida por uma ou duas horas, que desse um tempo. Parecia uma boa idéia.
Eu e Gillian tínhamos combinado nos encontrar em breve. Foi o que planejamos na noite em que Frank McDonough se afogou na piscina. Gillian me fizera prometer uma visita. Não havia dúvida, as circunstâncias da morte de Frank ainda me perturbavam ao extremo. Eu simplesmente não conseguia imaginar Frank se afogando.
Uma das razões pelas quais não vou com mais freqüência à casa de Gillian é a viagem de cerca de uma hora. E foi no caminho para lá que comecei a ter alguns pensamentos realmente negativos. Primeiro morrera David, depois fora a vez de Frank; agora eu começava a ficar preocupada com Gillian. Não havia qualquer razão lógica para esses medos, mas tive a sensação de que ela podia estar em perigo.
Também me ocorreu, ao volante, a incômoda fantasia de encontrar carros de polícia e ambulâncias quando chegasse lá. Eu sabia, é claro, que isso não era provável, mas a morte de David também não era, nem a de Frank.
Pus a mente num eixo mais positivo. Acima da paranóia. Afinal, visitar Gillian era sempre um dos pontos altos da semana.
Após a morte de David, ninguém me dera mais apoio, ninguém fora mais amigo, nem mesmo minha irmã Carole. Eu podia ficar horas conversando com Gillian, mesmo ao telefone, ainda que pessoalmente fosse sempre melhor. Gillian tinha perdido o marido havia cerca de dois anos, o que fazia parte do elo que nos unia, mesmo que este elo não se resumisse a gestos de solidariedade.
Cheguei à casa dela, na serra, mais agitada e ansiosa do que podia imaginar. Um ponto delicado: Kit me fizera jurar guardar segredo sobre a garota. Embora eu achasse que ele tinha razão e que por ora devíamos manter em segredo nosso contato com Max, seria um desafio me encontrar com Gillian sem mencionar a história, sem falar de uma menina tão extraordinária. Não contar, aliás, era praticamente mentir.
Na realidade, eu é que tentaria obter alguma informação de Gillian. Ela era ”uma pessoa simples”, muito terra-a-terra, mas tinha-se formado em medicina na Universidade da Califórnia e conquistara um Ph.D., em biologia, na Stanford. No fundo, era uma enciclopédia não apenas nas ciências da sua área, mas também em economia, astronomia, nas equipes de basquete do Colorado, no beisebol e por aí vai. Fosse lá o que fosse, Gillian sabia.
Era também uma supermãe, provavelmente o aspecto de sua personalidade que mais me agradava.
Veio me receber e estava sã e salva. Ao saltar do carro, também pude ver seu menininho, Michael, boiando na piscina. Já me sentia melhor.
Respire. Fique com o bom, não fique com o mau, disse a mim mesma, embora fosse mais fácil dizer do que fazer acontecer.
- Trouxe roupa de banho?-perguntou Gillian. Ela estava usando um maio Speedo com listras azuis e pretas e parecia em ótima forma para quem completara cinqüenta e um anos. Corria, é claro, oito quilômetros por dia, não desde ontem, mas nos últimos trinta anos. Quando esteve na faixa dos quarenta, chegara a correr na maratona de Nova York.
- Já vim de maio - disse eu, tirando a blusa e a bermuda como prova. Era um maio inteiro, com listras vermelhas e brancas, de que eu gostava muito.
- Mas olhe, Frannie! - Gillian assobiou e bateu as mãos. Era uma terrível líder de torcida - Você está ótima!
Deixei a cabeça rolar sobre os ombros e dei um sorriso de ganhar corações e mentes - caramba!
- Andei fazendo umas caminhadas e escaladas, você sabe. Também ando muito ocupada no meu hospitalzinho de bichos.
Era verdade e continuei:
- Acho que perdi alguns quilos em algum lugar.
- Prestando atenção...Tem alguma coisa... - disse Gillian rindo. Era um sorriso largo, que mostrava realmente os dentes e que eu achava uma beleza. - Pintou o cabelo, Dra. O’Neill? Se fez isso, ficou ótimo, mas sem a menor dúvida esta não é a única novidade...
Tem toda razão, Gil. Mas quero que me desculpe porque não posso dizer o que é.
Um menino louro, de quatro anos, saiu da piscina. Parecia lustroso com a água escorrendo. Correu para a mãe, interrompendo nossa conversa com tamanha inocência que o resultado foi elegante, afetuoso. Michael só tinha dois anos quando o pai morreu de um ataque das coronárias na sala que ocupava no Hospital Comunitário de Boulder. Mesmo assim, estava se desenvolvendo muito bem.
- O que você quer, grande leão-marinho? Não dá um alô à sua tia Frannie?
- Oi, tia Frannie!-Michael sorriu. Eu me inclinei e ele me beijou, bonito leãozinho-marinho.
- Estou brincando de batalha naval - explicou. - Tenho um veleiro chamado Nariz da Sombra. E este - apontou para uma boiazinha inflável - é o Barco Direito. Legal, ha?
- O Direito é muito legal - respondi sorrindo.
Vimos Michael mergulhar do trampolim mais baixo e entrar perfeitamente na água, sem qualquer pancada.
- É uma gracinha - comentei.
Gillian tornou a me encarar. Pareceu penetrar dentro dos meus olhos e alguma coisa clicou. Pude ver sua mente funcionando.
- Está apaixonada - disse num tom acusador. - Sim, está! Tenho certeza.
- Negativo - respondi fazendo uma careta. - De jeito nenhum. Tente outra.
- Realmente é grave. E é claro que vai me dizer neste instan... O que foi, Michael? Tudo bem. Frannie, vou lhe dar um tempo. Não saia daí! Estou muito interessada nesse seu jogo.
Gillian marchou para a parte funda da piscina e estava mesmo em excelente forma. Suspendeu um relógio de pulso.
- Na marca, Michael. Está pronto? Vá nessa! Michael tornou a mergulhar como Nariz da Sombra, o
veleiro, e nadou quase metade da piscina sob a água, passando por baixo do Barco Direito. Finalmente veio à tona.
Eu estava me sentindo quase atordoada. Deus, tinha mesmo novidades! E que vontade de gritar para minha amiga. Quer ouvir a história de uma grande garota? Uma menininha incrível? Vou lhe contar tudo sobre a menina meiga, engraçada... que passa brincando pelo topo das árvores.
- Então, Frannie, pode começar - disse Gillian, voltando para a espreguiçadeira do meu lado. - O que está acontecendo? Porque eu vou descobrir, você sabe disso. Não é melhor me contar? Confesse!
- Bem - disse eu -, acho que vou dar uma idéia... Talvez eu esteja um pouco apaixonada.
Contei-lhe tudo sobre Kit, pelo menos tudo que podia contar. Deixei de fora, é claro, a parte referente à descoberta de Max. E também não mencionei que ele era do FBI.
CAPÍTULO 67

Kit estava preocupado, mais tenso que quando eu saíra. Também não se sentia bem do estômago.
Tinha o que chamava, num tom gozador, ”estomatite FBI”, um enjôo bastante incômodo que lhe dava um certo ar de debilidade, algo que não correspondia à dureza que se esperava dele.
Estivera o dia inteiro rondando a pequena Max, sendo o mais cordial possível. A esperança era que a menina soltasse alguma informação sobre o lugar de onde vinha. O que não aconteceu.
Fizera o contato com o escritório de Peter Stricker, mas o que tinha a dizer sobre o Dr. Frank McDonough se resumia praticamente ao fato de ele ter trabalhado com James Kim na Califórnia, o que aliás Kit já sabia. Garantiram que todas as fontes disponíveis de informação, em Washington e Quantico, haviam sido consultadas, mas que nada fora encontrado de realmente significativo.
Isso não era bom e Kit, sem dúvida, se achava numa situação extremamente delicada. Devia falar da menina com Stricker, mas alguma coisa dentro dele o mandava esperar mais um pouco. Digamos que um sexto sentido. Ou o medo de ser considerado mentalmente insano. Ou o desejo de salvar o que ainda restava de sua carreira.
Não importa exatamente o que fosse. O fato é que havia pelo menos uma suposição emocional de que o Bureau não estava à altura do que teria a dizer. Sem dúvida muita gente não concordaria com isso, mas só ele pudera realmente observar como o Bureau tratara o assunto. Só ele mergulhara realmente na coisa. Só ele vira o ar de pouco caso no rosto de Stricker ou escutara o cinismo em sua voz.
Depois que Frannie voltou da casa da amiga Gillian, os dois comeram outro espaguete com Max. Frannie parecia decididamente mais relaxada e, no final da noite, deram um passeio ao luar com a menina. Max sabia os nomes da maioria das árvores do bosque, assim como das flores, dos arbustos... Depois que começava, parecia que realmente gostava de falar.
- Impressionante - disse Frannie. - Ela sabe mais sobre esses bosques do que eu.
Max deu de ombros.
- Leio bastante. E retenho muita informação.
- Tinha aulas em sua escola? - perguntou Kit quando deram meia-volta para voltar à cabana. A lua era um grande disco branco sobre as copas escuras das árvores.
- O que você acha? - Max respondia com uma pergunta e tomava a frente deles... Andando, não voando.
- Tenho algumas idéias - disse Kit ao se aproximarem da cabana-Vamos dar um passeio de carro, um giro nos bosques. O que me diz, Max?
- Ótima idéia! - Com um brilho nos olhos verdes, a menina parecia superentusiasmada. Deu um pulo e ficou pairando no ar. - Nunca entrei num carro! Nunca, em toda a minha vida!
Fomos os três no banco da frente do jipe. Já passava da meianoite e Kit imaginou que o passeio seria seguro. Não encontramos um único carro na saída de Bear Bluff. Até ali, tudo bem. Olhando pelas janelas, Max parecia radiante.
Depois de pouco mais de uma hora, entramos na cidade de Denver, onde tudo estava fechado. Eu conhecia muito bem os edifícios brilhantes na linha do horizonte. As torres Daniels e Fisher, concebidas com base nos campanários venezianos, elevavam-se no céu escuro. O mesmo fazia a câmara de deputados do estado, um prédio no estilo da Renascença com uma cúpula laminada de dourados. A bela catedral da Imaculada Conceição se erguia à nossa frente. E claramente visível, mesmo à noite, despontava a majestosa, imponente cadeia frontal das montanhas Rochosas.
Achei que Kit estava tentando ganhar as graças de Max, o que talvez funcionasse. Corríamos um certo risco ao andar tarde da noite pela cidade, é claro, mas um risco pequeno.
Com o canto do olho, eu observava Max, que sacudia a cabeça com um ar de grande espanto e reverência.
- Como tudo isso é incrível, os prédios, as luzes. Eu não imaginava que em algum lugar do mundo pudesse haver tantos edifícios com esse tamanho!
Eu e Kit apontamos para os estádios, o McNichols Sports Arena, o Mile High Stadium, e para uma praça, a Larimer Square. Ela fez Kit parar o jipe para apreciar um prédio escolar de tijolo vermelho coberto com murais muito expressivos e coloridos. Uma escola. Das boas, das pacíficas.
Max nunca estivera numa cidade, mas sabia muita coisa a respeito delas. Aprendera nos livros. Naquele momento, porém, vivia a maior aventura de sua vida, captando e retendo na memória um grande número de novas informações.
Mostrei um prédio curioso, apelidado de ”caixa registradora”, um grande retângulo prateado com telhado de formas redondas. E de repente reparei que Max tapava os ouvidos com as mãos. Sua audição era muito sensível e havia um barulho bastante mais alto que o ruído do motor do jipe. Um barulho que ainda passava sobre as nossas cabeças, mas já se afastando.
- Um helicóptero - disse Kit num tom suave, tranqüilizador. - Nada para se ter medo, Max. Está vendo o que está escrito do lado?
Max abanou a cabeça e leu em voz alta:
- ”Jornal das Nove. KUSA”.
- KUSA é uma emissora local de TV. As pessoas no helicóptero estão transmitindo imagens para a estação. É gente boa. Eles nos trazem notícias do mundo, notícias de Denver... Provavelmente houve algum acidente hoje à noite. Acho que se não tivesse acontecido alguma coisa não estariam voando a uma hora dessas.
-Parece um pássaro grande, esse helicóptero-disse Max.
- É realmente fantástico. Não admira que gente tão boa queira voar ali dentro. Eu também ia querer. E também gostaria de apostar corrida com ele. Ei, gente boa! Querem apostar? Vocês vão perder!
Kit finalmente estacionou no meio-fio para que Max pudesse ter uma visão melhor do aparelho. O helicóptero se inclinava para oeste, distanciando-se cada vez mais. Kit parecia estar gostando de mostrar a Max tantas coisas novas. Eu me perguntava se não estaria lembrando-se dos tempos felizes com os filhos. Era comovente apreciar a suavidade, o ar afetuoso que ele tinha nos olhos.
- Antigamente eram chamados de ”autogiros” - disse.
- Autogiros. Aprendi alguma coisa sobre eles na Escola. O nome de minha professora era Sra. Beattie, uma pessoa de quem eu gostava muito. Acho que a puseram para dormir - acrescentou num tom de tristeza.
E foi então que, sem pedir, escancarou a porta da frente.
- Max - gritei. - Max! Max!
Tarde demais. Ela agitou o corpo, correu alguns metros pela calçada escura e levantou vôo. Pude ouvir as asas batendo. Pulando do jipe, eu e Kit a vimos subir cada vez mais.
Eu estava com medo por um bom número de motivos. Denver costumava ter ventos muito traiçoeiros, mesmo no verão. Além disso, ela podia ser vista por alguém.
- Max - tornei a gritar. Droga, droga, droga! Já estava muito alto.
Kit pôs as mãos em concha ao redor da boca e gritou junto comigo. Max tinha de escutar; sua audição era aguçada. O problema é que agia como se nada ouvisse.
Vimos quando passou raspando pelos vidros lustrosos de um prédio de trinta ou quarenta andares. Era realmente impressionante, eu tinha de admitir. Imaginei-a contemplando o próprio reflexo no vidro escuro e me perguntei como seria estar voando lá em cima.
O helicóptero do telejornal já saíra de vista quando Max começou a circundar a grande torre. Deu uma espiada nos escritórios e depois ascendeu para outro prédio, um prédio também comercial onde um conjunto de janelas iluminadas formava uma inscrição: VENHA PARA AS ROCHOSAS!
Provavelmente, lá do alto, Max poderia ver toda a cidade de Denver. O arroio Cherry, saindo de um braço do rio Platte, o parque de diversões do Elitch Gardens estendido na distância.
Eu só esperava que ninguém a visse e que, se isso acontecesse, a pessoa achasse que era alucinação. Afinal, foi o que acontecera comigo quando a encontrei pela primeira vez.
Max deu alguns saltos acrobáticos e voltou para perto de mim e de Kit, ou seja, primeiro mergulhou, depois saiu lindamente do mergulho e aterrissou bem ao lado do jipe.
- É tão incrível! - disse ela, primeiro sorrindo e logo rindo alto. - Obrigada, obrigada a vocês dois! Desde criança tinha vontade de fazer isso.
Entramos de novo no jipe.
Max pôs os braços macios, emplumados, a meu redor e voltamos abraçadas para casa.
CAPÍTULO 69
Na cama quente e aconchegante do chalé, Max revivia a esplêndida noite em Denver. Para variar, estava com pensamentos bastante positivos, principalmente com relação a Frannie e Kit. Os dois eram tão bons para ela. Como a mãe e o pai que nunca tivera.
De repente, se empinou e virou um pouco a cabeça. Estavam chegando. Podia ouvi-los, podia pressenti-los em cada fibra do corpo.
Todos os sentidos lhe diziam a mesma coisa. Logo, logo estariam atirando-se sobre a cabana. Não era paranóia, não era invenção. Teve vontade de gritar avisando Frannie e Kit, mas achou melhor não fazer isso.
Não deixe os atacantes descobrirem que você sabe.
Deu uma guinada para fora da cama e foi para a janela mais próxima. Espiou a noite lá fora, uma noite de lua, e ouviu o mato estalando. Um dos homens aparecia, saindo sorrateiro da mata.
Sabia quem era - um dos piores guardas. A turma de segurança da Escola estava lá. Fora descoberta. E também estavam lá para pegar Frannie e Kit.
De repente, ela se reduzira a quarenta quilos de asas batendo, e seus combustíveis eram o medo e a fúria. Saiu voando do pequeno quarto! Estava voando dentro da casa.
Disparou para os quartos dos fundos. Frannie e Kit dormiam em dois desses quartos. E tinham sentidos muito menos apurados que os dela. Mas... Claro, os sentidos dos vermes da segurança também não eram grande coisa.
Proibido! Proibido! Não estava autorizada a voar!
Mas quem daria a menor importância ao que dizem os guardas! Não eram eles que mandavam nas coisas ali fora, no mundo real. Ali, era ela quem governava apropria vida.
Pip saiu de algum lugar com um latido estridente, frenético. Ele também sabia, sentia o perigo, os homens se aproximando pelos bosques. Que cachorrinho incrível!
O latido acordou Kit, que veio em disparada do quarto dos fundos com o revólver na mão. Max, que voava pela sala, foi na direção dele.
- Meu Deus!
- Estão chegando, Kit! Estão realmente perto. E são muitos! Estão aqui para nos pegar!
- Quem está chegando, Max?
-Não dá para conversar agora! Por favor. Vamos. Vamos! Eles vão nos matar. Vão matar todos nós!
Frannie tinha saído do outro quarto e parará no corredor. No rosto, uma expressão do mais absoluto assombro.
- Por favor, confiem em mim! - Max implorou aos dois e, nesse momento, percebeu o quanto eles já significavam em sua vida.
- Vista-se, Frannie! - disse Kit com um gesto de cabeça.
- A porta dos fundos! O jipe. Eu vou dirigir. Não olhe para trás e corra o mais que puder. - Ele punha as roupas enquanto gritava.
Kit agarrou a mão de Max e os dois saíram em disparada. Frannie correra na frente, escancarando a porta dos fundos. Homem, mulher, criança e cachorro, todos se safaram da casa na noite escura como breu! Ninguém olhou para trás.
Como por encanto, a ignição do jipe funcionou de primeira, os pneus cantaram nos fundos da área de estacionamento e os tiros só ficaram acertando o metal. Um vidro explodiu. Um vidro da janela de trás. Aos saltos, o jipe entrou na buraqueira da estradinha de terra. Não parecia ser a primeira vez que Kit dirigia no meio de um tiroteio.
Fugiram.
Max continuava pensando: Frannie e Kit tinham confiado nela, o que mudava tudo.
CAPÍTULO 70
Não há nada mais empolgante que ser alvo de um tiroteiro e não ser atingido. Não me lembro quem disse isso, mas seja lá quem for estava absolutamente certo.
O tornado insano dos acontecimentos da noite tinha nos transformado em pessoas irreconhecíveis. Eu e Kit escapamos por um triz da morte em minha própria casa, havíamos adquirido um aspecto muito mau e sentíamos coisas ainda piores. A idéia de alguém tentando nos matar era tão monstruosa que minha mente achou difícil dar-lhe forma real e concreta. O que acabara de acontecer era impossível - mas acontecera. Alguém atirara no jipe de Kit, atirara em nós. Alguém tentara me matar, tentara matar o Kit, a Max. Nunca em minha vida eu tivera uma percepção tão aterrorizante.
Ficamos amontoados no motel Six, um lugar horrível e sujo à margem da interestadual 70. Penso que estávamos na cidadezinha de Idaho Springs, que tem sua justa cota de motéis ordinários. A porta era fechada à chave e havia uma correntinha de segurança, mas duvidei de que estivéssemos seguros. Realmente duvidei. Cortinas baratas, verde-limão, cobriam os vidros dajanela. As luzes do quarto estavam apagadas, mas eu podia ver Max e Kit por causa da luminosidade trêmula da TV.
Ela estava estranhamente distante do que havia acontecido, ou assim parecia. Cobrira-se até o queixo com o cobertor e Kit sentara-se numa cadeira bem ao lado de sua cama.
Sabia que ele gostava muito de Max, mas os dois tinham entrado num cabo de guerra. Kit achava que íamos morrer se Max não contasse de onde viera e Max achava que íamos morrer se contasse.
A voz dele era fria. Era a primeira vez que o ouvia falar naquele tom e desconfiei de que começara a se comportar como um agente do FBI: profissional, determinado, concentrado no que achava que devia ser feito.
- Realmente preciso de algumas respostas, Max. Estou lhe dizendo, tem de começar a confiar em alguém. Terá de fazer isso um dia. Ou, explicando melhor, terá de fazer isso já. Confie em mim. Estou falando com você, Max...
- Sei com quem está falando - ela respondeu. - E não estou gostando nada do tom.
O frágil autocontrole de Max entrou de repente em colapso e ela pulou da cama, correu para o banheiro, trancou-se lá dentro.
-Me deixe em paz! Está igualzinho a eles. Confie em mim.
- Tentava imitar o tom de Kit. - Por que eu devia confiar em alguém? Não sou como você, Kit! Será que ainda não entendeu?
- Por favor, é apenas uma menininha, Kit - disse eu com o fio de voz que me sobrara do cansaço, do medo, da absurda loucura da última hora.
Ele balançou a cabeça - uma vez.
- Não, ela não é apenas uma menininha. É mais que isso, infelizmente. Sem dúvida, haverá gente morrendo por causa dela. Nós mesmos quase morremos há pouco, Frannie! Temos de encontrar essa tal escola onde ela estava sendo mantida, pelo menos eu tenho.
Fiquei furiosa.
- Não seja assim, Kit! Eu também quero encontrar essa pretensa escola. Se ainda não reparou, estou envolvida até a raiz dos cabelos.
Sempre que eu olhava para Max sentia vontade de abraçála, mas Kit tinha razão. Ela não era apenas uma menininha assim como aquilo não era apenas um passeio de carro. A verdade é que não tínhamos idéia precisa de quem era Max ou o que podia significar o simples fato de ela estar ali. Só Max sabia. E não queria contar.
Kit se virou e tropeçou numa lata de lixo cheia de embalagens de restos de comida do McDonald’s. Então pegou a lata e atirou-a com força contra a parede. Depois chutou-a algumas vezes para espremer a sucata.
Num gesto involuntário, levantei o braço para proteger os olhos enquanto o barulho ecoava. Às vezes meu pai perdia o controle em nossa fazenda no Wisconsin e atirava coisas ao chão. Nunca porém, algo de valor, e jamais acertando alguém da família nem mesmo com o chinelo. Talvez tenha sido por isso que não tive realmente medo do suave, quase humorístico ataque de raiva.
- Algum problema? - perguntei quando a barulheira cessou.
Se eu achava que ia arrancar um sorriso dele ou abrandar seu mau humor, estava redondamente enganada. Kit se degladiou para usar uma voz simpática:
-Não pretendi assustar a menina. Eu realmente gosto dela, Frannie. É uma grande garota O problema... é que todos nós podíamos ter morrido! - Eu sei. Ela sabe também. Ela vai ficar bem.
A menina parecia ter um pavio muito curto e eu sabia que pessoas que tinham sido espancadas costumavam agir assim. O que teriam feito com Max? Quem a machucara e como? Precisávamos saber mais sobre a Escola. Onde ficava. Como pudera funcionar. O que acontecia por lá. Quem eram os responsáveis.
Kit se aproximou da porta do banheiro e bateu devagar.
-Max, desculpe se perdi a cabeça-disse ele. Era uma voz gentil, interessada - Fiquei mesmo maluco... porque estou muito preocupado com sua segurança e não posso fazer nada se não me ajudar.
Acho que foi esse o meio que encontrou de dizer: tem gente querendo nos matar. Max, no entanto, ficou calada atrás da porta do banheiro. Nem um pio. Às vezes, ela era mesmo uma menininha.
Kit murmurou pedindo minha ajuda:
- Por favor, tire-a daí. Não quer pelo menos tentar? Vamos lá, Frannie, me ajude!
CAPÍTULO 71
Devagar, fui chegando perto do banheiro. Não sabia o que ia dizer, não tinha a menor idéia. Mas sabia que não ia contar nenhuma mentira. Fiquei um instante imóvel diante da porta trancada, ordenando os pensamentos. Quando abri a boca para falar, as palavras saíram de modo espontâneo, sincero.
- Max, prometo que ninguém vai obrigá-la a fazer coisa alguma que não queira. Eu sei disso. Você sabe disso. Vamos encontrar unidos a melhor saída. Não acha que é o caminho mais lógico? Tem alguma idéia melhor?
Houve uma longa pausa. Silêncio total atrás da porta do banheiro. Às vezes, Max ficava incrivelmente geniosa, teimosa; eu já tinha reparado que estava quase na adolescência. De repente a maçaneta da porta começou lentamente a girar.
Ela saiu do banheiro sem olhar para nenhum de nós.
-Desculpem, eu só estava assustada-sussurrou ao voltar para a cama. Talvez toda aquela incrível pressão a tivesse deixado meio dengosa.
Pip pulou na cama e Max se curvou com ele nos braços. Sentei-me ao lado dela e alisei carinhosamente suas penas. Um pássaro faz as penas ficarem macias realinhando os ângulos microscópicos das beiradas para eles formarem uma unidade sem fendas. Eu estava pensando numa maneira de sair do impasse sem enervá-la de novo.
- Tudo bem, Max - murmurei.
- Não está tudo bem, Frannie. Você não sabe... Conte-nos seus segredos, Max. Nós confiamos em você.
Agora é sua vez de confiar um pouco em nós. Pouco depois, perguntei:
- Como são as pessoas na sua escola? Conte só um pouquinho. São cientistas? Médicos? São professores?
- Mais ou menos isso - disse ela. - Ensinaram-me a mexer com lâminas e me mandavam ler, principalmente livros de ciência. É claro que eu podia ler outros livros no meu tempo livre. Davam-me atividades e a maioria deles eram cientistas. Eram médicos.
Kit andava de um lado para o outro no quarto, olhando para o chão. Quando ouviu a palavra ”lâminas”, parou onde estava. Pouco depois perguntava:
      - Por que falou em ”lâminas”? Que lâminas eram essas, Max?
- As que usamos para ver no microscópio. Nos laboratórios. Era permitido trabalhar neles. Eu devia comparar características dominantes e recessivas.
A incrível tensão continuou crescendo dentro de mim. O caos e a confusão reinavam em minha mente. Dominantes e recessivos eram formas alternativas do gene. O que Max tinha dito até ali sobre a Escola parecia tremendamente assustador e tremendamente errado.
- Os médicos estão trabalhando com cromossomos? perguntei. - Sabe por que estão fazendo isso?
- Claro que sei - disse ela sacudindo os ombros. - É para melhorar a descendência.
- Que tipo de descendência? - perguntou Kit. A coisa se transformara numa espécie de interrogatório e eu me sentia como uma policial. O rosto de Max ficara muito pálido.
- Posso criar problemas para as pessoas se falar-murmurou. - Fui avisada. Falar é absolutamente proibido.
Quando Max cobriu os olhos e começou a soluçar, puxei-a para meus braços.
- Por favor, confie em nós, Max. Tem de confiar em alguém. Você sabe disso, querida.
Embalei a criança, a bela menininha-pássaro. Era como se estivesse no Inn-Patient, cuidando dos animais doentes e feridos. Era onde queria estar.
Max falou baixinho do lado do lado do meu pescoço. Mal pude ouvir as palavras, mas consegui.
- Vamos lá.
LIVRO QUATRO
A ESCOLA DE VÔO
CAPÍTULO 72
Vamos lá.
Obviamente tinha sido duro para Max dizer as palavras. Parecia tão inocente vindo de sua boca, mas eu sabia que não era. Num piscar de olhos, saímos do motel Six.
Disparamos pela interestadual a no mínimo cento e trinta por hora, torcendo para nenhum carro da polícia rodoviária nos parar.
Estávamos indo para a Escola, não era?
Eu ia atrás com Max. Ela estava visivelmente assustada, por isso abracei-a com força e pude sentir seu coração. Ele batia depressa demais no meu braço. Pobre Max. Só uma menininha. Enredada numa coisa tão grave, muito além da compreensão de qualquer um de nós.
Conversava com ela, fazia carinho, esperando dar-lhe um pouco de conforto, esperando acalmá-la - era uma menina de apenas onze anos. Contei como fora criada numa fazenda de gado leiteiro no norte do Wisconsin e perguntei se já vira uma vaca de verdade.
- Não existem vacas na Escola. Mas já vi muitas na TV.
Contei-lhe sobre nosso pequeno rebanho de gado holstein, as línguas viscosas, os olhos transparentes. Cheguei a evocar os nomes, as personalidades de cada animal e Max não pôde disfarçar a curiosidade quando descrevi a Flor do Coração, a Nellie Pé-a-Pé, a Please Louise e nosso touro malhado - Kool Kat.
Contei-lhe como eu e minha irmã, Carole Anne, acordávamos às cinco da manhã para ajudar meu pai; como dávamos banho nas vacas no verão e ligávamos o ventilador para elas não sentirem tanto calor. Mas foi o modo de tirar o leite que realmente deixou Max fascinada.
Deu gritinhos de alegria quando descrevi como era gostoso tirar o leite de manhã cedo. Adorava quando ela ria. Um riso contagioso que sempre me fazia pelo menos sorrir. Max se deliciava com as histórias de um mundo que, até então, não fizera parte de sua experiência direta, e o riso deixava nossas mentes longe de tudo que estava acontecendo.
Inventei uma história tola sobre vacas de chocolate dando leite com chocolate. Kit contribuiu com um pensamento.
- Conte sobre as vacas de mentholiptus. - Ele piscou o olho.
- Vocês são dois malucos - disse Max -, mas eu gosto. É bom. Na realidade é muito bom estar com vocês.
- Eu também adoro estar do seu lado - afirmei.
- Eu idem - Kit entrou no coro balançando a cabeça.
O j ipê corria pelo início escuro da manhã. Eu estava pensando, fantasiando (bem, talvez seja mesmo apenas um passeio de carro), quando Max se esticou na direção do banco da frente e do pára-brisa.
Apontou para uma estradinha lateral que saía de trás de uma elevação rochosa.
- É a estrada, Kit!
- Tem certeza de que é essa? - perguntei. Não duvidava de Max, mas estava curiosa. Mesmo morando perto, eu jamais vira aquela estrada.
Max sacudiu os ombros e cravou os olhos nos meus. Ela conseguia estar sorrindo e de repente ficar muito séria, atenta.
- Não conseguiria sentir a presença da fazenda de gado de leite onde você morou?
- Bem, fica muito longe daqui. Eu ia precisar de um mapa para achar o lugar.
- Eu sinto a Escola - disse Max. - Consigo descobrir exatamente onde fica. Pude ver o caminho aqui, na minha mente.
Entendi o que estava querendo dizer e fiquei bastante impressionada, com um desagradável nó na garganta. Como pombos, gatos domésticos e aves de migração que podem encontrar seus lugares de origem graças a algum mecanismo de navegação automática ou a alguma outra coisa que só Deus sabe o que é, Max podia sentir o caminho de casa!
CAPÍTULO 73
- Pare aqui - disse ela quando Kit ia dobrar na estrada.
Ele obedeceu. Havia alguma coisa na voz de Max que não podia ser ignorada.
- Agora escutem com atenção - ela continuou. - Vocês não podem ir além deste ponto. Se os pegarem, acho que vão matá-los. Estou falando sério.
- Sem a menor dúvida, a coisa é séria - disse Kit. - E é exatamente por isso que estamos aqui com você, menininha. Esta arma não é de brinquedo... - Ela mostrou um revólver. Um semi-automático que parecia realmente mortal.
Continuou:
- Tenho de ir, Max. Meu trabalho é esse. É a razão que me trouxe ao Colorado.
- Também não posso ir embora - retruquei. - Não vou abandonar você e o Kit. Isto não vai acontecer.
Max balançou a cabeça. Não gostava da idéia mas teve certeza de que não iríamos embora. Para o melhor ou para o pior, estávamos no mesmo barco.
Kit virou o volante. Se a rodovia principal não era exatamente a federal Um, a estrada onde entramos, chamada Passo da Raiz da Serra, era apenas um tortuoso caminho semi-asfaltado que subia pelas encostas das Rochosas. A Escola ficava em algum lugar lá em cima. Max parecia ter certeza.
- Vão seguir, não é?-disse ela repentinamente. - Então podem me deixar sair!
- As coisas não são assim tão simples, Max - insistiu Kit
- Já entramos no trecho sem volta.
- Você é extremamente teimoso, Kit.
- Olhe quem fala.
A estrada foi piorando até se transformar num caminho vicinal sem placas nem edificações que nos dessem qualquer idéia de rumo. Sem dúvida, uma coisa apropriadamente sinistra e desolada.
Cada curva era um desafio à perícia de Kit no volante. Olhos nos espreitavam. Cervos e outras criaturas da floresta sabiamente esperavam antes de pular para o outro lado. Continuamos a subir a montanha e Max, finalmente, começou a nos contar de onde viera.
- A Escola se mudou algumas vezes enquanto eu estava crescendo. Sei que antes de vir para cá tinha funcionado no estado de Massachusetts e depois na Califórnia. Minhas aulas eram diárias e no princípio foi bom. A professora era a Sra. Beattie, que também era médica mas dizia que não precisávamos chamá-la de doutora. Ela realmente gostava do Matthew e de mim, e nós gostávamos dela. Fomos considerados gênios pelos testes de Stanford-Binet, sabiam? Mas nos disseram que não havia qualquer vantagem em sermos inteligentes ou capazes de voar, pois tínhamos sido feitos assim. Éramos apenas espécimes de laboratório.
Ouvi a respiração de Max ficar mais intensa e minha mão já ficara quase dormente pela força com que ela a segurava. Embora nos tivesse mandado voltar, tive certeza de que não era exatamente isso que queria. Estava assustada demais para agir sozinha.
- Deixe-me sair-disse ela, de repente me agarrando mais no alto do braço. - Preciso sair. Por favor, Kit. Preciso sair agora! Prometo que não vou voar e fugir. Juro que não!
Estendi a mão e apertei o braço de Kit. Ele freiou o carro e parou na margem estreita da estrada.
Estávamos no meio de lugar nenhum, cercados de pinheiros altos, afiados rochedos e muito zumbido das cigarras.
Quando abri a porta do jipe, Max pulou.
Era veloz, atlética, realmente muito forte para sua idade. Quase tudo que fazia me deixava assombrada. Torci para que não fugisse voando.
Ela subiu para o teto do j ipê. Ouvimos as pisadas lá em cima. E então... um furioso som espanado quando bateu as asas.
- O que vai fazer? - perguntamos quase ao mesmo tempo.
Decolou dacapotadojipe e começou a subir. Foi isso que fez.
- Meu Deus! - Kit sussurrou, tirando as palavras de minha boca. - Olhe pra ela. Veja isso. Será que podemos acompanhá-la?
- Temos de conseguir. Vamos logo.
Ele mudou a marcha e pisou firme no acelerador. O jipe pulou para o meio da estrada e continuou a subir o trecho íngreme. Queríamos seguir o vôo de Max, queríamos pelo menos tentar.
Estiquei a cabeça pela janela lateral, como uma criança. Pip fez o mesmo. Não conseguíamos tirar os olhos das asas brancas e prateadas que voavam na nossa frente. O ar frio me batia no rosto e tive a sensação de também estar voando. Era como se vivesse uma experiência de viagem fora do corpo.
O jipe, então, mergulhou num longo túnel escuro criado pelos ramos dos pinheiros e dos alamos gigantes. Max guinou para a esquerda, pegando outro caminho. A nova estrada era inteiramente de terra e cheia de calombos.
Estávamos seguindo Max. Estávamos confiando nossas vidas a ela.
CAPÍTULO 74
A Escola parecia perto. Ela podia senti-la na ponta da língua, por mais amarga ou nojenta que fosse. Era como um veneno mortífero sendo bombeado na corrente sangüínea.
E de repente Max mergulhou para o solo, fazendo os pneus do jipe cantarem para conseguir parar atrás dela. Frannie e Kit saltaram de imediato e Pip começou a correr em círculos, o que normalmente teria feito Frannie dar uma risadinha feliz. Não foi, no entanto, o que aconteceu naquele momento.
- O que houve, querida? - gritou Frannie, como sempre num tom de zelo, não de autoridade.
Max sentiu-se firmemente, inexoravelmente coagida. Como se tivesse uma corda amarrada na cintura. Sentia uma extrema tensão no pescoço, nos ombros, uma tensão que parecia penetrar em sua caixa torácica. Estava chegando a casa. Estava voluntariamente voltando à Escola.
Bem, talvez todos os segredos tivessem sido revelados... e ela pudesse ficar livre.
Ou talvez não!
Decidiu permanecer algum tempo no solo; andar, provavelmente, era mais seguro. Frannie e Kit vinham decididos atrás.
Max sabia disso sem olhar. Não precisava olhar. Podia ouvir a força da respiração dos dois e o sangue sendo bombeado pelos corações. Também podia sentir como o medo deles aumentava. Finalmente veriam a verdade. Tudo bem, que vissem por si mesmos. Só esperava que estivessem preparados.
De repente, Max parou!
Via a fronteira física entre a nova liberdade e sua antiga vida: uma cerca de arame. A poderosa visão deixou-a congelada e entupiu-a com uma torrente de horríveis lembranças. Ao construir mentalmente a imagem do tio Thomas e dos outros guardas horripilantes, teve vontade de vomitar - foi realmente o que esteve à beira de fazer.
A Escola se aproximava, estava quase lá, e era como se estivesse observando sua aproximação, esperando por ela, rindo pelo fato de ela ter voltado.
Era uma cerca de arame, com três metros de altura. Em cima, um arame farpado afiado como navalha. Do outro lado, ficava tudo que ela conhecia, tudo que amava e odiava do fundo do coração. Tinha visto homens parando caminhões na frente da Escola e talvez já não houvesse mais ninguém ali.
Uma placa branca de metal dizia: Entrada Terminantemente Proibida. Instalação do Governo dos Estados Unidos. Os Invasores serão Mortos.
Virou-se para Frannie e para Kit.
- Chegamos.
CAPÍTULO 75
Max tinha virado a cabeça e nos olhava. Olhos muito verdes, arregalados de medo.
-Não estão brincando - disse ela. - Já mataram invasores, acreditem. Vocês ainda podem voltar. Acho que é exatamente o que deviam fazer.
- Não vamos abandoná-la - disse Kit.
Pip latia, rodopiava em pequenos círculos. De repente, no outro lado da cerca surgiram dois dobermans a galope. Vinham de dentes arreganhados, latindo, rosnando.
Kit me arrancou de perto da cerca quando uma baba de raiva já voava das bocas dos cães.
Senti os pelinhos se arrepiarem na minha nuca. E não apenas por culpa dos cachorros. Na realidade, eu nem estava assim tão preocupada com eles.
Redes com arame farpado e cães de guarda no meio dos bosques eram bem apavorantes, mas ver as palavras ”instalação do governo dos Estados Unidos” junto a ”invasores serão mortos” me deixava tonta. Eu e Kit estávamos à beira de nos tornarmos invasores, pois a entrada ilegal fazia realmente parte de nossos planos.
- É esta a Escola? - perguntei. Max, no entanto, não estava ouvindo. Parecia ocupada com os dobermans.
- Bandit, Gomer, sou eu! - gritou energicamente para os cães. - Parem com isso. Vocês dois! Parem já com isso!
Surpreendentemente, o rosnado e os latidos foram diminuindo até cessar por completo. Seguiram-se fungadelas desconfiadas; por fim, um autêntico uf-uf de felicidade quando os cachorros reconheceram que era mesmo a Max.
- Não se preocupem. São meus amigos. E o latido deles é muito pior que as mordidas. - Ela sorriu.
- Por onde podemos atravessar? - perguntei a Kit. Ele começava a responder quando Max interrompeu.
- Frannie! - Estava puxando meu braço. - Há alguma coisa errada com Bandit e Gomer. Estes cachorros não eram assim! Por favor, venha dar uma olhada.
Eu me aproximei mas nem foi preciso examinar Bandit e Gomer para entender o problema. Os lombos pretos estavam moles, as costelas perfeitamente nítidas, a pele esticada contra
os ossos.
- Estão com bastante fome - disse eu.
Um eufemismo. Os cães estavam sofrendo de verdadeira inanição. Algum desgraçado estava matando aqueles dois de fome.
Kit voltou de uma caminhada pela cerca.
- Não consegui achar uma brecha, um único ponto de passagem no arame - disse. - Talvez contornando...
- Acho que posso voar com vocês e colocá-los lá dentro disse Max.
Era uma idéia tão fantástica que quase comecei a rir. Mas ela insistiu e com uma expressão tremendamente séria.
- Tenho certeza de que vou conseguir. Sou mais forte do que pareço.
- Nem pensar - Kit interveio e tinha razão. Nem pensar que uma menininha com menos de quarenta quilos pudesse enfrentar as leis da gravidade e erguer um adulto com duas vezes o seu peso.
-Posso fazer.-Max estava firme.-Você não sabe o que diz. Sei do que sou capaz.
Ouvi o que Max dizia e raciocinei. Claro, eu não tinha pensando no fator estresse. A tensão produz adrenalina. Além disso, quem poderia dizer que tipo de energia Max realmente possuía?
- Primeiro tento com você - disse-me ela.
- Acho que não é uma boa idéia, Max.
- Por que não? Acha que vai poder voar sozinha?
Eu me agarrei no arame liso da parte de baixo da cerca, escalei pouco mais de um metro e parei. Então Max me pegou pelo meio do corpo, apoiando meu diafragma em suas pernas. Sem a menor dúvida tinha muita força e, Deus, foi a coisa mais estranha!
Vi-me segura por trás e tive a sensação de que as asas de Max eram minhas. Ela bateu as asas com força e decolou. De repente, estávamos suspensas no ar. Começando a subir.
Pude sentir a brisa passando por mim. Sim, fazia frio no alto das encostas e o frio aumentava. Por um momento esqueci tudo, pois estava muito concentrada na experiência de ser transportada pelo ar de forma tão incomum. Por um breve instante, alimentei aquela ilusão de ter minhas próprias asas.
Pairamos. Flutuamos um ou dois segundos. E voamos.
Não para muito longe, mas, Deus do céu, eu estava voando mesmo!
CAPÍTULO 76
Max pousou-me no interior do perímetro cercado. Ao erguer os olhos, vi as grotescas e deprimentes fileiras de arame farpado. Agarrei a cerca, cravando os dedos na parte lisa do arame, esperando meu coração se acalmar. Olhei em volta e Max já se fora.
Voltara para o outro lado da cerca e se empenhava em levantar o Kit. Suas pernas, no entanto, mal conseguiam envolvêlo e a respiração era um repetitivo ufa, ufa, ufa. Parecia impossível que fosse conseguir voar com ele, mas eu também não tinha acreditado que ela pudesse me levar.
Talvez pudesse carregar pesos enormes, mesmo que só por alguns segundos. Até aquele momento, no entanto, suas asas apenas agitavam o ar, sem conseguir suspender o Kit e transportálo por cima da cerca.
- Max, pare por favor - gritei. - Ele é pesado demais. Você vai se machucar.
- Não, ele não é pesado demais. Eu sou extremamente forte. Não faz idéia da força que tenho, Frannie! Fui feita assim.
Do meu lado da cerca, os dois cachorros iam se aproximando. Na realidade já estavam um tanto perto demais para me deixar à vontade. A fêmea desenhava semicírculos na terra, rodando, dançando ansiosa. O macho, que tinha olhos pequenos e gotejantes, ficara paralisado a cerca de um metro de mim.
Uma advertência chocalhava em sua garganta e os lábios, descolados das gengivas, mostravam a cristalina grade dos dentes.
- Ei, pare. - eu disse a ele. - Dê um tempo. - Eu sabia lidar com cachorros que rosnavam e mostravam os dentes.
Meus olhos voltaram rapidamente a Max e Kit, que ainda tentavam flutuar no perímetro da cerca. Ela enfim desistiu, deixando-o suspenso na parte lisa do arame, bem agarrado. Por um instante ele tentou escalar sozinho, mas logo optou por descer em segurança para o solo.
- Valeu o esforço, meu bem - eu disse a Max, que estava visivelmente transtornada. Não gostava de falhar. Talvez porque ”eles” a tivessem feito para não perder.
Max voara sobre a cerca, pousara do meu lado e dizia ”bons garotos, tranqüilos...” para os dobermans. Era amistosa mas firme com eles, e achei que isso podia ter alguma relação com sua recente fuga.
E então começou a se afastar da cerca, num passo rápido, dirigindo-se para algum lugar.
Quase corri para me emparelhar com ela. As árvores iam-se fechando ao redor da pequena trilha e, quando um denso arvoredo ficava para trás, outro surgia, bloqueando a vista.
Uma muralha de pinheiros se abriu num bosque de bétulas que, por sua vez, cedeu lugar a um agrupamento de choupos que brilhavam como uma cortina de contas de vidro. Meu coração batia com força; soava mais alto nos meus ouvidos que os nossos passos. De repente, a trilha tortuosa desembocou numa clareira cheia de sol.
Na nossa frente se estendia um solar da virada do século, lembrando a sede de um grande spa. Inúmeras janelas se alinhavam na fachada de pedra e havia colunas brancas na entrada. Parreiras espessas cobriam a construção, subindo pelo antigo telhado.
Olhei para Max. Suas pupilas pareciam minúsculas pontas de alfinete. Cada íris era um disco cinza e translúcido fixado numa contemplação. Eu me lembrei de como os pássaros, sob cativeiro, costumavam contrair as pupilas.
- O que é isto? - perguntei.
- É o Laboratório Central do Colorado para Mutação Induzida - disse ela. - A Escola de Pesquisa Genética. Eu moro aqui.
CAPÍTULO 77
Nenhum barulho vinha do estranho, misterioso solar, o lugar onde Max fora mantida e onde só Deus sabe o que mais acontecera com ela.
Não havia guardas de segurança, nem carros ou caminhões estacionados. Nenhuma ameaça imediata. Pelo menos não que eu pudesse ver.
- Está muito silencioso, silencioso demais - disse Max num sussurro. - Tinha de haver guardas em algum lugar. Já do meio das árvores devíamos ter visto os guardas.
- O que isto significa?
- Não sei. Este lugar nunca foi assim.
Eu e Max nos esgueiramos pela orla da clareira e atravessamos rapidamente para um dos lados do prédio. Depois seguimos rente à parede de pedra até uma porta de carvalho, que ficava a meio caminho da extremidade oriental da construção. Não vimos qualquer deslocamento de vultos ou de sombras atrás das muitas janelas. Não parecia haver ninguém por perto.
Minha confiança crescia um pouco. Respirei fundo, estendi a mão e tateei na maçaneta de metal. A porta se abriu com facilidade e entramos no insólito prédio. A pesada porta se fechou com estrondo atrás de nós.
Senti um odor penetrante, uma umidade de podridão. Sabia o que era e tive ânsias de vômito.
- Tem alguma coisa morta - disse Max.
Tinha razão. Sem dúvida, havia alguma coisa morta. Algo se decompunha dentro do prédio e o cheiro era ácido, forte. Tapando nossos narizes e bocas com as mãos, continuamos a nos afastar da porta da frente.
- A ventilação não deve estar funcionando - disse Max, que não parecia excessivamente perturbada pelo cheiro... pela morte.
 Esquadrinhei o aposento em busca de câmeras de segurança. Sem a menor dúvida, estariam lá, estavam em alguma parte, mas não consegui achá-las. Haveria alguém nos vigiando naquele momento?
Desconfiei de que a pequena sala onde nos encontrávamos fosse usada para descontaminação. Kits de limpeza, muito amarelos, empilhavam-se numa grande lata de lixo perto da porta. Havia jalecos de laboratório pendurados em ganchos. Havia gente trabalhando ali, não é? Cientistas, se pudessem ser chamados assim. Médicos. Pesquisadores. Gente realizando algum tipo ilegal de experiências.
Havia um armário de metal, aberto, cheio de macacões limpos. Havia prateleiras com sapatos de sola de borracha ao lado de uma fileira de compartimentos com chave. Os compartimentos estavam vazios e limpos.
Jesus, onde tínhamos entrado? Que espécie de lugar era aquele?
Max apontou para a porta interna que saía da sala e fez sinal para que a seguisse. Tive a impressão de que o prédio era como um campo de extermínio nazista. Faziam as pessoas dormirem. Faziam experiências com seres humanos.
Seguimos um grande corredor. As sapatilhas de bale de Max eram silenciosas, mas meus sapatos rangiam. Uma comprida lâmpada fluorescente tremulava no teto acima de nós. O corredor de sinteco bege e azul desenrolava-se na nossa frente, sempre cortado por passagens transversais.
Chegamos a um espaço aberto, com cerca de cento e cinqüenta metros quadrados. Uma espécie de saguão comercial. Onde estávamos?
- O que é isso, Max?
- São apenas escritórios. Para negócios. Nada de interesse. Tudo muito enjoado.
- Que tipo de negócios? Ela deu de ombros.
- Do tipo maçante. Você sabe, negócios.
Qualquer detalhe da decoração que porventura tivesse existido naquele ponto do prédio havia muito desaparecera. Não existiam mais lambris, nem lareira, nem frisos nas paredes, apenas um amontoado mais ou menos casual de cubículos estilo escritório. Computadores repousavam em escrivaninhas opacas, de aço cinzento. Uma garrafa térmica de café num arquivo chamou minha atenção. A garrafa estava rachada e uma grossa pasta escura cobria a parte de baixo.
Peguei uma xícara numa escrivaninha. O.B. ’s Café, eu li. O círculo flutuante de mofo azul me dizia que a xícara estava ali havia pelo menos dois dias. E onde estaria O. B.? Quem era O. B.?
O que teria morrido e estava apodrecendo no prédio? O que acontecera na suposta Escola? Que tipo de negócios eram feitos naquele terrível lugar?
Olhei com um ar de interrogação para Max, mas ela já se afastava. Chegara ao lar doce lar. Obviamente aceitava todo aquele horror e loucura como normais. O silêncio era tão grande que mesmo minha respiração parecia alta. Prendi o fôlego e prestei atenção. Tive a estranha sensação de que logo que virasse as costas alguém ia pular de um daqueles cubículos. Mas isso não aconteceu.
Max abriu outra porta. Houve um ruído baixo, um clique. Será que nos fotografavam? Meu coração ainda batia forte. Eu estava cansada. As coisas começavam a ficar um tanto borradas. Onde estava Kit? Tudo bem com ele?
-Trabalho aqui - anunciou Max. - Geralmente isso está cheio de médicos.
CAPÍTULO 78
Entramos numa sala cavernosa que devia ter vinte metros de comprimento e uns dez de largura. Meus olhos varreram o lugar, abarcando tudo com rapidez. Parecia um laboratório padrão, mas dos bons, com equipamentos de primeira geração, muito caros. Quem montara? Quem estava bancando o negócio?
Havia uma dúzia de ótimas mesas de trabalho e por toda parte - nas mesas, nos tampos da pias - viam-se lâminas de microscópio. Os caros microscópios se enfileiravam em prateleiras.
Reparei que havia uma balança de precisão e vários areômetros. Vi também espectógrafos a laser, coifas com culturas de células e centrifugadoras de alta velocidade. Obviamente não tinham sido poupadas despesas na compra do equipamento.
Uma ponta de vaidade insinuou-se na voz de Max:
- Esta é minha mesa, Frannie. Venha ver. Ensinaram-me a ser uma pessoa útil e era assim que eu agia. Fui uma boa trabalhadora.
- Aposto que sim, querida.
Ela se sentou orgulhosa num banco alto de metal. Era seu local de trabalho. Quando acendeu a lâmpada fluorescente, vi uma pequena inscrição na mesa: ”domínios de Tinkerbell”.
Mostrou-me uma bandeja de recipientes, onde havia um coquetel de DNA. Explicou que usara um conta-gotas de vidro para transferir gotinhas de DNA para pratos com culturas em desenvolvimento.
- É como manipulamos e isolamos os cromossomos.
Não conhecia o tipo de prato cromado para onde ela apontou, sem dúvida algum novo recipiente de coleta. Antes, porém, que eu pudesse fazer mais alguma pergunta, Max escorregou do banco para o chão.
- Vamos - disse. - Há muito mais para ver.
•    Eu a segui.
- Estou bem atrás.
- Sei disso. Tenho um sentido auditivo realmente muito bom.
- Reparei uma coisa, a inscrição... Quem é Tinkerbell? Max se virou para mim. Parecia transtornada.
- Não é ninguém. Tinkerbell morreu.
Tinkerbell... Era como a chamavam na Escola? Desconfiei que sim e desconfiei de que ela não gostava disso. Tinkerbell era seu nome no laboratório, certo?
Atravessamos uma sala menor, cheia de brilhantes tanques criogênicos, todos de aço. O que estaria congelado e guardado naqueles tanques? Outro aposento, ainda menor, continha meia dúzia de máquinas para exames de sangue.
Nenhum equipamento usado de universidade. Aquela gente era extremamente bem patrocinada... Mas por quem? E para fazer o quê?
- Camundongos - disse Max, indicando um quarto fechado. - É o quarto do Mickey e é um tanto sujo. Tampe o nariz, Frannie! Não estou brincando. Você foi avisada!
O cheiro da morte parecia estar concentrado lá. Tentei prender a respiração; realmente prendi a respiração, mas nem isso ajudou. Achei que ia enjoar e bloqueei uma golfada de vômito.
Espiando por uma porta com abertura de janela, vi inumeráveis estantes de metal, cada uma com uma dúzia de prateleiras. Em cada prateleira, dezenas de gaiolas de plástico. As gaiolas estavam por todo lado, milhares delas, cheias de camundongos que se enroscavam apertados, em pequenos compartimentos de madeira.
O quarto do Mickey era um tremendo show de horror, a coisa mais terrível que eu vira em toda a minha vida. Nada sequer chegara perto daquilo. Agora havia um forte colorido no rosto de Max, que parecia inclusive inconsciente de minha presença. Falava consigo mesma, num tom sibilante; uma fala que acabava se reduzindo a frases ininteligíveis.
Tudo que pude entender era ”criaturinhas” e ”fazer dormir”.
Finalmente entrei com ela no quarto. Percebi de imediato que os ratinhos não eram animais comuns de laboratório. Calombos de carne se projetavam de articulações um tanto disformes. Alguns dos camundongos tinham membros a mais e marcas estranhas.
Geneticamente, os camundongos são muito próximos dos humanos, o que sem dúvida é um tanto assustador. Constituem perfeitos animais de laboratório porque oitenta e cinco porcento de seus genes são idênticos aos nossos. Podem ser facilmente contaminados com doenças humanas, como câncer, problemas cardíacos ou distrofias musculares, e podemos tentar, a partir do estudo de suas reações, curar essas doenças nas pessoas.
Gosto muito de animais e também sou médica, alguém que se beneficia da pesquisa animal. Posso defender apaixonadamente ambos os pontos de vista sobre o trabalho com animais. Mas, seja como for, não suporto a crueldade. Não importam as razões do cientista; ele é responsável pelo bem-estar dos animais. Comecei a pegar as gaiolas, sacudindo uma por uma.
- Não há comida nas gaiolas - sussurrei - e todos os animais estão mortos. Filho-da-puta.
- Foram postos para dormir - disse Max. Lágrimas brotavam em seus olhos.
Era algo que valia a pena ver. A bela menina chorando ante o destino dos camundongos mortos.
CAPÍTULO 79
Max detestava chorar, odiava dar demonstrações de fraqueza. Mas não havia como disfarçar na frente de Frannie. Estava mesmo perdendo o controle, indo de mal a pior, assustando-se com os próprios pensamentos. E o mais terrível era a raiva que sentia. A raiva por dentro. A ninguém devia ser permitido fazer aquelas coisas.
Seus sentidos pareciam agora incrivelmente aguçados - a visão, a audição, o olfato, o tato. Fora assim que se sentira no momento da fuga da Escola. Nem ela sabia que tinha sentidos tão poderosos. As narinas, por exemplo, diferenciavam os cheiros de café fervido, de metal aquecido, de diferentes produtos químicos, e perto dali... o cheiro de carne em decomposição.
Era errado. Era muito errado. Como Harding Thomas e os outros cretinos podiam ter chegado àquele ponto? Tudo porque ela fugira? Fora ela quem provocara tantas mortes? Não, por favor, isso não! Não por sua causa!
Em cima dos tanques criogênicos, havia um relógio cujo ponteiro dos segundos tinha parado. Max imaginou que o próprio tempo podia ter chegado ao fim.
Continuou andando. Entrou no familiar Controle Central da Rede e foi assaltada por lampejos de memórias. Recordações do tio Thomas, sempre com a mãozona na cabeça dela, num gesto protetor. Thomas gostava de lembrar que ”no fundo, era um cientista” e também gostava de sua pequena Tinkerbell - pelo menos foi o que sempre disse a ela. Era uma menina tão esperta! Grande Tink!
Mentiroso! Assassino. Verme. Mais baixo que uma ameba!
Max teve vontade de se enroscar e cair no choro. Onde estavam as pessoas - Tio Thomas e os outros? Brincavam de esconder com ela? Espiavam de algum lugar? Adoravam espiar. E, quando menos se esperava, davam o pulo do gato.
Pelo que Max sabia das escolas militares, vivera como se estivesse numa delas, com os dias sempre organizados, controlados. Estudava e trabalhava, era submetida a diferentes testes, exercitava-se ou via TV. Nunca recebia amor, estímulo, explicações. Era um dos espécimes, com a única diferença de ter a inteligência necessária para se tornar mais útil que os outros e para saber, bem no fundo, que não era apenas mais um espécime!
Depois do Controle Central da Rede, o corredor se bifurcava. Automaticamente, Max virou à direita. Conhecia o caminho, conhecia cada centímetro daquele lugar, podia circular por ele de olhos fechados.
Faltavam vinte passos - agora dez, cinco! Pronta para o lançamento!
Finalmente atingia a pesada porta de metal que levava ao Alojamento Infantil e foi nesse exato momento que ouviu alguma coisa.
Parou de respirar. Sentiu que a mente iniciava uma disparada maluca.
Ouvia mesmo - passos. Atrás dela! Em velocidade! Mais rápidos que os passos de alguém chegando depressa.
Virou-se para Frannie com o medo estampado no rosto. E então, quando já estava preparada para o pior, começou a rir.
Eram apenas Kit e Pip. Que alívio! Podia respirar de novo!
- Avançamos pela cerca e conseguimos passar-explicou Kit com a voz ofegante.
Max não soube o que pensar, e não fazia mal. Era ótimo que todos ficassem juntos; ninguém sabia o que ainda teriam pela frente.
- Kit, Frannie! - disse. - Venham comigo! É importante dar uma olhada aqui. Por favor. Foi por isso que voltei! Max abriu a porta do Alojamento Infantil... e gritou.
CAPÍTULO 80
Dei um salto atrás.
O que vi do outro lado da porta também me deu vontade de gritar. Uma vontade que, graças a Deus, foi sufocada pelo grito de Max.
Havia gaiolas no Alojamento Infantil e, dentro delas, quatro criancinhas enroladas em cobertores sujos. Todas estavam vivas e tinham asas.
- Peter, Ic, Wendy! - Max correu gritando. - Oz! Ela abriu a gaiola que prendia duas das crianças.
- Ah, pobre Petey. Wendy!
Peter e Wendy estavam enroscados um no outro, encolhidos num canto, ainda piscando com a súbita entrada de luz no Alojamento.
- Venham comigo - Max chamou num tom dedicado. Venham com a Max.
Os ruídos que produziram foram quase inaudíveis, mas carinhosos, lembrando um pouco o cantar de passarinhos.
Max se aproximou da outra gaiola. Abriu as portas. Um menininho veio de cabeça baixa, devagar, até escapulir da tremenda jaula.
- Ic! - disse ela - Icarus! Eu trouxe ajuda!
- Onde está Matthew? - perguntou o menino.
-Não sei, não vamos falar disso agora. Tudo bem, Ic? Você está bem?
- Tranqüilo como um zumbi - disse Ic finalmente, sorrindo. Espantoso!
Os guris caíam uns sobre os outros tentando tocar em Max e logo todos se agarravam a ela, murmurando saudações comovidas, proferindo gritos agudos, estridentes. De repente, como numa explosão de alívio, todas as crianças-pássaros começaram a chorar.
Como se fossem uma só.
Ajudando Max a tirar as crianças das gaiolas, fui dominada portremores. Eram tão bonitas, tão impecáveis em cada detalhe! Era como se eu tivesse encontrado um tesouro inestimável no lugar mais incrível. Cada uma parecia um milagre.
Controlei os nervos e o assombro pelo tempo necessário para avaliá-las. Estavam subnutridas e desidratadas, mas, por enquanto, sem maiores problemas. Não era assim tão mau, embora fosse se tornar em breve. Corri até a pia e dei-lhes um pouco d’água. Claro, tinham sido trancadas para morrer como os outros. Quatro belas crianças para morrer em gaiolas!
Meus olhos caíram sobre um menininho com cerca de sete anos. Tinha um corpo atarracado e a maior parte de seu tamanho estava na parte superior do corpo. As asas eram marrom-escuras; peninhas da mesma cor cobriam os pescoços, os ombros, e fundiam-se no contorno do couro cabeludo com um lustroso cabelo castanho.
O menino tinha a pele suada e o rosto lívido de tanto chorar. Mas os imensos olhos redondos brilhavam sem nenhum traço de medo.
- Meu nome é Ozymandias - disse ele, empinando o queixo de um modo brigão. - Quem é você, afinal? Uma cientista? Uma médica metida?
- Meu nome é Frannie - disse eu - e este é meu amigo, Kit. Viemos com a Max.
- São amigos, Oz - disse Max. - Por mais incrível que pareça!
- Alô, Oz, Ozymandias. - Kit estendeu a mão e, após breve hesitação, o menininho apertou-a.
Max puxou uma menina, uma bela criança de rosto rosado, com cerca de quatro anos. Os cabelos eram pretos, cortados em cuia, os olhos, amendoados. Usava uma camisola sem mangas, como a que Max usava da primeira vez que a vi. Ela estendeu as asas em minha direção. Eram brancas com pontas azuis. Bonitas.
As penas das asas farfalhavam, como uma saia de tafetá em volta das pernas de uma dançarina.
- Mamãe? - disse ela num tom de partir o coração.
- Chama de mamãe todas as mulheres mais velhas explicou Max. - Mas nunca teve mãe. Nenhum de nós teve.
Meu coração chegou à garganta e as lágrimas me encheram novamente os olhos. Jamais conseguiria explicar o que senti naquele momento.
Max fez uma apresentação gentil e quase formal.
- Ela se chama Wendy... Esta é Frannie, Wendy! E Wendy falou em voz baixa, rangente:
- Devia ver meu irmão gêmeo!
Apontou para o irmão, Peter, cópia quase perfeita da irmã, outra obra-prima.
Um garoto mais velho, quase da idade de Max, mantinha-se timidamente em segundo plano. O cabelo louro, com belos reflexos cinzentos, emoldurava todo o seu rosto e caía até os ombros. Era um tipo físico magro, de ossos compridos e dedicados.
Ocorreu-me que, embora todas aquelas crianças tivessem asas, vinham de linhagens diferentes. O que isso podia significar? Era uma indicação, é claro, de algo importante, mas eu não conseguia imaginar exatamente o quê.
Aproximei-me do garoto, que sibilou quando encostei em seu braço. Sem dúvida, estava com medo de mim. Como poderia confiar em alguém? Como qualquer uma daquelas crianças poderia confiar em nós?
Só com garantias de Max o menininho chamado Icarus deixou que eu o tocasse.
- Jamais ia lhe fazer mal.
- Não é a primeira vez que escuto isso. Todos eles falam assim. Mentirosos!
Quando Icarus tirou o cabelo louro do rosto, vi que as meninas dos seus olhos eram de um tom azulado, mas meio opaco, cinzento. Olhei para Max e ela me confirmou o que eu já sabia.
- ícariis é cego.
- É, sou uma espécie de erro-disse o garoto.-Todos nós somos.
CAPÍTULO 81
Kit deixara Frannie e Max com as crianças pequenas. Havia muita coisa que precisava saber sobre aquele lugar. Entrou num grande escritório, certamente a sala de alguém de posto elevado. Uma inscrição escura, com letras cheias de contornos, captou sua atenção: Não encare nada como decidido. Questione tudo.
- É o que estou fazendo - murmurou Kit para si mesmo.
Continuava a recear que algo pudesse acontecer a Frannie e às crianças. O medo ia crescendo dentro dele. Sentiu que agora era responsável por outra família e tinha obrigação de fazê-los sair sãos e salvos daquela encrenca. Encarava muito seriamente essa responsabilidade, que sem dúvida o assustava mais que qualquer outra coisa.
Examinou a sala. Nem fotos, nem bilhetes em qualquer uma das mesas. Nada de pessoal parecia ter sido deixado ali.
De quem seria o escritório? Tinha de ser alguém importante no esquema, pois era um aposento de quase sessenta metros quadrados, com uma ampla janela envidraçada que dava para o laboratório. No assoalho, um carpete de feltro, cinza-prateado. A escrivaninha era de madeira de lei, um antigo carvalho amarelo. Na parede acima dela, havia um painel de cortiça.
Ficou hipnotizado pelo que havia no painel. Estava olhando para uma impressionante coleção de desenhos a bico-de-pena que pareciam retratar aperfeiçoamentos de partes e órgãos humanos. Achou que o autor dos desenhos era um excelente artista... e estremeceu, um frio correndo na espinha. Quem quer que tivesse feito aqueles desenhos... queria ser Deus.
Pegou um envelope pardo, no qual havia desenhos de olhos com diferentes formatos, ilustrados em cortes transversais e laterais.
Da Vinci teria admirado a destreza artística, Kit pensou.
Havia uma seqüência complexa de desenhos de uma perna humana. A perna era mostrada em várias posições, algumas requerendo uma flexibilidade que Kitjulgava impossível. Havia o desenho esquemático de um braço com os dedos estendidos. Sobre o braço, caía uma folha transparente, na qual um novo braço fora esboçado.
Um novo braço.... Um braço humano melhor? É isso mesmo que estou vendo?
Os músculos pareciam mais longos; os dedos, mais aerodinâmicos. Certamente uma melhoria ante o presente modelo humano. Kit não queria admitir, mas não deixava de ser empolgante.
Era como se um desenhista extremamente talentoso de uma empresa especializada em partes do corpo humano estivesse esboçando os novos modelos para a próxima estação.
Estava tão absorvido pelos desenhos que quase não reparou no molho de pequenas chaves pendurado na argola de metal. E tinham estado todo tempo na sua frente. Kit as agarrou e o painel de cortiça quase veio abaixo. Nas chaves havia pequenas e cuidadosas inscrições.
A primeira era da gaveta da escrivaninha. Kit puxou a gaveta com tanta força que ela saiu do encaixe e caiu, espalhando tudo pelo chão.
Ele se ajoelhou e remexeu no amontoado de coisas: clipes de papel, moedas, selos, canetas - o lixo universalmente habitual das escrivaninhas. Havia uma faca Swiss Army no meio da desordem e ele a colocou no bolso. Quem sabe, podia servir para alguma coisa.
A chave seguinte abriu um comprido armário cinza de metal ao lado do painel de cortiça. Na escuridão de seu interior, havia algumas garrafas, todas, à primeira vista, muito bem fechadas.
Pegou a primeira, rotulada NÍVEL l, e suspendeu-a contra a luz.
Uma dúzia de embriões, não maiores que bolas de gude, flutuavam num líquido escuro.
Kit achou que podia perder o controle. E justamente ali, naquele escritório fantástico! Ele se virou, soltou com força o ar dos pulmões e, conseguindo se acalmar um pouco, voltou a prestar atenção nos embriões.
Humanos, pensou. Pequenos bebês mortos guardados num armário? Malditos!
Obrigou-se a examinar as cabeças embrionárias, os minúsculos dedos das mãos, os dedos dos pés chapinhando no fluido. Silêncio e morte. Seu estômago, sem dúvida, também chapinhava de um lado para o outro.
Estendendo novamente o braço para o armário, pegou outra grande garrafa, que segurou com cuidado com as duas mãos. Esta tinha a inscrição NÍVEL 2. Continha outra coleção de embriões muito semelhante à da primeira. NÍVEL 3 e NÍVEL 4 eram idênticas às outras garrafas.
Todo o armário estava repleto de vidros com embriões, embriões tão parecidos que ele não conseguiria realmente distinguir uns dos outros.
Pegou a terceira chave e enfiou-a na fechadura de um arquivo à esquerda da escrivaninha. A fechadura deu um clique. Kit puxou a gaveta de cima.
Encontrou pastas em ordem alfabética: memorandos internos sem importância e rascunhos manuscritos, ainda sem título, de alguma comunicação escrita.
A gaveta do meio continha revistas médicas datadas dos anos 80, recortes do DerSpiegel, uma revista alemã e um recorte do Times de Londres.
No fundo da gaveta de baixo, encontrou cadernos cheios de fórmulas e dados de pesquisa científica. Eram decepcionantemente incompreensíveis, mas pareciam importantes e ele decidiu pegar alguns cadernos mais finos.
No momento em que folheava os papéis, Kit sentiu um calafrio nas costas. Estava silencioso demais; tudo estava silencioso demais. Por que o laboratório se achava deserto? Fora abandonado? Por que não tinham levado as crianças-pássaros?
Os embriões nas garrafas pareciam ter morrido havia muito tempo e alguns desenhos estavam sujos. Havia manuscritos com anotações nas margens e muito riscados. Como se o autortivesse começado, parado, começado de novo e finalmente desistido.
Qual seria a relação daquele material com Max e as quatro crianças? As que tinham sido encontradas no alojamento do corredor, no meio dos próprios excrementos, morrendo de fome nas gaiolas? As crianças que provavelmente tinham sido postas para dormir.
Kit se virou ao ouvir um barulho atrás de si. Era apenas Frannie. Queria contar-lhe tudo, imediatamente.
- Dê uma olhada nesta coisa incrível! E me diga o que acha.
CAPÍTULO 82
- A arrogância deles é absolutamente espantosa - falei com raiva. - Jamais eu poderia imaginar uma coisa dessas!
Meus olhos se concentravam com avidez nos elaborados desenhos afixados no painel. Kit esvaziou uma caixa de papelão no assoalho e começou a levantar maços da papelada para me mostrar o que havia achado.
- A caixa está cheia de desenhos e diagramas de asas. Asas de todo tipo. Eram projetadas aqui. Dá para acreditar?
- Parece que estavam sempre reformulando os projetos básicos - disse eu, folheando um punhado dos desenhos. Quem fez isso está sem dúvida brincando de Deus, Kit!
- E o grupo de Boston e Cambridge, os meliantes do MIT.* Criaram suas próprias normas de vida. É como estão acostumados a viver. Anthony Peyser acredita que está acima do resto da humanidade e também acima da lei. Veja isto.
Ele me mostrou meia dúzia de memorandos da equipe. Embaixo de cada folha, havia duas iniciais escritas à mão: AP Anthony Peyser.
Eu remoía meu cérebro tentando descobrir se poderia ter conhecido o Dr. Peyser. Não me ocorreu ninguém, embora eu tivesse sido apresentada à maioria dos médicos e pesquisadores no campo da engenharia genética. David conhecia todos.
Onde, afinal, Peyser podia estar se escondendo? Aquele escritório teria sido dele? Seria ele o misterioso desenhista?
* Massachusetts Institute of Technology. (N. do T.)
Sentado na cadeira defronte ao computador, Kit digitou algumas letras, e uma lista de arquivos apareceu na tela.
- Estive dando uma olhada em alguns arquivos, que abri ao acaso. Em nenhum momento o computador pediu a senha. A porta de entrada aos arquivos estava escancarada. Por quê? Além disso havia um molho de chaves pendurado no painel... Porquê?
- Não pergunte a mim. Também não estou entendendo. Ainda não.
Bati os olhos na pilha dos desenhos que ele espalhara pelo chão. Desenhos a bico-de-pena, feitos por um desenhista de excepcional talento. Feitos, sem dúvida, com alto grau de pressão médica, embora também houvesse arte neles. Talvez o Dr. Anthony Peyser tivesse realmente trabalhado naquela sala. Sim, eu desconfiava, AP teria realmente andado por lá.
Puxei um desenho da pilha na minha frente. Mostrava um menino, um bebê, com o coração brotando de uma cavidade no peito, um enorme coração. Estudei-o cuidadosamente. Sem dúvida, a engenharia dos tecidos era muito problemática. Ninguém tinha um método seguro de interromper o desenvolvimento celular uma vez iniciado o processo.
Mesmo, no entanto, que este problema básico fosse resolvido, seria preciso dar um salto gigantesco para passar de órgãos desenvolvidos em animais de laboratório à criação de asas numa criança. E no caso de Max, por exemplo, não se tratava apenas das asas. Todo o seu sistema cardiopulmonar era de ave, o que me levava a concluir que o projeto fora bastante complexo e original.
Minha mente se agitava a um milhão de quilômetros por hora e achei que, num piscar de olhos, poderia ficar completamente louca. O mundo estava virando de cabeça para baixo. Alguém desafiara tudo que me haviam ensinado a acreditar e a aceitar.
Não encare nada como decidido. Questione tudo. Era disso que se tratava, não era? Fazer a vida evoluir, como o homem quisesse fazê-la evoluir.
Eu estava considerando possibilidades chocantes, que não me atrevera a imaginar antes. Uma criança com asas podia ter sido um acidente biológico, mas agora, depois que eu vira as outras quatro, tinha de admitir que existira a intenção definida de criar um tipo novo de ser. Ajudado por Deus ou a despeito de Sua vontade, alguém realmente o produzira, alguém conseguira sairse bem no papel de Deus.
O que eles tinham criado?
CAPÍTULO 83
Kit continuou a trabalhar furiosamente no computador. Como boa parte dos agentes mais jovens do Bureau, era bom na coisa. Lidava com computadores a maior parte do tempo e sentia-se bem perto deles. Puxou o Netscape, abriu-o. Em localizar, digitou - about: global
Queria consultar todos os sites que o usuário anterior do computador tivesse visitado nos últimos meses. Rapidamente escaneou a lista. Antes de sair de Boston, fizera um trabalho de detetive parecido com esse.
Digitou www.nobi.nbm.n.h.gov. Era o Genebank, o acervo (monitorado pelo governo) de todas as seqüências genéticas conhecidas.
Procurou os comandos em vermelho, indicando que o último usuário tinha cucado neles. Eram vários. Foi para taxonomia. Sob taxonomia - títulos, clicou árvore. Depois digitou aves no espaço de pesquisa.
Apodidae (andorinhões), Laridae (gaivotas), Columbidae (pombas) e Hirundinidae (andorinhas}, todos tinham sido pesquisados.
A trama ficava mais densa.
Kit fechou o site e voltou para a listagem about: global. Em seguida, foi para o site do Cold Spring Harbor Laboratory.
Depois de hesitar entre algumas entradas, tentou DSHL, publicações - Pesquisa do Genoma.
Foi para as edições de setembro de 1997, onde tornou a se confundir. O usuário anterior tinha pesquisado um estudo sobre Dupla Musculatura no Nelore Belga e no Gado Piemontês.
Gado? Ele parou de digitar e pensou no curioso título.
- Frannie - disse sem tirar os olhos do monitor. - Venha aqui um segundo.
Mostrou o que estava fazendo, incluindo o último item que encontrara.
- Por que alguém estaria pesquisando este material sobre gado? Faz alguma idéia?
- Talvez - disse Frannie, lendo o resto do artigo e voltando acima para reler certos trechos mais importantes. Pensou no que acabara de assimilar. - Safado! Acho que estou entendendo. Pelo menos tenho uma teoria grosseira.
Kit balançou a cabeça e ficou à espera.
- O artigo trata de um gene bovino que sofreu mutação. O estudo começou há doze anos. Alguém produziu dupla musculatura no peito das vacas. É minha teoria... Acho, Kit, que seguiram o mesmo caminho para criar uma grande musculatura no peito de Max, uma musculatura capaz de sustentar as asas e o peso do corpo. A coisa fez parte do projeto da menina.
CAPÍTULO 84
Eu e Kit pesquisamos por mais alguns minutos os arquivos do computador. Não encontramos, porém, mais nada que interessasse e continuamos a dar nosso giro pela Escola. A arrogância, a amoralidade dos cientistas que trabalhavam ali eram uma afronta a tudo em que eu acreditava. Tive vontade de procurar um deles e estrangulá-lo com minhas próprias mãos.
À nossa frente, havia uma porta fechada com uma sinistra placa de metal: Só Pessoal Autorizado. De imediato, é claro, Kit chutou e arrombou a porta.
- Concedida autorização especial - disse.
Fomos instantaneamente bombardeados com alarmes no interior do aposento e nos corredores. Entramos. O terrível cheiro de excremento humano caiu sobre nós como uma nuvem fétida. A escuridão era interrompida por reflexos de invisíveis monitores de vídeo, que lembravam o brilho de luzes de néon.
Encontrei o interruptor e acendi bruscamente as luzes do teto.
Trabalho há anos com animais e já me vira exposta a coisas realmente desagradáveis: maus-tratos, negligência, crueldade mesmo. Mas nunca defrontara com algo tão horrível - nada tinha chegado perto.
Estávamos no interior de uma espécie de enfermaria de cuidados, pediátricos intensivos. Por todo lado, equipamentos mantenedores da vida, um material caro, brilhando de novo. Entre eles havia cerca de uma dúzia de pequenos berços.
Sacudi vagarosamente a cabeça de um lado para o outro. Aquilo não podia ser verdade. Tentava segurar as lágrimas, mas era difícil. Virei-me para Kit, que ficara muito pálido.
Dentro dos berços, víamos crianças mortas ou quase mortas. Os monitores ao redor indicavam a completa falência de sistemas pulmonares, cardíacos e renais. Os estridentes sinais eletrônicos tentavam alertar o pessoal médico dos problemas, que eram de absoluta urgência. Vi bolsas intravenosas vazias, máquinas de diálise e exaustores parados. Vômito e excremento cobriam os pequenos pacientes.
Finalmente gritei. Não conseguia mais parar de gritar. Kit, então, estendeu a mão e me segurou. Tive de respirar com força e bem devagar para recuperar o controle.
- Temos de fazer alguma coisa-murmurei. -Não posso deixá-los morrer desse jeito. Não posso fazer isso.
- Eu sei, eu sei - respondeu Kit também em voz baixa. Vamos fazer o que pudermos, Frannie.
A sala estava pintada de amarelo-claro, com uma borda de engraçados animais de desenho animado correndo no alto das paredes. Os desenhos tornavam o efeito pior... muito pior. Ao lado de um refrigerador, havia uma prancha de flanela com figuras coloridas a lápis. Havia também, coladas aleatoriamente nas paredes, caras alegres pintadas de amarelo. Sim, aqueles rostos felizes eram terríveis! Eram simplesmente terríveis! Procurei me revestir de coragem para dar uma olhada no berço mais próximo, onde uma menina com alguns meses de vida, completamente nua, se contorcia e sacudia no ar as mãozinhas perfeitas. O minúsculo bebê não tinha rosto; era absolutamente desprovido de traços faciais.
Uma sonda fora inserida no pequeno estômago, mas a bolsa a ela ligada estava vazia. Quando pus suavemente a mão no alto da cabeça da criança, a linha verde do monitor cardíaco bateu mais depressa.
A menina estava consciente da minha presença.
- Ei, bebê... - sussurrei. - Ei, meu amor de menina... Fui até o refrigerador e escancarei a porta; depois fiz o mesmo com as portas de um armário. Fui jogando no chão ataduras, tubos e seringas, mas não havia comida em parte alguma.
Em desespero crescente, corri para outro berço, onde havia um bebê já morto e em decomposição. Tinha a cabeça do tamanho de uma bola de vôlei e a musculatura de uma criança de quatro ou cinco anos.
- Pobre, pobre coisinha!
Arranquei o cabo do monitor e rasguei o cateter preso na cabeça da criança. Cobri o rosto com um cobertor.
No terceiro berço havia outra criança morta. Era um bebê com cerca de um ano, cujo corpo teria o aspecto comum a qualquer criança daquela idade, não fosse a pele, toda seccionada em tiras irregulares. A pele não crescera no mesmo ritmo do resto do corpo. O bebê tinha as pálpebras invertidas, e os olhos salientes (e sem visão) erguiam-se fixos para mim. Nem vagamente quis imaginar a dor que a criança teria suportado antes de morrer, possivelmente por septicemia.
O quarto berço guardava gêmeos de mais ou menos um ano, unidos pela cintura. Um já morrera e, como compartilhavam inúmeros órgãos, o outro também não tardaria a morrer.
Pus, devagar, a mão no rosto frio da criança, ainda viva, e os olhos se abriram, agitados.
- Ei, bebê. Oi, alô...
Eu nada podia fazer por ela, ninguém poderia fazer nada sem os adequados suprimentos médicos. Soluçando, fui passando de berço a berço.
Um tubo de diálise, agora parado, balançava junto ao berço de um pequeno ser com feições simiescas. A criança estava subnutrida, desidratada, em estado comatoso.
Para onde quer que eu olhasse, deparava com crianças deformadas, de aspecto insólito. A meu ver, o mais trágico da coisa era que todas haviam nascido de zigotos humanos comuns e, se ninguém as tivesse submetido a mutações, poderiam ser perfeitamente normais. Era evidente que inúmeras experiências com seres humanos tinham sido executadas naquele lugar.
Kit também passava de berço a berço, arrancando fios elétricos e tubos. Era a única coisa que podíamos fazer.
De repente, vi Max ao nosso lado no laboratório e tive medo de sua reação. Queria poupá-la daquilo, mas era tarde demais. Os olhos dela estavam tristes, mas atentos.
- Puseram os bebês para dormir - murmurou. - Fazem isso com o refugo, com os que fracassaram no nascimento. Eles sempre agem assim. Agora vocês sabem.
Eles! Quem quer que fossem, eu os odiei do fundo do coração Q senti meus punhos se fechando ao lado de meu corpo.
- É melhor irmos embora já! - dizia Kit. - Eles voltarão, sem dúvida. Pelo menos mais uma vez. Não vão deixar que descubram isto aqui.
Olhei para Kit:
- E não vão deixar nenhuma testemunha - acrescentei.
CAPÍTULO 85
Eu, Max, Kit e as outras crianças avançávamos rapidamente pelos bosques de grandes pinheiros. Era como se estivéssemos num bizarro jogo de pique ou de esconder. As presas éramos nós.
”Eles” logo estariam atrás de nós. Éramos testemunhas de crimes horríveis, incluindo assassinato.
Por ironia, as montanhas e os bosques pareciam tão bonitos! A luz do sol tinha um rendilhado de sombra. Andorinhas e pequenos insetos cantavam. Folhas estalavam, agitando-se numa brisa com ligeiro aroma de pinho. Ao mesmo tempo, tudo era assustador como uma inesperada entrada no Hades. Conhecíamos a terrível verdade - pelo menos uma parte dela.
As crianças assobiavam, o que julguei inteiramente fora de propósito. Max, sem dúvida, liderava o grupo, e pelo menos até aquele ponto parecia estar fazendo um bom trabalho.
- Por que o assobio? - perguntei, me virando para Kit.
- Nem imagino - respondeu balançando a cabeça.
-Estão vindo! - gritou Max. - A turma da segurança! Os caçadores! Confiem em mim, vamos acelerar! Vamos sair daqui! Correndo, vamos!
Agarrei a criança mais próxima, Wendy, e conduzi-a para uma trilha estreita que mergulhava mais fundo na mata.
Kit segurou Icarus, o menininho cego, suficientemente assustado para ir com ele. Kit puxara o revólver, uma arma escura, medonha, mas também confortadora.
- Wendy, olhe! - gritou Peter para a irmã. - Olhe pra cima! - Ele estava colado no chão, atônito com a visão de Max voando no céu.
Por mais que a visse voar, eu ficava sempre bestifícada com a imagem indelével e miraculosa. Entendi como Peter se sentia embora aquela não fosse uma boa hora para contemplações.
- Peter! Venha cá! - gritei. - Venha neste minuto! Mexa-se!
Sem soltar Wendy, levantei-o quando ele se aproximou e os dois se agarraram ao meu pescoço. Não eram pesados demais, mas ainda assim pesavam bastante.
Achei um abrigo temporário entre os arbustos. Tiros começaram a ecoar à nossa volta e um deles abriu um buraco escuro no tronco grosso de uma árvore próxima. Suspendi novamente as duas crianças, tropecei um instante, mas logo comecei a correr o mais que podia.
Olhei para trás a tempo de ver Max se jogar de uma árvore contra um dos homens que atiravam. O sujeito vestia um traje de camuflagem, verde e marrom, como os caçadores e ecologistas que costumavam circular pela área. Max caíra sobre o homem com uma força tremenda. Numa queda de quatro a cinco metros de altura, quarenta quilos tinham o impacto de um cofre.
Estalo de osso! Ouvi o estalo e o homem gritou, se contorceu, parecendo estar sentindo muita dor. Não tive pena dele.
Por um bom tempo, houve novamente silêncio, mas um silêncio quase tão assustador quanto o estrondo e o eco dos tiros. Vinha muita gente atrás de nós? Onde estavam?
Kit se abaixou e se colocou em posição de tiro. Um único tiro saiu do semi-automático. Outro guarda caiu segurando o ombro, como uma árvore que tomba.
Senti náusea. Eu era uma testemunha. Todos nós éramos.
Então o solo sob minhas botas de alpinismo se sacudiu. Foi uma poderosa explosão que fez estremecer cada árvore, cada arbusto e o próprio chão da floresta. Quase fomos derrubados pelo choque e pela concussão.
A atmosfera à nossa volta parecia se romper. Os bosques, de repente, crepitavam de calor. Senti o cheiro de fumaça e um aperto no coração.
Fogo.
Duas corças malhadas passaram por nós num trote barulhento, pássaros esvoaçavam em nuvens pretas. Subitamente, a mata ficava repleta de animais assustados e gente mais assustada ainda.
- A Escola! - gritou Max. - Foi lá atrás, na Escola.
- Uma bomba - gritou Kit olhando para mim. - Estão se livrando das provas. Estão arrasando o lugar. Continuem andando! Em frente, vamos! Não podemos fazer nada para impedir.
Reunimos as crianças e não deixamos que parassem. Entre escorregões, quedas e arranhões conseguimos descer a encosta e atravessar um pequeno vale. Logo subíamos penosamente uma nova encosta, descíamos pelo outro lado e corríamos. Corremos até ninguém agüentar mais e depois ainda corremos mais um pouco.
Cinco crianças, dois adultos - sete testemunhas.
CAPÍTULO 86
Finalmente paramos para descansar e procurarmos nos esconder atrás de um grupo de antigas pedras redondas. Estávamos exaustos, de olhos arregalados e bocas abertas, num silêncio atônito. Nossa vitoriazinha recente era apenas um momento de pausa. Tínhamos posto fora de ação dois palhaços da segurança, mas e daí?
Cinco minutos se passaram, dez. Ninguém havia aparecido atrás de nós. Pelo menos ainda não.
Kit subira numa árvore alta, muito copada. Queria fazer um rápido reconhecimento. Fiquei impressionada com sua agilidade para subir e descer da árvore. Sim, era cheio de truques.
- Não vi ninguém nos perseguindo - informou. - Mas isso não significa grande coisa. Sabem que ainda teremos de percorrer um longo caminho com os garotos a reboque.
Max, a meu lado, batia aflita em meu braço.
- Posso ensiná-los a voar - disse. - Será fácil para eles, Frannie. Tenho de fazer isso. Ficarão mais protegidos dos guardas. Como eu.
Logo anoiteceria e fiquei apreensiva, assustada com o que podia acontecer às crianças. Achei que não conseguiríamos completar em segurança, no escuro, o caminho de volta. Até aquele momento, sempre encarara os bosques como um refúgio pessoal. Já não pensava assim.
- Escurece muito depressa - eu disse a Max. Não queria assustá-la, mas torci para que percebesse o que eu queria dizer.
- Poresse lado não há problema-respondeu. - Tem lua. Por favor confie em mim. Temos instintos para essas coisas. Além disso, podemos ver melhor no escuro que você.
Eu estava realmente muito impressionada com Max. E pensar que poucos dias atrás ela ainda se atirava gritando contra nossa rede. Sim, Max podia assumir a responsabilidade por aquele pequeno séquito! Eu confiava de fato em seu julgamento, em seus instintos.
Ela achava que estava na hora de colocar os passarinhos para fora do ninho. Provavelmente tinha toda razão. E seria uma coisa assombrosa de se ver.
O primeiro vôo!
CAPÍTULO 87
Agrupamo-nos na plataforma que ficava no ponto mais alto de um afloramento de rocha. A lua brilhava no céu. Parecia ameaçadora, como o lustre na abertura de O fantasma da ópera. Era uma bela noite, que a perigosa situação em que nos encontrávamos tornava absolutamente fantasmagórica.
- Entendam como a coisa funciona-dizia Max, num tom de firmeza - Começa na cabeça. Vocês ordenam que a mente suba e saia do corpo. E depois é só deixar as asas fazerem o trabalho. Esta noite vai ser incrível. Passaremos voando na frente da lua, como acontecia no E. T. Estão lembrados da cena do filme?
- É isso! - gritou Icarus. - Sou o E.T., o herói. Eu sei como é!
Os olhos dos outros garotos rolaram nas órbitas, mas ninguém argumentou com Icarus. Observei que as crianças apoiavam-se de modo incomum, sendo extremamente generosas umas com as outras. Como se tivessem instintos de vida grupal (ou talvez de vida em bando).
Contemplei o pedregulho escarpado que se elevava a uns cinco metros do chão. Mal tinha altura para a decolagem de uma experiente criatura voadora, embora servisse perfeitamente para uma bela queda se as crianças menores não estivessem preparadas. Prendi um pouco a respiração. Mas confiava em Max.
- Olhem para mim! - dizia ela às outras crianças. Façam exatamente o que vou fazer.
Primeiro Max bateu as asas sem sair do lugar. Depois, quando houve uma brisa forte e constante, ela simplesmente pulou do alto da rocha.
- Uau! - gritaram em coro os guris. - É isso, Max! Uauuuu! Realmente incrível!
Por um momento, Max ficou flutuando muito à vontade. Depois baixou a cabeça para ter certeza de que todos os olhares estavam pousados nela (certamente estavam) e subiu para outra altitude.
Voou para a copa das árvores, o que foi simplesmente fabuloso. Os pelinhos em minha nunca ficaram arrepiados e minhas pernas tremeram. Eu não perderia aquilo por nada deste mundo.
Usando bom senso, ou instintos, ela fazia a coisa parecer realmente simples. Sem acrobacias nem ostentação, limitou-se a um gracioso loop circular e voltou para junto dos outros.
- Posso fazer. - Peter se vangloriou, empinando o peito e o queixo. - Sem problemas, é mole!
- Se ele pode, eu também posso - disse Wendy. Esperei a vida inteira pela hora de voar.
- Vôo nos meus sonhos, de dia e de noite - Icarus nos contou. Eram guris tão amáveis, tão bons uns com os outros. Como alguém teria a coragem de pensar em fazer-lhes mal?
- É melhor me deixaram ir primeiro - disse Oz, tentando passar à frente dos gêmeos menores.
- Não, eu! - insistiu Peter, sem sair do lugar.
- Parem com isso! - falou Max com firmeza. - Não há diferença, pois a cada vôo, a cada segundo, vamos ter sempre que emparelhar uns com os outros. Não fiquem criando caso, bando de cretinos! Parem com isso!
- Ei, ela çstá furiosa - disse Peter, baixando os olhos.
- Para não haver mais problemas, por que não pulamos juntos?-disse Max.-Alguma objeção?... Não? Então calemse para sempre.
Eu estava bem atrás das crianças e tive vontade de dizer: ei, depois sou eu! Queria voar também, estava completamente dominada pela sensação de que seria possível!
Era lua cheia. Pude enxergar muito bem quando as crianças, as cinco crianças, se lançaram da rocha. Todas ao mesmo tempo.
- Veja isso... - murmurou Kit. - Ô, ô... - Ele apertava suavemente os meus dedos.
Suspirei. Era Peter! Seus primeiros movimentos tinham sido compreensivelmente incertos. E de repente ele simplesmente caía na vertical!
- Ei... socorrrrol - gritava Peter. Max se precipitou para baixo dele.
Com habilidade, agarrou-o pela parte de baixo do tórax e o menino começou a bater as asas. Cada vez com mais força. Aplicando toda a sua energia no movimento.
- Empurre o arpara baixo - atiçava Max. - Empurre o ar, tire a droga do ar da sua frente! - Ela o ensinava a fazer a coisa. - Agora relaxe, Peter. Não precisa ficar nervoso. Você foi feito para isto.
E Peter conseguiu nivelar. Max lhe inspirara suficiente confiança. Primeiro, ele ficou apenas flutuando, mas logo começou a ganhar altura. Os outros estavam indo muito bem. O tom do céu, uma espécie de roxo-azulado, não deixava de constituir esplêndido pano de fundo para o espetáculo aéreo.
-Meu Deus, Frannie - dizia Kit do meu lado. -Ninguém jamais viu algo assim. Nem mesmo aqueles malditos cientistas!
- Veja como eles vão...
Sem complicação. Era como se as crianças estivessem há anos voando juntas.
Max parecia dar algumas instruções simples: como se inclinar para fazer uma curva, como desacelerar. Tinham assobiado nos bosques e assobiavam agora
Sssssssssssss...
A princípio eu não pegara a coisa. Logo, porém, compreendia que o assobio era um recurso para proporcionar a Icarus uma visão.
Ssssssssssss...
Depois de atravessarem juntas a ravina funda e assustadora, as crianças formaram um oito no ar. Sem fôlego, eu as contemplava.
- Estou aqui, Ic! - gritou Max. Icarus assobiou.
- Estou sentindo você - disse ele, a voz ecoando na atmosfera da noite. - Sinto o seu movimento no ar!
E, embora estivesse um tanto escuro para ver com nitidez o rosto dele, eu poderia jurar que ícarus não cabia em si de felicidade.
CAPÍTULO 88
Fiz uma concha com as mãos e gritei em voz alta e clara:
- Hora de descer, está bem, Max? Agora!
Para alívio meu, ela agitou rapidamente as asas e mandou com energia o pequeno esquadrão aterrissar. Um atrás do outro, foram todos pousando, pezinhos batendo em cheio no chão de terra acompanhados por risos estridentes, por aquela algazarra pura que só as crianças parecem capazes de sentir e demonstrar.
Na realidade, senti-me culpada por ter dado ordens a Max, sabendo até que extremos o senso de disciplina fora diariamente incutido nela. Mas tinha de ser feito. Ainda não estávamos seguros naquela mata. Nem mesmo perto da segurança. Logo chegariam homens armados; talvez já estivessem por perto.
Abracei todos eles. Mesmo Pip ficou delirante de felicidade. Mas não havia tempo para saborear um feito tão espantoso.
O ar estava esfriando muito depressa, como ocorre nas montanhas no final do verão. Kit não queria acender uma fogueira e tinha razão, infelizmente. Seria muito mais seguro sem a fogueira, ainda que bem mais frio.
Achamos um lugar razoavelmente protegido atrás de dois pedregulhos, que, depois de limpo dos gravetos e do cascalho, se transformou numa boa área para dormir.
Usamos pilhas de folhas e galhos secos para nos aquecer durante a noite. As crianças se enrolaram nas asas e ficaram protegidas.
- Amanhã já estaremos num lugar melhor - disse às crianças.- Talvez em minha casa.
E talvez não.
- Promete? - perguntou Oz.
Tive vontade de prometer crepes com groselha e todo o leite que ele pudesse beber. Tive vontade de prometer uma verdadeira cama sem grades e uma vida feliz para sempre. Mas não tinha idéia sequer do que aconteceria nos próximos vinte minutos.
- Durmam - disse eu, pondo a mão na cabeça de Oz. Bons sonhos, OK?
Oz mostrou um sorrizinho cínico e não pude censurá-lo. Sem dúvida, minhas promessas não seriam muito confiáveis. Debrucei-me quando ele se juntou ao grupo de crianças-pássaros. Estavam arranhadas, machucadas e eu não tinha sequer um esparadrapo. Nem mesmo um cobertor rasgado para jogar em cima delas.
Quando Max começou a rezar, mordi os lábios para eles não tremerem. Os demais se uniram a ela e acrescentaram nomes à lista daqueles que Deus ia abençoar. Só reconheci a Sra. Beattie. Não sabia se os outros nomes eram de gente ou de animais, de vivos ou mortos. Havia muita coisa a respeito daquelas crianças que eu ainda não sabia.
- E Deus abençoe Frannie e Kit - dizia Max -, nossos bons amigos. E abençoe também o Pip, o amigo de quatro patas.
Quem teria ensinado as crianças a rezar no meio de tanta crueldade? Seria a influência da Sra. Beattie? Seria um instinto? Perguntei-me se Deus estaria ouvindo. Aquelas crianças tão extraordinárias precisavam Dele e tinham de estar sob Sua proteção. Elas criavam um complicado problema filosófico, que seria melhor deixar para os teólogos.
Assim que os outros dormiram, Max sentou-se ao nosso lado. Kit perguntou pela enésima vez acerca da Escola. Quem, queria saber, eram as pessoas que trabalhavam ia? Max ainda se referia simplesmente a eles e tinha medo de abordar qualquer tema relacionado à Escola. Durante anos, fora condicionada a não deixar escapar uma só palavra.
Kit não parava de tentar persuadi-la, de tentar induzi-la a falar.
- Vão nos fazer dormir - disse ela por fim. - Realmente não estão brincando.
- Por que tem tanta certeza, Max? - perguntei. Esperava, torcia para que me contasse alguma história de verdadeiro bichopapão, alguma espécie da versão frankesteiniana do ”Adivinhe quem vem para jantar”.
- Eles matam os bebês nas jarras. - Ela me olhou frontalmente quando disse isso. O rosto era uma máscara de rigorosa verdade, de total seriedade. Parecia pálida. - E têm uma jarra assassina para cada um de nós.
Tomei fôlego. Conhecia essas jarras assassinas. Eram recipientes cheios de monóxido de carbono. Jarras assassinas eram usadas para fazer eutanásia em camundongos, depois de os animais terem cumprido sua missão nos laboratórios de pesquisa.
- Mas não fariam crianças como você dormir... - disse eu.
- Sim, certamente fariam crianças como eu dormir-disse Max. Seus olhos tinham ficado estreitos, duros. - Sempre colocaram para dormir o que não prestava mais.
Sua voz era quase inaudível, como se estivesse falando sozinha.
- Puseram Eve para dormir. E Adam... e, eu acho, também meu irmão Matthew.
CAPÍTULO 89
Sentei meio imprensada contra uma das pedras e procurei deixar um pouco da minha recente neurose de guerra se dissipar. Não sou muito de xingar, mas fiquei pensando: grande merda, grande merda, grande merda... Que dia alucinado. Percebi que havia várias horas meu coração não parava de martelar e me sentia incrivelmente exausta, como se tivesse sido espancada. Sabia ainda que tinha uma tremenda necessidade de dormir.
Não conseguia, no entanto, fechar os olhos. Minhas pálpebras já não funcionavam como deviam. Eu estava arrasada.
Estava também muito deprimida, atônita com o que ouvira de Max: tinham então levado regularmente à morte crianças como ela?
Sempre colocaram para dormir o que não prestava mais. Deviam encarar a coisa como um procedimento operacional padrão.
Puseram Adam [Adão]para dormir. E Eve [Eva] também.
Mas quem eram essas crianças com nomes tão significativos e por que tinham sido mortas? Por que tinham virado refugo?
Kit veio sentar-se ao meu lado. Parecia exausto, preocupado, o que era muito natural.
- Quero lhe confessar uma coisa - disse num murmúrio rouco. - Uma coisa que não posso mais esconder.
Não estava esperando por isso. Não naquele momento.
- Qual é a confissão? - Encarei-o. Meu estômago já afundara alguns centímetros. Eu não estava precisando de qualquer ”confissão”, mas Kit já não poderia retirar o que disse.
- Não quer parar de ler nos meus olhos? - perguntou.
- Não estou fazendo isso... Tudo bem, estou... mas vou tentar evitar. Agora fale. O que tem a me dizer?
Sentado de pernas cruzadas, me olhando de frente, ele pensou mais um pouco, mediu as palavras e disse por fim:
- Há algumas semanas, um pesquisador da área genética foi morto em sua casa em San Francisco. Com ele morreu também a namorada, a moça com quem ele dormia. Foi uma coisa brutal, sangrenta. Encenada para parecer um assalto violento. O problema é que não foi um assalto. O tal pesquisador ajudara a descobrir um ”gene condutor”. O gene condutor foi provavelmente usado na Escola.
Eu sabia que genes condutores tornavam possível a transferência de material genético de um organismo para outro. O condutor age como uma espécie de chave, abrindo uma fechadura de DNA, mas não é uma chave capaz de promover uma alteração geral. Diferentes alterações genéticas dependem de diferentes genes condutores.
- Quem lhe contou? - perguntei. - E por que não me disse isso há mais tempo, Kit? O que mais ainda está escondendo de mim?
- Tenho de fazer a coisa do meu jeito...
- Tudo bem - Suspirei. - Faça do seu jeito.
- Tenho certeza de que quando eu acabar, você vai compreender.
- Tenho certeza de que sim.
- O pesquisador, um homem chamado James Kim, confidenciou a um amigo no MIT que ele e um grupo muito fechado de biólogos participavam de uma rede subterrânea de laboratórios. Faziam experimentos ilegais, mas altamente produtivos. Ele estava trabalhando com uma equipe cujo centro de atividades situava-se na área de Boulder. O vazamento desta informação custou-lhe a vida. E também a vida do médico que lhe serviu de ouvinte no MIT.
- Espere, Kit, está me dizendo que sabia das experiências com seres humanos? - perguntei. - Sabia disso antes de chegarmos à Escola? Por favor, me diga toda a verdade!
- Não - disse Kit sacudindo a cabeça. - Eu não tinha certeza de nada. Vim até aqui para procurar a equipe clandestina de pesquisa. Isto é, queria saber se existiam realmente como equipe estruturada e se estavam realmente no Colorado. Não sabia se ia encontrá-los nem o que faria em caso positivo. Ainda não sei. E nunca esperei deparar com os horrores que vimos na Escola nem tinha a menor idéia da existência de Max. Quem poderia ter previsto a coisa exata? Quem poderia ter sonhado com isto?
Sentei-me reta contra o desconfortável espaldar de rocha. De repente, já não me sentia tão cansada.
- Kit, quer me dizer exatamente o que está havendo? É como se eu tivesse enlouquecido. E sei que estou correndo risco de vida. Sei que essas crianças também estão em grave perigo. Apenas me diga toda a verdade. Eu mereço isso, não acha?
- Estou tentando fazer o melhor que posso, Frannie. Mas nem tudo é preto no branco. Algumas coisas são incrivelmente difíceis de entender.
- O que justifica o seu silêncio...
Ele suspirou, balançando devagar a cabeça.
- Sim, justifica. E é preferível o silêncio à mentira. Principalmente quando não se tem certeza se seria mesmo conveniente dizer toda a verdade.
Senti minha garganta engolir em seco. Não conseguia tirar da cabeça os crimes hediondos, os assassinatos totalmente impiedosos que vira na horrível ala pediátrica da Escola. Seria alguma coisa relacionada a isso que ele queria me contar? Seria outra coisa?
- Kit. Fale - eu disse por fim - Fale já!
- Está bem. - Ele respirou fundo. - Acredito que David participava do projeto. E que foi por isso que o mataram. Seu marido foi assassinado pelas pessoas com quem trabalhava.
- Meu Deus! - Percebi que estava me apertando com os dois braços. Vai passar, eu pensei. Vai passar. Minha cabeça girava. Imagens de um ano e meio atrás lampejavam em meu cérebro. Pareciam frescas e muito nítidas. A morte de David. Estava olhando para Kit sob o luar branco como giz, perplexa. Estava em choque e provavelmente não ia aceitar a idéia. Como poderia David ter-se envolvido em algo tão terrível? Como podia ter-me enganado de modo tão convincente e durante tanto tempo?
- O que mais? - murmurei. Senti que havia mais. Podia ver nos olhos de Kit.
- Só mais uma coisa - disse ele. - É que não estou aqui oficialmente. E, na realidade, o FBI já me afastou do caso. E... meu verdadeiro nome não é Kit Harrison.
CAPÍTULO 90
Senti-me tão desconsiderada, tão ofendida. Quis sair de perto de não importa quem, mas estava cansada demais. Talvez estivesse em estado de choque. Estava também com medo... de Kit Harrison.
Mal podia falar, mas consegui articular algumas palavras:
- Por favor, me deixe em paz.
- Meu nome é...
Fiz sinal para ele se afastar.
- Não interessa. Não é importante. O pavio de Kit queimou de repente.
- Eu sou de Boston. Também trabalhei algum tempo em Washington. Sou, há doze anos, agente de primeira linha do FBI. Foi por não querer largar a porra desta investigação que fiquei ameaçado de perder o emprego! Aliás eu nem devia estar aqui. Acham que estou de férias em Nantucket. Mas vim para cá, Frannie, para tentar fazer a coisa certa!
Olhei para ele, encarei com dureza aqueles enganosos olhos azuis.
- Não era para Nantucket que sua esposa e seus filhos estavam indo quando o avião caiu?
Ele assentiu. Tinha o rosto muito corado e os olhos vermelhos.
-Frannie, desculpe por tudo. E sinto muito por seu marido, David. Não costumo mentir. Na realidade, eu nunca minto. Mas não tinha escolha. Estou obcecado por este caso, admito. Há dois anos venho correndo no mesmo rastro.
- Tem certeza do que disse sobre David? - murmurei.
- Sim, tenho certeza. Conversei com outra pessoa do MIT, uma médica. Ela sabia alguma coisa do grupo clandestino e fez menção ao seu marido, garantindo que ele fora assassinado. O nome de David surgiu quando estávamos falando do Dr. Kim, de San Francisco. Desculpe por estar lhe dizendo isto.
Ergui os olhos para o céu escuro que se debruçava sobre nós. Um vazio parecia ter tomado conta do meu estômago e tive necessidade de mudar de assunto.
- O que acha que aconteceu com os homens que nos perseguiam?
Kit, ou quem quer que fosse, balançou a cabeça.
- Talvez o incêndio e a explosão na Escola os tenham distraído. Mas sabem que vão nos pegar porque teremos de descer a montanha com cinco crianças a reboque.
- Talvez um de nós devesse ir na frente.
Ele balançou negativamente a cabeça. Agora seu olhar era muito intenso.
- Frannie, me diga o que está pensando sobre os laboratórios e a Escola. Qual é seu ponto de vista, quais são suas hipóteses, o que acha que está realmente acontecendo? O que sentiu quando estávamos lá? Queria muito saber.
Tentei me concentrar, pensar disciplinadamente, mas não foi muito fácil.
- Honestamente, a princípio tive um choque. Depois senti pena. Uma sensação de que minha alma fora invadida. Obviamente, estavam fazendo experiências com seres humanos, entre outras coisas terríveis.
- Que outras coisas?
Uma idéia me acossara com muita força na Escola. Tão apavorante que preferi que sumisse. Mas não conseguia livrarme dela.
- Por mais que estes supostos cientistas manipulem e combinem material genético, as crianças têm que ter vindo de um tronco humano. Não foram exatamente cozinhadas em provetas de laboratório. Foi um sistema misto, um pouco disto, um pouco daquilo. Herdaram os cabelos, os olhos e a cor da pele dos pais, assim como uma parte da capacidade intelectual. Max, Oz, Peter, Wendy, íc, todos possuem mães e pais humanos. Tenho certeza disso.
O olhar de Kit, incrivelmente profundo e indagador, grudara
no meu.
- Por favor, continue Frannie-disse ele.-Preciso ouvir sua opinião, saber de qualquer suspeita que você tenha. Estou tentando juntar as peças.
-Na realidade, nenhum bebê vem efetivamente de um tubo de ensaio. Pelo menos ainda não. Só é possível engendrar uma criança num ambiente natural. Mesmo os embriões de camundongos produzidos pela engenharia genética têm de ser implantados em camundongos-fêmeas para se desenvolverem. Max e as outras crianças foram criados em úteros de mulheres. Possuem mães humanas.
Meus olhos finalmente estavam se fechando. Não conseguiria mantê-los abertos um minuto mais. Infelizmente, os pensamentos tenebrosos continuavam chegando em ondas sucessivas. Que mulheres teriam cooperado com as experiências? Como os embriões geneticamente manipulados teriam sido obtidos? Onde estavam as mães verdadeiras?
- Qual é o seu verdadeiro nome? - murmurei por fim. Tinha de saber.
- Meu nome é Tom - ouvi-o dizer. - Eu me chamo Tom Brennan. Sinto muito não ter dito antes, Frannie. E sinto muito a respeito de David.
Balancei a cabeça. Estava às lágrimas, mas procurava obstinadamente contê-las. Diante dos meus olhos, espocou a imagem de David.
- Eu também sinto - disse eu.
CAPÍTULO 91
Eram nove e meia e Kit-Tom, com ar pensativo, melancólico, fazia a ronda no perímetro do esconderijo. Pelo menos operava com a competência que se poderia esperar de um agente. Até então, sem dúvida, fora capaz de proteger todo mundo, mas... por quanto tempo ainda conseguiria fazer isso?
Muita coisa o preocupava naquele momento, embora a história do marido de Frannie lhe causasse um incômodo todo especial. Achava péssimo ter sido o causador da depressão que tomara conta dela.
Pop - alguma coisa o atingiu na cabeça. Ele deu um salto atrás e, meio apreensivo, olhou para cima.
Lá estava. Max saltitava, pousada no galho forte de uma árvore. Fora ela quem jogara a pequena pinha em sua cabeça.
- Engraçadinha-ele gritou. - Qual é o problema? Além, é claro, de você aí em cima?
Ela sorriu.
- Quero lhe mostrar uma coisa. - Apontou para um morro distante cujo contorno aparecia num clarão vermelho. - Está vendo, o fogo ainda continua...
Kit precisava ver com os próprios olhos. Firmando o pé no tronco da árvore, conseguiu alcançar um galho mais baixo e se apoiar numa ramificação. Logo, no entanto, continuou a subir com rapidez e perícia, até chegar ao galho onde Max se sentara.
- Veio pelo caminho mais difícil - disse ela fazendo uma careta.
-Não sei voar, Max. Ou pelo menos ainda não devo revelar que sou o super-homem.
- Ô, tudo bem! Comigo seu segredo fica muito bem guardado. A sete chaves - Ela imitou a risada frenética de Matthew, mas instantaneamente se arrependeu. Encolhendo-se, abriu espaço para Kit no galho da árvore.
- Vou ficar vigiando daqui - disse ele. - Por que você não desce para dormir um pouco? Por favor, Max, tente descansar.
- Não consigo dormir - disse ela. - Além disso, estou acostumada a ficar acordada. Eu vivia com medo de que ”me fizessem dormir”. E tenho sempre pesadelos a respeito do assunto. Portanto, não durmo muito.
- Por enquanto não teremos problemas - disse Kit.
- Acredita mesmo nisso? - perguntou ela, franzindo a testa.
- Um pouco... - Kit sorriu - eu acho. O que mais está acontecendo lá? - Ele deu tapinhas na cabeça de Max.
- Muita coisa para o meu gosto, especialmente agora. Eu detestava aquela Escola pútrida, mas era o meu pútrido lar.
Ele abanou a cabeça, tentando compreender.
- Há lugares muito melhores cá fora. Lugares honestos. Você vai ver.
- Gosto muito da Frannie - disse Max, dando um suspiro profundo. - Até de você eu gosto. Pelo menos às vezes. Agora, por exemplo.
E ela perguntou de repente:
- Vai procriar com a Frannie?
Kit começou a rir. Era impossível ficar sério, mas esperava não estar ofendendo Max.
- Vai ou não?- insistiu Max. - Vou guardar seu segredo, Kit. Palavra de honra.
- Frannie nem quer falar comigo-disse ele, fazendo Max de confidente.
- O que houve?
-Não contei a ela certos segredos, coisas que achei que não devia contar a ninguém.
- Ah, entendo-disse Max balançando a cabeça. - Como os segredos que eu não devia contar a ninguém, certo? E que você insistia em saber...
- É. Acho que sim O ponto é seu. - Incrível como era rápida para revidar!
Abanando satisfeita a cabeça, Max lambeu o dedo e desenhou um V da vitória no rosto dele.
- Já lhe disseram como é esperta?
Max sorriu, nitidamente lisonjeada. Era um rosto tão bonito, tão radiante!
- Wendy e Peter são ainda mais inteligentes. Só tirei cento e quarenta e nove no teste de Stanford-Einet. Eles não. Eles estão no alto da escala dos gênios. Adam e Eve, então, pareciam ter vindo de outro mundo... o que aliás não os salvou. Eu tinha muita vontade de saber por quê. Você não?
- Tenho vontade de saber muita coisa, Max. É por isso que faço tantas perguntas idiotas. Não sabe por que os fizeram dormir?
Max sacudiu negativamente a cabeça.
- Mas me lembro da noite em que aconteceu - disse.- Deve ter havido algum erro, alguma imperfeição. Os dois foram rejeitados. Havia alguma coisa errada com eles.
- Há sempre algo errado em todos nós, minha querida disse Kit depois de ouvir com atenção. - Ninguém é perfeito, e é isso que nos torna interessantes.
- Eu sei. Compreendo esta parte. Realmente gosto das imperfeições de vocês.
Max se inclinou para ele e Kit experimentou uma incrível onda de afeto. Era bonito aquilo, quase uma imagem de pai e filha. Juntos, contemplavam o horizonte cercado do clarão vermelho. O fogo estava lá. Perigo. E de repente Kit estava se lembrando de Tommy e Mike. Seus próprios filhos. Mas não queria se lembrar, não naquele momento.
- Falando sério, gosto muito de você - disse Max. - Tem olhos legais. E sei que não machucaria ninguém, a não ser que fosse obrigado. Você é desse jeito.
- Obrigado. - Ele puxou o rosto da menina para seu ombro. - Mas acho que um de nós devia dormir um pouco. Você vai na frente.
- Não tenho um pingo de sono. Além disso, posso ver e ouvir melhor. Sou nossa melhor chance.
- Acho que tem razão. - Sorrindo, Kit deixou os olhos se fecharem devagar, o que parecia tão bom... - Meu verdadeiro nome é Tom - murmurou.
- E eu me chamo Máxima. Você vai entender por quê.
CAPÍTULO 92
Quando corria para salvar a vida dentro de um sonho sombrio e febril (David estava nele), senti Pip dando um forte puxão na minha manga.
- Pare, Pip! Eu já estou passeando com você. Faça o xixi sozinho. Seja bonzinho, vá lá...
Dar uma lição de moral e enxotar não levavam a nada. Ele continuou tão persistente que acabei abrindo os olhos. Quase esperei que David estivesse ali, do meu lado, mas não estava, é claro.
Cheirei o ar. O cheiro parecia muito desagradável e comecei a tossir. Como no sonho, a atmosfera estava quente, preta, asfixiante. Não sabia se era dia ou noite, só que adormecera, ao luar, e agora a lua desaparecera por completo. Não podia ver nada, nem mesmo o céu ou as árvores que se projetavam sobre mim quando peguei no sono.
Era como ter ficado subitamente cega, pois me encontrava envolta num manto de neblina densa, quase negra.
- Ei? - chamei. - Onde estão vocês?
Com dolorosa clareza, percebi que realmente as coisas não andavam nada boas. A fumaça tapara por completo a lua, o céu e até as imensas árvores. A fumaça estava por toda parte, me engasgando, me tirando a visão, tornando impossível ver mais que um ou dois metros em qualquer direção. A mata pegava fogo.
Pip não parava de latir, exigindo que eu o seguisse. Eu me decidi e saí tropeçando em pedras, em pontas de raízes.
- Kit! Kit! - eu gritava - Olhe o fogo! Onde você está?
- Estou aqui - ele enfim respondeu. - Aqui! O vento deve ter mudado de direção.
O fogo estava muito perto, a um fio de nós.
Eu ainda não conseguira ver o Kit. Assim como não conseguia ver as crianças. Meus olhos ardiam, lacrimejavam. A visibilidade era cada vez menor. Senti-me vítima de uma armadilha, caída num espaço totalmente fechado, onde a claustrofobia podia ser total.
Ouvi alguma coisa. Um alce. Sim!, eu estava olhando bem nos olhos do enorme animal... Olhos vidrados, congelados. Tão perdido e assustado quanto eu, o alce fugiu com passadas fortes.
Agora eu podia ouvir o fogo. Era um ronco baixo, sedutor, quase melodioso. Aos poucos, comecei novamente a enxergar. Alguns passos à frente, numa área ligeiramente mais elevada, a fumaça já não parecia tão má. O céu ia ficando vermelho, abrasado pelo incêndio. Numa encosta ao longe, pude ver fileiras de árvores ressecadas, chamuscadas.
Perto de mim, uma árvore começou a queimar assobiando alto e um enorme galho bateu com força no chão. Centelhas subiram no escuro, como grandes fogos de artifício.
O fogo tinha efetivamente mudado de rumo com o vento. Devia ter avançado rasteiro nas últimas horas, ganhando cada vez mais energia. Agora o monstro realmente crescera. Muito.
Eles tinham se livrado de todas as provas, não é? A Escola há muito desaparecera no meio do terrível incêndio.
Tornei a gritar.
Desta vez ouvi tosses de quem faz força para vomitar. As crianças estavam por perto. Mas onde exatamente?
- Max? Icarus, Oz? Max? Vi Kit primeiro.
- Os gêmeos estão comigo - disse ele, tropeçando para fora da cortina de fumaça. Em cada ombro vinha empoleirado um gêmeo. Kit era mesmo forte.
O cachorrinho começou de novo a rosnar, mostrando os dentes. O pêlo já estava coberto de fuligem e cinzas.
Houve um tiro. Um clarão de luz. Um tiro de arma de fogo mo meio de tudo aquilo. De onde viera? De que direção?
Outro galho de árvore caiu, levantando uma nuvem de centelhas alaranjadas e douradas. Pip ganiu.
- Vamos, vamos! - gritou Kit. Começamos a correr.
CAPÍTULO 93
Wendy se agarrava bem aos meus braços. Até aquele momento estávamos conseguindo ficar à frente da fúria trovejante do incêndio. Muito provavelmente o vento, que já tinha mudado de direção, voltava a empurrar o fogo para longe de nós.
Eu tentava recuperar meus pontos de referência quando ouvi Max gritar:
- Olhem, ali. Mais guardas!
Vi dois homens rondando no vale abaixo de nós.
Tive um choque. Para meu absoluto espanto, pude reconhecêlos. Sim, sabia quem eram. Trabalhavam no Hospital Comunitário de Boulder e tinham sido colegas de David.
O mais alto usava boné, óculos sem aro e uma jaqueta de beisebol, de cetim azul, com a inscrição LA. Dodgers. Tinha cabelo espigado e barba. O mais baixo, que era também o mais pesado, vestia uma camisa xadrez e uma calça caqui, ambas muito largas.
O homem mais alto era o Dr. Michael Vaughan, da neurologia. O mais baixo, que tinha um pneu na barriga, chamava-se Bobby não sei de quê. Era o enfermeiro-chefe da unidade de obstetrícia e ginecologia. Já o encontrara numa festa, onde mostrava às pessoas fotos de bebês dos partos feitos por ele. Seus bebês, era assim que os chamava.
Eram amigos de David. Gente com quem tínhamos convivido.
As lágrimas que brotavam dos meus olhos não vinham da fumaça, mas da sensação de me sentir traída por pessoas que eu conhecera. Talvez eles fossem apenas voluntários da defesa civil procurando sobreviventes do incêndio... Seria ótimo se o Dr. Vaughan e o enfermeiro Bobby fossem uma dupla de cidadãos atuantes, não é? Só teríamos de assobiar para sermos resgatados do fogo selvagem e levados para o conforto dos antibióticos, dos lençóis limpos, da comida quente.
Contudo, uma estranha, intuitiva sensação me impedia de gritar ”ei, estamos aqui!”.
Kit e as crianças também continuaram bem calados.
Então Kit apontou para a esquerda e vi nossa salvação: um jipe preto. Nosso jipe.
Infelizmente, Vaughan e o enfermeiro também o tinham visto. Já estavam inclusive tentando abrir as portas.
Kit carregou a arma. Tinha uma expressão sombria, muito tensa. Sua concentração era total.
Quando colocou a arma em posição de tiro, eles já se afastavam do jipe. Estavam procurando alguma coisa... Procurando por nós? Os olhos da dupla continuavam esquadrinhando os arredores. Graças a Deus, não nos viram, pensei dando um suspiro alto, bem fundo.
Então algo brilhante cintilou na minha visão periférica e dei um salto para trás. O que era?
Era Kit, mostrando as chaves do carro.
- Sorte que você trancou - disse eu.
- E o que os garotos da cidade costumam fazer - disse ele com um sorriso rápido, que eu ainda não conhecia.
CAPÍTULO 94
Contra toda a probabilidade, esperávamos que ninguém estivesse procurando o jipe de Kit. Esperávamos que eles não soubessem quem era Kit ou por que estava ali, no Colorado. Andávamos intrigados com a falta de apoio do FBI e, em particular, não entendíamos por que Kit fora afastado do caso. Nossas taças, em suma, estavam cheias de preocupação.
Aquilo não era bom. Nada daquilo era bom. Nós nos esprememos no jipe e Kit partiu veloz, quase perigosamente, pela mesma estrada que nos levara até lá, a mesma estradinha estreita e cheia de curvas. Os meninos estavam adorando e incitavam Kit a correr ainda mais.
Ao completarmos uma curva fechada sobre um precipício, vi o pequeno grupo de homens e mulheres parados num dos lados da estrada. Gente fazendo caminhada? Pelo menos pareciam bastante inofensivos.
Quando os reconheci, meu coração quase parou. Também eram do hospital de Boulder. Três homens e uma mulher todos médicos do hospital de Boulder. Alguns usavam fones corn minúsculos microfones perto da boca.
Fones em caminhadas? Será? Eu achava que não. Não era realmente muito boa para lidar com teorias conspiratórias, mas tinha fé no que via com meus próprios olhos.
- Abaixem-se, por favor, abaixem-se! - gritei para as crianças. - Fiquem abaixo das janelas!
O grupo suspeito ergueu os olhos quando o jipe passou em disparada, mas as crianças estavam abaixadas. Ao que parece, ninguém viu nada de errado.
- São do Hospital Comunitário de Boulder -- disse eu, dando a Kit a última notícia ruim. - Tudo isso está ficando arrepiante. Não sei se vou suportar. Eu preferia estar ficando paranóica, mas não é o caso.
Ele aumentou a velocidade, fazendo novamente as crianças uivarem, bradarem de alegria. Para elas, mesmo naquelas circunstâncias, tudo não passava de uma brincadeira. Pareciam absolutamente desprovidas de medo. Seja como for, conseguimos chegar inteiros ao sopé da montanha e, aparentemente, sem sermos localizados.
Eu me lembrei de que Oz, os gêmeos e Icarus nunca tinham saído da Escola. Para eles tudo era novidade. A vibração daquelas crianças era completa, absoluta, talvez até maior que o meu nervosismo.
- Bem-vindos a Bear Bluff, Colorado - disse eu olhando para trás, tentando fazer uma cara alegre. - Realmente um belo lugar para se viver.
- É ainda mais arrepiante que a Escola - disse Max com uma voz grave, ranzinza. Ela riu. - É brincadeira, Frannie! É brincadeira, Kit... O lugar é bom. Desde que você goste de comer carne vermelha. Vocês vão adorar, pessoal!
Com os olhos castanhos muito arregalados, Wendy parecia mesmo ter virado pedra.
- Estou com muito, muito medo - ela conseguiu dizer num tom de gorjeio.
- Eu também - disse Peter.
- Uma coisa braba - disse Max num tom de brincadeira. Obviamente, uma expressão que eles compartilhavam, uma espécie de encantamento para diminuir o medo.
- Uma coisa braba! - os outros disseram em coro. Braba! Muito braba!
Infelizmente, Max tinha razão na parte do arrepiante.
E agora dois jipes do exército estavam se aproximando pela direção oposta. Jipes do exército?... Será que o exército também participava daquilo? Seria possível? Quem eram eles! Seriam todos além de nós!
- Abaixem aí atrás... - sussurrei e as crianças afundaram de novo. Elas e eu.
Passamos sem problema pelos guinchos e roncos dos veículos do exército.
- Kit, por favor me diga que a coisa não pode ficar pior do que está - falei quando já estávamos no último estirão para minha casa. Eu tinha de dar uma parada no Inn-Patient para pegar alguns suprimentos médicos. Precisava cuidar das lacerações, dos ferimentos do nosso vôo montanha abaixo.
- Se reconhecer mais gente do hospital, velhos amigos ou conhecidos, não deixe de me informar - dizia Kit.
Contornamos a última curva, uma curva familiar, quase chegando ao Inn-Patient. Kit já estava parando... mas de repente acelerou! Pisou fundo no acelerador e disparamos de novo. Passando a jato pelo Inn-Patient, pelo meu lar.
- Kit,pare. Temos de parar! - eu gritava. - Kit, pare este jipe! Pare já!
- Não, Frannie! É perigoso - disse ele cortando a jato a estrada. - Não podemos. - Era péssima a estabilidade traseira do jipe.
Sabia que Kit estava certo, mas o fato é que não podia crer no que eu também tinha visto. Achei que finalmente meu coração ia falhar.
Haviam queimado minha casa, minha clínica, tudo que eu tinha. Haviam incendiado o Inn-Patient. E todos os meus pobres animais estavam lá dentro.
LIVRO CINCO
QUANDO SOPRA O VENTO
CAPÍTULO 95
Passamos pelo Inn-Patient a mais de cem quilômetros por hora. Eu sentia um buraco no estômago. Sabia que Kit tivera razão em não parar na clínica, mas isso não tornava de modo algum as coisas mais fáceis.
Max se inclinou do banco de trás.
- Sinto realmente muito, Frannie. Foi tudo por minha causa.
-Todos nós sentimos, Frannie - disseram em conjunto as outras crianças.
Na traseira do jipe, o pequeno Pip se achava num estado de extrema agitação, latindo, ganindo para nossa velha casa, isto é, para o que restava dela.
Safados. Miseráveis. Quem tinha feito isso? Quem era o responsável? Tive vontade de armar vinganças terríveis. Achei que tinha esse direito. Nunca sentira qualquer coisa semelhante a esse tipo de raiva, de aversão.
- Sei para onde podemos ir. - Quando finalmente consegui falar, já tínhamos avançado quase dois quilômetros na estrada onde minha clínica ficava. - Sei onde estaremos seguros, pelo menos por algum tempo. Pelo menos até descobrirmos um modo de sair disto!
Ensinei a Kit como chegar à casa de minha irmã Carole. Ela morava em Radcliff, cerca de trinta quilômetros a sudoeste de Bear Bluff. Ali ficaríamos bem, ao menos pelo resto do dia.
Carole se mudara de Milwaukee para o Colorado depois de se separar do marido, Charlie. Morava no sítio com as duas filhas, Meredith e Brigid, dois gansos, Graham e Crackers, que funcionavam como cachorros, e um coelho treinado chamado Thumper. As pessoas costumavam perceber de imediato que éramos irmãs.
Eu devia primeiro ter conversado com Carole, mas ela e as filhas tinham ido acampar por duas semanas no Gunnison National Forest. Não tinha certeza se ja haviam voltado.
Talvez fosse até melhor que não.
Ao nos aproximarmos da casa, avistei Carole, que estava trabalhando na horta. Meio oculta pelos girassóis de hastes muito vergadas. Pequenas abelhinhas dançavam ao seu redor.
- Kit, pare aqui, está bem? Quero andar até a casa. Acho que tenho de preparar o espírito de Carole.
- Ela não gosta de crianças? - perguntou Max lá de trás.
- Gosta - respondi. - E de animais também.
Saltei do jipe e caminhei na direção de minha irmã. Não sabia se estava fazendo a coisa certa. Para dizer a verdade, não sabia de mais nada. Descobrira, nas últimas horas, que muita gente que vivia na região estava longe de ser confiável. Também conseguira avaliar melhor o que Kit havia enfrentado ao insistir naquela investigação.
Minha irmã Carole era cinco anos mais velha que eu e uma pessoa incrível, em todos os sentidos. Seu marido, Charlie, um radiologista, fora sem dúvida um asno ao deixar escapar alguém como ela, além das duas filhas. Carole resumia: ”Bobeou, dançou”.
- Família instantânea? - disse ela olhando para o jipe. Tinha as botas cheias de lama, uma bermuda xadrez, a velha camisa de brim e um chapéu de palha amassado. Furando as sombras do chapéu, o sol ia batendo na testa e nos lados do rosto. Atrás dela, o varal estava cheio das toalhas e da roupa de banho usadas na viagem. -É claro que fez bem em traze-los para uma visitinha inesperada, Francês. Mas me diga, quem são?Não é um homem no banco do motorista?
Assenti com a cabeça.
- Ele se chama Kit... Não, não... Tom.
As sobrancelhas de Carole se ergueram algumas polegadas.
- Ha ha. Ele é Kit... ou Tom, não importa. E os outros? Rapaz, rapaz, ô rapaz! E os outros?
- Carole, isto é muito estranho. Sou sua irmã. Você confia em mim, certo?
- Até certo ponto. Não me diga que o homem com quem se casou tem uma família enorme, Frannie. Por favor, não me diga. Ah, não, não, tudo bem se você fez isto! - Carole tentava tirar os fios de cabelo do rosto. - Fez?
Pus a mão em seu braço. Claro, naquele momento aquilo não bastava. Era preciso mais e apertei-a num abraço no meio do jardim.
- Querida, tudo bem com você? - disse ela perto do meu rosto. - Está tremendo. Está tremendo de cima a baixo!
- Alguém está nos perseguindo-murmurei.-Não estou brincando, é sério, e... aquelas crianças no carro... Carole, meu Deus, Carole! Elas ha... elas, hum... Deus, elas têm asas e sabem voar!
CAPÍTULO 96

O jantar na casa de minha irmã é geralmente um evento espontâneo, com Thumper ou um dos gansos, Graham ou Crackers, entrando e saindo livremente da sala como convivas de última hora. A citação no prato de parede capta com precisão o espírito da família: ”Quando o céu vem abaixo, a gente pega umas cotovias.”
O céu estava vindo abaixo.
E tive de contar tudo a Carole, que conseguiu não perder uma gota de sangue-frio. Que se manteve firme como Kit. Calma como Meredith e Brigid, as duas crianças mais boazinhas, mais lindas, mais espertas que já conheci.
- Foi esse o jeito que encontrou de cobrar o trabalho que teve com Frank, o cisne? - disse Carole e demos uma boa risada. Kit nos acompanhou, embora não pudesse saber exatamente do que estávamos falando. Antes de partir para o acampamento, Carole deixara a meus cuidados um cisne velho e irremediavelmente ferido.
Durante a refeição caseira, contei a Carole o que tive coragem de contar e disse que deixaríamos o sítio o mais depressa possível. Ficou decidido que ela e as meninas teriam outra semana de camping no Gunnison National Forest - era uma questão de segurança.
Depois do jantar, eu e Kit saímos. A idéia fora dele. íamos fazer uma visita a Henrich Kroner, que fora chefe de David no Hospital Comunitário de Boulder e ocupava um dos primeiros lugares na lista de suspeitos de Kit. Kroner estudara embriologia com o Dr. Anthony Peyser em Boston.
Henrich Kroner chegara ao Colorado vindo do MIT e não tinha sido acusado nem indiciado em Boston. Morava em Boulder com a atual namorada, Jilly. Eu me lembro que Jilly era enfermeira pediátrica e trabalhava na clínica de fertilização in vitro do hospital.
Não conseguia tirar da cabeça os bebês assassinados na Escola. Os ”refugos”. Enfermeira pediátrica? Não podia ser apenas coincidência.
Achando que o jipe de Kit podia ser facilmente reconhecido, pedimos emprestado o Chevy 4x4 de Carole e antes das nove e meia estávamos na porta do Dr. Kroner. Se ele e Jilly estivessem em casa, sem dúvida ainda estariam acordados. Lembrei-me de ter visto Henrich na casa dos McDonough, na noite em que Frank foi assassinado. Outra coincidência? Eu duvidava...
As luzes do caro e exageradamente grande ”chalé” serrano estavam todas acesas e o Mercedes conversível preto de Henrich Kroner continuava estacionado em frente à garagem.
Eu e Kit subimos um caminhozinho de lajotas, paramos diante da porta de vaivém e tocamos duas vezes a campainha.
A princípio, não apareceu ninguém. Pude ver no living: mobília de pinho e tapetes de estampado muito colorido; gravuras de Audubon, portas de peroba, largas tábuas corridas no chão... Nada, porém, de Henrich e Jilly. Um tanto assustador, porque o momento era decisivo.
- Dr. Kroner - eu finalmente chamei. - É Frannie O’Neill. Henrich Kroner. Jilly. Estão aí? Há alguém em casa?
Silêncio completo. Só o barulho estridente de grilos e cigarras no jardim.
- Vamos dar a volta pelos fundos - disse Kit, começando a circundar a casa. Respirei fundo e o segui. Não queria ficar sozinha. - Estou dois passos atrás de você, Kit.
Kit parou de repente e quase me choquei com ele.
- Meu Deus! - ele sussurrou - Fique aí, Frannie. Não venha cá, por favor. É terrível!
Pude ver Henrich e Jilly de onde eu estava. Jaziam de rosto para cima em duas espreguiçadeiras muito amarelas. Havia sangue empoçado ao redor das cadeiras, escorrendo pelas fendas entre as lajotas. O sangue também manchava as cadeiras.
Notei que Jilly fora baleada no meio da garganta e Henrich, no olho direito.
Meu coração se apertou, a boca ficou muito seca. Tive vontade de tapar os olhos, mas não o fiz. Queria ver tudo para ser capaz de descrever na hora apropriada. Se ia funcionar como testemunha, que fosse uma boa testemunha.
Kit tocou levemente em meu braço.
- Você está bem, Frannie?
Não, não estava. Tinha visto muitos animais morrerem, mas nunca me preparara para a visão de um homem e uma mulher cruelmente assassinados, especialmente gente que eu conhecia.
- Acho que estou reagindo - sussurrei. - Pelo menos continuo de pé.
- Dois tiros em cada vítima - disse Kit. - Ferimentos com cerca de uma polegada.
- Kit, isto acabou de acontecer! Nenhum dos corpos está rígido ou sem cor. Por pouco não encontramos os matadores. Por pouco eles não nos encontraram.
Nem Henrich Kroner nem Jilly tinham sido meus amigos, mas eu os conhecera. Nunca gostara de Henrich, mas tinha ido com David a duas festas naquela casa.
Estivera sentada numa daquelas espreguiçadeiras amarelas e me perguntava se o Dr. Anthony Peyser também andara por lá. Seria ele o responsável pelas mortes?
Pensamentos sinistros repetiam-se em meu cérebro, coisa natural sob estresse. Não conseguia esquecer que vira Kroner na casa de Frank McDonough, na noite em que Frank se afogara.
Não conseguia esquecer que Henrich Kroner estivera em minha casa em Bear Bluff logo após a morte de David. Tudo era tão terrível e nada parecia acidental.
- Temos de voltar para a casa de Carole - disse eu, agarrando Kit pelo braço. - Temos de tirá-la agora de lá. Ela e as filhas!
Estavam matando todas as testemunhas.
CAPÍTULO 97
Kit sentia medo, mas procurava não deixar transparecer por causa de Frannie. Estacionou num minimercado chamado 7-Eleven, na avenida Baseline, em Boulder. As últimas vinte e quatro horas testaram tudo que tinha aprendido como agente e algumas coisas que não tinha. Ele se lembrava de uma velha norma do treinamento em Quantico: Caia sete vezes, levante oito.
- Volto já - disse escancarando a porta do Chevy. - Vou tentar fazer contato com Peter Stricker no FBI. Tenho de fazêlo acreditar em mim, o que talvez não seja tão fácil.
- Está bem - disse Frannie -, mas por favor seja rápido. Estou muito preocupada com Carole e as meninas.
Kit logo alcançou o telefone público na frente da loja de conveniência toda iluminada. A verdade é que continuava se sentindo sozinho no meio de tudo aquilo. E, em termos realistas, um agente não podia fazer tudo sozinho. Ainda não entendera por que fora afastado do caso. Não fazia sentido e era extremamente assustador.
Não tinha vontade alguma de ligar para Peter Stricker. Nem mesmo num momento como aquele. Era como pedir para ser insultado, intimidado; pedir para ser novamente posto de lado. Afinal, a coisa vinha se repetindo havia mais de um ano. Sempre, sempre da mesma maneira.
Embora já passasse das sete em Washington, decidiu primeiro tentar falar com Stricker no escritório. Tinha o número da casa de Stricker (haviam sido amigos, certo?), mas só em último caso ligaria para lá. Realmente não seria bom incomodá-lo em casa.
A secretária de Peter ainda estava no escritório e atendeu no primeiro toque.
- Cindy, aqui é Tom Brennan. Tenho de falar com Peter. É urgente.
- O Sr. Stricker está viajando - disse a secretária. - Vou passar seu recado quando ele fizer contato.
Kit gritou no telefone.
- Porra, Cindy, há gente morrendo! Por favor bipe agora para o número de Peter. Eu espero na linha. Não dá mais para ficar em cima do muro. Diga que houve novas mortes, e que a culpa é dele!
Cindy não demorou muito para localizar Stricker e Kit se perguntou se ele não estiveratodo tempo no escritório. Provavelmente sim.
Ouviu o sussurro familiar de Stricker.
- O que está havendo, Tom?
Teve vontade de entrar pelas fibras óticas para estrangulá-lo.
- Houve novos crimes. Duas mortes. Para dizer a verdade, Peter, o número de mortes tem sido muito maior. Agora me deixe falar, me deixe acabar o que tenho a dizer. Não dê um pio!
- Tom, onde você está?
- Nem a porra de um pio!
- Tudo bem, já ouvi. Pode continuar.
- Para começar, não estou em Nantucket. Nem estive em Nantucket. Estou no Colorado, que é exatamente onde eu devia estar, que é para onde o Bureau devia ter-me mandado, para onde você devia ter-me mandado, Peter, se tivesse dado ouvidos às minhas advertências!
- Viu alguém ser assassinado, foi...
- Feche a matraca! Acabei de sair da casa do Dr. Henrich Kroner e ele está morto, ao lado da namorada. A culpa é nossa. Ou melhor, a culpa é sua. Kroner trabalhou com AnthonyPey ser.
- Tudo bem, estou ouvindo. Onde você está, Tom? Onde exatamente fica a casa do Dr. Kroner?
- Esqueça Herich Kroner! Ele está morto, já lhe disse. Peter, eles mataram crianças! Destruíram embriões! Estão fazendo experiências com seres humanos. Vi com meus próprios olhos. Vi o terrível, horrível laboratório onde trabalhavam. Estive lá.
- Tom, onde afinal você estai - Peter Stricker finalmente elevara o tom de voz.
-Estou numa merda de telefone no meio do inferno e, caso se interesse, na frente de uma lojinha suspeita! Quero cinqüenta agentes agora! Mobilize todo mundo lotado em Denver. Mandeos para Bear Bluff, para o que era uma clínica veterinária chamada Inn-Patient. Não tem erro. Alguém tocou fogo e acabou com a porra da clínica. Eu entrarei em contato com eles. Não há outra saída, Peter! Quem está no comando agora sou eu!
Stricker suspirou.
- Tudo bem, estou ouvindo. Vamos acionar.
Kit desligou o telefone público e respirou fundo. O resultado da conversa não podia ter sido melhor. A cavalaria estava a caminho.
CAPÍTULO 98
Vi Kit largar o telefone após uma conversa bastante agitada. Ele correu para o carro e sem dúvida tinha um aspecto melhor. Recuperara um pouco da cor e me disse que seu velho chefe finalmente lhe dera ouvidos.
- Não sei até que ponto ele deu importância à coisa, mas pelo menos alguma importância deu. Está mandando agentes para cá.
A sensação que eu tinha (as loucas imagens da minha cabeça) era de que alguém me empurrara para um roteiro da vida real que corria mais ou menos paralelo à trama de A noite dos mortos-vivos. Eu estava começando a achar que não podia mais confiar em ninguém de Boulder ou das cidades vizinhas.
De Boulder, voltamos correndo à casa de Carole. Carole viu os faróis do carro e estava nos esperando na porta da frente.
- Tudo calmo por aqui, Frannie - disse ela, que obviamente vira a preocupação estampada em meu rosto. - As crianças se portaram realmente muito bem. Ninguém quis voar nem nada do gênero.
- O problema, Carole, vai ser com você, com Meredith e Brigid. Vocês é que precisam sair voando daqui. Mataram outro médico do hospital, Henrich Kroner. Pegue já suas coisas!
Carole e as meninas ficaram prontas em quinze minutos, o que, sem dúvida, marcava um recorde. Senti-me culpada por têlas envolvido nisso, embora não houvesse outra solução. Quem quer que estivesse atrás de mim podia facilmente descobrir que eu tinha uma irmã e onde ela morava. Se é que já não sabiam havia muito tempo. Acampar no Gunnison National Forest era a coisa mais segura que Carole e as filhas poderiam fazer naquele momento.
Abraçamo-nos com muita força e procurei não chorar. Depois, na frente da casa, todo mundo deu adeus com um ar de tristeza. O carro com minha irmã e as meninas desapareceu na noite e fiquei rezando para não acontecer nada com elas, para não acontecer nada com nenhum de nós.
No fundo, porém, não estava muito otimista. Coisas muito ruins já tinham acontecido e eu sabia o que se escondia por trás delas.
CAPÍTULO 99
O Dr. Anthony Peyser descia lentamente do seda Mercedes cinza-azulado. Seu rosto estampava a dor do esforço. Peyser estava com setenta e tantos anos e, ainda que gênio, não conseguira deter os males da idade avançada e de uma vida extremamente estressante.
Caminhou devagar para os homens que o esperavam na pequena clareira do bosque e cumprimentou-os com um aceno, uma expressão de velho e bom companheiro.
Harding Thomas falou antes dele:
- Ainda não conseguimos pegá-la.
- Já tinha percebido - disse o médico sorrindo brevemente. - Mas não fiquei espantado. Em outras circunstâncias, estaria até satisfeito com este resultado. Ela possui instintos avícolas para o vôo e a sobrevivência, além, é claro, da engenhosa inteligência dos humanos. É superior a todos vocês, e está provando isso, não? É evidente que sim. Que garota!
- Vamos pegá-la - disse Thomas.
Peyser abanou a cabeça e apertou os lábios finos.
- Não tenho dúvidas. Ela procurou ajuda, mas os humanos serão sua ruína. Finalmente cometeu um erro.
Harding Thomas assentiu. Como de hábito, o doutor tinha razão.
- Tragam-na viva, pois ela vale uma pequena fortuna disse Peyser. - Se não for possível, tragam-na morta. Tão morta quanto qualquer pessoa que a tenha visto. O bem que no fim do caminho resultará de nossos atos justificará tudo. Os mais importantes dias da história estão se completando.
CAPÍTULO 100
Dormimos agitados na casa de Carole e nos levantamos antes do amanhecer. Kit precisava ir até o Inn-Patient e achamos que seria melhor se ficássemos todos juntos.
Ao que parecia, o socorro estava a caminho. Agentes do FBI nos encontrariam na clínica. Kit checara por volta da meia-noite, mas ninguém havia chegado ainda.
Saímos do sítio de Carole antes das quatro da manhã, com tudo tremendamente escuro. As estradas, sem iluminação na área de Radcliff e Bear Bluff, pareciam assustadoras.
Por volta das quatro e quarenta e cinco, nos aproximamos do Inn-Patient, subindo a estrada que eu conhecia tão bem. Kit, porém, não parou.
- Não vejo ninguém - disse ele. - Talvez Stricker, aquele safado, não tenha acreditado em mim.
Manobramos para tomar o caminho de volta. Sem dúvida, tudo estava escuro e parecia deserto. O FBI ainda não chegara.
- Pare um pouco, Kit. Só quero dar uma olhada na casa. Fora o meu lar e eu simplesmente não podia ir embora sem
me despedir. Kit parou na entrada da garagem. Peguei a lanterna dele.
- Não vou demorar.
Pulei do jipe e subi a escadinha. Minha carbonizada escadinha. Fiquei indiferente a tudo. Só pensava que ali fora minha casa e meu local de trabalho. Só pensava nos pobres animais, encurralados lá dentro e cruelmente queimados vivos.
Ainda havia fumaça no prédio e o cheiro forte, acre do fogo estava por toda parte. Minha casa não existia mais. Eu mal a reconhecia.
Tive uma surpresa quando finalmente reuni coragem para dar uma olhada no interior. Movi a lanterna e os animais... tinham sumido. Alguém os deixara sair antes do incêndio começar. Fiquei aliviada e agradecida.
- Frannie... - Kit estava de repente atrás de mim - Tudo bem?
- Eu tinha de ver - sussurrei quando minha garganta já começava a fechar. Tapei o nariz com um lenço, o que aliás não ajudou muito. Em minha língua havia um gosto seco e denso de carvão.
O fogo devorara tudo. A mobília, os tapetes e cortinas eram trapos negros que agora só serviam para o lixo. Bolhas pretas cobriam as paredes e o teto.
Kit pôs a mão em meu ombro. Ele sabia que precisávamos sair dali. Virei-me e olhei em seus olhos.
- Talvez não sejam as mesmas pessoas, Kit. Quem botou fogo em minha casa deixou os animais escaparem. Os desgraçados da Escola não teriam feito isso.
- Talvez o incêndio seja obra de algum médico do hospital de Boulder - ele sugeriu -, não dos guardas, da turma de caça...
Contribuí com minha própria idéia paranóica:
- Talvez aqueles rapazes... Os que vimos ontem.
- Vamos embora - pediu Kit em voz baixa. - Ficaremos à espera no sítio de sua irmã. Aqui não há mais nada.
- Eu sei - sussurrei -, obrigado. Eu precisava ver isto aqui pela última vez.
Deixei que ele me tirasse do esqueleto escuro de minha casa, que me levasse para longe de tudo que fora minha vida nos últimos anos.
Pisamos na varanda. E paramos de nos mexer.
Eles estavam à nossa espera. Não o FBI, mas o grupo de caça, os guardas da Escola. De pé, na entrada da minha garagem, havia seis representantes dos incendiários, dos assassinos de crianças. Tinham posto as mãos em Max e nos outros guris.
CAPÍTULO 101
-- Tirem as mãos deles! - gritou Kit da varanda - São apenas meninos. São crianças.
Gostei daquilo, adorei. Tinham rifles e revólveres, mas Kit estava lá, berrando ordens. Ele os enfrentava.
Os dois guardas, segurando Ozymandias e Max, chegaram a soltá-los, chegaram mesmo a recuar alguns passos. Estavam vestidos como protótipos de alguma coisa perfeitamente indefinida: botas, calças caqui amassadas e manchadas, coletes de capa. Não havia meio de identificar quem eram. Homens do exército? Do FBI? Mercenários? Sem dúvida, eu nunca vira aqueles sujeitos no Hospital Comunitário de Boulder.
- Saiam da varanda, venham até aqui! - O homem que falara tinha ombros largos e no máximo uns cinqüenta e poucos anos. O rosto exibia marcas de varíola e cicatrizes; os olhos eram como bolas de gude pretas.
Conforme as descrições de Max, tinha de ser o tio Thomas.
- Já causaram problemas demais - gritou num tom retumbante. - Posso fazê-los sair a tiro da varanda.
- Nós já causamos problemas demais? - gritei. - Dê um tempo, sim?
- Você é um assassino! - Max berrou para o homem que agarrava seu cabelo com uma das mãos. O rosto de Max parecia muito vermelho e, apesar do torniquete que Thomas lhe aplicava, ela continuava lutando para se soltar. - Também um safado. É até pior como safado que como assassino, tio Thomas!
Thomas deu um sorriso e quase conseguiu parecer um verdadeiro tio.
- Obrigado, Tinkerbell. - Ele nos olhou e pôs Max na sua frente. - Vocês dois, venham aqui! Obedeçam se não quiserem que eu acabe agora mesmo com uma das crianças.
- Ele é capaz de fazer isso, Frannie - disse Max. -Não vale nada. É um covarde, um sujeitinho sórdido. Um porco inútil.
Eu e Kit descemos devagar os degraus da varanda e nos juntamos aos outros cativos. Não havia opção. Os guardas nos apontavam as armas. Em vez do FBI, tínhamos encontrado aqueles matadores.
Dois Chevys subiam na entrada de minha garagem, parando atrás do jipe. Ao lado estacionava um RV preto,
- Conhece essa gente? - perguntei a Max.
- Infelizmente conheço - ela sibilou. - São guardas... zeladores. Zelam pela boa ordem na Escola. Zelam para que ninguém saia da linha. Mantêm zelosamente a pessoa aprisionada até que alguém a faça dormir. O verme-zelador-chefe é o tio Thomas.
Apontou a cabeça para o homem corpulento atrás dela.
- Você é o pior dos piores. Você nos traiu. Mentia sempre que abria a boca!
- Anda muito desaforada, mocinha! -advertiu ele contraindo o rosto e erguendo o braço para esbofeteá-la.
Eu me atirei furiosa contra o tio Thomas, cujas defesas estavam momentaneamente abertas. Kit deu um salto e entrou na briga, acertando alguém no nariz com o cotovelo e nocauteando um patife massudo que nos ameaçava com o cano de um rifle. Foi aí que um terceiro guarda pôs o revólver do lado da cabeça de Kit.
Conseguindo se soltar, Max sacudiu as asas e correu alguns metros na direção dos fundos da casa, na direção do bosque de pinheiros. Decolou. A cada vôo, parecia ficar mais forte, mais ágil.
- Não atire! - gritei no ouvido de Thomas com toda a força dos meus pulmões. - Por favor, não atire nela!
- Derrubem a garota! - berrou ele. - Não vacilem. Acertem essa menina!
Dois guardas atiraram em Max, que nem chegou a ganhar altura - avançou direta, como um raio, para o meio do bosque, desaparecendo atrás de um aglomerado de grandes copas de abetos.
Vários guardas saíram correndo; alguns ficaram conosco e com as outras crianças.
-Vocês! Entrem na van. Agora! Vamos ou levam bala aqui mesmo!
Depois de gritar as ordens, Thomas me deu um tapa no ouvido. Ouvi um zumbido forte e quase caí. Não achei que ele fosse me bater.
- Pode atirar em mim! - disse Wendy dando um passo à frente e empinando corajosamente o queixo e o pequeno peito.
- Pode me acertar bem na cara. Pode me matar.
- Comigo idem - disse Peter. - Pum e acabou! Quem vai se importar? Vá em frente e acerte mais um guri.
- Eu estava pensando em começar com ele - disse Thomas apontando a arma para Icarus. - O garoto cego, Ic!
- Entrem na van - eu disse às crianças. - Já! Neste segundo! Icarus primeiro. Vão!
As crianças me olhavam e eu queria passar a impressão de que estava tudo bem. O problema é que não estava e talvez nunca mais estivesse. Para nenhum de nós. Thomas continuava nos apontando o revólver enquanto subíamos na van.
- Fim da linha - murmurou Icarus sentado ao lado de Kit.
- Estamos mortos.
CAPÍTULO 102
Eu, Kit e as crianças fomos empurrados, amontoados no interior da van de vidros escuros. Não pude deixar de pensar que aquilo parecia um carro fúnebre. Ou de lembrar o que Kit dissera: ”eles” querem que tudo desapareça. Não pode haver nenhuma testemunha.
O carro fúnebre engasgou uma vez e começou a rodar. Deu ré na entrada da minha garagem. Depois o motorista virou à direita, no sentido oposto a Bear Bluff. Para onde íamos?
- Vão nos fazer dormir - disse Oz num tom irremediável, declarando bruscamente meus piores temores.
- Quem eles puseram para dormir na Escola?-perguntou Kit. Talvez ele estivesse encerrando sua carreira no FBI, mas continuava tentando colher informação, chegar à verdade.
-Não podemos falar nesse assunto - advertiu Wendy, os olhos arregalados de medo.
Peter abanou os ombros e comentou num tom meio agudo:
- Muitas criaturas foram mortas.
- Que criaturas? - perguntei.
- Coisinhas que vivem nos laboratórios - respondeu Oz.
- Especialmente os novos bebês. Costumam ser chamados de criaturas. Ou labs. Pergunte a Max como é. Ela trabalha lá. Ah, claro, Max não está aqui para você perguntar. Mas não se preocupe, ela é esperta. Pode tomar conta de si mesma.
- Sei que pode - disse eu sacudindo a cabeça na direção de Oz - E quanto a Adam e Eve? Quem eram eles?
- Eram nossos melhores amigos. - Peter adiantava mais informação com uma vozinha triste e uma expressão ainda mais triste no rosto. - Nasceram no mesmo ano, tinham a mesma idade que eu. Mil novecentos e noventa e quatro.
- Foram postos para dormir - disse Oz passando o dedo pela garganta e pondo a língua pelo canto da boca. - É melhor esquecê-los. Não se vê, não se pensa. Um dorme, os outros choram.
- Um dorme, os outros choram - as crianças repetiram Um dorme, os outros choram.
Eu obtinha um quadro mais nítido e ainda mais apavorante da Escola. As crianças mais novas eram muito mais abertas sobre o assunto que Max. Não tinham tanto medo de falar da Escola.
- Jesus, Frannie - disse Kit, pousando a mão na minha -, pobres garotos! Tem alguma idéia do lugar para onde estão nos levando? Que direção estamos seguindo?
Balancei a cabeça, soprei o ar dos pulmões.
- Estamos voltando para as montanhas. Direção oeste, eu acho. É tudo que consigo perceber.
Nesse meio tempo, o refrão das crianças continuava soando em minha cabeça. Um dorme, os outros choram.
Ou que tal: todos dormem, não sobra ninguém para chorar.
CAPÍTULO 103
A van lutava para subir uma encosta íngreme; havia meia hora sentíamos o aclive quase contínuo. Então o veículo sacudiu, parando de repente. O motor foi desligado e senti um frio por dentro. Tínhamos chegado, onde quer que fosse. Não à Escola... mas onde?
Ouvi portas de carros batendo, sapatos e botas amassando o cascalho, a estática áspera das vozes masculinas do lado de fora.
- Este lugar fica a menos de uma hora de sua clínica sussurrou Kit. Estávamos sentados na traseira da van, imóveis, pois não havia nada que pudéssemos fazer. Esta sensação de impotência acabava comigo.
- Tudo bem com vocês?-perguntei às crianças, tentando parecer confiante e relativamente controlada. Percebia que a convivência me despertava fortes sentimentos maternais.
- Não estamos nem perto da fedida Escola - disse Oz. -- Posso sentir isso. - Parecia ter convicção e entusiasmo em partes iguais.
- Mas chegamos a algum lugar mau - disse Ic. Realmente mau, tenho certeza!
- Um lugar brabo, certo, Ic? - Oz brincou, fazendo uma careta para seu amigo cego.
Depois de destrancada, a porta da van se escancarou com um barulho de rasgar. Piscamos com a luz forte do sol que explodiu em cima de nós.
Havia homens armados do lado de fora. Estavam parados, olhando-nos com rostos enluarados. As chances pareciam irremediavelmente contra nós.
- Não precisam apontar essas armas - disse eu.
- Viemos em paz - disse Ic. Um dos homens deu uma ordem.
- Saiam do veículo! - Parecia um militar e tive vontade de saber de que exército. - Será muito mais fácil se seguirem as instruções em vez de tentar resistir. Todos vocês! Fora! Fui claro?
- São crianças - disse Kit. - Estão assustadas com as armas. O senhor não tem filhos? Nenhum de vocês têm filhos?
- Saia já do veículo, agente Brennan! Sabemos quem é você. E, sim, tenho dois filhos. Agora cale a boca!
Olhei de novo para as crianças. Os rostos pareciam meio contorcidos, mas não deixavam transparecer muito medo. Talvez a terrível atmosfera da Escola os tivesse condicionado a aceitar qualquer coisa que pudesse acontecer.
- Tudo bem, estamos indo - disse eu. - Garotos e garotas, fora do carro! - Mas, quando saltei da van, as palavras morreram na ponta de minha língua. Não havia dúvida: acabara de entrar no Além da Imaginação. Era como se não pudesse dar mais um único passo.
Vi onde estávamos. Não compreendia, achei que nem queria compreender, mas percebi exatamente onde nos encontrávamos. Deus, conheço este lugar.
- Kit... - murmurei.
- O que foi, Frannie?
Perplexa, sacudi a cabeça de um lado para o outro. Não conseguia falar. Estávamos na casa de Gillian, no lado oeste da Sugarloaf Mountain. Na casa de minha amiga, com a grande, cintilante piscina azul na qual, dois dias atrás, eu havia nadado.
À esquerda, podia-se ver a Vertente Continental; à frente, o Four Mile Canyon.
A área de estacionamento, grande e familiar, estava cheia de caminhões, carros e guardas armados. Também identifiquei meia dúzia de conhecidos. Todos do Hospital Comunitário de Boulder.
Um deles chamou minha atenção durante o momento de paralisia. Enquanto o homem saltava do Land Rover azulmarinho, observei o adesivo do hospital no canto esquerdo do pára-brisa. Eu e David costumávamos usar aqueles adesivos.
Davidfora um deles, certo? David também for a um tremendo verme. David, David, como pôde entrar nisso?
-Aquele é o Dr. John Brownhill-disse eu apontando para mostrá-lo a Kit. Brownhill sequer olhou em nossa direção.
- Já nos encontramos - disse Kit. - Qual é a especialidade dele? Infanticídio?
- É chefe da clínica de fertilização in vitro do hospital de Boulder-murmurei como se falasse sozinha. Não pude deixar de pensar outra vez. As crianças tinham mães humanas... Mães verdadeiras tinham sido envolvidas na coisa, o que explicava a participação do Dr. Brownhill. A razão só podia ser essa.
Então Gillian Puris apareceu na varanda da frente. Minha amiga. Parecia tão severa, tão inacessível. Senti-me como se nunca tivesse convivido com ela. De pé a seu lado estava o menino. Michael acenava da varanda e cheguei a pensar que era para mim.
Não era!
CAPÍTULO 104
- É o Adam! Adam está bem! Está ali, na varanda. Está vivo!
- Wendy e Peter começaram a gritar com vozes estridentes. Pareciam incrivelmente entusiasmados; vibravam por ter encontrado o menino... o filho de Gillian.
Já o conheciam e consegui adivinhar de onde... A Escola. Michael também andara na Escola. Michael era Adam, não era?
De repente, o menino se debateu, conseguiu se soltar de Gillian (ele também era forte) e correu a grande velocidade na direção de Peter e Wendy, que continuavam a berrar:
- Adam! Adam! Estamos aqui.
A princípio, Gillian pareceu alarmada. Depois apenas com raiva; na realidade, com muita raiva.
- Michael, pare! - ela gritou, mas o menininho louro e esperto continuou a correr como um raio na direção dos amigos, dos compadres que fazia tanto tempo não via, dos seus colegas da Escola.
Michael sorria, dava risadas, parecendo totalmente franco e inocente.
Nunca o vira agir tão espontaneamente, tão de acordo com o menininho que era. Então ele, Wendy e Peter começaram a se abraçar, a dançar de alegria na entrada da garagem. Emitiam sons não-verbais, que apenas os três pareciam entender.
Desviei os olhos e me concentrei em Gillian. Ela assistia à cena com um ar perfeitamente frio, implacável, uma fisionomia que eu nunca vira antes e que não estava preparada para ver agora. Quem era aquela pessoa que eu achava que conhecia? Senti um buraco no estômago. Ela só fingira ser minha amiga, certo? Na realidade, ficara me vigiando após a morte de David.
- Ele é Adam! É nosso amigo! - Icarus gritava em meu ouvido e, na empolgação, chegou a se elevar dois metros do solo. O fantástico menino flutuava de alegria - Adam está vivo, não é incrível? Não foi a melhor coisa do dia?
De repente, Icarus foi golpeado. Um dos guardas lhe dera um soco ao lado da cabeça. Esmurrara o menino com o punho fechado. O pobre Ic caiu no chão e ali ficou, fazendo um volume patético. Não estava se mexendo.
O soco foi mais do que Kit podia suportar. Ele se arremessou contra o atacante, acertando-o com solidez no maxilar. Dois outros guardas xingaram e começaram a bater em Kit. Depois apontaram as armas, mas Kit não se acalmou. Gritou com eles. E as crianças também gritavam.
Eu já estava ajoelhada ao lado do pobre Icarus, vendo o que podia fazer. Achei que podia ter sofrido alguma lesão, mas os olhos que não enxergavam estavam abertos. Ele agora se sacudia e parecia alerta.
- O grande valente... - ícarus finalmente espicaçou o guarda, cuspindo sua fúria, querendo mostrar como era durão. Se bem que o soco não foi dos melhores.
- Valeu, Ic - disse eu -, mas vá devagar.
- Voar é proibido! - O guarda gritou olhando para as crianças, especialmente para ícarus. Tinha o rosto vermelho e veias salientes no pescoço grosso. - Conhecem as regras. Foram avisados mil vezes: voar é proibido!
-Não é mais-disse Ic, arreganhado os dentes para o rosto ameaçador do guarda. - As regras mudaram.
Encostei ícarus no peito, tentando protegê-lo de novas agressões. Meus sentimentos maternais ainda brotavam com força.
Gillian agora se achava na entrada da garagem, caminhando apressada em minha direção.
- Isto não devia ter acontecido - dizia - Nada disso. Sinto muito, Frannie!
- Certo, foi só uma questão de entrar na hora errada-disse eu, percebendo que estava mesmo tão furiosa quanto parecia. Foi péssimo para David e para Frank McDonough. Pura falta de sorte.
Tive vontade de gritar com Gillian e com aquele horrível monstro chamado tio Thomas, mas obriguei-me a ficar calma, a não revelar minha raiva, minha fúria. Naquele momento, isto seria muito perigoso. Por toda parte havia guardas armados. Pareciam estar apenas esperando um pretexto para começar a atirar.
- Ei, tia Frannie! - ouvi aquela vozinha perto do chão.
Inocentemente, Michael agarrava minhas pernas e as apertava com força. Era um belo menino. Eu sempre gostara de Michael, sempre lhe fazia carinho, mas naquele instante, honestamente, ele me assustava um pouco. Como tudo, aliás. Gillian me assustava mais que qualquer outra coisa. Minha suposta amiga era um tremendo monstro.
Nada era como parecia; tudo fazia parte do meu pesadelo.
Michael era Adam.
Adam era só-Deus-sabe-o-quê.
Giliian não era minha amiga. E pensar como conversávamos, ríamos, chorávamos juntas. Giliian fora sempre uma terrível inimiga, a pior dentre Eles. Será que nunca teria pensado em me matar?
Curvei-me sobre Michael e beijei-o no rosto.
- Então você, Peter e Wendy são amigos? - perguntei.
- Somos grandes amigos - respondeu ele com energia. Giliian nos interrompeu em voz alta e ríspida. Eu não
conhecera aquele seu lado.
- Quero que vá direto para o quarto e só saia de lá quando eu mandar. Faça o que estou dizendo, Michael. Já!
O menino ergueu os olhos para a mãe. Seria sua mãe biológica? Parecia confuso, magoado, e achei perfeitamente, normal que se sentisse assim.
- Vai colocá-los para dormir, mamãe?-perguntou ele em total inocência. - Por favor não faça isso. São meus amigos. Vão se comportar!
O menino começou a soluçar incontrolavelmente. Estava assustado; eram lágrimas reais, comoventes. A raiva de Giliian pareceu se abrandar um pouco e vi um traço, ainda que mínimo, da pessoa que eu conhecera. Logo, no entanto, ela tornava a apontar para a casa.
- Não ouviu o que eu disse? - gritou. - Vá para o seu quarto, neste minuto. Estou mandando!
Olhei na direção da casa e traguei um forte gole de ar.
- Giliian, não...
Na varanda havia outra criança pequena. Uma menina. Parecia quase idêntica a Michael. Era Eve, não? Lembrei-me das crianças morrendo na Escola. Das experiências que não deram certo. Do ”refugo”. E agora aquilo.
O pesadelo simplesmente não parava; avançava em ondas sucessivas de náusea.
E de repente reconheci quem estava de pé no umbral da porta, atrás de Eve. Era o Dr. Carl Puris, marido de Giliian! Mas não, não podia ser! Carl Puris tinha morrido de ataque cardíaco num dia de verão havia dois anos!
Escutei a voz de Kit a meu lado.
- Aquele é Anthony Peyser. Vejo que está vivo e muito bem de saúde aqui no Colorado. Finalmente encontrei o miserável.
CAPÍTULO 105
Máxima. Máxima. Faça, faça isso. Vá com a for ca do vento. Ou mais depressa!
Tentando não ficar muito assustada para não se descontrolar, Max pôs as asas na vertical e mergulhou impetuosamente entre dois altos pinheiros. Deixou-se afundar mais e mais por dentro da mata até sentir-se segura o bastante para reverter e pousar.
Só então olhou para trás.
Ninguém a perseguia.
De novo se via completamente sozinha. Coisa de que, sem dúvida, não gostava. Ou melhor, detestava essa situação. Detestava. E algo dentro dela a advertia para continuar fugindo, escapando, voando o mais rápido que pudesse.
Precisava, é claro, conseguir alguma ajuda, embora não tivesse a menor idéia do que fazer. Quem poderia procurar... agora que Frannie e Kit já não estavam por perto para auxiliá-la com aqueles bons conselhos? Será mesmo que algo do que tinham dito ainda podia ser útil? Que lições aprendera até aquele momento? Sim. Estava de cabeça quente com tantas perguntas... sem resposta.
Não sabia exatamente como a coisa funcionava na Escola, mas era inteligente e curiosa. Sentia que Adam era muito especial. Pensara que fora posto para dormir, mas obviamente se enganara. Adam estava naquela grande casa nas montanhas. A casa aliás... onde morava a amiga de Frannie. Será que Frannie... estaria envolvida? Ou Kit? Em quem poderia confiar? Como, como podia conseguir ajuda? Como, como, como? Pense, pense menina!
Mas nada lhe ocorreu. Um grande e árido espaço branco tomava conta de sua mente. Por fim, decidiu rezar.
- Querido Deus que está no céu, querido Pai, por favor ajude a mim e aos meus amigos. Rezamos todo santo dia, mas parece que nada de bom acontece. Não estou reclamando, só acho que é um bom momento para Você começar. Tudo bem?
Sabia alguma coisa de Deus e gostava muito de pensar nele. Anos a fio tinha ido à igreja nas manhãs de domingo - pela TV, é claro. Agora precisava da prova de que existia realmente um Deus. Precisava que suas orações lhe trouxessem uma resposta concreta; achava que merecia isso. Todas as crianças da Escola mereciam. Sempre tinham merecido.
Lembrou-se de uma coisa que o tio Thomas dissera. Como em geral acontecia, ele a repetira muito, martelando a idéia em sua cabeça. Thomas gostava de suas próprias idéias e máximas, o grande safado!
Ele tinha dito: Deus ajuda quem cedo madruga.
CAPÍTULO 106
Fomos pateticamente levados como prisioneiros e prováveis condenados para um cômodo da casa imponente, que se estendia pela encosta da montanha. Eu sabia que a casa fora construída sobre uma antiga mina, o que não era raro no Sugarloaf. Havia anos as crianças do local costumavam brincar nos poços. Os guardas separaram de mim e de Kit as quatro crianças com asas. Wendy e Peter começaram a soluçar, o que não fez diferença para os homens da segurança, que pareciam desprovidos de coração e sentimentos.
- Tudo bem, queridos - disse eu.
- Não, não está - eles se queixavam a uma só voz. Sabemos que não está.
Provavelmente tinham razão. Seus instintos acerca do perigo, e acerca, talvez, de determinados seres humanos eram bastante verdadeiros e precisos.
No forte alicerce de concreto e metal da casa, com uma altura equivalente a dois andares, alguma coisa funcionava. Eu nunca estivera lá embaixo; nem fazia idéia que aquele anexo existia. Mais uma decepção, por certo. Na casa de Gillian, nada era como parecia.
Continuei me comportando como uma testemunha e prestando atenção a tudo. Na tampa muito vermelha de um compartimento da parede, havia a inscrição: Máscara de Oxigênio. Por todo lado vi jalecos de laboratório e óculos de segurança pendurados em ganchos. Numa porta de aço inox, havia a inscrição: Chuveiros de Segurança. Duvidei de que os grandes abrigos do Departamento de Defesa no Novo México fossem tão sofisticados ou tivessem tanta tecnologia de ponta. Muito dinheiro fora gasto ali.
Atravessamos um laboratório e pude observá-lo por dentro. A nova estética do interior. Superfícies lustrosas, não paredes brancas e foscas. Luzes brilhantes, não embaçadas lâmpadas fluorescentes. Dois cientistas trabalhavam numa coifa para cultura de células. As células podiam ser mantidas vivas por longos períodos sob a coifa.
Senti uma forte sacudidela nas costas. Um guarda nos empurrava à frente.
As dependências para onde eu e Kit fomos levados ficavam perto do que um de nossos seqüestradores chamou ”laboratórios do bosque norte”. Oz, Icarus e os gêmeos tinham sido encaminhados para outras unidades. Ninguém, é claro, ia nos dizer quais.
- Vão nos fazer dormir? - perguntei ao guarda de barba preta que estava parado na porta. Meu tom fora extremamente sarcástico.
- Tenho certeza de que a decisão será essa. - Ele olhou em volta, para os outros guardas que nos apontavam revólveres. No caso da senhora, se coubesse a mim decidir, eu enfiaria primeiro o cano da arma no cérebro, que não é grande coisa, depois no traseiro, que é bonitinho.
O homem riu. Os outros guardas, tão animalescos quanto ele, riram também e bateram a porta na minha frente e na frente de Kit.
- Que diabo aconteceu com Stricker? - disse Kit esmurrando a parede. Sem a menor dúvida, quem estava lá fora era o Dr. Peyser!
- Sem a menor dúvida, era também Carl Puris. Fui ao funeral dele em Boulder, Kit. Deus, como minha cabeça dói!
- Peysertinha uma namorada chamada Susan Parkhill, que também é uma importante bióloga. Desconfio de que Susan Parkhill não é outra senão sua amiga Gillian.
Estendi o braço e toquei a mão de Kit. Durante muito tempo, ele investigara sozinho aquela terrível rede. Lançara-se contra forças estranhas e muito poderosas. Só naquele momento percebi claramente o que teria passado.
Houve um golpe seco na porta, que quase de imediato se escancarou. Um dos guardas apareceu no umbral.
- Gillian quer falar com você - disse ele. - Só com a senhora, Dra. O’Neill.
CAPÍTULO 107
Estava chegando cinicamente perto de encarar a verdade das coisas, de admitir o lado escuro da vida, um lado que eu via ali, no Colorado, onde um dia acreditei ter encontrado o próprio Paraíso.
Gillian não era minha amiga.
Mas minha inimiga mortal.
Eu sabia exatamente o que ia acontecer.
Ia haver um interrogatório. Envolvendo uma opção de vida ou morte.
Gillian queria tirar mais informações de mim. Eu não devia deixar.
- Gosto realmente de você, Frannie - começou ela com uma de suas mentiras calculadas, descaradas. Ou, quem sabe, talvez acreditasse mesmo no que dizia. Estava sentada numa cadeira de couro preto, com encosto alto, no escritório do andar de cima. Tinha os olhos cravados nos meus.
Fui de novo assaltada por aquela sensação de ter sido completamente traída. Queria gritar com ela, xingá-la, arrancála do ar de nobreza, mas sufoquei tudo. Pelo menos quase tudo.
- Já gostava de mim antes de ter mandado acabar com David? Antes de ter mandado acabar com Frank McDonough?
Um ar frio passou no escuro castanho dos olhos dela, mas o rosto continuou impassível, inexpressivo. Era como se a visse pela primeira vez.
- E faria tudo outra vez. Neste caso, o fim justifica integralmente os meios. Da Vinci e Copérnico tiveram de transgredir para fazer suas descobertas, Frannie. Veja a coisa sob todos os ângulos antes de me julgar com excessiva severidade. Por favor, junte-se a mim! - Ela me apontou um lugar na comprida mesa de mogno; era a cadeira que ficava bem na sua frente.
Sacudi a cabeça. Não ia me ”juntar” a Gillian em coisa alguma. E senti um vazio na boca do estômago.
- Talvez esta conversa seja boa para a sua alma-disse eu -, mas para mim é inteiramente inútil. Por favor me mande de novo para baixo. Não quero ouvir mais nada, Susan. Dra. Susan Parkhll, não é?
Ela franziu a testa e bateu impaciente com os dedos na mesa.
-Tudo bem, mas preciso saber de certas coisas. Com quem falou? Torne as coisas fáceis para mim, para si mesma, para as crianças de que parece gostar tanto...
- Não contei a ninguém - disse no tom mais calmo que consegui produzir. - Posso descer agora?
Os olhos de Gillian perfuraram meu crânio.
- A quem mais contou? A quem mais além de sua irmã Carole?
Foi como uma direta no meu estômago. Nem consegui falar.
- Ainda não encontramos Carole e as filhas. Mas vamos encontrar. Não preciso de sua ajuda para isso. Há mais alguém?
Balancei a cabeça. Deus, como a odiava. Houve um momento de silêncio enquanto ela me observava... Minha velha amiga.
- Você não é muito boa para mentir, eu sei. Acho que acredito em você, Frannie...
A expressão em seu rosto mudou; ficou mais suave. Gillian queria falar de si mesma e tinha um ar de satisfação nos olhos. - Vou contar o que houve. É assombroso. Vai me compreender assim que souber.
Ela prosseguiu:
- Invertemos todos os procedimentos regulares de pesquisa. Em vez de produzir uma minúscula soma de DNA de pássaro num zigoto humano, produzimos uma significativa quantidade de cromossomos de pássaro. ”Fundimos” os cromossomos de vários pássaros com os de nossos pacientes humanos e os aquecemos até eles se dividirem nos diferentes filamentos de DNA que os compunham. Pode parecer exótico, mas é uma técnica aceita.
- Não precisa me dar explicações.
Gillian emitiu um ligeiro resmungo de contrariedade.
- A novidade introduzida por meu marido foi a possibilidade de induzir recombinações genéticas controladas entre os filamentos. Ele conseguiu direcionar o que, na natureza, é um processo aleatório de permuta de genes entre os filamentos. Na realidade, não esperava que as células se dividissem tão prontamente, mas elas o fizeram. Ficamos atônitos quando a ultrasonografia mostrou que Max era viável. Max foi o início de tudo. O primeiro êxito, ainda que imperfeito.
Ultra-sonografw. Então eu estava certa. As crianças haviam sido implantadas em úteros... Em úteros de mulheres... em úteros de algum tipo, não há dúvida.
Gillian continuou. Tinha os olhos no meu rosto, mas parecia me atravessar com o olhar.
- Trabalhamos com o Dr. Brownhill nas clínicas de fertilização in vitro de Boulder e Denver. Os casais confiavam nele, que os convencia de não haver precedente para seus métodos, o que aliás era verdade. Fazíamos a coleta do óvulo da mulher, depois o fertilizávamos com o espermado marido. Introduzíamos um pouco de DNA. Por fim implantávamos o embrião no útero.
- Tinham a permissão dessas mulheres e maridos, é claro...
- O que importa não são as mães! - disse Gillian com raiva, continuando após uma pausa: - A princípio... estudamos os pássaros, que vivem um tempo muito longo em função de seu tamanho.
Balancei a cabeça. Eu já observara aquilo. Certa variedade de albatroz pode viver até setenta anos. Os papagaios vivem ainda mais. Há incontáveis exemplos de longevidade entre as aves.
- As crianças com asas eram apenas o começo. Foi nessa época, porém, que fizemos nossa mais importante descoberta. O fato que mudou tudo. Um dos pesquisadores descobriu um gene condutor que absorve os radicais livres. Como você sabe, os radicais livres causam danos às células. Sem dano celular, os organismos não morrem, não podem morrer de causas naturais.
De repente, eu não conseguia respirar. Um frio corria pelo meu corpo. Só escutava a voz de Gillian.
Ela deu um sorriso breve.
-Michael se parece com qualquer outra criança, não acha? O mesmo se pode dizer de Eve. Na realidade, os dois compensam qualquer custo, valem qualquer sacrifício. A expectativa de vida de Michael é de duzentos anos. Talvez mais.
Não podia acreditar no que tinha ouvido. Então era em torno disso que girava toda a dispendiosa pesquisa realizada ali e na Escola? Talvez eu tenha suspirado. No mínimo fiquei realmente de queixo caído.
A expectativa de vida de Michael é de duzentos anos.
Gillian balançou devagar a cabeça. Ela me atingira. De fato compreendi o que tinha sido feito. Eu finalmente tocava na coisa.
- Meu filho é o próximo passo na evolução do gênero humano - dizia Gillian.
CAPÍTULO 108
Provavelmente Kit já participara de uma centena de interrogatórios, mas nunca do lado errado.
- Meu nome é Thomas. - O homem sentado na frente dele estava muito à vontade, muito senhor de si.
- Já ouvi falar de você - disse Kit.
- Aposto que sim. E, já que estamos conversando, vou lhe contar a minha versão das coisas.
- Claro, por que não...
- Fui da Força Aérea. O que eu mais queria na vida era ser piloto.
- Todos nós temos os nossos sonhos-disse Kit sacudindo a cabeça. Estava esperando a vez, tentando achar um meio de ganhar alguma vantagem.
- Sem dúvida. Infelizmente, minha vista não atingia os padrões exigidos pela aeronáutica. Não preciso sequer usar óculos, mas não poderia ser piloto. Acabei como professor. Aqueles que não podem, você sabe...
- Professor de que nível? - perguntou Kit. - Lecionou para crianças?
- Sim, mas só por um curto período. Logo consegui entrar como professor-assistente na academia da Força Aérea. Ensinava biologia... a futuros pilotos.
- Ótimo.
- Era ótimo. Mas um tanto irônico. Você sabe, você é bom para se conversar. Uma boa companhia!
- Não sei, não tenho tanta certeza. Mas acho que você parece um bom sujeito. Pelo menos também é bom de papo.
- Eu sei, e isso me ajuda de vez em quando. O Dr. Peyser esteve na academia e me recrutou.
- Por causa da formação em biologia?
- Ah, não! Seu pessoal está anos-luz à frente de minha formação científica. A vivência com a biologia, no entanto, me ajudou a entender o ponto de vista dele. É assim que ele trabalha, você sabe. Procura gente com a capacidade de compreender, de acreditar, e lhes oferece a grande chance.
- Em termos financeiros?
- Sem dúvida. Mas também em termos de satisfação, em termos de saber que se está fazendo algo importante. Por falar nisso... Sei que seu talento e outras qualidades fizeram de você um destacado agente do FBI...
- Mas nunca acreditei no ponto de vista deles, pelo menos não na versão que me passaram.
Thomas balançou a cabeça.
- Foi o que ouvi. Mas me diga, Kit, com quem conversou sobre a Escola até agora? Uma pergunta simples que pede uma resposta simples. Depois, nós dois podemos sair daqui.
- Não contei a ninguém - disse Kit. - A ninguém. Foi quando o tio Thomas se tornou perigoso e quando Kit
finalmente compreendeu como o medo devia ter desempenhado um papel importante na Escola. Quando também compreendeu por que as crianças odiavam Thomas, pois ele próprio começara a odiá-lo. A odiá-lo cada vez mais a cada soco perverso que levava.
Mas Kit não contou, não confessou, não falou.
Nem uma palavra.
CAPÍTULO 109
Max reconheceu instantaneamente alguns vermes hediondos da Escola. Tinham sido os zeladores, os guardas, os safados. Agora reviravam os bosques à procura dela, dispostos a matá-la se pudessem. Bem, que fossem para o inferno!
Estava escondida na copa estreita de um dos pinheiros mais grossos. Mesmo ali, no entanto, não se sentia segura. Se precisasse fugir voando, seria difícil decolar do galho oscilante de uma árvore, onde não havia espaço para atingir uma certa velocidade. O melhor era sempre correr primeiro. Talvez ela própria tivesse se aprisionado na árvore.
De repente, queria desesperadamente voar, mas havia dois helicópteros trovejando lá em cima, cruzando o denso trecho de arvoredo. Pôde ouvir o barulho surdo e, em certo momento, viu um deles no céu arroxeado e preto, flutuando na noite.
Pela porta escancarada do helicóptero, conseguiu ainda ver dois homens com rifles. Todos olhavam para ela. Os incríveis vermes.
Kit chamara as pessoas no helicóptero do telejornal visto perto de Denver de ”boa gente”, mas Max tinha certeza de que esse rótulo não se ajustaria aos que agora circulavam pela mata. Os homens lá em cima a queriam morta. Podia ver nitidamente as armas. Eram caçadores e ela já sabia como era horrível levar um tiro.
Não, certamente não eram ”boa gente”. Eram a pior escória da terra, covardes de marca maior, ordinários, gente péssima e fedida.
Sentia-se agora mais assustada que no início, quando fugira da Escola com Matthew, antes de ter voado pela primeira vez. Não gostava mesmo de estar novamente sozinha lá fora.
Sentia falta do irmão Matthew, de Oz, de Ic, dos gêmeos. Sentia falta de Kit e também de Frannie. Confiara neles... Confiara sua vida a eles. Ao pensar nos dois, sentia algo que nunca experimentara antes. Uma sensação que fazia o coração bater mais depressa, que a fazia ficar com um bolo na garganta, como se fosse chorar. Mas decididamente, positivamente, Max se recusava a chorar num momento como aquele.
Então seu coração pulou uma batida. Um soldado chegava. Uma espécie de lesma, repugnante e vil. Estava bem embaixo de seu esconderijo.
Max achou que sabia o que eram aqueles óculos engraçados que ele usava. Eram óculos noturnos, para poder ver no escuro. Como um vampiro.
Agora estava mesmo com raiva. Não ia morrer daquele jeito! E de modo algum ia cooperar com o plano nojento deles!
No último segundo, bateu as asas depressa, com muita força, fazendo o soldado (ou guarda) levantar a cabeça.
- Jerônimo, seu merda! - ela berrou.
E se jogou da árvore. Quase uma queda livre.
Fuap!
Fuap! Fuap! Fuap!
Fuapfuapfuapfuapfuap!
Atingiu o homem como uma enorme pedra. Os óculos voaram do rosto. O grande, perigoso rifle também rodou. Ele caiu no chão frio.
Só que isso fora uma estupidez! O que queria provar?, ela ficou pensando. Que era tão boa de briga quanto ele?
Ouviu a resposta vinda de algum lugar no seu íntimo.
Sim, era possível resistir!
Levantou os braços, levantou bem as asas e murmurou o mais alto que pôde:
- Smmmm! Posso enfrentá-los!
Nesse momento, ouviu o ronco trovejante dos helicópteros que se aproximavam. Ergueu a cabeça. Realmente havia mais de um.
E ela já não tinha tanta certeza daquela resposta.
CAPÍTULO 110
Kit tinha cortes, lacerações e contusões roxas por todo o rosto. O lábio superior estava cortado e sangrava. O sangue também escorria pelo nariz cujo osso provavelmente fora quebrado. Ele se transformara no foco de atenção de pessoas realmente dispostas a transformar alguém num saco de pancadas. Havia sido espancado, realmente espancado.
- O que houve com você? O que aconteceu, Kit?
- Não falei - ele foi capaz de responder. Depois tentou sorrir com o lábio grosso e conseguiu fazê-lo parcialmente.
Sentei-me a seu lado na cama, pensando como seria bom ter um kit de primeiros socorros. Quando encostei suavemente a mão numa das contusões, ele estremeceu.
-Tudo bem, estou ótimo! Não é a primeira vez que levo uns socos.
Parecia, no entanto, irritado com o espancamento. Lembrava um animal trancado e maltratado que estivesse tentando se acalmar. Admirei sua coragem. Ele nunca desistia. Falou-me de seu encontro com o tio Thomas e eu contei a conversa que tivera com Gillian no andar de cima.
Gemendo, pôs o braço à minha volta e inclinei a cabeça contra seu ombro. Ficamos alguns minutos em silêncio.
- Nunca vou esquecer a primeira vez que a vi - disse encostado no meu rosto. Achei que ele estava sorrindo. Sentia em sua voz.
- Gritei para sair de minha propriedade, mandei arrumar a trouxa e cair fora certo? Aí você disse: ”trato é trato”.
- E no que acredito - disse Kit balançando a cabeça -, ainda acho que um aperto de mão vale alguma coisa. Fiquei impressionado com você, Frannie. Uma mulher valente, audaciosa, inteligente, pronta a defender seu espaço. Além de extremamente bonita.
- Certo, eu me lembro de como parecia glamourosa. Tinha sangue e tripas de uma corça espalhados por toda a roupa.
- Sim. Sangue no suéter, fogo nos olhos. Deus, você foi uma bela visão! E uma bela visão! Espero mesmo que a gente consiga sair desta encrenca, Frannie. O problema é que não sei exatamente como vão poder nos deixar ir embora. Somos testemunhas oculares de tudo!
- Nosso último dia sobre a terra - suspirei, deixando as palavras sumirem aos poucos, pensando em seu significado. Que coisa incrivelmente estranha. O que você lamenta nunca ter feito? O que faria agora se pudesse?
- Gostaria de voar com Max - disse Kit sem hesitação, suspirando. - Gostaria de ter-me despedido de Kim e de meus dois garotos: acho terrível não ter tido sequer essa chance. Também gostaria de fazer um safári no Serengeti e em Masai Mara. Quem sabe viver algum tempo no Tibete, apesar do filme de Brad Pitt. Ou passar um mês ou dois em Florença.
- Tudo bem, é bom pensar em Florença, eu acho.
Não sabia por que estávamos falando daquele jeito num momento tão ruim. Parecíamos estranhamente calmos e meio levianos. A coisa que provavelmente eu mais temia era ser levada para longe dele. Eu e Kit estávamos apenas começando e... logo estaria tudo acabado. Parecia injusto, muito errado.
- Realmente eu não gostaria de morrer antes de ter feito isto... -Kit sussurrou e embora seu lábio devesse estar doendo, ele me beijou muito de leve na boca. Foi uma coisa muito doce. Kit sempre me surpreendendo...
- Era o que eu queria também - murmurei -, realmente queria. Desde a primeira vez que o vi.
- Sem dúvida, você mexeu comigo - respondeu Kit ao murmúrio. - O que mais gostaria de fazer?
- Vou lhe mostrar. Venha cá!
Tornamos a nos beijar, carinhosa mas ansiosamente. Apertamo-nos. O que mais eu gostaria de fazer? Sim, eu queria despi-lo muito devagar, com muita sensualidade, e queria que ele fizesse o mesmo comigo. Não tínhamos muito tempo e sabíamos disso, o que mudava tudo, mudava cada prioridade. Ou talvez arrumasse, pela primeira vez, corretamente nossas prioridades.
Toquei gentilmente em seu rosto. Beijei os cortes. Senti o gosto do sangue no lábio. Estava aprendendo tudo a respeito dele, memorizando, esperando nunca mais esquecer qualquer detalhe. Era a única coisa que podíamos fazer naquele momento, a única que fazia sentido. Melhor que nos preocuparmos, trocarmos acusações pelos erros, bater nas portas, gritar.
Estendi a mão e puxei-lhe o cinto largo de couro. Ainda me sentia um pouco sem jeito. Então, quando percebi como era tolo me sentir assim, arranquei o cinto com força. Tudo acontecia muito depressa, mas pelo menos acontecia. Ele era o mais sensual, o melhor homem que eu já conhecera. Tinha absoluta certeza disso. Ah, como tinha certeza!
Os segundos passavam devagar. Que assim fosse. Queria que fosse devagar. Não precisávamos ir a lugar algum, aquele era o único lugar que tínhamos. Meio tonta, fui conquistando uma intimidade cada vez maior com ele. Não sentia mais qualquer sentimento de culpa, nem um traço.
Kit inclinou o rosto e segurou-me carinhosamente o queixo. Beijou-me os lábios, depois as faces, o nariz, os olhos. Seus olhos azuis não se afastavam dos meus.
Não me lembrava de ter sido algum dia beijada nos olhos. Kit também me beijou a cavidade da garganta. Adorava, adorava o modo como ele me tocava. Talvez isto não devesse estar acontecendo naquele momento, mas eu não podia, não queria parar.
Parecia tão incrível que estivéssemos juntos. Sentia a respiração na superfície do meu corpo, os seios rapidamente subindo e descendo. Sim, estava gostando muito de Kit e passei as mãos por suas costas duras, pelos ombros, pelo interior das pernas musculosas. Ele agora estava muito ligado e achei ótimo que me quisesse. Eu também o queria.
Uma chama tornara a acender dentro de mim, uma chama que se espalhava rapidamente. Quando Kit me penetrou, comecei a me mexer devagar, depois mais depressa, muito mais depressa. Senti nossos corpos encontrarem um ritmo e tudo parecia tão harmonioso, tão bom. Tive a sensação... de que estávamos voando, e era assim que gostaria de me sentir em todas as minhas relações.
CAPÍTULO 111
Max apenas cochilara. Fora tudo que se atrevera a fazer. Tinha mudado outra vez de lugar e estava escondida na crista de uma pequena montanha, onde havia muitas pedras e grandes álamos. Conseguira se enterrar numa grota profunda e estreita, sob folhas úmidas e velhos galhos quebradiços.
Mais ou menos uma hora depois da fuga, incursionara por uma casa de campo das proximidades. Buscara água e comida. Como homenagem aos velhos tempos e porque estava extremamente faminta e sedenta. Voar queimava tremendas somas de energia.
Tinha-se empanturrado e comido depressa demais. Agora já se sentia mal do estômago. Tinha eólicas, uma sensação de náusea, algo simplesmente terrível! Mas era hora de seguir em frente, sacudir as penas. Hora de viver a vida em sua plenitude e, provavelmente, hora também de morrer.
As perspectivas de fato não eram muito boas, mas não fazia mal. Pelo menos tinha vivido algum tempo em liberdade. Fora capaz de voar e ver um pequeno pedaço do mundo. Nem isso a maioria das pessoas chega a fazer! Pelo menos não como ela.
O sol da manhã se erguia rapidamente e Max sentiu-se muito feliz com a possibilidade de contemplá-lo mais uma vez. Teve vontade de voar na direção daquele esplêndido nascer do sol, fundir-se com a grande bola amarela e laranja. Sentia-se incrivelmente conectada ao resto do universo.
Mas isso fazia sentido? Estaria mais conectada que a maioria das pessoas? Max achava que sim. Talvez porque pudesse voar.
Deus, sentia-se dolorida e rígida por todo o corpo! Precisava de um banho quente. Precisava que Frannie lhe penteasse o cabelo, lhe desembaraçasse as penas. Queria estar com seus amigos, e queria que, pelo menos uma vez na vida, todos fossem deixados em paz.
Maldito aquele pessoal da Escola! Odiava o tio Thomas, os outros guardas, os homens estranhos que chegaram em ternos de executivos. Odiava-os de todo o coração.
Subiu num rochedo de onde se descortinava a parte superior do vale e calculou estar a cerca de três quilômetros da casa onde achara a corrida. Patinhas, patinhas, ela recitou, nada de barulho agora. Caladas ou serão apanhadas. Não se deixem pegar!
Max virou a cabeça, observou o vale e seu coração quase parou. Ah, não! Quando viu o verdadeiro exército de homens e mulheres que estava à sua procura, mergulhou depressa atrás da encosta de rocha.
Pouco depois, ergueu a cabeça. Só um centímetro. E foi ao ver um dos helicópteros que teve a idéia. Não sabia se era uma idéia estúpida, perfeitamente sensata ou totalmente maluca. Mas concentrou-se no distante pássaro de metal e tirou tudo mais da cabeça.
Claro, era uma idéia realmente incrível! Talvez porque não existissem muitas outras opções. Ao menos era um plano. Algo para entretê-la nos próximos minutos.
Max esticou os membros e uma dor cruel lhe perfurou o corpo, mas ela a ignorou. Queria sentir-se o mais relaxada, o mais solta possível. Preparou-se mentalmente. Deus, ainda estava com a sensação de náusea! Talvez a comida daquela casa não estivesse lá muito boa.
Alertou a si própria: Suba depressa. Nada de medo. Nada de vacilação! Mas fique entre as árvores.
Voe muito, muito rápido.
Nada de medo!
Mantenha-se baixa!
Que Deus proteja quem se meter no seu caminho!
Ela se levantou depressa e começou a correr como para tirar alguém da forca. O coração batia veloz, com pancadas fortes. Na realidade fortes demais. Como se fosse pular do seu peito. A sensação era de que ia explodir a qualquer momento.
Não viu ninguém ao levantar vôo. Onde estavam os caçadores? Afinal, sua expectativa era ser baleada. Ela franziu a testa com esse pensamento, quis fechar os olhos, mas não o fez.
Fique baixa, voe muito rápido.
Por favor, Deus, não deixe que me acertem de novo. Só preciso ficar por alguns minutos. Permita que eu voe por mais um minuto. Permita que eu voe por mais dez segundos.
Ah, não! Tarde demais para se enfiar atrás das árvores. O guarda estava bem ali, tão diabolicamente perto que quase podia estender a mão e agarrá-la.
E ele se esgueirou em sua direção, silencioso e letal como um pedido de Icarus. Quando ergueu o rifle do nível da cintura, Max mergulhou como um bombardeiro. Não tinha opção.
Se tentasse apenas derrubá-lo, não conseguiria. Estava dolorida, exausta, e não se sentia bem do estômago.
Então deixou a coisa rolar de qualquer maneira! Suas entranhas, o enjôo, a náusea. Tudo vezes tudo!
E tudo que comera na casa de campo - ensopadinho de carne frio, sorvete de chocolate com flocos de chocolate, toneladas de leite com um cheiro meio azedo, presunto, queijo provolone, picles em molho de tomate (comidos sem pão) -, tudo que encontrara no refrigerador ela devolveu.
Jogou na cara do guarda. Vomitou pelo rosto dele, pelo ridículo boné dos Colorado Rockies. As mãos do sujeito voaram para os olhos. Provavelmente nem sabia o que o atingira. O fato é que largou a arma e deu um tremendo berro.
Max passou por ele batendo as asas, desaparecendo entre os abetos, os pinheiros, o mato alto. Conseguira se safar. Não levara tiro algum. SSSimmm, sssimmm, gritava!
Estava voando de novo, lembrando-se do quanto gostava disto.
E fez o pedido: me deixe voar por mais sessenta segundos... Me deixe voar só mais uma vez.
CAPÍTULO 112
Acordei com o rosto a poucos centímetros do rosto de Kit e gostei de estar ali, bem perto dele. Estava apertada contra seu corpo, abraçando-o com força. Estranho, mas era a primeira manhã, num prazo de muitos meses, em que não despertava no meio de algum pesadelo apavorante.
Ainda que houvesse, é claro, um pesadelo.
Ele estava acordado. Kit me olhava e seus olhos azuis pareciam ainda mais fascinantes que quando fechados. Incrível como se revelara um homem sensível, carinhoso. Tão bom para se conviver. Aposto que você foi realmente um ótimo pai!
- Ei... - murmurei e sorri. Há séculos não me sentia tão amorosa, tão afetuosa - Ei, estou falando com você! Acho que não foi um sonho aquela transa selvagem de ontem à noite!
E de repente tudo parecia tão simples, tão arrumado, mas a ironia da coisa era aterrorizante. Eu e Kit estávamos nos apaixonando, ou talvez já tivéssemos nos apaixonado. Nossa situação, porém, não podia ser pior. As chances de sobrevivência eram nulas. Éramos testemunhas. Tínhamos visto as atrocidades cometidas na Escola.
Houve uma batida leve na porta e olhamos um para o outro. A hora chegara? Vinham nos buscar? Thomas e seu bando de capangas...
Troquei novamente olhares com Kit e ouvi uma chave deslizando devagar na fechadura, metal contra metal. Pulamos, então, da cama para vestir alguma coisa.
Quando a porta se abriu, não pude acreditar no que via.
- Alô, tia Frannie. Sou eu, Michael! Vim resgatá-la.
CAPÍTULO 113
Havia mais alguém ali. Um homem num paletó azul entrou no quarto logo atrás de Michael. O semi-automático em sua mão estava apontado para Kit. Inexplicavelmente, ele sorria.
- Também estou no resgate - disse ele. Uma voz macia. Muito baixa. Que obrigava a pessoa a prestar atenção.
- Quem é você? - perguntei.
Eu nunca o vira antes. Tive certeza absoluta de que não era do Hospital Comunitário de Boulder. Também não achei que fosse um dos guardas.
- Seu nome é Peter Stricker - disse Kit. - Era meu chefe no FBI, diretor regional. Mandou que eu me afastasse da investigação, alegando que não levaria a parte alguma. Ameaçou me demitir quando não abandonei o caso. E, agora, aqui está ele! Alô, Peter! Vejo que o caso finalmente mereceu sua atenção.
Stricker era alto e bastante musculoso; tinha um cabelo escorrido, penteado para trás, louro-claro. Um emergente (se é que eles existem mesmo) de expressão convencida. O sorriso era fácil, bem lubrificado.
- Em quem se pode confiar nos dias de hoje, não é?-disse Stricker num tom sussurrante. - Em ninguém, eu acho. Nem nos amigos mais íntimos. Nem em certos antigos companheiros do FBI.
- Está querendo dizer - perguntou Kit - que ainda existem pessoas confiáveis no Bureau?
- Claro! Alguns dinossauros aqui e ali. Por acaso o diretor é um deles. Na realidade, só uns poucos tiveram a sorte de se envolver na coisa. Ao lado de alguns bravos de confiança das forças armadas. Todo mundo que descobriu a história queria ficar com um pedaço. Bem no estilo americano. Porque você tem razão, isto é um grande caso! O mais importante da minha vida!
- Quer dizer que há envolvimento do governo americano? - perguntei.
- Não, não vamos exagerar. Não precisamos inventar fantasias paranóicas ou teorias de conspiração. Claro que certas pessoas do governo estão cientes do que aconteceu em San Francisco ou Boston e acontece hoje aqui, no Colorado. Quanto a nós, do FBI, só nos envolvemos em caráter pessoal e formamos um grupo de no máximo umas cinqüenta pessoas. Há muita coisa em jogo, não há dúvida. Houve uma breve rebelião de alguns médicos que participavam das pesquisas, ataques de consciência, mas isso faz parte do passado. O problema foi eliminado.
- Você apenas ajuda a abrir o caminho do progresso e é pago por seus serviços, certo? - disse Kit. - Esse é o estilo americano.
- Somos muito bem pagos. Pois nosso trabalho é importante, não acha? Eu, por exemplo, impedi que você interferisse. Dei minha contribuição à Causa, uma Causa em que acredito, tenha certeza. Acho que o trabalho do Dr. Peyser é fundamental para todos nós.
- E está aqui para nos matar pessoalmente... - eu disse a Stricker. - Ficou responsável pelo ajuste de contas, não foi? Enquanto falava, fui me afastando um passo ou dois de Kit, abrindo um pequeno espaço entre mim e ele.
- Não era o que planejava quando cheguei. Mas meus planos, é claro, tiveram de ser alterados de um momento para o outro. Não faça isso, Dra. O’Neill. Realmente não é uma boa idéia!
Continuei avançando lateralmente.
- O que não é uma boa idéia?
- Você nunca foi um agente de campo - disse Kit. Nunca sujou as mãos, Peter! Ficou atrás de uma escrivaninha todos esses anos. Por isso, se dependesse de mim, jamais teria sido designado para a direção regional!
- Tudo bem! Parem já com isso! - Stricker finalmente erguia a voz e deslocava o revólver para apontá-lo contra meu peito. - Posso fazer perfeitamente um trabalhinho sujo, Tom! Observe.
Avançando com uma rapidez de relâmpago, Kit aplicou um tremendo soco no queixo de Stricker. Foi um golpe realmente arrasador, que fez o agente cair com um dos joelhos no chão.
Logo, no entanto, ele se recuperava e ficava em pé. O que me deixou espantada. Stricker era mais forte e muito mais duro do que parecia.
Kit voltou a atacar com um curto e poderoso direto no maxilar. Um swing (acho que é assim que se diz no boxe) que tirou o ar de convencimento e satisfação do rosto de Stricker. Eu quase aplaudi.
Então ele armou outra pancada dura e forte, desta vez no estômago de Stricker. Kit também era mais duro do que parecia. Bastante mais duro, aliás, embora normalmente já aparentasse ser um sujeito durão. Eu não sabia que tinha lutado boxe amador, inclusive no Golden Gloves, uma experiência que, sem dúvida, rendia agora ótimos frutos.
Ele partiu com outro soco-relâmpago, que acertou bem entre os olhos de Síricker, achatando o osso do nariz. O agente caiu e desta vez não se levantou. Continuou imóvel no chão.
Kit se ajoelhou e pegou o revólver. Nem mesmo estava sem fôlego. Sem a menor dúvida, tirara o melhor proveito de uma briga tão desigual. Eu também.
- Vamos sair daqui - disse ele.
- Incrível, uau! - exclamou Michael, que tudo observara com ar extasiado. - Isso foi realmente muito bom! Você é bom de briga.
- Kit agradece - disse eu. - Mas agora nos mostre onde estão Oz, Icarus e os gêmeos.
O próximo passo na evolução humana sorriu como qualquer outro menino de quatro anos; chegou a pegar na minha mão.
- É, sei onde eles estão, tia Frannie. Vou lhe mostrar o caminho.
CAPÍTULO 114
Michael foi meu herói. Ele nos indicou o caminho. Descemos rapidamente um pequeno corredor que terminava numa porta cinza metálica, de aparência sinistra. Rezei para as outras crianças não terem sido feridas ou postas para dormir.
- Fim da estrada? - perguntou Kit quando atingimos a porta. - Para onde agora, Michael?
- Podemos ir por aqui, é mais rápido - disse o menino. Não se preocupem, sou muito inteligente para minha idade.
- Tenho certeza de que sim - disse Kit. - E aí vamos nós. Ele escancarou a porta pesada e entramos num grande laboratório.
O lugar me deixou sem fôlego, completamente atordoada. Havia equipamentos por toda parte. Cilindros graduados. Pipetas de Pasteur. Tubos de centrifugação com misturador a vácuo. Osciladores, isto é, máquinas que agitam kits de tubos de ensaio, pois certas bactéricas precisam desse movimento para se desenvolverem. Havia também incubadoras do tamanho de máquinas de lavar - eu não sabia por que estavam ali, mas eram assustadoras. Na parede, fora instalada uma autoclave para esterilizar o que fosse preciso.
Três jovens mulheres estavam deitadas em camas de hospital na extremidade da área! Todas obviamente grávidas, provavelmente com mais de oito meses. Perto do final da gestação.
Um enfermeiro alto e forte nos viu entrar e nos interceptou. Parecia preocupado, talvez irritado, talvez ambas as coisas.
- Vieram para a inspeção, para ver as instalações? perguntou. - Os senhores sabem, não podem entrar aqui desacompanhados...
Kit não disse uma palavra. Acertou-lhe um direto que o fez oscilarão redor dos joelhos. O pesado meliante não teve a menor possibilidade de reagir e bateu no chão com uma pancada forte. A enorme cabeça ainda tentou se erguer do concreto, mas rolou para o lado.
-É melhor sairmos daqui-disse Michael.-Vamos, por favor!
Michael tinha razão, mas, enquanto corríamos, eu não conseguia tirar os olhos das mulheres grávidas. Pareciam estar no fim da adolescência ou ter no máximo vinte e poucos anos.
Espécimes bastante saudáveis, sem dúvida... O que estariam fazendo ali embaixo? Que tipo de bebês iam gerar?
Olhavam-nos em silêncio e finalmente vi as correias de couro em suas pernas. Tinham sido presas nas camas, imobilizadas, amarradas. Não podiam se levantar e sair.
- Traremos ajuda - sussurrou Kit do meu lado. - Vamos. Frannie!
- Vamos buscar ajuda, eu prometo! - disse às mulheres. Seria impossível levá-las conosco naquele momento.
Michael me puxava para uma porta de aço que havia nos fundos.
- Voltaremos para socorrê-las - prometi novamente a uma delas, uma moça que não devia ter mais que dezoito anos.
-Acho que estou entrando em trabalho de parto-disse ela timidamente.
Experimentos humanos.
CAPÍTULO 115
- A maioria dos seres humanos são como pedras no caminho, inúteis a si mesmos e aos outros, capazes de aproveitar a menor oportunidade para colocar as unhas de fora - disse Gillian em voz baixa e confiante. - Felizmente, esta deprimente descrição não se ajusta a nenhum de nós. Sejam bem-vindos. Nosso grupo pequeno e seleto é incrivelmente importante para a humanidade. Hoje estamos inaugurando uma nova era. É o que lhes prometo, uma promessa que hei de cumprir.
Da comprida mesa de trabalho colocada na frente da sala de reuniões, Gillian e o Dr. Anthony Peyser contemplavam a audiência.
O Dr. Peyser falou sem se levantar da cadeira.
- São apenas oito da manhã e nosso programa se desenvolve conforme o previsto. Tudo corre com perfeição, estejam certos. Temos, aqui reunidos, os expoentes mais brilhantes da engenharia genética.
Ele prosseguiu:
- Como podem ver, as notícias de minha partida deste planeta foram um tanto prematuras. Claro, poderão deduzir de meus tremores que tive um ataque cardíaco... mas agora estou bem. Na realidade, encontrei um meio de adicionar dez, talvez doze anos à minha miserável expectativa de vida! Mais tarde, voltarei a este assunto, mas, acreditem, será uma simples nota de rodapé em comparação com os outros itens que reservamos para os senhores nesta manhã.
Houve acenos de cabeça e sorrisos breves dos dezessete homens e mulheres convidados para visitar as instalações e participar... do mais importante leilão de todos os tempos.
Um leilão.
Cada uma das dezessete pessoas representava uma grande empresa de biotecnologia ou, em certos casos, um país. Um rico indivíduo viera disposto a financiar uma nova megaempresa com base no que viesse naquela manhã. Os ”expoentes da engenharia genética” pareciam relutantes em se olharem nos olhos. Pelo fato de estarem ali para disputar as mais espetaculares descobertas científicas da história, tinham medo ou vergonha de revelar a cobiça comum. Uma vez Truman Capote chamara J. Edgar Hoover e Roy Cohn de ”luzes assassinas”. Se assim fosse, aqueles personagens eram ”sombras assassinas”.
O Dr. Peyser continuou se dirigindo ao grupo.
- Todos leram os dossiês e pré-examinaram os lotes. Cada experimento, cada miraculosa criança é única e extremamente valiosa. Todos os documentos e dados relativos à ”proveniência dos lotes” serão fornecidos ao comprador efetivo. Definimos uma margem ou cifra mínima pela qual cada love deve ser negociado. É o que chamamos de ”preço-limite”, provavelmente porque ficaremos no limite de nossos nervos se tivermos de nos contentar com ele. Bem... se não há mais perguntas, abriremos o leilão.
Gillian se levantou da cadeira, exibiu um sorriso polido e pousou um maço de documentos na mesa. Depois ajustou os óculos de aro fino que ajudavam a lhe proporcionar a aparência de uma bem-sucedida mulher de negócios. O mundo estava mudando, afinal. Sim, o mundo estava mudando mais depressa que qualquer um daqueles executivos com ar presunçoso seria capaz de imaginar.
- O leilão está oficialmente iniciado - ela anunciou por fim. - Deste momento em diante, ninguém mais terá permissão de participar. Não haverá lances pelo telefone, nem lances em envelope fechado. O vencedor será indicado pela simples batida do martelo.
Um dos concorrentes, um homem calvo, de ombros caídos, usando um terno escuro com listras finas, inclinou-se para a frente. Tinha um nariz pontudo, virado para cima, e um belicoso lábio inferior. Era de Nova Jérsei, um rico subúrbio perto da sede da AT&T.
-Poderemos tomar posse imediata dos lotes e da documentação científica? - perguntou ele.
- Sim, é claro que podem. Quer fazer o lance inicial, Dr. Warner?
- E quanto aos incrementos? - veio outra voz. Era um homem de excelente aparência, com um cabelo entre ruivo e castanho, cortado muito rente. - Qual é a norma para os aumentos dos lances?
- Os incrementos, Dr. Muller, serão em múltiplos de cem milhões de dólares - anunciou Gillian.
Houve um ruído de discussão, protestos ligeiros, medo de que um ou outro concorrente pudesse ter acabado de levar alguma vantagem.
- Senhores e senhoras - disse Gillian batendo uma vez o martelo. - O leilão será tranqüilo, está bem?
Os participantes se sentaram. Tinham boas maneiras, eram educados. Bons cidadãos, todos eles.
Gillian correu os olhos pelo sumário dos lotes e ergueu de novo o rosto para uma audiência que parecia hipnotizada. Havia silêncio e os concorrentes assumiam a expressão de quem se enfileirava num invisível portão de largada. Gillian fez uma pausa breve, como se refletisse sobre algum tópico que tivesse esquecido de abordar.
Na realidade, brincava com as cabeças ali reunidas, brincava com os egos superinflados. Achou que Prometeu devia ter-se sentido assim logo após ter roubado o fogo dos deuses.
A atmosfera na sala de reuniões parecia carregada de tensão, nervosismo, até mesmo medo. Era possível que a humanidade estivesse prestes a dar um salto à frente, em vez de apenas rastejar pela estrada da evolução, como sempre acontecera até ali.
Gillian finalmente tornou a falar:
- O lance inicial será de oitocentos milhões de dólares para o item Um, NÍVEL 243, também conhecido como ”Peter”. Peter tem quatro anos de idade. E um quociente de inteligência bastante elevado. Está em excelente estado de saúde. Pode voar.
- Falou mesmo em oitocentos milhões?
Uma voz retumbante se ergueu nos fundos da sala. Era um dos participantes alemães.
- Um bilhão de dólares pelo pequeno Peter, NÍVEL 243, e sua preciosa documentação científica.
CAPÍTULO 116
Matthew estava vivo e, levando em conta as terríveis experiências por que passara nos últimos dias, parecia muito bem.
Eu via pela primeira vez o menino, mas não foi difícil identificá-lo. Tinha o mesmo cabelo louro de Max, embora o peito e os ombros fossem mais largos. As asas eram brancas, com tons azuis e prateados. Sem a menor dúvida, era irmão de Max, e também uma criança notável.
- Meu nome é Matthew - disse ele, o sorriso também lembrando bastante o de Max.
Tínhamos entrado em outra área, onde as crianças estavam sendo mantidas. Só era possível chegar lá através da ”alamaternidade”. As outras portas pareciam hermeticamente fechadas.
- Vocês devem ser Frannie e Kit - continuou o menino.
- E vejam quem mais? Adam ressuscitou dos mortos.
O filho de Gillian balançou tristemente a cabeça.
- Agora me chamam de Michael - disse.
- É, vamos dar um jeito Neles, certo, pessoal? Certo, Adam?
Oz, Icarus e os gêmeos, também detidos na pequena sala, aplaudiram, assobiaram de alegria.
- Dar um jeito Neles!
- Precisamos sair daqui - disse Kit interrompendo a comemoração. Ele assumira de fato o comando. - E temos de ir já, garotos.
Ninguém fez objeção e começamos a correr por compridos túneis subterrâneos, sempre seguindo o pequeno Michael. Ele parecia conhecer o caminho e certamente era muito inteligente. Subimos uma escadinha estreita, que nos deixou em frente a uma porta pesada. Torci para ser uma saída externa.
A porta se abriu quando Kit a empurrou. No mesmo instante, um alarme ensurdecedor tocou acima de nós. E a parte boa, estávamos fora da casa!
- Vamos! Vamos! Vamos! - eu gritava empurrando as crianças. - Espalhem-se. Afastem-se da casa.
- Não parem! - atiçou Kit. - Não vacilem. Não olhem pratrás. Vão!
- Vamos, vamos, já fomos! - gritava Icarus.
- A grande escapada! - berrou Oz.
As crianças continuavam se sentindo numa grande aventura, o que me parecia muito conveniente. Estávamos de novo em fuga, a caminho da segurança dos bosques. Alguma coisa, no entanto, acontecia na casa.
Tivemos de atravessar uma grande área de estacionamento pavimentada de cascalho. Havia uma dúzia de veículos estacionados: carros de passeio, Range Rovers, jipes, pequenas vans. A maioria dos motoristas estava parada ao lado dos carros. Tive certeza de que não poderiam acreditar no que seus olhos viam. Quem poderia?
Cinco crianças com asas! Acompanhadas de dois adultos com expressão alucinada. Todos correndo!
De repente, havia gente saindo da casa. Reconheci alguns médicos de Boulder, homens e mulheres que eu só vira de passagem. Todos cuidadosamente vestidos. Pareciam homens de negócios - mas que negócios? Que negócios teriam ali?
Deixaram a casa numa pressa tremenda, enquanto alarmes soavam por toda parte, bem alto. Quando alguém na varanda apontou para nós, todos olharam.
Nesse instante, os guardas começaram a sair de duas portas. Vinham pesadamente armados e já nos tinham localizado. Achei que ainda estávamos muito longe da mata para conseguir escapar.
- Voem! - gritei para as crianças. - Depressa, voem! Foi exatamente o que Oz, Ic, Peter, Wendy e Matthew
fizeram. Um espetáculo sem dúvida impressionante. O bando decolou como se havia anos voassem juntos. Mesmo Matthew se integrou com facilidade.
- Isso mesmo... voem! - continuei gritando. - Fujam!
- Mais alto, vão! - Kit, do meu lado, também gritava para os meninos. - Vão para os bosques! Rápido!
Vi Gillian e meu coração quase parou. Ela vestia um costume azul e saíra correndo da casa. Que tipo de reunião teríamos interrompido? Vi quando mandou os guardas atirarem. Para que servem as amigas?
Gritando como louca, veio direto em minha direção. Foi então que dei um salto e também avancei. Aumentando a velocidade. Mantendo o curso de colisão.
Isso a confundiu por alguns segundos. Pude ver em seu rosto. Talvez, afinal, não fosse assim tão esperta.
- Voem! - continuei gritando, encorajando as crianças.
- Saiam daqui. Vão, Vão. Os bosques!
Olhei para Gillian. Ela se aproximava, cada vez mais depressa.
Curso de colisão.
Tudo bem. Vai se arrepender, minha senhora. Vai se arrepender!
Choquei-me de frente com ela.
Investi contra aquela tremenda filha-da-puta do mesmo jeito como quinze anos atrás costumava me arremessar contra meus irmãos (na época em que jogávamos, sem capacete, o nosso futebolzinho americano na fazenda da família, no Wisconsin). Sem recuar, dirigi meu ombro para o estômago dela, mole como um travesseiro. Uma parada digna de Paul Hornung, Jimmyr Taylor, Ray Nitschke e do Green Bay Packers, atual campeão mundial. No Wisconsin, eu adorava o Packers. Torcia por ele como as crianças pequenas, que eram suas maiores fãs.
Gillian gemeu.
- Uf? - ela chegou a dizer. Foi um prazer incrível, indescritível, proporcionar-lhe um pouco de dor física. Achando ótimo que houvesse algum osso quebrado, dei-lhe um chute extra enquanto ela estava caída. Senti-me realmente muito bem fazendo aquilo.
Então (ô meu bom Deus), vi Max voando sobre o telhado e a chaminé da casa.
CAPÍTULO 117
Eddy Friedfeld, um homem calvo, de fisionomia rude, pilotava o KCNC Live, o helicóptero do telejornal do canal 4. Estava agora no comando e se acostumara a tomar decisões rápidas, razoavelmente inteligentes. Em geral, era capaz de meditar no meio do barulho torturante das hélices do Bell Jet Ranger.
De repente, porém, já não conseguia sequer pensar de um modo racional. Parecia impossível. Pelo menos de imediato. A mente entrara em curto-circuito.
Agarrou-se ao controle central que governava o helicóptero e apertou-o o mais que pôde. Deu uma olhada nos instrumentos básicos: velocímetro, indicador de velocidade vertical, bússola, rádio. Todos os mostradores pareciam OK. Nada havia de errado dentro da cabine.
Fazia cerca de 170 quilômetros por hora. Tudo normal, certo?
Errado! Errado! Errado! Nada do que estava acontecendo com ele naquela manhã chegava nem mesmo perto do normal.
Vira a menina do lado direito do aparelho, a uns cento e cinqüenta metros. Quase tivera um ataque das coronárias, quase perdera o controle diante dos seus instrumentos.
Fechou e abriu os olhos algumas vezes. Continuava lá.
A menininha estava voando!
Não era possível! Mas ali estava!
Tinha belíssimas asas brancas com tons de azul e prata.
Sim, parecia mesmo que tinha asas!
E, porra, parecia mesmo voar com seus próprios meios! Como a maior, a mais impressionante águia americana ou o mais incrível falcão.
- Randi? - ele sussurrou no microfone.
A voz de Randi Wittenauer, a camerawomarrde vinte e dois anos, brotou no seu fone:
- Vê o que eu acho que estou vendo? - disse ela. - Por favor me diga que não estou tendo alucinações, Eddy.
-Nós dois estamos tendo alucinações, parceira. A explicação só pode ser esta. Tem de ser.
O OVNI, a coisa que estava lá fora, encurtara a distância inicial e agora parecia estar se aproximando rapidamente do helicóptero.
Com ombros tão rígidos que chegavam a doer, Eddy Friedfeld sentiu um arrepio subir e descer pela nuca. Como imediatamente antes de um combate. Como na Tempestade do Deserto. Jesus! Ela estava voando bem na direção dele.
Eddy tocou devagar no comando, alterando ligeiramente o ângulo de inclinação. Adorava voar em helicópteros, onde se via submetido a um teste contínuo de agilidade e percepção sensorial. Infelizmente isso nunca fora mais verdadeiro que naquele momento.
Apertou o intercom.
- Randi, ela está se aproximando de nós às três horas. Vou fazer a conversão para lhe dar um ângulo melhor.
Sabia, é claro, que Randi já estaria gravando. Se aquilo era real, ia aparecer com certeza no telejornal da manhã.
Empurrou o manche bem para a direita e o aparelho se inclinou trinta graus. Depois diminuiu a velocidade e torceu a cabeça para também ver o OVNI. Lá estava! Avançando agora à sua frente. Jesus!, uma bonita menininha... com asas. Fantásticas e belas asas.
Tinha de ser uma brincadeira. Mas como? Quem teria conseguido colocar aquela filha-da-puta lá fora?
- Estamos rodando - informou Randi. - Quilômetros de teipe! Estou pegando tudo daquelas asas psicodélicas! Cada batida. Transmita agora para a central. Acho que esta manhã vamos acordar todo mundo e Denver vai implodir! Ela não é bonita?
Sim, era certamente bonita. De arrasar.
Enquanto Friedfeld continuava literalmente com medo de piscar os olhos, a pequena menina-pássaro de cabelo amarelodourado deu alguns giros impressionantes.
Quase como se estivesse escrevendo no ar. Estava? Era algum tipo de mensagem? Qual?
Ele acionou, com o polegar, o comando que o punha em contato com a produção no estúdio.
- Sombra Nove para estúdio. Estão na escuta? Quero o seu retorno agora, Stephanie. Está vendo esta porra? Será que morri, estou subindo para o céu e vendo um anjo?
Escutou a voz que entrava no fone.
- Qual é, Eddy? Está brincando? Que diabo são estas imagens que está nos mandando? - A voz de Stephanie Apt chegava muito alta. Steph costumava ser uma profissional realista, cínica, perfeitamente lógica, e Friedfeld imaginou que estaria mentalmente explodindo. Junte-se ao grupo, ele pensou. Porque a cabeça dele certamente já era.
- Está vendo exatamente o que eu estou vendo - garantiu.
- Chame as tropas estaduais, o Exército e quem mais você se lembrar... Acho que estamos uns cinco quilômetros ao norte da entrada da Hoover. Repito: está vendo a mesma coisa que eu! Ela agora ruma diretamente para o norte. Estamos na cola! A menina voa, pode crer! Calculo que tenha onze ou doze anos de idade e parece uma colegial normal de Denver, Boulder ou Pueblo... só que com asas. E ela voa mesmol
Eddy concluiu:
- Juro pela alma de minha querida e falecida avó que isso está realmente acontecendo. É uma meninade belas asas brancas com tons azuis e prateados. Acredite em mim! Está nos levando para algum lugar e, francamente, eu a seguiria até o fim do mundo. Vamos ter uma grande manchete no telejornal. Isso é que é história! Uma menina que voa!
CAPÍTULO 118
No fundo pensante e sensível do seu coração, Max acreditava que estava prestes a cair, pegar fogo e morrer. Achava que tinha de morrerem breve. Terrível, mas era o destino que lhe coubera, o modo como o universo a queria. Sabia disso desde o dia de sua fuga. Matthew provavelmente também sabia.
Os zeladores não podiam deixá-la viver. Fora testemunha de tudo que tinham feito, dos terríveis assassinatos e outros crimes. Era Tinkerbell, a fedorenta. Só mais um espécime de laboratório. Claro, os fedorentos eram eles. Conhecia todos os seus segredinhos sujos.
Pelo menos vira como era o mundo real. Tinha algumas coisas feias, nojentas, mas era também incrivelmente bonito. Sim, esse mundo lá de fora estava bem além de sua capacidade de imaginá-lo na Escola! Um mundo cem vezes melhor que nos livros, na TV ou mesmo nos filmes.
Não valia nada. E valia cada detalhe. A mesma coisa, certo?
Aproxima-se cada vez mais da grande casa, o antro de Gillian. Havia muita gente lá embaixo, figurinhas pontudas correndo.
Baixando a cabeça, Max mergulhou na direção dos homens armados. Percebia que não tinha escolha. Era o seu destino.
Estavam tentavam balear Oz e Icarus, que voavam tão linda e bravamente. Os dois procuravam um lugar seguro. Que Deus os guiasse.
Guardas ameaçavam Frannie perto da casa principal, mas ela parecia estar conseguindo se defender. Naquele momento, chutava um pequeno traseiro. Kit fazia o mesmo.
Então alguém atirou em Kit, que foi atingido e caiu no chão. Max se lembrou de como era horrível ser atingida por uma bala. Chegou a sentir, a experimentar a dor de Kit. O ferimento era no pescoço e ele já não estava se mexendo, não estava dizendo mais nada. Max teve a sensação de ter sido novamente baleada e gritou lá do alto:
- Kit! Levante-se, Kit! Por favor se levante!
Investiu contra um dos atiradores. A sessenta quilômetros por hora-pelo menos isso. Atingiu-o com a força da varredura de uma das asas. Ele caiu e ela ficou contente. Não contente por ter machucado o homem, mas porque o impedira de ferir mais alguém. Ainda não podia conceber a idéia de machucar uma pessoa sem uma boa razão. Não estava em sua natureza. Max não era como ”eles”, os zeladores, ou talvez todo o gênero humano.
Teve súbita consciência de que havia outros helicópteros recém-chegados do leste, todos interessados nela. Mais ”gente boa”. Eram agora três, aproximando-se a grande velocidade da casa.
Os aparelhos roncavam, vibravam, chicoteando terrivelmente o ar, agitando as folhas, os galhos das árvores, o mato alto. A princípio, só houvera um, o helicóptero da TV, que logo no entanto fora localizado e seguido por outros. Os helicópteros com as turmas de ”gente boa” que ela atraíra vinham registrando tudo. Os nomes estavam brilhantemente gravados: KCNC-canal 4, KDVR-canal 31/Fox, KMGH-canal 7, KTVJ-canal 20.
Nesse momento, um helicóptero de ”gente ruim” começou a decolar atrás da casa. Não, eles não têm o direito de fugir, Max pensou. Esses vagabundos não têm o direito de fugir! Nenhum direito.
Inclinou o corpo, preparando um mergulho ainda mais íngreme, íngreme demais, talvez.
De repente, estava superacelerada, fazendo uns cem quilômetros por hora. Um exagero, sem dúvida um excesso de velocidade. Assustador. Era como se estivesse rodando de cabeça para baixo.
Mergulhava direto para o pára-brisa do helicóptero negro que ia subindo. Mão podia deixá-los fugir.
Não tinham o direito de voar.
Não podiam escapar:
Então viu um objeto que vinha do lado oposto, algo que saíra do meio dos pinheiros e também se atirava veloz contra o helicóptero. Que grande surpresa! Porque era a melhor coisa que já vira.
- Matthew! - ela gritou.
CAPÍTULO 119
Carole O’Neill e suas duas filhas, Meredith e Brigid, estavam acampando na margem de um largo riacho encachoeirado no parque da Gunnison Nacional Forest. Tinham ligado a televisão Sony que haviam trazido e aumentado ao máximo o volume, que mesmo assim ainda parecia baixo, talvez porque a tela fosse pequena demais.
- É Max! E a tia Frannie está ali! - Brigid gritava dentro da barraca, vendo a transmissão ao vivo. - Mãe, o que houve? O que está acontecendo? Acha isso possível?
- Ssss, ssss - soprou Carole entre o barulho da TV e da filha. - Quero escutar! Fiquem quietas, meninas.
Carole deu uma rapidíssima checada nas outras estações. Em cada canal, as mesmas imagens psicodélicas, realmente espantosas. Algo incrível estava se passando na casa de Gillian Puris. O que era? Carole não acreditava nos seus próprios olhos. O que, aliás, não era novidade. Já não vinha acreditando havia vinte e quatro horas.
Max executava um perigoso mergulho camicase na direção de um helicóptero. Ia chocar-se frontalmente com ele. Carole franziu a testa e prendeu a respiração.
O que estava acontecendo?
Frannie socava Gillian Puris. Como era possível? Por que sua irmã ia bater em Gillian?
Ô, meu Deus! Kit parecia ter sido baleado. Estava caído no chão. Não se mexia. Homens armados corriam de um lado para o outro.
Milhares e milhares de televisões na populosa área metropolitana de Denver estavam recebendo as mesmas imagens ao vivo, acompanhadas pela voz de um locutor. As notícias passavam de boca a boca e novos milhares de aparelhos iam sendo ligados. Famílias inteiras reuniam-se em volta de suas TVs. Gente que costumava dormir até tarde era puxada da cama para ver. As pessoas cercavam as televisões nos hotéis, nas lanchonetes onde tomavam o café da manhã, nos bares que abriam cedo, nas portas dos escritórios.
Em poucos minutos, as redes faziam o link com as notícias ao vivo geradas nas emissoras de Denver. Nervosos locutores comentavam a história num tom ora estridente ora baixo demais.
As espantosas, incríveis imagens da menina voando começaram a ser transmitidas para o exterior, chegando a cada continente, a cada país, a cada grande cidade, a cada lugarejo. Alguns atribuíam um caráter místico à imagem impressionante da menina voadora - ”Um anjo”, ”inspiradora de verdadeiro temor religioso”, ”sobrenatural”, ”a imagem mais notável de uma era”, ”milagre” - era assim que as pessoas tentavam descrever o que viam e sentiam. O primeiro contato visual de cada um era um choque indelével, que ninguém jamais esqueceria. Algo que tocava no fundo de cada homem, de cada mulher, de cada criança.
”O futuro acabou de chegar”, entoou o locutor de um telejornal britânico, ”e temos as imagens para provar isso.”
CAPÍTULO 120
Lá de baixo, vi tudo que acontecia. Kit estava caído e eu tentava lhe proporcionar conforto e socorro. O tiro acertara na base da clavícula e ele tinha muito sangue no pescoço. O sangue ia manchando acamisa. Kit, no entanto, insistiaem que o ferimento não era grave. Eu não acreditava. E tremia de medo.
- Max trouxe a ”gente boa” da TV - ele disse em voz baixa. - É uma menina muito esperta.
Era também um poema no ar. Sentia um grande orgulho de Max, embora estivesse extremamente preocupada e assustada. Sem dúvida, ela corria um grande risco ao voar assim tão perto das hélices de um helicóptero - isso para não mencionar as armas. Max parecia não ter medo.
O barulho era ensurdecedor e confuso. Pude divisar o brilho das inscrições com os prefixos das emissoras nos lados dos aparelhos.
Os telejornais estavam ali - ao vivo! Max tinha trazido a cavalaria, certo?
Os helicópteros das TVs filmavam os rostos espantados, culpados. Filmavam Gillian e os outros miseráveis, incluindo seu marido. Bem, talvez não conseguissem mesmo escapar impunes. Os segredos sujos estavam sendo expostos. Na TV. Pelo menos era o que eu esperava.
De repente, Max se inclinou bruscamente para a direita. Não era apenas corajosa, era também imprudente. Mergulhou na direção do Bell Jet Ranger, um helicóptero negro que levantava vôo nos fundos da casa principal. Procurava dificultar ou mesmo impedir a decolagem. Não queria deixá-los fugir.
Saindo do meio dos altos pinheiros, Matthew juntou-se a ela. Deus, que visão aquela! Irmão e irmã finalmente reunidos. Estavam querendo tirar sua pequena desforra, dar o troco pelo menos dentro do possível.
- Cuidado! - disse eu, levantando-me para gritar, agitando os braços. - Max, desça. Max, não!
Seria impossível ela me ouvir no meio de tantos roncos enchendo o céu. Sem nenhuma dúvida, se aproximara demais do aparelho que decolava. E fizera de propósito!
Estava perto demais. Era muito perigoso.
Pareceu colidir com o helicóptero em pleno ar, mas foi muito rápido. Nem tive certeza se atingira mesmo o aparelho e, em caso positivo, que mal isto lhe causara.
Eu contemplava a cena e ainda estava gritando quando ela começou a mergulhar na vertical. Ô Max... não caia. Por favor, não. Ô, por favor, Max!
O helicóptero, que se sacudira para se esquivar de Max, parecia agora sem controle e começava a rodopiar, caindo rapidamente de cerca de 150 metros. Sem a menor dúvida, estava numa situação crítica. Quando a velocidade das hélices diminuiu, ele começou a estremecer, a vibrar terrivelmente. Vi homens e mulheres em seu interior, olhando pelas janelas, assustados, quase em pânico.
Matthew pairava como folha sobre o aparelho que caía. Observando tudo de perto. Realmente perto demais, como se a coisa não passasse de uma brincadeira. Tive a impressão de que poderia ser sugado para o redemoinho da hélice.
Larguei Kit por um instante. Achei que ficaria bem; rezei para isso acontecer. Já estava correndo na direção de Max quando o chão tremeu, resultado de uma terrível, flamejante explosão.
Ao cair, o helicóptero se chocara com os galhos e as copas das árvores. O barulho ensurdecedor de metal contra metal perfurava o ar. O aparelho colidiu com o solo e explodiu em chamas que alcançaram as copas dos alamos ao redor. Uma fumaça preta como carvão veio rodopiando dos destroços. Naquele instante pavoroso, alucinante, certamente todos a bordo haviam morrido.
Eu era de novo uma testemunha. Não queria ser. Queria desesperadamente voltar à minha antiga vida.
Vi Max lutando para sair de um denso manto de fumaça preta. Tinha o rosto e as asas cobertos de cinza e fuligem. Ainda estava voando, mas parecia exausta. Tentava resistir à fadiga, cujo peso, no entanto, parecia puxá-la para baixo.
As outras crianças vinham saindo em círculos de seu refúgio na segurança dos bosques. Assobiavam chamando Icarus, que conseguiu emparelhar com elas. Quando se reuniram a Max, ela os guiou para o impressionante verde tecnicolor do gramado ao lado da casa.
Pouco depois de aterrissar com as crianças menores, Max começou a correr com Matthew pelo primoroso trecho de grama. A resistência dos dois era incrível e logo tornavam a decolar, disparando para o cintilante sol da manhã.
Percebi o que iam fazer; pelo menos achei que sim. Seguiam um seda Mercedes cinzento. O carro avançava em alta velocidade por uma estrada de terra, nos fundos da parte principal da casa. Eu já passara duas vezes por aquele arremedo de estrada.
Sabia quem se amontoava no interior do S600 cinzento. Eu os vira entrar: Gillian, o Dr. Peyser, o pequeno Michael, um motorista e Harding Thomas. Tirando Michael, era a própria família do inferno. Thomas tinha uma arma na mão. E estavam fugindo de novo.
Estacionado a alguns metros de onde eu me encontrava, havia um Land Rover cheio de poeira. Não fazia idéia de quem era o dono do veículo, mas naquele momento decidi que podia ser meu. Tomei o carro emprestado.
Fui atrás do seda que corria. Não pretendia ser uma heroína, não pretendia levar minha participação até aquele ponto. Só queria deter Max e Matthew. Não queria que morressem.
CAPÍTULO 121
Acho que tentava seguir o sábio conselho de Sophie Tucker, continue inspirando. O Rover fora construído para resistir à maioria dos profundos sulcos e calombos da estrada de terra. Quase cinqüenta metros à frente, pude ver o Mercedes correndo.
O S600 castigava severamente a suspensão. O motorista tentava ir mais rápido do que devia na estrada precária, esburacada.
Max e Matthew mergulhavam, acossavam muito de perto o carro. Eram como mosquitos furiosos e sem dúvida estavam incomodando, irritando o motorista.
Então Max fez uma investida decisiva, atingindo a longarina central do teto do Mercedes. Um golpe de ricochete que amassou um pouco a lataria. Ela e Matthew agiam freneticamente agiam como crianças.
- Max, não! - gritei pela janela, colocando o mais que podia a cabeça e os ombros de fora. O vento me chicoteava o rosto, fazendo-me apertar os olhos. Eu tentava, nessa posição arriscada, fazer o melhor possível ao volante do Land Rover.
Bati com força na buzina. Fiquei repetindo sem parar aquele som de alarme, de advertência.
Max não olhou para trás. Nem ela nem Mathew. Tinham de estar ouvindo. Tinham de ter percebido que eu estava lá. Acho que simplesmente não davam importância.
Pisei fundo no acelerador, pisei até o chão. Nos dois lados da estrada serpenteante e estreita, as árvores passavam como foguetes. Eu estava indo depressa demais, com o dobro da velocidade que se poderia considerar segura.
Max finalmente virou a cabeça e viu o Land Rover, onde eu me pendurava sem cerimônia na janela. Ainda não avaliara realmente até que ponto tinha me ligado a Max, mas naquele momento surgiam, brotavam, adensavam-se em meu coração todas as minhas sensações maternais. Seria insuportável se Max fosse ferida, se eu a perdesse, se perdesse Matthew ou qualquer uma das crianças!
Pude ver o que ia acontecer, mas Max não. Estava olhando para trás, concentrada em mim.
- A janela do carro, Max - gritei novamente a plenos pulmões. - Cuidado! Max, olhe para a frente!
Não podia me ouvir. Não podia ou não queria. Estava sorrindo, estava rindo do perigo ao redor.
A janela da frente do seda foi se abaixando e Harding Thomas pôs a cabeça para fora. Foi então que vi sua mão. A mão pusera um revólver do lado de fora da janela e ele começava a mirar em Max ou Mathew, ambos voando perto demais do carro.
Max finalmente viu Thomas e se arremessou com Mathew para o denso arvoredo de alamos e pinheiros na margem da estrada. A corajosa dupla chicoteou pelas árvores a uma tremenda e perigosa velocidade. Estavam rindo do tio Thomas, fazendo pouco caso, zombando dele.
Thomas fez um disparo, derrubando um enorme galho cheio de folhas. O S600 acelerou.
Eu também. Estava disposta a fazer qualquer coisa para detê-los, para proteger Max e Matthew. Já tinham sofrido demais nas mãos dos monstros que iam dentro daquele carro. Não era justo que Gillian, o Dr. Peyser ou Thomas tornassem a fugir, não era justo que conseguissem escapar impunes.
Estavam, porém, escapando. O Mercedes roncava descendo a encosta e logo estaria fora de vista.
CAPÍTULO 122
Engrenei a quarta e o Rover obedeceu dando mais uma arrancada. Os bosques continuavam passando a jato por mim, incrivelmente borrados, sugerindo um extremo perigo de ambos os lados da estrada. Não havia espaço para o menor erro.
Eu nunca dirigira sequer próximo daquela velocidade. Percebi que podia facilmente rodopiar e bater, morrendo numa fração de segundo. O pensamento me deixou aterrada, mas meu pé continuou fundo.
De repente, a precária e tortuosa estrada se inclinou de novo para o alto. Como trilha perigosa e traiçoeira de montanha-russa. Como um selvagem caminho de ratos. Achei, é claro, que acabaríamos sendo levados para baixo, em direção à cidade, mas não foi isso que aconteceu.
Max e Matthew tornaram a aparecer bem na minha frente. Max ia à direita; Matthew à, esquerda. Desta vez pareciam ter um plano.
Foram em ziguezague diretamente para trás do seda cinzento, ficando perto da mala. As luzes do freio não paravam de piscar. Os dois, sem dúvida, tinham de voar muito depressa.
Vi Thomas se virando para apontar novamente o revólver. Ele se inclinava cada vez mais na janela. Graças às escorregadias curvas da estrada, Max e Matthew conseguiam acompanhar o carro com relativa facilidade. O Mercedes derrapava e rabeava. Uma impressionante, eletrizante caçada!
As crianças começaram novamente a gritar com Thomas, caçoando dele, chamando-o de ”assassino” e ”babaca”. O eco de deboche das vozes chegava aos meus ouvidos.
Eu batia sem parar com a palma da mão na buzina, mas finalmente desisti. Era inútil. Max e Matthew não dariam ouvidos a mim nem a ninguém. Eu não suportaria ver o que ia acontecer.
Mas também não podia desviar os olhos.
CAPÍTULO 123
Max baixou a asa direita e se precipitou a toda velocidade na direção do carro. Não parecendo se importar com Thomas e sua arma, investiu como um torpedo contra o pára-brisas do Mercedes.
Tinha que ter visto os olhos apavorados do motorista. Talvez seu próprio reflexo rolando pelo vidro.
- Assassinos! Assassinos! - gritava a plenos pulmões. Mesmo bem atrás, eu conseguia ouvi-la claramente.
O seda cinzento iniciou uma severa derrapagem. Duas rodas se soltaram do chão, erguendo todo o lado direito. Nesse momento, parece que tudo de terrível e de mau aconteceu; e aconteceu depressa demais.
Max, que quase atingira o pára-brisas, deve ter bloqueado a visão do motorista, e tanto ela quanto o carro começaram a rodopiar desgovernados.
O seda tentava evitar uma colisão, mas continuou deslizando e girando até dar a pancada em Max.
Ela foi atirada na direção da mata como uma boneca de trapo.
Vi-a ser arremessada contra um carvalho, batendo com extrema força no tronco.
No momento terrível do impacto, tive certeza quase absoluta de que ela morrera. Meu corpo tremia.
Enfiando de novo a cabeça pela janela, Harding Thomas se virará para atirar e provavelmente nem pôde acreditar em seus olhos: Max estava batendo na árvore. O problema é que ele só viu a árvore baixa na margem da estrada quando já era tarde demais para afundar no interior do carro.
A cabeça de Thomas foi horrivelmente comprimida, depois achatada entre o metal da lataria e a inflexível madeira do tronco da árvore. Pude ouvir o barulho selvagem do esmagamento, o nítido estalar dos ossos. Vi o esgar aterrorizado sumir de sua boca e o sangue esguichar, jorrar para todo lado.
Carne e osso pulverizados! Testemunhava o exato instante da morte dolorosa daquele péssimo sujeito!
Quando dei a freada brusca, o Rover iniciou uma longa derrapagem, executando um giro completo de 360 graus.
O seda Mercedes, por sua vez, ficou inteiramente fora de controle, com o motorista incapaz de estabilizar. A cabeça e os ombros de Harding Thomas pendiam inertes da janela.
De repente, o carro bateu no tronco de um alto carvalho. Ricocheteou. Guinou para a direita. As rodas se ergueram e voltaram ao chão com um baque forte.
O potente carro foi amassando grandes e pequenos arbustos. Pouco depois, dava um tranco, começando a rolar por um declive íngreme. Lá embaixo, a ravina rochosa pareceu se erguer para encontrá-lo.
Vi o rosto de Gillian apertado contra a janela, a boca aberta num grito. Vi também o Dr. Anthony Peyser, encurralado lá dentro. Seus olhos estavam fixos, arregalados; achei que talvez já estivesse morto.
O Mercedes rolava. Capotando inúmeras vezes, ganhando velocidade. As laterais iam sendo amassadas para o centro. O teto afundou. O pára-brisa explodiu numa torrente de vidro.
Finalmente, setenta ou oitenta metros abaixo da estrada, o carro se chocou contra pedregulhos cobertos de musgo. Todos têm de estar mortos, pensei comigo mesma.
Obriguei-me a sair do Land Rover, embora me sentisse dentro de um túnel. Só havia caos em minha cabeça. Tinha as pernas bambas, mas fiz força para caminhar na direção de Max. Talvez já fosse tarde demais.
Ela formava uma trouxa contorcida na base da árvore onde batera. No peito, vi um enorme talho. Pelo menos uma asa parecia quebrada.
- Max! Max! - Matthew voava para junto dela com um grito muito alto, muito estridente. Na realidade, não exatamente um grito, mas um som doloroso, uma espécie de lamento de filhote de pássaro, não de menino.
-Max, ô, Max! - Percebi que eu também estava gritando.
CAPÍTULO 124
As quase duas horas que haviam passado pareciam minutos. Eu estava em choque, mas não fazia mal. Tinha de recorrer aos limites de minhas aptidões, talvez ultrapassá-los.
Tudo era um agitado e urgente movimento de maças no Hospital Comunitário de Boulder. Kit estava sendo operado duas salas na frente. Eu ficara com Max na sala de cirurgia maior. Ela estava consciente, gemendo baixo, mas, pelo menos, viva.
Sofrerá um forte golpe no peito e em ambas as asas. Havia profundos cortes, lacerações, ossos quebrados, possivelmente um pulmão afetado. Perdera muito sangue, o que, em seu caso, constituía um problema sério.
Sem precedentes. O tipo sangüíneo de Max não era humano nem avícola, mas alguma coisa entre os dois. Matthew, no entanto, servira como doador. E os gêmeos também (Peter e Wendy tinham doado o máximo que podiam).
Eu usava uma máscara azul-clara, um avental cirúrgico, e pela primeira vez entrava como médica numa sala de cirurgia convencional. Era a verdadeira e única autoridade em pássaros na área de Boulder. Os cirurgiões do hospital não tinham a menor idéia de como lidar com aves, mas eu já fizera muitas operações em pássaros feridos. Era eu a pessoa certa, e me sentia muito bem com isso. Queria cuidar pessoalmente de Max.
O pulso estava fraco. Não era um bom sinal. De fato nada bom. Olhando ao redor, vi olhos solenes e assustados me observando. Ninguém sabia o que fazer ali, nem como lidar com aquela situação. Também não sabiam que Max estava num estado extremamente crítico.
Engoli em seco e procurei assumir o comando.
- Vamos ao trabalho - disse à equipe de emergência convocada às pressas.
Escolhi o gás isofluorino como anestésico, pois era mais seguro para pássaros, mas não sabia como o sódio Pentothal afetaria Max. Felizmente, uma longa convivência com o isofluorino me permitiu calcular a dosagem certa. Um ou dois médicos mantiveram um ar de ceticismo, mas ninguém me questionou.
Seguindo minhas instruções, antes de aplicar a máscara, a equipe cirúrgica prendeu cuidadosamente as asas em volta do corpo de Max; se ela entrasse em pânico no limite da inconsciência e batesse as asas, podia causar danos irreparáveis.
O gás assobiou e Max lutou contra ele, como eu sabia que ia acontecer. Era, sem a menor dúvida, uma lutadora. Mas finalmente apagou. Havia lágrimas em meus olhos e uma instrumentadora limpou-as. Não era o momento, não era o lugar para emoções.
- Max, estou aqui - sussurrei. - Confie em mim. Estou aqui, querida.
Achei melhor dar uma explicação à enfermeira cirúrgica plantada à minha direita.
- É uma amiga. Tudo sob controle.
-Tenho certeza disso-ela murmurou.-Afinal, estou do seu lado.
Reprimi o melhor que pude minhas emoções, pois estava como médica na sala de operações de um hospital e tinha uma vida para salvar, uma vida humana, a vida de alguém que eu estimativa muito. Sabia, no entanto, que as chances de Max não eram boas.
O anestesista acenou. Estávamos prontos. Depois de me certificar de que Max estava inconsciente, soltei-a devagar. Examinei as lacerações nas asas e, pior, o ferimento profundo no peito. A visão do buraco escuro e palpitante era muito incômoda.
Não poderia entregar-me a sentimentalismos ou dispersões enquanto tirava as penas em volta da perigosa ferida do peito. Limpei a área, de onde extraí metal, madeira, cacos de vidro e mais penas. Torci para o pulmão não ter sido perfurado.
Usando o bisturi, comecei a raspar a área, livrando-a de pedaços de pele e tecido. Depois cortei.
Trabalhei primeiro no ferimento do peito. Tive medo de que o sangue escorresse para a cavidade pericárdica. Todos nós tivemos. Mas o pulmão não estava perfurado. Não estava arruinado. Fazendo o que podia, passei às outras áreas com problemas
- outros ferimentos sérios.
- Estou aqui, Max - murmurei. - Ainda estou aqui. Está me ouvindo? Sei que escuta melhor que a maioria de nós.
O tendão que se estendia do braço para o terceiro dedo da asa esquerda fora muito atingido, mas não seccionado. Usei a sutura de Bunnell-Mayer para os tendões e fechei a incisão que fizera no braço. Naquele momento, trabalhava guiada principalmente pelo instinto.
Ao meu lado, uma cirurgia pediatra cuidava de dois cortes de Max: um longo e profundo no rosto e outro sob a clavícula. Era boa cirurgia. Por longos intervalos de tempo, eu quase me esquecia de que ela estava ali.
Max lutava tão bravamente pela vida! Achei que ia vencer.
- Está indo muito bem, Max! Agüente firme. Você é grande, Máxima!
Senti uma enfermeira tirando o suor da minha testa. Era um serviço que sem dúvida me teria sido útil no Inn-Patient.
Ouvia fragmentos das conversas abafada dos médicos e enfermeiras ao meu redor, mas continuava concentrada na delicada cirurgia, não podia prestar atenção ao que diziam. Tinha de descobrir como se juntavam as partes numa paciente tão incomum. Uma operação daquele tipo não constava dos livros de anatomia usados na Universidade do Colorado, nem em Berkeley, Harvard ou Chicago. Pelo menos ainda não.
Usei uma sutura PDS e executei uma penorrafia completa. Optei rapidamente por um padrão simples, seccionado, uma comprida fileira de pequenos nós.
Fiquei atônita ao erguer os olhos para o relógio de aço inox que havia na parede. Três horas e meia tinham se passado num piscar de olhos. Percebi, no entanto, que meu corpo estava ensopado de suor.
A mão de alguém encostou no meu ombro e ouvi um dos médicos dizer em voz baixa:
- Fizemos o que foi possível.
CAPÍTULO 125
Não podíamos perder Max. Não depois de tudo por que passamos. Não depois de tudo por que ela havia passado.
Esperei até lhe aplicarem a amoxicilina com estimulantes salinos e pus em cada asa longas tiras de esparadrapo em forma de oito. Ajudariam a protegê-la se ela ficasse muito agitada ao acordar. Um pequeno e último detalhe. Bem, eu tinha feito tudo que podia. Só esperava que fosse o bastante.
Senti-me às lágrimas, mas não as deixaria cair. Não ali, não com as enfermeiras e médicos do hospital do meu lado. Larguei o traje cirúrgico no vestiário dos cirurgiões e tomei um banho rápido. Depois encontrei o caminho para os quartos da UTI.
Kit fora operado por outra equipe de cirurgiões, os melhores médicos disponíveis. Estava plugado a tantos equipamentos de monitoração que seria difícil dizer onde acabava o homem e onde começavam os tubos.
O boletim médico dava-lhe uma clavícula e duas costelas quebradas, um pulmão perfurado e pleurisia. Passava por uma transfusão de sangue, tomava antibióticos e seus sinais vitais eram monitorados. Ao contrário dos de Max, os sinais dele pareciam fortes.
Pus uma poltrona perto da cabeceira do leito, onde desabei. Ficaria um bom tempo ali sentada, como que hipnotizada, apenas observando Kit. Finalmente deixaria irromper o meu choro. As lágrimas marcariam os dois lados do meu rosto, lágrimas que, uma vez começadas, eu não conseguiria fazer parar.
Lembrei-me da primeira vez que o vira no Inn-Patient, quando minha clínica ainda existia. Lembrei-me do momento mágico no Villa Vittoria, quando ele cantou tão bem. E também me lembrei da ”nossa última noite sobre a terra”, nos porões de Gillian. Tanta coisa acontecera em tão curtíssimo tempo. Já tínhamos passado por tanta coisa juntos!
- Eu o amo, Kit, Tom, quem quer você seja-sussurrei. Amo demais!
Depois disso, devo ter cochilado. Não sei por quanto tempo. De repente, Kit me alisava carinhosamente o cabelo.
- Ô, Kit... - disse eu, vendo que ele estava consciente. Beijei-o com extrema suavidade no rosto e ele me lançou um sorriso luminoso.
- E Max, como está? - perguntou.
- O estado dela é extremamente crítico. Não sei o que vai acontecer. Não há precedente para a operação que fizemos.
Fiquei no quarto de Kit pelo que me pareceu um tempo imenso, de muitas horas; de qualquer modo, já não tinha uma casa para onde ir.
Mais tarde, subi de mansinho as escadas para saber de Max, que devia estar saindo do efeito da anestesia.
Rezei algumas preces enquanto passava do terceiro para o quinto andar. Concentrada, interroguei-me sobre Deus, sobre o modo como os recentes avanços em medicina e ciência se enquadravam no grande esquema - se houvesse é claro, um grande esquema ou algum esquema. Uma frase disparava na minha cabeça - todos são criaturas de Deus - e eu me perguntava o que isso agora significava.
Não deixe Max morrer, pedi mentalmente. É uma boa menininha e é especial. Por favor, não a deixe morrer. Está me ouvindo, Senhor?
Max ainda dormia quando entrei no quarto. Parecia tão vulnerável e inocente! Ver Max naquele estado era como contemplar uma estrela cadente.
Sentei-me a seu lado, dando início a uma vigília.
Não a deixe morrer.
Não deixe esta menininha morrer!
Eu ainda estava lá de manhã cedo, quando as pálpebras de Max finalmente se agitaram e se abriram. Ela me olhou e foi como se meu coração parasse de bater.
- Ei, Max. Como vai, meu bem?
- Olá - murmurou. - Que lugar é este?
- Um lugar seguro. Um hospital em Boulder. Estou com você.
- Ouvi sua voz falando comigo. Durante a operação, Frannie. - O tom era muito baixo e tive de prestar muita atenção para entender as palavras.
Beijei carinhosamente seu rosto, depois a testa, depois o outro lado do rosto.
Não deixe esta menininha morrer, continuei repetindo mentalmente. Eu tremia de medo.
Ela sorriu brevemente e sussurrou.
- Teve saudades de mim?
- Todos nós sentimos muito a sua falta. Por onde você andou, meu bem?
- Andei realmente fora de órbita.
Max novamente se calou e percebi que fazia força para respirar. Deixou que eu segurasse sua mão, mas ficou minutos sem dizer mais nada. Fiz carinho na testa suada, no cabelo. Beijei várias vezes o rostinho quente.
- É como voar... - ela finalmente sussurrou. - É bom esse seu carinho. Gosto assim, Frannie. E apertou levemente minha mão. Fechou os olhos. Dormia.
EPÍLOGO
ANJOS
CAPÍTULO 126
Às vezes, tarde da noite sento no antiquado balanço de corda que tenho no gramado da frente e fico ali, no escuro, dando impulso para subir cada vez mais alto, como se pudesse decolar e voar. Penso no que aconteceu, procurando extrair um sentido da coisa, e sei que muitas outras pessoas estão tentando fazer o mesmo.
Vou contar o que houve após o grande espetáculo na casa de Gillian.
Semanas após aquela confusão, eu e Kit fizemos o que achamos que devíamos fazer, o que sentíamos que era certo ou seja, desaparecemos levando as crianças conosco: Matthew, Oz, Ic, os gêmeos e Max.
Não vou dizer onde ficava nossa casa, mas sem a menor dúvida era um lugar seguro. Ainda que temporariamente, foi um bom lugar para se viver. O governo simplesmente não tinha idéia do que fazer com as crianças aladas, nem comigo e com Kit, que sabíamos de tanta coisa. Também não tínhamos idéia do que fazer com o governo. Em quem devíamos confiar? De quem devíamos ter medo?
Um grupo de cientistas sem consciência, ao lado de gente influente de Washington e figurões gananciosos, sem escrúpulos, de importantes companhias de biotecnologia, havia cometido crimes inimagináveis. Tinham matado pessoas, incluindo meu marido, David. Tinham feito experiências com seres humanos.
Diversos participantes deste grupo de cientistas fora-da-lei estão mortos. Por exemplo, Gillian, isto é, a Dra. Susan Paskhill. Assim como seu filho Michael, cuja expectativa de vida era de duzentos anos. Acabou perecendo com quatro anos de idade. O Dr. Anthony Peyser também morreu quando o carro se acidentou perto daquela casa no Colorado.
Sobram teorias paranóicas, mas o governo estava envolvido de alguma forma, embora ainda ninguém saiba exatamente como. Talvezjamais venhamos a saber. Havia soldados em Bear Bluff. Até hoje ninguém explicou por que estavam lá. Um punhado de agentes do FBI também se envolveu. Poderosas corporações se dispunham a oferecer enormes somas de dinheiro pelos primeiros frutos proibidos da revolução biotecnológica.
Eve sobreviveu. Está numa base militar secreta, na Carolina do Norte. Nenhuma palavra sobre a menina foi liberada ao público. Acho que talvez o público não tenha o direito de saber.
Numa matéria recente do New York Times, falava-se da prole das três jovens grávidas que encontramos na casa de Gillian. Segundo a reportagem, as crianças haviam nascido sem rostos. Sem dúvida, teriam sido intencionalmente projetadas assim pelo Dr. Peyser e sua equipe. As crianças experimentais iam sendo criadas ”por partes”.
Durante um bom tempo, fomos ficando no mato. Longe, bem longe do mundo civilizado. Talvez tenha sido como um programa de proteção a testemunhas, só que proporcionando uma vida muito boa às testemunhas - a todos nós, sem dúvida.
As crianças estavam adorando, assim como eu e Kit. O ar puro, os esparramados céus azuis, nosso favorito poço de rio, a beleza natural do lugar, a liberdade de sermos nós mesmos sem qualquer vigilância. A coisa era imbatível.
Então, é claro, alguém nos encontrou.
CAPÍTULO 127
Era uma bela, ensolarada, promissora tarde de sábado quando chegamos à base militar da Carolina do Norte. Era lá que as crianças ”experimentais” sobreviventes estavam sendo mantidas. A base ocupa uma área de 16a 18 hectares de bosques, perfeitos para manobras de treinamento do exército assim como para esconder as crianças da imprensa e da mídia em geral.
Chegamos às doze horas e éramos esperados na residência do general às duas da tarde. Na barreira militar, todos foram extremamente simpáticos: os policiais militares, o coronel (um tenente-coronel chamado James Duwyer), os próprios soldados.
As crianças tiveram permissão para comparecer ao encontro com roupas informais, o que elas adoram. Eu usava um suéter bege, de gola alta, e calça jeans, enquanto Kit vestia uma calça caqui e um paletó azul. Fomos ficando incrivelmente nervosos e apreensivos à medida que a hora tão solene se aproximava, e o mesmo devia estar acontecendo com as crianças. Seria o dia mais importante de suas vidas.
Às duas horas, paramos na frente de uma grande casa, estilo sede de fazenda, numa estrada ladeada por fileiras de árvores. Magnólias e pinheiros, assim como casarões de tijolo aparente, estendiam-se de ambos os lados da pista limpa e de visual agradável. A casa do general era a mais imponente, a mais elegante, a mais óbvia escolha para o que ia acontecer.
-Estamos no exército agora-Matthew grasnou, num tom meio cantante, quando saltamos do furgão verde-cáqui da base militar.
Acompanhado da esposa, o general Hefferon veio ao nosso encontro na estradinha de acesso à casa. Os Hefferon esboçavam sorrisos afetuosos, amistosos, mas vários policiais militares portavam rifles M-16, o que não me trazia boas lembranças.
- Provavelmente, aqui também é proibido voar - disse Max, virando-se para mim. - Este lugar não me cheira bem. E está começando a me deixar arrepiada.
- Vamos dar-lhes uma oportunidade - sussurrei. - Acho que vale a pena, Max!
- As pessoas já estão olhando de um modo esquisito disse ela.
- Mas porque você é muito bonita.
Nesse momento, a porta da frente da casa se escancarou e várias pessoas saíram em fila indiana para a varanda. Ficaram ali paradas, com artenso, constrangido, parecendo nervosas e assustadas. Passou-me pela cabeça que deviam estar reproduzindo nossa própria linguagem corporal.
- Vamos entrar, meninos - sugeriu a mulher do general. Cada criança recebeu seu nome escrito num crachá, que
devia ser preso no peito. Ajudei Peter, que estava meio ranzinza, e Kit deu assistência a Icarus, que parecia o mais nervoso.
- Vamos subir até a varanda - disse eu. - Sejam bonzinhos agora.
As crianças começaram a atravessar o belo gramado da frente. Caladas, de cabeça baixa. Era a primeira vez que iam encontrar os pais biológicos.
Ao nos aproximarmos, reparei que os homens e mulheres reunidos na varanda usavam crachás com seus nomes e formavam casais dentro do grupo maior. Mexendo os dedos sem parar, como se não soubessem o que fazer com as mãos, tentavam não encarar as crianças.
-Estes são mamãe e papai-sussurrei para Peter e Wendy, que vinham bem atrás de mim. Quase comecei a chorar, mas consegui, de alguma forma, segurar as lágrimas. Era como se alguma coisa estivesse à beira de se despedaçar dentro de mim.
- Este é Peter e esta é Wendy - disse.
- Somos Joe e Anne - disseram os pais, se apresentando. Os lábios da mulher tremiam e de repente os dois começaram a chorar. Joe, um homem corpulento, de ar generoso, curvou-se e estendeu os braços, engasgando-se nas próprias lágrimas.
Wendy me surpreendeu e correu direto para o pai. Então, Peter se mexeu atirando-se nos braços da mãe.
- Mamãe! - gritava ele.
Mais ou menos a mesma coisa acontecia com as outras crianças e suas respectivas mães e pais biológicos. Na viagem para a base militar, as crianças tinham tido atitudes de desconfiança, até mesmo de cinismo, mas isso agora também pertencia ao passado. O Exército e as pessoas de Washington haviam feito um bom trabalho organizando a reunião.
Quase todos na varanda tinham lágrimas nos olhos, incluindo o general Hefferson, a esposa e mesmo alguns policiais militares.
Max e Matthew estavam nos braços de um bonito casal com menos de quarenta anos. Eu sabia seus nomes, Art e Teresa Marshall, e também sabia que eram pessoas respeitáveis de Revere, Massachusetts.
Icarus era abraçado por uma mulher de ar delicado. Ajoelhada, mostrava um dos maiores, mais brilhantes sorrisos que eu já tinha visto.
Oz estava nos braços da mãe biológica, que murmurava palavras suaves em seu ouvido. Oz também arrulhava para ela.
Algo tinha finalmente dado certo para as crianças. Fiquei ali parada, abraçada a Kit, as lágrimas correndo pelos nossos rostos. Ainda que quase ofuscada pelo choro, não conseguia tirar os olhos dos guris, de suas mães e pais.
- Vamos voar para eles verem - dizia Peter com a inconfundível estridência na voz - Vamos lá, vamos mostrar a todos! Venha comigo, Wendy. Ande logo, sua lesma. Vamos voar o mais alto que a gente puder!
- Você não vai fazer isso, Peter! - Era Max chamando do outro lado da varanda.
A crepitação naquela voz deteve Peter no momento da largada. Mas, ao virar a cabeça, o menino sorriu.
- Vamos todos voar - dizia Max.- Vamos fazer isso juntos!
E foi o que fizeram.
As crianças atravessaram correndo o gramado da frente e levantaram vôo como um fantástico bando de aves. Assobiavam para que Icarus pudesse acompanhá-las. Ultrapassaram o telhado das casas, as magnólias ao redor, os imensos pinheiros que se erguiam ao sul.
Flutuavam facilmente nos céus limpos e tingidos de azul.
Era tão incrível estar ali, vendo algo que ninguém jamais vira na história de nosso mundo, algo que, certamente, aquelas mães e pais vivenciavam pela primeira vez.
Sim, as bonitas crianças voavam como pássaros.

 

 

                                                                  James Patterson

 

 

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