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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUANDO UM HOMEM AMA / Olivia Gates
QUANDO UM HOMEM AMA / Olivia Gates

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Rodrigo Valderrama estava ao lado de Cybele quando ela sofreu um acidente e necessitava de cuidados médicos. Após levá-la para sua mansão, onde ela poderia ter uma recuperação bem-assistida, Rodrigo jurou cuidar da jovem viúva grávida sem jamais revelar o profundo amor que sempre sentira por ela.

Pois, apesar de ser um médico brilhante, temia não estar preparado para impedir que Cybele partisse, caso ela descobrisse a verdade sobre sua gravidez...

 

 

 

 

Ela abriu os olhos para outro mundo.

Um mundo cinzento, embaçado e granulado, como um canal de TV sem transmissão.

Mas ela não se importou.

Aquele mundo tinha um anjo zelando por ela.

E não um anjo qualquer. Um arcanjo... Isso se arcanjos fossem a personificação de beleza e poder, talhados em pedra e bronze e masculinidade pura.

A imagem dele flutuava na selva de luz e sombra, fa­zendo-a imaginar se aquilo era um sonho. Ou uma alucinação. Ou pior, provavelmente pior. Apesar da presença do anjo.

Ou por causa disso. Anjos não tomam conta de pessoas que não estão com algum problema sério, tomam?

Seria uma pena descobrir que ele era o anjo da morte. Por que fazê-lo tão perfeito se ele era apenas um extrator da força da vida? Ele era altamente qualificado. Tal exces­so era dispensável, se você perguntasse a ela. Ou talvez a extrema beleza dele fosse designada a tornar seus alvos desejosos de irem para onde ele os conduzia.

Ela estaria mais do que disposta. Se pudesse mover-se.

Não podia. A gravidade a oprimia, esmagando suas costas em algo que, de repente, parecia ser uma cama de espinhos. Todas as células de seu corpo começaram a contorcer-se, todas as terminações nervosas com impul­sos explosivos. Mas as células não tinham conexão uma com a outra, e as terminações nervosas eram incapazes de fazer um movimento involuntário, deixando-a aflita. O barulho aumentou em seus ouvidos, deixando-a nau­seada...

O rosto dele chegou mais perto, vertiginoso, eliminan­do o som desagradável e sufocando-o.

Seu tumulto diminuiu. Ela não precisava lutar contra a força da gravidade, não precisava temer a paralisia.

Ele estava ali. E tomaria conta de tudo.

Ela não tinha idéia como sabia disso.

Conhecia-o.

Não que tivesse alguma idéia de quem ele era.

Mas tudo em seu interior dizia-lhe que estava segura, que tudo ficaria bem. Porque ele estava lá.

Agora, se pelo menos ela pudesse ter alguma parte de seu corpo funcionando...

Não deveria sentir-se tão inerte ao acordar. Mas estaria acordando? Ou estava sonhando? Aquilo explicaria a se­paração entre cérebro e corpo. Explicaria a presença dele.

Ele era demais para ser real.

Mas ela sabia que ele era real. Sabia que não possuía imaginação suficiente para tê-lo inventado.

Sabia algo mais também. Aquele homem era impor­tante. No geral. E, para ela, ele era mais que importante. Vital.

— Cybele?

Seria a voz dele? Aquela carícia profunda e enigmática?

— Você pode me ouvir?

Oh, sim, podia ouvi-lo. A voz profunda espalhou-se por toda sua pele, os poros encharcavam-se, como se estivessem famintos por nutrição. A voz a permeava com sua riqueza, sua inflexão, despertando um nervo inerte, recomeçando um processo vital, fazendo-a re­viver.

— Cybele, se você pode me ouvir, se está acordada desta vez, por favor, responda.

Por favor? Em espanhol? Então era daí que vinha o sotaque... A música sensual da língua latina. Ela queria responder-lhe. Queria que ele continuasse falando. Cada sílaba saindo dos lábios maravilhosos naquela voz que a inebriava, que a acalmava de volta ao esquecimento, des­sa vez um esquecimento bem-aventurado.

O rosto dele preenchia seu campo de visão. Ela podia ver cada fragmento da cor dourada entre esmeralda, mus­go e caramelo, que redemoinhavam num tom luminoso que ela estava certa de nunca ter visto, exceto nos olhos dele.

Quis entrelaçar os dedos na exuberância do cabelo ne­gro, acariciar a cabeça leonina, trazê-lo para mais perto, de modo que pudesse observar atentamente todo aquele resplendor. Queria traçar todos os planos e linhas do rosto bonito, queria tocar cada radiação de caráter.

Aquele era um rosto mapeado com ansiedade, respon­sabilidade e distinção. Ela queria absorver a ansiedade, aliviar a responsabilidade e maravilhar-se com a distin­ção.

Queria aqueles lábios contra os seus, dominando, a língua sensual criando magia em sua boca.

Sabia que não deveria estar sentindo nada como aqui­lo agora, que seu corpo não estava condizente com seus desejos. O corpo tinha ciência disso, mas não reconhecia sua incapacidade. Somente precisava dele, mais perto... Toda aquela masculinidade, magnitude e poder, toda aque­la ternura e proteção.

Ela desejava aquele homem. Sempre o desejara.

— Cybele, por Dios, diga alguma coisa.

Foi o desespero na voz dele que a tirou de seu estado hipnótico, forçando suas cordas vocais a funcionarem, impulsionando o ar para fora de seus pulmões, de modo a produzir o som que ele demandava tão ansiosamente.

— E... Eu posso ouvi-lo...

Aquilo surgiu quase como um ruído sem som. Pelo modo que ele inclinava o ouvido em direção à sua boca, estava claro que não tinha certeza se ela produzira o som ou se ele imaginara aquilo, se tinham sido palavras ou apenas um gemido.

Ela tentou novamente:

— Estou... Acordada... Eu acho... E... Es... Espero que você seja real...

Ela não pode dizer mais nada. Sua garganta estava em fogo, em total agonia. Tentou tossir o que pareceu lascas de aço fundido antes que queimassem sua laringe. Seus olhos arenosos estavam lacrimejando, aliviando a secura que queimava.

— Cybele!

E ele estava inteiro à sua volta. Ergueu-a, envolvendo-a num calor que penetrava seus ossos gelados e trêmulos. Cybele mergulhou na força dele, rendeu-se em alívio enquanto ele acariciava sua cabeça.

— Não tente falar mais. Você foi entubada por longas horas durante a cirurgia, e sua laringe deve estar ferida.

Alguma coisa fria tocou-lhe os lábios, seguido por algo quente e de fragrância picante. Não os lábios ou a língua dele. Um copo e um líquido. Instintivamente, ela entreabriu os lábios e o conteúdo fluiu gentilmente, preenchen­do sua boca.

Quando ela não engoliu, ele angulou sua cabeça com mais firmeza.

— É uma mistura de anis e sálvia. Isso aliviará sua garganta.

Ele antecipara o desconforto dela, estivera pronto com um remédio. Mas por que estava explicando? Ela engoli­ria qualquer coisa que ele lhe desse. Isso se fosse capaz de fazê-lo sem sentir como se unhas estivessem sendo enfia­das na sua garganta.

Ela apertou os olhos contra a dor e engoliu. O líqui­do deslizou através da garganta arranhada, amargo fei­to fel, trazendo mais lágrimas aos seus olhos. Aquilo durou somente segundos. A dor sucumbiu sob o gosto balsâmico.

Ela gemeu de alívio, sentindo-se revigorada com cada roçar dos dedos dele em seu rosto enquanto terminava o resto do conteúdo do copo.

— Melhor agora?

A solicitude na voz dele, nos seus olhos, tocou-a, fa­zendo-a estremecer sob o impacto de sua própria gratidão, sua necessidade de esconder-se dentro dele, dissolver-se em seus cuidados. Tentou responder, mas dessa vez era a emoção que obstruía sua garganta.

Mas tinha de expressar sua gratidão.

O rosto dele estava tão perto, fechado de preocupação, mas magnífico na proximidade, apesar dos olhos verme­lhos causados pela preocupação, do maxilar "rígido como ferro, do cabelo desgrenhado e da barba por fazer.

Ela virou o rosto e enterrou seus lábios na face escul­pida. O início da barba, a textura da pele, o sabor e a es­sência dele... Tudo despertou seus sentidos, preenchendo-a com uma onda de desejo.

Ela abriu os lábios para mais, ao mesmo tempo em que ele virou-se para olhá-la. Isso fez com que os lábios de ambos se tocassem. Então ela soube.

Era disso que precisava. Dessa intimidade. Com ele.

Algo que sempre possuíra e do que sentira falta? Algo que tivera antes, e depois perdera? Algo que nunca possuíra e há muito desejava?

Não importava. Ela possuía agora.

Cybele deslizou seus lábios contra os dele, e uma inun­dação de sensualidade e delicadeza a envolveu.

Então seus lábios ficaram gélidos e desamparados, e a proteção masculina poderosa desapareceu.

Ela tombou sob algo que agora notava ser uma cama.

Para onde ele teria ido? Teria tudo sido uma alucinação? Efeitos colaterais pós-coma?

Seus olhos encheram-se de lágrimas com a perda. Per­turbada, ela virou sua cabeça, procurando-o, temendo que só encontrasse o vazio.

Todavia, registrou seus arredores pela primeira vez, a suíte hospitalar mais luxuosa e espaçosa que já vira. Mas, se ele não estivesse lá...

Seu olhar vagando e pensamentos agitados chegaram a um fim abrupto.

Ele estava lá. Parado, onde estivera quando ela abrira os olhos pela primeira vez.

Mas, dessa vez, sua imagem estava distorcida, transformando-o de anjo em um deus furioso e inatingível, que a olhava com desaprovação.

Ela piscou algumas vezes, seu coração oscilando entre um ritmo lento, e batidas frenéticas.

Não adiantou. O rosto dele permaneceu rígido em frie­za. Em vez do anjo que ela pensou que faria qualquer coisa para protegê-la, esse era o rosto de um homem que daria um passo ao lado enquanto lhe assistia se afogar.

Ela o fitou, tomando consciência de uma emoção muito familiar. Tristeza.

Tinha sido uma ilusão. Seja lá o que pensara ter visto no rosto dele, ou o que sentira inundando-a em ondas, fora sua desorientação criando o que queria ver, sentir.

— É evidente que você consegue mexer a cabeça. Con­segue mexer todo o resto? Sente alguma dor? Pisque se for muito desconfortável para falar. Uma vez para sim, duas para não.

Novamente lágrimas inundaram seus olhos. Ela pis­cou, sem jeito. Ouviu-o gemer baixinho. Ele devia es­tar frustrado por sua inabilidade de seguir tão simples comandos.

Mas ela não podia evitar. Agora reconhecia as pergun­tas pelo que elas realmente eram: procedimento padrão a qualquer um com a consciência comprometida, e agora sabia que esse era o estado de sua consciência. Determi­nados o nível de consciência, as funções sensoriais e mo­toras e o nível de dor, não havia mais nenhuma preocu­pação pessoal por trás das perguntas, apenas o desapego clínico.

Ela mal podia respirar, sentindo falta da ternura e pre­ocupação dele com seu bem-estar. Mesmo que as tivesse imaginado.                                                          

— Cybele! Mantenha seus olhos abertos, fique comigo.

A urgência na voz dele fez com que ela lutasse para lhe obedecer.

— Eu não c... Consigo...

Ele pareceu aumentar o rosto esculpido marcado com ferocidade e frustração.

— Então só responda minhas perguntas e eu a deixarei descansar.

— Si... Sinto-me dormente, mas... — Cybele concen­trou-se, mandando sinais para seus dedos dos pés. Eles moveram-se. Isso significava que tudo entre eles e seu cérebro estava funcionando.

— Aparentemente... As funções motoras estão... Intac­tas. Dor... Não tenho certeza. Sinto-me dolorida... Como se estivesse sido prensada debaixo de... De uma parede de tijolo. Ma... Mas na... Não é dor indicando dano...

Assim que pronunciou a última palavra, todas as do­res pareceram penetrar em cada centímetro de seu corpo, concentrando-se num só lugar. Seu braço esquerdo.

Cybele deu um grito agoniado:

— M... Meu braço...

Ela poderia jurar que ele não se mexeu. Mas achou-o ao seu lado outra vez, como se por magia, e um fresco alívio acalmou suas dores.

Choramingou. Ao notar uma sonda intravenosa em seu braço direito, compreendeu o quê ele havia feito... Injetado um medicamento, analgésico narcótico pela ação instantânea, no soro fisiológico, impulsionando o goteja ao máximo.

— Você ainda sente dor?

Ela balançou a cabeça. Ele suspirou.

— Por ora, é o suficiente. Voltarei mais tarde...

Ele começou a ir embora.

— Não. — Inconscientemente, Cybele estendeu sua mão boa, alimentada pelo receio de que ele desapare­cesse e ela nunca mais o visse. Isso surgiu de modo instintivo, profundo, o desespero de que podia perdê-lo. Ou seria a resignação de que ele já estava perdido para ela?

Sua mão se apertou em volta da dele, como se um con­tato mais forte pudesse permiti-la ler-lhe os pensamentos, relembrando-a de quem era aquele homem.

Ele desviou o olhar do seu rosto, voltando-o para a mão que apertava a sua.

— Seus reflexos, força motora e coordenação parecem estar de volta ao normal. Bons sinais de que está se recu­perando melhor do que as minhas expectativas.

Pela forma como ele disse isso, ela supôs que suas ex­pectativas variaram de pessimistas a desanimadoras.

— Isso... Deveria ser... Um, alivio.

— Deveria ser? Você não está grata por estar bem?

— Estou. Eu acho. Parece... Que não... Estou muito consciente ainda. O que aconteceu... Comigo?

A mão por baixo da sua se moveu.

— Você não se recorda?

— Está tudo apagado.

O olhar dele tornou-se apagado por um longo momento antes de focar-se em Cybele e penetrá-la como um raios-X, que lhe permitiria examiná-la cuidadosamente, decifran­do sua condição.

— Você provavelmente está sofrendo de amnésia pós-traumática. É comum esquecer-se do episódio traumático.

Tudo que ele falava e fazia indicava que era médico.

Aquilo seria tudo que ele era para ela? Seu médico? Era por isso que a conhecia?

Teria sido seu médico antes do "episódio traumático" e ela se interessara por ele? Ou só lera as estatísticas vitais em seus prontuários? Teria ela se tornado dependente e fascinada por ele enquanto transitava entre consciência e inconsciência durante o tratamento? Teria beijado um homem que estava ali ape­nas exercendo o seu trabalho? Um homem que poderia estar num relacionamento, talvez casado e com filhos?

A dor de suas suposições se tornou insuportável. Pre­cisava saber.

— Qu... Quem é você?

A mão sob a sua se imobilizou. Ele enrijeceu, como se sua pergunta tivesse um efeito paralisante.

Quando ele finalmente falou, sua voz havia descido uma oitava abaixo, com uma fúria grave e contida.

— Você não sabe quem eu sou?

— Eu de... Deveria? — Ela fechou os olhos assim que as palavras saíram. Acabara de beijá-lo e estava dizendo-lhe que não o conhecia.

— Eu sei que eu deveria... Ma... Mas eu não consigo me lembrar.

Outro momento prolongado. Então ele murmurou:

— Você me esqueceu?

Ela balançou a cabeça, como se o movimento fosse im­plantar alguma compreensão dentro de sua mente.

— Bem... Talvez eu tenha esquecido... Como falar também. Eu tive essa... Crença de que as habilidades lingüísticas... São as últimas a irem embora... M... Mesmo em total... Perda de memória. Eu pensei que dizer que eu não me lembro de você seria o mesmo que dizer... Eu esqueci quem v... Você é.

Ele a estudou por um momento infinito, até que suspi­rou e passou os dedos pelo cabelo reluzente.

— Sou eu que estou achando difícil articular. Suas habi­lidades lingüísticas estão em perfeitas condições. Na ver­dade, eu nunca a ouvi falar tanto numa única respiração.

— M... Muitas respirações... Interrompidas... Você quer dizer.

Ele assentiu, notando a dificuldade dela, então balan­çou a cabeça.

— Uma palavra para uma frase curta por vez era sua norma.

— Então você... De fato me conhece. Extensivamente, pelo que parece.

As pontas das espessas sobrancelhas uniram-se.

— Eu não diria que meu conhecimento sobre você é extensivo.

— Eu diria... En... Enciclopédico.

Outro silêncio interminável. Então ele gemeu nova­mente.

— Parece que o seu déficit de memória é a única coisa extensiva aqui, Cybele.

Ela sabia que deveria estar alarmada com esse veredicto. Mas não estava. Suspirou:

— Eu adoro... A forma... Como você... Fala meu nome. E se ela pensara que ele havia congelado antes, não era nada comparado com a imobilidade que o envolveu ago­ra. Era como se o tempo e o espaço tivessem apertado um botão de pausa e o prendesse em seus campos, de modo a deixá-lo sem reação.

Então, num movimento controlado, como se tivesse medo de que ela fosse feita de bolhas de sabão e explodis­se se o ar fosse agitado ao seu redor, ele sentou-se ao seu lado na imaculada cama branca.

Seu peso afundou o colchão, rolando-a levemente em sua direção. As coxas de ambos se tocaram através da calça jeans e dos lençóis da cama. Uma sensação nova se originou de um lugar profundo dentro dela, espalhan­do-se pelo seu corpo para se armazenar em sua região pubiana.

Ela mal estava funcionando, e ele podia lhe arrancar esse tipo de reação? O que ele faria se ela estivesse em ex­celentes condições? O que tinha feito? Porque ela estava certa de que essa reação por ele não era novidade.

— Você realmente não se recorda de quem eu sou.

— Você realmente... Está achando difícil... Entender minhas palavras, não está? — Ela sorriu. Sabia que não havia humor naquela situação e que, quando tudo se acal­masse, ficaria desesperada pela perda de memória e por outros possíveis danos neurológicos.

Mas, no momento, achava tão cativante que esse ho­mem, do qual ela não precisava de memória para saber que era muito forte, estava tão abalado ao descobrir sua perda de memória.

Isso também significava que ele se importava com o que havia lhe acontecido, certo?

Ela podia apreciar essa crença agora, mesmo que depois fosse provado ser uma ilusão.

Suspirou novamente.

— Eu pensei que estivesse claro... O que eu quis dizer. Pelo menos parece... Claro para mim. Mas o que eu sabe­ria? Quando eu chamei seu... Conhecimento sobre mim de... Enciclopédico, eu deveria ter acrescentado... Compa­rado com o meu. Eu não... Esqueci apenas quem você é, eu não tenho idéia de... Quem eu sou.

 

Rodrigo ajustou o fluxo de soro, olhando para qualquer lugar, menos para Cybele.

Cybele, seu fruto proibido. Sua última tentação.

A mulher cuja existência vinha sendo como ácido cor­rosivo em suas artérias. A mulher que ele teria dado tudo para acordar um dia e esquecer.

E era ela quem o esquecera.

Fazia dois dias desde que ela derrubara essa bomba so­bre ele.

Rodrigo ainda estava em choque.

Ela não se lembrava da causa da amargura dele. Esque­cera a identidade que estava por trás da destruição de uma vida. E de seu próprio envenenamento.

E ele não deveria se importar. Não deveria ter se im­portado. Não além do cuidado que oferecia a seus outros pacientes. Não deveria ter negligenciado todos e tudo para permanecer ao lado de Cybele, para fazer tudo por ela, quando podia ter delegado seus cuidados aos profis­sionais altamente qualificados que escolhera e treinara, aqueles aos quais pagava muito mais do que dinheiro para continuar fazendo o trabalho exemplar que faziam.

Todavia, durante os intermináveis três dias após a ci­rurgia até ela acordar, toda vez que dissera a si mesmo para cuidar de suas outras atividades, não conseguia. Ela estava em perigo, e Rodrigo não podia deixá-la.

Sua forma inerte, seus olhos fechados o tinham guiado. O desejo de vê-la movimentando-se, abrindo os olhos e fitando-o o motivara.

Periodicamente, Cybele abrira os olhos, mas não hou­vera visão ou compreensão alguma neles, nenhum traço da mulher que ocupava seus pensamentos desde que ele a vira pela primeira vez.

Contudo, ele rezara, se ela nunca voltasse, para que continuasse abrindo os olhos, mesmo que fosse um movi­mento mecânico, sem nenhuma consciência por trás disso.

Dois dias atrás, ela abrira aqueles olhos, e o vazio fora preenchido pelas névoas de confusão. O coração de Rodrigo quase se rompera ao ver coerência no olhar de Cybele.

Então ela o fitara, e ele deveria ter sabido que ela esta­va sofrendo algo que ele não considerara. Ver o desprezo de Cybele substituído por afeto, que se transformara em calor, deveria ter lhe dado a primeira dica. Tê-la acariciando-o como um felino ao achar o dono, seguido daque­le beijo que o abalara, deveria ter firmado o diagnóstico.

A Cybele Wilkinson que ele conhecia... Sua inimiga... Jamais o teria olhado ou tocado daquela forma se estives­se em sã consciência, se soubesse quem era ele.

Mas era ainda pior. Ela não se lembrava de si própria.

Havia algo ainda muito pior. A tentação de não preen­cher os espaços vazios da memória de Cybele, de deixar sua mente em branco. Um branco que poderia ser inscrito com qualquer coisa que não significasse que eles deve­riam permanecer inimigos.

Mas eles tinham de permanecer. Agora mais do que nunca.

— Reparei que você ainda não está falando comigo.

A voz dela, não mais áspera, mas sim suave e rica, for­çou-o a olhá-la contra sua vontade.

— Eu falei com você todas, ás vezes em que estive aqui.

— Sim, duas frases a cada duas horas pelos últimos dois dias. — Ela parecia divertida. — Parece ser parte de seu regime de medicação. Apesar da escassez realmente contrastar com a intensidade das suas visitas periódicas.

Ele poderia ter delegado tais visitas para enfermeiras sob supervisão de seus residentes. Mas não havia permiti­do que ninguém se aproximasse dela.

Desviou seu olhar, simulando estudar seu prontuário.

— Estou dando-lhe tempo para descansar, para que sua garganta cicatrize e para que você processe a descoberta de sua amnésia.

Ela inquietou-se, induzindo-o a olhá-la.

— Minha garganta está ótima desde ontem. É um mi­lagre o que comidas, bebidas suaves e falar sozinha podem fazer. E eu não pensei sobre a minha amnésia. Reconheço que deveria estar alarmada, mas não estou. Talvez seja um efeito colateral do trauma, que voltará ao normal confor­me eu for melhorando. Ou talvez eu esteja subconscientemente aliviada de não me lembrar.

A voz de Rodrigo soou estranha conforme ele forçou uma resposta, tentando negar à brutal tentação, a culpa, a fúria, com ela, e consigo próprio, com o universo.

— Por que você não gostaria de lembrar-se?

Cybele sorriu.

— Se eu soubesse, não seria um desejo subconsciente, seria? Eu ainda estou sendo coerente somente para mim mesma?

Rodrigo a fitou.

— Não está sendo fácil processar o fato de você ter perdido a memória.

— É, sem memória, minha imaginação está tendo dias cheios de estranhas explicações para o fato de eu não ter pressa em recuperá-la. Pelo menos elas me parecem estra­nhas. Talvez se revelem verdadeiras.

— E o que seriam essas teorias?

— De que eu seria uma notória criminosa ou uma es­piã, alguém com um passado sombrio e perigoso, neces­sitando desesperadamente de uma segunda chance, de um, recomeço. E, agora que me foi concedido, eu preferia não me lembrar do passado, de minha identidade.

Ela lutou para se sentar, gemendo por causa das dores que, ele sabia, o corpo dela havia acumulado. Ele tentou se contiver fracassando.

Apressou-se em ajudá-la, tentando não sentir o calor da pele suave sob suas mãos enquanto a erguia, ajustando sua cama numa curva sutil. Lutou para ignorar a gratidão e a confiança nos olhos de Cybele. Praguejou silenciosa­mente, enquanto o toque e a essência dela o derretiam por dentro e faziam sua masculinidade enrijecer. Ele cerrou os dentes e verificou se a sonda intravenosa e os aparelhos que monitoravam seus sinais vitais estavam seguros.

As mãos de Cybele acompanharam as suas, enquan­to ele verificava a sonda e os equipamentos, um ato inconsciente nascido do conhecimento e prática. Rodrigo se afastou como se tivesse sido queimado.

Ela o fitou, aqueles olhos azuis revelando confusão e mágoa pela sua retirada.

Rodrigo deu mais um passo atrás antes de sucumbir à necessidade de apagar aquela expres­são triste.

Ela abaixou o olhar.

— Então, você é médico. Um cirurgião?

Ele estava, pela primeira vez, grato pela pergunta.

— Neurocirurgião.

Ela suspendeu o olhar novamente.

— E, pelos termos médicos surgindo em minha mente, o conhecimento do que são esses equipamentos aqui e o que os valores que eles indicam significam, eu seria mé­dica também?

— Você era uma residente sênior em cirurgia de traumatologia reconstrutora.

— Humm, isso elimina minhas teorias criminosas ou espiãs. Mas talvez eu estivesse com outro tipo de proble­ma antes de vir parar aqui. Uma acusação destrutiva por negligência médica? Um erro catastrófico que tirou a vida de alguém? Eu estava prestes a ter minha licença médica anulada?

— Eu nunca suspeitei de que você tivesse uma imagi­nação tão fértil.

— Só estou tentando entender por que estou quase ali­viada de não recordar nada. Talvez eu estivesse fugindo para começar novamente em um lugar onde ninguém me conhecesse? Vim aqui e... Onde é aqui?

— Este é meu centro médico particular. Localizado nos arredores de Barcelona.

— Estamos na Espanha? — Os olhos de Cybele se ar­regalaram. O coração de Rodrigo reagiu. Mesmo com as pálpebras ainda inchadas e o rosto pálido e ferido, ela era a pessoa mais linda que ele havia visto.

— Tudo bem. Cancele esta pergunta. Até onde meu co­nhecimento geral vai, e sinto que permanece inalterado, não há Barcelona em outro lugar.

— Não que eu saiba.

— Então... Meu sotaque é americano.

— Você é americana.

— E você é espanhol?

— Talvez para o mundo, que considera toda a Espanha como uma comunidade, e, todos de lá, espanhóis. Mas eu sou catalão. E, embora na Catalunha nós tenhamos o mesmo rei e uma constituição que declara "a insolúvel unidade da nação espanhola", fomos os primeiros a ser reconhecidos como uma Nacionalidad e uma Comunidad Autônoma, ou uma nacionalidade histórica distinta e uma comunidade autônoma, junto com o País Basco e a Galícia. Hoje em dia, existem 17 comunidades como essas que formam a Espanha, com nossos direitos a um governo próprio reconhecido pela constituição.

— Fascinante. Um tipo de federação, como os Estados Unidos.

— Há semelhanças, mas é um sistema diferente. Os governos regionais são responsáveis, pela educação, saú­de, serviços sociais, cultura, desenvolvimento urbano e rural e, em alguns lugares, policiamento. Mas, ao contrário dos Estados Unidos, a Espanha é um país descentrali­zado, com os gastos do governo central estimado abaixo de vinte por cento. — E ele não sabia por que estava lhe falando tudo isso, principalmente agora.

Cybele mordeu o lábio inferior, que voltara à colora­ção rosada da pétala de uma rosa. Os lábios de Rodrigo formigaram com a lembrança daqueles lábios doces e quentes.

— Eu sabia sobre isso, mas não tão claramente como você acabou de colocar.

Ele suspirou.

— Desculpe-me pela aula. Minha fascinação com as diferenças entre os dois sistemas origina-se de minha du­pla cidadania.

— Então você adquiriu a cidadania americana?

— Na verdade, eu nasci nos Estados Unidos e adquiri minha cidadania espanhola depois de me graduar em Me­dicina. Uma história longa.

— Mas você tem sotaque.

Ele piscou surpreso com as implicações das palavras de Cybele, algo de que nunca havia suspeitado.

— Eu passei meus primeiros oito anos em uma comu­nidade nos Estados Unidos que falava exclusivamente es­panhol e aprendi inglês a partir de então. Mas pensei que tivesse perdido o sotaque completamente.

— Não, você não perdeu. E espero que nunca perca. É deslumbrante.

Aquilo o tocou profundamente. Isso era algo que nunca considerara. O quê ela lhe causaria se, em vez de hostili­dade, demonstrasse admiração e incentivo? Se, em vez de arrepiar-se ao vê-lo, olhasse-o como se não quisesse nada mais do que deliciar-se com sua visão? Como estava fazendo agora.

O que estava acontecendo ali? Como a perda da memó­ria teria mudado tanto a personalidade de Cybele? Aquilo significaria mais danos neurológicos do que ele temera?

Ou essa era a verdadeira Cybele, que reagiria dessa ma­neira com ele se não fosse pelos eventos que tinham ba­gunçado toda a situação deles?

— Então... Qual é o seu nome? Qual é o meu também, além de Cybele?

— Seu nome é Cybele Wilkinson. O meu é Rodrigo.

— Só Rodrigo?

Ela costumava chamá-lo de doutor Valderrama, e, em situações que requeriam informalidade, evitaria chamá-lo de qualquer coisa. Mas agora deitou a cabeça no travesseiro e deixou o nome dele derreter em sua língua como se fosse o mais rico chocolate. E uma louca excitação o percorreu.

Aquilo era inacreditável. Que ela pudesse fazer isso com ele agora. Era pior que inacreditável. Era inaceitável.

— Rodrigo Edmundo Arrellano i Bazán i Valderrama de Urquiza.

Os olhos de Cybele se arregalaram. Então, um risinho beirando a indignação escapou de sua garganta.

— Eu, de fato, perguntei.

Rodrigo sorriu.

— Na realidade, esse é um resumo do meu nome. Eu posso lhe dizer mais de quarenta sobrenomes.

Ela riu de verdade dessa vez.

— É uma árvore genealógica voltando à inquisição da Espanha.

— A Catalunha e a Espanha, em geral, levam muito a sério as árvores genealógicas, porque ambos os ancestrais, maternos e paternos, são mencionados. Cada nome produz uma lista. O catalão também adiciona i ou e entre sobrenomes.

— E eu tenho outro sobrenome além do patético Wilkinson?

— Tudo que sei é que o nome de seu pai era Cedric.

— Era? E... Ele morreu?

— Desde que você tinha seis ou sete anos, acredito.

Cybele pareceu ter dificuldade de engolir novamente.

Após um momento, sussurrou:

— Eu tenho mãe? Família?

— Sua mãe casou-se novamente, e você tem quatro meio-irmãos. Três irmãos e uma irmã. Eles todos vivem em Nova York.

— E... Eles sabem o que aconteceu comigo?

— Eu lhes avisei ontem. — Rodrigo nem sequer pensa­ra em fazer isso, até que a chefe das enfermeiras enfatizou a necessidade de alertar os parentes próximos. Pela sétima vez. Ele nem registrara as primeiras seis vezes em que ela havia mencionado.

Ele aguardou a próxima pergunta lógica. Se eles esta­riam a caminho para assumir responsabilidade sobre ela.

Mesmo com tudo que tinha contra ela, Rodrigo de­testaria ter de responder aquela pergunta. Pois teria de dizer-lhe que a reação de sua família tinha sido totalmente despreocupada. Ele terminara a ligação com a mãe de Cy­bele dizendo:

— Não se preocupe em explicar sua situação para mim, Sra. Doherty. Tenho certeza de que será mais útil no jantar de negócios de seu marido do que ao lado Cybele.

Mas a próxima pergunta dela não seguiu uma progres­são lógica.

— Então... O que aconteceu comigo?

E essa era uma pergunta que ele queria intensamente evitar. Uma vez que não podia, respirou fundo.

— Você sofreu um acidente de avião.

Ela arfou.

— Eu sabia que estive num acidente, que não havia sido atacada ou algo assim, mas pensei que tivesse sido um aci­dente de carro. Mas... De avião? — Ela pareceu lutar para levar ar aos pulmões. — Houve muitos feridos, ou... Pior?

Dios. Ela realmente não se recordava de nada. E era ele quem tinha de lhe contar.

Tudo.

— Era um avião pequeno. De quatro lugares. Havia apenas... Duas pessoas a bordo dessa vez.

— Eu e o piloto? Eu não me recordo de nada, mas sei que não posso pilotar um avião, pequeno ou não.

Isso estava ficando cada vez pior. Ele não queria res­pondê-la. Não queria reviver os três dias que antecederam o dia em que ela acordara que tinha escavado suas cica­trizes em sua psique e alma.

Poderia fingir ter uma cirurgia e escapar do interroga­tório.

Não podia escapar. Tinha de responder.

— Ele estava pilotando o avião sim.

— Ele... Está bem?

Rodrigo cerrou os dentes contra a dor que detonava em seu peito.

— Ele morreu.

— Meu Deus... — As lágrimas de Cybele recomeça­ram, e Rodrigo não pôde mais se conter. Fechou a distância que colocara entre eles e segurou-lhe a mão com as suas, a fim de deter-lhe o tremor.

— E... Ele morreu no impacto?

Rodrigo debateu se deveria dizer que sim. Podia ver culpa de sobrevivente espalhando-se nos olhos azuis. Qual seria o propósito de contar-lhe a verdade, exceto aumentar o sofrimento de Cybele?

Mas sempre contava a verdade para seus pacientes.

— Ele morreu na mesa de operação, após uma cirurgia de seis horas.

Durante àquelas horas, Rodrigo lutara contra a morte, mesmo sabendo que esta venceria. Mas o que devastara sua sanidade era saber que, enquanto lutava sua batalha perdida, Cybele estivera deitada na saía de emergência, sendo atendida por outros.

A culpa o havia consumido. A triagem teria ditado que ele a atendesse primeiro, que tinha mais chance de sobre­viver. Mas não poderia deixar Mel partir sem antes lutar. Tinha sido uma escolha impossível. Emocional, profis­sional e moralmente. Ele enlouquecera pensando que ela morreria ou sofreria danos irreversíveis porque ele fizera a escolha errada.

Então perdera a luta pela vida de Mel enquanto seus colegas proclamavam que fora um milagre ele ter mantido Mel vivo por horas, quando todos haviam desistido dele na cena do acidente.

Rodrigo correra para ela, sabendo que, enquanto per­dia tempo em futilidades com Mel, a condição de Cybele piorara. Medo de perdê-la também o mantivera acessando o que todos louvavam como seu vasto conhecimento mé­dico e competência cirúrgica.

— Conte-me, por favor. Os detalhes dos ferimentos dele.

Ele não queria contar-lhe quão terrível tudo havia sido. Mas precisava. Respirou fundo; então, contou-lhe. As lágrimas de Cybele fluíam sobre um rosto entorpe­cido com horror no decorrer de sua assustadora descrição. Ela finalmente sussurrou:

— Como o acidente aconteceu?

Ele precisava que aquela conversa terminasse. Cerrou os dentes.

— Isso é algo que só você poderá saber com certeza. E provavelmente será a última lembrança a regressar. O lo­cal do acidente e o avião foram analisados para possíveis motivos. O avião não mostrou nenhum sinal de mau fun­cionamento, e não houve nenhuma interrupção na trans­missão antecedendo a queda.

— Então o piloto simplesmente perdeu o controle?

— Aparentemente, sim.

Ela digeriu aquelas informações por um momento.

— E quanto aos meus ferimentos?

— Você estava inconsciente no local do acidente. Teve um ferimento no couro cabeludo com grave sangramento e lesões por todo o corpo. Mas o ferimento mais grave foi fratura cominativa de sua ulna e rádio esquerdo.

Ela estremeceu ao olhar seu braço quebrado.

— Qual foi meu índice na Escala de Coma de Glasgow?

— Onze. Melhor resposta visual foi três, com seus olhos abrindo-se somente em reação a comandos verbais. Melhor reação verbal foi quatro, com suas falas variando de palavras aleatórias a respostas confusas. Melhor reação motora foi quatro, respondendo à dor com reflexos flexionados. Quando eu a operei, seu índice havia caído para cinco.

— Nossa. Eu estava caminhando para um coma cortical. Tive hemorragia intracraniana?

Ele assentiu com dificuldade.

— Deve ter sido um vazamento lento. Sua tomografia e ressonância magnética iniciais não revelaram nada além de um leve edema cerebral, atribuído à decadência de sua consciência. Mas, durante a outra operação, eu fui informado de que sua condição neurológica estava dete­riorando, e novos testes apontaram um hematoma subdural estável e acumulativo.

— Você não raspou meu cabelo para evacuação.

— Não houve necessidade. Operei por meio de uma técnica minimamente invasiva que eu desenvolvi.

Ela o olhou.

— Você desenvolveu uma nova técnica cirúrgica? Per­doe minha mente que, despedaçada como está, processa essa informação maravilhada.

Ele acenou uma mão, dispensando o elogio. Ela o olha­va com tanta admiração, o que pareceu aumentar ainda mais o desconforto de Rodrigo. Mas então Cybele arqueou uma linda sobrancelha escura.

— Acredito não ter sido a cobaia para tal técnica.

Cybele olhou Rodrigo com um sorriso no rosto. Os lábios dele se contraíram.

— Você está bem, não está?

— Se você considera tomar consciência da história da minha vida através de você como estando bem...

As sobrancelhas de Rodrigo uniram-se. Não era irrita­ção ou afronta. Era angústia.

Até mesmo dor.

— Perdoe-me, foi uma piada tão tola — disse ela. — Eu lhe devo minha vida.

— Você não me deve nada. Eu estava exercendo meu trabalho. E nem mesmo com sucesso. Sou responsável pela situação em que se encontra. Minha falha foi não tratá-la antes, o que fez com que seu céreb...

— Os piores ferimentos do piloto foram neurológicos — ela o interrompeu. Doía fisicamente vê-lo remoendo-se de culpa.

— Sim, mas isso não teve nada a ver com a minha decisão...

— E eu aposto que você é o melhor neurocirurgião no continente.

— Não estou certo quanto a isso, mas ser o melhor ci­rurgião qualificado disponível não signif...

— Significou que você deveria cuidar dele. E minha condição inicial o levou a acreditar que meu caso não era urgente. Você fez a escolha certa. Lutou por esse homem, como merecido. E, então, lutou por mim. E salvou-me. E tenho certeza de que minhas condições são temporárias.

— Não há garantias quanto a isso. Perda de memória, com retenção de todas as capacidades lógicas, lingüísticas e de conhecimento, e sem problema algum em registrar lembranças recentes, é uma forma muito atípica de am­nésia. Há chances de nunca recuperar-se completamente.

— Em sua opinião, isso seria uma coisa ruim? Se a idéia de recuperar minha memória é quase... Perturbadora, talvez minha vida estivesse tão ruim que eu preferiria não me recordar?

Ele ficou sem prumo e então se recompôs.

— Não estou em posição de saber a resposta à sua pergunta. Mas estou em posição de saber que perda de memória é um déficit neurológico, e é minha responsa­bilidade recuperá-la. Eu não poderia, em circunstância alguma, desejar que você não se recuperasse. Agora, se me der licença, preciso cuidar de meus outros pacientes. Retornarei a cada três horas para verificar como está.

Assentindo brevemente, Rodrigo virou-se e a deixou, saindo da suíte luxuosa com passos largos e tensos.

Ela queria correr atrás dele, implorar a ele para que re­tornasse.

O que poderia explicar todo esse tumulto e a enorme atração que sentia por ele?

Teriam sido amantes, até mes­mo casados, e então divorciados?

Cybele de repente cambaleou, como se houvesse sido atingida por um machado, conforme uma lembrança pe­netrou sua memória. Um esclarecimento.

Ela era casada.

E certamente não com Rodrigo.

 

Rodrigo retornou em três horas. E permaneceu por três minutos. Tempo suficiente para verificar como ela estava e ajustar seus medicamentos. Então repetiu esse padrão nos outros três dias. Cybele até mesmo o sentiu visitando-a durante seu sono intermitente.

Ela não teve a chance de lhe contar o que havia lem­brado. Não queria contar-lhe.

Não queria dividir com ele a descoberta de que era uma mulher casada, mesmo que não soubesse com quem.

E ele provavelmente já sabia.

Ela poderia ter lhe dito que também se lembrara de quem era. Mas não se recordava de muito além do básico que Rodrigo lhe contara.

O fato de sua memória estar regressando tão cedo era um bom sinal.

Mas Cybele não queria que regressasse, queria agarrar-se ao vazio com toda sua força.

Mas era inútil. Há pouco, um nome revelara-se em sua mente. Mel Braddock.

Tinha certeza de que esse era o nome de seu marido. Mas não conseguia associar um rosto ao nome. A única lembrança que podia atribuir ao tal nome era uma profis­são.

Cirurgião Geral.

Além disso, não recordava nada do casamento. Só sa­bia que algo obscuro a pressionava toda vez que esse fato sussurrava com sua mente.

Não poderia sentir-se dessa maneira se o relaciona­mento estivesse caminhando bem.

E, se ele não estava lá, dias após o acidente sério da esposa, eles estariam sepa­rados, até mesmo se divorciando? Cybele tinha certeza de que ainda estava casada. Ao menos, tecnicamente. Mas o casamento havia acabado. Isso explicaria suas emoções por Rodrigo, e sua intuição lhe dizia que podia se sentir assim em relação a ele.

Passadas três horas, Rodrigo retornou. E ela optou por não mencionar nada daquilo no lugar de gritar.

Ele não fez nenhum contato visual ao entrar, acompa­nhado de dois médicos e uma enfermeira. Nunca mais aparecia desacompanhado. Era como se não quisesse mais ficar a sós com ela.

Verificou seu prontuário, informando seus acompa­nhantes de qualquer ajuste nos medicamentos como se ela não estivesse no quarto e como se não fosse uma médica que compreendia tudo que eles estavam dizendo. Frustra­ção a envolveu, levando-a a dizer:

— Eu me lembrei de algumas coisas.

Rodrigo ficou paralisado. Às outras pessoas no quarto inquietaram-se, olharam-na com desconforto, então olha­ram incertas para o chefe. Ainda sem encará-la, ele pen­durou o prontuário ao pé da cama, murmurou algo claramente intencionado somente aos ouvidos dos outros, que saíram apressados. Somente depois que o último médico fechou a porta, Rodrigo voltou os olhos na sua direção.

Ela estremeceu com a força daquele olhar.

Ah, por favor. Permita-me ter direito de me sentir as­sim com relação a ele.

Ele parecia tenso. Estaria ansioso para saber o que ela lembrara? Estaria preocupado?

Porque suspeitava o que seria: o marido do qual Cybele lembrava-se somente do nome? Ele lhe falara sobre seu pai falecido, sobre sua fa­mília, mas não sobre aquele marido. Teria lhe contado se ela não se recordasse?

Mas havia algo mais em sua vibração. Algo que ela sentira antes. Depois de beijá-lo.

Desaprovação? Anti­patia? Estariam eles brigados antes do acidente? Como seria possível, se Cybele sentia tamanha atração por ele, ilesa de qualquer negatividade? Teria esse rompimento sido culpa sua? Rodrigo seria uma pessoa amarga? Es­taria tomando conta dela agora para honrar sua escolha, sua carreira, oferecendo-lhe cuidado especial em consi­deração aos velhos tempos, enquanto ainda era incapaz de retomar a intimidade?

Teriam sido íntimos? Seria ele um amante?

Não. Não era.

Ela poderia não se lembrar muito de si mesma, mas a idéia de estar num relacionamento, independentemente de quão doentio, e procurar envolvimento com outro ho­mem lhe era abominável. E, também, havia ele, que irra­diava nobreza, dignidade.

Cybele simplesmente sabia que Rodrigo Valderrama jamais olharia para a mulher de outro, nunca cruzaria a linha da honra, por mais que a desejasse.

Mas havia uma prova suprema que dizia que eles nunca haviam sido íntimos. Seu corpo. Queimava por ele, mas sabia que nunca o tivera. Caso contrário, apresentaria as marcas dele em cada célula.

Então, o que tudo isso significava? Ele precisava lhe contar, antes que algo além das lembranças entrasse em curto dentro de seu cérebro.

Rodrigo finalmente falou:

— O que você lembrou?

— Quem eu sou. Que sou casada. — Ele não esboçou nenhuma reação. Então sabia. — Por que você não me contou?

— Você não perguntou.

— Eu perguntei sobre família.

— Pensei que estivesse se referindo à família de san­gue.

— Você está sendo evasivo.

— Estou? — Ele a encarou, parecendo ler a sua alma. Talvez tentando embaralhar seus pensamentos também. — Então você se lembra de tudo?

Cybele respirou fundo.

— Eu falei que me lembrei de "algumas coisas".

— Você disse ter se lembrado de quem era e de seu casamento. Isso é tudo, não é?

— Não quando eu me lembrei somente do básico sobre mim, o nome que você me falou, que estudei Medicina na Harvard Medical School, que trabalhei no hospital St. Giles e que tenho 29 anos. Sei muito menos que o básico sobre meu casamento. Eu somente lembrei que tenho um marido, seu nome e profissão.

— Só isso?

— O resto é especulação.

— Que tipo de especulação?

— Sobre a ausência de ambos, minha família e marido, mais de uma semana após eu ter sofrido um sério aciden­te. Eu consigo achar somente explicações desfavoráveis.

— Quais seriam essas explicações?

— Que eu sou um monstro de gigantescas proporções, que fez com que ninguém sentisse vontade de estar ao meu lado no hospital. — Os olhos de Rodrigo se tomaram gelados. Então ela estava certa? Ele também achava? Seu coração se contraiu enquanto ela esperava a confirma­ção ou negação de suas suspeitas. Quando ele não o fez, Cybele teve de considerar seu silêncio como uma confir­mação, condenação. Ainda tentou achar uma explicação para ela, para sua família. — A menos que eles não te­nham condições financeiras de viajar até aqui.

— Até onde sei finanças não são um problema para sua família.

— Então você contou para eles que eu estava à beira da morte e ninguém se incomodou em vir?

— Eu não disse isso. Você não esteve à beira da morte.

— Eu poderia ter morrido.

Silêncio. Tenso. Oprimido. Então ele simplesmente disse:

— Sim.

— Então estou brigada com eles?

Rodrigo deu de ombros.

— Eu não sei sobre a briga. Mas, pelo que sei você não é próxima deles.

— Nem mesmo de minha mãe?

— Especialmente de sua mãe.

— Ótimo. Viu? Eu estava certa quando achei melhor não me recordar de nada.

— Não é tão ruim quanto está imaginando. Quando eu liguei para sua família, você estava estável, e realmente não havia nada que ninguém pudesse fazer, exceto espe­rar, como o resto de nós. Sua mãe ligou duas vezes para saber de seu estado, e eu lhe disse que estava indo mui­to bem. Fisicamente. Psicologicamente, sugeri que nessa fase não seria bom para você sobrecarregar-se mais do que já está, com a presença deles ou com o contato.

Ele estava criando justificativas para sua família. Se eles se importassem, não se satisfariam com garantias a distância. Ou talvez ele os tivesse desencorajado a ir até lá, para evitar a introdução de mais um elemento emocio­nal em sua recuperação neurológica?

A verdade era que, agora, ela não se importava como estava sua situação com sua família. O que se sentia de­sesperada para saber era sobre a situação com seu marido.

—Então a situação com minha família não são tão ruins assim. Mas, pela óbvia ausência de meu marido, eu só posso deduzir o pior. Que talvez estejamos separados ou nos divorciando.

Ela queria que ele dissesse: sim, vocês estão.

Os músculos do maxilar de Rodrigo se enrijeceram. Quando ele finalmente falou, pareceu como um vento ár­tico atingindo-a, gelando-a por dentro com aquela antipa­tia que continuava surgindo do nada.

— Muito pelo contrário, você e seu marido estavam planejando uma segunda lua de mel.

Cybele duvidou de que o avião colidindo com o solo hou­vesse tido um impacto maior que a revelação de Rodrigo.

Sua mente ficou vazia. Seu coração disparou.

Por um bom tempo, ela apenas o olhou, tendo perdido suas habilidades de fala e raciocínio e contando somente com instintos, que gritavam: corra, esconda-se, negue.

Ela tivera tanta certeza... Tanta... Certeza...

— Uma segunda lua de mel? Isso significa que... Esta­mos casados há bastante tempo?

Ele aguardou o que parecia uma eternidade antes de responder. Quando o fez, Cybele sentiu-se dez anos mais velha.

— Vocês se casaram há seis meses.

— Seis meses? E já planejando uma segunda lua de mel?

— Talvez eu devesse ter dito apenas lua de mel. Cir­cunstâncias os impediram de ter uma lua de mel quando se casaram.

— Entretanto, meu adorado marido não está aqui. Nos­sos planos talvez fossem salvar um casamento que não estava caminhando bem, impossível de ser consertado, e a gente não deveria ter se dado ao trabalho...

Ela parou, mortificada. Instintivamente sabia que não era de se vingar dessa forma.

Suas palavras eram ácidas o suficiente para corroer o chão de mármore.

E, pela expressão facial fechada, Rodrigo certamente as desaprovava. Ele a desaprovava.

— Eu não sei muito sobre seu relacionamento. Mas a razão de seu marido não estar aqui ao seu lado é incontes­tável. Ele morreu.

Cybele tremeu, então murmurou:

— Ele estava pilotando o avião.

— Você lembra?  

— Não. Oh, Deus. — Uma onda de náusea a assolou. Ela se inclinou para a lateral da cama. De alguma forma, Rodrigo estava ao seu lado, segurando sua cabeça e uma bandeja.

Ela regurgitou um vazio, tremendo inteira. E não era por um golpe de sofrimento.

Era de horror, pela raiva e alívio, que foram suas reações instintivas. Que tipo de monstro seria em se sentir dessa forma sobre a morte de alguém, ainda mais de seu próprio marido? Mesmo que não quisesse mais o relacionamento. Seria por causa do sentimento por Rodrigo? Teria desejado a morte de seu marido para ficar com ele?

Não. Não. Sabia que não tinha sido assim. Deveria ser outra coisa. Talvez seu marido a estivesse maltratando? Ela seria o tipo de mulher que sofreria humilhação e da­nos, com medo de se manifestar ou fugir?

Consultou sua natureza, que transcendia sua memória, que não poderia ser esquecida ou perdida, que era congê­nita e imutável.

E a resposta foi um ressonante "não". Se aquele ho­mem a tivesse maltratado, emocional ou fisicamente, Cybele o teria processado na justiça até suas próximas reencarnações.

Então, o que aquela confusão significava?

— Você está bem?

Ela estremeceu.

— Se estar furiosa quando eu deveria estar triste for normal... Deve haver mais coisas erradas comigo do que eu imaginava.

Após a óbvia surpresa por aquelas palavras, Rodrigo murmurou:

— Raiva é uma reação normal nessas situações.

— O quê?

— É comum para aqueles que perderam um ente que­rido sentir raiva de quem morreu e os abandonou. É pior quando alguém morre num acidente no qual a outra pessoa estava envolvida ou o causou. A primeira reação depois do choque é raiva, e normalmente direcionada á vitima. Isso também explica seu ataque de aspereza anteriormen­te. Seu subconsciente deveria saber que era ele que estava pilotando o avião. Deve ter registrado tudo aquilo que a rodeava no local do acidente.

— Está dizendo que eu falo espanhol?

Ele franziu a testa.

— Não que eu saiba. Mas talvez você tenha entendido a terminologia médica o bastante para compreender a ex­tensão dos ferimentos...

— Yalo sé hablar espanol.

Ela não sabia qual dos dois estava mais surpreso. As palavras em espanhol haviam fluído de sua mente para sua língua involuntariamente. E ela sabia o que sig­nificavam: eu sei falar espanhol.

— Eu... Não fazia idéia de que você falava espanhol.

— Eu também não, obviamente. Mas tenho a sensação de que o conhecimento é parcial... Fresco.

— Fresco? Como?

— É como se eu tivesse começado a aprender recen­temente.

Rodrigo a estudou de maneira tão intensa que a tempe­ratura de Cybele subiu.

Estaria pensando no mesmo que ela? Que ela começara a estudar espanhol por causa dele? Para entender sua língua materna, entendê-lo melhor, se aproximar mais?

Finalmente, ele falou:

— Qualquer que seja o caso, você conhece espanhol o suficiente para validar minha teoria.

Ele estava justificando suas reações como normais. Imagine o que ele diria se, pudesse ler seus pensamentos? Provavelmente a acharia um monstro. E Cybele não o culparia. Estava começando a achar que realmente era.

No segundo seguinte, não estava mais achando, sabia.

A memória que penetrara seu cérebro como uma bala era visual. Uma imagem que penetrava sua essência. A imagem de Mel, o marido de quem se recordava com rai­va, cuja morte somente lhe despertava uma mistura de ressentimento e libertação.

Numa cadeira de rodas.

Outros fatos desabaram como um dominó de pilastras se colidindo, demolindo tudo sob seu impacto. Não eram memórias, apenas consciência.

Mel ficara paralisado da cintura para baixo, num aci­dente de carro. Durante o relacionamento deles. Ela não sabia se antes ou depois que se casaram. Mas isso parecia não importar.

Então por isso ninguém a visitara. Ela não tinha co­ração.

O que mais explicaria tamanha crueldade com alguém que sofria muito? O homem a quem prometera amar e res­peitar na saúde e na doença. O mesmo que a fazia sentir que fora libertada quando a morte os separara?

No próximo instante, o ar foi sugado de seus pulmões com um golpe maior.

— Cybele? Te duele?

Seus ouvidos detectaram a preocupação na voz de Rodrigo, e sua visão conturbada viu a ansiedade no rosto bonito.

Não. Ela não estava bem.

Ela era um monstro. Tinha amnésia.

E estava grávida.

 

Após minutos torturantes de ânsia de vômito, Cybele es­tava deitada, cercada por Rodrigo, alternando entre episó­dios de apatia e calafrios.

Ele a acalmou, limpando suas pálpebras e lábios, com agradável frescor, seu toque suave e persistente quase hip­nótico.

— Você se recordou de algo mais?

— Algumas coisas — murmurou ela, lutando para se sentar. A tentação de deitar nos braços dele era enorme.

Ele a ajudou a sentar-se, então cessou qualquer contato, sem dúvida não querendo continuar aquilo um segundo mais que o necessário.

Precisando criar mais distância entre eles, ela balançou sua perna dormente para o chão, calçando os chinelos, que eram uma entre as dezenas de coisas que ele providencia­ra para seu conforto, coisas que pareciam ter sido feitas sob medida para seu tamanho, necessidades e desejos.

Ela cambaleou para a janela com a sonda atada ao bra­ço, olhando para os mais fascinantes vales verdejantes que já vira. Todavia, não viu nada além do rosto de Rodrigo, e também lacunas, mas nauseantes imagens de Mel em sua cadeira de rodas, magro e pálido, seus olhos acusadores.

Cybele cambaleou, quase caiu. Olhou ao redor e viu o corpo de Rodrigo pronto para entrar em ação. Ele estava do outro lado do quarto, mas a apararia se ela caísse.

Ela não cairia. A pele de Cybele pulsava onde ele toca­ra. Seus toques não lhe eram suficientes, mas não poderia permiti-lo tocá-la novamente. Ela levantou as mãos, sinalizando que não se movesse, e se estabilizou. Ele ainda se ergueu, mas manteve distância, o sol da tarde batendo em seus olhos, espalhando um tom dourado pelo vidro de parede a parede.

Cybele envolveu seu braço esquerdo sensível.

—As lembranças que acabei de ter... Eu não as chamaria de memórias. Pelo menos não quando eu as comparo com as lembranças que estive acumulando desde que re­cobrei a consciência. Eu me lembro delas em colorido, cena por cena, acompanhadas de sons, essências, sensações. Mas as coisas que acabei de me lembrar vieram sem cor, sem som e sem formato, como rascunhos de dados e in­formações. Como um título sem artigo. Se é que isso faz algum sentido.

Rodrigo baixou o olhar e voltou a levantar os olhos, o cirurgião que existia nele fazendo uma avaliação:

— Faz total sentido. Eu lidei com muitos casos de am­nésia pós-traumática, estudei inúmeros registros, e nin­guém descreveu as memórias que regressavam com tão poucas palavras e com tanta eficácia como você acabou de fazer. Mas ainda é cedo. Esses rascunhos de lembran­ças finalmente se concretizarão...

— Eu não quero que se concretizem. Eu quero que pa­rem de surgir. Eu quero que o que voltou desapareça. — Ela encolheu os ombros, induzindo mais dor, para comba­ter o aperto no peito. — Eles continuarão explodindo em minha mente até que se despedacem.

— De que se lembrou agora?

Cybele estremeceu.

— Que Mel era paraplégico.

Ele não se moveu. Apenas olhou-a fixamente. Era o mais profundo e austero reconhecimento. E ela continuou:

— E estou grávida.

Rodrigo piscou lentamente, o movimento indicando que ele sabia. E não era um conhecimento feliz. Por quê?

Uma explicação seria que ela estaria deixando Mel, mas ele ficara paraplégico e ela descobrira a gravidez, ar­ruinando seus planos. Seria essa a origem da antipatia que sentira radiando dele de tempos em tempos? Estaria bravo com ela por tê-lo dado esperança, então lhe dito que não poderia deixar seu marido, agora que ele estava debilitado e ela esperava um filho de Mel?

Não saberia, a menos que ele lhe contasse. E Rodrigo não parecia querer lhe dar nenhuma informação.

Ela respirou fundo.

— Pelo formato de minha barriga, estou no primeiro trimestre.

— Sim. — Então, como se contra sua vontade, Rodrigo adicionou: — Você está grávida de três semanas.

— Três semanas...! Como você sabe disso? Mesmo que tivesse realizado um teste de gravidez junto com os outros exames antes da minha cirurgia, não poderia saber o exato estágio da minha gravidez com tamanha preci­são... — Cybele parou quando uma percepção lhe ocor­reu. — Estou grávida por fertilização in vitro. É assim que você sabe de quanto tempo.

— Na verdade, você fez inseminação artificial. Vinte dias atrás.

— Não me diga que você sabe a hora exata que fiz também?

— Foi realizada às 13h.

Ela o olhou, sem achar nenhuma explicação para esse conhecimento tão específico. E todo o cenário de sua gra­videz.

Então ela planejara a gravidez. Evidentemente, quisera ter um filho com Mel. Tanto que fizera um bebê através de um procedimento, quando ele não podia mais fazer um da forma normal. Da forma íntima.

Portanto, o casamento deles era saudável. Até então o que dava credibilidade à afirmação de Rodrigo de que eles estariam planejando uma segunda lua de mel. Talvez para celebrar a gravidez.

Como era possível que sua primeira reação ao saber da morte de Mel tinha sido de alívio e de desânimo em relação à gravidez?

Que tipo de mente distorcida teria?

Havia somente uma forma de saber. Rodrigo. Ele con­tinuava preenchendo o vazio do que parecia ter sido uma vida enigmática. Mas o fazia com tanta relutância, provavelmente pensando que entregando as lembranças de uma pessoa tornaria o resgate mais difícil, ou poderia distor­cê-las quando retornassem. Ela não se importava. Nada poderia ser mais distorcido que suas próprias interpretações. Qualquer coisa que ele dissesse criaria um contexto, transformando-a em alguém com quem pudesse conviver.

Tinha de pressioná-lo a contar o que sabia...

Seus pensamentos foram terminados.

Como não pensara nisso antes? Sobre como Rodrigo tinha conhecimento de tudo que sabia. Permitira que ele cuidasse dela, e nem sequer cogitara questionar.

— Como você sabe de tudo isso? — perguntou agora. — Como me conhece? E Mel?

Os olhos de Rodrigo mal disfarçavam a fúria contida atrás do controle do cirurgião.

Ela lembrou-se daquele olhar. Realmente se lembrou. Não depois de tê-lo beijado.

Muito antes disso. Naquela vida que não recordava.

Nessa viva, Rodrigo a desprezava.

E não era porque ela teria lhe dado esperança e, então, não deixado Mel. Era pior.

Muito pior.

Ele era o melhor amigo de Mel.

As implicações desse fato eram horripilantes.

Independentemente de como as coisas tinham aconte­cido antes ou, pior, depois que Mel ficara desabilitado, se ela demonstrara sua atração por Rodrigo, então ele tinha bons motivos para detestá-la.

— Você se lembrou.

Ela o olhou hesitantemente.

— Mais ou menos.

— Mais ou menos? Isso é eloqüente. Mais rascunhos?

Lá estava a fúria mal contida novamente. Ela reprimiu a angústia.

— Eu recordei que você era o melhor amigo de Mel, e é por isso que sabe tanto sobre nós. Até mesmo a hora que re­alizamos um procedimento para ter um bebê. Desculpe-me, não posso fazer melhor do que isso. Tenho certeza de que o resto virá. De uma vez ou pouco a pouco. Não há neces­sidade de ficar esperando o evento, qualquer que seja. Eu quero receber alta.

Ele a estudou longamente.

— Volte para a cama agora, Cybele. Sua lucidez está se desintegrando a cada minuto que está de pé, a cada pala­vra que sai da sua boca.

— Não use o sarcástico tom médico comigo, doutor Valderrama. Eu sou uma médica licenciada, se você se recorda.

— Você quer dizer se você se recorda, não é?

— Eu me recordo do suficiente. Posso me recuperar fora deste hospital.

— Pode, mas somente sob meticulosa supervisão mé­dica.

— Eu posso providenciar isso sozinha.

— Não se "lembra" do velho ditado de que os médicos são os piores pacientes?

— Isso não tem a ver com lembrança, e sim com con­sentimento. Eu posso cuidar de mim mesma.

— Não, você não pode. Mas eu lhe darei alta. Sob mi­nha custódia. Vou levá-la à minha propriedade para conti­nuar sua recuperação.

A declaração de Rodrigo tirou o ar que restava em seus pulmões.

Sua custódia. Sua propriedade. Ela quase balançou com o impacto das imagens que vieram em sua mente, de como seria. Da tentação de se jogar em seus braços e dizer: sim, por favor.

Precisava negar. Fugir dele. E rápido.

— Escute, estive num terrível acidente, mas estou bem melhor. Eu teria morrido se você e seus equipamentos ultra-eficientes não houvessem intervindo. Mas você inter­veio e me salvou. Estou bem.

— Você está longe de estar bem; poderia estar em outra galáxia.

Cybele suspirou.

— Não exagere. A única coisa errada comigo é a falta de algumas lembranças.

— Algumas? Deveríamos fazer uma lista do que você se lembra. Aqueles títulos com os artigos desaparecidos e outra com os volumes que você apagou de sua memória, e é possível que nunca se recorde. Deveria reavaliar seu conceito de "algumas"!

— Que gracinha. — E ele era. De uma maneira insu­portavelmente viril e irresistível. — Mas, com a rapidez com que estou recuperando os títulos, em breve terei o suficiente para preencher os tais volumes.

— Mesmo que o faça, esse não é o seu único problema. Você teve uma séria concussão cerebral com edema e he­matoma subdural. Eu a operei durante dez horas. Metade do tempo você estava com um ortopedista e um cirurgião vascular, enquanto reconstituíamos seu braço. Ramón re­latou ter sido o mais intrigante implante usado em fixação interna de sua carreira, enquanto eu e Bianca tivemos um duro trabalho restaurando suas veias sangüíneas e nervos. Depois disso, você esteve em coma por três dias e acor­dou com total déficit de memória. Neste momento, sua condição neurológica é suspeita, seu braço é inútil, você tem hematomas e contusões da cabeça aos pés e está grávida de três semanas. Seu corpo necessitará do dobro de tempo e esforço para se recuperar durante esse período psicologicamente difícil. Admira-me que esteja falando e se movimentando, em vez de deitada na cama, desorien­tada e implorando por mais analgésico.

— Obrigada por me inteirar de minha situação, mas parece que sou mais forte do que você pensa. Estou muito lúcida, e as dores não são tão intensas agora.

— Você está cheia de analgésicos.

— Não estou eu parei o gotejamento.

— O quê?

Ele se aproximou com passos tensos. Inspecionou o gotejamento e a olhou.

— Quando?

—Assim que você saiu, depois de sua última inspeção.

— Isso significa que não tem nenhum analgésico em seu organismo.

— Eu não preciso. A dor no meu braço é tolerável ago­ra. Acredito que só estava intolerável quando o efeito da anestesia passou e eu voltei à consciência.

Rodrigo balançou a cabeça.

— Acredito que também precisamos examinar sua de­finição de "lucidez". Você não está fazendo sentido para mim. Por que sentir dor quando isso não é necessário?

— Algum desconforto ajuda meu organismo a reagir, ao invés de ficar deitada sob um conforto induzido por medicamentos, que pode camuflar alguma deterioração em progresso. Isso não faz sentido para você?

Ele a olhou desconfiado.

— Eu estava imaginando o que a deixava tão disposta.

— Agora você sabe. E eu vividamente me lembro de meu treinamento médico. Posso ter amnésia, mas não sou irresponsável. Tomarei todas as precauções, farei tudo conforme descrito no livro pós-operatório, pós-traumático...                                                                    

—Vou mantê-la ao meu lado até que esteja convencido de que você volte à sua velha capacidade e total autocon­fiança.

Aquilo silenciou qualquer argumento que ela pudesse usar.

Então Rodrigo acreditava que ela era forte, mas a des­prezava por algum motivo. O que ela poderia ter feito de tão errado? Abominava infidelidade, não achava nenhu­ma justificativa válida para isso. Pelo menos, a mulher que acordara do coma não achava.

Então ele a surpreendeu ainda mais.

— Não estou falando de como você era quando estava com Mel, mas antes disso.

Cybele não cogitou perguntar como ele sabia como ela era antes de Mel. Estava ocupada lidando com a suspeita de que Rodrigo tinha razão, que seu relacionamento com Mel a sabotara.

Mais traços emergiram. Como ela queria ser diferente de sua mãe, que abandonara uma próspera carreira para atender aos caprichos do padrasto de Cybele, como pen­sara em nunca se casar, e em ter um filho quando sua car­reira tivesse se tornado inabalável.

Embora não tivesse uma linha do tempo, sentia que, até meses atrás, essas eram suas convicções.

Então, por que estava casada, num período crucial de sua residência como médica, e engravidará? Amara tanto Mel que ficara cega? Mas, nesse caso, por que se recorda­va de Mel com tanto ressentimento?

Estranhamente também, não lamentava o fato de estar grávida. Na verdade, a idéia a empolgava, amenizando sua situação atual. Para sua mortificação, Rodrigo tam­bém amenizava tal situação.

E, exatamente por isso, não poderia aceitar a proposta dele.

— Obrigada pela oferta gentil, Rodrigo...

Ele a interrompeu.

— Não é gentil e nem uma oferta. É imperativo e é uma decisão.

Agora aquela era uma atitude autoritária.

— Imperativo ou soberano? Decisão ou ditadura?

— Ótima lembrança e uso lingüístico. E você escolhe.

—Acho que está claro que eu já escolhi. E, independen­te de como quiser chamar a sua oferta, eu não posso aceitar.

— Parece que você esqueceu tudo sobre mim, Cybele. Se lembrasse mesmo das coisas mais básicas, saberia que, quando eu tomo uma decisão, negá-la não é uma opção.

Cybele o encarou.

— Eu não recebi esse memorando. Ou "esqueci". En­tão eu posso dizer não para você. Considere uma ano­malia exclusiva.

Ele sorriu.

— Você pode dizer o que quiser. Sou seu cirurgião, e o que eu digo é o que vale.

O jeito com que ele falou "seu cirurgião" fez com que Cybele desejasse que ele fosse todo seu.

— Eu assinarei qualquer renúncia que você me peça. Estou assumindo total responsabilidade.

— Sou eu quem está assumindo total responsabilidade sobre você. Se pode se recordar do trabalho de um médico, saberia que eu, sendo o seu, só tenho menos autoridade que Deus nessa situação. Você tem algo a dizer contra a vontade de Deus?

— Você está levando este conceito a sério demais, não acha?

— Não. Você está sob meus cuidados e assim perma­necerá até que eu esteja convicto de que não precisa mais deles. A única escolha que deixo em suas mãos é se eu a acompanho em casa, como minha hóspede, ou em meu hospital, como minha paciente.

Cybele desviou o olhar. Mas não havia escape. Ela não estava em condições de ficar sem supervisão médica. E quem melhor para acompanhá-la do que seu próprio cirur­gião?

O cirurgião que, por acaso, era o melhor?

Ela sabia que ele era o melhor. Que era um gênio. Com bilhões e procedimentos que levavam seu nome e o me­lhor equipamento possível como prova. Mas, mesmo que estivesse bem, ela não queria receber alta. Para onde po­deria ir além de sua casa? A casa da qual se lembrava com monotonia? E não queria estar com mais ninguém. Certa­mente não com sua mãe e familiares. Recordava-se deles como conhecidos indesejáveis de outra pessoa. Decepcio­nantes e distantes. Suas próprias ações reforçavam aquela impressão. A soma de preocupação de sua família com seu estado clínico e a morte de Mel resumiam-se a duas li­gações. Quando souberam que ela estava bem, usaram tal conhecimento como desculpa para parar de se preocupar, e retomar seus reais interesses. Ela não se recordava de nada específico de sua vida com eles, mas a sensação era de que aquela era a última lembrança de uma vida inteira de decepções.

Cybele virou seu rosto na direção de Rodrigo. Então, assentiu com um gesto de cabeça, concordando. Ele inclinou a cabeça na sua direção.

— Você reconhece que precisa de minha supervisão? — Quando ela assentiu novamente, recusando-se a con­cordar com palavras, ele acrescentou: — E qual será? Hóspede ou paciente?

Cybele sabia qual seria a melhor opção. Deveria dizer: paciente. Deveria permanecer no hospital, onde as insanidades que ele lhe provocaria seriam limitadas, onde ela não poderia agir. Ela diria: paciente. Então abriu a boca.

— Como se você não soubesse.

Ela quase retirou as palavras sombrias, mas ficou hip­notizada pelo olhar de Rodrigo, que revelava alguma emoção... Triunfo?

Cybele não fazia idéia. Era exaustivo o suficiente ten­tar entender seus próprios pensamentos e reações. Não estava disposta a investigar os dele.

— Será uma honra tê-la como minha hóspede, Cybe­le — murmurou Rodrigo gentilmente. — Ainda bem que não você não disse: paciente. Eu teria rejeitado sua idéia.

Ela irritou-se.                                                                  

— Preste atenção...

Ele gentilmente interrompeu sua ofensa.

— Eu teria, porque construí esse centro para ser um hospital-escola. E, se você ficar aqui, não há como im­pedir os médicos e estudantes de terem acesso cons­tante a você, para estudarem sua intrigante condição neurológica.

Aparentemente, não apenas ninguém lhe negava nada, mas também ninguém nunca ganhava um argumento contra ele. Rodrigo lhe dera a única razão que a faria sair correndo do hospital. De maneira alguma queria estudantes a tocando como se ela fosse uma cobaia. Cybele suspirou.

— Você sempre consegue o que quer, não é mesmo?

— Não. Nem sempre.

O olhar atormentado que cobriu o rosto de Rodrigo a deixou com falta de ar. Estaria se referindo a... Ela? Seria ela algo que ele quisera e não conseguira?

Não. Ela sabia que o que sentia por ele fora sempre só de sua parte. Da parte dele, não houvera nada inapropriado. Rodrigo nunca lhe dera motivos para crer que o sentimento era mútuo. Esse... Desânimo era, provavelmente, pelo fato de não ter salvado Mel. Havia de ser a coisa que ele mais queria. E não conseguira.

Ela engoliu em seco.

— E... Eu acho que vou cochilar agora.

Ele respirou fundo, assentindo.

— Sim, faça isso.

Rodrigo começou a se virar, parou a expressão distan­te. Parecia estar pensando coisas horríveis.

Depois de um tempo, sem olhar para trás, murmurou:

— O funeral de Mel é esta tarde.

Cybele engasgou. Nunca tinha pensado nessa parte. Ele a fitou novamente, os olhos cheios de apelo.

— Você deveria saber.

Ela assentiu com dificuldade.

— Obrigada por me dizer.

— Não me agradeça. Não tenho certeza se deveria ter lhe contado.

— Por quê? Não acha que eu posso lidar com isso?

— Você parece estar lidando muito bem com tudo. Fico imaginando se não é a calmaria antes da tempestade.

— Acha que eu vou desmoronar de repente?

— Você passou por tanta coisa que não me surpreen­deria.

— Eu não posso prever o futuro. Mas estou tão estável quanto poderia agora. E... Eu quero ir. Preciso ir.

— Você não precisa fazer nada, Cybele. Mel não gosta­ria que passasse por mais esse trauma.

Então Mel se importava com ela? Queria o que fosse melhor para Cybele? Ela meneou a cabeça.

— Eu vou.

Rodrigo assentiu em concordância.

— Tudo bem. Contanto que faça tudo que eu disser.

— E o que seria tudo?

— Descansar agora. Ir ao funeral numa cadeira de ro­das. E ir embora quando eu mandar. Sem discussões.

Ela não teve energia para mais do que fechar os olhos em consentimento. Ele hesitou, então caminhou de volta em sua direção, pegou seu cotovelo e a guiou para a cama, onde Cybele se sentou.

Rodrigo também se abaixou. O coração de Cybele dis­parou quando ele pegou seus pés dormentes, um após o outro, tirou-lhe os chinelos como se estes o queimassem, antes de erguer-lhe as pernas sobre a cama e cobri-la com o lençol de algodão.

— Descanse.

Sem outro olhar, Rodrigo se virou e atravessou o quar­to quase correndo.

No momento em que a porta se fechou, Cybele foi do­minada por arrepios.

Descanse! Ele realmente achava que ela seria capaz? Depois do que ele acabara de fazer? Antes de ir ao funeral de seu marido?

Ela estava sofrendo! Por ele, porque respirava com cul­pa, com falta de culpa.

Apenas esperava que o funeral, o ritual de fechamen­to, pudesse abrir as células trancadas e obscuras de sua mente.

Talvez então tivesse respostas e ganhasse a absolvição.

 

Ela não descansou.

Após quatro horas rolando na cama, quando uma enfer­meira entrou, Cybele percebeu que se sentia pior do que quando acordara de seu estado de coma.

Deu um sorriso de agradecimento para a mulher e insistiu que não precisava de ajuda para se vestir. Seu gesso de fibra de vidro no braço era leve, possibilitando-a mover ombro e cotovelo suficientemente bem para vestir uma blusa.

Depois que a enfermeira saiu, ela permaneceu olhando para as roupas que Rodrigo lhe providenciara, para assistir ao funeral do marido de que ela não se recordava. Não queria recordar, na verdade.

Mas tinha de ir ao funeral. Ou melhor, ser levada para lá em uma cadeira de rodas.

Em minutos, estava olhando para seu reflexo no espe­lho grande do banheiro.

Saia preta de lã, blusa de seda branca, sapatos de couro preto. Todos os itens de grife.

Todos feitos como se fos­sem para ela.

Uma batida à porta tirou-a de seus pensamentos. Cy­bele andou vagarosamente e abriu a porta. Rodrigo estava lá. Com uma cadeira de rodas. Ela sentou-se sem dar uma palavra.

Em silêncio, ele empurrou a cadeira para dentro de um elevador gigantesco que podia acomodar dez macas. Aquele era obviamente um lugar equipado e com empregados preparados para lidar com situações de acidentes em massa. Ela olhou em frente quando eles alcançaram a vasta entrada, sentindo todos os olhos sobre si, a mulher que o chefe deles estava cuidando pessoalmente.

Uma vez do lado de fora, Cybele tremeu quando o frio de fevereiro atingiu seu rosto e suas pernas. Ele parou diante de uma Mercedes preto, cobriu-lhe os ombros com o casaco de cashmere que Cybele percebeu que Rodrigo levara sobre o braço e colocou-a cuidadosamente no ban­co traseiro do carro.

Rapidamente, posicionou-se ao seu lado no banco e si­nalizou para o chofer seguir.

Cybele observou a paisagem espanhola pela janela.

Todavia, nem toda a beleza dos campos verdejantes superou seu estado de consciência. Todos os níveis mais profundos convergiam para Rodrigo. No perfil rígido dele, no corpo poderoso tenso.

E ela não mais podia suportar aquilo.

— Sinto... Muito.

Ele virou-se para ela.

— Do que você está falando?

— De Mel. Sobre sua perda. — O maxilar de Rodrigo enrijeceu então seu rosto tornou-se pétreo, como se tives­se se isentado de toda emoção. — Eu não me lembro dele ou de nosso relacionamento, mas não sinto essa compai­xão. Você perdeu seu melhor amigo. Ele morreu na sua mesa de operação, enquanto você lutava para salvá-lo.

—Enquanto eu fracassava em salvá-lo, você quer dizer...

Cybele quase se sufocou com a angústia dele.

— Você não fracassou. Não havia nada que pudesse fa­zer. — Os olhos de Rodrigo flamejaram novamente, reve­lando frustração. — Não se incomode em me contradizer ou em procurar meios de sustentar uma culpa inexistente. Todo mundo soube que ele estava além de ajuda.

— E isso deveria fazer eu me sentir melhor? E se eu não quero me sentir melhor?

— Culpa infundada nunca fez bem a ninguém. Certa­mente, não às pessoas sobre quem nos sentimos culpados.

— Quão lógica você pode ser quando a lógica não tem propósito algum?

— Pensei que você advogasse a lógica como o que ser­ve a todos os propósitos.

— Não nesta circunstância. E o que eu sinto certamen­te não está me fazendo mal algum.

— Então você está descartando dor emocional como irrelevante? Sei que, como cirurgiões, nossa maior preocupação é com doenças físicas, coisas que podemos con­sertar com nossos bisturis, mas...

— Mas nada. Estou inteiro e saudável. Mel está morto.

— Não por culpa sua! — Ela não podia suportar vê-lo sofrendo daquela maneira. — Essa é a verdade. Sei que isso não torna sua perda menos traumática ou profunda. E sinto muitíssimo por... Todos. Por você, Mel, os pais dele, nosso bebê.

— Mas não por você mesma?

— Não.

A frágil palavra pairou entre eles, carregada de muitas coisas para que meras palavras pudessem expressar. E era melhor assim, pensou ela.

Vinte minutos de silêncio mais tarde, o coração de Cybele estava apertado. Eles estavam entrando num aeroporto particular.

Com cada metro percorrido, seu pânico aumentava, até que o carro parou a alguns metros da escada de um Boeing prateado.

Ela cegamente tentou tocar a única coisa que era inaba­lável no seu mundo. Rodrigo.

Ele passou o braço em sua volta no mesmo momen­to em que ela procurou o contato, lembranças crescendo dentro de sua cabeça como uma espiral de fumaça.

— Aqui é onde embarcamos no avião.

Ele olhou-a por um momento antes de fechar os olhos.

— Dios, Io siento, Cybele... Eu não pensei no que isso faria com você... Estar aqui, onde sua experiência horrível começou.

Cybele respirou; fundo e meneou a cabeça.

— Trazer-me aqui foi provavelmente a coisa certa a fazer. Talvez isso ajude a resgatar o resto de minhas lem­branças de uma vez só. Eu preferiria assim a ter lembran­ças periódicas.

— Não quero tentar terapia de choque. Estamos aqui para o funeral de Mel, o qual não é tradicional. Fiz os pais de Mel voar dos Estados Unidos, de forma que possam levar o corpo dele para casa.

Ela lutou para aceitar tudo aquilo. O corpo de Mel. Lá. Naquele carro funerário ali.

Os pais dele. Cybele não se lembrava deles. Deveriam estar no Boeing. O qual devia ser de Rodrigo. Eles desceriam e, em vez de receberem conforto e consolo da nora, encontrariam uma estranha entorpecida, incapaz de compartilhar seu sofrimento.

— Rodrigo... — A súplica para levá-la de volta ago­ra, alegando que estivera errada, que não podia lidar com isso, congelou na sua garganta.

Ele virará a cabeça. Um homem e uma mulher nos seus 60 anos tinham aparecido na porta aberta do jato. Ele alcançou o trinco da porta e voltou-se para ela.

— Fique aqui.

Cybele ficou mortificada. Era tão fraca. Rodrigo senti­ra sua relutância para encarar seus sogros e a estava pou­pando.

Ela não podia permitir isso. Os pais sofredores mere­ciam mais.

— Não, vou com você. E sem cadeira de rodas, por favor. Não quero que eles pensem que estou pior do que estou.

Assentindo, Rodrigo desceu do carro, rodeou-o para ajudá-la a fazer o mesmo.

Cybele agarrou-se à lapela do terno formal.

— Quais são os nomes deles?

— Agnes e Steven Braddock.

Os nomes não lhe diziam muita coisa. Ela não os co­nhecia há muito tempo, ou bem.

Estava certo disso.

O casal desceu enquanto ela e Rodrigo seguiam em di­reção a eles. Os rostos estranhos se tornaram mais claros a cada passo. De como Mel era em detalhes. E em cores.

Seu sogro tinha o mesmo físico alto e delgado e a vasta cabeleira, exceto que grisalha, e a de Mel tinha nuances de bronze. Mel possuía os estonteantes olhos azuis-turquesa da sogra.

Ela parou quando eles estavam a poucos passos do ca­sal. Rodrigo não parou.

Ele continuou andando, abriu os braços, e Agnes e Steven se apressou em encontrá-lo. Os três se fundiram num abraço que tocou profundamente o coração de Cybele.

A maneira que ele os abraçava, oferecendo conforto e consolo... O jeito de Rodrigo, aberto e entregue, dando tudo de si para o casal, dando sua força para que eles absorvessem...

Então o trio dissolveu sua fusão de consolo, virando-se para fitá-la. Agnes fechou o espaço entre elas e envolveu Cybele num abraço trêmulo, cuidadosa para não pressio­nar o gesso.

— Não pode imaginar como estávamos preocupados com você. É uma prece atendida vê-la tão bem. Não vie­mos antes porque Rodrigo não podia lidar com isso, com nada, até que você estivesse fora de perigo.

— Ele não deveria. Não posso imaginar como vocês se sentiram tendo de postergar a vinda.

Agnes balançou a cabeça, a tristeza nos seus olhos aprofundando-se.

— Mel já estava além de nosso alcance, e vir mais cedo não teria adiantado. Era você quem precisava da total atenção de Rodrigo, de forma que ele a salvasse.

— Ele me salvou. E, apesar de todos dizerem que ele é fenomenal com todos os seus pacientes, estou certa de que foi além de seus padrões. Com certeza porque eu era esposa de Mel. Está claro como ele é amigo íntimo de toda família.

A mulher a fitou com olhos arregalados.

— Mas Rodrigo não é somente um amigo da família. Ele é nosso filho. Irmão de Mel.

Cybele sentiu que olhava para Agnes por séculos, en­quanto aquelas palavras giravam em sua mente.

Rodrigo. Não era o melhor amigo de Mel. Era seu ir­mão. Como?

— Você não sabia? — Agnes parou. — Pergunta boba essa minha. Rodrigo contou-nos sobre sua perda de me­mória. Você esqueceu, é claro.

Ela não esquecera, tinha certeza. Aquela era uma reve­lação nova.

Antes que pudesse absorver aquilo, Rodrigo e Steven se aproximaram.

— Mantivemos Cybele de pé por muito tempo — disse Rodrigo ao casal que clamava serem seus pais. — Por que não volta para o carro com ela, Agnes, enquanto Steven e eu providenciaremos tudo?

Agnes? Steven? Ele não os chamava de mãe e pai?

Assim que elas se acomodaram no carro, Cybele vol­tou-se para Agnes, pronta para questioná-la. Mas subita­mente não conseguiu falar.

O que lhe perguntaria? Aquela mulher estava lá para reclamar o corpo do filho. O que pensaria, sentiria, se a viúva do filho não mostrasse interesse em conversar sobre ele e sim quisesse saber tudo sobre o homem que desco­brira ser irmão de Mel?

Ela permaneceu sentada ali, sentindo a perda mais pro­funda que sentira desde que acordara na sua nova vida.

O chofer de Rodrigo ofereceu-lhes refrescos.

Ela imitou o que Agnes fazia, mecanicamente sorven­do seu chá de hortelã toda ás vezes em que Agnes sorvia o dela.

De repente, Agnes começou a falar á tristeza que co­bria sua face misturando-se com outras coisas. Amor. Or­gulho.

— Rodrigo tinha seis anos, morava numa comunidade exclusivamente hispânica no sul da Califórnia quando a mãe morreu num acidente na fábrica, e ele foi levado a um orfanato. Dois anos mais tarde, quando Mel tinha seis anos, decidimos que ele precisava de um irmão, um que percebemos que nunca seríamos capazes de lhe dar.

Então era isso. Rodrigo era adotado. Agnes continuou:

— Levávamos Mel conosco enquanto procurávamos, uma vez que nosso único critério para a criança que ado­taríamos era que combinasse com Mel. Mas Mel antagonizava cada criança que considerávamos adequada. En­tão, Rodrigo foi sugerido a nós. Contaram-nos que ele era tudo que Mel não era, responsável, desembaraçado, respeitoso, com um temperamento estável e mente brilhante.

— Fomos ao orfanato, e Rodrigo se apresentou a nós educadamente no pouco inglês que conhecia. Mel foi mais desagradável do que nunca, xingando Rodrigo, de­bochando do sotaque dele, insultando sua origem e si­tuação. Ficamos mortificados. Steven pensou que ele se sentira ameaçado por Rodrigo, como ficara por qualquer criança que procurávamos. Eu disse que, independente­mente da razão, não poderia deixar Mel abusar do pobre menino, que estávamos errados e Mel não precisava de um irmão, mas de um tratamento mais rígido, até que ele superasse sua crueldade. Steve pediu-me para observar. E eu observei.

— Rodrigo até então não mostrara reação alguma. No geral, outros meninos devolviam, física ou verbalmen­te, os maus-tratos de Mel. Rodrigo permaneceu sentado, observando-o no que parecia ser profunda contemplação. Então, levantou-se e se aproximou. Mel continuou com suas agressões verbais, mas, quando não obteve a reação usual, pareceu ficar intrigado — continuou Agnes. — Nós todos prendemos a respiração quando Rodrigo pôs uma mão no bolso. As piores cenas surgiram na mi­nha mente. Steven preocupou-se também. Mas o diretor do orfanato acalmou-nos. Rodrigo tirou do bolso uma borboleta feita de papelão, elástico e molas e belamente pintada à mão. Jogou-a para cima e deixou-a voar. E de repente Mel era uma criança novamente, rindo e pulan­do atrás da borboleta, como se ela fosse real— a mulher prosseguiu. — Soubemos então que Rodrigo conquistara Mel, que nossa procura por um novo filho tinha terminado. Eu es­tava tremendo enquanto perguntava a Rodrigo se ele gos­taria de viver conosco. Ele ficou atônito. Disse que nin­guém queria crianças mais velhas. Asseguramos-lhe de que nós o queríamos. Ele virou-se e estendeu a mão para Mel, dizendo-lhe que fizera outros brinquedos e prome­tendo ensiná-lo a fazer seus próprios brinquedos. — Agnes concluiu.

As imagens que Agnes traçava eram sobrepujantes. A visão de Rodrigo como criança era dolorosamente vivi­da. Frio em face à humilhação e adversidade, estoico num mundo onde não tinha ninguém.

— E ele ensinou? — perguntou ela.

Agnes suspirou.

— Ele tentou. Mas Mel era impaciente, nunca espe­rando nada. Rodrigo nunca parou de tentar envolvê-lo, levando-o a experimentar os prazeres da realização. Nós o amamos com todo nosso coração desde o primeiro dia, mas o amamos mais por quão arduamente ele tentou.

— Então seu plano de que um irmão ajudaria Mel não funcionou?

— Oh, funcionou. Rodrigo absorveu muito da ansieda­de e instabilidade de Mel. Tornou-se o irmão mais velho. Mel imitava-o em tudo. Foi como Mel terminou, forman­do-se em Medicina.

— Então ele deve ter aprendido a ter paciência. É pre­ciso muita perseverança para se tornar médico.

— Você não se recorda de nada sobre ele, certo? — Antes que Cybele pudesse responder, Agnes suspirou. — Mel era genial, podia fazer qualquer coisa que determinasse. Mas somente Rodrigo sabia como motivá-lo, mantê-lo na linha. E, quando Rodrigo fez 18 anos, ele mudou-se.

— Por quê? Não estava feliz com vocês?

— Ele assegurou-nos de que sua necessidade de inde­pendência não tinha nada a ver com não nos amar ou não querer estar conosco. Confessou que sempre sentiu neces­sidade de encontrar suas raízes.

— E temeram que ele estivesse apenas apaziguando vocês?

As feições suaves de Agnes revelaram ansiedade.

— Tentamos ajudar enquanto ele procurava sua família biológica, mas seus métodos eram muito mais efetivos. Ele encontrou os avôs maternos três anos depois, e toda a família deu-lhe boas-vindas com braços abertos.

Cybele não podia deixar de pensar como alguém não daria.

— Ele descobriu a identidade do pai?

— Seus avôs não sabiam. Tinham tido uma briga com a mãe dele quando ela engravidara, e ela não revelara a identidade do pai. Abandonou o lar, dizendo que nunca voltaria para o mundo de mente fechada deles. Uma vez que eles se acalmaram, procuraram a filha em todos os lugares, desejando que ela voltasse para casa. Mas nunca mais tiveram notícias. Ficaram arrasados por saber que a filha estava morta, mas radiantes por Rodrigo tê-los des­coberto.

— E ele trocou o nome de vocês para o deles, então?

— Ele nunca tomou o nosso nome, apenas conservou o nome que a mãe usara. Havia obstáculos demais para adotá-lo, e, quando ele percebeu nossa luta, pediu-nos para parar de tentar, pois estava feliz em ser nosso filho adotivo para o mundo. Rodrigo tinha 11 anos nessa oca­sião. Quando encontrou sua família, ainda insistiu que nós éramos sua família verdadeira. Não tomou legalmente os nomes deles até ter certeza de que nós sabíamos que ter o nome catalão apenas combinava mais com sua identidade.

— E ainda pensaram que ele tivesse saído da vida de vocês?

Agnes exalou sua concordância.

— Foi o pior dia da minha vida quando ele anunciou que se mudaria para a Espanha tão logo seu treinamento médico terminasse. Eu pensei que meus piores medos de perdê-lo tivessem se realizado.

Cybele achou estranho que Agnes não considerava o dia em que Mel morrera o pior dia de sua vida. Mas es­tava atenta demais na história para aprofundar o pensa­mento.

— Mas você não o perdeu.

— Eu não deveria ter me preocupado. Não com Rodrigo. Ele nunca parou de nos dar atenção. Era uma presença constante em nossas vidas... Até mais que Mel, que vivia sob o mesmo teto. Mel sempre teve dificuldades em expressar emoções e mostrava-as com coisas mate­riais, não morais. Provavelmente por isso que ele... — Ela parou e desviou o olhar.

— Ele o quê? — Cybele tentou não parecer muito curiosa, mas Agnes ignorou sua pergunta, retomando o tópico original.

— Rodrigo continuou a obter sucessos maiores, mas certificou-se de que nós compartilhássemos a alegria de todos os passos com ele. Mesmo quando se mudou para cá, nunca nos deixou sentir que estava longe. Insistia para que viéssemos morar aqui, começar projetos que sempre sonhamos, ofereceu-nos tudo de que precisávamos para nos estabelecermos aqui. Mel disse que a Espanha era boa para férias, mas ele era nova-iorquino e jamais poderia viver em outro lugar. Apesar de ser uma decisão difícil, resolvemos ficar nos Estados Unidos com ele... Que pre­cisava de nossa presença mais que ninguém. Mas passa­mos parte dos invernos com Rodrigo, e ele vai à América sempre que pode.

E ela o conhecera durante aquelas viagens freqüente. Repetidas vezes. Simplesmente sabia isso. Mas tam­bém sabia que aquela história não tinha sido contada por ninguém antes. Estava certa de que nunca soubera que Rodrigo era irmão adotivo de Mel. Não por Mel, não por Rodrigo.

Por que nenhum deles comentara aquele fato?

Agnes tocou-lhe a mão boa.

— Desculpe-me, minha querida. Eu não deveria ter en­veredado pelo caminho da memória.

E a coisa mais extraordinária era que as reflexões de Agnes não tinham sido sobre o filho que perdera, mas so­bre o filho que adquirira trinta anos atrás.

— Estou feliz que você fez isso, pois preciso saber qualquer coisa que me ajude a lembrar.

— E lembrou-se de alguma coisa?

Não era uma simples pergunta para averiguar seu es­tado neurológico. O que Agnes queria saber tinha algo a ver com o que começara a falar sobre Mel e depois parará, como se envergonhada, como se muito angustiada para tocar no assunto.

— Coisas esporádicas — replicou Cybele, mas, antes que pudesse pensar num meio de voltar ao assunto que explicaria a razão pela qual se sentia daquele modo sobre Mel e sobre Rodrigo, Agnes virou a cabeça.

— Eles estão de volta.

Frustrada, Cybele seguiu o olhar de Agnes. Então, viu Rodrigo dando aqueles seus passos poderosos, e a visão afugentaram tudo o mais.

De repente, uma série de imagens sobrepôs-se sobre a dele. De ela e Mel saindo com Rodrigo e uma mulher diferente cada vez, mulheres as quais ele tratava com de­sinteresse, dando margem à sua reputação de playboy im­placável.

Alguma coisa mais se desalojou na sua mente, dando-lhe a sensação de que Mel tinha se tornado exasperado com Rodrigo.

Se essas eram lembranças verdadeiras, contradi­ziam tudo que Agnes dissera tudo que ela sentira sobre Rodrigo. As lembranças mostravam Rodrigo como o errá­tico e inconstante, que tivera um efeito destrutivo em Mel, em vez de estabilizador. Cybele sentia-se mais confusa do que nunca.

— Você está pronta, Agnes?

Ela estremeceu ao som da voz profunda de Rodrigo. Observou quando ele ajudou Agnes a descer do carro. Então ele inclinou-se para ela.

— Fique aqui.

— Quero fazer o que vocês todos vão fazer — mur­murou ela.

— Você já se excedeu. Eu não deveria tê-la trazido.

— Estou bem. Por favor.

Ele lhe deu aquele olhar feroz novamente. Então assentiu e ajudou-a a descer do carro.

Ela não queria apenas estar ali para aquelas pessoas com quem sentia uma poderosa conexão. Também espe­rava obter mais respostas de Agnes.

Cybele observou Rodrigo caminhar com Steven para o carro funerário, onde outros quatro homens esperavam. Um era Ramón Velázquez, seu ortopedista cirurgião, e melhor amigo de Rodrigo, de verdade, e sócio.

Rodrigo e Ramón compartilharam um cumprimento solene e depois abriram a porta traseira do carro funerário e retiraram o caixão. Steven e os outros três homens jun­taram-se para carregá-lo até o local de carga do Boeing.

Cybele permaneceu imóvel ao lado de Agnes, obser­vando a procissão austera, seus olhos hesitando entre o rosto de Rodrigo e o de Steven.

A mesma expressão em ambos. E era a mesma no rosto de Agnes. Havia algo... Estranho naquela expressão.

Dentro de sua cabeça conjecturas giravam, até que o ritual estivesse terminado e Steven voltasse com Rodri­go para juntar-se a Agnes num abraço de adeus a Cybele. Então, os Braddock embarcaram no Boeing, e Rodrigo conduziu Cybele de volta ao Mercedes.

O carro tinha acabado de deixar o campo de aviação quando ela ouviu o barulho do jato decolando e olhou para cima, vendo o avião diminuir aos poucos até desa­parecer de vista.

Então, subitamente, entendeu o significado da expres­são que rotulara de estranha.

Era a resignação exaustiva exibida pelas famílias de pacientes que morriam depois de longo tempo, agonizantes em função de doenças termi­nais. O que não combinava com a situação, uma vez que a morte de Mel tinha sido rápida e chocante.

Outra coisa tornou-se óbvia. Ela virou-se para Rodrigo. Ele estava olhando para o lado de fora da janela.

Cybele detestava intrometer-se no sofrimento dele. Mas precisava compreender tudo aquilo.

— Rodrigo, desculpe, mas...

Ele a fitou.

— Não peça desculpas novamente, Cybele.

— Eu ia desculpar-me por interromper seus pensamen­tos, mas tenho de saber. Eles não perguntaram. Sobre mi­nha gravidez.

O rosto dele fechou-se.

— Mel não contou aos pais.

Aquela era uma resposta que ela não considerara.

— Por que não?

Rodrigo deu de ombros e não respondeu.

— Por que você não contou a eles? — questionou Cybele.

— Porque cabe a você saber se quer contar-lhes ou não.

— São avós do meu bebê. É claro que quero contar-lhes. Se eu soubesse que eles não sabiam, teria contado. Isso teria dado-lhes conforto, sabendo que parte do filho deles permanece.

O queixo de Rodrigo enrijeceu-se por um momento.

— Estou feliz que você não disse nada. Não está em condições de lidar com as conseqüências emocionais de uma descoberta dessas. E, em vez oferecer consolo neste estágio, a novidade provavelmente teria agravado a dor reprimida deles.

Mas não fora dor reprimida o que ela sentira neles. Então, novamente, o que sabia?

Sua percepção podia estar tão confusa quanto suas lembranças.

— Você provavelmente está certo. — Como sempre, acrescentou para si mesma. — Contarei a eles quando eu voltar ao normal e estiver certa de que a gravidez é está­vel.

Ele baixou os olhos e disse simplesmente:

— Sim.

Sentindo-se drenada de todas as formas, Cybele o olhou... O mistério que se desenrolava tornava-se cada vez mais desordenado.

E ela implorou:

— Podemos ir para casa agora, por favor?

 

Rodrigo a levou para casa. A casa dele.

Eles foram do aeroporto de Barcelona para o centro da cidade. De lá, levaram mais de uma hora para chegar à sua propriedade.

Quando chegaram, ao pôr do sol, ela se sentia completa pela beleza pura do interior catalão.

Então eles passaram por um alto portão eletrônico, di­rigiram pela estrada particular que levava á casa. A paisa­gem era maravilhosa.

Cybele virou-se para olhá-lo. Ele estava calado. Assim como ela, que lutava com as contradições entre o que seu coração dizia e o que sua memória insistia, querendo que ele desvendasse suas dúvidas.

Todavia, quanto mais se lembrava de tudo que Rodrigo fizera e dissera, tudo que todos tinham falado a respeito dele nos últimos dias, mais uma conclusão fazia sentido.

Suas lembranças deveriam ser falsas.

Ele virou-se para ela.

— Bem vinda à Vila Candelária, Cybele.

Ela engoliu o nó de emoção, mesmo assim seu obrigado soou como um trêmulo chiado. Tentou novamente.

— Quando você comprou este lugar?

— Na verdade, eu o construí. Dei o nome de minha mãe à propriedade.

O nó na garganta de Cybele crescia conforme as ima­gens ganhavam formas. De Rodrigo como um órfão que nunca esquecera a mãe, até que um dia se tornara rico o suficiente para construir um lugar como aquele e lhe dar o nome dela, de modo que sua memória continuasse em algum lugar fora de sua mente e...

A qualquer momento, ela começaria a chorar. Era me­lhor desviar o foco de assuntos pessoais.

— Este lugar parece ser... Enorme. Não só a constru­ção, mas também o terreno.

— Tem mais de oito acres, com seiscentos metros de vista para a água. Antes que você pense que sou louco de construir tudo isso para mim, eu construí com a es­perança de que se tornasse uma casa de muitas famílias, oferecendo privacidade e terreno para quaisquer projetos e abordagens que desejassem. Não que tenha funcionado dessa maneira.

A tristeza que cobria o rosto dele á devastava. Ele de­sejara estar cercado por família.

E, aparentemente, havia se frustrado a cada passo. Estaria sofrendo pela solidão e isolamento que ela sentia ser uma parte integrante de sua própria psique?

— Eu escolhi este terreno por acaso. Estava dirigindo uma vez, sem rumo, quando vi àquele topo de colina ao alto do canal marítimo. — Ela olhou para onde ele apon­tava. — A imagem entrou em minha mente praticamente formada. Uma casa construída naquelas formações rocho­sas, como se fosse parte delas.

Ela inverteu o processo, imaginando aqueles elementos sem a magnífica casa que eles abraçavam como se fossem uma intrínseca parte da estrutura.

— Eu sempre pensei que o Mediterrâneo fosse somen­te praias de areia branca.

— Não nessa área da costa norte ibérico. Rochas irre­gulares são nativas aqui.

O carro parou diante de uma grande escadaria de pe­dras entre terraços com jardins que cercavam a casa.

Em segundos, Rodrigo a estava ajudando a sair do carro, insistindo que ela se sentasse na cadeira de rodas. Cybele consentiu. Enquanto ele a empurrava ao longo da rampa que ficava ao lado da escadaria, ela imaginou se a rampa sempre estivera lá, para a conveniência dos fami­liares mais velhos, ou se teria sido instalada por causa da condição de Mel.

Afastando-se dos devaneios, entregou-se ao esplendor que a cercava, conforme eles se aproximavam de um pátio gigante que cercava a casa. De um lado, dava vista para a magnífica propriedade, com o vale e as montanhas a distância, e, do outro lado, mar e praia de tirar o fôlego.

O pátio conduzia à parte mais alta com vista para o mar, uma varanda imensa com jardim, iluminada por lu­zes douradas.

Ele a levou para dentro, e Cybele teve rápidas impres­sões do interior, enquanto Rodrigo a conduzia para o quarto que havia separado para ela.

Tudo parecia escolhido para exclusividade e conforto, simplicidade e grandiosidade, mesclando linhas limpas e cores audaciosas, tetos com coloração mel e móveis que complementavam o ambiente. Portas francesas e pilastras coloniais fundiam-se com a beleza natural do piso de madeira, acentuado por mármore e granito. Ela sabia que poderia passar semanas admirando cada detalhe, mas, no geral, sentia que esse era o lugar que um homem formidá­vel um dia quisera que sua família amasse. Cybele sabia que ela amava o lugar, e ainda nem entrara.

Então entrou. Rodrigo abriu a porta, empurrou a cadei­ra para dentro e ajudou-a se levantar. Ele levou a cadeira de rodas para um lado, recuou para pegar duas malas que, evidentemente, estavam sendo transportadas bem atrás deles.

Colocou uma no chão e a outra num suporte de mala no canto oposto do quarto, que se abria para um closet.

Cybele ficou hipnotizada conforme ele se aproximava novamente.

Rodrigo era irresistível. Mais do que irresistível.

Ele parou e pegou-lhe a mão. Cybele as sentiu em cha­mas.

— Eu lhe prometo uma visita detalhada do lugar. De­pois. Em estágios. Agora, você precisa descansar. Ordens médicas.

Com isso, ele pressionou-lhe gentilmente a mão, virou-se e saiu.

No momento em que a porta se fechou, Cybele se apoiou na mesma, suspirando.

Ordens médicas. O seu médico...

Ela mordiscou o lábio. Há horas, havia enviado o corpo do marido aos pais dele. E tudo em que conseguia pensar era em Rodrigo. Não havia nem uma ponta de culpa com relação a Mel. Havia tristeza, mas era a tristeza que sabia que sentiria pela morte de qualquer ser humano. Pelo luto de seus entes queridos. Nada mais.

O que estava errado com ela? O que houvera de errado com ela e Mel? Ou havia mais coisas erradas em sua men­te de que ela acreditava?

Tudo que podia fazer agora era nunca permitir que aqueles que amavam e haviam perdido Mel soubesse quão pouco afetada ela estava pela perda. Não podia mu­dar a forma como se sentia. Deveria parar de se culpar por seus sentimentos, pois isso não levaria a nada.

Atingindo tal racionalização, sentiu como se um peso enorme tivesse sido removido de seu coração.

Olhou ao redor. O quarto era imenso. Com paredes pintadas de azul-celeste e verde, móveis de mogno e de­talhes de marfim, era suavemente iluminado por lâmpa­das douradas. Portas francesas ostentavam cortinas azuis transparentes que ondulavam com a brisa do mar ao en­tardecer. Ela suspirou, então empurrou a porta de painéis de madeira.

Atravessou o reluzente piso de madeira em direção às malas, que eram mais uma evidência dos cuidados detalhistas de Rodrigo. Cybele sabia que nunca possuíra nada tão elegante. O que havia dentro das malas? Se as roupas que estava vestindo servissem de exemplo, sem dúvida encontraria uma variedade de trajes elegantes, moldados para seu corpo e agradando seus gostos.

Tentou mover a mala que estava no chão, somente para colocá-la de pé.

Deus, o que ele pusera naquela mala? Armaduras de aço em todos os tons? Cybele tentou novamente.

— Parada!

Ela se virou com a ordem, endireitando a coluna. Uma inconfundível espanhola robusta, com seus 30 anos; aproximava-se desgosto estampado nas feições bonitas.

— Rodrigo me advertiu de que você me daria trabalho.

Cybele piscou quando a mulher pegou a mala como se estivesse leve e colocou-a na cama king-size. A mulher andou ao seu redor, vigor e ira irradiando-se de cada traço.

— Ele me disse que você seria uma responsabilidade difícil, e, pela forma como estava tentado abrir a cicatriz de sua cirurgia, ele estava certo. Como sempre está.

Então não era só ela que achava que Rodrigo era prati­camente infalível. Cybele sorriu.

— Eu não tenho cicatriz da cirurgia para abrir, graças à revolucionária técnica minimamente invasiva de Rodrigo.

— Você tem coisas aí — a mulher apontou para a cabe­ça de Cybele — que podem estourar, não?

Pela maneira como sua cabeça estava latejando, Cybele tinha de concordar.

Provavelmente havia aumentado sua pressão intracraniana dez vezes, tentando levantar aquela mala pesada.

Cybele deu de ombros, lembrando-se de Rodrigo di­zendo-lhe que Consuelo, sua prima que vivia lá com o marido e três filhos, e administrava o lugar para ele, iria vê-la em breve para cuidar das necessidades de Cybele e garantir o bom desempenho de suas instruções.

No momento, ela somente concordara perdida em seus olhos. Agora entendia o que ele quisera dizer.

Rodrigo não confiava que ela seguiria suas instruções, en­tão designara uma representante para impor sua execução. E certamente sabia como escolher seus administradores.

Ela estendeu a mão, sorrindo.

— Você deve ser Consuelo. Rodrigo me alertou para esperá-la.

Consuelo pegou sua mão, somente para puxá-la e bei­jar-lhe ambas as bochechas.

Cybele não sabia o que a chocava mais, a saudação afetuosa ou Consuelo retomar sua desaprovação depois. Consuelo cruzou os braços sobre os seios amplos.

— Parece que Rodrigo não lhe disse realmente o que esperar. Então, deixe-me esclarecer. Eu á recebi deterio­rada e machucada. Vou devolvê-la impecável. Eu não vou permitir que você não siga as instruções de Rodrigo. Não sou mole e tolerante como ele.

— Mole e tolerante? — Cybele repetiu incrédula. En­tão riu. — Eu não sabia que havia dois Rodrigos. Conheci o difícil e inexorável.

— Se você acha Rodrigo difícil e inexorável, espere até ter passado 24 horas comigo.

— Oh, os primeiros 24 segundos foram demonstração suficiente.

Consuelo a estudou, seus olhos escuros astutos.

— Eu conheço o seu tipo. Uma mulher que quer fazer tudo por conta própria, diz que pode fazer quando não pode, continua fazendo quando não deveria não se importando com o custo, e tudo porque teme ser uma impo­sição, porque não suporta receber ajuda, mesmo quando realmente precisa.

— Uau! Falou como uma especialista.

— Maldita sea, es ciertol. Isso mesmo. Uma mulher cabeça dura e independente reconhece a outra.

Cybele riu.

— Estou perdida.

— Si, você está. E eu vou reportar seu comportamento imprudente para Rodrigo. Ele provavelmente irá acorren­tá-la ao meu pulso, até que possa lhe dar um relatório de saúde total.

— Não é que eu não ficaria honrada em tê-la como mi­nha... Bem, guardiã, mas há alguma forma de eu suborná-la a ficar em silêncio?

— Há. E sabe como.

— Que eu não tente levantar uma mala cheia de pedras novamente?

— E faça tudo que eu disser. Quando eu disser.

— Hm... Pensando bem, vou arriscar com Rodrigo.

— Ah! Tente outra. Agora, suba na cama. Rodrigo me disse que tipo de dia... Que tipo de semana você teve. Não fará absolutamente nada a não ser dormir e descansar pelo próximo dia. E comer. Parece prestes a desaparecer.

Cybele riu. Aquela mulher seria ótima para ela. E, cer­tamente, Rodrigo sabia disso.

Consuelo lhe despertava um humor que ela não soubera existir.

Consuelo pegou-lhe o braço e conduziu-a para cama, então seguiu sozinha para o banheiro da suíte. Falou o tempo todo enquanto preparava a banheira, esvaziava as malas, arrumava tudo no closet e separava o que Cybele vestiria para dormir. Cybele adorava ouvir sua voz rouca e vibrante num inglês perfeito, com sotaque catalão.

Quando ela conduziu Cybele para o banheiro com ins­talações em mármore e ouro, contou-lhe outra história de vida. Pelo menos, tudo o que havia acontecido desde que ela e o marido se tornaram os administradores da proprie­dade de Rodrigo.

Cybele insistiu em dizer que poderia ficar sozinha. Consuelo insistiu em deixar a porta aberta. Cybele in­sistiu que gritaria, para provar que estava acordada. Con­suelo prometeu irromper subitamente após um minuto de silêncio. Cybele retrucou que poderia cantar para provar que estava acordada, e que, então, qualquer pessoa que estivesse por perto sofreria as conseqüências da super proteção de Consuelo. Gargalhando e cantando em catalão, Consuelo finalmente saiu do banheiro.

Sorrindo, Cybele se despiu. O sorriso se dissolveu con­forme ela se olhou no espelho acima das pias duplas.

Tinha a sensação de que já fora mais bonita. Teria per­dido peso? Muito? Recentemente? Por estar infeliz? Se estivesse, por que planejara uma gravidez e uma segunda lua de mel com Mel? O que Rodrigo achava de sua apa­rência? Não agora, que estava destruída, mas antes? Ela era seu tipo? Ele teria uma mulher agora? Mais do que uma...?

Oh, Deus... Não conseguia concluir um pensamento sem voltar para ele.

A imagem de Rodrigo com outra mulher, qualquer mu­lher, lhe causou um calafrio.

Quão insano era sentir ciúmes, quando até oito dias atrás estava casada com seu irmão?

Ela entrou na água morna com essência de jasmim. Gemeu quando submergiu, sentindo seu corpo relaxar imediatamente. Erguendo o olhar, notou que a janela fica­va na parede oposta, mostrando uma obra-prima de pro­porções paradisíacas. Magníficas formações nebulosas em cada gradação de prata vagando pelo céu azul e uma meia-lua incandescente.

O rosto de Rodrigo se sobrepôs no esplendor, a voz sob o barulho de água que a cercava. Cybele fechou os olhos, tentando interromper a magia.

— Basta.

O grito “que” de Consuelo forçou os olhos de Cybele a se abrirem. Mortificação ameaçou ferver a água da banheira.

Deus... Ela falara aquilo em voz alta. Gritou a primeira coisa que veio em sua mente, para explicar sua explosão:

— Hum... Eu disse que estou saindo. Basta.

Rodrigo estava do lado de fora da suíte de Cybele, to­dos os seus sentidos tentando absorver cada som, cada movimento transmitido de dentro.

Tentara se afastar. Não conseguia. Depois de ter enviado Consuelo para lá, ele se apoiara na porta de Cybele, ten­tando conter o desejo de entrar, de ver, ouvir e sentir por si mesmo que ela estava viva e consciente.

O período em que ela ficara inerte quase o enlouquece­ra. Nos últimos dias, desde que Cybele havia voltado, ele não queria ficar um minuto longe dela. Só faltara acampar do lado de fora de seu quarto, como fizera quando ela estava em coma. Limitava-se para não sufocá-la com pre­ocupação, contando cada segundo das três horas que se impunha a esperar entre cada visita.

Podia ouvir a voz de Cybele vinda do banheiro ago­ra, conversando com Consuelo.

Em alguns minutos, Consuelo se certificaria de que Cybele deitasse na cama e sairia.

Ele precisava sair antes disso. Mas ainda não.

Sabia que estava sendo obsessivo, ridículo, mas não podia fazer nada. O susto era muito recente; o trauma, muito profundo.

Ele não estivera lá para Mel, e ele morrera.

Tinha de estar lá para Cybele.

Mas, para isso, precisava se controlar. E, para fazer isso, necessitava deixar o que acontecera hoje para trás.

Tinha sido um pesadelo para ele. Levá-la ao aeródromo, conscientizando-se tarde demais do que havia feito, vendo seus pais adotivos depois de meses sem se falarem, apenas para lhes dar a prova de seu maior fracasso. O cor­po de Mel.

A única coisa atenuando esse desastre era a perda de memória de Cybele. Era uma bênção. Para ela. Para ele também. Ele não saberia se poderia ter lidado com o sofri­mento dela também, caso se recordasse de Mel.

Mas seria capaz de lhe dar apoio quando ela se recor­dasse de tudo? De qualquer forma, tinha de levar em con­sideração as mudanças em Cybele.

A mulher que acordara do coma não era a mesma Cybele Wilkinson que ele conhecera. Ou a que Mel dizia ter se tornado tão volátil, acusando-o de querê-la por perto somente quando a conveniente ajuda havia se unido com a supervisão médica, e que teria exigido um filho como prova de que ele a valorizava como esposa.

Rodrigo primeiramente achara impossível acreditar. Nunca a imaginara como uma pessoa insegura ou apega­da. Exatamente o contrário. Mas, depois, suas ações pro­varam que Mel estava certo.

Então, quem era ela realmente? A mulher estável e in­gênua que tinha sido pelos últimos cinco anos? A moça introvertida que fora antes do acidente de Mel? Ou a neurótica que teria demandado emoções impossíveis do ma­rido quando ele próprio estava arruinado?

E, se essa nova personalidade fosse um produto do acidente, de seus ferimentos, quando ela se recuperasse, retomasse todas as lembranças, se reverteria? Essa mu­lher que brincava tão amigavelmente com Consuelo, que o consolara e o fizera esquecer tudo, exceto dela, desapa­receria?

Rodrigo afastou-se da porta. Consuelo estava pergun­tando o que Cybele gostaria para o café da manhã. A qual­quer momento, ela sairia.

Ele saiu andando, especulações girando em sua mente.

Estava olhando o extenuado estranho com roupas de luto no espelho de seu banheiro quando se conscientizou de algo.

Aquilo não fazia nenhuma diferença. Independente­mente das respostas, ou do que aconteceria no futuro, não importava.

Cybele estava em sua vida agora. Para ficar.

 

— Você não tem amnésia pós-traumática.

Os olhos de Cybele arregalaram-se diante da declara­ção de Rodrigo. E sua incredulidade era quase tão grande quanto a que sentira ao perceber que ele transferira um hospital em miniatura para sua casa, de forma que pudes­se testar e mapear o progresso dela diariamente.

Havia praticamente tudo à mão: máquinas para raios-X, tomografia e ressonância magnética. Um laboratório abrangente para todos os exames conhecidos, para fazer check-up de sua condição física geral, assim como de sua gravidez. Então havia a dúzia de testes neurológicos aos qual Rodrigo a submetia todos os dias, além da sessão de fisioterapia para seus dedos.

Eles tinham acabado tal sessão e estavam dirigindo-se para a churrasqueira no terraço do jardim em frente ao mar para almoçar, depois do que explorariam mais a propriedade.

Ele estava caminhando ao seu lado, cenho cerrado, olhos focalizados nos últimos resultados de outra bateria de testes. Então, o que pretendera ao dizer que ela não tinha amnésia pós-traumática?

Uma terrível desconfiança nublou a perfeição do dia.

Poderia Rodrigo pensar que ela tirara proveito de uma perda de memória transitória e o estava enganando duran­te as últimas quatro semanas? Ou, pior, que nunca perdera a memória e fingira desde o início?

— Você acha que estou fingindo?

— O quê? — Ele ergueu os olhos, focando à frente sem ver nada, como se procurando entender o significado das palavras dela. Então entendeu. Virou a cabeça na direção de Cybele.

— Não.

Ela esperou por uma resposta mais elaborada. Ele não deu, voltando a enterrar a cabeça nos testes.

— Então, o que significa a declaração de que não tenho amnésia pós-traumática?

Em vez de responder, ele abriu a porta da pérgula do terraço. Cybele saiu para o meio-dia do fim de março, deslumbrada diante da doce salinidade da brisa do mar que soprava contra seu rosto e cabelos.

Rodrigo a olhou enquanto caminhavam, como se não tivesse ouvido a pergunta. Ela tremeu; não pela deliciosa frigidez do vento, mas pela carícia do olhar dele.

Então, ele voltou seus olhos novamente para os testes.

— Vamos rever sua condição, certo? Você começou tendo total amnésia retrógada, com todas as memórias formadas antes da perda do acidente. Então começou a reaver ilhas de memória, quando recordou aqueles even­tos básicos. Mas não sofreu qualquer grau de amnésia anterógrada, uma vez que não teve problemas em criar novas memórias depois do dano. Levando tudo isso em conta, e que as ilhas não se aglutinaram numa massa uniforme...

— Tão uniforme quanto poderia ser você quer dizer — interrompeu-a. — Mesmo as chamadas pessoas sau­dáveis não se lembram de tudo nas suas vidas...

— Certo. Mas amnésia pós-traumática que dura tanto tempo indica severo dano do cérebro, e, pela sua condi­ção clínica e todos os testes, está claro que você não está sofrendo de qualquer déficit cognitivo, sensorial ou de coordenação. Uma amnésia pós-traumática isolada des­sa magnitude é desconhecida. Por isso estou inclinado a diagnosticá-la como um caso híbrido de amnésia. O trau­ma pode ter induzido o esquecimento, mas a maior parte de seu déficit de memória é psicológica, e não orgânica.

Cybele mordeu o lábio, pensativamente.

— Então retrocedemos ao que eu disse minutos depois que recuperei a consciência. Eu queria esquecer.

— Sim. Você diagnosticou-se assim que saiu de um coma.

— Não foi exatamente um diagnóstico. Eu estava ten­tando entender por que não tive outros sintomas. Quando não encontrei uma explicação, pensei que meu conhe­cimento médico sofrerá um golpe, ou que a neurologia nunca tivesse sido meu ponto forte na minha existência paralela. Pensei que você saberia que casos como o meu existem. Mas não existem. De onde se deduz que real­mente não tenho amnésia, sou apenas histérica.

O olhar furioso de Rodrigo a penetrou.

— Amnésia psicológica não é menos verdadeira do que a orgânica. É um mecanismo de auto preservação. Eu também não rotularia o ingrediente psicológico de sua perda de memória como histeria, mas como funcional ou separativo.                                                                 

Uma doçura ardorosa expandiu-se dentro dela. Ele á estava defendendo de si mesma.

— Então você acha que tenho uma amnésia funcional, do tipo de memória reprimida?

— Sim. Aqui, dê uma olhada nisto. É sua última res­sonância magnética. — Ela olhou. — É chamada visuali­zação funcional. Depois que a visualização estrutural não revelou nenhuma mudança física no seu cérebro, eu olhei para a função. Vê isso? — Ela viu. — Esta atividade cere­bral anormal no sistema límbico leva à sua inabilidade de recordar eventos estressantes e traumáticos. As memórias estão armazenadas na sua memória á longo prazo, mas o acesso a elas foi prejudicado através de uma mistura de trauma e mecanismos de defesa psicológicos. A ativida­de anormal explica sua recuperação parcial da memória. Mas, agora que estou certo de que não há nada errado organicamente, estou despreocupado com relação a quando a recuperação total ocorrerá.

— Se ocorrer. — Se ele estivesse certo, e Cybele sentia que estava, era melhor que nunca ocorresse.

Sofredores de amnésia psicológica incluíam abuso na infância, estupro, violência doméstica, desastres naturais e vítimas de ataque terrorista. Eram sofredores de seve­ro estresse psicológico, conflitos internos ou situações de vida intoleráveis. E, se sua mente tinha se trancado ao dano como um gatilho para purgar suas memórias de Mel e sua vida com ele, ela provavelmente sofrerá todos os três.

Mas aquilo ainda não explicava sua gravidez ou a lua de mel para a qual eles se dirigiam antes do acidente.

— De qualquer modo — disse Rodrigo, — enquanto teorias tentam explicar amnésia psicológica, nenhuma de­las foi verificada como o mecanismo que cabe a todos os tipos. Prefiro deixar de lado os sistemas de crença semântica freudiana e teorias de trauma de traição para explicar a condição. Inclino-me em direção à teoria que explica o desequilíbrio bioquímico que engatilha isso.

— Motivo pelo qual você é neurocirurgião, e não psi­quiatra.

— Eu gosto de rastrear sinais ou sintomas, físicos ou psicológicos, de volta ao seu mecanismo causador, para encontrar o exatamente como depois que outros explicam o "por que".

— E por isso você é; um pesquisador e um inventor.

Ele fitou-lhe os olhos por um segundo antes de se vol­tar para os testes, á pele bronzeada corando. Estava cons­trangido.

Cybele notara que, embora ele fosse seguro de suas habilidades, não era arrogante e não esperava bajulação, apesar de merecer isso.

Rodrigo escolheu voltar ao assunto anterior.

— De qualquer forma, meu ponto de vista é que você pode ter pensado que estava lidando bem com sua situa­ção antes do acidente, mas, de acordo com sua atual con­dição, não estava.

— Então você está dizendo que eu fui conduzida para uma amnésia psicológica, de qualquer modo?

— Não, estou dizendo que o estresse inimaginável de experimentar um acidente de avião mais o dano cerebral temporário que você sofreu rompeu o equilíbrio que te­ria conservado sua memória intacta em face de qualquer pressão psicológica que estivesse sofrendo.

Cybele alçou uma sobrancelha, de modo zombeteiro.

— Você está tentando encontrar explicações neurologicamente factíveis através de teorias complexas e ex­pressões médicas para justificar o fato de ter me diag­nosticado como uma pessoa extremamente ansiosa, eu estou certa?

— Não! De maneira alguma. — Ele parou abruptamen­te quando um sorriso iluminou o rosto de Cybele. Incre­dulidade estampou-se nas feições dele. — Está brincando comigo!

Cybele irrompeu numa risada.

— Sim, só um pouquinho. Mas você estava tão envol­vido nas suas explicações, tão cuidadoso em não me dar razões para sentir-me boba, uma vez que minha condição está apenas na minha mente, que não notou.

Ele arqueou uma sobrancelha espetacular e curvou os lábios num sorriso sexy.

— Hurnm, parece que subestimei o estágio de seu pro­gresso.

— Eu tenho lhe dito isso há...

— Algum tempo agora. Sim, entendi. Mas, agora que sei que seu cérebro está em boa ordem de funcionamento, sendo o sujeito que cuida apenas do equipamento físico, eu acho que posso seguramente parar de tratar você como se estivesse pintada de tinta fresca.

Ela riu diante da metáfora. Rodrigo continuava surpre­endo-a. Cybele pensara que ele era aquele gênio ultra cerebral, trabalhador; então, repentinamente, ele mostrava outro lado. A pessoa mais espirituosa e divertida que ela já conhecera. E sabia disso por um fato.

Lembrava-se de tudo de sua vida antes de Mel agora.

Fingiu limpar o suor imaginário de sua sobrancelha.

— Ufa! Pensei que eu nunca o faria parar.

— Não fique tão feliz. Até minutos atrás, eu teria dei­xado você me manipular, mas agora não tem mais auto­rização para o tratamento preferencial de caminhando sobre ovos. Você merece alguma punição por caçoar de meus esforços em parecer onisciente.

— E qual será esta punição? Você me mandará para o meu quarto?

—Farei você comer o que eu cozinhei. E isso é só o começo. Tramarei algo abominável enquanto a fase um está em andamento.

— Você quer dizer, mais abominável do que sua co­mida?

A careta de Rodrigo a fez rir e começar a andar, sen­tindo-se como se estivesse voando ali, envolta pelo prazer delicioso das gargalhadas dele.

Quando alcançou os degraus, a voz profunda reverberou atrás dela.

— Vá devagar.

Cybele esperou por ele para ajudá-la. Sorriu e disse:

— Pensei que eu não estivesse mais recebendo o trata­mento de pintura fresca.

— Você progrediu para o tratamento da última peça conhecida da dinastia chinesa Ming.

Ele circulou-lhe a cintura com uma mão firme, enquan­to eles subiam os degraus.

Cybele sentiu-se como se esti­vesse segura, mesmo que o país inteiro caísse no mar.

Ou como se ele tivesse segurado seu corpo e decolado para o céu.

Ela controlou seu desejo de pressionar-se a ele.

— Ah! Eu deveria saber que você fracassaria em devol­ver minha independência.

Ele sorriu para ele quando alcançaram a churrasqueira.

— As histórias de sua independência foram grande­mente exageradas.

Ela fez uma careta e curvou-se sob a sombra da cober­tura de lona.

Ele deu-lhe um olhar convencido enquanto a ajudava a sentar-se, então foi para a área da cozinha e começou a preparar-lhe a punição.

Cybele observou todos os movimentos graciosos en­quanto Rodrigo selecionava os utensílios de cozinha, os alimentos, cortava e fatiava, com atuação precisa de um cirurgião.

Então ela olhou para o mar e para a praia de areia bran­ca, que se estendia por quilômetros sem fim. Pura paz e tranqüilidade a envolveram. Na maior parte do tempo, não podia lembrar-se de como tinha ido parar lá, ou mes­mo que nunca havia estado noutro lugar, que um mundo existia do lado de fora.

Aquele lugar não era apenas um lugar. Era uma... Expe­riência. Uma sensação de inteireza, de chegada. Um reino no tempo e espaço que ela nunca vira se aproximar, muito menos se repetir. Uma união da natureza grandiosa com a busca do homem para a excelência da beleza e conforto.

Mas tudo aquilo teria sido nada sem ele.

Era estar com ele que fazia aquilo ser um paraíso per­sonificado.

Durante as últimas semanas, eles tinham feito foguei­ras, colhido frutas maduras e legumes, comido suas refei­ções na cozinha enorme ou na churrasqueira, e se entretido depois do jantar no saguão ou na pérgula imensa do terraço.

Ela observara-o jogar tênis com o incansável Gustavo, marido de Consuelo, nadar braçadas infindáveis na pisci­na enorme admirando cada movimento de Rodrigo, ansiando para tirar o gesso e atirar-se naquela piscina com ele...

— Pronta para sua punição?

— Está muito horripilante?

Ele olhou para os pratos de salada nas mãos.

— Abominável.

— Dê-me. — Ela pegou seu prato, colocou-o na sua frente. Então, deu-lhe um sorriso desafiador.

— Está colorida, pelo menos. E... Cheirosa. — Cybele tentou não tremer quando pegou o garfo. — Eu não sabia que esses itens de comida podiam combinar.

Ele sentou-se na frente dela.

— Não ouvi quaisquer objeções quando eu os coloquei na companhia um do outro.

Ela riu.

— Eu nem mesmo sei o que são estes alimentos.

O olhar de Rodrigo dizia que suas táticas para poster­gar não estavam funcionando.

— Coma.

Ela deu uma garfada, tentando não inalar o mau cheiro. E... Uau! Ergueu olhos incrédulos para ele.

— É melhor você patentear isso. É maravilhoso!

Rodrigo arqueou as sobrancelhas em descrença.

— Está apenas tentando provar que eu não teria suces­so em puni-la, porque você pode aceitar qualquer coisa.

— Quantos anos eu tenho? Doze — Ela deu outra gran­de garfada.

— Então você gostou.

— Adorei — exclamou ela. — Eu poderia passar sem o cheiro forte, mas realmente diminui quando você come, ou seu paladar o perdoa por provar algo delicioso. No iní­cio, pensei que fosse peixe podre.

— É peixe podre.

Ela quase sufocou.

— Agora você está me castigando.

— Não. — Os olhos de Rodrigo eram travessos. — Mas, se você gosta, o rótulo importa?

Ela pensou sobre aquilo por um segundo, então disse:

— Não. — E enfiou outra garfada na boca.

Ele riu enquanto começava a comer sua própria porção.

— Na verdade, é somente meio-podre. É chamado feseekh... Seco ao sol, depois salgado. É considerado de refinado gosto. Os Berbers o trouxeram do Egito para Catalunha, mas aposto que sou o primeiro a misturar isso com uma dúzia de folhas verdes sem nome e grãos que Gustavo planta e colhe, assegurando-me de que são maravilhosas.

— Então você pode estar me dando comida podre e desconhecida, para consumir?

— O ingrediente podre provou, através de séculos de experiência popular, ser poderoso antibacteriano, e ter propriedades digestivas. Ele e o resto da comida não identificada foram repetidamente testados. Eu sou a prova viva da eficácia deles. Não fiquei doente um dia nos últi­mos vinte anos.

Os olhos de Cybele se arregalaram.

— Certo; má sorte?

Ele atirou a cabeça para trás numa gargalhada.

— Você é supersticiosa? Acha que contrairei uma do­ença mortal agora que ousei pôr o destino à prova?

— Quem sabe? Talvez o destino não goste de pessoas arrogantes.

— Na verdade, acho que o destino não gosta de joga­dores. — Uma expressão triste surgiu no rosto dele. Antes que Cybele pudesse analisar aquilo, ele baixou o olhar, escondeu-o. — Uma vez que não sou jogador, sou um bom candidato para ficar do lado bom do destino. Por quanto tempo for possível. Isso nos trás de volta ao seu descuido. Talvez você não tenha componentes soltos dentro do seu cérebro para serem sacudidos, mas, correndo por aí como você quer fazer, pode tropeçar, e tem somente uma mão para aparar a queda, arriscando se machucar. E, embora seu primeiro trimestre tenha sido o mais tranqüilo que já ouvi falar, provavelmente como uma compensação para todo seu sofrimento, você está grávida.

Ela realmente esquecera que estava. Não que quisesse esquecer.

Quando lembrou, foi com muita alegria, imaginando que tinha uma vida crescendo em seu interior, que teria um bebê para amar e acariciar, e uma família que nunca ti­vera.

Se houvesse alguma coisa para agradecer a Mel, era que ele a convencera a conceber aquele bebê. Mas, como ela não tinha sintomas, algumas vezes aquilo escapava de sua mente.

— Certo, sem mais descuidos. — Cybele sorriu. — To­davia, uma vez que não tenho parafusos soltos, você precisa dizer a Consuelo para parar de perseguir-me, como se eu fosse esparramá-los.

Rodrigo virou a cabeça para ambos os lados, olhou para trás. Então, voltou-se para ela, a palma da mão so­bre o peito com uma expressão de horror zombeteiro.

— Você está falando comigo!

Os lábios dela torceram-se.

— É você quem a instiga para mim.

— Um homem pode começar uma reação nuclear, mas certamente não tem meios de pará-la, uma vez que ela se perpetua por si só.

— Você precisa detê-la. Em seguida, Consuelo escova­rá meus dentes.

— Acha que eu consigo? Posso ser o senhor de tudo, mas aqui sou outro na linha que faz o que ela manda.

— Sim, eu notei. — Cybele riu, amando como ele podia ser tão másculo e, ao mesmo tempo, deixar uma mulher totalmente confortável. Ela inclinou a cabeça para ele.

— As famílias aqui são muito matriarcais, não são?

— Regra de mulheres.

Rodrigo dirigiu-se à churrasqueira, e ela permaneceu sentada, satisfeita e feliz.

Nunca rira daquele jeito diante dele. Nunca antes de estar naquele lar paradisíaco, em sua companhia.

Ele somente saia do seu lado para voar para trabalhar, literalmente, via helicóptero, e diminuíra suas horas de trabalho, para estar ali com ela. Cybele insistira que isso não era necessário, que estava perfeitamente bem com Consuelo, Gustavo e seus filhos.

Mas parou de objetar, certa de que ele não estava ne­gligenciando seu trabalho, tinha tudo sob controle. E ela jamais se cansava da companhia de Rodrigo. No fundo, adorava ser mimada por ele, desejando que pudesse re­compensá-lo de alguma forma. Mas Rodrigo tinha tudo. Não precisava de nada. Nada, exceto se curar emocionalmente.

Então, contentou-se em estar ali para ele, com a espe­rança de que Rodrigo se curasse.

E ele estava se curando. A melancolia tinha se dissipado, e a distância se transformado numa proximidade como ela nunca conhecera, enquan­to eles se descobriam, compartilhavam muitas coisas que Cybele nunca imaginara compartilhar com outra pessoa.

Ela continuou esperando que ele fizesse alguma coisa para aborrecê-la, para decepcioná-la, como todos os seres humanos inevitavelmente fazem. Mas o homem impos­sível não fazia. Em vez disso, continuava encantando-a cada vez mais.

Rodrigo era tudo que os pais adotivos tinham dito, e mais. Tudo que ela admirava num ser humano e num ho­mem, e o mais efetivo poder para o bem que ela já tivera a felicidade de conhecer. E aquilo era o que ele era para o mundo.

Para Cybele, ele era tudo que combinava com suas próprias preferências e peculiaridades. Eles concordavam na maioria das coisas e, no que discordavam, discutiam, respeitando o ponto de vista do outro e se alegrando por terem ganhado uma nova consciência.

E, quando ela acrescentava tudo que Rodrigo represen­tara, seu salvador, protetor e apoiador, ele era, sim, sim­plesmente incrível.

Por isso, de vez em quando, a pergunta girava em sua cabeça: onde estivera aquele homem antes do acidente?

Pelos seus farrapos de memória, além da promiscui­dade relatada de Rodrigo, ele tratara Mel com desgos­to, e todos os outros com impaciência abrasiva. O modo como a tratara tinha sido o pior. Quase não falara com ela, observando-a com expressão quase malévola nos olhos, como se não a considerasse digna de seu amigo... Seu irmão.

E a resposta era sempre a mesma: suas lembranças ti­nham de ser imperfeitas.

Essa situação presente e ele deviam ser a verdade. A verdade magnífica.

— Pronta para voltar para sua guardiã?

Tudo se tornou mais bonito com o retorno de Rodrigo. Ela rendeu-se à força masculina, deixando-o ajudá-la a erguer-se sobre os pés que quase não tocavam o chão por­que ele existia, estava perto.

Cybele acabou abrigando-se no abraço protetor. O ros­to de Rodrigo revelava a intensidade que ela agora ado­rava, sua frescura e potência enchendo seus pulmões. E, subitamente, mostrar-lhe o que ele significava para ela era tão necessário quanto sua próxima respiração.

Ela moveu-se contra o sólido calor e força, ergueu seu rosto para ele, a invocação que a preenchia com vida e es­perança, e a vontade de curar, de ser, tremendo nos lábios.

— Rodrigo...

 

O sussurro de Cybele mexeu com Rodrigo, abalando to­das as emoções e reações que ele estava reprimindo.

Cada parte em que o corpo dela tocava o seu enviava-lhe tremores de desejo, fazendo seu baixo-ventre pulsar.

Nada mais restava em suas profundezas, exceto a ne­cessidade de pressioná-la contra seu corpo, reivindicá-la, integrá-la ao seu ser.

E ele não podia.

Mesmo assim, imaginou como seria poder experimen­tá-la, desvendá-la, dividir tudo com Cybele, desde sua ro­tina diária até suas mais profundas crenças.

E ela era muito mais do que ele sempre sonhara. Era a melhor coisa que havia lhe acontecido.

Mas, sempre que Rodrigo estava longe dela, continua­va remoendo o passado, as suspeitas e antipatias que uma vez envenenaram sua existência e alimentaram sua resistência. Quisera odiá-la e menosprezá-la na época. Porque Cybele era a única mulher que ele realmente quisera e estivera fora de alcance.

Ela não estava mais fora de alcance. Não por causa de Mel, nem mesmo por causa das objeções de Rodrigo com relação ao caráter de Cybele.

Ele havia parado de condená-la por atormentar Mel com sua volatilidade, e começado a suspeitar de que a ins­tabilidade fora criada na psique destorcida de Mel.

Agora que ele não mais a considerava a pior pessoa possível, e vira toda a evidência do contrário, fazia sentido que um homem nas condições de Mel pudesse ter interpretado os atos de amor de Cybele como pressão emocional e chan­tagem.

Mais tarde, depois que o relacionamento entre Mel e Cybele se deteriorara diante da desabilidade de Mel, fica­ra claro que o dinheiro que Mel pedira para Rodrigo para comprar coisas para Cybele não tinha sido para coisas que ela exigira. Mel dissera ter entendido as exigências da es­posa, pois ela merecia alguma compensação para motivá-la na situação em que se encontravam.

Mas teria sido Mel quem tentara satisfazer qualquer desejo material dela para apaziguá-la, para expressar seu amor da única forma que sabia, acreditando impedi-la de deixá-lo num ataque de desespero? E, quando isso tam­bém fracassara, a última chance que tinha de provar a ela que não a considerava sua enfermeira era dando-lhe um bebê.

Rodrigo agora acreditava que a perda de memória de Cybele era a forma que sua mente encontrara de se pro­teger do sofrimento, caso se recordasse de Mel e do amor desesperado e traumático que sentira por ele.

Depois de chegar a essa conclusão, ele cogitou que ela estaria sendo tão maravilhosa com ele porque, subconscientemente, o via como tudo que restava de Mel. Talvez Cybele o tratasse daquela forma porque não se recordava do amor por Mel e, quando se lembrasse, voltaria a ser fria e distante. Talvez a frieza anterior de Cybele tivesse sido uma reação à própria antipatia de Rodrigo. Mas tal­vez ela realmente não gostasse dele, por razões que agora haviam partido com sua memória. Ou, talvez, o ferimen­to tivesse causado mudanças radicais na personalidade de Cybele.

Muitas perguntas, cujas respostas somente ela sabia e não se recordava. E isso o estava enlouquecendo.

Rodrigo fitou-lhe os olhos. Eles estavam repletos de desejo. Ele poderia envolvê-la nos braços, e ela seria sua. Cybele parecia querê-lo tanto quanto ele a queria.

Mas ela o queria? Ou somente pensava que queria, tal­vez pela necessidade de reafirmar sua própria vida depois de sobreviver a um acidente que levara Mel embora?

Seria ele meramente conveniente, próximo? Ou ela estava retribuindo sua gratidão?

Qualquer que fosse a razão, ele não acreditava que Cybele fosse responsável por seus próprios desejos ou capaz de tomar uma decisão com tamanha lacuna em sua, memória.

E também havia o lado dele da história.

Rodrigo sabia que não estaria traindo a memória de Mel. Mel estava morto e, mesmo enquanto vivia seu re­lacionamento com Cybele não tinha sido saudável e feliz, Se ele pudesse ser a pessoa a oferecê-la aquele relaciona­mento, faria tudo por essa chance.

Mas como poderia viver consigo mesmo se traísse a confiança dela! E Cybele confiava nele. Com sua vida.

E agora estava mostrando que confiava com seu corpo, talvez com seu coração e futuro.

Contudo, como ele podia resistir? Necessidade o estava corroendo por dentro. E senti-la correspondendo o tirava do sério.

Ele precisava planejar uma distração, uma intervenção.

Forçou-se a parar de acariciar o rosto de Cybele e deu um passo atrás, afastando-se da tentação, proferindo com tom irritado:

— Eu tenho de voltar ao trabalho.

Ela gemeu pela perda de seu apoio, mordeu o lábio e assentiu.

Covarde. Trabalho era uma desculpa para manter dis­tância.

Ele precisava fazer qualquer coisa que fosse necessária para ficar longe de Cybele até que ela se recuperasse e viesse a ele totalmente consciente do que queria.

Rodrigo exerceu o que restava de sua força de von­tade.

— E, antes que eu esqueça, quero lhe dizer que estou convidando minha família para uma visita.

Cybele o olhou.

Por um instante, enquanto ele a segurara contra si, ela acreditara que ele também a queria, também a desejava. Pensara que Rodrigo a pegaria em seus braços, protegendo-a para sempre.

Mas estava tudo dentro de sua cabeça. Ele afastara-se. Ela o interpretara erroneamente.

Mas ele a interpretara de maneira correta. Com toda certeza, lera seu desejo por ele, entendera seu apelo.

E rejeitara sua oferta, como se aquilo o ferisse ou, pior, o envenenasse.

Mas, apesar de Rodrigo ser muito gentil para casti­gá-la por testar os limites da situação, quando nunca a encorajara, ainda encontrara uma forma de estabelecer limites.

Tinha convidado a família para vir a casa. Agora que fora tão tola de oferecer-lhe o que ele não pedira e não queria, Rodrigo estava garantindo que ela não tivesse mais oportunidade de repetir o erro. Ele os convidara como damas de companhia.

Aquilo foi como um despertar. Do qual Cybele precisa­va. Não somente não podia permitir que ele se atolasse com a família apenas para mantê-la distante, como não poderia sobrecarregá-lo com mais responsabilidades relacionadas com ela, dessa vez por causa de suas emoções e desejos. Já o sobrecarregara o suficiente quando não tinha nenhum di­reito.

Precisava parar de se apoiar em Rodrigo. E precisava fazer isso agora, antes que suas emoções se aprofundassem.

Não que isso fosse possível. O que sentia por ele á pre­enchia, transbordava.

Havia somente um lado positivo em tudo isso. Apesar de ter traído a si própria e se imposto a ele, agora sabia que não fizera aquilo quando Mel estava vivo. Reprimira seus sentimentos antes, os quais deviam ter se libertado depois do acidente.

Tudo que podia fazer agora era desaparecer da vida de Rodrigo, libertá-lo de mais responsabilidades. Teria de re­colher os cacos de sua vida, planejar como retornar para um trabalho exigente, com um bebê a caminho, sem con­tar com a ajuda de ninguém.

Necessitava ir embora imediatamente, porque assim ele não precisaria chamar sua família inteira para salvá-lo.

No momento em que eles entraram de volta na casa, Cybele abriu a boca para falar o que devia, mas ele a in­terrompeu.

— Quando eu me mudei para cá, tive a impressão de que catalães procuravam motivos para se reunir e cele­brar. Mais tarde, entendi que, por lutarem tão intensamen­te para preservar o idioma e identidade, sentiam enorme orgulho em preparar e executar essas celebrações. Minha família é inteira catalã, e eles valorizam muito a união da família e tradições culturais. E, desde que construí este lugar, mais de cinco anos atrás, ele substituiu a casa de meus avôs como sede dos encontros. Seria uma pena in­terromper a nova tradição.

Rodrigo estava tentando fazer parecer que sua decisão re­pentina não tinha nada a ver com o fato de Cybele ter se ofe­recido a ele. Ela queria gritar para que ele se calasse e paras­se de ser tão atencioso. Mas não conseguiu. Um nó fechou sua garganta enquanto ele a escoltava para seus aposentos e continuava falando sobre as tradições catalãs e a busca fa­miliar pela união... Tudo que ela nunca tivera e nunca teria.

— Primavera e verão são caracterizados por fiestas i carnaval... Isso significa...

— Festas e carnavais. Eu sei — ela murmurou. — Mas eu...

Um sorriso iluminou o rosto de Rodrigo, interrompendo-a mais efetivamente do que se houvesse gritado.

— Às vezes eu me esqueço de quão bom é o seu es­panhol e estou chocado como seu catalão se tomou colo­quial nesse curto período de tempo.

Ela quase engasgou com o prazer que o elogio provo­cou, somente para ser seguido de uma tristeza ainda mais profunda.

— A festividade mais próxima é La Diada De Sant Jordi, ou dia de São Jorge, celebrando o santo padroeiro da Catalunha, dia 23 de abril. Existem muitas variações das lendas de São Jorge, mas a versão catalã diz que havia um lago que servia de casa a um dragão, para o qual um ser­vente por dia tinha de ser sacrificado. Um dia, São Jorge matou o dragão e salvou o servente do dia. Uma roseira vermelha deveria ter nascido onde o sangue do dragão espirrou. Agora, no dia, as ruas da Catalunha se enchem de estandes vendendo rosas i libros... Rosas e livros. A rosa é o símbolo do amor, enquanto o livro é símbolo de cultura.

— Tenho certeza de que seria um ótimo momento para estar na Catalunha...

Ele atropelou a tentativa dela de interrompê-lo.

— Com certeza, é. As celebrações são muito inclusivas. Qualquer um andando pelas ruas em qualquer lugar da Catalunha é convidado a participar. Outra celebração parecida é a Mãe de Deus de Montserrat, dia 27 de abril. Em adição a essas datas, cada vilarejo e cidade home­nageiam seu próprio santo padroeiro. Essas celebrações contam com desfiles de gigantes feitos de papel machê, fogos de artifício, música ao vivo e mais. Pode ser que minha família fique até dia 23 de junho, que é o dia mais curto do ano e coincide com a celebração do solstício de verão e a festa de São João. Aqui na Catalunha, nós fa­zemos fogueiras quando o sol está no seu ponto mais ao norte. Catalães acreditam que isso afasta doenças, mau-olhado e outros demônios.

Ela tentou novamente.

— Parece que vai ser muito divertido para você e sua família...                                                              

— E para você também. Você vai adorar a energia e diversão dessa época do ano.

— Eu tenho certeza de que adoraria. Mas não estarei aqui para tudo isso, então, talvez em outra oportunida­de?

Rodrigo a olhou.

— Do que você está falando?

Cybele continuou andando, lutando para não ceder à tentação de fitá-lo e captar-lhe a reação espontânea diante da declaração que ela faria.

— Baseado nos seus últimos testes e diagnósticos de minha condição, e uma vez que você obviamente não o fará, estou me dando alta. É hora de retomar minha vida e meu trabalho.

— E como você pretende fazer isso?

Ele a parou no meio de um longo corredor iluminado pela luz do sol, que levava aos aposentos de Cybele.

— Você é canhota e mal pode mexer os dedos. Levará semanas antes que possa desempenhar tarefas básicas so­zinha, meses antes que possa retomar ao trabalho.

— Inúmeras pessoas com desabilidades mais severas e permanentes são obrigadas a tomar conta de si próprias, e elas conseguem...

— Mas você não estará apenas tomando conta de si própria. Está grávida, E não é forçada a fazer nada... Você não precisa fazer isso sozinha. Eu não permitirei e certa­mente não a deixarei ir embora. E essa é a última vez que temos essa conversa, Cybele Wilkinson.

O coração de Cybele bombeou mais forte a cada pala­vra inflexível.

Ela tentou dizer a si mesma que era inútil sentir-se dessa forma. Que, mesmo que tivesse de admitir que ele estivesse certo, deveria ouvir a voz que a mandava indignar-se com tais táticas controladoras, para se rebe­lar contra a preocupação de Rodrigo em fazer tudo que achava ser o certo para ela. Essa voz também insistia que Cybele não deveria ficar tão vertiginosa, que ele não estava fazendo isso por preocupação com ela, mas com sua paciente.

Ela não conseguia ouvir. Não era forte o suficiente para desperdiçar um segundo que pudesse passar na compa­nhia de Rodrigo, da família dele e de tudo mais.

Também tinha de acreditar que ele conseguia adminis­trar a presença dela ou estaria aliviado com sua oferta de ir embora. E, uma vez que não estava ela não deveria sentir-se mal em ficar. Oferecera-se para ir, e ele negara. Com um não protetor e controlador.

Entretanto, não poderia aceitar aquilo sem ao menos contestar.

— Tudo bem, está claro que você acredita estar certo...

— Eu estou certo.

Ela continuou como se ele não houvesse interrompido.

— Mas isso não significa automaticamente que eu concordo. Vim para cá como uma alternativa para não ficar no seu centro como uma cobaia. Mas, se eu es­tivesse lá, você teria me dispensado há muito tempo. Ninguém permanece no hospital até que as fraturas se consolidem.

As sobrancelhas de Rodrigo se uniram.

— Você gosta de perder, Cybele? Nós estabelecemos que, quando eu tomo uma decisão...

— Dizer não para você não é uma opção — concluiu Cybele por ele, sorrindo. — Mas essa era uma decisão baseada na imagem clínica de um mês atrás. Agora que estou diagnosticada sem danos cerebrais, eu deveria po­der cuidar de mim mesma.

Após estudá-la longamente, Rodrigo falou:

— Muy bien, Cybele. Você venceu. Se insistir em ir em­bora, siga em frente. Vá.

O coração de Cybele quase se partiu.

E ele estava virando-se, indo embora.

Havia aceitado não como resposta.

Mas ele nunca aceitara antes. Dissera que não aceitaria. Por isso ela havia falado aquilo. Não estava pronta para ficar sem ele para o resto de sua vida.

Queria retirar cada palavra que dissera, explicando que só estava tentando fazer o que achava ser certo, afirmar uma independência que ainda não podia administrar para aliviá-lo do fardo.

Mas não conseguiu pronunciar nenhum som. Porque não tinha direito de pedir mais dele. Rodrigo lhe dera muito mais do que ela imaginara que alguém pudesse dar. Ele lhe devolvera a vida. E era hora de retribuir isso.

Cybele virou-se, sentindo-se arrasada. Sua mão dor­mente estava na maçaneta da porta de seu quarto quando ela o ouviu dizer:

— A propósito, Cybele, boa sorte tentando convencer Consuelo.

Ela virou-se. Ele a olhava do fim do corredor e sorria. Rodrigo a estava provocando!

Não queria que ela fosse embora, não havia aceitado sua decisão.

Antes que Cybele pudesse fazer algo estúpido, como correr e se jogar em seus braços e soluçar tudo que es­tava em seu coração, Consuelo, num vestido vermelho com saia rodada, passou por Rodrigo e desceu o corredor apressadamente, voltando-se para Cybele.

— Você está tentando desfazer todo o meu trabalho? Sete horas passeando? — Então se virou para Rodrigo com desgosto: — E você! Permitindo que sua paciente dê as cartas.

Rodrigo a olhou com brilho nos olhos, fingindo estar indignado, então piscou para Cybele antes de virar-se e sair, seus passos firmes ecoando no corredor.

Consuelo a arrastou para dentro do quarto, sorrindo enquanto criticava seus excessos, mandando-a subir na balança e lamentando seu ganho de peso.

Cybele sentia falta de cuidados maternos. E, naquele momento, aproveitou os cuidados de Consuelo o máxi­mo que podia. Acompanhado dos mimos e da proteção de Rodrigo.

Tudo acabaria muito rápido.

Mas ainda não. Ainda não.

 

Rodrigo observava a procissão de carros se aproximando.

Sua família estava lá.

Nem sequer pensara neles desde o acidente. Não pen­sara um tempo antes disso, também. Há mais de um ano, tudo que tivera em mente era Cybele e Mel, e seu tumulto sobre eles.

Lembrara-se de sua família somente quando precisava da presença deles para mantê-lo longe de Cybele. E re­cebera o que merecia por tê-los negligenciado por tanto tempo.

Todos eles tinham outros planos.

Rodrigo acabara lhes suplicando para que fossem sem explicar a razão por trás de seu desespero. Eles provavel­mente entenderiam no momento que o vissem com ela.

No fim, haviam concordado em ir. E prometido ficar pelo maior tempo possível.

Seus avôs saíram da limusine que ele lhes enviara, se­guidos por três de suas tias. Das vans, saíram os filhos adultos das tias e suas famílias, além de alguns primos com suas crianças.

Cybele saiu pelas portas francesas. Ele cerrou os dentes contra a violência de sua resposta. Vinha lutando contra essa reação pelos últimos três dias, desde aquele confron­to.

Ainda queria invadir o quarto dela todas as noites. O esforço de Cybele para lhe oferecer amizade sexualmente neutra o inflamava mais do que se ela estivesse tentando seduzi-lo.

Agora ela andava na sua direção, vestida com jeans escuro e uma blusa azul que lhe cobria do pescoço aos cotovelos.

Pela reação de seus hormônios, ela poderia estar nua.

Dios. Ele precisava de ajuda. Necessitava da invasão de sua família para se manter longe da porta dela, para se impedir de carregá-la para sua cama.

— Venha — chamou ele. — Deixe-me apresentá-la para minha tribo.

Tribo era o termo certo, pensou Cybele.

Ela posicionou-se ao lado de Rodrigo enquanto conta­va 38 homens, mulheres e crianças. Pessoas continuavam descendo de vans. Quatro gerações de Valderramas.

Era incrível o que um casamento acabava produzindo.

Rodrigo lhe contara que sua mãe fora a primeira filha de Esteban e Imelda, e tinha somente 19 anos quando ele nascera, e que seus avôs estavam com vinte e poucos anos quando se casaram. Uma vez que Rodrigo tinha 38 anos, os avôs deveriam estar beirando os 80. Mas pareciam em grande forma.

Ela observou-o, aproximando-se da família com um sorriso no rosto e braços abertos.

Ela invejou todos aqueles que tinham o direito de ser envolvidos nos braços dele, abençoados pelo conhecimento de seu amor incondi­cional.

Rodrigo virou-se para ela então, rodeado por crianças de todas as idades, seu sorriso chamando-a para participar do encontro familiar afetuoso.

Ela aceitou o convite de bom grado, e descobriu-se sen­do recebida pela família dele com o mesmo entusiasmo.

Pelas oito horas seguintes, conversou e riu sem parar, comeu e bebeu mais do que nos últimos três dias juntos, deu um nome e uma história detalhada a cada pessoa com quem interagia, e contagiou-se pela alegria de viver deles.

Durante o tempo inteiro, sentiu Rodrigo observando-a, mesmo enquanto dava atenção à sua família. Cybele tam­bém não perdeu as ações dele, mesmo enquanto conversava com outros. Continuou sorrindo-lhe, mostrando o quanto estava feliz por ele; todavia, tentando esconder o seu desejo.

Estava conversando com Consuelo e duas primas de Rodrigo, Felicidad e Benita, quando ele se levantou e saiu de seu campo de visão. Logo depois, ela o sentiu às suas costas, antes que as mãos másculas tocassem seus om­bros. De alguma forma, conseguiu não se mover.

— Quem está deixando sua paciente dar as ordens agora?

Ela olhou para cima, vendo a sobrancelha dele arqueada para Consuelo. Teve vontade de puxar-lhe a cabeça para baixo e beijar aqueles lábios deliciosos.

As três mulheres começaram uma discussão com ele. Rodrigo retrucou com gracejos criativos, até que todos estivessem às gargalhadas. Uma das mãos dele lhe acari­ciava o cabelo distraidamente.

No momento em que Rodrigo abaixou a cabeça e disse cama, ela quase suplicou: sim, por favor.

Ele ajudou-a a levantar-se enquanto todos lhe davam boa-noite. Cybele insistiu que ele não precisava escoltá-la até seu quarto, que ficasse com a família. Não achava que teria forças para não fazer papel de tola. Novamente.

No La Diada De Sant Jordi, Dia de São Jorge, a família de Rodrigo estava lá por quatro semanas. Depois das quatro primeiras semanas com ele, estes eram os segundos me­lhores dias da vida de Cybele.

Pela primeira vez, percebeu como era uma família, o que ser aceita como membro de uma família harmoniosa poderia significar.

E eles a tinham aceitado. Completamente. Os membros mais velhos a tratavam com o mesmo mimo de Rodrigo; os mais jovens, com empolgação e curiosidade, adorando ter alguém novo e interessante entrando em suas vidas. Cybele quase não podia se lembrar da vida antes de co­nhecer aquelas pessoas antes de se tornar um deles. Não queria se recordar de nenhuma época na qual Rodrigo não preenchera seu coração.

E ele, sendo o ser humano magnífico que era, sentira a melancolia que nublava a alegria de Cybele, perguntando um dia se seus problemas com a família não poderiam ser resolvidos, oferecendo-se ser um mediador neutro, a fim de buscar uma reconciliação.

Depois de controlar a vontade de chorar e beijá-lo, Cybele lhe dissera que não houvera exatamente uma briga, nada que pudesse ser resolvido. Era uma vida inteira de separação.

Mas a boa notícia era que ela estava finalmente superan­do a dor por ter sido uma criança indesejada. Tinha aceita­do isso, e entendido a visão de sua mãe. Apesar de Cybele ter somente seis anos quando seu pai morrera, ela fora uma criança difícil de um marido decepcionante, um lembre­te constante dos piores anos da vida de sua mãe e de seu maior erro. A filha de um pai que chorara por ele durante anos, dizendo à mãe que preferia que ela tivesse morrido.

Cybele também podia entender o lado de seu padrasto, um homem que se encontrara preso com a criança hostil de um homem morto, como um preço para ter a mulher que queria. Eles eram humanos, admitiu para si mesma, não apenas os adultos que a tinham negligenciado, e tal compreensão a ajudava a deixar o passado para trás.

Como mais uma boa notícia, sua mãe a contatara no­vamente, querendo que as duas se entendessem melhor.

O relacionamento nunca seria o que Cybele desejava, mas ela decidiu fazer sua parte, aceitar o que estava sendo oferecido, o que era possível com sua família.

Rodrigo não concordara até se certificar de que ela es­tava realmente em paz com aquilo.

Agora, Cybele estava de pé no pátio, olhando para a praia, onde as crianças empinavam pipas e construíam castelos de areia.

— Você tem seu livro?

Ela virou-se para Imelda, o sorriso pronto. Passara a amar a mulher naquele curto período de tempo.

Seus olhos foram para o volume grosso na mão de Imelda.

— Que livro?

— La Diada De Sant Jordi. É dia de rosas e livros.

— Oh, sim, Rodrigo me contou.

— Homens dão uma rosa vermelha às mulheres, e mu­lheres dão um livro aos homens.

— Oh, eu não sabia disso.

— Então agora você sabe. Vá escolher um livro, muchacha. Os homens estarão de volta a qualquer momento agora.

— Escolher um livro de onde?

— Da biblioteca de Rodrigo, é claro.

— Eu não posso pegar um livro da biblioteca dele.

— Ele ficará feliz com isso. E, então, é o que você es­colhe que terá significado quando lhe der.

Certo. Por que Imelda sugeria que ela desse um livro a Rodrigo? Havia percebido os sentimentos de Cybele e es­tava agindo como casamenteira? Rodrigo certamente não demonstrara nenhuma emoção especial. Tratava-a com o mesmo carinho que tratava as primas.

Melhor entender aquilo direito.

— Então, uma mulher escolhe qualquer homem que conhece e lhe dá um livro?

— Ela pode. Mas geralmente escolhe o homem mais importante de sua vida.

Pela expressão de Imelda, era óbvio que ela sabia o que Rodrigo significava para ela.

Cybele não podia corroborar sua crença. Isso seria impor-se sobre Rodrigo. Ele provavelmente sabia como ela se sentia, mas uma coisa era saber, outra ter aquilo declarado. E, então, ele não lhe daria uma rosa. E, se desse, seria porque todas as mulheres tinham seus maridos para a festa, ou porque ela estava sozinha. Ela não era a pessoa mais importante na vida dele.

Mas, depois que entrou na casa, Cybele encontrou-se indo para a biblioteca.

Saiu de lá com um livro de sua escolha, sentindo-se exposta cada vez que uma mulher passava e comentava o fato de Cybele ter um livro, como elas.

Então os homens voltaram da cidade, trazendo uma enorme quantidade de comida pronta. E cada um segura­va uma rosa para sua mulher. Exceto Rodrigo.

O coração de Cybele disparou violentamente. Não ti­nha direito de sentir-se desapontada. E nem de embaraçá-lo. Daria o livro para Esteban.

Então ela se moveu, e seus pés a levaram a Rodrigo. Mesmo que não houvesse nada entre os dois, ele era o ho­mem mais importante de sua vida, e todos sabiam disso.

Enquanto ela se aproximava, Rodrigo observava-a com uma intensidade de tirar o fôlego.

Cybele parou a um passo de distância, estendeu o livro.

— Feliz La Diada De Sant Jordi, Rodrigo.

Ele pegou o livro, fixando os olhos na capa, esconden­do sua reação. Ela escolhera um livro sobre todas as pes­soas que haviam contribuído para o avanço da Medicina no último século. Ele ergueu os olhos para fitá-la, clara­mente incerto do significado daquela escolha.

— É só um lembrete de que você estará entre os gigan­tes da Medicina deste século — sussurrou ela.

Ele a fitou longamente, então lhe pegou a mão e pu­xou-a para si. Uma mão abraçou-lhe as costas, a outra se­gurou sua nuca. Então ele beijou-lhe a testa.

— Muchas gradas, querida. Sua opinião é o bastante para mim.

No segundo seguinte, ele a liberou, virando-se para co­meçar as celebrações.

Cybele não sabia como funcionou depois daquele abra­ço. Daquele beijo. Daquelas palavras. Daquela querida.

Evidentemente funcionou, mesmo que não se lembras­se de nada que disse ou fez durante as próximas horas. Então Rodrigo a estava pondo de pé.

— Venha. Vamos começar a Sardana, nossa dança na­cional.

Ela o seguiu, sorrindo-lhe, repleta de felicidade por vê-lo em seu estado mais relaxado e alegre.

A banda consistia de 11 músicos. Eles já tinham as­sumidos seus lugares no palco improvisado no terraço, o qual fora esvaziado para os dançarinos, evidentemente toda a família de Rodrigo.

— Eu contratei o cobla, nosso grupo musical catalão, da cidade mais próxima para vir tocar para nós. A Sardana nunca é a mesma sem música ao vivo. O grupo é sempre formado de quatro flautistas catalães. — Ele apontou para quatro homens, segurando flautas de madeira. — Duas trombetas, um trombone e um contrabaixo.

— E o que é aquilo com o sujeito com o instrumento que parece uma flauta e a pequena bateria atada ao braço esquerdo?

— Ele toca oflabiol, aquela flauta de três furos, com a mão esquerda, e o tamborí com a direita. O som é magní­fico. Espere e verá.

Cybele fez uma careta para o gesso em seu braço.

— Uma coisa é certa: eu não sou uma candidata para uma tocadora de flabiol/tamborí no momento.

Ele pôs um dedo sob o queixo dela e ergueu-lhe o rosto para o seu.

— Você logo será. — Antes que Cybele cedesse à sua vontade e o puxasse para o beijo que tanto queria, ele vi­rou a cabeça. — Agora, preste atenção. Eles irão dançar a primeira tirada, e nós nos juntaremos na segunda. Os passos são muito simples.

Dando um suspiro, ela forçou sua atenção no círculo de dançarinos que estava se formando.

— É geralmente um homem, uma mulher e assim por diante, mas temos mais mulheres que homens aqui, então me desculpe á configuração não tradicional.

— As mulheres imperam — disse ela.

Rodrigo jogou a cabeça para trás e riu do lembrete, continuou rindo enquanto observava as mulheres organi­zando seus homens e crianças.

— Elas realmente imperam.

A dança começou, esquentou então Rodrigo puxou-a para se unir aos rotllanes obertes, os círculos abertos. Eles dançaram os passos que ele ensaiara com ela na lateral da pista improvisada, riram juntos até que as laterais de seus corpos doessem. Tudo parecia um sonho. Um sonho no qual Cybele se sentia mais viva do que nunca. Um sonho em que era parte de Rodrigo, e estava em sintonia com a música, a família dele e com o mundo inteiro.

Então, como todo sonho, as festividades chegaram ao fim.

Após desejar boa-noite a todos, Rodrigo acompanhou-a aos seus aposentos, como de costume, deixando-a a al­guns passos da porta.

Ao entrar no quarto, Cybele ficou boquiaberta. Todo o ar pareceu esvair-se de seus pulmões.

Rosas vermelhas. Em cada superfície. Por toda parte.

Dúzias e dúzias e dúzias de rosas vermelhas perfeitas.

Oh, Deus. Oh... Deus...

Ela saiu do quarto. Chamou-o. Mas ele já tinha ido embora.

Cybele permaneceu ali parada, vibrando com a neces­sidade de ir procurá-lo, de enchê-los de beijos.

Mas... Uma vez que ele não esperara para ver sua rea­ção, talvez não tivesse antecipado que seria tão forte. Tal­vez tivesse apenas pretendido lhe fazer uma boa surpresa. Talvez tivesse enchido os quartos das outras mulheres de flores, também. O que ela não duvidava. Nunca conhece­ra alguém com tanta capacidade de dar.

Ela voltou para dentro do quarto. A explosão de beleza, cores e fragrância a abraçou novamente.

A necessidade se expandiu comprimiu seu coração, seus pulmões.

Não adiantava. Tinha de fazer isso. Tinha de ir atrás dele.

Vestiu um casaco, foi para fora.

O cheiro de Rodrigo, sua vibração, levou-a ao telhado.

Ele estava de pé sobre a balaustrada de pedra, olhando para o mar noturno turbulento, um cavaleiro solitário ba­nhado pela luz prateada do luar, esculpido da noite.

Ela parou a alguns passos de distância. Ele não se vi­rou, continuou imóvel como uma estátua, o único movi­mento era o das roupas respondendo ao vento forte. Ele não poderia ter ouvido os passos de Cybele ou sua respi­ração ofegante sobre o barulho do vento. Mas ela sabia que Rodrigo sentia sua presença. Estava esperando que ela iniciasse aquilo.

— Rodrigo.

Ele virou-se então, os olhos verdes brilhando, a pele bronzeada reluzindo. Ela se aproximou um passo, hip­notizada pela magnificência dele. A um passo de distân­cia, pegou-lhe a mão. Queria levá-la aos lábios. Aquela mão que salvara sua vida, que mudava a vida de inúmeras pessoas todos os dias, devolvendo-lhes seus membros e sua mobilidade, e libertando-os da dor e incapacidade. Cybele contentou-se em apertá-la entre suas duas mãos trêmulas.

— Além de tudo que você fez por mim, suas rosas são o melhor presente que eu já recebi.

A expressão de Rodrigo era de desconforto e gratidão. Então ele disse simplesmente:

— Seu livro ganha longe de minhas rosas.

Um sorriso curvou os lábios dela.

— Você tem problemas em ouvir agradecimentos, não é?

— Agradecimentos são valorizados em excesso.

— Nada sincero pode ser excessivamente valorizado.

— Eu faço o que quero fazer, o que me dá prazer. E certamente não faço nada esperando... Algo em retorno.

Ele estava lhe dizendo que as rosas não indicavam ne­nhum envolvimento especial?

Avisando-a para não ter idéias erradas?

Isso não mudaria nada. Cybele o amava com cada fi­bra do seu ser, e lhe daria tudo que era, se ele aceitasse. Mas, se Rodrigo não queria seu amor, ela lhe daria infinita apreciação.

— E eu agradeço a você porque quero fazer isso, por­que me dá prazer. E certamente não espero nada em retorno, mas aceito. Eu aceitei seu agradecimento pelo livro, não aceitei?

Os lábios dele se curvaram naquele sorriso hesitante.

— Eu não me lembro de ter lhe dado uma escolha de aceitar ou não.

— Humm, tem razão. — Então, sem avisar, Cybele puxou-lhe a mão. Surpresa o fez tropeçar o passo que os separava, de modo que acabasse pressionado a ela do peito até as pernas. Cybele liberou a mão da sua e levou aos cabelos dele, entrelaçando os dedos nos fios sedosos e puxando-lhe a cabeça na direção da sua. Então imitou o gesto dele e beijou-lhe a testa com lábios que tremeram ao pronunciar seu nome.

Deslizou os lábios para o nariz de Rodrigo, e um celu­lar tocou.

Ele quebrou o contato com um sobressalto, fitou-a com olhos que ecoavam o tumulto do mar. Houve momentos de total desorientação antes que o cérebro de Cybele voltasse do choque da interrupção, da separação de Rodrigo. O toque era de seu próprio telefone, que estava no bolso de seu casaco. Rodrigo lhe dera o celular, e tinha sido o único que lhe telefonara até agora. Quem poderia ser?

— Está esperando um telefonema? — perguntou ele.

— Eu nem sabia que alguém tinha este número.

— É provavelmente engano.

— Sim, provavelmente. Só um segundo.

Ela pegou o telefone e atendeu. Uma voz feminina chorosa preencheu seus ouvidos.

— Agnes? O que houve? — Ansiedade instantânea fez Rodrigo tocar o telefone, demandando ser aquele que ouviria a má notícia. Cybele fez a pergunta que esperava que pudesse acalmá-lo: — Você e Steven estão bem?

— Sim, sim... Não é isso.

Cybele cobriu o bocal e voltou-se para Rodrigo.

— Os dois estão bem. É alguma outra coisa.

O susto dele diminuiu, mas não á tensão. Ele afastou-se alguns centímetros, deixando-a atender à ligação, observando-a intensamente, pronto para intervir, se necessário.

Agnes continuou:

— Eu detesto lhe pedir isso, Cybele, mas, se você se lembrou de sua vida com Mel, deve saber como isso acon­teceu.

Medo fechou a garganta dela.

— Como o quê aconteceu?

— Muitas... Pessoas têm nos contatado, reclamando que Mel deve uma quantia exorbitante de dinheiro. E o hospital onde vocês costumavam trabalhar juntos diz que o fundo que ele ofereceu em retorno por ser o chefe do novo departamento de cirurgia-geral foi retirado, e os projetos que estavam em andamento tiveram perdas de milhões. Todos estão nos processando, e a você, como parenta mais próxima e herdeira.

 

—Então, você não tem qualquer lembrança desses débitos?

Cybele meneou a cabeça, sentindo-se esmagada por dúvidas e medos.

Rodrigo parecia não ter acreditado nela. E tinha um pressentimento de que Agnes não acreditara, também. Pensariam que Mel assumira aquela dívida por causa dela? Ou, pior, Mel teria pensado? Se tivesse, como? Por quê?

Era aquilo que Agnes quase trouxera à tona na con­versa durante o funeral de Mel?

Pensaria que Mel, na sua inabilidade de expressar emoções, mostrara-as a Cybele com presentes extravagantes?

E, se esse não fora o caso, Cybele podia pensar em so­mente outra coisa. Ela fizera exigências a ele, extensivas, irracionais e Mel se metera em dívidas para atendê-la. Mas o que poderia tê-lo forçado a fazer isso? Ameaças de deixá-lo? Se aquilo fosse verdade, então ela não teria sido somente um monstro insensível, mas também uma mercenária manipuladora.

Precisava saber. De qualquer modo.

— Você sabe alguma coisa sobre essas dívidas?

Rodrigo meneou a cabeça. Mas seus olhos estavam pensativos. Com desconfianças? Deduções?

— Você sabe de algo. Por favor, conte-me. Preciso saber.

Ele a olhou por um momento, a luz do luar sobre sua beleza máscula. Então meneou a cabeça novamente, como se tivesse decidido. Para desgosto de Cybele, ele ignorou seu rogo.

— O que eu quero saber é por que estes credores leva­ram tanto tempo para aparecer?

— Na verdade, eles apareceram tão logo á morte de Mel foi confirmada.

— Então, por que Agnes e Steven demoraram tanto a relatar isto, e por que se dirigiram a você e não a mim?

— Eles queriam ter certeza das reivindicações, primei­ro e também não queriam incomodá-lo. Pensaram que podiam cuidar disso sozinhos. Chamaram-me no caso de eu saber alguma coisa que somente uma esposa saberia. E porque estou envolvida no processo judicial.

— Bem, eles estavam errados, de todas as maneiras. — Rodrigo falou com veemência. — Não que precisem saber disso. Eles já têm o suficiente para se preocupar, e estavam tentando não me sobrecarregar. Acho que aque­les dois ainda não acreditam quando eu digo que eles são meus pais. De qualquer forma, nenhum de vocês precisa se preocupar com nada. Tomarei conta de tudo.

Ela o olhou fixamente. Ele era real? Poderia amá-lo mais?

Tudo que pôde dizer foi:

— Obrigada.

Ele esfregou os olhos numa careta.

— Nada a agradecer.

— Eu agradecerei, portanto acostume-se a isso. — Ela fez uma pausa. — E, uma vez que estou atirando meus problemas no seu colo, preciso de sua opinião sobre outra coisa. Meu braço.

— Qual é o problema?

— Minhas fraturas se curaram, mas o dano do nervo não está melhorando. Oito semanas atrás você disse que eu não seria capaz de operar por meses. Você foi exageradamente otimista? Algum dia eu recuperarei a precisão necessária a uma cirurgia?

— Ainda é cedo, Cybele.

— Por favor, Rodrigo, seja direto comigo. E, antes de dizer alguma coisa conciliatória, lembre-se de que enten­do do assunto.

— Eu nunca tentaria enganá-la.

— Nem para me proteger de más notícias?

— Nem para isso.

Ela acreditou. Rodrigo jamais lhe mentiria. Então, pressionou-o. Precisando dá verdade. Pelo menos sobre aquilo, se não poderia ter sobre nada mais.

— Então, diga-me. Sou uma cirurgia canhota que não sabe nada além de operar, e preciso saber se em poucas semanas terei de aprender uma nova profissão. Como você já apontou antes, o braço atado à minha mão teve dano extensivo do nervo...

— E eu executei uma reparação meticulosa do nervo periférico.

— Mesmo assim, tenho dormência e fraqueza, tremores...

— Ainda é cedo demais para fazer um prognóstico final. Começaremos seu programa de fisioterapia no momento em que tivermos prova da cicatrização óssea perfeita.

— Temos isso agora.

— Não, não temos. Você é jovem e saudável e seus ossos parecem curados agora, mas preciso deles sólidos como rocha antes que eu remova o gesso. Não será um dia antes de doze semanas após a cirurgia. Depois começa­remos sua fisioterapia. Focaremos primeiro em controlar a dor e o inchaço que acompanham a remoção da tala e restauração do movimento. Então mudaremos para exer­cícios de fortalecimento dos músculos em volta da junta do pulso, e finalmente exercícios para melhorar o controle motor e destreza.

— E se nada disso funcionar? E se eu recuperar con­trole motor e destreza suficientes para ser auto-suficiente, mas não uma cirurgia?

— Se isso acontecer, eu providenciarei para que você mude para outra área da Medicina que lhe trará plena re­alização. Mas não estou desistindo da recuperação completa de seu braço e mão. Não descansarei até que a te­nha de volta ao normal. E não pense sequer sobre quanto tempo levará, ou o que você fará ou onde estará até que aconteça. Terá todo o tempo do mundo para treinar sua mão, recuperar toda a força e controle. Você tem a mim, Cybele. Estou aqui para você, a qualquer hora, o tempo todo, aconteça o que acontecer.

E Cybele não pôde mais se conter.

Lançou-se para ele, seu braço bom tremendo com a fe­rocidade do abraço. E ela chorou. Amava-o tanto era tão; grata por ele existir.

Ele ficou imóvel, deixou-a abraçá-lo e ensopá-lo com suas lágrimas. Então, envolveu-a nos braços, acariciou-a, tocando-lhe as orelhas com os lábios, murmurando pala­vras gentis. O coração dela expandiu-se tão rapidamente com a onda de amor que quase se rompeu. Suas lágrimas se tornaram mais fluentes, seus tremores mais intensos.

Rodrigo finalmente murmurou algo como se agonizan­do, e envolveu-a num abraço que a fez se sentir como se estivesse flutuando no ar, e esperou que todos os seus tremores e lágrimas passassem.

Muito tempo depois, ele dissipara a tempestade de Cybele, aconchegando-a contra seu corpo, tranqüilizando-a com promessas de que estaria sempre ao seu lado.

Promessas que emocionaram Cybele, pois ela sabia que ele as honraria. Rodrigo permaneceria na sua vida e na de seu bebê. Como o protetor, o benfeitor, o tio zeloso.

E em todas as vezes que ela o visse ou tivesse notícias dele ela seria tomada pelo desespero de amá-lo e nunca ser capaz de tê-lo.

Ela precisava ir embora. Agora. Sua mente estava desintegrando-se, e ela não podia arriscar-se a um dano mais profundo. Seu bebê precisava dela saudável e inteira.

— Cybele... — Ele mudou de posição e a masculinidade rígida roçou-lhe a coxa.

Ela arfou excitação a dominando. Vozes dentro de sua cabeça gritavam que aquilo era apenas uma reação mas­culina por ter uma mulher nos braços, que não significava nada.

Cybele não podia escutar. Isso não importava. Ele es­tava excitado. Aquela poderia ser a única chance de tê-lo. E ela precisava agarrá-la. Necessitava da memória, do conhecimento que compartilhara seu corpo com ele, para suportar uma vida sem Rodrigo.

Roçou o rosto no pescoço dele, abriu seus lábios so­bre o pulso forte, sentindo as batidas fortes contra sua língua. Gemeu ao sentir o gosto da pele dele, a textura, o cheiro.

— Cybele, querida... — Ele começou a abaixá-la, mas Cybele resistiu e capturou-lhe os lábios antes que ele dis­sesse algo mais, antes que pudesse negar.

Ela não poderia aceitar "não" como resposta. Necessi­tava desta vez.

Capturou-lhe os gemidos na língua, lambeu-lhe os lá­bios. Arqueou-se na excitação viril, confessando a sua sem palavras.

— Rodrigo... Eu quero você. — Aquilo veio num solu­ço abafado. — Se você me quer, por favor... Tome-me. Não se segure. Não pense. Não se preocupe. Sem conseqüên­cias ou considerações. Sem amanhãs.

Rodrigo rendeu-se a Cybele, deixou-a tomar dele o que queria, correspondendo de corpo, coração e alma.

Mas as palavras trêmulas de Cybele giravam na sua mente enquanto ela lhe beijava o rosto suavemente, exi­gindo uma resposta. Ele sentiu coisas queimando em seu interior enquanto se continha o significado das palavras dela expandindo-se na sua mente.

Carta-branca. Era isso que Cybele estava dando-lhe. Seu corpo, ela mesma. Sem elos.

Sem promessas. Sem expectativas. Por que não queria nada disso? Porque seu desejo era apenas sexual? Ou porque não podia lidar com mais do que aquilo? Mas, e se ela não pudesse lidar mesmo com isso? Se ele lhe desse o que ela pensava que que­ria e terminasse magoando-a ainda mais?

E, embora ele estivesse próximo de perder a cabeça, sem poder contra a força do desejo de Cybele, condicio­nara-se a protegê-la de si próprio.

— Cybele, você está confusa...

Ela selou os lábios dele novamente, detendo-lhe as objeções, seus beijos febris, chamuscando o que restava do controle de Rodrigo.

— De desejo por você. Algumas vezes, sinto que isso irá estraçalhar-me. Sei o que estou pedindo. Por favor, Rodrigo... Apenas dê-me esta vez.

Esta vez o pensou. Ela pensava que ele poderia pos­suí-la uma única vez, e então ir embora? Não era carta-branca, apenas um oferecimento de única vez? Todo aquele desejo do qual ela falara seria então extinguido? Não sentia mais nada por ele porque suas emoções tinham sido enterradas com Mel, mesmo que Cybele não se re­cordasse?

Aquele pensamento deu-lhe forças para soltá-la e se afastar alguns passos.

Os braços de Cybele caíram nas laterais do corpo, enquanto ela de repente parecia frágil e perdida. Então as lágrimas fluíram outra vez, tão grossas que pareciam enrugar-lhe o rosto.

— Oh, não... Você já me mostrou que não me quer e eu, vim para você novamente...

Ela ofegou forte, virou-se e partiu.

Ele deveria deixá-la ir. Conversar com ela quando a excitação de seu corpo tivesse se acalmado. Mas, mesmo que pudesse sobreviver à sua própria decepção, não poderia sobreviver à dela. Não poderia deixá-la pensar que ele não a queria. Tinha de mostrar-lhe a verdade, mesmo se o preço fosse muito alto. Tomaria qualquer coisa que pudesse ter de Cybele, dando-lhe qualquer coisa que ela precisasse.

Rodrigo a seguiu irrompeu no quarto dela, encontrou-a deitada de braços na cama, um braço atirado sobre um dos buquês de rosas vermelhas. Cybele virou-se de lado para observar sua aproximação, seu olhar magoado e cau­teloso.

Ele ajoelhou-se aos pés da cama. As pernas bronzeadas de Cybele estavam expostas, enquanto a longa saia ver­melha catalã, que ele escolhera para ela usar, batia acima dos joelhos.

Ele queria puxá-la para si, invadi-la, marcá-la, devorá-la inteira.

Queria acariciá-la, saboreá-la e dar-lhe prazer.

Cybele arfou quando ele tirou-lhe os sapatos, tentou virar-se para ele inteiramente.

Rodrigo a impediu com uma mão gentil. Ela gemeu baixinho, então o observou com o lábio preso entre os dentes, enquanto ele se inclinava e começava beijando-lhe os pés descalços, continuando uma trilha ao longo das pernas coxas, traseiro e costas, até chegar à nuca. Cybele estava deitava por baixo dele, tremendo e gemendo a cada toque, até que ele traçou as linhas de seu perfil. No momento em que ele alcançou os lábios, ela gemeu alto, virou-se sobre as costas e beijou-lhe a boca com desespero.

Rodrigo liberou-lhe os lábios, ergueu-a em seus braços e saiu da cama.

— Eu quero você na minha cama, querida.

Ela gemeu, meneou a cabeça.

— Não, por favor.

Ele ficou alarmado. Ela não o queria na sua cama? Co­meçou a colocá-la no chão quando Cybele enterrou o ros­to e lábios no seu pescoço.

—Aqui. Entre as rosas.

— Dios, si...

Ele fantasiara em tê-la na sua cama desde o primeiro dia em que pusera os olhos nela. Mesmo quando Cybele tornara-se uma fantasia proibida, sua imagem, e a visualização de todas as coisas que ele sonhava em fazer com ela, mesmo quando a odiara, e odiara a si mesmo e ao mundo inteiro por causa disso, suas fantasias tinham sido seu único alívio.

Mas aquilo era muito melhor que suas fantasias. Tê-la ali, entre a beleza vermelha de sua ostensiva confissão de que ela era a mulher mais importante na sua vida.

Ele deitou-a de costas na cama, observou-a. Única, uma rosa humana encantadora, sua beleza eclipsando a das flores com as quais ele enchera o quarto. Cybele devia ter percebido o significado das flores, sentindo-se encora­jada a declarar seu próprio desejo.

Ele sentiu que ela a despia com os olhos. Olhos que ardiam de puro desejo.

Então estava sobre ela novamente, removendo-lhe saia e blusa, seguidas por sutiã e calcinha, enquanto a beijava dos pés à cabeça, saboreando cada tremor de todas as fi­bras do corpo deleitoso.

Subitamente estava olhando para o que nenhuma fan­tasia invocava. Graças a Deus, ou teria perdido a cabeça tempos atrás.

Rodrigo permaneceu acima, seus braços circulando-lhe a cabeça, suas coxas aprisionando as dela, vibrando, enquanto a visão, o cheiro e sons da entrega de Cybele destruíam suas intenções de ser infinitamente vagaroso e gentil. Seu baixo-ventre pulsava de maneira latejante.

Então Cybele tirou a decisão de suas mãos, colocando uma mão trêmula sobre suas costas numa súplica de poder absoluto.

Ele rendeu-se, moveu-se entre as coxas dela, pressio­nou os seios intumescidos sob seu peito sólido. Então Cybele o conquistou irrevogavelmente.

Os lábios dela tremeram em sua testa, o nome dele era uma melodia de paixão e ansiedade, enquanto ela o envolvia, puxava-o para seu próprio corpo, como se sua vida dependesse da existência dele, de sua proximidade, de saber que ele estava lá, como se não pudesse acreditar que estivesse.

Ternura o envolveu. Ele precisava lhe mostrar pro­var-lhe que estava lá, que era seu.

Já lhe dera tudo que tinha. Tudo que lhe restava para dar era sua paixão, seu corpo.

Rodrigo ergueu-se sobre os joelhos, segurou-lhe a ca­beça com uma mão, o traseiro com a outra, usou uma para o beijo e a outra para a penetração. Banhou a cabeça de sua ereção na umidade deliciosa, absorveu os gemidos de prazer de Cybele ao primeiro contato de suas carnes ínti­mas, absorveu seus rogos para tomá-la, preenchê-la.

Sucumbiu à impiedade do desejo de Cybele e do seu, afastou-se para observar-lhe os olhos enquanto começava a investir no interior do corpo dela, que vibrou com suas investidas, quente e apertado quase além da tolerância, parecendo suplicar por sua invasão, ao mesmo tempo em que resistia, confundindo-o.

Rodrigo tentou diversas vezes, até que Cybele estava contorcendo-se por baixo dele, o corpo todo tremendo e açulado no fluxo de excitação incontrolável e frustração insuportável.

A mente dele encheu-se de confusão.

— Por favor, faça isso, Rodrigo, apenas me tome.

A agonia nos soluços de Cybele foi á última gota. Ele tinha de dar-lhe o que ela precisava.

Investiu contra a resistência feminina, enterrou metade de seu membro dentro do espaço firmemente apertado.

Foi somente quando o grito agudo de Cybele soou no quarto que ele entendeu o que tinha acontecido enquanto a penetrava. E não entendia mais nada.

Aquilo era impossível. Incompreensível.

Ela era virgem?

 

Rodrigo congelou dentro do corpo de Cybele, paralisa­do. Uma virgem? Como?

Ergueu-se sobre braços trêmulos, depois de ouvir o grito de dor de Cybele, observando-lhe os olhos inunda­dos com a mesma confusão, o mesmo choque, juntamente com lágrimas.

— Não deveria ter doído tanto, deveria? — disse ela com a voz trêmula. — Eu não poderia ter me esquecido disso.

Dios. Ele quisera dar-lhe nada mais que prazer. E aca­bara machucando-a.

— Não — foi tudo que ele pôde dizer.

Ela digeriu aquilo, alcançando a mesma impossível ex­plicação que ele.

— Então você teve que ser... Meu primeiro.

Seu primeiro. O modo que ela disse aquilo, com tão es­pantosa timidez, o fez querer inserir-se dentro de Cybele e sussurrar: e seu único.

— Recordo-me de que queria esperar até que conhe­cesse, encontrasse... O homem certo. Presumi que, quando conheci Mel... Mas parece... Que eu queria esperar até que nos casássemos. Mas...

Rodrigo estava esperando que sua excitação se acal­masse antes de sair de dentro dela, de modo a não causar-lhe mais dor. Em vez disso, excitou-se além de qualquer coisa que já conhecera. Sua mente congestionou-se de imagens eróticas, enquanto sentia aqueles seios maravi­lhosos e ouvia a respiração irregular de Cybele.

— Mas, uma vez que há maneiras para paraplégicos te­rem sexo, eu ainda presumi que fizemos isso, de um modo ou... — Ela corou, constrangida. Era doloroso florear a ação quando seus corpos estavam juntos em insuperável intimidade. — Mas está claro que não fizemos, pelo me­nos, nada invasivo, e inseminação artificial é essencial­mente não invasiva...

Apesar se seu membro ainda pulsar de desejo, ele começou a se retirar, e o gemido de protesto de Cybele soou nos seus ouvidos. Ela apertou as pernas trêmulas em volta dos seus quadris, impedindo-o de sair de seu corpo, usando os próprios quadris para pressionar sua ereção.

— Estou machucando você. — Ele quase não reconhe­ceu a própria voz ofegante.

— Sim, oh, sim... — Mas ela o agarrou com firmeza. — É... Delicioso. Você é delicioso. Eu sonhava... Mas nun­ca poderia ter imaginado como seria a sensação de tê-lo dentro de mim. Você está queimando-me, preenchendo-me, fazendo-me sentir... Sentir tão... Tão... Oh, Rodrigo, tome-me, faça tudo comigo.

Ele arfou quando as palavras o enlouqueceram ainda mais. Então, incapaz de fazer qualquer coisa, exceto atender ao comando dela, investiu novamente, tremendo com o esforço de ser gentil, ir devagar.

Ela moveu a cabeça contra os lençóis, espalhando seus cabelos sedosos, erguendo os quadris, tomando mais da ereção plena no seu calor.

— Dê-me... Você inteiro, faça isso... Mais forte.

Rodrigo emitiu um gemido primitivo enquanto se er­guia, agarrava-lhe os quadris, inclinava-se e inseria-se completamente dentro dela.

Diante do grito febril de Cybele, ele se retirou, antes de começar a penetrá-la mais lentamente desta vez.

Levantou os olhos encontrou-a erguida nos cotovelos, observando também, lábios carmesim, inchados, olhos molhados e tempestuosos. Rodrigo manteve o ritmo su­ave, acariciando-a inteira com as mãos, seu corpo, sua boca, curvando-se para lamber seus seios, sorver seus lábios...

— Você sabe o que você é? Usted es divina, mi belleza, divina. Vê o que faz comigo? O que estou fazendo com você?

— Eu amo o que você está fazendo comigo... Se entregue para mim... Se entregue inteiro...

Rodrigo obedeceu, aumentando o ritmo das investidas, até que ela ficou tensa, antes que ondas após ondas de êx­tase abalassem o corpo delicado, enquanto Cybele com­primia sua ereção.

A força, a visão e o som da libertação dela destruíram a última gota do constrangimento de Rodrigo. Ele gritou com um animal selvagem, entregou-se, seu corpo deto­nando em êxtase pleno. Seus quadris convulsionaram ao redor dos de Cybele, e ela sentiu a essência masculina fluir em seu interior, enquanto ele estremecia com espas­mos do orgasmo mais intenso de sua vida. Moveu-a sobre si com extremo cuidado para permanecer dentro dela.

Cybele relaxou sobre o corpo másculo, flácida e trêmu­la. Ele nunca soubera que intimidade física pudesse ser daquele jeito, canalizando-se no seu espírito. Felizmente, não imaginara como podia ser sublime fazer amor com ela. Do contrário, teria enlouquecido há muito tempo.

Tinha sido o primeiro homem de Cybele. E ela preci­sara tanto dele que, mesmo através da dor, sentira imenso prazer na conexão íntima.

Subitamente, saber que Cybele nunca estivera com mais ninguém o enchia de orgulho. Ela fora designada para ser somente sua. E ele precisava lhe contar que era só seu, também. Tinha de oferecer-lhe tudo. Agora.

— Cybele, mi corazón — murmurou ele, acariciando-lhe o cabelo enquanto a pressionava junto ao seu corpo, saciedade, gratidão e amor envolvendo-o. — Cásate conmigo, querida.

Cybele permanecia deitava sobre Rodrigo, abalada pela experiência vivida.

Era virgem. Incrível!

Entregara sua virgindade para Rodrigo, e fora maravilhosa. O conceito de tê-lo dentro de seu corpo, de compar­tilhar tamanha intimidade com ele, transformara sua dor num prazer tão torturante que ela pensara ter morrido nos braços fortes por alguns momentos.

Amor a preenchia enquanto se lembrava de Rodrigo olhando-a com estupefação pelo seu estado virginal. Ou­tra onda de calor a percorreu enquanto revivia sua mortificação.

Então o calor mudou suas nuances quando se recordou de cada segundo do domínio de Rodrigo.

O que ele faria com ela quando dor não fosse mais par­te da equação? Quando ele não mais temesse machucá-la? Quando perdesse o último vestígio de inibição e amasse-a sem reservas?

Ela imaginou se sobreviveria a tal prazer. E não podia esperar para arriscar sua vida no altar da desenfreada posse.

Estava prestes a tentar implorar por mais, fartar-se de tudo que poderia obter uma vez mais nos braços dele. Mas perdeu a coerência enquanto ele a acariciava. Então as palavras de Rodrigo registraram.

Cásate conmigo, querida.

Respostas instintivas e emoções a paralisaram. Cora­ção e mente cessou, tempo e existência congelaram.

Então, foi uma avalanche de emoções... Júbilo, des­crença, alegria, choque, deleite, dúvida, angústia.

Cybele afastou seus corpos fundidos, gemendo pela separação.

— Eu falei sério ao dizer sem amanhãs, Rodrigo. Não espero nada.

Ele sentou-se na cama, sua masculinidade magnífica sobressaindo-se no ambiente suave repleto de rosas ver­melhas.

— E você não quer isso também?

— O que eu quero não é importante.

Ele segurou-lhe o braço quando ela virou-se.

— Tudo é importante. E nós acabamos de estabelecer o quanto você me quer.

— Isso ainda não faz diferença alguma. Eu... Eu não posso me casar com você.

Rodrigo ficou quieto.

— Por causa de Mel? Sente-se culpada com relação a ele?

Ela deu uma risada amarga.

— E você não?

— Não, eu não me sinto. Mel não mais está aqui e isto não tem nada a ver com ele.

— Olhe quem fala... O homem cujas ações, nas últimas dez semanas, tiveram tudo a ver com Mel.

Ele ajoelhou-se, bloqueando-lhe a tentativa de sair da cama.

— Importa-se em explicar isso?

Cybele suspirou.

— Sou viúva de Mel e estou carregando seu filho não nascido. Precisa de mais argumentos?

— Você acha que tudo que fiz por você foi por dever a ele?

Ela deu de ombros.

— Dever, responsabilidade, heroísmo, nobreza, honra. Você está cheio desses valores.

E ele fez a última coisa que ela esperava naquela ten­são.

Deu uma gargalhada.

— E quais são meus valores negativos?

— Você me impossibilita de encontrar um único aspec­to negativo em sua personalidade.

— E isto é ruim... Por quê?

Cybele hesitou, mas tinha de responder com sincerida­de. Era o mínimo que poderia lhe dar.

— Porque, dessa forma, torna impossível que eu lhe negue alguma coisa.

Rodrigo posicionou-se sobre ela, aprisionando-a com seu corpo poderoso. Mas, em vez de sua prévia e terna in­tensidade, aquele jeito sexy e predatório adquiriu um nível inteiramente novo.

— Esse sempre foi meu plano abominável.

— Certo Rodrigo, eu estou confusa aqui. O que nos trou­xe a tudo isso?

Ele uniu as sobrancelhas de modo zombeteiro.

— Quer dizer que não se lembra? Parece-me que pre­ciso tentar mais arduamente... Para deixar uma impressão duradoura.

Ela o fitou incrédula.

— Está me dizendo que, de repente, quer se casar co­migo por causa do prazer explosivo?

Rodrigo apertou-lhe as coxas com seus joelhos, umedecendo os lábios com sensualidade, fazendo-a sentir-se como se ele a tivesse lambido inteira novamente.

— Então isso foi prazer explosivo para você?

— Está brincando? Estou surpresa por minha cabeça estar no lugar. Mas não posso acreditar que foi assim para você. Não sou uma mulher ardente, sem mencionar que não devo ser seu tipo, sendo sua primeira virgem grávida, e tudo o mais.

— Admito que eu, estivesse e ainda estou excitado, como pode ver. E sentir. — Ele pressionou sua ereção na bar­riga dela, fazendo-a se arquear involuntariamente sob a rigidez masculina.

Com um joelho, ele apartou-lhe as pernas.

— E, no caso de você querer conhecer meu tipo — ele provocou seus mamilos rijos roçando o peito coberto de pelos sedosos contra eles, — é uma mulher que não tem idéia do quanto é ardente, e que, por acaso, era virgem e está grávida.

— Então, se não é por dever a Mel, não é algo mais honrável, como fazer a coisa certa, uma vez que você to­mou minha inocência, é?

Ele riu.

— Dios, você diz coisas engraçadas às vezes. Primei­ro não comparo virgindade com inocência. Segundo, sua inocência parece estar quase intacta. Mas não se preocu­pe. Eu sequer arranhei a superfície, mas planejo retificar isso. — Ele mordiscou-lhe o mamilo, fazendo-a emitir um gritinho de prazer. Rodrigo deu um suspiro de satisfação. — Quer oferecer mais razões absurdas para explicar por que eu a pedi em casamento?

— Por que você não me conta a verdade? — questio­nou Cybele. — E não diga que é porque eu sou seu único afrodisíaco. Este não era o caso até poucas horas atrás.

— Até poucas horas atrás, eu não sabia que você me queria — disse ele.

— É a mentira mais deslavada que já ouvi. Sou tão transparente quanto ás janelas que Consuelo mantém abertas. Eu lhe mostrei o que queria semanas atrás. Ora, mostrei-lhe que o queria dois minutos depois que recupe­rei a consciência.

Ele provocou-lhe os mamilos com a língua.

— O fato de você ter demonstrado isso tão rapidamente me fez imaginar se sua mente não estava confusa, e você não sabia o que queria, ou por quê. Pensei que pudesse ter se agarrado a mim para reafirmar sua vida depois de sobreviver a tal catástrofe, ou porque eu era a pessoa mais próxima, ou aquele que lhe pareceu seu salvador.

Cybele afastou a cabeça dele de seus seios.

—Você é meu salvador, mas isto não tem nada a ver com eu querê-lo. — Ela absorveu-lhe a beleza enquanto ele pairava sobre ela. — Recordo que você tinha multi­dões de mulheres que não salvou ofegando aos seus pés. Acho que não querê-lo é uma impossibilidade feminina.

A intimidade e sedução no rosto dele desapareceram.

— Então é somente sexo para você. Por isso queria que fosse apenas uma vez?

— Que parte de mim enaltecendo sua responsabilida­de, heroísmo, nobreza e honra você não entendeu?

— Então você gosta de mim pelo meu caráter, não so­mente pelo meu corpo?

— Eu o amo pelo seu caráter. — Ela gemeu quando ele a olhou com expressão atônita, quase vulnerável. — Eu não pretendia disser isso, portanto não use estas palavras como mais um argumento para me convencer a...

Rodrigo a silenciou com um beijo, então lhe cobriu o corpo com o seu, antes de erguê-la da cama, uma mão apoiando sua cabeça, a outra as costas, segurando-a para que seu peito pressionasse os seios intumescidos.

Cybele tentou afastar os lábios antes que entrasse em combustão, mas foi tarde demais.

— Por favor, Rodrigo, não sinta que me deve nada. E eu não posso ficar lhe devendo mais do que já devo.

Ele a colocou de volta na cama, aparentemente pela força de sua própria convicção,

— Você não me deve nada, está me ouvindo? Tem sido privilégio meu cuidar de sua saúde, minha alegria tê-la na minha casa, e, sim, meu prazer explosivo tê-la na minha cama.

Ela começou a tremer novamente. Era demais. Amá-lo, precisar agarrar-se a ele, acreditar em todas as suas palavras magníficas, reprimindo o medo de que estivesse se aproveitando de Rodrigo... Acabaria causando infelici­dade e corações partidos a ambos.

Ela acariciou o rosto adorável.

— Sei que você está sempre certo, mas está totalmente errado agora. Eu lhe devo muito mais do que cuidados médicos e abrigo. E prazer explosivo. Eu lhe devo por restaurar minha fé na humanidade, por me mostrar o que uma família pode ser e deixar-me ser uma parte sua por algum tempo, por estabilizar tanto minha perspectiva que sinto que finalmente terei um relacionamento com minha própria família. Eu lhe devo memórias e experiências que me fizeram uma pessoa mais forte e mais saudável, que serão parte de mim para sempre. E isto foi antes do que me ofereceu hoje.

Ele agarrou-lhe a mão, cobriu-a com beijos, enquanto também vibrava de emoção.

— As dívidas de Mel... Cybele o interrompeu. — Não sei qual é a minha participação nelas, mas, se tenho alguma, pagarei minha parte, eu juro.

— Não, você não pagará. Eu disse que cuidarei disso.

— Você fará qualquer coisa para proteger seus pais adotivos e proteger-me também, estou certa? E por isso estou em dívida com você. O apoio da carta-branca. E você a está oferecendo para sempre agora. E não posso aceitar. Não posso mais sobrecarregá-lo com meus pro­blemas. Quaisquer que sejam suas razões para me ofere­cer casamento, não tenho nada para retribuir.

As mãos dele convulsionaram-se nos cabelos dela.

— Você tem tudo para me oferecer, querida. Já me ofe­receu tudo, e quero isso para o resto de minha vida. Quero sua paixão, sua amizade, e quero seu amor. Eu preciso de seu amor. E quero seu bebê como meu. Quero que seja­mos uma família. E a única razão pela qual quero tudo isso é porque eu a amo.

Ela meneou a cabeça com veemência, mas Rodrigo continuou:

— Eu a amo, mi amor, pelo seu caráter e pelo seu cor­po. Por ser tão responsável, confiável, heróica e nobre. Você não tem idéia do fogo que começou em mim, o qual eu jamais poderei apagar.

Ela irrompeu em soluços.

— Como pode dizer isso? Eu ia embora, e, se eu não tivesse quase o atacado, você jamais teria...

— Eu jamais deixaria você partir. Não percebeu isso ainda? Eu iria continuar derrubando seus motivos e exi­gências, e, quando estivesse sem argumentos, eu iria fazer-lhe ofertas que você não poderia recusar; portanto, teria de ficar. Eu teria confessado meus sentimentos por você quando á sentisse pronta, para uma mudança de vida para o compromisso para uma vida inteira. Pronta para lidar com meus sentimentos e minha paixão. Você apenas libertou-me de uma agonizante espera. E sou muito grato. Estava sofrendo muito ao conter isso.

Conforme ele falava, as lágrimas de Cybele escorriam pelo rosto. Alegria e confiança começaram a banir a ago­nia do sofrimento e dúvida.

— Você escondeu isso perfeitamente — soluçou ela com um sorriso trêmulo.

— Sou um neurocirurgião. Transtorno oculto é um dos meus nomes do meio.

— Outro? — gaguejou ela com alegria e emoção, final­mente sentindo que tinha o direito de retribuir as carícias de Rodrigo, deliciando-se nas costas musculosas e om­bros de nadador.

Mas precisava esclarecer suas preocupações uma últi­ma vez.

— Esse é um passo muito grande. Você está certo de que levou; em conta todas as conseqüências?

— A única coisa que me impediu de agarrá-la na pri­meira vez em que se ofereceu foi pensar que você não es­tivesse muito cônscia das ramificações, não tivesse idéia do que estava se permitindo, não estivesse pronta para um relacionamento, depois de tamanha perda e trauma. Eu, por outro lado, estou plenamente consciente do que quero. Do que preciso ter. Você, o bebê. Nós.

Cybele gritou e puxou-o para si, erguendo-se para encontrar os lábios dele, devorando-os com os seus pró­prios. Estava implorando quando Rodrigo de repente se levantou, ergueu-a nos braços e caminhou até o banheiro da suíte.

Ele colocou-a na mesa de massagem e encheu uma banheira de água, voltou para tirá-la da mesa, prendendo as coxas femininas em volta de seus quadris, deslizando sua ereção ao longo dos lábios úmidos antes de inclinar-se para frente e pressionar sua virilidade contra a barriga dela, enquanto a beijava com ardor.

Cybele arqueou-se, tentou trazê-lo para dentro de seu corpo. Ele a deteve. Não a deixaria ter o que estava im­plorando.

— Você não disse sim.

— Eu venho dizendo sim... Por um tempo agora — ge­meu ela.               .                                                  

— Não soa como sim para mim.

— Por isso está me punindo agora?

— Eu estaria punindo-a se lhe desse o que você pensa que quer novamente esta noite. Mas não se preocupe, há tantos outros meios que usarei para apagar essa sua inocência...

— Não, por favor... Eu o quero novamente.

— Deixe-me ouvir este sim bem firme e poderá me ter. Pelo resto de nossas vidas.

— Sim.

E, pelo resto da noite, Cybele perdeu a conta de quan­tos sim disse.

 

Três meses e meio após Cybele ter aberto os olhos no mundo de Rodrigo, ela estava tentando não correr ao lon­go do altar em sua direção.

Ela se apressou pelo caminho entre os convidados, num dos jardins que davam vista aos vinhedos de um lado, e ao oceano de outro. Sentindo-se como se estivesse flutuan­do, entrando no paraíso.

Rodrigo insistira em marcar o casamento para duas se­manas depois que ela removesse o gesso, disponibilizando tempo para que a fisioterapia pudesse controlar qualquer desconforto que persistisse. Mas não insistira em realizar o casamento na maior catedral de Barcelona, como plane­jara antes, sucumbindo ao desejo dela de casar-se em sua propriedade. Na terra que agora lhes pertencia. Na casa deles. De seu bebê.

Isso era o que completava a felicidade de Cybele. O fato de que não era apenas ela que estaria sendo aben­çoada com o melhor presente do mundo, mas seu bebê também.

Rodrigo estava lá, parado em seu smoking, seu sorriso mais íntimo e maravilhado conforme ela se aproximava. Cybele só percebeu que Ramón estava parado ao lado dele quando alcançou os últimos passos para segurar a mão estendida de Rodrigo.

Ramón piscou-lhe enquanto a beijava e deixava-os aos cuidados do pastor. Ele tinha ido aos seus aposentos uma hora atrás, onde Rodrigo insistira que ela permanecesse até a noite do casamento, e desempenhara a função do padrinho catalão, entregando-lhe seu buquê e recitando um poema que havia escrito. Cybele gargalhara por ele ter transformado o poema que deveria exaltar suas virtudes e as do noivo num relatório médico hilário e perverso.

A parte aquilo, e ficar ao lado de Rodrigo até que ela o alcançasse, a participação de Ramón tinha acabado. Na Catalunha, não havia alianças para o padrinho carregar.

Rodrigo transferiria o anel de noivado da mão direita de Cybele para a esquerda.

Ele estava fazendo isso naquele instante. Ela mal se lembrava do ritual precedendo a repetição dos votos, cho­rando conforme Rodrigo fazia os seus; perdida em seu olhar, em seu amor.

Ela viu as mãos de ambos se entrelaçarem, enquanto ele deslizava o anel em seu dedo, o diamante azul de dez quilates que fazia parte do conjunto que ela estava usan­do, totalizando cinqüenta quilates. Ele dizia tê-los esco­lhido por ser uma versão mais clara dos olhos de Cybele.

Então a beijou. Como se agora fossem um. Para sempre.

A partir daquilo, tudo foi ficando turvo, conforme os convidados os carregaram para outra sessão de danças Sardana e outras festividades.

Em algum momento, Cybele teve uma conversa breve com os pais de Mel. Eles pareciam bem melhor, e estavam genuinamente felizes por ela e Rodrigo. A família dela es­tava lá também, Rodrigo havia mandado um avião buscá-los. A magia de Rodrigo os envolveu, inspirando-os com um carinho que eles nunca haviam exibido antes.

Então o casamento dos sonhos terminou e ele a carre­gou para seu quarto. Deles, agora. Finalmente.

Ela quase enlouquecera de desejo nas últimas semanas, por não ter dormido curvada em seu corpo, ou tendo-o em seu interior.

Já estava muito excitada agora. Morreria se ele a to­masse de maneira lenta e gentil, como fizera naquela pri­meira noite.

Então Rodrigo a colocou no chão, pressionou-a contra a porta e beijou-a ardentemente.

Ela gemeu de alívio pela ferocidade dele, rendendo-se ao beijo. As mãos másculas passeavam pelo seu corpo, enquanto Rodrigo lhe removia os grampos que segura­vam seu véu, soltando-lhe os cabelos, antes de começar a abrir os botões frontais do vestido de noiva.

Ele abaixou o vestido de seus ombros, segurando-lhe os seios, sentindo o peso e provocando-os. Então, abra­çou-a contra seu peito e murmurou:

— Tem idéia de como foram essas últimas semanas sem você?

— Se você sofreu metade do que eu, então... Bem feito.

Ele mordiscou-lhe o lábio como punição, enquanto ten­tava deslizar o vestido para removê-lo, o qual se prendeu nos quadris dela. Inverteu os esforços, tentando tirá-lo pela cabeça.

— Rasgue-o — disse Cybele.

Os olhos de Rodrigo se arregalaram. Com um gemido, ele partiu a seda branca em duas. Ela gemeu, saboreando sua ferocidade.

Rodrigo removeu a calcinha dela, então se ergueu e livrou-se das próprias roupas, fazendo strip-tease e rasgan­do sua camisa. A luz de velas lançava um brilho hipnóti­co como acompanhamento do show. Para a frustração de Cybele, ele não tirou a calça.

Antes que ela pudesse implorar para que ele continuas­se, ele abaixou-se na sua frente, enterrando o rosto em seu centro feminino, emanando amor e desejo sexual.

Quando ela estava implorando, ele a levou para a cama deitou-a de costas na beirada, ajoelhou-se entre suas pernas e provocou-a com dedos hábeis.

Gemeu de satisfação quando a carne escorregadia aper­tou-lhe os dedos.

— Sabe o que senti-la assim faz comigo? Sabe o que significa para mim o fato de que você me quer, de que é minha?

As palavras a excitaram ainda mais que os toques. Cybele se entregou completamente, agora disposta a acei­tar prazer de qualquer maneira que ele oferecesse, ciente de que Rodrigo desejava sua rendição, seu prazer.

Ele a cobriu com seu corpo, beijando-a com erotismo, enquanto roçava o polegar no clitóris sensível. Engoliu cada gemido, cada palavra trêmula, cada lágrima, até que ela estremeceu em seus braços.

Cybele desabou inerte e saciada. Por uns dois minutos.

Então estava sobre ele novamente, beijando-o, mordendo-o e manipulando-o através da calça. Rodrigo sussurrou:

— Liberte-me.

Ela abriu-lhe o zíper com as mãos trêmulas.

— Brinque comigo, mi amor. Possua-me. Eu sou seu.

— E você sabe o que ouvi-lo falar assim faz comigo?

Rodrigo gemia conforme ela lhe explorava a masculinidade, bombeando sua potência com prazer. Ela deslizou ao longo de seu corpo, saboreou-o com boca e língua, es­tremecendo com a necessidade de tomá-lo inteiro.

Como se compartilhasse de sua necessidade, Rodrigo murmurou:

— Eu preciso estar dentro de você.

Ela subiu, beijando seus lábios.

— E eu preciso de você dentro de mim. Não se atreva a ir devagar e ser gentil... Por favor...

Com aquele último apelo, Cybele se viu deitada sob ele, preenchida além da capacidade, completa, tomada por puro prazer.

— Cybele, mi amor, mi vida — sussurrou ele contra sua boca, enquanto lhe dava o que ela queria com um ritmo e uma intensidade que a fizeram delirar de prazer.

O mundo de Cybele implodiu em ondas do mais puro deleite. Rodrigo abraçou-a apertado, contendo seus tre­mores enquanto investia pela última vez, antes de render-se ao próprio clímax. E sentir o corpo másculo estreme­cendo sobre o seu, a semente jorrando em seu núcleo, preenchendo-a ao ponto de transbordar, a fez fechar os olhos e chorar.

— Cybele, mi alma, por favor, abra os olhos.

Suas pálpebras estavam pesadas, mas ela as abriu para aliviar a ansiedade dele.

— Eu pensei que você tivesse me feito delirar de prazer na primeira vez porque era a primeira vez. Parece que vai ser essa a norma.                                                      

Ela sentiu a tensão ser aliviada do corpo dele. Rodri­go estudou-lhe o rosto ensopado de lágrimas, satisfação substituindo a agitação nos olhos brilhantes.

— Nesse caso, prepare-se para passar metade da nossa vida delirando de prazer.

Ela riu enquanto ele a erguia nos braços e a levava para o banheiro, colocando-a na banheira, já cheia, deitando-a entre suas pernas, as costas delgadas encostadas em seu peito. Moveu água sobre seu corpo, massageando-a com suas pernas e lábios. Pura felicidade a envolvia.

Ele suspirou contente.

— Mi amor milagrosa.

Ela virou o rosto no peito de Rodrigo, prestes a dizer-lhe que ele era o amante milagroso, quando um toque soou do quarto. Chamada do centro médico.

Ele suspirou.

— Eles devem estar de brincadeira.

Cybele virou nos braços dele.

— Deve ser algo importante, para estarem ligando na noite do seu casamento. Você precisa atender.

Rodrigo praguejou enquanto se levantava e ia atender. Voltou franzindo o cenho.

— Acidente envolvendo vários carros, sérios ferimen­tos. Filho e esposa de um velho amigo entre eles. — Ele passou as mãos pelos cabelos. — Maldita sea! Acabei de começar a fazer amor com você.    

— Ei, cirurgia aqui também, lembra? — Ela saiu da ba­nheira, secou-se apressadamente e abraçou-o. — E você não precisa me deixar para trás. Deixe-me acompanhá-lo. Pelo que eles me dizem eu era uma ótima cirurgiã. Posso ser útil de alguma forma.

Rodrigo sorriu.

— Não foi assim que eu visualizei a noite do nosso ca­samento, mi corazón. Mas tê-la do outro lado da mesa em minha sala de operação está em segundo lugar na minha lista, perdendo apenas para tê-la em minha cama.

Depois da emergência, na qual a intervenção deles salvou vidas, eles tiveram duas semanas de total isolamento na propriedade de Rodrigo.

Nas três semanas seguintes, Cybele riscou os dois pri­meiros itens da lista de Rodrigo repetida vezes. Diaria­mente, na verdade.

Eles trabalhavam juntos durante os dias, descobrindo mais uma área de afinidade. A consciência de que podiam dividir suas vidas e carreiras tornou-se uma constante fon­te de satisfação e estímulo. E, então, vinham as noites. A verdadeira intimidade só tinha aumentado o prazer e a criatividade em seus encontros.

E hoje era o aniversário de cinco semanas deles.

Cybele estava em sua vigésima segunda semana de gravidez, e nunca se sentira tão saudável e feliz. Não que isso tivesse convencido Rodrigo a mudar os exames pré-natais de semanais para quinzenais.

— Pronta mi amor?

Ela levantou-se, dissolvendo-se em seu abraço. Rodri­go a beijou até que estivesse agarrada a ele, implorando-o para adiar os exames. Tinha uma emergência que somente ele poderia resolver.

Ele mordeu-lhe o lábio gentilmente, e afastou-a.

— Eu demorarei quinze minutos, depois serei todo seu. Como sempre.

Ela enganchou o braço no dele, inalando sua essência estimuladora.

— Você quer descobrir o sexo do bebê?

Ele a olhou intensamente, como se quisesse ter certeza do desejo de Cybele antes de expressar sua opinião.

— Você quer?

— Eu quero.

Rodrigo sorriu. Ele queria saber, mas preferiu deixá-la decidir. Certamente ela não poderia amá-lo mais, po­deria?

— Então vamos descobrir.

— O que você espera que seja?

Ele não hesitou.

— Uma menina. Uma miniatura da mãe única.

Cybele rendeu-se à meiguice dele, satisfação a preen­chendo.

— Ficará desapontado se for um menino?

O sorriso de Rodrigo respondeu sem equívoco.

— Eu só estou sendo mesquinho. E você sabe como é bom ser mulher por aqui.

Ela fez uma careta, e repetiu o que se tornara o slogan deles:

— As mulheres imperam.

Quatro horas depois, eles estavam de volta ao quarto.

Fizeram amor durante duas dessas horas, só parando porque tinham um jantar com Ramón e outros colegas em Barcelona.

Ela estava inclinada sobre Rodrigo, admirando seu reflexo no espelho, enquanto ele se secava atrás dela, beijando-lhe o pescoço, subindo o zíper do seu vestido, tomando cuidado com sua barriga arredondada. Ela sus­pirou de felicidade.

— Acha que Steven e Agnes ficarão felizes por ser me­nino?

Rodrigo sorriu de leve. Mas ela estava afinada com cada nuance da expressão dele agora, e sabia que a pergunta o perturbara. Porque, indiretamente, trazia Mel à tona.

E a menção de Mel era a única coisa que o deixava tenso desde que tinham se casado.

Que o deixava irritado. O que a intrigava.

Ele teria ciúme do irmão falecido? Toda vez em que o nome de Mel surgia, ele ficava nervoso, e às vezes briga­va com ela. Mas apenas por um momento. Então se des­culpava, e ela o lembrava o que Mel havia sido para ele.

Cybele chegou à conclusão de que a lembrança de Mel ainda era uma ferida aberta dentro de Rodrigo. Uma que doía mais com o passar do tempo, conforme a perda se solidificava. Estando sempre ocupado, sendo a torre de força para a qual todos corriam Rodrigo não lidara com seu próprio sofrimento. Não atingira o encerramento que possibilitara aos outros. Ela tinha esperança de que o bebê pudesse cicatrizar o ferimento, possibilitar esse encerra­mento.

Ele parou de acariciar-lhe a barriga.

— Acho que eles ficarão felizes se o bebê for saudável.

E Cybele precisava tirar mais uma coisa do caminho.

— Eu liguei para Agnes esta manhã, e ela estava mais feliz do que nunca. Disse que as pessoas que estavam processando a família não eram credores, e sim investidores que haviam dado a Mel dinheiro para investir no hospital, e que o dinheiro foi achado numa conta da qual eles não tinham conhecimento. Rodrigo ficou imóvel.

— É verdade.

— Mas por que eles não pediram o dinheiro, em vez de tomar ações legais, insultando os pais que estavam de luto? Um simples pedido teria feito com que Agnes e Steven procurassem nos documentos de Mel, falado com o advogado e contador dele.

— Talvez eles temessem que Agnes e Steven não de­volvessem o dinheiro sem um forte incentivo.

— Além de eu achar este um medo irracional, já que Mel e seus pais são pessoas honradas, deve ter havido condições legais para garantir os direitos de todos.

— Eu não sei por que eles agiram assim. O que importa é que a situação acabou, e ninguém foi prejudicado.

E Cybele viu nos olhos dele. A mentira. Ela pegou-lhe as mãos,

— Você não está me contando á verdade. Por favor, me conte.

Com um estranho olhar sombrio, ele se afastou dela, olhou-a pelo espelho como um tigre enraivecido com al­guém, mostrando as garras.

— Você quer a verdade? Ou quer que eu confirme que aquelas pessoas agiram irracionalmente, que Mel era um homem honrado? Se for isso, deveria fazer como Agnes e Steven, agarrar-se à minha explicação e às suas próprias ilusões.

Ela se virou para olhá-lo.

— Você inventou essa história para confortá-los. As dívidas eram verdadeiras. E você deve ter feito mais do que pagar os credores para que eles mudassem a versão da história.

— Por que se importa com os detalhes sórdidos? Sórdidos? Ah, Deus.

— E... Eu tive alguma coisa a ver com isso? Você ainda está me protegendo também?

— Não. Você não teve nada a ver com isso. Foi só mais uma mentira de Mel. Eu passei minha vida encobrindo os erros de Mel. E agora ele está me alcançando do túmu­lo e me forçando a continuar. E sabe o que mais? Estou cansado disso. De ficar embelezando a imagem dele para você, para Agnes e Steven, de cerrar meus dentes com necessidade de lhe contar o que descobri que ele fez co­migo. Conosco.

Cybele cambaleou para trás com o impacto da agressi­vidade de Rodrigo.

— O que ele fez? E, como assim, conosco?

— Como eu posso lhe contar? Seria minha palavra contra a de um homem que não pode se defender. Isso faria de mim um monstro aos seus olhos.

— Não. — Ela aproximou-se. — Nada o tornaria qual­quer coisa além do homem que eu amo com cada fibra de meu ser.

— Esqueça isso, Cybele. Eu não deveria ter dito nada.

Mas o estrago havia sido feito. Os sentimentos de Rodrigo por Mel pareciam ser piores do que ela temia. E precisava saber. O resto. Tudo. Agora.

— Por favor, Rodrigo; eu preciso saber.

— Como posso começar a explicar, quando você nem sequer se lembra de quando nos conhecemos?

Ela permaneceu olhando-o, a ferocidade da frustração de Rodrigo dilacerando-a. A vontade de se recordar era tão violenta que pareceu esmagar o interior de seu crânio como um martelo gigante.

De repente, a última barricada se estraçalhou. Lem­branças explodiram do último abismo de sua mente, como uma bola de neve em uma avalanche.

Ela lembrou.

 

Sentiu-se entorpecer, o coração disparando violenta­mente. Tudo pareceu girar à sua volta.

— Cybele.

Ela ouviu seu nome vagamente, enquanto memórias a inundavam como água através dos pulmões de uma mu­lher afogada. Numa seqüência brutal.

Conhecera Rodrigo num evento beneficente para o hospital dela. Do outro lado do salão de baile, alto e pode­roso, sobressaindo-se sobre todos. Sentira-se atingida por um raio, então.

Permanecera ali, incapaz de tirar os olhos dele enquan­to as pessoas o rodeavam atraído pelo seu carisma irre­sistível. Entretanto, ele nunca tirava os olhos dela.

Então Ramón juntara-se a Rodrigo, olhara para Cybele também, e ela soubera que Rodrigo estava falando sobre ela. Ele deixara a companhia de Ramón, mapeara um percurso na sua direção. Ela permanecera ali, tremendo, sabendo que sua vida mudaria no momento que ele a al­cançasse.

Então um homem do seu lado desfalecera. Mesmo de­sorientada pelo efeito hipnótico de Rodrigo, sua médica interior assumira, levando-a a resgatar o homem.

Ela executou os primeiros-socorros até que os paramédicos chegaram; então, procurara Rodrigo freneticamente. Mas ele tinha desaparecido.

Decepção a atingira, mesmo enquanto dizia a si mesma que imaginara tudo aquilo, que, se falasse com ele, desco­briria que ele não tinha nada a ver com o homem que ela criara na sua mente.

Dentro de dias, conhecera Mel. Ele viera com uma imensa doação para o hospital e tornara-se chefe do novo departamento de cirurgia. Oferecera-lhe uma posição e começara a persegui-la quase que de imediato. Lisonjeada pela atenção, Cybele aceitara sair com ele algumas vezes. Então ele a pedira em casamento. Na ocasião, Cybele des­confiara do caráter dele e recusara. Mas Mel tinha alegado usar aquela personalidade cruel no trabalho para manter todos na linha, mostrando-se totalmente diferente, sendo tudo que ela esperara num homem, até que Cybele acei­tara.

Então Mel apresentara Rodrigo como seu melhor amigo.

Cybele ficara chocada... E perturbada ao descobrir que não imaginara o efeito que ele exercia sobre ela. Mas cer­tamente ela não exercia o mesmo efeito sobre ele. Rodrigo parecia achá-la detestável. Mel, não cônscio da tensão en­tre as duas pessoas que ele considerava importantes em sua vida, insistia em ter Rodrigo com eles o tempo todo.

Então, Cybele decidira que não podia casar-se com Mel enquanto sentisse aquela atração pelo melhor amigo dele.

E rompera o relacionamento. Então, Mel, dirigindo pe­rigosamente pela ira que sentia, sofrerá o acidente que o aleijara.

Sentindo-se arrasada pela culpa quando Mel a acusara de ser a razão de sua paraplegia, Cybele pegara de vol­ta seu anel de noivado. Casaram-se numa cerimônia assistida somente pelos pais dele, um mês depois que Mel tivera alta no hospital. Rodrigo partira para a Espanha após certificar-se de que não havia nada mais que pu­desse fazer pelo amigo. E, para alívio de Cybele, ele não comparecera.

Mas a melhor das intenções não a ajudara a competir com a realidade de viver com um homem amargo e volá­til. Eles haviam discutido com um especialista as manei­ras de ter uma vida sexual, mas as dificuldades dele o ti­nham agonizado, mesmo que Cybele assegurasse a ele de que aquilo não importava. Ela não sentira a perda do que nunca tivera, ficara aliviada quando Mel havia desistido de tentar, e gastara sua energia ajudando-o a retornar à profissão, enquanto lutava para dar conta de seu emprego.

Então Rodrigo voltara, e o comportamento errático de Mel se intensificara. Ela ò confrontara, e Mel confessara, sentir-se inseguro perto de qualquer homem viril, especialmente de Rodrigo, mas precisava dele mais do que nunca. Ele era famoso por realizar milagres no que dizia respeito a danos da coluna, e estava trabalhando para fa­zer Mel voltar a andar.

Mas havia algo de que Mel precisava ainda mais. Ele estava fazendo progresso com os especialistas em terapia de sexo, mas, até que pudesse ser um marido completo para ela, queria alguma coisa que os unisse. Um bebê.

Cybele soubera que ele estava testando seu compro­misso. Mas seria sábio introduzir um bebê na instabilida­de do relacionamento deles?                                  

A culpa vencera, e ela fizera a inseminação artificial.

Dentro de uma semana, sua gravidez fora confirmada. A notícia tornara Mel insuportavelmente volátil, até que Cybele apontara que a idéia dele o fizera sentir-se ainda pior. Ele se desculpara, alegando que não agüentava tanta pressão, e precisava de férias.

E novamente Cybele sucumbira, suspendera sua resi­dência, mesmo sabendo que perderia sua posição, para ajudá-lo a resolver os problemas. Então Mel jogara ou­tra bomba sobre ela. Queria que fossem passar aquelas férias na propriedade de Rodrigo, pois Rodrigo usaria o tempo deles juntos para continuar lutando por sua re­cuperação.

Quando eles chegaram a Barcelona, Rodrigo lhes man­dara uma limusine, que os levara para o heliporto, onde o avião de Rodrigo estava guardado. Cybele protestara, mas Mel dissera que não precisava de pernas para voar, que voar o faria sentir-se que estava inteiro novamente.

Mas, durante o vôo, em resposta a alguns comentários inócuos, ele se tornara cruel.

Ela segurara a língua e o humor, sabendo que ali não era o lugar para discutirem, mas havia decidido que, assim que o avião pousasse, en­frentaria a situação e lhe diria que o relacionamento deles não estava funcionando, e não por causa da deficiência de Mel, mas por causa de quem ele era. Um homem de natu­reza dupla; um lado que ela amara, porém não podia mais achar, e o outro que ela não podia suportar.

Mas eles não pousaram.

Agora ela ofegou, enquanto imagens do acidente de­tonavam em sua cabeça, acompanhadas de sufocante terror.

Então o redemoinho mudou seu movimento para uma trajetória linear, enquanto todas as lembranças triviais de todos os dias do ano anterior ao acidente irrompe­ram como flashes de luz doentia, obliterando a escuridão abençoada dos últimos meses.

Tudo foi desacelerado, até que parou.

Ela ergueu os olhos para encontrar os de Rodrigo.

— Você se recorda.

— Minha versão dos fatos — disse ela. — Conte-me a sua.

O coração de Cybele parecia que iria saltar do peito. Então ele falou:

— Quando eu a vi naquele evento beneficente, foi como ver meu destino. Eu disse isso a Ramón, que me aconselhou a ir falar com você. Mas, antes que eu a al­cançasse, tudo saiu de controle. Você correu para ajudar aquele homem, e eu fui chamado para lidar com um caso de múltiplo neurotrauma. Pedi a Ramón para descobrir tudo que pudesse a seu respeito, de forma que eu pudesse procurá-la depois. Eu tentei pelos últimos 18 meses não reconstruir o que instintivamente sabia e não podia encarar. Mas, quanto mais eu a conhecia, quanto mais inconsistência descobria desde o acidente, menos podia fingir não saber como tudo aconteceu. Mel estava lá, também, naquele dia inicial. Estava bem atrás de mim enquanto eu afastei-me de Ramón. Deve ter ouvido minhas intenções, e decidido conquistá-la — Rodrigo prosseguiu.

Cybele não podia sequer ofegar. Estava sumamente chocada.

— E ele a conquistou. Usando dinheiro que lhe dei para obter sua nova posição, Mel pôs-se onde teria acesso a você. Eu viajei por seis semanas, efetuando uma cirurgia atrás da outra, o tempo todo ansiando pelo momento em que pudesse voltar e procurar por você. Mel me ligou, contando que estava noivo, mas não citou seu nome. No dia em que voltei para os Estados Unidos para encontrar você, Mel insistiu que eu fosse o primeiro a conhecer a noiva dele. Jamais poderei descrever meu horror quando descobri que era você. Continuo dizendo a mim mesmo que não poderia ter sido intencional, que ele não seria tão cruel. Mas eu me lembro da alegria dele ao recontar como tinha sido amor à primeira vista, como você estava louca por ele... Mel parecia triunfante demais, e eu percebi que estava rindo pelas minhas costas — ele concluiu.

— Foi por isso que... — Ela ofegou. Aquilo era demais.

— Sim, por isso que eu comportei-me como se a de­testasse. Odiei tudo na ocasião. Mel, eu mesmo, você, o mundo. Detestava acordar todas as manhãs e saber que você nunca poderia ser minha.

— Mas você tinha tantas outras amantes.

— Não tive ninguém desde que pus os olhos em você. Tentei me distrair com a companhia de algumas mulheres, mas nada funcionou. Nem meus esforços de desprezá-la, nem sua antipatia em resposta. Então eu parti, e nunca teria voltado. Mas Mel forçou-me a voltar. Aleijou-se, como eu e os pais dele sempre o avisamos de que um dia aconteceria.

Um tremor percorreu seu corpo diante da lembrança.

— Ele disse que eu o fiz perder a cabeça, conduzindo-o para aquilo...

— Não. Dios, Cybele... Isso não tem nada a ver com você, entendeu? Mel nunca assumiu responsabilidade por qualquer problema que criou. Sempre encontrava outra pessoa para acusar, usualmente eu ou os pais.

Rodrigo respirou fundo para conter a raiva, antes de continuar:

— Mel sempre correu riscos insanos. Ao dirigir, nos esportes, nas cirurgias. Um dos riscos insanos foi o jogo, que o deixou com tantas dívidas. Eu dei-lhe dinheiro para jogar, também. Ele me disse que era para comprar coisas que você queria. Mas investiguei. Ele nunca lhe comprou nada.

Então, ali estava a explicação que ele guardara.

— Quanto ao golpe que lhe custou a vida e poderia ter custado a sua, não foi seu primeiro acidente de avião, mas o terceiro. Ele livrou-se de tantos desastres sem um arranhão que mesmo o que o cortou ao meio não o convenceu de que sua sorte havia desaparecido, e que a próxima vez provavelmente seria fatal. Como foi.

Por um longo momento, tudo que ele ouviu foi á respi­ração oprimida de Cybele.

Então acrescentou:

— Ou talvez ele quisesse morrer.                              

— Por que quereria? — questionou ela. — Ele acredi­tava que você o poria de pé novamente. Dizia que você era muito otimista.

— Então ele mentiu para você, Cybele. Novamente. Não havia nada que eu pudesse fazer por Mel. Deixei isso perfeitamente claro.

Cybele fechou os olhos.

— Então ele estava realmente desesperado.

— Acho que foi pior do que isso. Acho que Mel queria levá-la com ele, de modo que eu nunca a tivesse.

Cybele arfou, horrorizada. Rodrigo continuou o tom de voz, amargo.

— Mel sempre teve uma doença. Eu. Desde o primeiro dia em que pus os pés na casa dos Braddock, ele idola­trou-me e teve muito ciúme de mim, alternou entre me imitar e fazer tudo para ser meu oposto, entre me amar e odiar-me.

Aquilo tudo fazia tanto sentido que era horripilante. Como ela achara Mel tão diferente no começo, e como ele mudara, imitando Rodrigo com perfeição. Então, ela se apaixonara por Rodrigo o tempo inteiro. Era inacredi­tável. Todavia, era a verdade. E isso ditou sua próxima ação. A única coisa que podia fazer.

Levantou-se com desequilíbrio, encarou o homem que amava mais que a própria vida. E anunciou:

— Eu quero o divórcio.

A exigência Cybele caiu sobre Rodrigo como uma foice.

Ódio, de si mesmo, o consumiu. Ele fora tão idiota. In­juriara um homem morto, não apenas o homem que con­siderara seu irmão mais jovem, mas o homem que Cybele ainda amava evidentemente mais do que poderia amá-lo algum dia.

Levantou-se, movido pelo desespero.

— Cybele. Lo siento, mi amor. Não tive a intenção...

Ela fechou seus olhos como rejeição, não querendo a apologia ou a explicação.

— Você foi intencional em todas as palavras. E tinha todo o direito. Porque você está certo. Finalmente expli­cou minha decepção com Mel, meu ressentimento em re­lação a ele. Libertou-me de qualquer culpa que eu já senti com relação a ele.

Rodrigo vacilou.

— Você... Não amou Mel?

Ela meneou a cabeça. Então, contou-lhe seu lado da história:

— Parece que sempre senti as manipulações dele, mes­mo se nunca imaginei os motivos para elas. Meu sub­consciente deve ter considerado aquilo uma violação, por­tanto apagou a época traumática até que eu estivesse forte o suficiente. Eu voltei do coma com sentimento de culpa, mas senti alívio ao saber da morte de Mel. Senti raiva dele e queria você desde o momento em que acordei. Agora eu sei. Eu sempre quis você.

Júbilo e confusão o envolveram.

— Você quis? Dios... Então por que está pedindo o di­vórcio?

— Porque eu não importo. Somente meu bebê importa. Eu nunca teria me casado com você se tivesse percebido que seria o pior pai para ele. Em vez de amar o pai de meu bebê, você odiou Mel com uma paixão eterna. E, embora tenha todo o direito de sentir-se dessa maneira, não posso submeter meu filho à vida que tive. Pior do que a vida que eu tive. Meu padrasto não conheceu meu pai, e também não me considerou a perdição da vida dele. Apenas não se importava comigo. Mas foi o amor de minha mãe por ele, o amor pelos filhos que ela teve com ele, que a separou de mim. E ela não me ama nem uma fração do quanto eu o amo.

Ele deveria ter percebido tudo isso. Conhecia as cica­trizes de Cybele em detalhes, sabia que ela não superara o sentimento de alienação que sentira na infância.

— Eu nunca odiei Mel — declarou ele. — Era Mel que me considerava o usurpador do respeito e afeição dos pais. Eu o amei como irmãos amam seus irmãos imperfeitos. Mel tinha muita coisa que eu apreciava, e sempre esperei que ele parasse de competir comigo. Mas nunca pude con­vencê-lo. Ele tentou atingir-me, machucando você. Foi to­lice, trágico, e eu realmente detestei quando Mel a tomou de mim, mas eu não o odeio. Você precisa acreditar nisso.

Ela claramente não acreditou. E tinha todas as razões para desacreditar, depois daquela explosão de amargura e raiva.

— Eu não posso arriscar a vida do meu bebê.

Rodrigo sentiu agonia profunda.

— Você me considera tão pequeno; Cybele? Clama que me ama, e ainda pensa que eu seria tão mesquinho, tão cruel, como descontar o que sinto por Mel numa criança inocente?

Cybele deu dois passos atrás para se afastar das mãos suplicantes dele.

— Talvez você não consiga evitar isso. Ele o feriu, re­petidamente, ao longo de toda sua vida. O fato de Mel estar morto não significa que você possa esquecer. Ou perdoar. Eu não o culparia se você não fosse capaz disso.

— Mas este bebê é seu, Cybele. Ele poderia ser do pró­prio demônio, e eu ainda o amaria, porque ele é seu. Por­que eu a amo. Morreria por você.

A pedra que parecia estar envolvendo-a se quebrou, e ela entregou-se aos tremores e lágrimas.

— E eu morreria por você. Sinto que morreria sem você. E isso somente me assusta mais... O que eu faria para agradá-lo, para manter seu amor. Se eu fraquejasse agora, você nunca seria capaz de amar meu bebê como ele merece. E não posso arriscar isso. Por favor, eu imploro, não torne isso impossível para mim.

Rodrigo estendeu o braço, como se para agarrá-la antes que ela desaparecesse.

— Não posso Cybele.

Ela afastou-se, as lágrimas caindo sobre as mãos dele. Os braços de Rodrigo desceram vazios, dor apossando-se de seu coração, desespero ameaçando sua sanidade.

De repente, ele teve uma inspiração quase divina.

Dios, não podia acreditar em sua própria estupidez.

Tinha a solução para tudo.

Ele bloqueou-lhe o caminho.

— Querida, perdoe-me, sou um grande tolo. Condi­cionei-me tão duramente para nunca deixar a verdade escapar que, mesmo depois que você me contou seus ver­dadeiros sentimentos por Mel, foi preciso vê-lá quase me abandonando para eu perceber que não preciso mais es­conder isso. É verdade que eu teria amado qualquer bebê, seu como se fosse meu. Mas amo este bebê. Eu o quero e morreria por ele, também. Porque ele é meu. Literalmente.

 

— Eu sou o pai do bebê.

Cybele olhou para Rodrigo em confusão.

— Se você não acredita em mim, um exame de DNA irá provar.

E aquilo foi como um golpe no coração de Cybele. Só havia uma pergunta em sua mente:

— Como?

— Alguns anos atrás, Mel sofreu uma reclamação de paternidade. Durante os exames para provar que não era o pai da criança, descobriu que era estéril. Então me dis­se que você estava exigindo prova do compromisso dele com o casamento, a segurança emocional de um bebê. Mel falou que não poderia perdê-la, que só você podia mantê-lo vivo. Pediu-me para doar o esperma. Apenas imaginá-la grávida de meu bebê, sabendo que eu nunca poderia reivindicá-lo, quase me matou. Mas acreditei nele quando Mel disse que morreria se você o deixasse. E, mesmo suspeitando como ele a roubara de mim, eu teria feito qualquer coisa para salvá-lo. Então concordei. Mas, acreditando que você sofria de amnésia psicogênica, devido ao trauma da perda, eu não podia contar-lhe que você tinha perdido o que restara de Mel. Não queria lhe causar mais danos psicológicos. Eu teria me contentado em ser o pai adotivo do bebê quando, na verdade, ele era meu.

Então era por isso. A mudança de Rodrigo com ela após o acidente, tratando-a como se ela fosse á coisa mais pre­ciosa do mundo. Isso explicava tudo com mais convicção do que a alegação dele de que há, amara o tempo todo.

Tudo tinha sido pelo bebê dele.

— Te quiero tanto, Cybele, más que Ia vida. Usted es mi corazón, mi alma.

Ouvi-lo declarar que a amava, agora que sabia a verda­de, era... Insuportável.

Sentindo que sua vida chegara ao fim, ela virou-se e correu.

Rodrigo usou toda a força de vontade que possuía para não segui-la.

Tinha de deixá-la ir. Ela precisava de tempo sozinha para processar os choques, para entender que, apesar de todo sofrimento pelo qual haviam passado, Mel e o desti­no acabaram dando a ambos um futuro feliz juntos.

Ele agüentou uma hora. Então foi procurá-la. E não a encontrou.

Consuelo lhe disse que Cybele pedira que Gustavo a le­vasse à cidade, onde ele a deixara num hotel perto do centro.

Rodrigo estava arrasado. Ela o abandonara. Mas... Por quê? Cybele dizia que o amava, também.

Quando sua cabeça estava quase explodindo com con­fusão e medo, ele encontrou um bilhete na cama deles.

Rodrigo, você devia ter me contado que meu bebê era seu desde o começo. Eu teria aceitado seus cuidados pelo motivo verdadeiro... Um homem protegendo a mulher que carrega seu bebê. Conhecendo você e sua devoção à família, sei que quer este bebê, que quer dar-lhe a família mais estável possível, aquela que nenhum de nós teve. Se tivesse me contado, eu teria feito tudo para cooperar, de modo que o bebê tivesse pais, que o amassem e que se tratasse com respeito e afeição. Eu não preciso ser sua esposa para fazer isso. Pode divorciar-se de mim, se quiser, e eu continuarei sendo sua amiga. Continuarei vi­vendo na Espanha, de modo que você tenha acesso constante ao seu filho. Cybele.

Rodrigo leu o bilhete até que as palavras começassem a queimar seu cérebro.

Após ter sido vítima de tantas mentiras e manipula­ções, Cybele tinha todo direito de desconfiar das emoções e motivos dele. Do ponto de vista dela, ele podia estar fazendo tudo somente para obter o filho.

Mas Rodrigo provaria sua sinceridade nem que aquilo fosse á última coisa que fizesse.

Vinte e quatro horas depois ele estava do lado de fora do quarto de hotel de Cybele, sentindo-se 24 anos mais velho.

Ela abriu a porta, parecendo tão triste quanto ele se sentia.

Ele nunca jogava. Mas também nunca conhecera o ver­dadeiro desespero. Agora, um jogo, com possíveis resul­tados catastróficos, era o último recurso que lhe restava.

Sem uma palavra, entregou-lhe os papéis do divórcio.

O coração de Cybele parou por um instante.

Ela fizera um jogo desesperado. E perdera. Devia aque­la escolha a Rodrigo... A liberdade de ter seu bebê sem permanecer casado com ela. Rezara para que ele escolhes­se continuar com ela.

Ele não escolhera. Agora que sabia que teria acesso ao filho, queria libertar-se dela.

Então Cybele olhou para os papéis e perguntou:

— Você não vai tirar o bebê de mim, vai? Eu sei que qualquer justiça do mundo lhe daria a custódia, mas, por favor, não...

— Cybele, querida, eu lhe suplico... Pare. Desconfia tanto assim de mim?

Ela sentiu-se mortificada.

— Não... Oh, não. Mas... Eu não sei. É como se você fosse, três pessoas em minha mente. Aquele que parecia me detestar, o que me salvou, cuidou de mim, que parecia me querer tanto quanto eu o queria, e aquele que sempre teve um plano, que está me dando os papéis de divórcio. Eu não sei quem você é, ou no que acreditar.

— Deixe-me explicar. — Ele tocou-lhe os ombros.

— Não. — Cybele virou-se. Não suportaria ouvir que ele se importava, mas não o bastante para permanecer ca­sado. Procurou uma caneta ao lado do bloquinho do hotel. Os papéis escorregaram de sua mão, espalhando-se sobre a mesa. Lágrimas escorriam pelo seu rosto. — Depois que eu assinar estes papéis, eu quero alguns dias. Eu lhe telefonarei quando estiver raciocinando com clareza, de modo que pos­samos discutir como lidaremos com tudo a partir de agora.

Rodrigo fechou as mãos nos braços dela, puxou-a para seu corpo. Ela lutou para escapar, mas ele não permitiu, pressionando-a mais contra sua extensão. Cybele sentiu a rigidez contra seu traseiro e não compreendeu.

Ele ainda a desejava? Mas seria porque ela era espe­cial, ou porque ele possuía um apetite sexual insaciável? E agora... Sua rejeição o excitava?

Todos os pensamentos evaporaram quando lábios quentes tocaram seu pescoço, despertando-lhe desejo com beijos e lambidas. Ela tentou afastar-se, mas ele tirou-lhe os pés do chão, carregou-a para a parede e pressionou-a ali com seu corpo, usando um joelho para apartar-lhe as coxas, a ereção pulsando contra a barriga de Cybele.

Ele mordiscou-lhe o lábio, até que ela gemeu, abrindo-se. Então Rodrigo explorou, deu, tomou, beijou-a com vo­racidade. Atordoada de desejo, ela contorceu-se contra o corpo sólido, tudo se desintegrando com sua necessidade de tomá-lo dentro de si. Dedos másculos alcançaram sua calcinha, provocando-a até o clímax. Então Cybele supli­cou por ele.

Em poucos movimentos, Rodrigo deu tudo de si, penetrando-a, provocando-a, enquanto murmurava palavras de amor e luxúria numa mistura de inglês e catalão, enlouquecendo-a no processo.

O prazer reverberou dentro de Cybele com cada inves­tida, cada palavra, cada beijo, levando-a ao topo do mun­do, antes de uma queda frenética e vertiginosa que a fez tremer dos pés à cabeça.

Ela voltou à consciência para encontrá-lo sob seu cor­po na cama, ainda rígido e pulsando em seu interior. Uma pergunta girava na cabeça de Cybele.

— Então, esse foi o sexo do adeus?

Rodrigo movimentou-se abaixo dela.

— Você escolhe as palavras que irão me ferir mais pro­fundamente, não é?

— O que mais poderia ser?

— Talvez o fato de que não posso ter o bastante de seu ato de amor e da intimidade que compartilhamos? Não que isso desculpe o que fiz. Eu não vim aqui pretendendo tomá-la desse jeito. Estava decidido a não misturar as coi­sas. Mas, quando vi você prestes a assinar aqueles papéis, quase sofri um infarto.

Cybele sorriu, apesar de sua confusão.

— Fico feliz que sua descarga encontrou outra saída. — Ela reviveu o momento em que isso acontecera, preenchendo-a com sua essência quente, misturando-se com o prazer feminino. Mas... Espere aí! — Mas você queria que eu assinasse os papéis.

Ele ergueu-se sobre um cotovelo, olhando-a intensa­mente.

— Eu preferia morrer. Todavia, uma vez que não posso lhe provar isso com palavras ou ato de amor, estou dispos­to a agir. E dar-lhe a prova do tempo.

Rodrigo retirou-se, saiu da cama, pegou os papéis e voltou para colocá-los ao lado de Cybele.

Antes que ela pudesse dizer que não queria nenhuma prova, queria somente ser dele, Rodrigo virou-se e pegou suas roupas.

Cybele permaneceu sentada, tremendo enquanto o ob­servava se vestir, o rosto masculino tenso com uma inten­sidade que ela agora acreditava trair o tumulto dele. E, finalmente, entendeu. Assim como ela lhe dera a liberda­de de divorciar-se, os papéis do divórcio eram a prova de Rodrigo de que ela estava igualmente livre. Mesmo que ele preferisse morrer a perdê-la, estava libertando-a, se isso significasse a paz mental de Cybele.

Ela lhe causara tanto sofrimento, mesmo que inadverti­damente. E duvidara de seu amor. Mas agora via que um homem que queria apenas seu filho não teria feito tudo que Rodrigo lhe fizera. Jamais teria confessado preferir morrer a perdê-la. E Rodrigo não mentia. Era um homem honrável.

Mesmo quando lhe escondera sobre a paternidade do bebê, tinha feito isso para protegê-la, disposto a nunca proclamar a criança como sendo de seu sangue, para preservar a ilusão que acreditava ser essencial ao bem-estar dela.

Cybele pegou os papéis, saiu da cama e correu para ele, segurando-lhe uma das mãos quando Rodrigo começava a abotoar a camisa, lágrimas escorrendo por suas faces.

— Estes papéis são o seu gesto para me dizer que estou livre para voltar para você, se quiser, certo?

Rodrigo secou-lhe as lágrimas com a mão livre.

— Eles não são um gesto. Você é livre. E não deve me considerar em sua decisão. Não é responsável por como eu me sinto. — Exatamente o oposto do que Mel e a fa­mília de Cybele tinham pensado, fazendo-a sentir-se res­ponsável por seus sentimentos em relação a ela, e culpada por tudo que acontecia de errado. — Com o tempo, se você acreditar que eu sou o que precisa que posso fazê-la feliz, volte para mim. Caso contrário, assine estes papéis e me envie. Os outros documentos devem provar que você não está sendo pressionada a fazer o melhor por ninguém, senão para si mesma.

E Cybele revelou seu último medo:

— E se, com o tempo, você decidir que eu não sou o que precisa?

Ele riu, como se ela estivesse lhe perguntando se um dia ele seria capaz de voar.

Sentindo-se subitamente segu­ra do amor de Rodrigo, Cybele sorriu. Então registrou o resto das palavras dele: Os outros documentos...

Ela manuseou os papéis, encontrando os da custódia. Papéis nos quais Rodrigo abria mão de seus direitos parentais. Para ela. Incondicionalmente. Cybele escolheria se ele faria parte da vida de seu bebê.

Ela olhou para as palavras, o significado delas grande demais para ser absorvido.

Encontrou-lhe os olhos solenes.

— Por quê?

— Porque, sem você, nada vale á pena, nem mesmo meu filho. Porque confio em você para não privá-lo de meu amor, mesmo se decidir terminar nosso casamento. Porque quero vê-la totalmente livre para tomar esta deci­são, sem temer que, perderá seu bebê, ou se envolver num caso de custódia. Porque eu preciso saber que, se você vol­tar para mim, não fará isso por necessidade ou gratidão, ou pelo bem de nosso bebê, mas porque você me quer.

Então ele se virou, como um homem que não tinha nada pelo que ansiar, mas esperando por um veredicto incerto.

Cybele o seguiu, alegria e aflição a consumindo. Virou-o, saltou sobre ele, abraçou-o com força, como se quisesse fundi-los. Ele gemeu enquanto a abraçava de volta, pressionando-a contra si, tremendo de alívio.

Ela cobriu-lhe o rosto e o pescoço com beijos molha­dos e chorou.

— Eu não apenas quero você! Eu o venero, eu o ado­ro, o amo mais do que a vida. E não é por necessidade ou gratidão. Não como teme. Não preciso de você para sobreviver, mas preciso de você para estar viva. Sou grata por você existir, e por me amar também. Eu não mereço seu amor. Eu... O magoei, não confiando em você, e o fato de que fiquei em choque com as revelações ao recuperar a memória não justifica...

Ele abafou-lhe o resto das palavras com um beijo ar­dente. Então Cybele estava na cama novamente, sobre as costas, com ele preenchendo seu corpo e lhe dando muito prazer, enquanto murmurava palavras de amor.

Horas depois, ela estava deitada sobre ele, livre de dú­vidas e preocupações.

— Você faz eu me sentir... Ilimitada, como o que sinto por você — murmurou ela. — Mas você é demais, doa demais. Seria um crime ter tudo isso sem pagar adiantado com algum sofrimento. Amo o destino que nos uniu e, por algum milagre, fez você me amar também. Adoro todos os minutos que sofri, pois agora me fazem saborear mais cada segundo do que compartilhamos.

Rodrigo a cobriu de carinho, concordando com cada palavra que ela dissera. Eram as mesmas emoções que o preenchiam. Ele não acreditava que eles teriam compartilhado aquela pu­reza e intensidade sem sobreviver a tantos testes e... Ele teve um sobressalto.

Sentiu... Sobre sua palma.

— O bebê — exclamou Rodrigo. — Ele se mexeu. — E pela primeira vez desde que chorara pela morte de sua mãe, suas lágrimas fluíram.

Cybele o empurrou sobre as costas, beijou-lhe o rosto inteiro.

— Não, por favor... Não suporto vê-lo chorar, nem mesmo de alegria. — Aquilo somente aumentou o fluxo das lágrimas. Após momentos de consternação ofegante, ela começou a atacá-lo com cócegas.

Rodrigo gargalhou e girou-a, deitando-a de costas, aprisionando-lhe as mãos sobre a cabeça e retornando o tormento sensual.

Ela contorceu-se sob a mão forte, roçou-lhe o peito com o nariz.

— Não vejo á hora de ter nosso bebê. E não vejo á hora de ter outro. Um que faremos enquanto nos perdemos em amor e prazer.

— Este foi feito do nosso amor... Do meu amor, pelo menos.

Cybele mordiscou-lhe.

— Sim, eu tenho de compensá-lo por minha falta inicial de participação no departamento do amor. Mas, de agora em diante, compartilharei tudo com você. E não somente sobre nosso bebê. Quero me envolver em tudo que você faz, em suas pesquisas, suas cirurgias... — Ela parou. — Estou dando a impressão de que quero persegui-lo...

Ele a abraçou, rindo.

— Oh, por favor, faça isso. Eu também quero me en­volver em tudo que você faz. Nunca me senti tão estimu­lado, tão poderoso, tão satisfeito com meu trabalho como quando você estava lá comigo. E, tudo que vejo, sinto ou penso quero contar-lhe, sabendo que você é a única que vai entender apreciar.

Ela o atacou com mais beijos. Então levantou um rosto radiante, gesticulou para que ele permanecesse onde estava.

Rodrigo observou-a sair da cama, ir até a mala e voltar segurando alguma coisa atrás das costas.

— Feche os olhos.

Ele riu, obedecendo.

Sentiu o peso de Cybele afundar o colchão. Então qua­se caiu do mesmo.

Ela estava lambendo-o. Ao longo do peito e do abdome. Rodrigo gemeu, tentando abraçá-la.

— Mantenha suas armas letais fechadas.

Ele fez isso, o coração disparado pela expectativa. En­tão sentiu uma pinicada em seu peito, seguida por um pra­zer que refletiu em sua ereção.

Mais uma pinicada. Depois outra e outra, trilhando um caminho de dor e prazer pelo seu corpo. Rodrigo nunca sentira nada como aquilo. Podia jurar que ela não o esta­va tocando, como se estivesse movendo suas terminações nervosas com a mente.

Ele tentou tocá-la, frenético pela excitação crescente, e finalmente entrelaçou as mãos nos cabelos dela.

— Peça-me para abrir os olhos — suplicou, então acrescentou ofegante: — Eu não preciso deles abertos para enlouquecê-la de prazer.

— O que faz rotineiramente. — Outra pinicada. — Certo, só porque você ameaça tão bem. Abra-os.

Ele os abriu. E não pôde acreditar no que viu. Gague­jou, enquanto Cybele continuava sua tortura sensual:

— Esse é... O uso mais criativo... De um micro fórceps que eu já vi.

Ela estava puxando os seus pelos com o mais delicado fórceps usado em micro neurocirurgia e levando-o ao de­lírio do prazer.

— É também o melhor método que eu pude pensar para agradecer. — Os olhos de Cybele brilhavam com amor. — Obrigada por toda a paciência e perseverança que co­locou para recuperar a coordenação fina de minha mão.

Ele olhou para a mão dela. Não havia mais sinal de falta de jeito, fraqueza ou dor, enquanto a mão preciosa executava sua forma pioneira de tormento carnal.

Rodrigo puxou-a para cima de seu corpo e beijou-a longamente.

— Obrigado a você, por existir, por me deixar ser seu para sempre.

Cybele acariciou-lhe o rosto, perguntando-se como um ser humano podia conter todo o amor que ela sentia por ele.

— Se você está satisfeito com minha precisão, posso ser sua aprendiza em neurocirurgia?

Ele a envolveu nos braços.

— Seu desejo é uma ordem, mi alma. Eu quero lhe dar o mundo.

Ela tomou-lhe os lábios com um gemido, então sussur­rou contra sua boca:

— Eu já tenho o mundo inteiro. Você, nosso bebê e nosso amor.

 

 

                                                                                Olivia Gates 

 

 

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