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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUATRO DE JANEIRO / Izabella Mancini
QUATRO DE JANEIRO / Izabella Mancini

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Qual é a sensação de ser um idiota fracassado?
Hoje certamente sei que Lorenzo Valencia não sabe nem por um minuto o que isso significa, mas Laura Belmonte, a idiota que te escreve, sente no fundo do coração os rombos causados por seu egoísmo.
É horrível saber que você chegou como uma esperança. Sempre sonhei em encontrar um homem que mudaria minha vida e acabei por te achar, por isso posso lhe assegurar que, além de mudar minha vida, ainda transformou meu futuro... Pena que foi de uma forma lastimável. O meu martírio foi sonhar demais, mas agora estarei com meus pés no chão e não serei mais aquela garota boba e ingênua que você usou, deflorou e jogou fora.
O que mais me dói é saber que para você nada foi suficiente. Para mim era o céu, para você um inferno! Seu único amor era o seu por você mesmo, afirmo com convicção porque agora compreendo e sei que cada vez que olhava em meus olhos não buscava outra coisa que não fosse seu próprio reflexo! Cada beijo, cada carícia... Nada te importava, afinal, seu único objetivo era o de me levar para cama, não era? Qual a sensação de ter conseguido? Qual a sensação de me humilhar como você fez?
O gosto da vitória lhe é bem familiar.
Fui sua bem como outras também foram e você foi meu como nenhum outro havia sido. É horrível pensar que sonhei ao seu lado e mais ainda por saber que temos um laço eterno. Dói não por você, mas por esse pequeno ser que carrego dentro de mim e que já amo incondicionalmente. É horrível amar algo que venha de alguém tão desprezível.
Neste mesmo envelope está o dinheiro que você me entregou para ir atrás de uma clinica e fazer o aborto. Confesso que devido ao medo e minhas fiéis inseguranças cheguei a ir, mas desisti. Não vale a pena assassinar um ser inocente por sua vida ter vindo de algo asqueroso.
Eu, Laura Belmonte, sou melhor do que você! Não sou a covarde e frágil que sempre achou que eu fosse! Vou enfrentar tudo e todos. Não sei bem como, mas eu vou ter essa criança e espero nunca precisar te ver novamente.
Espero que um dia você chegue a conhecer o que é amar alguém, e mesmo que não pareça soar sincero agora, verdadeiramente espero que esse alguém retribua seus sentimentos e que por fim você seja feliz. Somente o amor será capaz de mudar sua forma de ser e pensar. Não guardo mágoas. Com o tempo tenho certeza que elas cessaram. Porém nunca irei esquecer... Mesmo que se passem anos e décadas, seguirá em mim feito uma cicatriz aquele quatro de Janeiro na Espanha.
Até nunca mais,
Laura Belmonte.

 


 


Capítulo um

 

A vida não é fácil, mas nada terá sentido se você nunca arriscar.

O momento havia chegado e não teria mais volta a partir de então... Dei-me conta disso apenas quando o avião levantou voo e avistei minha cidade e tudo o que conhecia ficando para trás. Apesar das lágrimas, agradeci céus por ter a oportunidade de seguir um destino que provinha de minhas próprias escolhas.

Era incrível pensar como as coisas podem mudar de um momento a outro com base em nossas decisões. Cresci em Belo Recanto - uma pacata e tradicional cidade no Sul do Brasil - mas meu destino naquele instante era a Europa.

A chegada à Espanha não poderia ter sido melhor e conheci rapidamente pessoas dispostas a fazer amizade e socializarem da mais positiva maneira. Minhas duas colegas de quarto — Isis e Jeniffer — eram garotas incríveis e alegres. Não foi difícil me adaptar, mas confesso que era estranho presenciar uma virada tão radical. O curso de jornalismo era exatamente o que sempre sonhei e o recomeçar também era uma nova forma de ver o mundo. Havia muito mais por trás das fronteiras de minha cidade, coisas boas e ruins na mesma proporção. Meus pais se orgulharam de minha partida, mas me alertaram sobre os perigos do mundo.

Durante muitos anos insisti em acreditar apenas na bondade das pessoas, mas como tudo em minha vida, quando conheci Lorenzo Valencia as coisas mudaram drasticamente.

— Laura — Isis me cutucou delicadamente olhando para o lado de rabo de olho — Tem um homem lindo olhando para você!

Parei de tomar meu suco por alguns segundos e espiei por cima do ombro. Não acreditei no que meus olhos viram e tive de me ajeitar na cadeira para não cair ao chão pela surpresa. Tinha mesmo um homem me olhando e eu sabia bem de quem se tratava. Não sabia seu nome entre tantos rapazes populares, mas tinha a convicção de que era um dos mais desejados pelas garotas em todo o campus.

— Ele deve estar olhando para você e não para mim! — Sussurrei a Isis, que lançou novamente a atenção para ele.

A garota ao meu lado era linda, bem vestida e popular. Apesar disso, era também humilde e muito bacana. Tinha-me como amiga mesmo nossa situação sendo tão diferente. Era difícil encontrar conterrâneos pelos corredores dominados por Espanhóis, mas falar vários idiomas era um diferencial que me trazia para perto de certos grupos. Pela primeira vez me sentia parte de algo mesmo sendo rotulada como a sistemática.

— Não queridinha... Está olhando para você! — Isis pegou sua bebida e levantou.

— Aonde vai? — Era a primeira vez que aceitei vir a uma festa com o pessoal da faculdade e Isis me deixaria sozinha?

— Deixar você livre para o bonitão vir te pegar — Piscou. Notei que estava um tanto bêbada — Divirta-se!

— O que? — Vi Isis se afastando e gelei de dentro para fora.

Fiquei sem reação ali sozinha em frente ao balcão de bebidas. Parecia que todos olhavam para mim! Girei os olhos em busca de uma amiga, mas todas estavam entretidas com algo ou alguém. Senti-me um lixo por ter aceitado esse pedido, já que sempre recusei as festas nesses poucos meses de curso... Porque fui aceitar logo essa? Preparei-me para sair dali quando fui abordada pelo observador.

— Com licença... Você é a Laura, não é? A que cursa jornalismo? — Me virei lentamente e encarei o homem parado atrás de mim. Engoli a respiração.

Perdi o raciocínio alguns segundos somente observando seus olhos verdes sorrindo para mim. Um encanto, diga-se de passagem. Não vi muitos caras bonitos na vida... Em Belo Recanto era tudo tão diferente e na verdade namorei apenas uma vez e foi aos doze anos, resumindo-se em um selinho e mãos dadas na praça. A proximidade de um homem me desconcertava totalmente.

— Sim, sou eu mesma — Tentei ser forte e demonstrar tranquilidade. Voltei a olhar para frente dando as costas a ele.

— Será que eu... Posso me sentar? — Soava tímido e foi algo que me agradou de imediato.

— Sim, pode — Dei de ombros educadamente. Ele se sentou e ficou me olhando. Chegava a ser desconcertante.

— Sou Lorenzo e bom... — Coçou o queixo — Poderia chegar aqui e inventar mentiras para falar contigo, mas vou direto ao ponto... — Comecei a pensar em como iria sair dali e dar uma resposta bem mal educada para sua cantada idiota que com certeza era inventada, mas fui pega pela surpresa — Tem um chiclete preso no seu sapato e isso vai te fazer cair.

Silêncio entre nós, apenas a música da boate soava.

— O que? — Questionei a mim mesma, soando um pouco alto. Olhei para meu sapato de salto alto preto e sim, havia um chiclete preso a ele e a cadeira, fazendo uma grande meleca! — Meu Deus!

— Eu disse... — Gargalhou enquanto eu estudava um jeito de tirar aquilo dali — Espere ai... Dou um jeito para você — Lorenzo tirou um lencinho do bolso e se abaixou aos meus pés. Fiquei um tanto envergonhada, uma vez que usava um vestido preto tomara que caia e tinha medo dele ver minha calcinha por baixo, mas o rapaz nem sequer ergueu os olhos, limitando-se a remover o chiclete com maestria. Enrolou-o no papel e se levantou — Pronto!

— Nossa, obrigado! — Agradeci sorrindo um tanto tímida por ter sido mal educada inicialmente. O moço apenas estava sendo gentil comigo — Isso teria sido feio, sério! Obrigado.

— Bom... Já que te safei do acidente, será que posso me sentar e pagar algo para você beber? — Parado ao meu lado, assenti prontamente. Mordi os lábios enquanto ele se sentava — O que quer beber Laura?

— Um suco de laranja seria ótimo — Sorri e mostrei meu copo no final.

— Ok! Vamos de dois sucos de laranja, então — Pediu ao barman e sorriu para mim — Então jornalista... Porque está sozinha nessa noite tão apreciável?

— Porque minhas amigas traidoras estão com alguém e o que me sobrou foi o suco... — Lorenzo riu. Sorri também, reparando em sua roupa cara. Usava camisa preta, jaqueta de couro e jeans de marca. Tinha o cabelo mais bonito que já vi e o sorriso mais lindo também... Sem contar aqueles olhos e seu perfume marcante — Mas já estava de saída quando você chegou.

— Graças a Deus cheguei então — Piscou — Assim te livrei do acidente e de uma noite péssima. Agora te faço companhia.

— Que isso, não quero te incomodar! — Ainda estava pensando em o que esse cara poderia querer comigo... — Já estava mesmo indo e...

— Poxa e nosso suco? Acho que me deve essa por ter salvado seu salto...

— Está me chantageando emocionalmente Lorenzo? — Cruzei os braços com olhar sorrateiro. Ele riu.

— Sinta-se presa a mim até o final do copo — O barman depositou as bebidas em cima do balcão. Lorenzo me entregou um dos copos — Quero um brinde! — Ergueu o copo.

— A que? — Ergui o copo também.

— As oportunidades. A vida me deu a oportunidade de te conhecer hoje à noite, isso com certeza tem algum significado... — Bateu o copo delicadamente no meu — A nós!

— A nós! — Repeti totalmente corada!

Em vinte minutos descobri coisas diversas sobre ele... Era filho de um Espanhol com uma brasileira, morava com os pais em Madrid, mas havia nascido em São Paulo. Tinha vinte e um anos, era filho único, seu pai era dono de uma Empresa montadora de aviões e estudava Engenharia Aeronáutica por influencia do mesmo. Estava no penúltimo ano de curso e pelo pouco que disse concluí que era um dos herdeiros mais ricos que deveria ter por ali... O nome de sua família era muito conhecido por estar sempre em evidência na mídia. Como nunca reparei que Lorenzo Valencia estava em minha faculdade?

Fiquei até tímida em falar de mim para ele... Dizer que sou de uma cidade no meio do nada no Brasil, filha única, dezoito anos e meu pai é bombeiro local soava simples demais! Contei que ganhei a bolsa de estudos e tal fato foi à coisa mais radical que já me aconteceu. Qual era a graça disso tudo? Apesar disso, Lorenzo se interessou e me ouviu atentamente.

— Sabe de uma coisa garota do interior? Você é a mulher mais interessante que já conheci... — Ficou de pé e me estendeu a mão — Poderia me ceder uma dança ao som de Celine Dion e o Titanic afundando? — Zombou, pois estava tocando My Heart Will Go On na boate agora para dança de casais.

— É melhor não! — Neguei com um aceno — Não sei dançar, eu... Nunca dancei.

— Nunca? — Questionou se aproximando mais de mim.

— Não... — Corei.

— Para tudo se tem a primeira vez — Tocou em meu rosto delicadamente — Eu te ensino, te guio. Vai dar tudo certo... — Piscou novamente e não resisti.

— Certo, então posso tentar — Aceitei sua mão e o segui, vendo aquele sorriso lindo em seu rosto novamente.

Lorenzo me colocou bem pertinho de seu corpo e passou as mãos por minha cintura. Sorriu todo tímido, mas começou a me guiar delicadamente. Seus olhos não deixavam meu rosto, fixos e brilhantes... Não havia como não se apaixonar por aquele olhar! Senti-me uma celebridade, pois todos nos olhavam dançar. Cochichavam entre si, mas Lorenzo não fazia questão de nada, apenas se contentava em me olhar.

— Estou te deixando sem graça? — Questionou próximo ao meu ouvido.

— Eu diria que mais do que eu gostaria... — Gargalhei baixinho.

— Essa é a intenção... — Mordi os lábios e abracei seu ombro — Eu... Quero dizer uma coisa, mas... Tenho medo que me interprete errado.

— Não, tudo bem! Pode me dizer!

— Laura — Parou de dançar e segurou meu rosto — Pode soar clichê, mas... Nunca acreditei em amor a primeira vista, porém acredito que existe uma conexão entre duas pessoas e isso pode eclodir logo no início — Engoli a respiração. Era mesmo verdade? — Tenho que ser honesto e dizer que sinto algo em relação a você. Te observei todo esse tempo e vi em você uma inocência que não encontro nas outras, vi algo especial... — Sorria levemente — Gostei muito de você e queria saber se... Se você topa sair comigo uma noite dessas.

 


Capítulo dois

 

— Você deu um fora em um dos homens mais lindo e rico dessa faculdade? Posso saber o motivo? — Estávamos na aula de comunicação, mas Jeniffer não conseguia parar de me fazer tal pergunta.

Simplesmente não entrava na cabeça dela que recusei sair com Lorenzo Valencia uma noite dessas e que rejeitei uma carona dele para casa. Qual era o problema disso tudo? Ele era lindo, sim! Rico? Sim! E essa combinação é exatamente o meu medo... Não existe porque em um homem desses prestar a atenção em mim.

— Jen, já falei o que tinha para dizer. Lorenzo não é para mim. Somos muito diferentes ou será que não notou isso ainda? — Ironizei baixinho, evitando que o professor chamasse nossa atenção.

— Mas Laura! Se Lorenzo disse que gostou de você é porque realmente gostou... Não tem essa de somos diferentes — Insistiu.

— Obviamente tem muito disso sim! Claro que tem! — Abaixei os olhos para meu caderno e notei que estava escrito o nome dele em minha folha. A cor de caneta era a mesma que eu segurava, deixando claro que fui eu quem escreveu inconscientemente aquelas palavras.

Não pude negar que passei a noite pensando nos fatos... Sonhando com Lorenzo! Pensei na dança, na forma como chegou até mim com a história do chiclete e não evitei gargalhar... Havia sido uma desculpa idiota, mas incontestavelmente bonitinha.

Apesar de sua cultura, falava português com simplicidade, segurança e era muito inteligente. Havia um feitiço naquele homem que fazia as mulheres caírem a seus pés. Obviamente sabia da reputação de Lorenzo. Sabia que ficava com várias garotas, porém não vi nos olhos dele toda aquela canalhice característica. Vi uma pessoa tímida e agradável. Faltou pouco mais de um sorriso para que lhe desse uma chance, mas não pude esquecer a grande diferença entre nós.

Filha de um bombeiro local... Filho de um Empresário Famoso.

Bolsa em Jornalismo... Pagava a faculdade de Engenharia Aeronáutica.

A pobre... O rico.

A tímida... O popular.

A sistemática... O pegador. Talvez essa fosse a pior combinação entre todas!

Não havia nada que nos unisse, nem sequer a idade, sendo ele três anos mais velho do que eu! Era impossível tal envolvimento dar certo e, se não fosse algo sério, para que perder tempo com uma pessoa que me faria sofrer? Mesmo que quiséssemos, qual seria o sentido disso tudo para mim, que sempre quis namorar para casar? Nenhum.

Sai da aula com Jeniffer, agradecendo por ser o último período. Minha amiga ainda não se conformava com minha atitude na noite anterior e tagarelava mil e um motivos para eu dar uma chance para Lorenzo enquanto caminhávamos para fora do prédio.

— Laura... Não é só porque você é inexperiente que tem que ter medo dos homens — Dizia me fazendo rir — Pode ficar só nos beijos com o Lorenzo, não tem problema!

— O problema não é esse Jeniffer — Entrelacei meu braço com o dela — Mesmo que eu quisesse dar outra chance a ele, duvido que Lorenzo iria querer olhar em minha cara novamente. Duvido que ainda se lembre de que existo e do que aconteceu ontem à noite.

— Eu não teria tanta certeza que ele se esqueceu... — Paramos na porta da faculdade e vimos um carro amarelo estacionado bem em frente à entrada.

Aquele carro amarelo era um dos mais caros do país e o dono não surpreendia ninguém... Quase cai para trás quando me dei conta de quem era!

— Oh meu Deus — Murmurei abraçando ainda mais meu fichário contra o peito.

Lorenzo estava encostado ao carro com seus amigos em volta. Usava óculos escuros, camisa branca e jeans. Segurava uma rosa de cor rosa e me peguei, por um segundo, pensando o que ele estava fazendo ali.

— Ele está olhando para cá! — Nós duas ficamos imóveis com o olhar de Lorenzo em minha direção — Não acredito! Lorenzo veio te ver, Laura! — Mordeu os lábios de maneira eufórica.

— O que eu faço Jeniffer? — Fingi não olhar para ele, dando-lhe as costas e ficando de frente para minha amiga.

— Como assim? Vá lá e fala com ele! — Incentivou começando a andar, me puxando para ir junto.

— Mas...

— Deixe de ser boba Laura! — Descemos as escadas juntas e os amigos de Lorenzo dispersaram quando me viram se aproximar — Boa sorte... — Afastou-se de mim, desviando o caminho.

Com o coração a mil segui em linha reta, me deparando com ele vindo também em minha direção. Sem falarmos nada nos encaramos. Lorenzo tirou os óculos e me estendeu a flor com um largo sorriso.

— Pensei que não iria te ver novamente, garota do interior — Comentou animado. Estiquei a mão e peguei a rosa que me estendia.

— Pensei que não queria mais me ver... — Cheirei a rosa que era demasiadamente incomum! — Obrigado por isso. É muito bonita.

— De nada — Deu de ombros — Quem disse que eu não queria te ver?

— Concluí pelo fora que te dei ontem — Gargalhei um pouquinho e ele rodou os olhos.

— Não sou do tipo que se abate no primeiro momento... Você mexeu comigo e não desistirei tão fácil! — Era incrível a habilidade que Lorenzo tinha com as palavras.

— Ouvindo-o falar assim até me sinto especial — Não acreditei que falei aquilo! Corei no mesmo momento e Lorenzo se aproximou mais, quase colando nossos corpos. Consegui ver meu rosto refletido em seus olhos... Era como se apenas pudesse me ver.

— Especial... — Repetiu com um pequeno sorriso, tocando-me o rosto. Estremeci, mas tentei persistir — Essa é a palavra que te define, garota do interior.

Garota do Interior.

Aquilo poderia soar como um insulto a meus ouvidos, porém não era assim que de fato acontecia. Gostei de ouvir Lorenzo me chamando daquela forma... Parecia ter certa doçura em sua voz, um pouco de satisfação, talvez! Era o meu melhor rótulo desde que entrei na faculdade. Apertei mais meu fichário quando afastou uma mecha de cabelo de meu rosto e colocou atrás da orelha.

— O que você quer comigo Lorenzo? — Sussurrei querendo chegar mais perto, envolvida com seu charme — Porque fica me rondado? Não acredito que seja sem qualquer interesse, por isso fale a verdade, por favor...

— Eu já disse o que quero — Acariciava minha bochecha — Quero você.

— Lorenzo...

— Quer sair comigo? — Propôs novamente, tímido.

— Não posso! — Afastei sua mão de meu rosto. Sabia que não podia, mesmo querendo. Não havia como dar certo entre nós.

— Não quer? — Abaixou as mãos e me olhou totalmente decepcionado.

— Não é isso...

— Você tem namorado?

— Não, claro que não! Nunca tive um namorado sério e... — Corei com a pergunta. Lorenzo sorriu abertamente, como se fosse o maior prêmio do mundo, e se ajoelhou aos meus pés. Corei mais ainda, incrivelmente envergonhada pela situação Todos estavam vendo a cena! — Lorenzo, levante-se do chão!

— Sei que não sou o melhor cara dessa faculdade, sei também que tem motivos para desconfiar de mim, mas peço que me dê uma chance de provar que também tenho um lado bom! Eu quero realmente sair com você, Laura, por favor, aceite meu pedido! — Disse bem alto, para todos ouvirem enquanto segurou em minha mão.

Todos me olhavam e, por vergonha e pena de dar um fora nele na frente de todos, respondi prontamente.

— Certo Lorenzo, mas levante desse chão agora e... — Me agarrando pela cintura, Lorenzo rodou-me em seu colo quando levantou de maneira animada. Nunca passei tanto tempo sendo a atração principal de todos de uma forma benéfica.

— Obrigado por me dar uma chance, garota do interior! Prometo a você que não irá se arrepender de nosso encontro, eu prometo! — Sussurrou ao meu ouvindo quando me colocou no chão.

Lorenzo estava girando meu mundo em todas as direções. Qual delas seria a correta?

 


Capítulo três

 

Liguei para minha mãe e disse rapidamente que teria um encontro naquela noite. Empolgada, quis saber os detalhes e me perguntou a ficha completa sobre Lorenzo. Empolgou-se mais ainda quando forneci as informações sobre ele e disse se tratar de um bom partido.

Sexta-feira, no dia combinado previamente, em meio a minha primeira aula de Sociologia o celular apitou. Era uma mensagem chegando. Uma mensagem de Lorenzo.

Bom-dia, garota do interior! Sou apenas eu quem está ansioso para hoje à noite?

Confusa, fiquei pensando no que responder enquanto me deliciava com a voz dele ecoando em minha mente. Tinha que ser o número de Lorenzo, afinal, quem mais se referia a mim como garota do interior? Mordi os lábios e comecei a digitar.

Como conseguiu meu número?

Tenho meus contatos, Laura. Já falei que não irei desistir assim tão fácil.

Sorri de canto já meio boba com suas palavras. Suspirei. Outra mensagem chegou...

Pelo menos mente que está ansiosa para me ver... Prometo não te decepcionar hoje.

Estreitei o olhar e mandei uma nova mensagem.

Não gosto de mentiras. Estou sim ansiosa para te ver... Pronto, satisfeito?

Mordi os lábios. O que esse homem estava fazendo comigo e com minha sanidade? Estava me deixando louca e mexendo em minha vida sem culpa!

Ainda não. Quero ver seus olhos novamente e te ouvir dizer que não está rolando nada entre nós dois. Duvido que consiga dizer sem corar!

Gargalhei sozinha com suas palavras e o professor me repreendeu. Guardei o celular e não respondi mais nenhuma mensagem. Aguardei o final da aula com impaciência, ansiosa para ver meu celular. Quando finalmente consegui havia apenas uma mensagem dele.

Não vai me responder? Bom, de qualquer forma te vejo a noite minha garota do interior. Passo para lhe pegar as sete na frente do alojamento. Vou para aula. Beijos.

Minha garota do interior? Minhas pernas simplesmente estremeceram!

***

Eram sete da noite quando desci para frente do alojamento um tanto hesitante, confusa e nervosa! Oficialmente seria meu primeiro encontro com um homem em toda a vida. Nunca sai com ninguém e me deixei distrair por essas coisas, mas Lorenzo era mais do que isso. Seu jeito estava ganhando de minha resistência, assim como sua insistência e seriedade. Se queria tanto me conquistar, porque não lhe dar uma chance?

Vi o carro parado do outro lado da rua e pensei antes de caminhar até lá... Aquele vestido branco não estava puritano demais? Era um pouco curto, tinha um pequeno decote e era tendência, mas... Branco? Onde estava com a cabeça quando escolhi isso? E a sandália baixa? Porque baixa? Meu cabelo estava bom ondulado nas pontas? A maquiagem brilhava demais? Meu brilho labial transparente não deveria ter mais cor?

A porta do carro se abriu quando me aproximei, interrompendo minha linha de raciocínio. Lorenzo surgiu a minha frente ainda mais lindo do que antes. Usava camisa xadrez azul por baixo do paletó, algo brega, mas que lhe caiu muito bem. Seu cabelo estava molhado e mesmo assim uma bagunça. Cheirava maravilhosamente bem... O mesmo perfume amadeirado e marcante. Sorri abertamente.

— Uau! — Me olhou dos pés a cabeça e minhas bochechas queimaram — Você está... Linda - Quando disse pude ver algo totalmente diferente em seus olhos. Era como se fosse outro homem me olhando naquele instante, algo distinto do habitual.

— Obrigado, você é muito gentil! — Era tão estranho ver essas cenas nos filmes e viver na vida real!

— Pronta? — Abriu a porta do passageiro para mim. Assenti e entrei. Lorenzo fez o mesmo — Que tipo de música você gosta de apreciar, garota do interior? — Perguntou com um sorriso presunçoso e mexendo no lindo rádio de seu carro.

— Sei que isso é patético, mas prefiro as românticas — Falei rindo. Lorenzo riu também.

— Romântica? Certo... Vamos de melodia romântica — Lorenzo mexeu no rádio e a música que deixou, coincidentemente, foi aquela que ouvi o dia todo pensando nele. Snow Patrol, Chasing Cars.

Era justo ele cantar a música enquanto dirigia? Era justo me olhar nas partes mais românticas e sorrir timidamente? Certamente, sendo justo ou não, meu coração já estava demasiadamente comprometida com Lorenzo Valencia.

O restaurante escolhido por ele para nosso jantar era lindo e de muito bom gosto. Lorenzo mostrava-se muito agradável e com total senso de liderança fazia tudo como se me protegesse. Incrivelmente me agradava ser protegida por ele.

— O professor me deu advertência no primeiro ano porque joguei uma caneta para o meu amigo sentado longe na hora da prova — Comentava despreocupado. Nosso prato era muito semelhante, algo que me chamou a atenção.

— Advertência na faculdade? Mas isso não é coisa de colegial? — Questionei querendo interagir. Não era difícil conversar com ele, uma vez que as coisas entre nós pareciam ir naturalmente.

— Foi o meu argumento na época antes de meu amigo levantar e jogar a carteira nele! — Engoli a comida e comecei a rir, notando também que nossos pratos estavam no final.

— O seu amigo jogou uma carteira no professor de estatística? Incrível! Isso me faz sentir vingada por fazer Jornalismo e ter aula de estatística — Lorenzo piscou para mim.

— Finalmente te impressionei, garota do interior. Não pensei que seria tão brevemente — Limpei a boca com o guardanapo.

— Confesso que também não pensei — Dei de ombros.

— Agora que terminamos... Que tal dar uma volta pelo parque?

O pedido foi irrecusável. A noite estava bela de uma maneira especial, havia muitas estrelas no céu e o parque aos arredores da faculdade estava cheio de casais. Lorenzo me emprestou sua blusa e andamos juntos, lado a lado. Curiosamente ao decorrer do passeio sua mão estava em volta de meu ombro. Não o afastei, apenas deixei que o fizesse. Falamos sobre minha cidade pacata e minha família... Lorenzo ficou um tanto pensativo e quando o questionei.

— Por mais que Belo Recanto seja uma cidade escondida que nunca ouvi falar, nem sequer isso impediu que nossos destinos se cruzassem — Postou-se a minha frente me obrigando a parar de caminhar. Observei seus olhos claros sob a luz da lua. Eram mais encantadores dali. Mordi os lábios quando tocou meu rosto — Mesmo que você não acredite Laura, estou apaixonado por ti.

— Está o que? — Sussurrei desacreditada.

— Apaixonado por você. Enamorado de ti — Repetiu a palavra em Espanhol e me fez derreter! Somente olhei seu rosto sem reação e palavras para expressar a surpresa que sentia.

— Como pode estar apaixonado por mim? Você sequer me conhece direito e... — Ergueu meu queixo de modo a me fazendo olhá-lo.

— Conheço o suficiente para saber o quão maravilhosa você é... — Não tive tempo de pensar!

Lorenzo se aproximou e me beijou prontamente e sem hesitação alguma. Foi direto ao ponto, me abraçando contra seu corpo e não pude evitar retribuir. Mariposas dançavam em meu estômago, algo que sempre pensei ser exagero, porém não era agora que tudo fazia sentido aos meus olhos. Abriu espaço entre meus lábios e juntou sua língua a minha, envolvendo-me em seus braços de modo a não me permitir escapar. Nada me faria escapar.

De repente todas as inseguranças se esvaíram, assim como todos os medos. Se não desse certo, qual era o problema? Porque não viver uma experiência nova com alguém tão incrível? Quando nos separamos sequer conseguia encará-lo diretamente. Meu coração corria e meus lábios ainda se encontravam adormecidos pelo ataque repentino. Estremeci.

— Porque você tem tanto medo de ficar comigo? Sei que sente alguma coisa também... Sei que não sou o único envolvido aqui! — Segurou minhas mãos. Deixei de encarar o chão e o olhei, finalmente.

— Nós somos muito diferentes Lorenzo — Esclareci ainda entorpecida pelo beijo. Como conseguia mexer comigo desta forma? — Você entrou na minha vida sem bater e agora gosto de você... Mas também sei que nossos mundos são muito diferentes.

— Isso não importa! — Segurou meu rosto novamente — Estamos no século vinte e um onde isso de status social é pura idiotice! Meus pais não ligam se eu ficar com uma moça mais humilde e não estão nem ai para essa história obsoleta! — Esclareceu com um longo sorriso — Muito menos eu...

O que pensar sobre suas palavras? De repente a ideia de não pensar tão longe veio a minha mente. Porque ficar pensando nisso agora? Porque me ligar ao futuro agora, com apenas dezoito anos?

— Jura?

— Mas é claro! — Me abraçou. Deitei o rosto em seu peito — Porque a gente... Não deixa acontecer? Se der certo, ótimo! Se não der vemos o que acontece.

Conclui que se queríamos realmente ficar juntos "deixar acontecer" era a saída adequada.

Três semanas.

Nosso envolvimento estava indo muito mais longe do que eu esperava. Acordar todo dia com uma mensagem no estilo: "bom dia minha garota do interior" ou "que horas você sai da faculdade hoje? Vou te pegar para o almoço" não era nada ruim. Sentir-se querida por alguém, requisitada e amada era algo totalmente novo e incrível em minha vida!

Estávamos juntos, mas Lorenzo não havia me pedido oficialmente em namoro. Não questionei, pois o status de namorada faltando me livrava das responsabilidades e de outras coisas mais... Livrava-me da tal intimidade! Essa palavra me perseguia por todos os cantos agora. Até quando iria continuar temendo isso acontecer? Passei a ler muito mais sobre o assunto e a me interessar, de fato.

Vamos à festa do lago ou não? Sem você não vou...

Pensei muito bem antes de responder. Nosso relacionamento não era público apesar de andarmos colados ultimamente. Não havíamos dito para ninguém que estávamos ficando. Não por causa de Lorenzo, mas por mim. Não queria ser falada na faculdade e ter fama de oportunista ou sei lá o quê! A festa do lago seria para todos e me peguei pensando se era justo privar Lorenzo de sua diversão por um capricho.

Vou sim Lorenzo. Por você, vou sim.

Me orgulhei da resposta. Ele sempre foi romântico comigo e nunca retribui a altura. Estava na hora de mudar essa situação e não seria difícil, uma vez que estava louca por Lorenzo e tudo ao seu redor!

Obrigado minha garota do interior. Apesar da festa, essa noite quero ficar somente com você. Só penso em você.

Mordi os lábios e peguei novamente a revista feminina que falava sobre primeira vez. Algo dentro de mim sussurrava que seria impossível dizer não a Lorenzo se algo mais íntimo acontecesse... Alguma coisa sussurrava que eu também queria e o que me matava era saber que essa coisa estava certa!

Naquela noite não me preocupei tanto com a roupa, mas sim com o que estava por baixo dela. Havia algo estranho sussurrando para que eu ficasse bonita e me sentisse bem hoje. Nada poderia mudar as coisas como estavam escritas e tudo parecia maravilhoso.

Coloquei um vestido preto por cima da roupa intima decorada e que ganhei de Isis e me sentei na cama olhando meu próprio reflexo no espelho. Meu corpo todo tremia e era como se previsse o que iria acontecer.

Lorenzo nunca havia forçado a barra, mas o momento havia chego. Tive vontade de ligar para ele e cancelar, porém assim que peguei o celular vi uma mensagem que me fez mudar de ideia.

Ouvi Chasing Cars e pensei em você. Sempre em você. Qual seu truque comigo garota?

Não respondi, pois Isis chegou toda arrumada também.

— Laurinha — Cumprimentou-me e notou prontamente meu nervosismo — Nossa como você está linda! Tudo isso é para o Lorenzo? O que houve?

— Obrigado Isis e... Não sei o que houve, só estou um pouco nervosa — Isis sorriu e começou a mexer em seus brincos.

— Não consigo achar os brincos perfeitos para a festa. O que acha destes? — Me mostrou um par de brincos pretos.

— Muitos lindos — A vi sorrindo satisfeita. Começou a passar rímel — Coloquei aquela lingerie que você me deu, lembra? — Mordi os lábios quando falei.

— O que? A preta? — Assenti absolutamente corada! — Uau! Não me diga que você e o Lorenzo já estão naquela fase... — Se aproximou de mim toda contente e sentou-se ao meu lado.

— Não... Ainda não — Escondi o rosto com as mãos. Isis ainda estava no mesmo lugar — Acho que hoje... É hoje!

— Tomara que seja incrível amiga! Te desejo toda sorte! — Percebeu que eu estava muito calada — Porque essa cara?

— Eu não sei...

— Ele está te pressionando? — Questionou novamente pegando em minha mão.

— Não! Claro que não, mas...

— Você não quer?

— Claro que sim, mas é tudo tão confuso... — Abriu um sorriso.

— Isso é normal Laura! Pare de ficar vendo o lado ruim e veja o lado bom! — Ficou de pé, caminhou até a janela e abriu as cortinas — Veja que lindo quatro de Janeiro... Veja que céu Espanhol maravilhoso e que Estrelas Espanholas mais lindas! Essa noite é sua noite! A noite mais linda da sua vida e que você vai passar com um cara que está enamorado de ti — Contei a ela sobre essa passagem — Lorenzo te trata melhor do que todos e certamente fará ser especial. Não tem como ser ruim e não dar certo!

— Será?

— Tenho certeza disso... Você merece isso! Merece uma noite incrível com um cara que te adore!

As palavras de Isis conseguiram penetrar em minha mente. Peguei meu celular e escrevi uma nota no calendário, justamente no dia quatro de janeiro: melhor noite da minha vida.

 


Capítulo quatro

 

Quando olhou nos meus olhos pela primeira vez naquele quatro de janeiro tive a certeza de que havia algo de diferente com Lorenzo... Não sabia se tratar do que, mais o brilho naquele olhar não era o de sempre e aquele modo de me devorar com os olhos estava ainda mais intenso. Estendeu a mão em minha direção e beijou-me a testa delicadamente, me trazendo junto dele.

— Você está linda — Sussurrou delicadamente. Era impressão ou havia algum tipo de dor em sua voz?

— Você também está muito bem — Quando me aproximei e notei toda sua sensibilidade, foi como se todos meus medos se esvaíssem. Porque ter medo de ficar com ele, porque não me deixar levar por essa sensação? — Aconteceu alguma coisa?

— Não — Negou prontamente, como se tentasse esconder — São somente problemas imbecis no qual me meti e agora é difícil de... Resolver. Na verdade, eu não queria que fosse assim, mas não tenho como evitar.

— Certo — Sem entender nada do que queria dizer, fingi ser compreensiva. Fingi não querer saber de tudo. Toquei seu rosto — Tudo bem, os problemas se resolvem. Não tem essa de algo ser impossível ou difícil demais.

— Obrigado por me entender — Tocou minha mão em seu rosto — E por não me pressionar... Por ser incrível — Sorriu pela primeira vez. Não resisti e me estiquei para beijá-lo... Meu príncipe particular — Você é perfeita sabia?

— Não tanto assim — Sorri contra seus lábios.

— Sim... É perfeita para mim — Afastou-me delicadamente e olhou em meus olhos fixamente, cheio de um significado que não pude identificar inicialmente — Quero que essa noite seja perfeita. Quero passar com você momentos para nunca esquecermos esse quatro de Janeiro... Juntos — Envolveu minha cintura com os braços e sussurrou ao meu ouvido... — Quero ter você somente para mim.

Estremeci, tomada por expectativas. Então minha premonição estava correta? A noite do dia quatro de Janeiro seria a melhor de minha vida? Algo me dizia cada vez com mais intensidade que sim... Que essa seria a nossa noite. Respirei fundo e sorri... Não pude evitar morder os lábios e sentir o coração acelerando.

— E a festa do lago? — Soei ridícula com aquela pergunta, ingênua. Lorenzo me abraçada do mesmo modo, mantendo as mãos em minha cintura, quase em meu quadril.

— Não quero a festa, não quero ninguém além de você! — Ainda me olhava de um jeito indecifrável... Havia emoção em seus olhos, um misto de insegurança e necessidade — Somente nós dois.

— Onde? — senti seus lábios descendo por minha garganta.

— Em qualquer lugar... Qualquer lugar...

Não pude crer no modo como estava distinto... Parecia que toda a sinceridade que faltava em Lorenzo estava aflorada nessa noite. Era como se houvesse outra pessoa ali, não o cara divertido e atrapalhado de sempre.

Soava como um homem forte e seguro, disposto a tudo para me provar o quão maravilhoso poderia ser. Alguém capaz de me levar para a cama apenas com o olhar e sim, meu corpo não passava de uma marionete em suas mãos desde que pulamos para o banco de trás de seu carro e passamos a nos beijar alucinadamente... Sem pensar em mais nada, somente em nossos lábios se movendo em sintonia.

— Independente de tudo o que acontecer — Parou de me beijar e olhou em meus olhos com intensidade o suficiente para me matar de prazer — Promete para mim que nunca vai esquecer essa noite?

Aquela frase soou absurdamente estranha inicialmente, porém havia tanta verdade em seu olhar que não pude questioná-lo, apenas aceitar tudo o que vinha dele.

— Nunca vou esquecer — sussurrei tocando seu rosto, próxima a sua boca. Uma de suas mãos estava espalmada em minha coxa, quase subindo por dentro de meu vestido. Sua pele queimava contra a minha e, apesar do medo, o que mais queria era sentir seu toque subindo mais e mais... O desejo já havia me arrebatado. Estava totalmente cega de amor... — Mesmo que eu queira, isso nunca vai sair da minha mente.

— Se um dia eu for um idiota contigo, por favor, nunca me julgue pelo que serei. Apenas saiba que meu eu verdadeiro é o que sou essa noite — Assenti a suas palavras. Segurei seus dedos que percorriam meus lábios e depositei um beijo em cada um deles. Não havia como explicar o que acontecia, soava tão certo. Aquele homem era definitivamente outro.

— Shhh... Não fala nada.

Colei os lábios nos dele novamente, buscando voltar ao beijo delicioso onde começamos tudo isso. Sua mão subia lentamente por minha coxa, buscava atrito com minha pele e correu para sustentar meus seios ainda cobertos. Estremeci com o contato de sua grande mão com aquela pequena parte de meu corpo... Também desci a mão por seu corpo um tanto tímida, hesitante... O que fazer nessa situação?

— Laura olhe para mim — Sussurrou parando o beijo. O obedeci ainda entorpecida por sua presença — Juro que se você não quiser seguir em frente é melhor parar agora.

Mesmo que não fosse para sempre, o amor é raro, não se encontra em qualquer esquina. Naqueles olhos verdes encontrei aceitação, doçura e amor.

Devido a minha fragilidade, quando dei por mim estava em algum lugar com ele... Acho que se tratava de seu alojamento. Subimos de mãos dadas, meu corpo todo tremia quando abriu a porta. Entrei sendo guiada por sua mão imponente em minha cintura. O ambiente escuro se iluminou quando acendeu a luz e era maior do que meu quarto três vezes! Lorenzo tirou a jaqueta e meu casaco, depositando-o sobre sua poltrona.

— Está com medo? — Disse chegando mais perto de mim com um sorriso tímido.

— Sim... Não... — Repeti totalmente perdida com as palavras. Dei um passo para trás e sentei em sua cama macia. Lorenzo fez o mesmo, ajeitando-se ao meu lado — É que... Você deve saber... — Mordi os lábios e olhei em seus olhos, corada e com medo do que poderia achar de mim. Com medo de ser rejeitada — Vai ser minha primeira vez.

— Eu sei — não demonstrou surpresa, apenas se aproximou mais de modo a me beijar novamente. Correspondi à altura, me aliviando aos poucos.

— Como sabe? — Questionei em meio ao ataque de seus lábios.

— Por isso...

Em resposta, Lorenzo separou-me minimamente de mim, ainda me permitindo sentir sua respiração contra meu rosto e levou uma de suas mãos a um de meus ombros, deslizando a alça do vestido para baixo. Estremeci totalmente, principalmente quando havia pele demais exposta, quase evidenciando meu seio, e Lorenzo abaixou-se para beijar aquele local, escavando a língua até revelar-me para si. Tremi demais contra seus lábios, quase vergonhosamente.

— Não posso prometer que será perfeito como você merece — Voltou-se para mim novamente, levando sua mão ao local onde havia tomado com a boca. Acariciava-me e me desfalecia aos poucos... — Por minha vez, nunca fiquei com uma mulher como você.

Não quis ouvir mais nada! Não podia mais ficar nessa emboscada ou iria enlouquecer... Tirei o sapato enquanto nos beijávamos e me deitei de costas em sua cama com o corpo dele por cima do meu. Com pressa nos desfizemos de nossas roupas, quase como dois loucos em busca de satisfação. Corri as mãos por seu peito e puxei a camisa, jogando- a no chão enquanto Lorenzo tratava de tirar meu vestido... Sentia-me mais exposta do que nunca antes, totalmente dependente de outra pessoa e sabia que não conseguiria ser a mesma depois desse dia quatro de janeiro.

— Lembra que disse um dia sermos totalmente diferentes? — Assenti ofegante — Concordo totalmente... Você é muito melhor do que eu, muito mais digna. Nunca vai haver outra mulher como você.

Da primeira vez realmente não sei como aconteceu. Lorenzo apenas abriu minhas pernas com cuidado e acomodou-se entre elas. Disse algo totalmente descoordenado, talvez houvesse dito que não iria me machucar... Seu corpo se fundiu ao meu e era inexplicável a sensação.

Aquele momento absurdamente doce ardia como inferno dentro de mim, dilacerava meu coração na ilusão da perfeição. Fechei os olhos apenas pensando na sensação da pele ardente de suas costas contra minhas mãos, do modo como seu suor escorria dele por meus seios, de como seu peito arfava e da conexão perfeita realizada por nossas bocas naquele momento de confusão. Em alguns segundos, envolvida pela sinfonia de gemidos nos embalando no quarto, deixei de tentar redescobrir onde eu começava e ele terminava.

"Nunca se esqueça de mim"...

Meus olhos se abriram sob a luz forte da manhã.

Olhei ao redor buscando compreender qualquer coisa e respirei fundo, sentindo uma doce ardência em todo meu corpo.

Mas... Onde estava Lorenzo?

Estiquei a mão para o lado e tudo o que senti foi um vazio e uma folha de papel roçando meus dedos. Naquele momento meu coração gelou, meus olhos se fecharam e lágrimas vieram aos mesmos. Agora a parte de meu corpo que mais ardia era o coração. Sentei-me na cama e constatei que ele não estava no quarto, me deixara sozinha. Mais uma vez minhas suspeitas estavam corretas... Lorenzo conseguiu o que queria me deixou. Fui como as outras, apenas uma passagem.

Não tive forças para pegar a folha, que nitidamente era um bilhete, e lê-la. Não queria chorar também, mas fora inevitável. Mesmo que o tempo todo houvesse existido uma voz mínima dizendo para ficar longe dele, sua atitude me surpreendia. Como pôde ser tão falso? Mesmo ainda não tendo decifrado sua mensagem, sabia muito bem do que se tratava... Tirei forças não sei de onde e peguei o bilhete, que continha pouquíssimas palavras.

Desculpe por tudo. Juro que não queria te machucar, mas tem que ser assim. Não posso seguir com isso, me perdoe. Não me procure mais. Esqueça. Tudo não passou de uma aposta.

Lorenzo.

Aposta... Sorri sozinha, sentindo as lágrimas caindo por meu rosto. Se conseguisse me socar, me furar e me machucar fisicamente agora com certeza o faria, porém meu coração doía mais do que qualquer machucado. No fundo eu sempre soube... No fundo sabia que depois de me entregar a ele tudo iria acabar, mas não imaginava que fosse tão baixo a ponto de me apostar. De apostar o meu amor.

O pior era que apesar de tudo o amei de verdade, estava cega de amor.

Ergui a cabeça e sequei as lágrimas.

Tudo o que havia restado de minha maravilhosa noite do dia Quatro de Janeiro eram lembranças, uma carta e um lençol manchado de sangue.

 


Capítulo cinco

 

Dia depois...

Tentei me convencer de que as risadas e cochichos não eram sobre mim. Tentei pensar que ainda era uma menina normal na faculdade, mas já não era uma realidade. Meu antigo mundo não passava de ilusão!

Todos estavam falando de mim pelas costas, apontavam o dedo em minha cara e riam da maldita aposta feita por Lorenzo! Não sei como aquilo se alastrou tanto e não queria acreditar que tenha sido ele o causador de todo esse constrangimento. No fundo sabia que tinha algo a ver com tudo isso e que deveria estar em algum canto rindo também de minha situação. Sai como a usada e idiota e ele como o ganhador de seja lá o que for.

— Laura, por favor, sei que você é mais forte do que isso! Esses idiotas não são um terço do que você é! — Isis dizia quando acariciava meu cabelo. Deitada em seu colo, minha única reação era chorar — Poxa amiga, não se renda desta maneira... Você pode suportar.

— Não Isis... Não posso suportar! — Gritei ao mesmo tempo em que me sentava e a encarava — Será que é tão difícil entender que minha vida toda foi assim, que sempre fui humilhada por todos ao redor? Nunca tive uma vida fácil! Meu sonho sempre foi chegar à faculdade e ter amigos, ser uma menina normal... Era tudo tão perfeito e ai vem esse maldito e acaba com tudo de um momento a outro! — Abracei meus joelhos encolhendo-me no sofá e escondendo o rosto dela.

— Mas você ainda é normal Laura. Não fale de si mesma desse modo — Tentava a todo custo me acalmar.

Ao mesmo tempo em que queria gritar com ela, sabia que não seria justo. Isis era a única que havia me restado entre todos. Jeniffer não falava mais comigo com medo da fama que levaria, assim como os demais colegas de meu antigo circulo social. Ninguém se aproximava a não ser para fazer uma piada suja ou me chamar para ir para cama. Pensavam que eu era uma mulher qualquer por tudo que havia acontecido.

O fato de ter ido para a cama com Lorenzo desestruturou toda a fama que construí, acabou com minha tranquilidade e me puxou de volta para o pesadelo da infância e adolescência.

— Não minta para mim Isis! — Suspirei derrotada — Todo mundo está falando de mim pelas costas! Todo mundo fica apontando e me zoando por causa da aposta!

— O que isso tem a ver Laura? — Gaguejou um pouco, talvez com medo de admitir — Já se foram semanas! Garanto que daqui um mês ninguém vai lembrar mais nada! — Tocou minhas costas — Não se entregue deste modo... Não largue tudo por causa de um cretino igual ao Lorenzo.

— Não é o Lorenzo, não é... — Abracei-a e voltei a chorar.

Não dava para explicar como sofri durante a infância. Nunca tive amigos, era aquela menina que ficava sentada sozinha ao fundo da sala e conversando com meu material escolar. Nunca participei das brincadeiras de roda, nunca dormi na casa de amigas ou brinquei de bonecas no jardim. Com fama de bobona fui para o colégio e o fato de meu pai ser bombeiro e muito rígido afastava os garotos. Meu próprio jeito sistemático e sem me importar com coisas fúteis afastava as meninas da mesma maneira. Meu tipo era aquele que todos caçoavam, riam e pisavam quando caia.

Sempre que havia uma piada de mau gosto meu nome era incluído e quando minha nota era a maior da classe as meninas me prendiam no armário... Em meio a isso e aos almoços solitários no banheiro da escola sonhei com a faculdade. Sonhei em ir embora para longe, onde ninguém me conhecesse e ser comum, apenas uma menina qualquer misturada à multidão falante e agradável.

Agora meu sonho estava quebrado e eu não podia suportar nem mais um minuto naquele inferno! Não podia mais contemplar meu mundo ideal se virando contra mim... Não podia mais ser o alvo, não conseguia! Sim, eu era forte, mas depois de dezoito anos minhas forças se foram! Não havia mais aquela chama em mim... Não existia mais nada pelo que lutar. O que mais doía era ter experimentado ser comum e agora cair novamente no precipício.

— Preciso ir para a aula — Levantou-se e pegou sua bolsa — Por favor, me diz que vai ficar bem? — Aproximou-se e tocou meu rosto.

— Não vou ficar bem Isis — Mal me movi, apenas suspirei sem olhá-la.

— Sinto muito! — E saiu do quarto com lágrimas nos olhos.

Encostei a cabeça no sofá e procurei meu fone de ouvido pela superfície do mesmo. Encontrei e o encaixei em minha orelha para não pensar em mais nada, porém, como se houvesse sido planejado, a música de fundo me levou diretamente para o dia quatro de janeiro.

Chasing Cars.

Os olhos de Lorenzo estavam cravados em minha mente... O gosto de seus lábios impregnado em minha boca... Há quanto tempo não nos víamos? Para falar a verdade, desde que sai do alojamento naquela manhã tentei evitar pensar nele, tentei afastá-lo de minha mente e fugir. Talvez quisesse o mesmo, pois depois do dia quatro nunca mais o vi por perto. Nunca mais tive a graça de enxergar-me em seus olhos.

Tirei os fones com agressividade, me lembrando da forma como cantou aquela musica para mim na noite em que saímos.

Não poderia ter fingido tudo! Não poderia ter dito aquelas coisas olhando nos meus olhos e ser tão falso! Porque não me esperou acordar e terminou olhando em minha face?

Não sei o que me deu, simplesmente sai do quarto com minha mochila e desci para frente do alojamento. Caminhei em direção ao outro campus totalmente alucinada, ignorando os olhares e comentário ao redor. Escondi-me com minha touca do casaco andando sob a chuva fraca. Não havia quase ninguém lá fora, mas seu carro amarelo reluzia ao longe.

Andei com mais pressa e vontade. Queria jogar o bilhete amassado no bolso do meu casaco na cara dele e chamá-lo de nojento, mas quando o avistei, quando cheguei a dez metros de distancia de seu carro, me dei contar que Lorenzo estava se agarrando com outra em cima do capô! Parei de caminhar lentamente e com os olhos fixos naquela cena.

Senti lágrimas nos meus olhos, meu coração doía e me senti enjoada! Passei a chorar em silêncio, fazendo força para não soluçar. A boca dele se movia no pescoço da garota que estava sentada no capô do carro de costas para mim e as mãos subiam por suas pernas. Senti mais e mais enjoo... Mais e mais ódio... E os olhos dele se abriram e me olharam fixamente por alguns segundos.

Parou o que estava fazendo, tirou as mãos do corpo dela e apenas me olhou. A menina ficou sem entender e confusa o abraçou. Seus olhos não me deixavam e existia havia algo ali... Algum sentimento!

Detive-me em pensamentos. Sentimento? Que tipo de sentimento Lorenzo teria por mim se estava se enroscando com outra em seu carro? Pena? Culpa?

Enxuguei as lágrimas e dei as costas a ele, caminhando de volta para o meu alojamento. Apesar de correr ouvi passos atrás de mim e meu nome pairando no ar.

Tranquei-me no alojamento o resto da noite sem acreditar que fui tão idiota a ponto de ir atrás dele.

Cheguei à conclusão que merecia isso tudo e até mesmo sofrer desse jeito! Era uma sádica e procurei sofrer. Coloquei-me na posição de sair com ele, de me comprometer e fazer amor, rendendo-me a Lorenzo como uma tola mesmo sabendo que iria terminar de forma trágica. Fui atrás dele novamente sabendo que iria me machucar, sabendo que não iria encontrar o homem de antes. O Lorenzo que me amou naquele quatro de janeiro nunca existiu... Foi apenas uma máscara!

Desisti.

Excluí Chasing Cars da minha playlist e me desfiz de tudo que lembrava Lorenzo. Apaguei aquele nome do meu vocabulário e esqueci o que significava o dia quatro de janeiro. Decidi concertar meu coração e nunca mais correr atrás dele. Nunca mais!

Dois meses depois...


— Quer que eu entre com você?

Minhas mãos tremiam mais do que tudo. Minha mente rodava sem sentido e não havia como não chorar... Como pude ser tão idiota?

— Não Isis, obrigado — Minha amiga apertou ainda mais a mão na minha e suspirou desolada com a situação.

— Tudo bem Laura. Se você quiser entro contigo e...

— Não Isis, sem problemas — Neguei novamente, pois seria demasiadamente horrível viver aquele momento. Acompanhada por ela seria mais desconcertante ainda! Um resultado positivo significaria decepcionar a todos que se importavam comigo — Meus pais vão me matar! — Suspirei cobrindo o rosto.

— Calma Laura, vai dar tudo certo! — Sussurrou ao meu ouvido — Você não está grávida e tenho certeza que isso vai dar negativo!

— Sinto que sim Isis, eu sinto... — Continuei chorando.

— Você disse que Lorenzo se protegeu naquela noite — A cortei.

— Somente depois da primeira vez.

— A primeira vez não conta!

— É claro que conta Isis... É claro! — A encarei desolada. Isis limpou a base dos meus olhos com cuidado — Depois de dois meses de atraso não tem como ser alarme falso! — Meu nome foi anunciado pela enfermeira. Isis olhou nos meus olhos.

— Tem certeza que prefere ir sozinha? — Assenti e fiquei de pé pegando minha bolsa — Vou ficar aqui te esperando.

Andei em direção ao consultório da médica com as pernas trêmulas e o rosto baixo. Sentei-me na cadeira timidamente e passei a responder suas perguntas. Meu exame de gravidez estava em suas mãos naquele momento... Ela já tinha a resposta. Falando em Espanhol, perguntou-me quantos anos eu tinha. Respondi dezoito e ela suspirou.

"Lo siento . .. Usted tiene once semanas de embarazo."

Concentrei-me apenas na palavra "embarazo". Sabia muito bem o que significava! Sai do consultório em seguida com encaminhamento para o pré-natal e em total estado de choque... Uma de minhas mãos estava pousada sobre meu ventre quando Isis me olhou e ficou de pé com as mãos em frente aos lábios.

— E então? — Questionou vendo lágrimas caindo de meus olhos. Demorei alguns segundos para responder.

— E então quatro de Janeiro nunca será apenas uma lembrança — Sussurrei antes dela passar os braços ao redor de mim e chorar junto comigo.

O que você vai fazer?

Pegue o telefone e conte a seus pais!

Largue tudo, volte para Belo Recanto e tenha seu bebê em paz!

Aborte! É sua única opção de salvar tudo o que construiu para si...

Conte a Lorenzo! Obrigue-o a se comprometer! Faça um escândalo!

Fique com o bebê... Ele não tem culpa nenhuma.

— Não sei nem o que pensar! — Isis comentou fechando a porta do quarto e olhando fixamente para mim — Há quanto tempo você não aparece nas aulas Laura?

Não olhei para ela, pelo contrário. Continuei com os olhos fixos na janela vendo a chuva cair fortemente lá fora. Meus olhos doíam assim como a cabeça... Havia um balde ao meu lado para o caso de voltar a vomitar. Os enjoos de início de gravidez eram terríveis, principalmente porque aquela dor no corpo todo não me deixava pensar direito... E pensar era a coisa que eu mais precisava no momento.

— Não vai me responder? — Sentou-se a minha frente deixando sua bolsa sobre a cama — Laura... Fala comigo poxa! — Olhei nos olhos de Isis e segurei as lágrimas. Estava fazendo um exercício ridículo comigo mesma tentando não chorar.

— Faz três dias que não vou à aula — Desde que descobri que estava grávida não consegui dar as caras fora do quarto. Não conseguia ver ninguém e não tinha capacidade para pensar em nada. Isis me olhava tristonha e com a expressão cansada. Tocou meu rosto.

— Assim você vai perder sua bolsa! Não pode tirar notas baixas, precisa frequentar a aula e...

— Sei de tudo isso Isis — Admiti suspirando, limpando sobre meus olhos — Mas não tenho cabeça nesse momento e não serei capaz de prestar atenção em nada! — Expliquei-me e ela assentiu — Ainda por cima fico vomitando de uma em uma hora. Os professores irão me julgar de folgada se ficar saindo todo momento da classe. É melhor ficar aqui de uma vez e poupar o constrangimento.

— Está se sentindo muito mal? — Preocupada, mediu minha temperatura — Não gosto de te ver assim! — Me abraçou e deitou o rosto em meu ombro — Não queria que isso estivesse acontecendo contigo... Você é tão boa e sincera... Não merecia isso de jeito nenhum! — Quando percebi que Isis estava chorando me tornei um casco e não deixei transparecer emoções. Não queria que ela sofresse por mim daquela forma, estava sendo tão boa amiga!

— Sou idiota. Fiz tudo o que ele quis e sim, mereço isso — Nos separamos porque senti meu estômago doer — Acho... Acho que vou vomitar de novo! — Puxei o balde vazio para cima e fiquei olhando para seu fundo uns bons segundos.

— Laura... — Acariciava minhas costas enquanto eu esperava a sensação voltar. Segurei nas bordas do balde e fechei os olhos — Já se foram três dias — Murmurava delicadamente próxima a meu ouvido — Você já está de onze semanas... Talvez... Talvez seja a hora de tomar a decisão.

— Do que está falando? Que decisão posso tomar agora Isis? Já está feito! — Sussurrei com a voz baixa e abafada pelo balde. Minha amiga parecia constrangida e tímida para prosseguir. Mordeu os lábios.

— Doze semanas é o limite "recomendado" para se fazer um... Um aborto — Tirei a cabeça de dentro do balde e me virei para ela lentamente. Isis me olhava apavorada! — Laura, não me leve a mal, mas acho que é isso o que você vai fazer, correto? Quero dizer, você não ligou para os seus pais nem conversou com o Lorenzo ainda... Logo vai ser evidente a barriga e todos irão saber! — Respirei fundo e cobri o rosto com as mãos, largando o balde — Laura...

— Não sei o que fazer! — Gritei mais para mim mesmo do que para ela, que mesmo com minha explosão não se afastou — Antes tudo era ridículo, dava até para suportar e ai vem isso? — Levei uma das mãos ao meu ventre — Porque comigo? Porque tive que acordar naquela maldita manhã sentindo enjoo? Porque tive que descobrir isso? — Minhas palavras sempre foram para mim.

As coisas estavam bastante claras semanas atrás. Tudo estava se acalmando como Isis disse e cheguei a pensar que ninguém mais se lembrava da aposta... A falta de menstruação por dois meses deveria estar acontecendo pelos motivos de sempre. Desde minha menarca tudo vinha desregulado e até pulava meses quando eu me preocupava demais. Os enjoos se deviam ao nervosismo que sentia porque sempre fui assim. Porém persistiram e cheguei à conclusão de que não, não era normal!

Sai da faculdade sozinha e fui para a clínica mais próxima. Chegando lá contei para a doutora sobre o ocorrido e ela me examinou.

Meu mundo caiu...

Porque não pensei nisso antes, porque não me preocupei com a possibilidade? Lorenzo havia usado preservativo em todas as vezes que estivemos juntos naquela noite, exceto na primeira vez. Quando me dei conta de tal fato entrei em pânico! Só consegui juntar as peças e me convencer de que estava grávida, de fato!

— Você ainda tem opção Laura — Dizia tristemente — Acho aborto terrível, mas se você optar por isso vou te ajudar. Vou te apoiar em tudo. Quero somente o seu bem e sei que nesse momento é o mais recomendável e... — A interrompi.

— Não quero ser uma assassina Isis — Inconscientemente desci minha mão até meu ventre coberto pela blusa — Muito menos do meu próprio bebê! — Os olhos de Isis se encheram de lágrimas — Mas sei que estou sozinha e não acho uma saída!

— Mas é claro que ainda tem uma saída! — Olhei para ela de maneira confusa — Você pode e deve contar ao Lorenzo!

 


Capítulo seis

 

Vi seus olhos no final do corredor, mas felizmente Lorenzo não havia me enxergado ainda. Ao seu redor estavam seus amigos sem cérebro e umas garotas sujas da faculdade. Minha intenção era falar com ele, mas não no meio desse circo armado a sua volta. Fiquei sentada no banco com capuz e um livro a minha frente não querendo ser vista por eles, apenas esperando o momento correto para me aproximar e, acima de tudo, tomando coragem!

Meu corpo todo tremia enquanto pensava no que falar... Isis havia me dado à ideia, mas não me dissera como reportar a ele a novidade.

"Mesmo que você faça uma besteira depois é direito de Lorenzo saber que você está grávida! Ele também fez isso, não você sozinha. Ele é o pai e você a mãe".

Lorenzo o pai e eu a mãe! Quando eu iria me imaginar grávida na faculdade? E ainda por cima grávida de um tipo que sempre desprezei? Foi ai que a ficha caiu... Mesmo depois de todo esse tempo, nunca parei para pensar desse modo. O bebê dentro de mim não passava de uma mistura entre meus genes e os de Lorenzo. Havia genética daquele otário dentro de mim agora, criando uma pequena vida... Respirei fundo... Mesmo soando absurdo, aquilo me fez sorrir.

O sinal soou e todos começaram a ir para suas salas. Não me importava chegar atrasada a aula... O essencial era falar com ele de uma vez! Não sei se por sorte ou coisa assim os amigos de Lorenzo o deixaram sozinho em seu armário. Quando o corredor se esvaziou me levantei e comecei a me aproximar com o coração a mil, entrando em uma espécie de transe... Ele fechou o armário e ia seguir para a classe, mas o chamei antes.

— Lorenzo! — Não precisei dizer duas vezes. Parou de caminhar no mesmo segundo e ficou de costas para mim segurando seu livro — Eu... Preciso falar com você!

Lentamente se virou em minha direção. Olhou para o chão todo o momento, não conseguia olhar em meus olhos. Não ergueu a cabeça para falar comigo, ficou encarando os próprios pés vergonhosamente.

— Eu te disse para não me procurar mais... — Ainda não me encarava diretamente. Olhou para cima, porém olhava em outra direção.

— Sei disso — Palavras ruins vieram a minha boca, mas os engoli. Deveria manter a postura e ser educada ao invés de perder a linha de raciocínio lógico — Por mim nunca mais veria sua cara novamente, porém a situação é muito maior do que eu... Muito mais do que nós.

— Do que se trata? Pensei que tivesse deixado muito bem esclarecido naquele bilhete que acabou e... — O interrompi antes que começasse a chorar.

— Estou grávida — Seus olhos finalmente foram direto para os meus, que por sua vez se encontravam banhados por lágrimas — É isso o que eu queria te dizer... — Lágrimas caíram por meu rosto quando falei. Tentei evitá-las, mas ver os olhos dele novamente em meu rosto me emocionou de uma forma inacreditável! Foi como reviver todos aqueles lindos dias... O quatro de Janeiro inesquecível.

Não havia reação em seu rosto, apenas choque. Olhava-me totalmente parado, os olhos focados nos meus. Seu livro até caíra no chão, espatifando-se e soltando algumas páginas. Ele nem ligou, apenas ficou olhando em meus olhos... Foram-se segundos naquela agonia e decidi sair de lá. Não aguentava mais encará-lo... Lorenzo agarrou meu pulso quando passei por ele e me prendeu no lugar. Fez-me olhá-lo novamente.

— Isso não... Não pode ser — Disse com a voz tremendo — Como assim... Grávida? Isso é mentira! — Puxei meu pulso de suas mãos e peguei o papel do exame dentro de meu bolso, jogando na cara dele. Lorenzo agarrou no ar, mas continuou me olhando.

— Está tudo ai, como pode ser... O resultado foi positivo e aponta que estou de onze semanas... Pode fazer as contas se quiser. Parta do dia quatro de Janeiro até o dia de hoje para ser mais exata — Especifiquei com a voz totalmente irônica — Se ainda duvidar depois de tudo isso, o telefone da clinica e da médica que me atendeu está no papel, assim como o endereço. Pode verificar por si mesmo. Adeus!

Dei as costas a ele e sai praticamente correndo pelo corredor. Lancei um olhar breve para trás e tudo o que vi foi Lorenzo lendo o exame com a expressão convertida em puro pânico.

Fui para a aula, mas como previ não fui capaz de prestar atenção em nada que a professora de Fotojornalismo dizia... Fiquei calada apenas lembrando-me da cara de Lorenzo mais cedo, quando reportei a ele a grande novidade. O que estaria pensando sobre isso? Será que iria se importar e me procurar ou deixaria nosso filho esquecimento? O que faria se viesse me procurar? E pior... O que faria se não me procurasse?

Passaram-se algumas horas e minha resposta chegou... Lorenzo surpreendeu a todos na sala quando bateu na porta e pediu licença a professora, que lhe cedeu à palavra.

— Desculpa professora, mas preciso falar com a Laura. É urgente — A sala toda começou a cochichar. A professora me pediu educadamente para se retirar com calma e ir conversar com ele.

Cheguei a pensar em dizer não, em humilhá-lo um pouquinho na frente de todos, mas... A razão falou mais alto! Se Lorenzo viera me procurar era porque estava interessando no assunto, não era? Parado na porta olhava para mim com cara de desespero, que talvez fosse também minha atual expressão. Juntei meu material e me ergui rapidamente da cadeira, descendo até a porta da sala. Pedi licença e sai para o corredor, passando reto por Lorenzo. Ele me seguiu até a porta e saímos na frente da faculdade vazia, já que todos estavam em aula.

— O que você quer? — Questionei abraçada a meu fichário. Lorenzo parou a minha frente e suspirou.

— O que tem em mente sobre isso? — Revirei os olhos.

— Como assim? — Questionei realmente perdida. Como dizer que eu não tinha nada em mente e que ele fora minha única ideia de sair dessa? — Especifique, não entendi e...

— O que vai... Vamos fazer sobre essa criança? — Gaguejava. Estava nitidamente tremulo. Qual de nós dois soava mais nervoso? Impossível descobrir.

— Não tem mais o que fazer — Dei de ombros — Já está feito!

— Ainda não consigo acreditar que... Que... — Travou-se. Olhava para minha barriga todo o tempo.

— Acredite — Cortei-o — Esse filho é seu sim! Basta fazer as contas e...

— Não é disso que estou falando! — Interrompeu-me — Sei muito bem que esse filho é meu, não estou questionando isso — Fiquei sem saber o que pensar — Somente não sei como pude ser tão burro e deixar isso acontecer.

— Tarde demais para se lamentar — Ironizei. Tantas coisas se passavam em minha cabeça, tantos momentos entre nós e turbulências que vivi até chegar nesse dia. Deus!

— Laura... — Disse meu nome e estremeci totalmente. Olhava-me fixamente, a expressão dilacerada — Eu não posso ter um filho agora.

— Eu também não Lorenzo... Ou acha que estou radiante com essa noticia? Acha que meus pais vão adorar serem avós? Onde vou colocar o bebê enquanto faço faculdade? — Ironizei novamente. Minha vontade era socar a cara dele! Será que somente pensava em si mesmo?

— Sei de tudo isso, sei sim — Dizia confuso — Passei as ultimas horas só pensando nisso...

— Passei os últimos três dias só pensando nisso — Pensei que fosse dizer algo, mas apenas tirou um envelope do bolso e me estendeu. Fiquei olhando por alguns segundos e não o peguei — O que é isso?

— É a nossa única saída. Tanto para você quanto para mim... Isso não tem pé nem cabeça, nós não temos a mínima estrutura para ter um filho e criá-lo da melhor maneira possível. Você batalhou muito para entrar na faculdade e eu... Sou um idiota. Não sirvo para ser pai do seu filho — Ainda olhava para o envelope com medo do que poderia encontrar — Pegue.

Estiquei a mão e peguei o envelope. Coloquei o fichário em cima do muro a nosso lado e abri o envelope com as mãos tremulas. Havia uma enorme quantidade em dinheiro ali dentro, junto a um cheque.

— O que significa isso? — Sussurrei incrédula — Não quero o seu dinheiro!

— Isso não é para você, mas sim para resolver nossos problemas! Temos duas opções. Ou você mantém a gravidez e doa o bebê para outra família ou... — Não olhou nos meus olhos novamente — Sequer preciso dizer qual é a segunda, certo?

Não foi nenhuma surpresa ouvir aquilo. De um lado minha vontade era matar Lorenzo por ser tão covarde, mas pelo outro sabia que tinha toda razão. Não havia nem pé nem cabeça em tal história e era claro que nós dois não tínhamos como ser pais agora. Essa criança chegaria cercada de problemas e não era assim que deveria acontecer. No fundo, mesmo trazendo esse sentimento materno aflorando cada vez mais forte, sabia que as saídas sugeridas por Lorenzo eram as mais viáveis nesse momento de nossas vidas. Não tive como repreendê-lo.

Retirei o cheque do meio das notas e comecei a chorar. Não me importei se Lorenzo podia me ver assim e se qualquer um que passasse poderia presenciar. Senti-me fraca e impotente em frente à situação. Não havia nada que pudesse fazer para mudar isso e salvar a vida de meu filho para tê-lo comigo. A situação acabava com meu coração. Olhei para Lorenzo e vi que havia lágrimas em seus olhos e sequer piscava para evitar que caíssem.

— Sou uma idiota e fraca... — Sequei as lágrimas em meu rosto.

— Eu também, mas é nossa única opção.

— O que me conforta é ver que você e muito mais fraco do que eu... Muito mais! — Peguei meu fichário e sai de lá correndo para longe dele.

Não adiantava! Lorenzo não iria me ajudar a resolver meu problema!

Dias depois...

Isis tinha razão... Lorenzo tinha razão. Se desfazer do bebê - em tal altura de nossas vidas - é a minha única opção!

No dia quarto de abril, aos três meses de gestação, a barriga já estava em perfeito formato redondo e o corpo começava a dar sinais de que já não ando sozinha. Com a pouca experiência que tenho em gravidez sei que não era normal estar dessa forma tão grande em tão pouco tempo, porém não me importei com qualquer coisa. Nunca fiz exames sobre o bebê e tão pouco olhava para minha barriga... Era doloroso pensar o que significava para mim e por isso fingi que não estava lá durante muito tempo.

Precisava me acostumar com a ideia de que não teria nenhum filho e tratava-se somente de uma passagem conturbada que em breve seria definitivamente apagada de minha vida!

Estava de catorze semanas, beirando a décima quinta, quando tomei a decisão, finalmente. Logo não daria mais para esconder a barriga e todos a veriam, então era chegada a hora. Apanhei o dinheiro de Lorenzo e sai em busca da clínica clandestina que pesquisei e cheguei à conclusão de que era a mais recomendada para isso. No caminho senti fome e comprei um saco de pipocas e caminhei comendo até o local. Era bobo, mas essas vontades mostravam-se maiores do que eu, chegando a ser incontroláveis em determinadas situações.

Assim que me viu na sala de espera a enfermeira estreitou o olhar.

— Senhorita, você não pode comer antes do procedimento! — Parei de mastigar a pipoca e a encarei.

— Ninguém me avisou sobre isso.

— Pois bem, não pode! Sinto muito! — Envergonhada, me levantei e o joguei o saquinho no lixo, limpando as mãos em um papel que havia ali por perto — Você é Laura, certo?

— Sim, sou eu! — A moça abriu a porta de forma a me dar passagem.

— Vamos, é a sua vez — Passei por ela confusa e sentindo o coração na boca. Tentei não pensar sobre o que estava fazendo.

— Como faremos agora que comi toda aquela pipoca? — Questionei enquanto entravamos em uma sala azul com uma maca grande e apoios de perna.

— A senhorita ficará em repouso por duas horas. Daremos um remédio para acelerar o processo e iremos fazer o procedimento assim que estiver tudo certo — Me entregou uma camisola azul — Pode se vestir e deitar na cama. Vou te examinar em seguida.

Fiz o que ela pediu. Esvaziei a mente e tentei pensar friamente. Pensar apenas em mim, como Lorenzo fiz por toda a história.

Não há saída nessa gravidez! Não há como ter esse bebê! Não tem mais jeito, é o melhor para todos!

Voltei para o quarto e me deitei na maca ao lado de vários aparelhos. Apesar de ser clandestina, a clínica era muito bem equipada. Minha respiração estava a mil e o coração disparado contra as costelas. A enfermeira entrou novamente e pediu licença para me examinar. Cedi. Quando levantou minha camisola a primeira coisa que disse foi no mínimo intrigante.

— Tem certeza que está apenas de três meses de gestação? — Não estava me examinando, apenas olhando minha barriga.

— Sim senhorita — Respondi educada e também envergonhada — Catorze semanas. Por quê?

— Porque sua barriga está muito grande para esse pequeno tempo — Levou as mãos a minha barriga e começou a examiná-la de um jeito estranho — Você já fez ultrassom querida? Já viu a criança? — Perguntava tentando não me fazer se sentia mal.

— Não, nunca. Apenas fiz o exame de sangue e constatei o tempo de gravidez — Respondi e seus olhos se estreitaram. Ela ainda movia os dedos por meu ventre. Então minha suspeita estava correta? A barriga estar tão grande não era mesmo normal?

— O bebê já mexe. A barriga cresceu desde quando?

— De três semanas para cá está bem maior... Nem sequer vi acontecer.

— Será que eu poderia fazer um exame de ultrassom antes do procedimento? Sabe, para sua maior segurança — Abaixou minha camisola com cuidado.

— Claro — Concordei sem realmente saber o que estava fazendo.

Em quinze minutos estava tudo pronto. A mocinha e mais um médico estavam fazendo um ultrassom e movendo o aparelho gelado por meu abdômen. Fiquei calada e com o rosto virado sem querer olhar para a tela. Não queria ver esse bebê e nem por um segundo colocar os olhos nele. Realmente havia lágrimas em meus olhos, por isso virei o rosto e escondi toda minha tristeza.

— Está vendo aqui? — Dizia para a enfermeira o médico que realizava o exame.

— Sim, estou! Eu sabia que havia algo de diferente com ela — Comentou orgulhosa.

— Gostaria de ouvir? — Mesmo sem respondê-lo, soou no quarto um ruído estranho, semelhante ao som de um coração. Um não, mas sim dois corações batendo em sintonia.

— O que é isso? — Virei para a tela rapidamente ao ouvir o som e deparei-me com a tela azul e as coisinhas se movendo.

— São gêmeos, querida. Você carrega dois bebês em seu ventre!

 


Capítulo sete

 

A ideia de ser responsável por um assassinato já me apavorava, mas era insuportável pensar que um ato meu acabaria com a vida de dois inocentes.

O suor descia pela testa e meu estômago revirava apenas por imaginar o que estava prestes a acontecer. Aquele ponteiro parecia não mudar e a hora nunca passava! Para me torturar mais, as benditas duas horas de espera para fazer o procedimento não pareciam de fato existir.

Fechei os olhos e o que veio a meus pensamentos foi o barulho doce dos coraçõezinhos ecoando no quarto... Aqueles coraçõezinhos. Vendo meu abatimento e surpresa, o médico e a enfermeira me deixaram sozinha na sala para esperar e pensar também sobre as demais possibilidades. Agora não se tratava de uma vida, mas sim de duas!

Como se isso mudasse alguma coisa... Sempre foi uma vida, sempre foi o meu bebê!

Tive vontade de ligar para Lorenzo e dizer a ele que eram gêmeos e eu não queria matá-los, mas o que faria além de me decepcionar? Tentei pensar, raciocinar sozinha e buscar opções... Inconscientemente levei uma das mãos até minha barriga por baixo da roupa. Senti alguns espasmos vindos de lá, não exatamente um movimento, mas um anúncio de que ali havia vida e estavam em minhas mãos.

Duas vidas em minhas mãos.

Eles seriam tão lindos, pensei comigo. Se nascessem parecidos com o pai seriam mais do que lindos, apesar de me lembrarem de coisas distorcidas em relação ao passado.

Se fossem duas meninas, quais nomes eu poderia dar a elas? Se fossem dois meninos, seriam iguais a Lorenzo? Poderiam ser também uma menina e um menino... Sim, assim seria melhor! De repente me peguei pensando em Belo Recanto. Eu por lá sentada na varanda de meus pais e vendo os dois pequenos correndo pelo jardim.

Não me parecia uma má ideia, principalmente quando as duas crianças loirinhas correram para meus braços, me deram um beijo e disseram um delicioso e sonoro " eu te amo mamãe".

A enfermeira abriu a porta e com o susto me sentei. Aproximou-se com uma pequena bandeja e me ofereceu dois comprimidos.

— Esse comprimido é o dilatador. Depois que você tomar não haverá volta — Apenas observei as duas pequenas pílulas — Tome em dois goles rápidos e... — Empurrei a mão dela levemente.

— Não, obrigado — Desci da cama e fui em direção a minha roupa — Não posso fazer isso! Não vou matar meus próprios filhos! — A moça apenas me encarava sem compreender - Sinto muito, mas não posso!

Acabei de fazer a coisa mais linda e insana de toda minha vida.

Voltei para a faculdade irada, nervosa e com a decisão tomada! Liguei para meus pais e pedi que fossem me buscar no aeroporto amanhã e me interrogaram sobre o que havia acontecido, mas apenas falei que desisti da faculdade. Minha mãe chorou pelo telefone, não sei se emoção ou tristeza, e disse que eles estariam lá. A parte fácil estava feita... A difícil seria chegar a Belo Recanto com barrigão e encará-los como mulher, não mais a menina boba que para a Espanha havia embarcado há algumas semanas.

Desfiz a matricula na faculdade e após muita insistência consegui firmar a situação. Tentaram me fazer mudar de ideia, mas depois que contei sobre a gravidez o apoio não foi o mesmo. Não contei nada sobre a paternidade de meus filhos, porque na verdade pai eles nunca teriam. Lorenzo era um covarde e um fraco! Não queria saber deles, então jamais os veria e jamais chegaria perto dos dois! Ter uma mãe que lutaria por eles já bastava... E lutar pelos meus filhos passou a ser meu motivo de existir a partir do momento em que tomei a decisão.

Eles eram meus!

Depois de fazer as malas e reservar o próximo avião para Belo Recanto, me debrucei sobre a cômoda e escrevi uma carta sincera a Lorenzo, abrindo o jogo. Não iria esconder dele que deixei a criança viver, era direito de Lorenzo saber mesmo que fosse o pior dos homens. Isis chegou da aula e me olhou assustada.

— Aonde você vai?

— Vou embora — Anunciei com um sorriso — Voltarei para Belo Recanto. Desisti de tudo Isis... Vou embora!

— O que? — Questionou também sorrindo — E o aborto? Você fez?

— Não! — Levei minha mão a minha barriga e não pude evitar alargar mais o sorriso — Não fui capaz... — Dei de ombros.

— Que ótimo! — Aproximou-se e me deu um abraçou longo. Quando nos separamos, peguei uma de suas mãos e coloquei embaixo de minha blusa, sobre meu ventre.

— São gêmeos! — Os olhos de Isis se abriram muito.

— É sério? Não acredito!

— Sim, são dois! O médico disse que vão ser parecidos. Já pensou?

— Laura! — Suspirou — Que loucura... O Lorenzo é mesmo bom de mira e... O Lorenzo! Já contou para ele sobre sua decisão?

— Não contei e nem vou contar! Pode ser que você não concorde, mas vou embora amanhã sem falar com ele. Nunca mais quero ver a cara daquele maldito em minha frente.

— Tem certeza?

— Total certeza! Lorenzo já me deu motivos suficientes para acreditar que é um descarado. E mais... Peço-lhe dois favores. O primeiro é que nunca conte a ele aonde vou e se perguntar algo sobre mim não responda nada. E o outro favor... — Peguei a carta e estiquei a ela — Pode, por favor, colocar essa carta embaixo da porta dele assim que eu embarcar? - Isis olhou a carta e a pegou.

— Claro. Faço sem qualquer problema.

Deixar a faculdade não foi tão fácil na prática quanto seria em meus planos.

Conforme o táxi se afastou em direção ao aeroporto, vi meus sonhos ficando para trás e a linha de minha vida fazendo uma nova curva. Tudo seria diferente, tudo estava em minhas mãos agora mais do que nunca. Não bastava pensar somente em mim... Minha vida giraria em torno de duas pessoinhas que se quer conheço agora!

O avião, graças a Deus, não apresentou qualquer atraso. Fui incapaz de conter as lágrimas quando vi a Espanha ficando para baixo de meus pés, quando contemplei pela mínima janela o país no qual tanto sonhei entrar apenas na lembrança... Juntamente ao lendário quatro de janeiro.

Tive que ser forte e focar no meu futuro, focar nos meus pais! Instantaneamente olhei para baixo visualizando minha pequena barriga coberta pela blusa. Era possível ver perfeitamente seus contornos e não havia como negar meu estado de gravidez. Pensar nisso me deixou mais nervosa... Minha mãe poderia me entender, mas meu pai iria querer me matar, crucificar e jogar em minha cara que o tempo todo esteve certo sobre essa viagem... Não tinha como ser coisa boa e dar certo. Tudo o que a vida oferece tão fácil, toma tão fácil da mesma maneira.

Apesar de meu pai ser rude, minha única opção era correr de volta para ele... Algo me dizia que não iria me deixar dessa forma, não me abandonaria em um momento de necessidade tão grande, porém nada seria fácil a partir de agora. Os filhos eram meus, não dele! Eu teria que assumir responsabilidades de mãe e pai. Oh Deus... Também tinha esse detalhe! Meus pequenos gêmeos... Trazer um bebê sem pai já era demais. Imagine dois?

Virei à noite no avião e adormeci pensando sobre o nome que poderia dar aos meus bebês. Não cheguei a qualquer conclusão e não me lembrei de nada que fizesse sentido para mim, sequer para o energúmeno do pai deles.

— É estranho falar de nós dois assim... Tipo, tão diretamente — Estávamos no carro dele em nosso quinto encontro. O banco de trás, a capota baixa e a visão perfeita das estrelas parecia ser tudo o que precisávamos.

— Não tem como isso ser diferente — Estávamos sentados juntos, encostados no banco com os pés apoiados nos acentos da frente. Minha cabeça descansava em seu peito.

— Tem sim — Comentei olhando para as estrelas — Podíamos usar nomes fictícios para se referir a nós mesmos quando estamos juntos.

— Tipo em uma novela? — Enrolava uma mexa de meu cabelo em seu dedo.

— Mais ou menos... Mas não vou te chamar desses nomes compostos! Nem vem com os seus derivados para cima de mim! — Ironizei e ouvi a gargalhada de Lorenzo em meu ouvido. Aquele som parecia ser o mais doce do mundo.

— Estava pensando em Eduardo — O olhei com cara feia e ele beijou minha testa - Você fica linda de cara feia.

— Linda de cara feia? — Nós rimos — Quais nomes vão ser?

— Quer escolher o meu e eu o seu? Assim fica mais... Justo — Deu de ombros e me abraçou delicadamente.

— Ok — Dei de ombros e ficamos nos olhando em tom pensativo.

— Você tem cara de... Laura mesmo, não tem jeito! — Tocou meu rosto delicadamente.

— Nada combina contigo além de seu próprio nome — Afirmei em tom de desgosto — Somente seu nome de Príncipe da Disney lhe cai bem.

— Oh, devo me sentir lisonjeado? — Aproximou-se e me deu um beijo rápido. Corei com a atitude, pois ainda não estava muito à vontade com essa proximidade, apesar de apreciá-la.

— O que acha de Romeo? — Adotou cara de desgosto.

— Só se o seu for Julieta!

— Sei que podemos fazer melhor — Voltei a olhar para as estrelas. Lorenzo mantinha-se por perto, era possível sentir sua respiração em meu rosto — Já sei. Tem um nome que gosto muito!

— Não sou muito criativo... Roubei o nome da minha avó. Gosto dele demais! Se um dia tiver uma filha, quero que seja o nome dela — Nos olhamos. Mordi os lábios em expectativa para saber do nome misterioso que ele tanto gostava.

— Fala primeiro!

— Não, você. Primeiro minha dama! — Me beijou novamente.

— Se pudesse trocar seu nome, colocaria... Samuel.

— Samuel? — Repetiu e pensou — É... Um nome muito legal. Gostei de Samuel. Podemos usá-lo.

— Agora diga o seu... — Exigi.

— Sarah.

Acordei com a voz irritante da comissária de bordo me despertando. A moça pensou que eu estivesse desmaiada, uma vez que não acordei durante o pouso. Demorou um pouco para explicar que a gravidez estava me deixando louca e dormir a qualquer hora muito profundamente fazia parte de minha nova rotina.

O sonho me pegou de surpresa. Aquele momento no qual me recordei enquanto dormia havia se passado há pouco tempo, mas em minha mente soava como anos. Foi um dia muito bonito, fiquei chamando Lorenzo de Samuel e ele me tratando como Sarah. Algo idiota, mas que nos fez rir bastante.

Ainda absorta no sonho sai do avião sem pensar em nada. Tremia com a expectativa de reencontra meus pais estando grávida de três meses e meio. Pensei em ligar para minha mãe quando não a vi na sala de desembarque, porém esperei, apenas esperei. Para que apressar as coisas? Ao lado de minhas malas, pegas por um segurança solidário que ao me ver grávida se prontificou em me ajudar a carregá-las, aguardei sentada em um banco em frente do aeroporto daquela cidade minúscula e conhecida.

Usando um vestido branco de alças, cobri os ombros com um casaquinho rosa claro e me agarrei a minha barriga. Parecia que todos que passavam ao meu lado olhavam para ela... Todo mundo sabia da vida de todo mundo naquela cidade. Estar em Belo Recanto não faria de minha vida mais fácil, pelo contrário... Muitos rumores, fofocas e venenos seriam lançados a mim. Minha gravidez múltipla e fora de hora seria assunto por muito tempo!

— Laura? — Ergui os olhos e vi meus pais parados lado a lado a alguns metros de distancia. Sorri, não pude evitar!

Eles também sorriram. Meu pai estava quieto atrás de minha mãe e muito confuso. Minha mãe se agarrava a alça de sua bolsa bege e choramingava. Abriu os braços e veio em minha direção mais feliz do que nunca, porém lágrimas tomaram conta de seus olhos quando fiquei de pé mostrando meu corpo todo para eles. Tomada de emoções e euforia, mamãe correu até mim e me abraçou fortemente sem notar minha barriga. Meu pai não deixou passar em branco. Por cima dos ombros de minha mãe vi seus olhos maiores do que o rosto, sua expressão surpresa e horrorizada tomando conta.

— Mamãe... Que saudade — Comentei abraçada a ela sem querer soltar. Os olhos de meu pai falavam mais do que mil palavras.

— Eu também querida, eu também... — Tocava meu cabelo. Separou-se de modo a olhar em meu rosto — Como você está? Mudou tanto! — Tocava meu rosto delicadamente e chorando — Porque voltou tão rápido? O que foi que aconteceu?

Silêncio.

Não tive palavras para responder. Apelei para a linguagem do olhar e discretamente olhei para minha barriga. Confusa, minha mãe fez o mesmo. As palavras simplesmente não saiam de minha boca, pois não havia como se expressar. " Estou grávida" foi uma frase dita apenas a Lorenzo.

— Como... Você está... — Apenas olhava para meu ventre. Levou as mãos a minha barriga e fez um barulho de surpresa quando notou a rigidez e a forma exata de gestação. Olhou para meu pai brevemente e em seguida tocou meu rosto com descrença — O que significa isso Laura?

As lágrimas começaram a cair e nem sequer me dei conta!

— Você está grávida? —Sussurrou com uma das mãos cobrindo os lábios — Oh meu Deus.

— Perdoe-me mamãe, por favor, me perdoe! — Foi o que consegui dizer secando minhas próprias lágrimas.

— Como... Eu... — Perdida, tentava falar com a voz confusa — De quanto tempo você está? Como é que isso foi acontecer, menina?

— Faz três meses — Respondi engolindo o choro — E... São gêmeos.

— Oh meu Deus! — Mesmo surpresa pela notícia notei que havia algo mais em seus olhos. Amor? Felicidade? — Onde está o... Pai deles? — Tocava minha barriga e fazia movimentos doces sobre ela.

— Ele... — Respirei fundo, ainda deixando lágrimas caírem — Não quer saber. Somente me levou para cama e depois me dispensou!

— Oh querida! — Me abraçou com força. Meu pai não nos olhava. Tinha os olhos em outra direção e estava totalmente sem expressão — Vai ficar tudo bem, estamos aqui. Vai ficar tudo bem.

Deitei o rosto em seu ombro e esperei... Somente aguardei em silêncio um novo recomeço.

 


Capítulo oito

Seis anos Depois...


Madrid, Espanha.

Apesar da maioria das pessoas festejarem o primeiro dia do ano, minha realidade era bem diferente. Tudo se resumia em caminhar sem rumo embaixo daquela leve chuva que castigava Madrid pensando somente nas palavras de meu médico.

— Tem total convicção de que não quer se curar? — O doutor me olhava totalmente desacreditado, sério e cheio de pena. Pena. Seria esse o sentimento que todos teriam por mim a partir de agora?

— Certamente. Não quero me submeter a nenhum tratamento que irá me matar ainda mais rápido — Respondi apenas olhando para o exame em minhas mãos. Amassado, apontando o final de minha vida.

— Mas senhor Valencia, devo insistir! — Seu tom de persuasão nem sequer penetrava em meus ouvidos — O senhor é um homem jovem, tem somente vinte e sete anos. Com certeza tem muita vida pela frente e diversas conquistas! — Sorri de canto um tanto irônico.

— Sou um homem rico, doutor — Dei de ombros, totalmente desdenhoso — Já conquistei tudo, terminei minha faculdade e sou dono de uma construtora de aviões — O médico me olhou surpreso — Não tenho mais pelo que lutar e não me resta mais nada além de dinheiro... — Abaixei o olhar e suspirei — Já tomei minha decisão. Não quero me curar e nem sequer tentar.

— O material não é tudo nesta vida, senhor Valencia — Agora havia comoção em sua voz — Sua doença é gravíssima, porém sendo um homem jovem e forte as estatísticas de cura são altíssimas! Não se esqueça de que a doença está em estado inicial, ou seja, é muito recente. As chances de cura se elevam ainda mais — Nada respondi, somente o olhei com um sorriso pequeno — Sinto em me intrometer em sua vida pessoal, mas será que o senhor não pensa em sua família? Em seus pais... Com certeza deve ter mulher e filhos que dependem de você.

— Não doutor, eu não tenho! — Falei com certa raiva — Meus pais estão decepcionados comigo porque não me casei e pretendo não o fazer. Tudo o que eles mais querem nessa vida é um neto.

— Porque não senhor Valencia? É uma chance de recomeçar... Faça seu tratamento, cure-se, case-se e dê os netos que seus pais tanto desejam! O amor faz bem as pessoas — O homem estava disposto a tudo para me convencer, então decidi abrir o jogo.

— Na verdade doutor, tenho um filho perdido por ai... Talvez bem mais longe do que sequer possa imaginar — Não consegui olhar nos olhos do médico.

— Mas um motivo para lutar! — Incentivou — Não quer que seu filho cresça sem pai, quer?

— Isso já aconteceu — Deteve-se ficou me olhando um tanto comovido. Minha expressão de ódio por mim mesmo e arrependimento era tão nítida que o tira a voz?

— Como foi? — Interessado, resolvi prosseguir. Contar essa história depois de seis anos martelando sozinho sobre ela era mais do que uma necessidade. Talvez fosse isso que tenha causado a doença... Essa amargura de ficar fechado em mim mesmo com a história que mais me machucava.

— Na faculdade. Tudo aconteceu lá e eu não passava de um idiota... Perdi o carro do meu pai em uma aposta imbecil — Comecei voltando no tempo e era quase possível visualizar tudo em minha mente — Tratava-se de um carro muito importante que pertenceu ao meu avô e, sendo assim, eu deveria fazer de tudo para recuperá-lo — O homem ouvia atentamente — Conservei com o cara que havia ganhado e ele me propôs uma nova aposta. Como minha reputação era de pegador, homem que se apaixona fácil, ele apostou que eu não conseguiria ir para cama com uma menina virgem da faculdade e depois dar um fora milenar na garota e tornar tudo público.

— Meu Deus... — Sussurrou, talvez já prevendo o que viria a seguir.

— Junto com alguns amigos pesquisei entre todas as meninas as que tínhamos certeza que eram recatadas e em uma festa encontrei Laura — Fechei os olhos quando pronunciei o nome dela em voz alta depois desse tempo tentando esquecê-la. Doeu. Doeu muito — Ela era muito bonita e atraente apesar de ser tão reservada. Vi nela uma chance perfeita de cumprir a aposta, pois sabia pelas garotas que era muito séria e tímida... Imediatamente comecei a seduzi-la e a tratá-la como namorada. Por um acaso do destino acabei me envolvendo demais com ela e... Apaixonei-me.

— Que história...

— Não sei como chegou à boca do cara que estava com o carro de meu pai que meus sentimentos por Laura estavam muito fortes. O cara chegou até mim e disse que “apenas levá-la para cama” não iria valer! Era muito fácil para mim, por isso teria que fazer isso e humilhá-la diante de todos na faculdade. Pensei em dizer não e deixar o carro para lá, mas meu pai sempre foi muito rígido e perder esse carro seria o mesmo que dar mais motivos ainda para que me odiasse. Fui um idiota com ela... Mais do que isso, fui um conversa! Consegui o que queria facilmente já que ela estava apaixonadíssima por mim e... Aconteceu — Fechei os olhos quase podendo sentir o sabor gosto de sua pele ainda em minha memória — Foi horrível deixá-la, doutor. Larguei um bilhete ridículo sobre a cama na manhã seguinte e ela foi atrás de mim. Me pegou com outra.

— Realmente você é um perfeito canalha! — Estava até bem humorado agora — Pobre menina. Entregou-se de corpo e alma... Imagine como deve ter se sentido? Fez amor pela primeira vez com um homem que a tratou como lixo e foi largada!

— Na época estava mais preocupado em esquecer Laura do que dar qualquer chance para nosso amor. Achei que conseguiria e que aquela menininha só havia me impressionado assim porque era doce e inexperiente. Laura nunca tinha tido um homem... Fui seu primeiro! A emoção que senti era... Era distinta. Porém, quando a ficha caiu, quando me dei conta de que esse sentimento não passaria, já era tarde.

— Quando foi? — Questionou vendo minha luta interna para prosseguir. Minha vontade era me esmurrar.

— Um ano depois que ela foi embora o sentimento não havia passado... Então me dei conta de que nunca mais iria passar e até hoje não passou... Até hoje penso no dia em que Laura me parou no corredor com carinha de criança chorona e disse que estava grávida — Agora sim havia lágrimas em meus olhos. Agora sim eu me sentia um lixo, expondo a mim e a ele o quanto baixo fui — Fiquei sem saber o que fazer! Era só um moleque e ela, apesar de ter apenas dezoito, era muito mais madura do que eu.

— Essa é a história mais absurda que já ouvi! — Assumiu comovido — Porém, como homem, te compreendo. Sua situação era desesperadora! Divido entre o respeito do pai e a menina que não sabia que amava. Obviamente recorreu ao que conhecia, não ao desconhecido. Acho que seu único grande vacilo foi à gravidez dela. Deveria ter dado apoio, afinal!

— Fiz o que pude doutor. Uma coisa era certa... Nós não tínhamos como ter aquela criança! Éramos muito novos e não podíamos ficar juntos. Tive que apelar, dei dinheiro a ela e pedi que decidisse entre aborto e adoção — Abaixei o olhar sentindo uma faca entrar em meu peito — Depois disso nunca mais a vi.

O medico abaixou o olhar e suspirou, tirou até os óculos para pensar melhor. Fiquei em silencio total, lembrando-me de como me recordava todos os dias que acordava do rosto de Laura na última tarde que a vi... Lembrando-me da carta que recebi dela.

— Nunca mais soube dela?

— Nunca... Passei a ser um idiota. Comecei a transar com qualquer mulher, beber e fazer ainda mais porcarias... Tudo por causa dela, para me esquecer daquela menina! Recebi uma carta dela antes mesmo de saber que havia ido embora. Na carta dizia que iria ficar com o neném. Cheguei a procurar a amiga dela, mas segundo a mesma, Laura não queria me ver nem pintado de ouro. Disse que não estava em sua cidade natal e que iria morar em algum lugar em seu país.

— Você a encontrou? A procurou?

— Sim... Muito! — Limpei uma lágrima que escapou. Aquilo era demasiadamente forte para mim — Depois do primeiro ano, depois de me dar conta que a amava, passei a procurar por ela. Mandei gente para sua cidade e os detetives a localizaram lá. Tenho o endereço e tudo.

— Porque nunca a procuro pessoalmente?

— Acha que Laura vai querer saber de mim doutor? — Ironizei — Já tem uma vida formada, por certo deve ter um marido ao encalço! Do jeito que aquela menina era forte e orgulhosa, duvido que vá aceitar de mim qualquer tipo de ajuda. Ela jamais irá me perdoar, jamais...

— Eu também não o perdoaria, tão pouco iria querer te ver novamente, mas... Seu filho... — Sussurrou em nítido tom de pena, nem precisando terminar.

— Os detetives não souberam nada dele. Pelas minhas contas, como sei o dia em que foi gerado, marco seu aniversário todos os anos com base no dia certo em que Laura faria nove meses de gravidez. É o pior dia da minha vida! Só consigo pensar em como sou idiota, em como fui fraco... — Tentei não olhar para ele, apenas fixar minha mente na criança que existia em meu subconsciente. Um menino loiro de olhos castanhos e absolutamente doce como sua linda mãe.

— Está com quantos anos?

— Fará seis... Dia quatro de Outubro.

Um trovão cortou o céu no momento em que meu celular apitou. Mesmo sob a chuva o retirei de meu bolso e olhei a tela. Era uma garota me ligando. Sorri de canto e arremessei o aparelho no meio de uma poça, caminhando novamente. Olhando as gotinhas ricocheteando em meu casaco de couro cheguei à conclusão de que a conversa com o doutor me serviu mais do que qualquer cura. Dando uma de psicólogo, o oncologista soube me abrir os olhos para as coisas importantes.

Se não queria me curar significava que minha vida estava contada! Se minha vida estava contada, para quem deixaria toda minha fortuna, tudo o que conquistei? Porque não dar o último agrado a meus velhos pais, provando-lhes que minha existência não fora em vão, que tive um filho e fiz algo bom? Por certo jamais irei contar a ninguém que trago a doença, não quero que nem meus pais, amigos ou até mesmo Laura tenham pena de mim. Até o ultimo minuto seria algo meu, algo secreto.

Arrependi-me no mesmo momento por ter jogado o celular na poça! Precisava reservar um avião para Belo Recanto agora que não havia mais nada a perder. O máximo que Laura me diria era não... Porém não poderia fazer nada quando eu criasse uma conta no nome de nosso filho e depositasse tudo o que tenho lá. Não poderia me impedir de olhar uma vez sequer no rosto da criança...

Ao menos a maldita leucemia servira para alguma coisa. Correr atrás do concerto para os erros passados.


Belo Recanto, Brasil.

Enquanto contemplava os fogos explodindo no céu naquela virada de ano tudo o que minha mente podia fazer era focar no passado e impulsionar meu corpo a expelir lágrimas.

Debruçada em minha varanda, pela primeira vez desde que voltei da Espanha decidi não passar o ano novo com meus pais. O ano novo era a data mais dolorosa para mim. Após ele, assim que as comemorações cessassem, chegaria o dia que eu buscava incansavelmente esquecer.

Levei a pequena taça de vinho aos lábios e tomei um pequeno gole, apenas o suficiente para entorpecer os pensamentos. Era meia-noite e meia e os gêmeos dormiam enquanto os fogos explodiam no horizonte. Olhei levemente por cima de meu ombro e vi a sombra da televisão sozinha na sala. Certamente ambos estavam amontoados um sobre o outro enquanto o programa de virada rodava no ambiente. Sorri. Teria sido brutal demais privar os dois da festa? Jade e Fúlvio me crucificaram quando falei que queria passar o ano novo sozinha com meus dois pequenos.

Como assim não vai deixar que eles ficassem aqui com os parentes? Todos morrem por esses dois, ninguém quer ficar longe deles! Os pequenos merecem comemoração, são apenas crianças!

Na verdade os pequenos não eram muito ligados a comemorações. O único dia de interesse mútuo era o aniversário, onde eram incontestavelmente o centro das atenções... Não que diariamente a coisa fosse distinta. Meus gêmeos tinham luz própria. Com eles todo dia era dia de felicidade e sempre foram à alegria de onde passavam.

Não tive que fazer muito para convencê-los que não iramos a festa de ano novo... Compreensivos, ficaram comigo todo o tempo. Conversaram, brincaram e a meia-noite me deram aquele longo abraço sonolento. Soava egoísta, mas tudo o que eu precisava era ver aqueles olhos verdes... Aquela dupla perfeita. Vê-los e saber que o sexto ano de luta começaria e valeria muito a pena.

Apesar de ser um safado, aquele ordinário me dera o maior presente do mundo... O prazer de ser mãe daquela duplinha. Cada dia e cada passo por eles valia a pena.

Não terminei a taça de vinho. Larguei sobre uma mesa na varanda e voltei para dentro de meu apartamento um tanto confusa, totalmente ciente que dali a seis horas começaria meu plantão no hospital. Assim que entrei constatei que minhas suspeitas eram verídicas. Os dois estavam jogados no sofá lado a lado, mas apenas minha menininha dormia. Os olhos de meu principezinho estavam focados na TV, vendo Snow Patrow fazer o show da virada.

Meu coração parou dois segundos... Porque essa maldita banda? Por mais que o tempo passasse, como esquecer aquela música? Como esquecer o pai dos meus filhos cantando-a para mim? Chasing Cars.

Suspirei e apertei os olhos. Todas essas lembranças relacionadas a Lorenzo faziam parte do pacote. Não tinha como não olhar para meus filhotes e não lembrar ele, sendo que eram tão parecidos. Deveria ter a ver com a época também... A menção do mês de janeiro me fazia estremecer! A proximidade do dia quatro então, nem se fala!

Os olhos de meu pequeno se desviaram para mim. Estava sonolento, coçou o rostinho e me abaixei para beijar seu rosto.

— V amos para cama? — Sussurrei e ele concordou. Acariciei seu cabelo loiro e sorri — Vai indo para cama da mamãe que vou pegar a sua irmã. Vamos dormir juntos hoje querido... — Desceu do sofá e saiu da sala arrastando sua chupeta azul. Peguei minha menina nos braços com cuidado para não despertá-la e carreguei com jeito até o quarto, mesmo ela sendo já pesada para eu carregar.

Tinham cinco anos! Seis em Outubro próximo!

Como Lorenzo conseguiu ficar longe deles tantos anos?

Ao chegar ao quarto vi meu menino deitado em seu canto e praticamente adormecido. Deitei minha princesa ao seu lado e retirei os sapatos. Sem pensar em pijama ou qualquer coisa, me deitei ao lado deles. Os dois se alinharam a mim e suspirei. Ter meus filhos era o maior presente do mundo e por isso eu agradecia ao projeto de pai que ambos possuíam. Não importava mais nada. Acariciei o cabelo loiro dos dois e sorri antes de fechar os olhos.

— B oa noite Samuel. Boa noite Sarah.

— B oa noite mamãe...

 


Capítulo nove

Belo Recanto, Brasil.

Quando coloquei os pés naquela cidade quente e chuvosa me senti um completo desnorteado, mas também um homem que pela primeira vez na vida fazia algo correto... Correr atrás da resolução de seus erros.

Tudo o que tinha em mãos era um guia da cidade e o endereço que consegui com os detetives, afirmando ser o de Laura. O que precisava? Um carro e um apartamento alugado, já que pretendia ficar muito tempo por ali. Inicialmente pedi um táxi e me alojei em um hotel, deixando a cargo de meu assessor resolver todos meus problemas. Simplesmente não tinha cabeça para pensar em pequenos detalhes, tudo o que queria agora era encontrar Laura em meio à chuva dessa minúscula cidade e esclarecer nossos problemas.

Entrei no quarto de hotel e caminhei devagar até a pequena varanda. Nada nesse lugar era luxuoso ou incrível... A única coisa boa dessa cidade eram as pessoas simples, assim como a quem eu incansavelmente estava buscando. Apoiei-me na varanda e observei de cima as arvores tomando conta do panorama de visão. Nada de carros e nada de loucura. Talvez fosse um lugar bom para passar os últimos dias de vida. Sem muita perturbação, totalmente no anonimato... Sorri sozinho. Por um segundo me esqueci de que poderia não chegar a ver meus pais de novo. Poderia morrer em Belo Recanto mesmo, esquecido por tudo e todos.

Após uma vida ridícula, onde fiz todos que me amaram sofrer, era mais do que eu merecia.

Laura

— É muita sorte hoje não estar chovendo... As crianças não brincavam no parque há muito tempo! — Jade, minha mãe, comentou sentada ao lado e lendo uma revista de moda.

— Sorte mesmo — Eu, por minha vez, não conseguia tirar os olhos do balanço onde Sarah e Samuel brincavam — Já estava ficando louca por ter que deixá-los trancados no apartamento. Graças a Deus as férias já chegaram ao fim e voltarão para a escola.

— Ainda acho totalmente desnecessário mandá-los a escola tão pequenos — Mudou a página da revista um tanto rudemente — Nem estão na primeira série e tem avós para cuidar deles!

— Não vamos começar com isso de novo, certo? — Acompanhei com o olhar Sarah sair do balanço e correr em direção ao escorregador. Samuel disse algo para ela como “cuidado para não se ralar” — A senhora sabe que não gosto de deixá-los com você. Não quero dar motivos para que papai fique me recriminando novamente.

Somente Deus e minha mãe tinham noção do que passei nas mãos de meu pai após voltar da Espanha grávida. Inicialmente meu pai relutara em me aceitar, apresentando seus argumentos retrógrados de sempre. O que fiz? Apenas abaixei a cabeça e ouvi, sabendo que era o dono da razão. Mamãe zelara por mim, se intrometera totalmente tocada pela história que contei, tentando fazer meu pai, assim como ela, odiar Lorenzo para sempre.

— A culpa não é daquele homem! — Dissera meu pai a nós, sempre embalsado por sua visão de mim — É de Laura por ter sido uma burra e se deitado com o primeiro que apareceu!

— Laura não fez isso! Estava apaixonada pelo rapaz, será que não entende? Ele a enganou, humilhou-a e largo-a grávida! — Jade ainda tentou me defender.

— Apaixonada? Por favor! — Ironizou com um sorriso debochado — Veja se amor enche barriga de alguém! Só se for de filhos, porque não vejo qualquer retorno para essa prova de amor descabida de Laura! Sempre tive certeza que essa maldita viagem traria problemas... Laura não passa de uma menina e não tem responsabilidade para nada, nem mesmo para ter relação sexual! Veja só no que deu... Engravidou e jogou o futuro todo pela janela!

— Pare de falar assim da menina! — Repreendeu minha mãe quando me viu chorando no sofá. Vontade de gritar eu tinha, apenas me faltavam forças e argumentos... Meu pai tinha razão sobre meu futuro! — É nossa única filha e estando errada ou não vamos ampará-la! Acaso chegou a pensar em abandoná-la na rua grávida de duas crianças inocentes? Nossos netos?

— Ainda mais esse detalhe! Duas crianças! — Ergueu as mãos para o céu — Deus... Onde estava com a cabeça quando permiti essa viajem?

— A menina precisa de nós! Nossos netos precisam de nós!

— Não quero saber Jade! Sinceramente não quero! — Bateu na mesa com força — Vou passar uma maldita vergonha na cidade. Já pensou no que irão falar? “Como vai Fúlvio? E sua filha? Você estava cheio de orgulho por ela estudar na Europa e agora voltou grávida?”.

Meu pai com orgulho de mim? Foi algo que apenas serviu para me fazer se sentir pior! O que almejei em muitos anos, destruí em alguns meses.

— Estou pouco ligando para as pessoas desta cidade! — Cruzou os braços, nitidamente atingida — Você concordando ou não, Laura é nossa filha e tem direito de ficar aqui! Não vou ser responsável pela decadência dessa menina... Se ela errou merece uma segunda chance! Somos seus pais nas horas boas e ruins também... — O silêncio tomou conta do ambiente, reinando apenas a derrota.

Meu pai olhou para mim, encolhida no sofá, e respirou profundamente. Caminhou de um lado para o outro e deslizou os dedos pelo cabelo. Assim como minha mãe, esperei sua resposta final totalmente tremula. Se ele me dissesse não, o que me restaria?

— Certo Jade... — Concordou, suspirando pesadamente — O quarto dela está lá em cima e essa casa, como acabou de dizer, também pertence a ela! — Minha mãe abriu um sorriso longo e suspirou aliviada — porém certamente coisas irão mudar!

— Fúlvio... Não seja duro! — Repreendeu logo de inicio, praticamente implorando.

— Não serei duro, apenas justo! Não quero saber de sustentar filho de ninguém! — Não falava comigo, mas sim com minha mãe. Era quase um soco em minha cara sua indiferença — Laura que fez, Laura que sustente! Pode arranjar um trabalho e se virar para bancar essas crianças, pois do meu bolso não sairá nada! Não quero criança chorando em minha cabeça e não quero bagunça pelos corredores... Nada nessa casa vai mudar para nós dois, tudo continuará sendo da mesma forma que estava antes de Laura retornar, independente das circunstâncias!

— Certo — Minha mãe me olhou brevemente — Você tem toda razão, mas... Ela irá ficar.

— Sim, irá — Assentiu — Ah! E outra coisa... Você não vai servir de babá para os filhos dela — Praticamente ordenou — Não quero ver essa menina saindo por aí e largando essas crianças com você, me entendeu Jade? Já falei... Laura ficará, mas arcará com suas responsabilidades! Irá criar essas crianças sozinhas porque não iremos sustentar filhos que não são nossos, me entendeu?

Não sei se por medo ou por concordar, minha mãe assentiu. Simplesmente não contestei. Tudo o que viesse agora era lucro!

— Sabe como é seu pai... — Jade comentou olhando brevemente para as crianças no parque — Fala um monte para você, porém faz tudo por esses dois. Sabe muito bem que Sarah e Samuel são as pupilas dos olhos dele.

— Pode ser, mas não gosto de abusar. Papai sempre disse que são meus filhos e quem tem que cuidar deles sou eu! — O sol estava forte para um verão tão temperamental. Samuel pingava de suor enquanto corria de um lado para o outro, os fios loiros de seu cabelo levemente cacheado se grudavam ao rosto, assim a pele adquiria tons avermelhados. Sarah estava longe de minha visão, por isso resolvi chamá-los.

Em cinco segundos ambos vinham em minha direção. Apostavam corrida e chegaram praticamente pulando em cima de mim.

— Você viu mamãe? Pulei mais alto que o Samuel no balanço! — Saltitava Sarah ao me abraçar.

Observei seu rostinho corado e suado um tanto preocupada... Os gêmeos eram cheios de alergias, problemas de pele e essas coisas. Exigiam cuidados específicos e não podiam dar trela para o sol um segundo sequer! Quando adquiri meu próprio dinheiro após o curso de enfermagem e tive condições de comprar meu apartamento, pensei seriamente em mudar de cidade, porém Belo Recanto era o único lugar conhecido onde o sol não era tão ameaçador na região e, sendo assim, faria melhor para meus filhos. Por eles continuei neste lugar terrível. Por eles, mais uma vez, me sacrificava! Largar da cidade de meus pais era o que mais queria nesse mundo!

— Claro que vi querida, foi incrível — Tirei uma toalha e um protetor solar especial da bolsa. Sequei o rostinho de Sarah.

— Foi pura sorte mamãe — Ofendido, Samuel sentou-se ao meu lado — Tenho certeza que salto muito melhor do que ela!

— Os dois saltam incrivelmente... — Após secar o rosto pálido dela, apliquei o protetor em suas bochechas e braços. Ser mãe de gêmeos era isso... Nunca poderia favorecer um ou outro. Sempre era necessário usar a palavra dois na mesma frase. Sarah e Samuel eram tudo o que eu tinha e criar competição entre ambos era o que menos desejava. Uni-los sempre fora meu maior objetivo e até agora era realizado com perfeição — Venha Samuel, sua vez de passar protetor!

Samuel, a contragosto, se ergueu e parou a minha frente. Sarah aceitava as coisas facilmente, já ele odiava cuidados como este.

— Isso é um saco! — Protestou.

— Não fale assim! Quer ficar com a pele feia? — Repreendi. Sarah sentou-se ao lado de minha mãe e pegou uma garrafinha de água.

— Pele delicada é assim meu filho... — Jade olhou brevemente para Samuel, que estava bem mais sujo do que a delicada Sarah — Sua mãe nunca foi desse jeito... Para quem será que vocês puxaram?

Parei de passar protetor na pele de Samuel no mesmo segundo e olhei para minha mãe. Meu sangue ferveu e minha raiva cresceu gigantescamente! Não retornou meu olhar, pelo contrário! Abaixou os olhos para a revista e sorriu maliciosa. Sabia que eu detestava esse tipo de conversa perto de Sarah e Samuel. Sabia que mencionar qualquer coisa que tenha a ver com o pai deles me deixava nervosa! O fazia exatamente por isso... Ela e meu pai eram totalmente contra meu silêncio. Contei o necessário sobre Lorenzo a meus pais, não mencionando a parte de lindo e milionário. Se soubessem que Lorenzo era milionário, com certeza já teria me obrigado a ir atrás de meus direitos.

— Pronto! — Anunciei fechando a tampinha do protetor — Vocês têm mais vinte minutos para brincar, depois mamãe vai para o hospital e vocês ficarão à tarde na casa da vovó.

— Ah não mãe! — Sarah choramingou cruzando os bracinhos. Os olhos verdes caídos — Você vai trabalhar a tarde toda de novo?

— Sim querida — Toquei seu rostinho. Samuel não estava muito feliz, esfregava o rosto pegajoso com cara de nojo — Você sabe... Mamãe precisa trabalhar para comprar seu leite.

— Eu sei mamãe — Assentiu com um biquinho. Olhou minha mãe de rabo de olho me dizendo com os olhos “não quero ficar com a vovó!”.

— Vai passar rápido. À noite mamãe volta e fica com vocês, ok? — Sorriu brevemente.

— Certo... — Sussurrou.

— Certo... Podemos correr até o escorregador! Vamos Sarah! — Samuel convidou e saíram correndo e juntos. Quando se afastaram a um limite confiável, voltei-me para minha mãe que tinha aquela expressão de riso nos lábios.

— Parece que você e papai sentem prazer em fazer meus filhos lembraram que não tem um pai — Cruzei as pernas nervosamente — Já falei que não permito a menção dele perto dos gêmeos!

— Por acaso pronunciei o nome dele ou a palavra pai? — Questionou cinicamente. Nada respondi — Sabe de uma coisa? Não é fácil ficar calada quando os dois me perguntam sobre Fúlvio ser seu pai e, logo após, onde está o deles... — Fechou a revista — Eles têm cinco anos e muitas dúvidas! Está na hora de esclarecer algumas delas.

— Não há o que ser esclarecido! — Afirmei sendo dura — Está na hora de você e papai pararem de se intrometer na vida dos meus filhos.

— Entendo que pense assim, mas está na hora de você esquecer esse homem.

Calada, olhei para ela intrigada! Sempre sofri sozinha... Meus pais me ajudaram nos primeiros dois anos apenas com a moradia. Sarah e Samuel, desde que saíram da maternidade, foram sempre minha total responsabilidade! Sempre cuidei sozinha, arcando com as trocas de duas fraudas, dando duas mamadeiras, dois banhos, duas roupas... Duas de tudo! Mamãe queria me ajuda, porém meu pai não permitia. Quando fizeram três meses e minha reserva de dinheiro acabou, arranjei um emprego na floricultura e os coloquei na creche do governo. Foi muito difícil deixa-los, mas era minha única opção.

Desde então, conquistei um emprego melhor no jornal local e consegui bancar meu curso de enfermagem, o máximo oferecido em Belo Recanto. Após um ano e meio de curso, o emprego no hospital central veio rapidamente e me possibilitou a mudança da casa de meus pais. Foi a melhor coisa de minha vida comprar um apartamento pequeno longe deles, onde pudesse viver em paz e sem cobranças com meus dois filhos. Difícil? Sempre foi... Mas por obra do destino sempre tive muita sorte.

— Não penso mais em Lorenzo — Retruquei a ela totalmente irritada.

— Lorenzo? — Sorriu de canto e me afundei no banco ao ouvir seu nome — Se não pensasse nele não estremeceria com o nome dele. Se não pensasse nele não teria essa barreira enorme sobre contar aos meninos sobre o pai!

— Como posso não estremecer perante o nome do pai dos meus filhos? Como posso ser tão dura? — Tentei ser imparcial, soar como uma pedra.

— Não precisa me esconder... O que sente por ele?

Abaixei os olhos e fitei minhas mãos. Seis anos se passaram desde que me entreguei pela primeira e única vez a um homem. Seis anos sofrendo as consequências, seis anos ligada a um dia de forma inexplicável, mexida pelos acontecimentos, abalada pelos sentimentos adormecidos... Seis anos amando um homem que não sentiu absolutamente nada por mim! Doía constatar isso. Doía não poder ter dado um pai de verdade aos meus filhos. Doía ser um fracasso como mulher, ainda tão jovem.

— Se é isso que você quer ouvir... — Suspirei e fiquei de pé, ameaçando ir até meus filhos — Depois de todo esse tempo e tudo que me fez... Ainda amo Lorenzo.

Lorenzo

Sentia-me fraco... Sentia-me exausto, porém não pude evitar pegar o carro e ir em busca dela. Mesmo sabendo que não teria coragem o suficiente para me mostrar essa noite, fui em busca de Laura no endereço que meu detetive descobriu.

Apesar de ter feito o sol o dia todo, a noite caiu e a chuva castigou a cidade no final de tarde. Estacionei no meio fio, do outro lado de um condomínio de prédios simples e graciosos. Era muito a cara dela, muito doce. Através dos pingos de chuva colados a janela observei os prédio, duas torres lado a lado. Qual desde andares seria a casa de Laura? Será que ainda estava com nosso filho ou, por ventura, se desfez dele quando nasceu?

Eram tantas possibilidades, tantos temores... Vê- la após seis anos! A ideia me fazia estremecer! Será que ainda tinha aquele olhar doce e infantil? Será que ainda era tão ingênua e terna como antes? Seria loucura pensar que nada tenha mudado. A Laura que conheci era uma menina inexperiente, sozinha e acabava de dar as caras e uma nova vida; a Laura que verei é uma mulher, mãe de uma criança e responsável, ferida... E a culpa disso tudo era minha.

Sabia que se não me perdoasse, teria toda a razão. Sabia que era orgulhosa o suficiente para dizer não ao meu dinheiro, minha herança, mesmo que fosse direto dela e de nosso filho.

“Não quero seu dinheiro!”.

Dissera-me um dia, quando lhe ofereci dinheiro para o aborto. Engoli a respiração. Se ela não me aceitasse diria a verdade e a comoveria com minha vida no fim. Ou não... Talvez fosse isso o que Laura desejasse. Minha morte.

Um carro vermelho estacionou em frente ao prédio, o local reservado para visitantes. Sendo idiota, sabia que não a veria se entrasse pelo portão do estacionamento. Desesperado, atrás de qualquer resposta, esgueirei o olhar no vidro fumê sem resultados aparente. Alguém saiu do carro! Era uma mulher... Uma mulher pequena com um guarda chuva. Uma mulher morena, que andou até a portaria e apertou o botão para falar com o porteiro.

Filho da mãe sortudo!

Exclamou minha mente.

É ela!

Apesar de estar a uns dez metros, mesmo depois de mil anos a reconheceria. O jeito tímido e gracioso de andar balançando os quadris, a forma como seu cabelo caia nas costas e seu jeito de balançar a perna quando estava impaciente. Lembrei-me do chiclete em seu sapato. Do esforço que fiz naquela noite para não olhar suas pernas bonitas. Sorri. Minha doce e inocente Laura, após tantos anos...

Tão rápido quando chegara, entrou no prédio as pressas, deixando o guarda chuva do lado de fora. Iria voltar rápido.

A sensação era degradante! Uma adaga sendo enfiada em meu coração. Tão linda... Tão sozinha. Sozinha. Onde estava a criança? De repente não consegui mais pensar e sequer raciocinar! Será... Será que tinha se livrado dele antes que nascesse? Será que tinha o doado em adoção? Será que tinha sido tão fraca quanto eu?

Tive que sair dali. A sensação de mal estar ultrapassava limites inimagináveis, tornando a dor na cabeça e no corpo terrível... Estacionei o carro para me conter do mal estar e passei a pesquisar no celular um caminho até o hospital mais próximo. Eu não podia morrer agora!

Não quando estava a um passo de reencontrar Laura e possivelmente nosso filho.

Laura

Plantão.

Doía saber que a promessa não seria cumprida. Doía saber que tive de quebrar o juramento que fiz para minha filha! Uma enfermeira faltou e me convocaram para cobrir o plantão dela. O dinheiro dos plantões era sempre muito bom, um acréscimo que me ajudava muito a comprar as coisas das crianças. Não havia como dizer não e por isso tive de ir para o hospital trabalhar as horas extras.

Mamãe deixou os gêmeos com a babá no apartamento e entre o intervalo dos turnos passei correndo em casa para dar um beijo e me desculpar. Era horrível ver os olhinhos deles quando ia embora, mas sabia que era o necessário. Sabia que era para eles.

Voltei para o hospital nervosa e cansada, mas tudo se tornava mais fácil por amor a minha profissão. Após largar o sonho de ser jornalista aprendia a amar ser enfermeira e atender as pessoas necessitadas. Na maioria dos plantões nada além de gripe acontecia naquela pacata cidade. Até para doenças Belo Recanto era parada... Acidentes aconteciam raramente, mas era necessário existir um período noturno.

Sentei e esperei, contemplando o hospital vazio. Conversava sobre o tempo com a copeira da internação quando a porta se abriu e era um dos médicos mais renomados do hospital.

— Laura — Murmurou pálido como nunca vi, caminhando na direção do armário de medicamentos apressadamente — Precisamos de morfina. Temos um paciente com muitas dores lá em cima!

— Temos morfina lá em cima! — Expliquei ficando de pé e assustada com sua expressão. Era um homem muito experiente e que dificilmente se alterava, algo que demonstrava a gravidade envolvida no caso.

— Sim, tinha... — Assentiu esfregando o cabelo grisalho e vasculhando algo na gaveta. Pegou as seringas e os apetrechos — Mas acabou! Preciso de mais, por favor. Urgente!

— Sim, o que houve? — Comecei a providenciar os medicamos que me listava.

— Trata-se de um paciente com leucemia. É um turista que está na cidade a pouco e faz exigências estranhas. Ao que parece não deseja ser tratado — Reuniu todos os remédios em suas mãos — Não quero que esse homem morra em minhas mãos! — Rapidamente me comovi com a história absurda, porém dramática e real — Você vem comigo Laura? As enfermeiras estão se negando a atendê-lo porque rejeita tratamento avançado.

— Claro doutor. O senhor pode contar comigo!

 


Capítulo dez

No corredor, seguindo o doutor Billy para atender ao tal paciente grave, deparei-me com uma emergência distinta. Tratava-se de uma criança com um prego cravado acidentalmente no pé, o que havia ocasionado um terrível ferimento.

Como todos os médicos experientes estavam mobilizados no homem com leucemia, tive que abandonar o caso, desculpando-me com doutor Billy e honrando meu juramento de nunca negar atendimento a um paciente. A criança agora era minha prioridade, sendo eu a enfermeira mais experiente envolvida no plantão.

— Tudo bem Laura — Luci, uma de minhas colegas, sussurrou me auxiliando a fazer o curativo no pé da criança, que estava mais calma após todo o escândalo que fez na pequena retirada do corpo estranho de seu pé — O outro paciente está sendo bem cuidado pelos médicos. Está em boas mãos, você fez o que era correto.

Nada respondi, apenas continuei meu trabalho totalmente tremula por dentro. Apesar de aparentar segurança, não podia parar de pensar no tal homem no andar de cima. Exigia procedimentos? Não quer ser tratado? Que raios de paciente era esse que não queria ajuda e estava em um hospital? O menininho, deitado na maca ao lado de seu pai, ainda soluçava o choro de antes.

— Está tudo bem enfermeira? — O pai do garoto questionou quando fiquei de pé e limpei as mãos delicadamente em uma toalha branca. Luci, a estagiária de enfermagem que vivia na minha cola, saiu da sala apressadamente — O pé dele está curado?

— Senhor, eu fiz tudo o que podia — Ambos, pai e filho, me olhavam com os rostos semelhantes. A preocupação daquele pai era obvia e chegava a me comover! Segundo o que ouvi das demais enfermeiras, o menino de sete anos não tinha mãe. Morte no parto. Pobrezinho — Esse pequeno terá que ter muito cuidado! Andará de muletas, não fará esforço com o pé e terá que ser medicado. Nada de brincar por aí durante algum tempo! — Adverti com um sorriso presunçoso. O menininho fez bico.

— É isso que dá não prestar atenção onde pisa, filho — Soava um tanto ressentido — Ouviu o que a enfermeira disse? Terá que tomar muito mais cuidado agora.

— Terá também que vir aqui para fazermos acompanhamento a cada quatro dias — Pisquei — Vou pegar um remédio para dor. Ainda doí muito?

— Só um pouquinho — O pequeno sorriu para mim secando o rosto, agora livre de lágrimas.

Virei-me e comecei a pegar o medicamento leve do menino, me distraindo enquanto passava os olhos pela medicação solicitada pelo doutor minutos antes. Aquele paciente... Aquele que não queria se curar. Sai da alucinação e entreguei o copinho ao menino, para que ingerisse o remédio oralmente e em liquido.

— A senhorita tem filhos, enfermeira? — O pai do garoto questionou humildemente. Pelo que entendi já falava comigo a um bom tempo, mas não prestei total atenção. Ainda queria saber tudo sobre o homem no andar de cima.

— Ah, sim — Garanti não podendo evitar sorrir. Sempre que falava dos meus filhos tinha motivos à beça para fazê-lo — Tenho dois, um casal de gêmeos. Samuel e Sarah.

— Nossa, que legal! Queria ter um irmão gêmeo — O pequeno me entregou o copinho vazio. Sorri para eles e Luci adentrou a sala correndo e esbaforida.

— Laura, por favor! — Requisitou-me com uma das mãos no peito em sinal de surpresa. Pedi licença aos pacientes e sai de lá ajeitando meu cabelo, já que o coque que sempre usava em horário de trabalho estava meio desfeito com os esforços atuais.

— O que houve Luci? — Saímos do pequeno quarto na enfermaria e nos dirigimos ao posto das enfermeiras. Luci parecia baqueada.

— Descolei a fofoca sobre o homem lá em cima — Sussurrou e prontamente me interessei — Falei com a Jacy, ela o atendeu com o doutor Billy.

— Jura? — Tentei não soar muito curiosa, mas era impossível! Minha gana de saber algo sobre o caso era tamanha que mal conseguia parar de morder os lábios em antecipação — Então... Conte-me, por favor — Cruzei os braços em expectativa — O que houve com ele? De onde é?

— Veio de Madrid — Contava com os olhos brilhando — Bonitão, daquele estilo loiro e alto de olhos claro... O tipo de homem que se perde nessa cidade, claro — Deu uma risadinha maliciosa. Revirei os olhos... Assim como todas as demais, olhava apenas para o físico dos homens — Bom, o lado ruim é que tem leucemia. Como não quer receber ajuda, vai morrer em menos de um ano ou dois.

— Como assim... Não quer ajuda? — Aquilo fora praticamente um soco em meu estômago! Em quatro anos trabalhando na área de saúde nunca vi sequer um paciente recusando ajuda! Os outros médicos e enfermeiras também não, pois acontecia sempre ao contrário — Ele não tem como pagar?

— Pelo contrário! Ouvi o doutor Billy dizendo para Jacy que o homem é muito rico, possui empresa própria e tudo — Assentia positivamente — Como eu disse, seria perfeito se não estivesse morrendo aos poucos!

— Meu Deus... — Comentei desacreditada! Não sabia se tinha dó pelo homem estar doente ou se o condenava por não querer o tratamento. Resolvi ficar neutra. Não sabia nada sobre sua vida para julgá-lo — Que situação deprimente... Tanta gente precisando e querendo ajuda...

— Pois é. Queria mesmo é saber o motivo que trouxe um homem assim para Belo Recanto... Quem iria querer morrer nesse fim de mundo?

— Vai saber... — Dei de ombros ainda intrigada — Ele... Ainda está lá em cima? — Questionei sentindo uma pontinha de vontade de ir até lá.

— Talvez sim. No momento em que subi tinha acabado de recusar um papo com Doutora Jane, a psicóloga. Que ir lá ver?

— Vamos. Preciso pegar alta para o garotinho do prego. O doutor Billy me concederá.

***

Já não estava lá.

A vida estava se encarregando de tirar esse homem de meu caminho por alguém motivo. Seja ele qual fosse, era ignorado aos meus olhos! Conformei-me em saber apenas de seu drama e segui meu plantão, mas essa história descabida não me descia! O homem simplesmente chegou ao hospital com dores e exigiu algo para aliviá-las. Contou o motivo das dores — seu câncer inicial — e recusou ajuda para a mesma, querendo apenas terminar temporariamente com a maldita dor. Como dissera o doutor Billy:

“Para uma pessoa recusar ajuda da forma como recusou, deve estar realmente muito infeliz com sua existência”.

Que motivos seriam tão sérios a ponto de me levarem a recusar a vida?

Mesmo que não fosse perfeito viver sozinha, sem um companheiro, tenho o mais importante, aquilo que é a base de tudo o que faço: Samuel e Sarah, meus gêmeos. Meus filhos! Nada me faria desistir e essa era a resposta correta. Por meus filhos continuaria lutando até o fim, até não ter mais forças para respirar...

Será que esse homem não tinha família? Não tinha esposa e filhos? Não havia nada em sua vida para que valesse a pena lutar?

O plantão acabou às seis da manhã. Peguei minhas coisas, vesti um casaco cor de rosa sobre meu uniforme branco e impecável e segui para a máquina de café, sacando de lá um cappuccino. Apressadamente comprei duas balas de laranja e voltei para casa, dirigindo apressada. Queria ter mais tempo com meus filhos antes da escola, as oito.

Cheguei em meu apartamento exatamente as seis e meia e peguei os gêmeos acordando junto a Sindy, a garota que tomava conta deles nos meus plantões.

— Como foi tudo? — Questionei colocando a bolsa no sofá. Samuel e Sarah estavam lado a lado com cara de sono, sentados a mesa do café da manhã de pijama.

— Bem senhorita — Cindy, a babá, assentiu pegando sua mochila. Era uma menina simples e jovem, deveria ter no máximo vinte anos. Assustava-me nossa semelhança de idade e distanciamento de mundos. Eu, aos vinte e três, era mãe de duas crianças e precisava trabalhar e ter muitas responsabilidades. Cindy, ao menos três anos mais nova, ainda se preocupava em colocar chaveiros em sua mochila com estampas de Rock — Eles sempre se comportam bem.

— Que bom — Assenti e tirei o dinheiro da bolsa — Obrigado Cindy. Assim que precisar ligarei novamente.

— As ordens, senhorita — Piscou para mim e pegou as notas — Bom dia crianças.

Olhei para ambos na mesa comendo cereal matinal e fui até lá. Puxei uma cadeira e me sentei ao lado de Samuel, acariciando seu cabelo. O pequeno prosseguiu comendo calmamente. Coloquei as balas sobre a mesa.

— Eu trouxe para vocês.

— São minhas favoritas — Sarah sorriu com a boca cheia de cereal.

— As minhas também! Sarah sempre me copia só porque temos quase o mesmo rosto... — Mostrou a língua para ela.

— Isso não é verdade! — Acusou meio sentida com as palavras do irmão — Sempre gostei das laranjas!

— Como foi o trabalho mamãe? — Samuel, desviando o assunto, olhou para mim.

— Como sempre... Fiquei com saudades... — Acariciei seu cabelo novamente.

— Você sempre fica! — Sarah sussurrou e observei-a demoradamente. Mesmo Samuel sendo menino, mesmo os dois possuindo exatamente o mesmo rosto, olhos e traços, Sarah era a que mais me lembrava de Lorenzo.

Tinha um jeito doce e desastrado, uma forma engraçada de se portar. Pelo pouco que conheci daquele falso Lorenzo, as características se encaixavam demasiadamente.

Falso... Mesmo que o tenha sido, o único Lorenzo do que gostava de me lembrar era o que conheci no bar naquela noite estanha. O que tinha sido meigo e apaixonado todo o tempo, o mesmo que fez amor comigo da forma mais terna e romântica do mundo durante toda aquela noite do dia quatro de Janeiro.

— Mal passou o ano novo e já vamos para o colégio — Samuel reclamou descendo da mesa.

— Gosto do colégio — Sarah desceu da mesa também.

— Prefiro ficar na vovó ou com a mamãe...

— Ainda prefiro o colégio... — Ambos foram para seus quartos e nada mais ouvi.

Como eram de sexos diferentes, resolvi logo o problema dos quartos, que com certeza viraria terceira Guerra mundial na adolescência deles. Comprei um apartamento com três quartos e deixei um para cada um. Retirei os pratos da mesa e desfiz meu coque, cansada do plantão, mas sabendo que teria de limpar a casa depois de deixa-los na escola. Suspirei. Sobraria uma hora ou duas para ler antes de dormir até a hora de buscá-los.

Após a breve tarefa, me dirigi ao quarto. Sentei-me na cama e observei o calendário pendurado em minha porta... Dois de Janeiro. Janeiro. Amor. Um homem chamado Lorenzo. Gravidez. Abandono. Gêmeos. Saudades.

Foi mais forte do que eu! Antes que pudesse me dar conta, estava com a mão enfiava no fundo de minha gaveta trancada com chaves procurando a foto... A única foto que tinha de Lorenzo! Estávamos juntos no retrato amassado, obra que fiz quando fiquei com raiva dele após o nascimento dos gêmeos. Um dia desamassei e chorei ao olhar a imagem de nós dois abraçados e sorrindo, felizes e apaixonados durante uma tarde em seu carro. Aparentemente éramos o casal mais lindo do mundo, mais completo...

Como pude acreditar em um amor tão perfeito, em uma junção tão simétrica? Isso só existe na matemática, poxa!

Respirei fundo ao contemplar seus olhos verdes e apertados, o desenho da boca, a cor do cabelo... Lembrava tanto Sarah e Samuel... Era tão ardente... Eu o amava. O amaria para sempre.

— O que é isso mamãe?

Derrubei a caixa no chão, espalhando o conteúdo inútil aos meus pés, mas segurei a foto contra o peito. Tarde demais! Sarah havia entrado e estava esgueirada ao meu lado usando seu uniforme do colégio. Saia rodada da cor roxa escura, blusa branca e social, meias e sapatinho. Usava também uma boina roxa em seu cabelo liso, totalmente ao contrário do de Samuel. A única coisa que os diferenciava além do sexo.

— Uma foto — Lembrei-me de algo que dizia: esclareça sempre as duvidas das crianças, do contrário irão apenas querer saber mais e mais — Minha foto.

— Ah... — Comentou sorrindo — Posso olhar? — Questionou sorrindo toda empolgada.

Gelei por alguns momentos... Era impossível Sarah ver a foto e notar qualquer semelhança entre ela e seu... Seu pai . Era muito pequena e inocente, ainda sem tal percepção. Suspirei e afastei a foto, exibindo-a para seus olhos curiosos. Sarah olhou durante um tempo interminável, atacando minha ansiedade de forma avassaladora!

— Pronto? — Era a primeira vez que Sarah punha os olhos em seu pai e por um momento me achei injusta com os gêmeos. Deveria ter mostrado antes, quem sabe, mesmo que não revelasse quem era o homem que posava no retrato ao meu lado — Viu como a mamãe era mais bonita?

— Muito bonita! Esse homem também é bonito — Apontou Lorenzo. Ver seu dedo pequenino sobre a figura de seu pai me encheu de algo estranho o coração. Amor ou ódio? Não podia distinguir entre sentimentos tão distintos e avassaladores.

— Realmente querida... Um homem muito bonito.

— Era seu namoradinho? — Soltou um sorriso apaixonado e com o dedinho na boca.

— Um dia foi — Toquei seu rosto e guardei a foto de volta na caixa, me abaixando para recolher as coisas que caíram — O que queria comigo filha?

— Falar sobre meu presente do dia quatro de Janeiro! — Sentou na cama. Criei o estranho hábito de suprir meu vazio nos dias quatro de Janeiro e arranjei uma data especial para os gêmeos. Era o dia especial do presente! Ambos escolhiam o que queriam e eu lhes presentava para manter a tradição. Parecia ser a única forma de esquecer as dores e manter viva a memória que me ligava diretamente a Lorenzo — Samuel disse que quer um vídeo game... Quero algo menor.

— Certo. Um vídeo game — Coloquei a caixinha de volta no lugar e a olhei — O que você quer mocinha? Uma boneca nova?

— Quero um avião.

“Curso Engenharia Aeronáutica porque venho de uma família de aviadores. Meu bisavô e avô eram homens apaixonados por aviões. Meu pai herdou a Empresa da família e em breve será minha... Futuramente de meus filhos e netos”.

Aviadores. Família de aviadores. Um nó se fez em minha garganta enquanto encarava Sarah.

— Avião? — Questionei em um sussurro — Tem... Certeza?

— Sim mamãe. Um avião — Sorriu docemente — Samuel quer o vídeo game para jogar jogos de aviões e eu quero o meu para poder voar com ele em mãos! Um dia serei uma moça que anda nos aviões!

— Aeromoça? — Arrisquei.

— Isso! Vou voar para todos os lados... Adoro voar. Adoro aviões. Você gosta mamãe?

— Ah meu Deus... — Respirei fundo buscando tentando me controlar.

Porque eram tão semelhantes a ele?

Lorenzo

Descobri a doença há poucos dias e no estágio inicial, algo que tornava os sintomas da mesma ainda quase imperceptíveis. No entanto, era comum a febre alta me assolar de repente, assim como o grande suadouro e as dores horríveis nos ossos e articulações. Não tive escolha a não ser me prestar a ir ao hospital implorar por um remédio que me tirasse aquela agonia...

Estava ciente de que não teria muito tempo, por isso corri contra o tempo em busca de ganhar apenas mais alguns meses.

O único motivo desta viagem deveria ser resolvido logo. Ao voltar do hospital tive a certeza de que não queria morrer em Belo Recanto, mas sim em minha casa e no meu país. Seria tudo muito mais fácil se não fosse aqui, tão longe de minha naturalidade. Por volta das três e meia da tarde do dia três de Janeiro - uma chuvosa segunda-feira - dirigi até o apartamento de Laura disposto a falar com ela e encerrar isso tudo de uma vez! Não havia mais tempo para ficar rondando! Deveríamos tratar da negociação rápido e antes que o clima do lugar me afete ainda mais!

“Você não tem filhos? Não tem nada para o que valha a pena lutar?”

Eram sempre as mesmas palavras e as mesmas frases feitas! Ninguém compreendia meu ponto de vista e o quão inútil era minha vida... Ninguém era capaz de enxergar que Deus me enviou essa doença por todos os pecados que cometi contra a única pessoa que me amou de verdade e contra meu próprio filho, sangue de meu sangue!

Estacionei o carro e no exato momento em que o fiz vi o carro de Laura sair da garagem do estacionamento subterrâneo de seu apartamento. A placa do veículo condizia perfeitamente com a anotada por meu investigador, além do modelo e cor do automóvel também bater com o descrito. O vidro encontrava-se aberto apesar da fraca chuva e vi corretamente seu perfil. Acenou para o porteiro e falava ao celular um tanto nervosa.

Sem ser racionar passei a segui-la de longe, andando com o carro um pouco atrás do seu. Percorreu avenidas e estava indo para o outro lado da cidade um pouco apressada e, ao que parecia, distraída. Não demonstrava ter notado que estava sendo seguida.

Apertei os dedos no volante de couro quando Laura estacionou a frente de uma casa comum, pintada de branco por fora, com uma varanda grande e um belo jardim. De guarda-chuva desceu do automóvel carregando uma mochilinha colorida e uma bolsa feminina pendurada no braço. Meu coração disparou ao vê-la mais de perto... Apesar de igual, apresentava-se diferente. Com o leve balançar de seus quadris ao andar percebi que aquela menina que conheci anos atrás já não existia de jeito nenhum! Soava mais segura e distinta. Era uma mulher agora e isso poderia ser tido com todas as letras!

Laura teria de me ouvir apesar de eu mesmo não tê-la ouvido anos atrás.

Adentrou a casa com suas próprias chaves... Cogitei a possibilidade de ela ter outro homem em sua vida. A ideia de meu filho conhecer outro homem como sendo seu pai aterrorizou meu coração e acelerou a raiva a me dominar. Raiva de mim mesmo, até o próprio ódio! Laura não faria errado em apresentar um pai à criança... O tal certamente deveria ser bem melhor do que fui por assumir um filho de outro!

Desci do carro em meio à chuva sem me importar em me molhar ou olhar para trás. Nada mais me importava! Caminhei em passos firmes até a varanda e subi as escadas correndo. Bati na porta de madeira duas vezes de maneira intensa e ansiosa.

“Pai atende a porta! Estou colocando a mesa do café”.

Laura não estava sozinha! Abriram a porta e se tratava de um homem alto, de cabelos grisalhos e olhar confuso. Encarou-me amigavelmente e cruzou os braços em frente ao peito.

— Boa tarde rapaz. Em quê posso ajuda-lo? — Disse firmemente, mas não me intimidei.

— Boa tarde senhor. Por favor, Laura está? — O homem estreitou o olhar — Sou um velho amigo e preciso falar com ela.

— Está sim. Entre — Deu espaço de forma educada, afastando-se alguns passos. Adentrei a sala bem decorada da casa em questão olhando ao redor e examinando o ambiente — Um momento rapaz... — Foi até o corredor — LAURA, VOCÊ TEM VISITA! ANDE LOGO, NÃO DEIXE O RAPAZ ESPERANDO! — Disse em voz alta. Respirei fundo e abaixei os braços.

Era agora. Depois de tantos anos havia finalmente chegado o momento!

— Visita? — A voz se aproximava — Que visita pai?

Por um momento o mundo parou. Vi sua silhueta se aproximar com pressa e enxugando as mãos em um pano de prato lilás. Usava calça jeans apertada, sapatilhas, blusa de alças azul e cabelos presos acima da cabeça. Sim, essa era a simples e maravilhosa Laura! A menina doca e inocente que escolhi para ser vitima de minha maldita aposta!

O sorriso em seu rosto se desfez quando parou ao lado de seu pai. O belo rosto empalideceu quando ergueu os olhos para mim e... Céus! Porque era tão gratificante e surreal ver sua face novamente? Tive a impressão de que nada mais existia ao redor daquele instante. Havia dor em seu olhar misturado a surpresa, deixando claro que não acreditava no que estava acontecendo!

— Eu não... — Olhou para seu pai brevemente. O homem estava apenas parado nos observando — O que... O QUE ESTÁ FAZENDO AQUI?

— Oi Laura.

Os olhos saltaram no rosto e levou uma mão ao peito. Certamente não se esqueceu de mim! Ouvi um barulho vindo da porta enquanto nossos olhos mantinham contato visual intenso... Eram risadas!

“Vou contar à mamãe que comeu todas as balas”.

“Dei balas para meus amigos, não comi sozinho”.

“Mas as balas são suas, não deles. Não é mesmo vó?”

“Querida, deixe seu irmão comer as balas. Cuide das suas!”

“Sim senhora vovó”.

Por um segundo olhei novamente para o rosto de Laura e o coração saltitou em meu peito. Crianças. Seria o meu filho ? Era a doce voz de uma menina... Seria uma garotinha, não o garoto que sempre imaginei? A ideia me encheu de ternura quando a porta se abriu. Laura sequer se movia enquanto tudo acontecia ao redor!

Pela porta passaram duas crianças pequenas e loiras, um menino e uma menina. Eram parecidos, doces e graciosos. Gêmeos. Filhos de Laura.

Meus filhos diante de meus olhos pela primeira vez.

 


Capítulo onze

Pela primeira vez em anos imaginei qual fim poderia ter sido dado aquela criança. Ao meu filho!

Havia chegado a nascer?

Laura ficou com ele?

Laura voltou atrás e abortou a gestação?

Laura deu nosso filho para adoção?

Era uma criança feliz?

Era um menino?

Parecia comigo ou com ela?

Em meio as mais absurdas teorias, jamais parei para pensar em tal possibilidade... Jamais me passou pela cabeça que Laura pudesse estar grávida de duas crianças!

Em meus devaneios imaginei um garotinho loiro, de olhos escuros como os da mãe e encantador. Um filho pelo qual iria me orgulhar! Realmente havia um menino e aquela bela criança era muito semelhante à de meus sonhos, certamente ainda mais do que qualquer dia esperei! Carregava uma mochila azul nas costas, usava uniforme escolar e trazia na face uma expressão confusa e curiosa.

Minha maior surpresa, no entanto, encontrava-se parada ao lado do garotinho.

A pequena garotinha estava agarrada as alças da mochila cor de rosa e aquele olhar certamente era do que quem já me conhecia de algum lugar. Ao contrário do irmão, não parecia surpresa e muito menos curiosa por minha presença. Meu coração se encheu de ternura ao contemplar tamanha doçura... Ao contrário do garotinho, que assemelhava a mim, a graciosa garotinha era muito mais parecida com Laura.

Eles são gêmeos. Meus filhos são gêmeos!

Sorri para mim mesmo tomado pela emoção e absolutamente sem palavras.

Não se fez sequer necessário perguntar a Laura se aquelas crianças eram meus filhos. Não havia motivos para fazê-lo! A mesma estava pálida, olhando a todo instante de mim para os gêmeos. Não sabia o que dizer, estando tão surpresa pela inusitada situação quanto eu.

Aquelas lindas crianças eram frutos da noite do dia quatro de janeiro... Frutos de uma aposta, uma história inacabada! Fruto de um desejo proibido... Frutos da inocência... Frutos de um pecado... Frutos de uma noite!

Durante seis anos imaginei várias coisas, mas nada se adequava a realidade. Jamais em vida sonhei tão alto... Jamais imaginei ter sido o responsável pela vida de tão amáveis criaturas!

— Crianças, acho melhor irmos para a cozinha. Mamãe tem uma visita e não queremos atrapalhá-la — A senhora que os acompanhava, provavelmente mãe de Laura, disse sem retirar os olhos de minha face transtornada.

— Quem é ele? — Perguntou o garoto. Laura engoliu a respiração e passou a mão pelo rosto.

— Não é ninguém — Respondeu prontamente. Vi o pai dela olhando de mim para os gêmeos e tirando suas próprias conclusões. Era tudo tão claro quanto água e bastava à mínima vontade de enxergar para a situação vir a pratos limpos.

Uma vontade da qual me privei nos últimos seis anos.

— Ninguém ? Seu nome é ninguém? — O garoto estreitou o olhar para mim.

— Vão para a cozinha com a vovó. Agora! — Laura ordenou cheia de autoridade. A garotinha mantinha os olhos em mim sem desviar e dava a impressão de estar hipnotizada.

— Mas...

— Sem perguntas, filho! Esse homem é... É só um vendedor — As breves palavras de Laura para nosso filho me rasgaram o coração! Naquele momento cai em mim e tive o choque de descobrir que para aquelas duas crianças eu não era nada, apenas um completo estranho! Para meus filhos minha vida não significava nada! — Ele já está indo embora. Não deveria sequer estar aqui!

Laura encarou-me firmemente e senti o impacto daquele olhar corroer todo meu corpo como ácido. Certamente não havia me perdoado e ser digno de seu perdão era meu maior objetivo naquele instante.

A avó levou o garoto para a cozinha, mas a menininha seguiu estática ainda com os grandes olhos claros em meu rosto.

— Filha! Ouviu o que eu disse? — A avó voltou e pegou na mão pequenina, obrigando a pequena a sair da cena no mesmo instante. O pai de Laura seguiu-as, deixando-nos finalmente a sós.

Após seis anos eu estava diante dela... Laura... A garota que seduzi. A minha garota do interior.

— Laura...

— Fora. Daqui. Suma! Desapareça agora mesmo! — Silabou entredentes e apontando em direção a porta.

— Precisamos conversar... — Tentei soar calmo, mas minha voz estremeceu. Estava demasiadamente emocionado com a situação e principalmente pela presença dela.

— Não quero conversar! Não tenho nada para te dizer! — Estava realmente séria e muito certa do que fazia — Quero apenas que suma de minha vida e não volte a aparecer nunca mais!

— Preciso falar contigo Laura... Nós temos um assunto para tratar — Aproximei-me alguns passos, mas ela recuou no mesmo momento.

— Não sei se notou, mas já é tarde demais para conversar! Você se atrasou seis anos, Lorenzo, e o tempo é algo que não se recupera!

Meu nome. Ela disse meu nome. Respirei fundo diante de tais alegações, mas segui irredutível.

— Todos merecem uma segunda chance... Você não é ruim, Laura. Não pode fazer isso comigo... — A dor era evidente em minha voz.

— A Laura da qual se lembra não existe mais. A Laura que está em sua frente agora é bem diferente da menina idiota que você abandonou e fez de idiota... A Laura de agora foi criada a partir de sua maldade e egoísmo! — Dizia de maneira dura e o que havia em seu rosto era uma máscara talhada em mistério — Vá embora!

— Está certa de tudo o que diz? — Estreitei os olhos e Laura me encarou perplexa, sem acreditar em minhas palavras. Demorou alguns segundos para explodir em uma risada que mais parecia um modo para conter as lágrimas.

— Mal posso acreditar em tal situação! Não posso crer que depois de anos você sequer pense que exista a possibilidade de qualquer aproximação! — A verdade em suas palavras me golpeada fortemente a alma — Não existe sequer uma chance de eu te perdoar, Lorenzo! Não temos nada! Tudo entre nós acabou quando você me deu as costas naquele dia... Tudo acabou quando pediu que eu tirasse o meu bebê!

— Mas você não o fez...

— Acabou. Vá embora! — O grito de Laura trouxe o pai dela de volta a sala.

— Já chega rapaz! — O senhor alto ultrapassou a filha e se colocou a minha frente — É melhor você ir embora. Minha filha já disse que não quer falar contigo agora.

Encarei o homem por um tempo. Não me encontrava em condições de forçar qualquer coisa e não era hora correta para uma briga. Laura ainda tinha que se acostumar com a ideia de me ter ali e avaliar as condições, por isso respirei e assenti. Caminhei até a porta e olhei para Laura antes de sair por ela.

— Ainda vamos conversar Laura... Isso não acabou aqui! — Silabei e sai.

Quando mergulhei novamente na garoa e desci as escadas ouvi a porta bater com força atrás de mim e a chave ser girada instantaneamente na maçaneta.

Aquele era o barulho de Laura me tirando novamente de sua vida. Aquele era o estrondo que demonstrava que ela sabia que voltei... Aquele era meu objetivo finalmente começando a se aproximar!


Laura

Tranquei a porta com a chave e fechei os olhos bem apertados de modo a fugir da realidade. Minha mente não era capaz de processar nada dos últimos momentos que vivi.

Lorenzo. Lorenzo estava ali, caminhando por Belo Recanto!

— Porque não me disse que o pai dos gêmeos estava na cidade? — Meu pai questionou encostado a parede de modo despreocupado.

Abri os olhos lentamente e o encarei. Minha cabeça latejava e meus olhos doíam de tanto buscarem enxergar outra pessoa no lugar de Lorenzo.

— Meus filhos não tem um pai! — Afirmei convicta e sentindo lágrimas em meu rosto. Tudo o que mais desejava naquele momento era acordar daquele pesadelo e do sonho horrível.

— Não? Pois aquele homem se parecia muito com eles e mostrava-se interessadíssimo em conversar com você.

Passei por ele como um vulcão e ignorando suas palavras. Oh não, Sarah! Ela havia visto a foto de Lorenzo naquela manhã! Sua cabecinha deveria estar a mil e por um segundo fiquei com medo de estar frente a frente com ela.

Ouvi vozes na cozinha... Graças a Deus estavam falando! Respirei fundo antes de adentrar ao ambiente e parar de frente para a pia, olhando pela janela com curiosidade. Não havia carros na rua e Lorenzo realmente foi embora! Meu coração batia depressa e meu corpo pulsava rápido demais... Tudo ainda era surreal, indescritível e certamente uma loucura! O que aquele homem queria aqui? Porque desejava conversar depois de seis anos?

Hoje era dia três de Janeiro!

— O vendedor foi embora mamãe? — Samuel perguntou sentado à mesa e comendo um pedaço de bolo de laranja. Não precisei me virar para ver que estava mastigando.

— Foi sim... E nunca mais irá voltar! — Respondi com a voz ofegante. Não conseguia disfarçar o nervosismo e tão pouco era capaz de me controlar! A garganta ardia e queimava pela vontade de gritar alto.

— O que ele vendia? — Seguiu com as perguntas.

— Quer mais bolo Samuel? — Tentando cortar o assunto, minha mãe interveio.

— Não vovó...

— Não vendia nada demais, apenas coisa de adulto — Senti uma mão em meus ombros. Era minha mãe.

— Sente-se Laura. É melhor comer alguma coisa porque você já está ficando pálida! — Ela tinha razão, por isso me sentei à mesa. Não era bom me mostrar frágil em frente a meus filhos. Acomodei-me de frente com a Sarah, que comia olhando para o prato e tinha os olhos muito baixos. Parecia pensativa e inquieta.

— O bolo está gostoso, Sarah? — Questionei tentando tirá-la daquele estado.

— Sim mamãe — Respondeu erguendo os olhos e me encarando fixamente. Parecia querer me dizer algo — Comprou algo do vendedor?

— Não. Por favor, vamos comer e deixar o vendedor para lá?

— Como foi à escola hoje meus amores? — Minha mãe sentou-se ao lado de Samuel e sorriu simpática, buscando dissipar aquela tensão que cobria o ambiente. Apoiei a cabeça nas mãos e respirei fundo.

Ao contrário do que pensei por todos esses anos, Lorenzo ainda se lembrava de mim! Parecia-me incompreensível seu motivo de reaparecer justo agora... Pelo que eu me lembrava, aquele homem odiava a mim e ao nosso bebê!

— Devo confessar que me surpreendi com a visita — Meu pai adentrou a cozinha olhando fixamente para mim — Nunca pensei que ele fosse boa pinta... Eles têm para quem puxar! — Ergui os olhos para meu pai e, se possuísse visão raio lesar, o mataria naquele instante!

— Chega papai, chega! — Praticamente gritei, colocando-me de pé e apanhando minha bolsa — Vamos embora crianças! Peguem suas coisas!

— Mais já? — Samuel reclamou enquanto Sarah desceu da mesa se preparando sem dizer nada.

— Agora! — falei firmemente. Minha mãe nada disse.

Eu precisava ir embora. Precisava fugir e me esconder daquele cenário, me afundar em minha cama e pensar no dia de hoje. Queria que existisse uma tecla chamada “deletar” em minha vida e simplesmente apagar coisas desagradáveis.

Coisas que me magoavam como Lorenzo!

***

Samuel e Sarah não disseram nada durante todo o caminho. Tirei os sapatos e me sentei na cama querendo acreditar que iria acordar daquilo tudo a qualquer instante, que apenas estava deitada na cama e logo despertaria, mas não foi assim que aconteceu!

Deitei-me, fechei os olhos e somente consegui ver o rosto dele e a melancolia presente em seu olhar. Estava tão lindo quanto eu me lembrava... Usou preto naquela tarde, botas com casaco e calça jeans. Tinha o cabelo loiro molhado pela chuva, puxado para trás e agora usava barba. Já não sorria como antes.

— O que é isso?

Observei meu pulso após Lorenzo retirar a mão delicadamente. Havia uma joia em meu braço e era uma pulseira de prata reluzente. Linda, trançada e com pedrinhas brilhantes. Havia também um pingente... Um pingente de avião! Parecia ser um daqueles modelos caros e especiais. Ergui os olhos para Lorenzo um tanto confusa.

— Trata-se de um presente... — Deu de ombros — Para que sempre se lembre de mim! — Seu olhar era orgulhoso e queimava sobre minha pele. Por minha vez, não era capaz de tirar os olhos aquele pequeno objeto brilhante.

— Não preciso de presente para sempre me lembrar de você — Admiti sem encará-lo, abaixando os olhos e mordendo os lábios.

Esses momentos entre nós eram tão íntimos... Íntimos de uma forma inexplicável! Minha inexperiência me impedia de seguir firme, de olhar para ele e agir normalmente. Sentia o rosto todo corando, o estômago afundando e a pele formigando!

— Por favor, aceite — insistiu erguendo meu rosto delicadamente — Minha mãe tem duas pulseiras idênticas e uma delas é esta. Ela me deu e me disse para presentear uma garota especial... A garota especial! — Não conseguia processar perfeitamente suas palavras. Um presente de família para mim? — Essa garota é você, Laura.

— Obrigado... Ela é linda.

— Você também — Me puxou para mais perto, deslizando as mãos em minha cintura até meus quadris. Estremeci com seu gesto ousado, mas nem me atrevi a me mover! Seu toque queimava em minha pele coberta — Aceite — Murmurou ao meu ouvido após depositar um beijo quente em meu pescoço. Fechei os olhos e abracei seus ombros.

— Eu aceito.

Como aceitei tudo o que veio dele sempre e para sempre!

— Mamãe? — Abri os olhos com dificuldade. A luz de meu quarto estava acesa e chovia fortemente lá fora. Sarah estava parada ao meu lado na cama e segurava um coelho de pelúcia. Usava pijama lilás de estrelas e parecia realmente perdida — Está acordada?

— Agora sim Sarah — Me sentei assustada. Pulseira. Lorenzo. Avião. Sarah! — O que foi querida?

— Posso perguntar uma coisa? — Dei espaço para que se sentasse na cama. Ela o fez com delicadeza.

— Claro... Onde está seu irmão? — Abracei o travesseiro em sinal de desespero. Aquela pequena garotinha de cinco anos estava me apavorando mais do que um leão nesse momento!

— Dormindo — Olhei no relógio e era meia noite — Porque você mentiu mamãe?

— Menti? — Sarah assentiu — Sobre o que? — Tentei sorrir para, quem sabe, sair ilesa.

— Sobre o vendedor... — Sussurrou com carinha de tristeza — Você disse que ele era vendedor quando na verdade era seu namorado. Porque fez isso?

A maldita foto!

— Filha...

— Ele era o homem da foto — Continuava em tom doce e não havia armas contra aquilo — A foto da caixinha. Tenho certeza!

Encarei Sarah em silêncio durante muitos segundos tentando sair dessa situação absolutamente constrangedora! Mentir em frente aos meus filhos era a coisa mais horrível do mundo, porém como não fazê-lo em tal situação? Sarah parecia compreensiva, mas meu rosto corava de vergonha! O que dizer a essa pequena observado?

Ajeitei-me na cama abri os braços. Sarah veio até mim e se encaixou em meu abraço e deitando a cabeça em meu ombro. Beijei-lhe o cabelo com carinho.

— Menti porque não queria que ninguém soubesse que ele foi meu... Namorado — Falei calmamente com o objetivo de soar despreocupada.

— Porque não mamãe? — Olhou-me de baixo com os olhinhos verdes brilhantes na luz do quarto. Toquei seu rosto.

— Por que não gosto de me lembrar dele — Sussurrei como se fosse um segredo.

— Você também não gosta de lembrar o nosso pai... — Se não fosse tão inocente eu poderia jurar que havia sido uma indireta! Derretida, tentei não me render a toda sua delicadeza.

— Não, também não gosto! Prefiro não lembrar nenhum deles! Porque está perguntando sobre isso Sarah? Tem tanta coisa mais importante para perguntar...

Passei os braços ao redor de seu corpo e comecei a niná-la. Já fazia muito tempo que Sarah não cabia perfeitamente em meus braços... Já fazia um tempo desde que ela e Samuel começaram a perguntar sobre o pai!

— Porque você disse que mentir é feio! — Seu tom de desculpas. Suas bochechas estavam coradas — E mesmo assim você mentiu!

— Já pedi desculpa!

— Não pediu não! — Repreendeu.

— Certo... Desculpe-me! — Revirei os olhos e ela gargalhou em meu colo.

— Desculpada! — Me deu um beijo longo na bochecha — Posso dormir aqui com você?

— Claro que sim! Sabe que não gosto de ficar sozinha — Desci da cama e comecei a me trocar. Sarah ficou me olhando um tanto curiosa e deitada de bruços com seu bichinho de pelúcia embaixo do braço.

— Samuel também vai querer dormir aqui. Posso chamar ele? — Terminei de vestir a blusa.

— Claro filha! Chame o Samuel! — Em dois segundos Sarah saiu da cama e seguiu em direção ao quarto do irmão.

Apesar de ter acabado de acordar de um cochilo, me sentia estorvada e muito cansada. O dia tinha sido longo e perturbador, meio nostálgico e ridiculamente constrangedor! Sentei-me na cama e me cobri com o edredom vermelho, relaxando e tentando pensar que tudo iria ficar bem!

Assim que fechei os olhos à imagem de Lorenzo apareceu em minha mente de novo. Um sorriso doce e ao mesmo tempo presunçoso, a forma quente de me olhar, o jeito delicado e furioso como me beijava... Droga, suas mãos! Ele era tão bom com as mãos e... Ainda o amo. Porque ainda o amo? Porque ainda me sinto exatamente como me sentia há seis anos? Qual era sua maldição?

— Samuel está dormindo mamãe — Sarah anunciou entrando correndo no quarto. Logo escalou e subiu na cama — Vamos ter que dormir sozinhas.

— Deixe Samuel dormir — Sarah se enfiou embaixo da coberta e deitou em meu peito. Seu cabelo loiro espalhou-se sobre mim — Essa noite são somente as meninas — Em silêncio fiquei acariciando o cabelo de Sarah.

Era difícil assimilar que aquela coisa estranha que vi no televisor do ultrassom um dia havia se transformado nessa linda criança... Nessas lindas crianças! Era difícil e me doía crer que por pouco não cheguei a mata-los! Por muito pouco não tirei o direito de viver de meus próprios filhos!

Samuel e Sarah são as melhores coisas da minha vida e qual seria o sentido de tudo se não existissem?

Sempre imaginei ter um menino quando fiquei grávida e sempre pensei que seriam dois garotos. Sarah caiu de paraquedas e era minha surpresa! Quando a peguei no colo assim que saiu de dentro de mim mal acreditei que havia uma menina entre os bebês! Vê-los pela primeira vez havia sido muito emocionante e entristecedor ao mesmo tempo. Tão pequenos e indefesos...

Rosados, amassados e com fartos cabelos loiros cobrindo a cabeça minúscula, nasceram com os olhos claros e confusos. Eram de Lorenzo e pareciam me olhar perguntando “o que estou fazendo aqui?”.

— O que foi mãe? — Ergueu-se e sentou-se de modo a me encarar. Passou a mão em meu rosto delicadamente — Porque está chorando? — Sussurrou tocando uma lágrima sobre minha bochecha. Mal me dei conta deste fato. Mal percebi que estava chorando!

— Nada querida, nada... — Dei de ombros. Sarah me encarava com certa pena — Estava lembrando à primeira vez que te vi — Abriu um pequeno sorriso — Você com dois quilos e trezentas gramas e o Samuel com dois quilos e meio!

— E você chorou quando nos viu? — Gargalhou tentando me distrair.

— Sim, mas de felicidade! — Sarah deitou novamente perto de mim — Mamãe ama vocês! Sabe disso não é?

— Sim mamãe. Nós também te amamos!

Era estranho sequer pensar que Lorenzo estava aqui e demonstrava estar arrependido. Talvez fosse esse o exato motivo pelas lágrimas... Um fantasma que ressurgia depois de tanto tempo!

 


Capítulo doze

— Minha mãe iria adorar te conhecer — Lorenzo sussurrava ao meu ouvido.

Era difícil ouvi-lo, já que a um segundo atrás estávamos nos beijando loucamente encostados ao muro da faculdade escondidos de tudo e todos. Beijar escondido... Beijar um dos homens mais cobiçados da faculdade escondido! Tudo era novidade para mim naquele momento!

Lorenzo beijava muito bem e tinha o poder de me fazer esquecer tudo... Suas mãos prensadas de encontro a meus quadris me causavam nervosismo. Eu não sabia nem o que era me mover sentindo que naquele momento ele me desejava. Desejava-me! Como alguém poderia fazer isso?

— Sua mãe? — Encostei-me à parede e relaxei os pulsos, soltando a parte de trás de sua blusa azul.

— Sim — Se abaixou e roçou os lábios em minhas bochechas delicadamente, movendo as mãos em meu quadril. Estremeci entre seu corpo grande e acolhedor e a parede fria e dura. Parecia que Lorenzo gostava de me ver inerte e confusa, pois sorria contra minha pele e me apertava ainda mais — Ela iria dizer que você é uma linda menina... — Colou a testa na minha ainda movendo as mãos por meu corpo delicadamente. Talvez não quisesse me assustar com seu desejo, mas já o fazia — Muito doce e decente. Ela gostaria muito de você e tomara que um dia se conheçam — Roçou os lábios em minha garganta subindo uma das mãos por mina barriga lentamente. Penetrou de vagar por dentro de minha blusa regata e uma alça da mesma deslizou lentamente por meu ombro, ato que Lorenzo acompanhou com olhos ardentes.

A ideia de conhecer a mãe dele me invadiu. Opa. Isso era mesmo muito sério e um passo grande para um relacionamento confuso como o nosso. Não sabia mesmo como agir a seu olhar e a seus gestos. Queria retribuí-los, mas não sabia como e talvez tivesse medo de arriscar.

— Lorenzo...

Não terminei. Fui presa novamente em um beijo avassalador. Percebendo minha reação de surpresa, Lorenzo parou de me beijar alguns segundos. Encarou meus olhos grandes e sorriu de canto.

— Quer que eu pare? — Questionou seriamente. Os olhos ainda queimando de paixão. Nossas respirações ofegantes se entrelaçavam com a proximidade de nossos lábios.

— Não — Respondi nada mais do que a verdade.

— O que ela tem Sarah?

— N ão sei... Está falando coisas estranhas.

Abri os olhos. Vi duas carinhas idênticas me encarando e dois pares de olhos verdes focados em meu rosto. Os mesmos olhos verdes de meu sonho, mas estampados em rostos delicados e infantis. Samuel estava deitado junto a Sarah, que sugava uma chupeta rosa. A TV de meu quarto estava ligada em um desenho e... Oh Deus, foi um sonho!

— Bom dia mamãe — Samuel cumprimentou olhando para meu rosto e sorrindo.

Mamãe. Mesmo depois de seis anos ainda existiam dias em que eles me chamavam de mamãe e aquilo soava estranho. Sentei-me correndo e apanhei o celular no criado mudo, vendo a hora e o dia de hoje.

Sete e meia da manhã. Dia quatro de Janeiro.

— Vocês estão atrasados para o colégio!

Em dois minutos coloquei as roupas nos gêmeos enquanto me situava no tempo. Hoje tinha trabalho, mas meu turno começava a uma da tarde. Liguei para a babá ao mesmo tempo em que preparava a lancheira dos dois e... Droga! Os presentes do dia quatro de janeiro! A entrega estava na porta e apenas me lembrei quando a campainha soou alta. Apanhei os pacotes e escondi em meu quarto, planejando entrega-los quando voltasse do trabalho. Desci com a dupla correndo e passei a dirigir com certa pressa.

— Você está bem mamãe? — Vi seu reflexo no retrovisor do carro.

Samuel estava lindo como sempre trajando o uniforme azul do colégio e usando o cabelo loiro penteado para o lado. Lembrava-me seu pai até pelo olhar! Suspirei. Esse dia aniversaria a data em que os concebi há seis anos naquela fatídica e maravilhosa noite. Vê-los era aqui e assemelhar as lembranças me deixava claro o quão mágica é a vida!

— Sim filho. Estou bem! — Sorri para eles.

— Você falou a noite toda mamãe — Mordi os lábios diante das palavras de Sarah.

Falar a noite era um hábito a ser controlado já que existia o risco de eu falar algo comprometedor em frente a eles... Não queria nem pensar em tal hipótese!

— Foi apenas o cansaço filha. Nada mais — Prossegui dirigindo enquanto ambos tagarelavam sobre a educação física. Estacionei em frente à escola — Pronto... Não se esqueçam de que hoje a noite pegarão os presentes que me pediram. Mesmo que eu esteja no trabalho, Sandy fará isso para vocês.

— Nossa! Verdade! Hoje é dia quatro de janeiro! — O tom de voz de Samuel era mais animado do que quando se referia ao feriado de natal — Mal posso esperar para ter o meu videogame!

— Tomara que passe logo... — Sara suspirou com carinha entediada.

— Vai passar — Garanti com um pequeno sorriso — É melhor irem logo! Boa aula, amo vocês.

— Também te amo mamãe.

— Tchau mamãe, te amo! — E saíram do carro.

Acompanhei com os olhos ambos entrarem na escola até os cabelos loiros sumirem pela porta de madeira. Encostei-me ao banco e absorvi o silêncio... Era horrível ficar sozinha quando eles se iam, principalmente ficar sozinha todos os minutos do dia quatro de janeiro!

Graças a Deus tenho que trabalhar hoje!

Pensei enquanto dirigia de volta a meu apartamento. Das 13h às 1h da madrugada trancafiada no hospital e dedicando-me inteiramente as atividades de enfermeira... Era o que eu precisava! Samuel e Sarah ficavam assustados com minha carência acumulada nesse dia em particular, então era melhor ficar em um local onde existiam pessoas que sofriam mais do que eu. Talvez tenha sido esse o motivo que me levou a me tornar técnica em enfermagem.

Será que ele ainda está aqui?

Não pude evitar minha mente de confabular... O simples fato de cogitar estar no mesmo local que Lorenzo nesse dia marcante fazia meu pulso agitar! Maldito seja... Porque fez isso comigo? Porque aumentou minha sensibilidade? Maldita hora em que escolheu vir atrás de mim. Como será que me encontrou? Preciso não pensar nele e sim enterrar o passado!

Estacionei o automóvel em minha vaga de sempre e subi pelo elevador carregando duzentos quilos de nostalgia nos ombros. Só queria chegar em casa e tomar alguma coisa forte... Um café, quem sabe. As chaves não apareciam em meus dedos quando enfiei a mão na bolsa em busca das mesmas. Oh droga. Sempre quando estou nervosa e irritada essas coisas acontecem! Parei perto de minha porta e comecei a procurar incansavelmente com os olhos voltados para a bolsa... Uma voz familiar ecoou no corredor.

— P rocurando isto?

Parei com todos meus movimentos. Lorenzo. Ergui os olhos lentamente e o vi parado a minha frente sustentando as chaves em seus dedos. Usava uma blusa de lã colada ao peito e jeans escuro. O cabelo — como o de Samuel aquela manhã — estava molhado e penteado para o lado. Parecia cada vez mais pálido, principalmente usando roupas escuras.

Encostei-me a parede e apenas o encarei.

Mais uma vez o aviador ressurge do passado.

— Onde encontrou isso? O que está fazendo aqui? — Disparei contra ele, porém meu tom não soou tão drástico. Soou quase como um apelo silencioso de trégua. Oh Deus, é dia quatro... Ele está a minha frente!

— Vamos com calma, certo? — Abaixou as chaves e ficou me encarando calmamente. Sua postura era rígida e ao mesmo tempo descontraída com aquele sorriso fácil — A culpa não é minha se você deixou a chave pendurada em sua porta ao sair.

— Eu fiz isso? — Corei. Era de praxe eu esquecer a chave pendurada na porta, porém geralmente quem me devolvia era o senhor Henry, meu zelador, não o homem que tirou minha virgindade e era o pai de meus filhos que os rejeitou.

Oh, como não percebi? Lorenzo assentiu tranquilamente.

— É uma total irresponsabilidade, principalmente vindo da parte de uma mãe de família. Poderia colocar nossos filhos em risco com esse ato impensado — Paralisei e mudei a expressão para algo como descrença.

Nossos filhos?

— Irresponsabilidade? — Falei em alto e bom som — Veja só quem está propondo o termo... O mesmo garoto que me abandonou grávida! — O rosto de Lorenzo corou em nervoso e saltitei internamente com a constatação! — Não tem sequer o direito de me cobrar nada, muito menos de chamar meus filhos de nossos filhos ! Você não tem filhos, eu sim os tenho! — Me olhava sem reação e completamente constrangido — Agora devolva minhas chaves, por favor!

Estiquei a mão de maneira decidida. Lorenzo encarou minha palma aberta e depositou as chaves ali sem hesitar. Ultrapassei-o e abri meu apartamento com certa pressa, querendo me livrar dele o quanto antes! Levei um baile das chaves, mas consegui abrir a porta sem muito constrangimento.

Lorenzo ainda estava parado lá quando entrei. De costas para ele comecei a ouvir um murmúrio baixinho vindo de meu coração... Deixe que ele entre . Hoje é um dia especial para vocês . Em contrapartida minha razão gritava palavras contrárias... Ele te abandonou. É um desgraçado! Merece todo seu ódio!

— Será que pode me deixar entrar? — Questionou depois de presenciar minha hesitação.

— Não — Apressei-me para fechar a porta, mas Lorenzo colocou sua mão em frente e empurrando-me atrás dela — Vá embora!

— Por favor... Juro que não irei te atrapalhar, eu só quero... — Deteve-se — Só quero passar esse dia contigo. Foi para isso que vim de longe e por isso estou aqui, Laura! Esse dia especial pode ser nosso primeiro e último dia especial juntos.

Seus olhos me encaravam como se quisessem dizer algo, mas não pudessem. Antigamente não havia tal sentimento em sua alma, tratava-se de algo novo e totalmente inusitado. Pela primeira vez em anos presenciei a existência de um homem que pensei jamais existir... Um Lorenzo arrependido! Dei espaço na porta e ele passou por mim lentamente. Tentei não me lamentar por isso em pensamento...

Quatro de janeiro .

Fechei a porta atrás de mim e larguei a bolsa sobre a mesa de vidro da sala. Lorenzo parou em meio à sala e rodopiou o olhar pelo ambiente.

— Desculpe a bagunça — Insegura e desacreditada, parei longe dele e coloquei as mãos nos bolsos traseiros da calça — Samuel e Sarah já acordam fazendo bagunça. É quase impossível controla-los! Ter duas crianças de cinco anos em casa não é tão fácil...

Não estava tão bagunçado assim... Apenas dois pares de chinelos pequenos estavam empilhados no canto perto do corredor e alguns brinquedos espalhados no tapete em frente à televisão. Havia duas mamadeiras pela metade na estante de livros e uma boneca sentada em cima de um avião de plástico no sofá. Lorenzo olhava exatamente para tal ponto... Os brinquedos de Sarah.

— Fácil não deve ser... Mas de fato muito gratificante — Caminhou lentamente até a pequena estante e observou de perto algumas fotos que descansavam em porta retratos por ali. Eram momentos de Samuel e Sarah desde minha gravidez até atualmente, incluindo momentos ao meu lado. Meu coração corria no peito pelo modo doce com o qual Lorenzo analisava as imagens e minha mente não era capaz de raciocinar logicamente. Ele estava na minha sala de estar, justo em minha casa! — Você parece tirar de letra... É uma ótima mãe — Mostrou-me uma foto que mal percebi ter tomado em mãos.

Analisei a imagem que Lorenzo estendia mesmo ao longe. Samuel e Sarah deveriam ter uns oito meses naquele retrato... Eram pequeninos, rosados e na foto ambos posavam em meu colo. Um único colo para duas crianças. Sorri um tanto orgulhosa e Lorenzo colocou a foto em seu lugar. Instantaneamente notei que havia lágrimas em seus olhos...

— Deseja sentar-se? — Ofereci tremula. Ele ainda exercia o mesmo efeito sobre mim após tantos anos... Lorenzo aceitou sentando-se ao sofá bem ao lado da boneca e do avião. Apressei-me a pegar o brinquedo improvisado e lembrei-me de ter visto Sarah correndo com aquilo pela casa dizendo ser sua aeromoça — Me desculpe — Suspirei e coloquei o brinquedo dentro do cesto com os outros. Comecei a tirar as peças coloridas do tapete — Sarah tem uma ótima imaginação...

— P osso ver que sim — Me abaixei para pegar as menores peças e nem precisei erguer os olhos para saber que Lorenzo estava ao meu lado me auxiliando a recolhê-las.

— Não precisa se incomodar! Em dois segundos termino por aqui.

Não sei como aconteceu, mas minha mão que estava sobre uma peça vermelha de lego foi coberta pela de Lorenzo em seguida. Nossas peles se tocaram depois de seis anos e exatamente no mesmo dia em que deixaram de se encontrar. Estremeci com o pensamento e pelo ardor da sensação. Ergui os olhos lentamente e encontrei os dele lindos e claros como sempre! Os olhos que perdi um dia, mas que encarei durante seis anos estampados em rostos distintos... Nos rostos de nossos filhos!

— Quer tomar um café comigo? — Sussurrou. Puxei minha mão ao ser retirada do transe e pisquei várias vezes enquanto me colocava de pé diante dele. Pousei uma das mãos na cintura e uma no rosto de maneira nervosa.

Encarei-o por alguns segundos e Lorenzo ainda estava lá. Não era um sonho! Não iria sumir como uma miragem e aqueles olhos verdes que me perseguiam em sonhos distintos há seis anos ainda me seguiriam. Soltei um muxoxo que soou como um gemido de dor e esfreguei a testa.

— Não sei porque você está aqui Lorenzo, mas seja qual for o seu motivo, não é justo que volte depois de todos esses anos e interfira desta maneira em minha vida e na vida dos filhos que nunca desejou ter!

— Por favor, Laura — O tom era derrotado, porém não abaixei a guarda — Não aja como se não se preocupasse... Te conheço e sei perfeitamente o tamanho de seu coração! Mesmo que queira negar, ainda sou pai dos seus filhos e isso nunca irá mudar! Se estou aqui hoje é sim por um grande motivo e, por favor, será que poderia provar a si mesma que é melhor do que eu e me dar uma oportunidade de falar o que tenho a dizer?


Lorenzo

Apartamento. Brinquedos. Bagunça. Colorido. Mamadeiras. Fotos. Bebês. Aviões.

Era surreal ver o apartamento de Laura e saber que aquele era o ambiente onde ela criou meus filhos durante esses seis anos.

Peguei-me olhando para as mamadeiras de cor rosa e azul, respectivamente, pousadas na estante de livros. Meus olhos se encheram de lágrimas quando visualizei aquelas duas coisinhas pequenas, Samuel e Sarah, tombados no sofá vendo desenho e sugando o leite com achocolatado.

Brinquedos no tapete. Era quase possível vê-los ajoelhados no chão em frente ao cesto colorido e brincando entre si com coisas aleatórias... As fotos! Nada poderia ter mexido mais comigo do que ver um retrato de Laura grávida. Literalmente era a garotinha que abandonei... O mesmo rosto, as mesmas roupas da época e um barrigão de proporções elevadas de baixo de sua blusa. Meus filhos ... Eu os deixei ir!

O lugar é incrível, mas nada comparado a todo luxo que eu poderia ter proporcionado. Nada comparado ao lugar onde nasci.

Laura se recusou a ir comigo no mesmo carro e me fez dirigir atrás dela por toda cidade, encostando em um café isolado e melancólico as margens de uma bela praça. Chovia forte e o tempo estava horrível, por isso saí do carro e Laura já havia entrado no café e se acomodava. Caminhei até ela esfregando os cabelos para tirar o excesso de água e querendo guardar a imagem dela sentadinha a minha espera como se estivesse estado lá durante esses seis anos.

Nitidamente nervosa, usava um casaco vermelho, calça jeans e botas. Sentei a sua frente e nos olhando durante alguns segundos em total constrangimento

— Estou aqui — Disse após um tempo de silencio — Pode me dizer o que quiser — Sorri de canto.

— Como você está? — Comecei com uma simples pergunta, porém isso a chocou mais do que se houvesse perguntado algo íntimo. Piscou algumas vezes e sorriu ironicamente.

— O que quer dizer com isso?

— Quero dizer “como passou os últimos seis anos?” — Laura sorriu vitoriosa. Pareceu pensativa.

— Um resumo dos últimos seis anos... — Pousou uma das mãos no queixo de maneira pensativa — Deixe-me ver... Após nossa fatídica história abandonei meu curso dos sonhos na Europa, voltei para o Brasil grávida de duas crianças e tive de enfrentar um pai rígido e uma cidade onde todos julgam mães solteiras como vagabundas. Talvez eu merecesse... — Laura não me encarava, apenas olhava pela janela a fora — Foi difícil correr atrás de formação e do prejuízo tendo dois bebês, mas com a ajuda de Deus consegui tudo sem precisar de ninguém. Ninguém além de mim mesma .

— Não, você não merecia... — Finalmente me encarou.

Vi de longe Laura prender a respiração com minhas palavras. Sua expressão foi de diversão autodepreciativa para constrangimento em dois segundos.

— Essa conversa não tem fundamentos, Lorenzo. Nada é como antes e nossa história não foi real! Não temos mais nada em comum!

A garçonete parou ao lado da mesa em que estávamos e perguntou o pedido. Respondemos juntos “chá preto com açúcar”. A própria garçonete gargalhou com nosso olhar de espanto um para o outro.

— O que você estava dizendo sobre não termos nada em comum? — Provoquei. Laura sorriu sem muito humor.

— O que quer saber Lorenzo? O que posso fazer para que saia de uma vez de minha vida? — Questionou me encarando firmemente. Não queria acreditar que ela me odiava tanto assim, por isso resolvi ir direto ao ponto.

— Você se casou? — Não vi surpresa no rosto de Laura. Essa era a pergunta que mais me doía fazer e a resposta poderia me matar ainda mais rápido.

— Não — Foi enfática em sua resposta.

— Samuel e Sarah não conhecem qualquer pai?

— Você é o único pai deles. Não há outro — Algo dentro de mim rugiu... Talvez o orgulho e o ego. Certo alivio tomou conta de minha expressão e ela notou.

— Eles... Perguntam sobre mim? — Hesitei.

— Mais do que pode imaginar — A garçonete chegou e depositou os chás sobre a mesa — Infelizmente — Pegamos as xícaras ao mesmo tempo.

— Contou algo a eles sobre mim?

— Não o farei antes que tenham dezesseis anos ou idade suficiente para compreender o que é uma aposta relacionada a sexo — Bebericou o chá evitando me encarar. Pelo menos não era nunca .

— Você sempre soube que eram dois bebês?

— Não, eu não tinha ideia! Descobri que eram dois bebês quando fui fazer o aborto, aos três meses — Enrijeci de vergonha.

— Porque não me disse?

— Iria adiantar alguma coisa? Acaso te faria mudar de ideia ou amoleceria seu coração?

Engoli em seco e concordei diante de sua indignação.

— Eles se parecem comigo em algo?

— Não olhou para os dois? — Aquilo parecia um show de perguntas e respostas. Laura estava sendo enfática, direta e talvez grossa em algumas situações, mas estava certa.

— Percebi que fisicamente Samuel se parece muito comigo. Sarah tem mais a ver com você... Já em termos de personalidade nada pude constatar.

— Infelizmente ambos têm muito de você — Assumiu — Samuel é mandão e tem seus olhos. Consegue conquistar qualquer garota mesmo tendo apenas cinco anos — Tive a impressão de que era uma opinião pessoal. Mordeu os lábios — É muito parecido contigo, devo admitir. Já Sarah... — Sorriu de canto — Ela é muito destemida e corajosa. Gosta de aviões.

O ultimo detalhe me chamou a atenção.

— Jura?

Laura sorriu e assentiu. Havia um brilho diferente em seus olhos, algo como orgulho ou talvez mais poderoso do que isso. Era como se pudesse falar deles todo o tempo sem enjoar e aquilo me dividiu em sentimentos. Ciúmes por ela saber muito deles e eu não saber nada ou felicidade por meus filhos terem uma mãe tão incrível? Seu sorriso era maravilhoso e comovente.

— Sarah me pediu um avião de presente... Quer ser aeromoça — Brincou com o tom — Tomara que mude de ideia.

— Não gosta que eles se pareçam comigo? — Questionei ao ver sua atitude.

— Como se sentiria em meu lugar? — Segui encarando-a firmemente — Como se sentiria se houvesse sido enganado e mesmo assim tivesse de ser lembrado disso dia após dias com as memórias personificadas nas pessoas que mais ama?

— Eu me arrependi! — Intervi antes que terminasse. Laura se calou e me buscou de maneira surpresa — Sei que não tenho o direito de te pedir isso, mas não me odeie! Por favor... Não me odeie!

O silêncio dominou por alguns segundos e Laura não conseguia deixar de manter o olhar fixo na xícara a sua frente.

— Você falou demais, mas ainda não me disse a que veio — Bebeu um pouco mais do chá — Porque está aqui depois de tanto tempo? O que quer comigo?

— O que quero é tão simples que sequer preciso de muito tempo para explicar — A expectativa presente em Laura era nítida — Desejo que Samuel e Sarah passem a ser meus herdeiros. Preciso dar meu nome a eles.

Era a mais pura verdade, apenas resolvi ocultar a parte do arrependimento e da doença terminal. De nada iria adiantar comovê-la ou envolvê-la demasiadamente em minha louca história com um fim marcado. Era melhor poupá-la dos problemas para compensar tudo o que já fiz para que sofresse. Laura apenas piscou demasiadamente, obviamente tomada pela surpresa.

— Você quer registrá-los? — Sussurrou.

— Sim, registrá-los legalmente — Pela primeira vez pensei que poderia ser fácil, mas logo cai na realidade. Laura me deu a resposta merecida.

— Nunca! — Falou agora alto e em bom som.

— Eu tenho esse direito! Eles são incontestavelmente meus filhos e... — Laura largou e chá e colocou uma nota de cinco reais sobre a mesa. Apanhou a bolsa e ficou de pé, apontando o dedo em minha face.

— Quando te procurei para comunicar os direitos que agora exige, lembra-se de como agiu? Estendeu-me dinheiro e sugeriu matar meus filhos! — Gritava e todo mundo ouvia e assistia a situação — Não é algo que se perdoa fácil e muito menos aceitável aos olhos de quem for! Se Sarah e Samuel estão saudáveis e vivo s até hoje para que você os chame de meus filhos é graças a mim, única e exclusivamente! Você abdicou de seus direitos de pai quando se achou no direito de lhes tirar a vida! Seja lá qual for seu motivo de voltar, esqueça-o! Nunca irei permitir que se aproxime dos dois e sabe muito bem que esse é meu direito .

Deu-me as costas e andou em direção à porta. Tirei uma nota do bolso e coloquei sobre a mesa também, praticamente correndo atrás de Laura em meio à chuva. Ia em direção à praça bem em frente e a segui sem pensar, ignorando meu estado caótico. A chuva era intensa e até machucava quando colidia com a pele.

— LAURA! — Gritei seu nome em meio à tempestade. Olhou-me por cima dos ombros e seguiu caminhando em passos largos — Por favor, me escute!

— JÁ OUVI O SUFICIENTE — Gritou de volta — Vá embora!

Seguiu andando.

— Aonde vai? O carro fica para lá! — Peguei-a pelo braço um tanto bruto, mas não havia como segurá-la se não fosse deste modo. Passou a se debater com intensidade e me empurrando para a outra direção.

— Deixe-me em paz! Volte para sua vida medíocre e me deixa em paz! — Vida medíocre. Quase ri. Mal sabia ela como tinha razão... Tive que afrouxar o toque em seu braço.

— O problema é esse! — Estávamos parados frente a frente embaixo de uma grande árvore onde as gotas de chuva eram menos intensas — Não tenho vida alguma! Vim recuperar uma parte importante dela que está com você agora... Me dê essa chance!

Ela se chocou e pude perceber imediatamente. Encarava-me com os olhos brilhantes por lágrimas e o rosto avermelhado. Não havia direção em seu olhar e nada mais a ser dito.

— Realmente se arrepende? Não está blefando? — Sussurrou em meio às lágrimas.

— Jamais mentiria em relação a algo tão sagrado... Porque estaria aqui se não fosse por amor? — Confessei e tive vontade de estreitá-la nos braços quando percebi que chorava cheia de ressentimentos — Sempre estive com você em meus pensamentos, Laura. Sempre! Não tem ideia do quanto...

— Não acredito em nada... — Deu de ombros. Aquilo foi como uma bofetada em minha face — Você dizia que me amava, mas só queria me levar para cama! Dizia que era bom, quando na verdade era um homem ruim! Acha que tenho condições de acreditar em uma palavra sua?

— Eu queria te levar para cama sim, mas quem disse que eu não te amei antes e depois? — As palavras faltaram para ela.

— Você disse... Provou isso quando me deixou! — Limpou o rosto molhado e afastou seu cabelo que se grudava a face.

— Posso te provar ao contrário agora? — Não dei chance para que respondesse, apenas a puxei em minha direção e colei meus lábios aos dela.

Ah sim... Laura. Depois de todo esse tempo continuava doce e inocentemente linda.

 


Capítulo treze

Não estava em meus planos me dar por vencido, seja qual fosse à posição em que Laura me colocasse!

Após passar dois dias ardendo em febre e sozinho em meu quarto finalmente tomei coragem para sair da cama e ir em busca de meus objetivos. Delirei durante algumas horas após voltar do encontro com Laura e estava ciente de que isso se dava por minha doença e baixa imunidade. A essa altura do campeonato, apenas uma semana após descobrir a enfermidade fatal nada mais me importava! Minha maior ansiedade era esperar que a dor e os delírios cessassem para depois ir novamente à busca dela... Laura.

Mesmo que não aceitasse por bem meu acordo, ao menos teria de me permitir conhecer as crianças antes que eu partisse.

Em meio aos delírios enxerguei flashes dos rostos de Sarah e Samuel. Os olhinhos inocentes e esverdeados me incentivavam a vencer aquele mal e ir à diante... Antes de partir era necessário conhecê-los e dizer com todas as letras que sim, eu os queria. Eu me arrependia!

Tomei um banho para tirar o suor do corpo e agradeci por me sentir mais relaxado e cômodo. Por milagre a febre e a tremedeira se foram e restou-me apenas a sensação leve e reconfortante da água quente do chuveiro ricocheteando contra minha pele corada. O momento me recordou a última vez em que estive em contato com gotas de água.

Chuva. Chá preto com açúcar. Eu e Laura. Um beijo arrebatador. Um grande tapa em minha face.

Sorri ainda embaixo d’água e esfreguei o cabelo levemente, repetindo o gesto que ela fez em naquela tarde. Foi incrível voltar a beijá-la depois de tantos anos... Era inexplicável a sensação de me sentir novamente vivo enquanto estava a caminho da morte. Seu jeito de roçar os lábios nos meus não havia mudado em absolutamente nada! Ainda era hesitante e tímida, até mesmo um tanto recatada. Ainda tinha sabor de inexperiência e amor. Laura é o meu amor .

Dirigi por alguns quarteirões e perguntei por Laura nos arredores de seu prédio, mas o porteiro havia me dito que era seu dia de folga e sempre passeava com os gêmeos quando podia. Incentivou-me a procurá-la em algum parque local, pois era onde geralmente costumava levá-los.

Segui as coordenadas fornecidas pelo humilde homem e cheguei ao local correto... O carro vermelho de Laura encontrava-se estacionado em frente a uma praça simplória no centro de Belo Recanto, exatamente o local descrito pelo porteiro. Estacionei meu veículo alugado do outro lado da rua e a avistei sentada ao longe com um livro aberto sobre suas coxas. Refugiada sob a sombra de uma grande árvore encontrava-se de olho nos gêmeos, que brincavam nos brinquedos a sua frente. Sarah e Samuel revezavam entre o escorregador e a balança, correndo juntos e gargalhando pela conversa que mantinham.

Os pequenos se encontravam belos e doces como constatei na primeira vez em que os vi. Detive-me e fiquei apenas os apreciando de longe... Sarah era uma menina meiga e graciosa. Usava um macacão vermelho, sandálias da mesma cor e uma blusa por baixo cheia de cerejas. Tinha o cabelo mais curto preso em marias-chiquinhas e trazia consigo um chapéu de proteção solar. Sorria de tudo e parecia muito receptiva, porém tímida quando alguém se aproximava. Minha linda garotinha...

Samuel era mais atirado e falava alto, comunicando-se com todas as crianças ao redor. Por coincidência usava um boné preto como o meu e vestia bermuda azul e camisa branca. Assemelhava-se a um pontinho de luz que não parava um segundo! Perguntei-me como Laura tinha fôlego para acompanha-los, se apenas de longe me tiravam o fôlego...

Senti o peito apertar pela ideia de um dia tê-los recusado. Na época eu ignorava completamente o que representava ter um filho, sendo um perfeito covarde ao virar as costas para minha responsabilidade. Aquelas duas crianças eram tudo o que me restava!

Laura era sem dúvida a coisa mais bonita da paisagem depois de meus ... Nossos filhos .

O cabelo escuro descansava sobre um de seus ombros e ela usava uma blusa de alças lilás e short jeans. Tomava sol em sua pele rosada e delicada a vista e parecia muito satisfeita com a sensação. Desejei estar sentado junto dela... Estar ali, próximo o suficiente para poder roçar seus ombros e deslizar os lábios por sua linda pele até beijá-la...

Caminhei em passos largos, mas não o suficiente para notar que a pequena Sarah havia parado de balançar e estava me olhando fixamente, como se me reconhecesse afinal de contas.

Detive-me e encarei-a de volta. Seus olhos verdes e intensos brilhavam na luz do sol e havia tanta vida e doçura naquele olhar que quase parou meu coração. Por pouco não me ajoelhei a seus pés e implorei que me perdoasse! Senti novamente aquele aperto no peito e o familiar sentimento de repressão por mim mesmo. Sarah ergueu a mão e me deu um aceno de longe... Ela sorria!

Minha garotinha... Minha filha. Minha linda e doce Sarah!

Samuel parou ao lado dela e sussurrou algo. Estreitou os olhos e ficou me encarando totalmente confuso. Voltou a trocar algumas palavras com a irmã e resolvi sair dali. Minha direção era Laura, já que eu não poderia me apresentar a eles se ela não permitisse! O orgulho e o amor não me permitiam ultrapassar a barreira do respeito que criei pela mulher que foi forte o suficiente para criar meus filhos sozinha e sem qualquer apoio financeiro ou sentimental.

Parei em frente a ela, que demorou alguns segundos para efetivamente notar minha presença. Fechou o livro sobre a coxa e suspirou de maneira derrotada.

— Olá de novo garota do interior.

 

Laura

Folga mais um lindo dia de sol em Belo Recanto significava diversão para os gêmeos!

Não pude sequer pensar em lhes dizer não, principalmente estando tão abalada emocionalmente quanto me encontrava naquele momento. Concordei com o passeio ao parque e cedi aos pedidos, colocando a cara para fora de casa finalmente. Meu maior medo era abrir aquela porta e dar de cara com Lorenzo atrás dela...

Lorenzo... O homem que beijei dois dias atrás. Eu ainda não compreendia o que poderia ser tão forte a ponto de mudar suas atitudes tão drasticamente!

Registrar meus filhos?

Torná-los seus herdeiros?

Um dia prometi a mim mesma que Lorenzo jamais chegaria perto de Sarah e Samuel, porém era inegável que o dinheiro de Lorenzo poderia garantir a faculdade e o carro dos dois, além de um futuro prospero. Era inegável que sua presença os ajudaria muito e talvez eu nunca pudesse chegar a oferecer um terço do que receberiam de seu pai.

Se um dia ele me usou na intenção de se beneficiar, porque hoje eu não posso fazer o mesmo com ele em nome de Sarah e Samuel? A resposta é simplória... Sou fraca e coração mole, orgulhosa demais para cometer qualquer injustiça seja com quem fosse! Lorenzo havia me feito sofrer, mas não era minha intenção prejudicá-lo, apenas me certificar de que ficaria bem longe para sempre!

Naquela manhã fui recebida com um sinal... Abri gaveta de documentos para apanhar algo sem importância e me deparei com um inusitado objeto perdido por ali. Uma pulseira de prata com um pingente de avião anexado a mesma.

Observei por alguns segundos o objeto reluzindo em minha palma da mão e pensei seriamente em arremessá-lo pela janela. Ao invés disso me peguei fazendo algo improvável...

— Sarah! — Chamei ainda encarando o objeto. Sentei-me a beira da cama.

— Sim mamãe? — Respondeu de seu quarto, onde estava brincando com Samuel e se ajeitando para sair.

— Venha cá...

Não demorou nem cinco segundos até que chegasse ao quarto ofegante por ter atendido prontamente meu pedido. Olhou-me confusa e tinha dois prendedoras nas mãos. Queria que ajeitasse seu cabelo.

— Sim mamãe... Pode fazer maria-chiquinha? — Sentou-se na cama de frente para mim e apanhei a escova de cabelos. Passei a desembaraçar os fios dourados de seu cabelo com delicadeza.

— Tenho uma coisa para você.

— Mas você já me deu meu presente, mãe. Gostei muito do meu avião e não preciso de outro presente — Inocentemente respondeu mantendo a cabeça ereta para que eu prendesse seu cabelo perfeitamente.

— Sei disso querida, mas o que tenho para você é algo diferente. Não comprei, eu ganhei há muito tempo! — Terminei de prender uma parte e passei para a outra. Sarah ficou calada — Antes preciso saber se você irá usá-lo realmente.

— Claro mamãe. Irei usar para sempre! — Soou empolgada e um pouco emocionada — O que é?

Terminei de juntar seu cabelo e apanhei a pulseira ao lado de meu quadril na cama. Sarah se virou para trás e me encarou intrigada, desejando descobrir esse mistério que nos envolvia. Fechei as mãos ao redor da pulseira pensando no que deveria dizer a ela. Por um minuto recordei-me da admiração que havia nas palavras de Lorenzo referindo-se aos gêmeos.

Arrependido .

Porque a racionalidade me impedia de crer em suas palavras e por outro lado meu coração gritava para lhe dar uma chance? Qual era sua real intenção? Encarei os olhos verdes de minha filha e senti novamente o impulso inexplicável.

— Isso é para você — Mostrei a pulseira pendurada em meus dedos. O pingente de avião foi o que mais atraiu Sarah, que levou as mãos até ele no mesmo momento em que o viu — Para usar sempre.

— Uau — Os olhos brilhavam — Que pulseira linda! É sua mamãe? Eu nunca vi em sua caixinha!

— Pensei que havia perdido... Faz muito tempo que não a encontro e achei que ficaria melhor para você do que para mim — Sarah esticou a mãozinha em um pedido para que eu colocasse sua pulseira nova. Sorri e passei-a em volta de seu pequeno pulso, prendendo-a de modo que não saísse e incomodasse — Ficou muito linda!

— Sim, ficou — Rodava a pulseira de maneira calma e examinava todos os ângulos — Quem te deu? — Não me olhava.

— Seu pai. Há muito tempo.

Ainda não sabia se me arrependia ou não de ter falado sobre Lorenzo para Sarah, que correu e contou a novidade a Samuel feliz da vida por sua lembrança especial.

“Olha! Tenho uma pulseira que papai deu a mamãe. Não é legal?”

Samuel apenas me olhou sem dizer nada. Parecia querer saber se era mesmo verdade a conversa de Sarah. “Papai” não era uma palavra muito dita entre nós.

Voltei-me para o livro, afundando-me na aventura sem fim de Harry Potter. Sarah e Samuel adoravam a história dele e era meio que minha obrigação saber pelo menos um pouco para debater com os dois, que viviam fazendo perguntas e comentando. Já no terceiro livro consegui encontrar algo bom e apreciável. Fui interrompida quando uma sombra se fez sobre mim repentinamente.

Lentamente ergui os olhos e deparei-me com uma figura masculina, alta e familiar a minha frente. Lorenzo! Fechei o livro largando-o sobre minhas coxas. Respirei fundo nervosamente e cobrindo o rosto com as mãos. Estava demorando para que o cavaleiro ressurgisse das sombras!

— Olá de novo garota do interior — Aquela frase me fez queimar por dentro. Fazia quanto tempo que ele não me chamava assim?

— O que você quer aqui? Porque ainda não foi embora? — Não olhei fixamente para ele, porém contra minha vontade Lorenzo se sentou ao meu lado no chão.

Senti o cheiro de seu perfume caro embriagando-me os sentidos. A eletricidade entre nós dois era palpável. Puxei meus óculos de sol da bolsa. Seria injusto ele poder ver meus olhos cheios de relutância e saudade.

— Não pretendo ir embora — Respondeu a minha pergunta com muita convicção — Não mesmo. Vou ficar aqui até conseguir o que quero de você.

— Pois então vai ficar aqui até o ultimo dia de sua vida. Nunca vou deixar que se aproxime de Samuel e Sarah — Algo em minha frase pareceu machucá-lo. Travou o maxilar e abaixou os olhos como se sentisse dor.

— Você não era tão cruel Laura — Sorriu sem muito humor — Não era...

— Aprendi a ser cruel com o mestre... Com você! — Adotou expressão de desgosto e sorriu novamente. Observava os gêmeos de longe e, sem reação, percebi o quanto isso era incomum. O quanto isso me doía — É melhor você ir embora.

Lorenzo precisava ir apesar de meu coração querer que ele ficasse! Meus lábios ainda ardiam com a intensidade de seu beijo e meu coração ainda disparava com o que me fez sentir naquela tarde chuvosa. Seis anos depois, era como se nem um segundo houvesse se passado... Como se ainda estivéssemos nos pegando atrás da faculdade, encostados no muro.

— Dê-me um bom motivo e nunca mais apareço na sua vida.

— Sarah está perguntando de você — O rosto dele suavizou — Ela viu uma foto nossa antiga e te reconheceu aquele dia. Foi totalmente irresponsável de sua parte aparecer daquele modo! É melhor você ir antes que seja tarde... Antes que ela descubra quem você é!

— Esse não é um bom motivo... Isso é o que eu quero que aconteça!

— Não tem direito de se intrometer na vida deles, Lorenzo. Seu tempo se foi!

Ficou calado, mas com certeza não aceitando minhas palavras. Pensava em algo a dizer e planejava como introduzir. Por um segundo temi suas palavras. Por um segundo me armei contra tudo qual é argumento que me atingisse. Ainda tinha medo do que poderia me fazer sentir. Ajeitei uma mexa de cabelo atrás da orelha delicadamente.

— Se lembra do que eu te disse naquela noite, antes de irmos para cama? — Paralisei com seu tom seguro e implacável.

“Se um dia eu for um idiota contigo, por favor, nunca me julgue pelo que serei. Apenas saiba que meu eu verdadeiro é o que sou essa noite”.

Eu me lembrava e lembraria até o ultimo dia de minha vida. No dia não entendi porque ele disse aquilo, mas depois tudo fez sentido! Desviei o olhar dele. Graças a deus os óculos tapavam minhas lágrimas em formação.

— Sim, me lembro — A voz soou cortada e machucada. Dolorida.

— Então porque ainda duvida de mim? Porque ainda me odeia tanto? — Me procurou com o olhar e tocou minha bochecha delicadamente, mas me esquivei.

— Lembrar-me não significa que acredito! Não acredito em você.

— Um dia acreditou o suficiente para se entregar para mim. Você foi minha mulher! Será que esqueceu tudo o que vivemos? Será que esqueceu que te dei dois filhos? — Soava ofendido.

— Jamais esqueci e nunca irei esquecer! — Coloquei-me de pé com muita raiva — Quem se esqueceu foi você! Você me deixou! Agora é bom ir embora se não quiser estragar a alegria dos gêmeos mais uma vez! Se você não sair, quem sairá seremos nós!

Nossos corpos estavam em pouquíssima distância e se eu arriscasse um passo poderia tocar em sua camisa. Estremeci com ele tão perto e queimei por dentro. Vi algumas manchas em seu pescoço e descendo pelos braços. Eram de um tom arroxeado muito forte e certamente não foram adquiridas por hematomas. Desejei poder examiná-lo enquanto analisava seu rosto e seus braços... Havia mais uma grande mancha em seu pulso.

— Você está com problema no sangue? — Saiu antes mesmo que pudesse raciocinar! Engoli em seco notando que Lorenzo corou.

— Ainda vamos nos encontrar Laura. Pode apostar nisso! — Virou as costas e se foi, deixando minha pergunta pairando no ar.


Lorenzo

Fugi antes que arruinasse tudo com minha língua grande e o tom preocupado que Laura me direcionada. Fugi por medo e fraqueza. Fugi por ser um covarde! Não podia falar para Laura sobre a leucemia agora... Não podia, além de tudo, bombardeá-la com meus problemas! Fui forte mesmo fraquejando por dentro.

Em passos largos me dirigi à saída do parque e cansado mentalmente pelo bate boca com Laura. Ela é persistente e a ferida que causei é grande demais para ser tapada apenas com palavras e pedidos de desculpa. Meu tempo é restrito e eu preciso ser criativo. Mas como? Chutei algo antes de sair do parque e constatei que havia uma bola colorida rolando em meus pés.

— Moço! Minha bola! — Olhei para frente a vi um garoto correndo em minha direção.

Empolgado, corria quase tropeçando em si mesmo.

Era meu o meu garoto!

Abaixei-me e apanhei a bola quando notei ser Samuel. Olhei em direção a Laura e a vi ao longe examinando nossa posição. Tirou os óculos para ver melhor e sorri. Samuel parou a minha frente um tanto ofegante, vermelho e suado. Vendo-o de perto pela primeira vez, assim, a minha frente, notei que tinha sardas e o formato de seu rosto lembrava demasiadamente o meu.

— É sua?

— Sim senhor. Minha irmã jogou de propósito aqui — Deu de ombros sem timidez. Ao contrário de Sarah, que olhava de longe — Será que pode me devolver, por favor? Minha mãe pagou caro nela.

Observei a bola e realmente tinha uma ótima qualidade. Era de futebol de campo, azul e profissional. O símbolo da Nike estava estampado nela. Coloquei no chão e a chutei aos pés dele, que parou o pé sobre a bola e sorriu agradecido.

— Você quer ser jogador profissional? — Cruzei os braços interessado. Samuel e eu usávamos boné e nos parecíamos demasiadamente. Era estranho pensar que eu estava em frente ao meu filho.

— Não senhor — Abaixou-se e pegou a bolsa em suas mãos pequenas e sujas de terra — Quero ser piloto de avião.

— É uma profissão difícil...

— O que o senhor faz? — Questionou interessadíssimo.

— Construo aviões — Sorri de canto ao ver seus olhos brilharem. Ouvi um barulho e imediatamente vi Sarah parar ao lado de Samuel.

— Vamos jogar bola, Samuel. Você demorou muito! — Vê-los lado a lado me impressionei mais uma vez. Perfeitos. Lindos. Simétricos. Gêmeos — Olá senhor.

— Sarah sabe o que ele faz? Constrói aviões! — O garoto proferiu as palavras como se estivesse se referindo a um Deus. O queixo de Sarah caiu — Não é incrível?

— É sério? Você que os constrói? — Assenti com um sorriso. Estava derretendo com a inocência daqueles dois — Todos eles? Como eles ficam em pé nas nuvens?

— Como podem voar se são tão pesados? Como carregam as pessoas lá dentro?

— É mágica?

Não sabia distinguir as emoções e as perguntas. Como responder a eles? São meus filhos!

— Não é mágica... É física.

— O que é isso? — Samuel questionou intrigado.

— Uma ciência e... — Sarah me interrompeu.

— Eu tenho uma pulseira de avião — Ergueu o pulso para cima me mostrando sobre o que falava — Ganhei de minha mamãe hoje de manhã.

— Era do nosso pai. Acho que ele também gostava de aviões como nós três — Paralisei quando minha mente começou a viajar no tempo com a imagem daquela pulseira.

— Seu pai me deu duas pulseiras quando fiquei grávida de você. Pensamos que fosse uma menina, então planejamos dar a ela essa pulseira para carregar simbolicamente o nome da família. Quando descobrimos que era um menino trocamos a pulseira por um colar com o mesmo pingente e o colocamos em seu pescoço. Um dia quando tiver uma esposa e em seguida uma filha, deve colocá-la no pulso das mesmas para carregarem o símbolo de nossos ancestrais. O avião.

Era possível ver o rosto de minha mãe, Gabbie, enquanto ouvia as palavras de Sarah.

Puxei a ponta do colar pendurado em meu peito, revelando o pingente de avião em sua extremidade. Era idêntico ao pingente preso na pulseira de Sarah. Laura deu a nossa filha a pulseira que lhe presenteei com esse intuito. Laura se lembrava!

Retirei o colar e o coloquei no pescoço de Samuel, que ficou admirado com a surpresa. Sarah sequer piscava.

— Uau! — Largou a bolsa e pegou o pingente.

— Você tem um igualzinho ao meu! — Sarah olhava para meu rosto totalmente surpresa.

— Que demais! Isso é para mim senhor? — Samuel sussurrou esperançosamente. Sorri.

— Sim, Samuel, é para você.

Ambos me encararam quando falei o nome dele. Como eu poderia saber o nome deles se nem sequer os conhecia? Tive certeza que as perguntas sobre mim ficariam mais intensas quando mostrassem isso a Laura. Ela não poderia escapar! Sorri para eles antes de virar as costas e ir embora uma vez mais.

 


Capítulo quatorze


“Como será que ele sabia meu nome?”

“ Vamos poder vê-lo novamente?”

“O vendedor é seu amigo, mamãe? Porque estava conversando com você?”

“Ele também gosta de aviões.”

Foram inúmeras malditas perguntas envolvendo ele ... Lorenzo... O fantasma entre as sombras.

Não lhe dei permissão para conversar com Samuel e Sarah, no entanto o fez sem hesitar. Aquele pingente idêntico ao da pulseira pendurado no colar de Samuel... Tive vontade de arrancá-lo com toda a força de meu ser assim que pousei os olhos no mesmo, mas controlei os impulsos. O pesadelo estava longe de acabar e a presença de Lorenzo em minha vida era uma dura realidade com a qual eu teria de aprender a lidar cedo ou tarde.

Menti quando afirmei não gostar de seu beijo. Menti quando insinuei que não senti saudades de nosso tempo juntos... A maior de todas as blasfêmias, no entanto, foi dizer que odiava que fosse pai de meus filhos.

Permaneci mais algum tempo no parque antes de levar os gêmeos para almoçar na lanchonete que havia bem em frente. Enquanto comiam me esgueirei contra o vidro e peguei-me olhando a imagem do local onde Lorenzo e eu protagonizamos nosso último encontro. Bem ali, embaixo da árvore do parque, despejei meus sentimentos contra ele da maneira mais intensa possível!

Minha vontade era odiá-la, mas anexar tal sentimento as lembranças doces parecia ser impossível. No fundo estava ciente de que a única maneira de tirá-lo de minha vida era cedendo a sua vontade. Lorenzo não parecia disposto a desistir tão cedo...

No pulso de Sarah descansava a pulseira e no peito de Samuel o colar com o avião. Era difícil assemelhar que aqueles objetos vieram de Lorenzo e que gostavam dele. Quase rasgou meu peito a ideia de dividi-los e ser fraca por ceder. Lorenzo não merecia ter meus filhos, mas Samuel e Sarah necessitavam conhecer seu pai. Era como uma missão de honra mostrar a eles que não fiz as coisas pela metade. Lorenzo me deixou . A culpa disso tudo era dele!

Apertei os olhos e me lembrei da mancha arroxeada em seu corpo. Por um minuto imaginei se não havia algo maior por trás das recentes decisões do pai de meus filhos... Será que algo acontecia na vida de Lorenzo, algo tão grande a ponto de mudar seus pensamentos?

Recolhi os gêmeos e voltei para meu apartamento. Liguei para a babá e solicitei seu serviço durante a noite, uma vez que aquele era dia do meu plantão no hospital. Passei à tarde na casa de meus pais com as crianças, mas não abandonei a ideia de pensar em Lorenzo. Havia algo estranho nessa história... Algo muito além do que se podia imaginar!

— Como vai o bonitão? — Minha mãe parou perto de mim quando estávamos sozinhas na sacada. O dia ainda era quente naquele final de tarde e os gêmeos brincavam no quintal com uma bola colorida.

— Lorenzo? — Não olhei para ela e segui com os olhos fixos em meus filhos.

— Existe outro? — Apoiou-se na grade ao meu lado.

— Ainda me atormentando... Ele quer registrar as crianças — Soei seca, mas notei que a empolgação de minha mãe se elevou de zero a mil em um instante.

— Isso é ótimo, filha! Os dois vão ter um pai e será maravilhoso! — Me abraçou de lado.

— Não mamãe, isso não é bom e nunca vou deixar aconteça! Samuel e Sarah não têm pai — Afastei-a delicadamente e sustentei seu olhar confuso — Não se faz necessário que despeje argumentos, uma vez que não irei dar ouvidos! Minha decisão está tomada a mais de seis anos, quando Lorenzo me estendeu dinheiro para abortar o bebê ao invés de enfrentar a situação ao meu lado! Aquele homem não merece Sarah e Samuel e nada irá mudar minha decisão! Nada!

Lorenzo

A febre voltou tão alta quanto antes em pouquíssimo tempo.

Laura tinha visto as manchas... Será que chegou a uma conclusão, uma vez que havia me dito ser enfermeira? Sem conseguir suportar os sintomas da doença fui obrigado a pedir uma ambulância. Agora não era hora de negar tratamento, afinal... Precisava ao menos registrar meus filhos e estava no meio da luta para conseguir tal feito. Não me permitia fraquejar!

Soava humilhante ser levado para o hospital de ambulância e presenciar todos ao redor cuidando de mim. Sempre fui acostumado a mandar e a controlar tudo e todos, inclusive em relação à minha própria saúde. Neste momento a vida me passava à perna... Limitei-me a ficar calado após ser levado ao quarto de atendimento e deparar-me com o médico do outro dia, Doutor Billy.

— Senhor Valencia... Nos vemos novamente! — O homem de cabelos brancos e jaleco me cumprimentou com um sorriso preocupado. Deitado na maca do quarto de frente a uma grande janela tive a certeza de que estava bem pior do que antes — O senhor está terrível.

— Obrigado doutor, obrigado — Sem expressar humor prossegui a conversa — O que o senhor pode fazer por mim essa noite?

— Depende, meu caro rapaz — Anotava algumas coisas em sua prancheta — O que o senhor irá me permitir fazer essa noite? — Gargalhei sem muita força.

Sentia-me ridículo naquela maca com a roupa azul e olhei em volta totalmente sem graça. O doutor parecia sério. Aproximou-se para ouvir minha respiração e medir meu pulso.

— Faça o que tiver de ser feito. Não irei me opor a nada.

— Fico aliviado pela decisão meu caro rapaz. Por certo tem conhecimento de que leucemia em estágio inicial é uma doença tratável, mas não podemos garantir a eficiência do procedimento. Aqui neste pronto atendimento não oferecemos a tecnologia necessária para desenvolver o tratamento, porém podemos ajudar com isso. Temos algumas medicações especificas e... — Passou a me explicar uma séria de procedimentos que eu já sabia de cor pela boca de meu oncologista na Espanha.

Algo dentro de mim sabia que essa doença seria o fim da linha e não havia motivos para perder mais tempo discutindo sobre isso. Resolvi tomar as medicações indicadas para tratar os sintomas e fui encaminhado para realizar quimioterapia o quanto antes. Submeti-me a tudo o que foi pedido na próxima hora e me encontrei cansado. Cheguei à conclusão de que se queria me curar deveria procurar um oncologista o quanto antes... Antes que fosse realmente tarde demais!


Laura

Sarah, Samuel e seus benditos aviões. Foi fácil deixar esse detalhe e as perguntas para trás, mas não os meus dois anjos. Era sempre difícil sair para os plantões e passar a noite longe deles... Um mal necessário.

Dirigi até o hospital sem muita empolgação e a surpresa esteve presente assim que meu celular tocou. Algo finalmente apareceu para desviar minha mente do caso Lorenzo e seus aviões. Era Isis, minha colega de faculdade que eu não via há muito tempo!

— Como estão Sarah e Samuel?

— Maravilhosamente bem... Está tudo bem, exceto por algumas surpresas que você nem vai acreditar e... — Interrompeu-me antes que eu pudesse citar Lorenzo.

— Ouça Laura... Tenho que te dizer uma coisa que ouvi, mas não posso afirmar ser de fato uma verdade — Me aliviei pelo carro ter parado no farol. Seu tom de voz me arrepiou a pele completamente — É algo sobre Lorenzo. Sei que não gosta de saber sobre ele, mas pensei rapidamente em você!

— Sobre Lorenzo? — Ele estava bem aqui! O que eu poderia não saber sobre ele no momento? — O que houve?

— Ele simplesmente sumiu do mapa e ninguém sabe dizer onde está! Meu namorado é grande amigo dele e disse que os pais estão desesperados com isso. A mãe dele foi atrás de informações e descobriu uma coisa um tanto séria... — Os outros carros voltaram a se mover, porém fiquei estática no lugar. Não conseguia fazer nada além de prestar a atenção as palavras alarmadas de Isis. Não demorou e as buzinas começaram a soar em meus ouvidos.

— O que houve? — Minha voz foi um sussurro quando movimentei o carro.

— Na casa dele havia um exame médico — Travou-se por um instante — Um exame que dizia que ele está com leucemia.

***

“Não vou embora! Não mesmo! Vou ficar aqui até conseguir o que quero de você!”

“Pois então vai ficar aqui até o ultimo dia de sua vida! Nunca vou deixar que se aproxime de Samuel e Sarah!”.

Lorenzo sempre quis me dizer alguma coisa.

Minhas mãos tremiam e suavam contra o volante enquanto minha garganta ardia com o esforço que fazia para respirar. No fundo algo me dizia que não poderia ser apenas uma coincidência ou arrependimento essa volta repentina de Lorenzo. Porque não cogitei a ideia dele estar com problemas de saúde? Porque não pensei nisso antes?

Senti-me a pior das mulheres por não tê-lo deixado falar e por não ter dado a oportunidade para que se abrisse comigo. Porque fui tão egocêntrica e egoísta, afinal? O ódio agora era o maior sentimento em meu coração? Valia a pensa se deixar dominar?

Lorenzo me machucou, me arruinou e marcou, mas ainda era o pai de meus gêmeos e o homem que mais amei um dia... Ainda é um ser humano! As palavras de Judy no dia em que o paciente misterioso chegou ao hospital ecoaram em minha mente... Aquele homem vindo de longe era Lorenzo! Não precisei da confirmação de ninguém para entender isso. Um homem de fora com todas as características dele. Um homem que recusava tratamento. O estranho arrependimento de Lorenzo. As manchas arroxeadas no peito dele. Ah meu Deus! Ele não tinha família... Ele não tinha ninguém!

Sai do carro com lágrimas descendo pelo rosto incontrolavelmente. Segui para o elevador aos prantos e cega por lágrimas pensando em algum lugar provável para encontrá-lo! Precisava me desculpar e ao menos me dar a chance de ouvi-lo! Lorenzo é pai de meus filhos e mesmo que tenha me feito sofrer não merecia morrer assim... Não merecia se culpar tanto apesar de tudo. Precisava dizer que o perdoava e que todos podiam ter uma segunda chance!

Adentrei ao elevador e as pessoas ao redor me encaravam com apreensão. Desci completamente desnorteada e andando pelos corredores do hospital de maneira perdida. Onde irei encontrá-lo?

“O que queria mesmo saber é o motivo que trouxe um homem assim para Belo Recanto... Quem iria querer morrer nesse fim de mundo?”.

A vida se encarregou de nos separar naquele dia e serviu para tudo ser mais fácil. Adentrei a ala de enfermagem ainda chorando muito, mas tentei me controlar. Por sorte estava tudo vazio e aquilo era um sinal de que havia bastante coisa a ser feito. Por certo a chuva causou acidentes e existiam muito pacientes, por isso lavei o rosto com as mãos tremulas e prendi o cabelo mais fortemente.

— Laura, querida — A doutora Samantha apareceu na porta da ala de enfermagem com a roupa um pouco suja de sangue. Parecia aflita e coloquei-me a disposição no mesmo momento — Por favor, pegue três bolsas de O positivo para mim. Temos disponível no banco?

— O positivo? Devemos ter duas bolsas... As doações chegaram de manhã, doutora.

— Ótimo. Duas bolsas é o suficiente até amanhã — Dizia mais tranquila — Temos um paciente no segundo andar precisando de transfusão urgente — Olhou no relógio — Daqui uma hora você deve subir no quarto quarenta e cinco e monitorar.

— Sim doutora — Saiu e me prontifiquei a ir examinar o estoque de sangue.

Atendi uma moça em trabalho de parte junto à ala da maternidade. Durante a noite aquele hospital era uma loucura! Faltavam médicos e as coisas eram corridas... Os pré-partos mais simples ficavam na mão de nós, enfermeiras mais experientes. Em menos de trinta minutos eu e a obstetra trouxemos uma garotinha linda ao mundo e a mãe dela me comoveu demasiadamente por ter a minha idade quando dei a luz aos meus gêmeos. Era difícil relembrar tudo o que passei... Mãe e filha passavam bem e a maravilha de trazer uma criança ao mundo me fez esquecer um pouquinho de Lorenzo.

Subi para o quarto quarenta e cinco e apanhei a ficha na porta do quarto antes de entrar. Estava escrito “leucemia” em letras garrafais e detive-me naquele momento. Doutora Samantha era especialista também em oncologista...

Abri a porta depois de dar duas batidas rápidas e entrei de maneira hesitante. Havia um homem sobre a maca solitária usando camisola de hospital azul e estava coberto por uma manta verde. Olhava para a televisão sem muito interesse e tinha o braço esticado recebendo o rosto na veia... O mundo parou quando desviou os olhos para mim.

Quase derrubei a bolsa de sangue no chão. Quase botei tudo a perder. Aquele homem era Lorenzo... O pai dos meus filhos!


Lorenzo


Em um momento eu estava pensando sobre a possibilidade de dizer a Laura a verdade sobre minha doença e no outro a musa de meus sonhos estava dentro de meu quarto carregando uma bolsa de sangue e vestida de enfermeira.

Assustado, sentei-me em um movimento brusco fazendo a agulha escapar de meu braço e o sangue jorrar pelo quarto. Estática como estava, Laura despertou e avançou em minha direção colocando a bolsa de sangue sobre uma grande mesa e apanhou um algodão antes de pegar em meu braço com delicadeza de maneira a estancar o sangramento. Parecia um anjo vestida toda de branco e com gotas de meu sangue cobrindo parte de seu uniforme. Havia lágrimas em seus olhos e aquilo partiu meu coração.

Laura...

— Segure aqui bem forte... Por favor — Sua voz tremia e fiz o que mandou.

Ela se afastou e pegou uma nova agulha e um curativo pequeno. Agarrou meu braço novamente e fechou o buraco aberto. Tirou o soro vazio do lugar e pegou uma bolsa de sangue relativamente grande. Pendurou-a no lugar do mesmo e pediu licença para furar-me novamente. Parou uns segundos para ver o estado de meu braço. Estava roxo em maior parte, como se eu houvesse levado uma grande surra. As manchas eram imensas e terríveis de se olhar. As mãos dela tremiam contra mim, por isso não arriscou me furar antes de se acalmar. Parecia sussurrar para si mesma algo reconfortante e já mais calma furou-me uma única vez e fixou a agulha com um esparadrapo branco.

— Dói muito? — Apertou meu braço delicadamente.

— Já nem sinto mais nada — Admiti com as palavras corretas. Nem sequer sentia mais os furos nem as agulhas após tudo isso.

— Você precisa ficar parado e... — Parou de falar e fechou os olhos exasperados, tocando a testa com uma das mãos. Olhou-me irritada e finalmente colocou para fora o que a atormentava — Porque não me contou antes? — Gritou. Sim, ela gritou em meio a um hospital!

Chorava por mim. Chorava pela maldita doença! Era tudo o que eu menos queria!

— Não queria que tivesse pena de mim e ainda não quero — Fui seco na resposta. Ela chorava tanto que me doía ver suas lágrimas espessas rolando pelo rosto avermelhado — Não queria que fizesse de mim um santo apenas porque estou condenado à morte!

— Eu merecia saber! Sou a mãe dos seus filhos! Será que isso não significa nada?

— Está vendo como as coisas são? Hoje de manhã isso não significava nada para você e os filhos nem sequer eram meus! Agora que sabe que estou morrendo não quer ficar com o peso na consciência e por isso me aceita de algum modo. Quer mais um motivo para eu não ter contado? — Calada perante as palavras, apenas me observou com as lágrimas rolando silenciosamente.

— Sempre te considerei pai de meus filhos — Sussurrou ainda mais fragilizada — Sempre!

— Você me tratou como mereci ser tratado — Respondi prontamente — Agora não precisa chorar por mim. Não precisa sentir pena porque estou condenado! Assim que me derem alta do hospital irei voltar para minha casa e sumirei de sua vida como mandou — Os olhos dela cresceram em certo medo — Pode apostar que nunca mais irá ouvir falar de mim, Laura. Em menos de um ano estarei morto e seus problemas acabarão!

— Pare de falar assim comigo! — Esbravejou — Não quero que você morra!

— Vá embora... Não temos mais nada para conversar! Não era esse meu plano... Não era ganhar você pela pena, mas sim por meu merecimento! Agora nada mais faz sentido!

— Não faça isso...

— Não quero te ver nunca mais! Não preciso da sua pena, vá embora! — Repeti duramente e tentando segurar as lágrimas também.

Laura me encarou durante largos segundos e caminhou até a porta de maneira desolada.

— Eu saio, mas essa conversa não acabou aqui Lorenzo. Não acabou!

 


Capítulo quinze

O jogo virou mais uma vez.

Inicialmente eu era a mocinha abandonada e Lorenzo o grande vilão da história, mas agora tudo estava de volta à estaca zero. Lorenzo sofria de uma grave doença e se eu não agisse rápido para recuperar sua vontade de viver tudo estaria perdido e meus filhos perderiam o pai para sempre! Eu também o perderia... Antes era ele quem corria atrás de mim, mas agora sou eu quem cobra as respostas que Lorenzo se recusa a fornecer. Chorei como nunca antes e analisei o prontuário dele três vezes completas, constatando a gravidade da doença. Se não corresse iria morrer em pouco tempo!

Minha mente não era capaz de fazer outra coisa a não ser confabular um jeito de fazê-lo mudar de ideia. Tenho armas para isso, afinal... Tenho Sarah e Samuel e posso usá-los covardemente para obrigar Lorenzo a se curar. Oh meu Deus! De pensar que julguei tanto o pobre paciente que não queria cura... A arma para mudar tudo estava em minhas mãos o tempo todo e sequer tive a ciência!

Se Lorenzo não tivesse ânimo de se tratar por nossos filhos talvez não valesse a pena tentar, mas a simples ideia de perdê-lo novamente para sempre me enchia de medo e pavor... Porque me lastimava a dor de alguém que jurei odiar? A resposta era simples! Amei, amo e sempre amarei Lorenzo Valencia apesar de toda a dor! O amor resistiu ao tempo e as feridas, mas não poderia aguentar a morte!

Fiz o que me pediu. Não voltei ao quarto dele, fiquei atendendo os demais pacientes após tomar um calmante e me recuperar da crise de choro. Cada segundo corrido pelo relógio era uma eternidade e perguntei a doutora Samantha quando Lorenzo teria sua alta médica. Mesmo que não fosse sua vontade, certamente iria me escutar! Eu o seguiria aonde quer que fosse e teríamos uma longa conversa sobre os gêmeos e sua doença!

Linguei para a babá dos gêmeos e pedi para ficar até o amanhecer. Inevitavelmente meu plantão acabou antes de sua saída, levando-me a procurar o endereço do hotel onde estava hospedado em seu prontuário de entrada na emergência. Dirigi até lá sem hesitar e arquitetando em mente as palavras a serem ditas. Não havia espaço para erros e muito menos lamentações!

Em meio à alta madrugada havia um porteiro na recepção do hotel e menti para o homem dizendo ser a namorada de Lorenzo que havia acabado de chegar de viajem para cuidar de sua saúde. Por sorte o homem era de outra cidade e não me conhecia de Belo Recanto e consegui as chaves para subir até o quarto especificado. Abri a porta com facilidade e voltei a trancá-la, notando o quanto o quarto era aconchegante.

Havia uma cama grande no centro em frente a uma sacada ampla, uma pequena estante e uma televisão grande. A mala de viagem estava no canto e algumas roupas sujas de sangue e suor encontravam-se empilhados no cesto do banheiro ao lado de uma banheira transbordando água gélida. O lugar estava bagunçado e por certo Lorenzo passou muito mal antes de ir para o hospital.

Esvaziei a banheira após lavar as peças de roupa na água da mesma e ajeitei o quarto na medida do possível, colocando novos lençóis na cama e organizando sua mala. Após o leve trabalho constatei serem duas e meia da manhã e nem sequer um ruído era ouvido nas imediações. Relaxando, prendi o cabelo e tirei as sapatilhas, sentando-me em uma cadeira de frente para a varanda e limitando-me a aguardar. Não havia mais nada a ser feito por Lorenzo em meio a tantas palavras não ditas!

Não era fácil pensar que fiz algo pelo homem que sempre repudiei e parte de mim queria se convencer que tudo aquilo era por Samuel e Sarah. Um dia eu teria de contar a história e não poderia existir a parte em que permiti que o pai deles morresse sem ao menos tentar ajudá-lo a lutar! Apesar de ser uma atitude nobre, a verdade não era essa!

Como deixar a pessoa que sempre amei ir embora? Como suportar perdê-lo e viver em um mundo onde o meu homem, minha outra parte , não existiria? Apesar das diferenças Lorenzo sempre foi minha outra parte! Não somente por ser pai dos meus filhos, mas também por ter sido o único a fazer meu coração disparar e a me envolver tanto a ponto de me fazer se entregar a ele de corpo e alma!

Durante toda minha vida ele foi o único... E para sempre seria! Para sempre viveria em meus sonhos!

A porta se abriu.


Lorenzo

Os médicos relutaram em me deixar voltar para o hotel, mas não era de minha vontade passar mais nenhum segundo naquele hospital navegando em lembranças distantes. Foi ali onde tudo acabou e minha jornada para ter meus filhos e a mulher que amo de volta se foi. Laura descobriu a verdade.

Não havia mais nada para se fazer em Belo Recanto e pelo menos eu poderia voar para casa e marcar uma consulta cara com especialista para tentar recuperar o tempo perdido. Não estava ligando se iria ou não dar certo, uma vez que agora Laura sabia de tudo. Agora poderia contar aos meus filhos que morri sem lutar e além de um fracassado seria também um pai covarde! Algo deveria ser feito, ao menos, para marcar a história.

Por um lado havia sido bom não ter tido contato com Sarah e Samuel. Aos menos não havia me apegado demais a eles e nem eles a mim! No táxi, apesar de ter a visão ainda turva, percebi que estava chorando. Sentia-me tonto, cansado e as lágrimas caiam covardemente por meu rosto. Vou sentir saudade deles... Saudade de ao menos assisti-los de longe! Pequenos. Bonitos. Espertos. Meus filhos e de Laura! As coisas mais reais para mim em meio a tanta dor...

Porque Laura fez isso? Porque não me deixou morrer em paz ao invés de descobrir tudo? Maldita hora em que pisei naquele hospital! Descartei a ideia de me despedir de meus filhos para sempre. Iria deixar uma carta como Laura fez comigo há seis anos dizendo meus motivos e - caso me recuperasse - diria que um dia voltaria por eles.

O porteiro de sempre estava guardando a entrada à noite, porém desta vez me disse algo incomum.

“Sua noiva está lá em cima senhor. Ela disse que veio cuidar de você”.

Noiva?

Meu coração disparou conforme subi pelas escadas frias.

“Eu não quero que você morra!”.

Disse Laura em alto e bom som em nosso último encontro. Engoli em seco antes de colocar a chave na fechadura e girá-la. Tudo estava calmo no interior do quarto quando abri a porta e a fechei atrás de mim. Não desejava vê-la... Doeria demais ter que olhar seu rosto um dia antes de ir embora para sempre! Acendi a luz e as sombras que rondavam o quarto se foram.

Tudo estava arrumado e a cama limpa livre de bagunças e roupas. Laura encontrava-se sentada em uma cadeira de frente para a sacada e encarou-me com a expressão culpada e os olhos hesitantes. Mordeu os lábios quando me aproximei, parando há uns passos de distância dela. Coloquei as mãos no bolso de meu casaco e joguei o molho de chaves sobre a mesa, causando um barulho rápido. Encaramo-nos em silêncio por um longo tempo constrangedor.

O segredo já havia sido desvendado e não havia mais nada a perder ali.

— O que está fazendo aqui? — Questionei com a voz calma. Laura colocou-se de pé e levou as mãos ao bolso traseiro de sua calça jeans branca.

— Não é obvio? — Deu de ombros delicadamente e encarou o chão — É aqui onde devo estar.

— Está enganada! — Repreendi. Ainda estava congelando olhando para ela e suas reações eram as mesmas de seis anos atrás. Em alguns aspectos minha doce menina evoluiu, porém em outros ainda era tão imatura quanto antes. Ainda tinha vergonha de me olhar nos olhos e mordia os lábios com o ardor. Ainda assemelhava-se a um anjo, muito mais quando vestida de branco — Seu lugar é junto de Sarah e Samuel, não aqui. Vá embora.

Encarou-me de maneira surpresa. Retirei minha jaqueta com certa impaciência, jogando-a sobre o móvel perto da cama grande. Esfreguei o cabelo nervosamente e dei as costas para ela.

— Não posso ir antes de falar com você! — Insistiu sem alterar o tom de voz. De costas para ela, me olhei no espelho. O reflexo de Laura era exibido perfeitamente ao meu lado esquerdo e apoiei as mãos no móvel de modo a abaixar o pescoço e esconder a cabeça entre os ombros. Ainda me sentia enjoado e tonto pelos efeitos dos remédios.

— Vá embora — Suspirei se olhá-la. Minha voz era dura e eu estava decidido — Você ganhou, Laura. Acabou! Amanhã mesmo vou deixar o país e voltar para minha vida de modo a não interferir nunca mais em sua história — Cada palavra era dita com tranquilidade e calma para que entendesse corretamente. Ouvi sua respiração se alterar e ergui os olhos encarando-a no espelho. Pude jurar que existiam lágrimas em seu rosto — Deixo claro que cedo em partes! Nada vai me impedir de deixar minha fortuna para meus filhos e criarei uma conta em nome de ambos. Deixarei tudo o que tenho lá para que usem quando forem maiores de idade. Não me importa se você não aceita. Um dia um representante de minha família irá procurá-los e eles tomarão a decisão correta! O resto você ganhou! Acabou para mim. Não tenho mais tempo para ficar rastejando pelo seu perdão.

— Não seja injusto! — Abraçou a si mesma novamente. Meu peito se apertou ao ver a cena pelo espelho e constatar que realmente chorava! — Por sua culpa me apaixonei, te amei e me prendi a você de um jeito inexplicável! Você me fez se entregar de todas as maneiras! — Soluçava e tentava ser forte — Você me humilhou e foi embora quando mais precisei... Abandonou-me gerando duas vidas e sem nenhuma perspectiva! — Não consegui falar apesar de desejar dizer algumas palavras — Quando voltou e me pediu uma chance de falar eu cedi e te ouvi não é mesmo? Não é justo que não me escute e me trata como uma estranha!

Abaixei o olhar.

Era justo Laura me odiar e trazia todos os motivos para fazê-lo, mas qual o direito que tenho sobre a mulher que gerou, amou e criou da melhor forma que pôde os filhos que abandonei? Como posso sequer cogitar nutrir qualquer sentimento negativo para com a responsável por amar-me indiretamente através deles? Virei-me em sua direção e nos encaramos com a cama grande entre nós.

— Sobre o que deseja falar?

— Desde quando tem leucemia? — Esfregou o rosto com as costas das mãos, livrando-se das lágrimas.

— Descobri no ano novo — Dei de ombros — Faz apenas alguns dias, presumindo que hoje seja dia dez de Janeiro. Está em fase inicial.

— Ótimo! — Os olhos brilharam em uma esperança silenciosa — Fase inicial — Repetiu a si mesma — Porque não me contou assim que chegou a cidade? Porque não evitou toda essa bagunça? — Questionou realmente confusa e estreitou o olhar para mim.

— Porque queria o seu perdão sincero. Não era minha intenção que sentisse qualquer pena de um moribundo como eu!

— Você não é um moribundo! — Falou irritada — Porque não quer se curar disso Lorenzo? — Seu rosto se converteu em nervosismo — É tão provável sua recuperação! Sou enfermeira e já vi casos... Muitos casos como o seu apresentam resultados positivos! Eu juro que a probabilidade de cura é altíssima em fase inicial, principalmente com todos os recursos que você pode dispor e...

— Para quê me curar? Para quem ? — Interrompi sua fala e, calada, me olhou com hesitação — Não tenho ninguém que realmente se importe comigo e muito menos por quem lutar! Não há o que ser conquistado, uma vez que já tenho tudo que o dinheiro pode comprar! Qual o sentido disso, Laura? — Dei de ombros, falando sinceramente — Há muito tempo vivo sozinho e sem motivos para continuar. Há muito tempo não tenho nada! — Olhava em minha direção fixamente e com os olhos pesarosos — Quando fiquei doente e fechei os olhos para fazer uma retrospectiva de minha vida à única coisa realmente boa que veio a minha mente foi... Você — Fechou os olhos por um segundo. Derramou mais lágrimas — Pode pensar que é mentira o quanto quiser, mas acredite... Vivi mais nesses dez dias do que nos últimos seis anos! Primeiro fiquei orgulhoso da mulher que você se tornou e depois descobri que recebi a graça de ter dois filhos maravilhosos. Tudo o que me importa é ter seu perdão e que Sarah e Samuel sejam felizes! Não há mais nada que valha a pena em minha vida. Nada!

Silêncio.

Fiquei calado para que Laura absorvesse as palavras, mas suas lágrimas sem barulho sequer cessaram. Virei-me para a mala que guardei algumas camisas e tirei minha camisa suja do corpo. Apanhei duas peças de roupa, sendo elas uma camisa branca e uma calça de moletom escura. Meu peito estava molhado de suor, por isso decidi tomar um banho antes de repousar. Estava cansado e fraco pelo tempo gasto no hospital.

Laura chorava em silêncio em seu canto e me analisava sem pudores. A visão de seu sofrimento me atingia em cheio e não era possível ignorar aquele ardor. Arremessei a camisa limpa em minhas mãos para ela, que agarrou no ar com destreza.

— Aonde você vai? — Sussurrou quando passei a sua frente indo em direção ao banheiro.

— Tomar um banho. Estou cansado e sujo — Parei na porta e olhei para ela um tanto hesitante — Se quiser... Acompanhar-me — Proposta suja, mas qual seria o problema, uma vez que sou um homem praticamente morto? Qual o erro em me arriscar?

— Não, muito obrigado. Da ultima vez que confiei em você fiquei grávida em uma noite — Deu as costas para mim.

— Como quiser. Com licença.

Fechei a porta e adentrei o banheiro. Tirei a calça e tomei uma ducha rápida, tendo a impressão de que desmaiaria de sono. Não demorei. Levei tempo o suficiente para tirar o suor e molhar o cabelo. Talvez tenha sido bom aceitar ouvi-la. Laura já deveria ter ido embora, mas foi gratificante deixar fluir as palavras. Ao menos sabia de tudo e tinha ideia de que me arrependi. Ao menos não foi em vão toda essa viajem, afinal!

Suspirei. Teria sido a ultima vez que nos vimos? Abri a porta do banheiro e constatei algo que me deixou boquiaberto... Era mesmo Laura quem estava sentada em minha cama usando a camisa que lhe estendi? Parei na porta do banheiro com o peito desnudo e a toalha molhada sobre o ombro. Ela estava no centro da cama olhando as próprias unhas, tinha o cabelo solto e um ar descontraído. Encarou-me sem hesitação e corou em seguida. Puxou a blusa mais para baixo, tapando de mim o que pôde de suas pernas brancas e torneadas.

Aquela cena... Laura em minha cama. Por um instante entrei no túnel do tempo de volta a um passado distante. Por um momento me vi naquela noite de quatro de janeiro sob as estrelas.

— Vou ficar aqui por essa noite — Anunciou com certo receio em sua voz aveludada — Temos muitas coisas para conversar e, além disso, já contratei a babá e terei que pagar o turno.

— Simplesmente decidiu ficar? — Dei a volta na cama a olhando de canto. Coloquei a toalha junto à mesa — Está certa disso?

— Posso ficar? — Sua pergunta foi quase inocente. Encolheu os ombros.

— Não sei dizer não para um pedido seu — Sorri de costas para ela e senti o alivio no ar. Porque permiti? Ora, era minha proibida! Depois de tudo o que fiz, seria certo comprometê-la novamente e morrer depois? Dei a volta e sentei-me na beira da cama com certa hesitação. Nosso olhar era intenso e perturbadoramente entrelaçado.

— Por favor, não me olhe assim — Encarou seus dedos em seu colo — Por favor... — Fechou os olhos.

— Porque não? — Cheguei um pouco mais perto — Trata-se de nossa última noite juntos. Diga-me tudo. Vamos ser sinceros um com o outro pelo menos uma vez... Eu sou Lorenzo, tenho vinte e oito anos, sou engenheiro aeronáutico e pai de dois filhos lindos! Tenho leucemia e vou morrer em menos de um ano — Toquei seu rosto e a fiz me olhar nos olhos — Não existem mais segredos aqui.

— Nossa história é tão complicada, cheia de altos e baixos e agora isso? — Encostou-se aos travesseiros atrás de si e pegou em minha mão. Soluçou, mas tentou se controlar — Me perdoe por... Tudo. Perdoe-me por não ter te ouvido e ter sido inflexível perante a situação, mas tente me entender! O passado me machucou muito e...

— Sei o que fiz com você e o que cativei. Deixo claro que me arrependo amargamente e esse é um pesar que levarei ao caixão! — Apertei suas mãos também — Sei que tudo o que fez comigo foi para proteger os gêmeos, mas também entenda que para mim não tem sido fácil. Não é fácil ter que passar por tudo isso e conhece-los apenas agora, antes de morrer!

Laura endireitou-se na cama e me puxou para um abraço. Surpreendi-me com esse fato, porém nada mais me importou quando passou a chorar contra meu ombro. Apertei-a junto a mim e tudo o que pude me lembrar foi da tarde em que lhe entreguei o dinheiro para o aborto e ela saiu chorando pelo corredor deserto. Afaguei seu cabelo delicadamente.

— Eu não quero que você morra, Lorenzo, não quero!


Laura

Lorenzo buscava evitar minhas lágrimas, porém não pude contê-las tão facilmente.

O que estava ao meu alcance para fazer com que ele não nos deixe? É tão difícil ir contra todos os princípios que construí ao decorrer de seis anos... Tão difícil chegar para o homem que me fiz odiar por puro orgulho e implorar para que se cure!

Mas o amo. Lorenzo é pai dos meus filhos e tal fato fala mais alto do que qualquer sentimento negativo! Não posso me esconder em sombras vendo quem amo se apagando aos poucos.

— O que foi? — Questionei um tempinho depois quando Lorenzo levou à mão a cabeça. Apoiou-se nas almofadas ficando ao meu lado. Virei-me em sua direção um tanto desesperada.

— Acho que é febre — Fechou os olhos. Observei seu peito nu levemente úmido de suor e a pele avermelhada. Ergui-me e fui em direção ao banheiro. Por certo haveria algum pano por lá — Não precisa se incomodar comigo! Já falei que não desejo sua pena!

Ignorei o comentário. Encontrei algumas toalhas limpas na gaveta e as umedeci com água fria. Apanhei em seguida na bolsa um remédio para baixar febre e arranjei um pouco de água em uma garrafa. Ajoelhei-me ao lado dele na cama e coloquei o comprimido em sua boca. Lorenzo pegou a garrafa e engoliu sem reclamar. Estendi a toalha sobre sua testa úmida e fiquei segurando-a, sentada ao seu lado. Estávamos próximos e nossos olhares se cruzavam como nos velhos tempos.

Os lindos olhos de Lorenzo sempre falaram por si só e agora eu podia ver todo seu arrependimento ali. Ainda, após seis anos, existia também aquela chama de paixão. Eu podia ver que Lorenzo ainda nutria por mim um misero sentimento!

— Sou enfermeira e isso fala mais alto do que pena ... Não precisa esquentar a cabeça — Um sorriso fraco apareceu em seu rosto. Encostei-me sobre as almofadas também e deslizei o olhar pelas manchas em seu corpo bonito. Aquele homem era bonito demais para morrer.

— Pensei que seu sonho fosse o jornalismo. Fico feliz por não ter destruído de uma vez sua vida profissional — Lorenzo buscava meu olhar e retribui com um sorriso. Quando notei, minha mão que antes segurava a toalha úmida agora acariciava seu cabelo em movimentos uniformes.

— Desconsidere o jornalismo. Minha profissão é enfermagem e não sei como pude ir contra isso um dia. Sinto-me feliz ajudando as pessoas e tal fato me faz completa. No final das contas você não estragou tudo — O sorriso dele se desfez, mas tão pouco aparentava sentir raiva.

— Não sabe o quanto me arrependo de ter te deixado um dia — Não olhou em meus olhos quando falou. Sua voz hesitava e era nítido que segurava as lágrimas — Daria tudo para voltar no tempo e recuperar a nossa história, mas só de ter o seu perdão já me basta... Sei que sou um covarde e que não a mereço, mas... — Dessa vez me encarou e sustentei o olhar. Nós estávamos mais perto porque deslizei um pouco para baixo na cama — É capaz de me perdoar Laura? Perdoar-me por ter sido um pouco homem, por haver te deixado quando mais precisou de mim e pela aposta ridícula que fiz para ficar com você? Perdoa, finalmente, os meus erros?

Tudo não passou de uma aposta .

Apertei os olhos e respirei profundamente.

Por um momento fiquei dividida entre ter a resposta ou não. Não passei de uma aposta que Lorenzo fez para dormir comigo? Olhei-o novamente quando a indignação me dominou. Toda aquela humilhação por uma simples brincadeira entre homens desocupados. Sarah e Samuel eram frutos de uma afrontosa trapaça em busca de meu coração!

Seus olhos aguardavam ansiosamente minha reação.

— Perdoo você, Lorenzo — Do que me adianta ainda nutrir raiva? Do que me adianta ficar remoendo uma coisa que já passou e da qual ele estava nitidamente arrependido? Apenas atrasaria minha vida, a vida de Lorenzo e a de Sarah e Samuel. Não adiantaria nada segurar no peito uma mágoa adormecida — Não pense mais nisso.

— Não vai perguntar sobre a aposta? — Neguei logo em seguida com um aceno forte de cabeça.

— Não preciso mexer no que já foi. Acabou. Agora temos que pensar em Sarah e Samuel e em sua recuperação — Respirou aliviado — Não te perdoaria se aparecesse na vida de nossos filhos para sumir depois, afinal!

— Foi por causa dessa aposta que me apaixonei por você um dia — Sua resposta certeira me surpreendeu.

— De fato me amou um dia? — Questionei um tanto severamente.

 

— Desde a primeira vez em que te vi na boate tomando suco da laranja e com aquela carinha de anjo caído... Desde a primeira vez em que te beijei e mais ainda quando foi apenas minha pela primeira e única vez. Sempre te amei, Laura. Sempre!

 

Em um movimento inesperado me abaixei e selei os lábios nos dele. Incerto, retribuiu o beijo com certa cautela, mas com sofreguidão. Segurou em meus ombros com cuidado até me fazer deitar por cima dele e depois de todo esse tempo era como se fosse à primeira vez... Como se nenhum espaço de tempo houvesse interferido entre nós!

 

Corro os dedos por seu cabelo suado ao mesmo tempo em que deslizo as unhas da outra mão pela pele quente de seu peito largo. Não sei se pela febre ou pelo momento, mas Lorenzo queima preocupantemente contra mim. Puxa meu cabelo delicadamente tendo acesso fácil a meu pescoço. Corre a língua por minha garganta e desce uma das mãos por minhas costas, tocando meu quadril com possessão. É nesse momento que o afasto gentilmente, descolando os lábios dos dele.

— Para umas coisas você está doente... Para outras está bem até demais! — Está me olhando totalmente confuso e com os olhos fixos nos meus.

— Foi você quem me beijou — Lembrou ainda pairando sobre mim. Sorriu quando corei. Suspirei e me movi um pouco. Lorenzo estava disposto a me deixar sair, porém não o fiz — O que está pretende mexendo comigo desse jeito?

— Não quero que você vá embora — Estreitou o olhar e apoiou os cotovelos um de cada lado de minha cabeça. Ajeitei-me embaixo dele um pouco envergonhada. Ficar próxima desse jeito... É tão diferente da primeira vez.

— E está pensando em me seduzir para que eu não vá? — Abri a boca em surpresa. Dei-lhe um pequeno tapa na face e ele reclamou com um sorriso, não saindo de cima de mim.

— Não pense que terei pena de você só porque está com uma doença grave.

— Eu não ousaria...

— Ótimo — Enlacei seu pescoço e o puxei para perto novamente. Lorenzo se abaixou e me beijou quando reivindiquei seus lábios — Você se parece com Samuel quando faz essa cara de bravo — Abriu um sorriso bem próximo ao meu rosto. Tocou nossas testas.

— Samuel é quem se parece comigo.

— Certamente. O criador e a criatura.

— Você gosta de mim? — Sua cara foi exatamente idêntica a que os gêmeos adotavam quando me faziam essa pergunta. O contexto era bem diferente, obviamente, porém a resposta era exatamente a mesma.

— Sempre gostei de você. O meu erro foi esse. Sempre te amei .

— Que ótimo erro — Sussurrou de maneira apaixonada.

 


Capítulo dezesseis

Tudo aconteceu como o mais doce sonho... O melhor dele era saber que não passava da mais pura realidade e de fato havia acontecido! A madrugada deveria estar prestes a acabar quando senti mãos delicadas tocando minha testa e acariciando meu cabelo com tranquilidade. De inicio pensei ser a morte vindo me abraçar mais cedo do que esperei, porém me recordei de que não estava sozinho.

Laura dormia bem ao meu lado, ali, em minha cama! Segui de olhos fechados e o movimento em meu cabelo prosseguiu. Fingir estar dormindo era correto? Até onde poderia ir?

— É tão difícil resistir... — Sua voz é firme e nervosa, porém há um toque de doçura. Sorrio internamente. As mãos descem por meu rosto e tocam sobre meus lábios — Não consigo nutrir qualquer sentimento negativo. Não consigo lugar contra o que está aqui dentro...

Seu toque sumiu repentinamente e grande vazio tomou conta de minha alma. Não demorou sequer cinco segundos para o roçar doce e molhado de seus lábios eclodir em minha testa... Em minhas bochechas... No canto de minha boca. Ah Laura...

— Porque teve de ser tão cruel comigo um dia? — Sussurrava bem próxima ao meu rosto — Poderíamos ter sido tão felizes... Nós dois e nossos filhos! Seria tão mágico e eu poderia ter cuidado de nós todos. Porque Lorenzo? — Me segurei para não me pronunciar.

As palavras ficaram presas em minha garganta e a vontade louca de me esmurrar se fez presente uma vez mais. Eu me perguntava como teria sido nossa vida com as crianças constantemente!

Imaginei-me vivendo em um mundo onde as palavras proferidas por Laura fossem reais. Uma realidade onde nós dois e nossos filhos éramos uma família. Um passado distorcido havia impedido que Sarah fosse minha princesinha e Samuel meu garoto motivo de orgulho. Havia impedido que Laura fosse minha doce, carinhosa e quente esposa. No mundo de suas palavras tudo teria o caminho certo por ser simplesmente como deveria ser. Ela era tudo o que eu mais queria, portanto com certeza teria me feito feliz.

Surpreendendo-me, roçou os lábios novamente em meu rosto. Desceu a mão pequena por meu peito delicadamente... Sem camisa era possível sentir seu toque doce e hesitante. Ofeguei diante da situação. Não seria possível aguentar calado por tanto tempo!

Laura me beijou nos lábios e gemeu baixinho contra mim.

Antes que pudesse se afastar a agarrei pela cintura e prensei os lábios contra sua boca fortemente, beijando-a com selvageria. Ouvi um gemido de surpresa e suas mãos correram para agarrar-me nos ombros. Sorri internamente enquanto notava sua retribuição entusiasmada para o beijo e a saudade que nutríamos um pelo outro cresceu como um vulcão. Porque nos privamos de nós mesmos? Sentei-me e a coloquei em meu colo, de frente a mim com as pernas envoltas em meu quadril. Não fomos capazes de parar o beijo com medo de despertar. Rapidamente corri os dedos por suas coxas nuas, apertando-as em minhas mãos por baixo da camisa branca e larga que cobria seu corpo. Minha camisa. Minha menina.

Os dedos de Laura prendiam-se em meu cabelo e sua boca incansável devorava a minha. Infiltrei as mãos pela camisa sem pudores e subi em direção a seus seios com a sensação indescritível de seu corpo todo estremecendo. Antes que pudesse protestar toquei seus seios maiores do que eu me lembrava por debaixo da camisa.

Ela gemeu contra meus lábios.

Viajei há seis anos antes e toquei seu corpo com cuidado e com devoção... Apertei os olhos quando nossos lábios se separaram e nossas respirações passaram a se entrelaçar de maneira ofegante e descompassada. Não quero que isso acabe! Quero que essa seja minha ultima lembrança dela!

Abri os olhos. Laura me olhava e segurava meu queixo com as mãos tremulas, uma de cada lado de meu rosto. Não existia hesitação em seu olhar brilhante e excitado, apenas expectativa. Enrolei os dedos na barra de sua blusa e a puxei por sua cabeça, arremessando-a ao chão em seguida. Voltou a enrolar os braços em meu pescoço e se prensar contra meu peito. Fechei os olhos novamente, descendo os lábios em direção a seu pescoço.

Há um dia nos odiávamos e nos repudiávamos em palavras.

Deitei-a sobre o colchão e verifiquei sua imagem deliciosa. A mulher com quem fantasiei por seis anos estava em minha cama usando somente calcinha. Nos olhávamos em silêncio, apenas nossa respiração fazendo barulho no quarto. Busquei um sinal de hesitação, um só olhar de reprovação... Não encontrei. Uma de suas mãos pousava sobre a barriga lisa e a outra agarrava o lençol branco já revirado. Seus olhos me percorriam o corpo e me clamavam. Sorri de canto quando me livrei de minha calça e fui para cima dela.

Abraçando-me com as pernas, ouvi o gemido fraco quando envolvi seus seios em meus lábios, descendo as mãos pelas laterais de seu corpo. Atraia-me e eu preciso dela! Ajoelhei-me entre suas pernas e puxei sua calcinha juntamente, deixando-a totalmente nua para mim. Rugi por dentro ao contemplá-la mais uma vez... Tão linda. Ainda parecia a menina que desvirginei e engravidei no passado. Livrei-me de minha própria roupa intima e fiquei por cima dela. Separei suas pernas com certa pressa e apoiei os braços ao lado de seu corpo. Ela segurou em meus ombros e mordeu os lábios... Parecia aflita. Encaixei a cabeça de meu sexo em sua intimidade úmida e fui atingido por uma onde avassaladora de ternura. Opa. Voltei o caminho.

— O que foi? — Sussurrou impaciente e quase nervosa. Ainda em cima dela agarrei no lençol e torci os dedos. Suspirei e apertei os olhos.

— Não temos preservativo — Soltou a respiração e apertou meus ombros delicadamente. Mordeu os lábios novamente — Não quero te deixar grávida de novo. Acredito que não me perdoaria! — Minha expressão de desgosto deveria ser cômica.

— Eu tomo pílula contraceptiva.

Por certo enrubesci. Por certo deixei evidente todo o meu desconforto com suas palavras tremulas.

— Certo — Sussurrei em meio ao silencio.

Passamos a ser um, mas não antes que ela me encarasse seriamente e segurasse meu rosto em seus dedos trêmulos.

— Faz muito tempo que não faço isso — Corou e tinha o corpo todo vermelho sob minhas mãos.

— Muito tempo quanto?

— Seis anos.


Laura

Após estar nos braços de Lorenzo e o sonho se fazer real novamente em minha vida, ficamos nos olhando em silencio por um longo tempo.

— Seis anos? — As poucas palavras ditas por ele falaram muito. Corei no escuro, apenas a luz dos olhos de Lorenzo me consumia. Mordi os lábios.

— Não tenho tempo para pensar nisso — Falei rápido e olhando para o teto — Devo pensar em Samuel e Sarah.

— Entendo, mas não deixo de estar surpreso — Encarava-me certamente pego por um susto — Então fui único homem em sua vida durante todos esses anos?

— O primeiro e o único.

— E a história do remédio?

— Apenas para controle do ciclo, nada demais.

O silêncio dominou por mais alguns instantes e era como se fosse possível ouvir a mente de Lorenzo processando todas as informações que acabou de receber.

— Eu ainda te amo... — Sussurrou tocando meu rosto e fazendo-me olhá-lo — Hoje sei que foi a única mulher de valor em minha vida e a única pela qual vale a pena lutar — Aquelas palavras se cravaram profundamente em minha alma — Deixe-me formar essa última lembrança de ti... De nós dois. Por favor. Você é a última lembrança que desejo guardar e levar na memória.

Meu “sim” foi perdido no ar quando Lorenzo me beijou com cuidado, quase dolorosamente.

Deixe-me formar essa última lembrança de ti.

Na manhã seguinte abri os olhos com a última imagem que computei ainda dançando em minha mente. Essa lembrança era Lorenzo olhando em meus olhos enquanto novamente éramos um único ser. Foi maravilhoso. Foi delicado. Foi doce.

Onde ele está?

Sento-me. Olho em volta pressionando o lençol contra meu corpo. Ele não está! Nada dele está no quarto também! Um bolo se forma em minha garganta e as lágrimas já descem por minha face. Movo-me e um barulho de papel amassando se faz. Olho para o bilhete que roçou em minha mão com o coração disparado e meus olhos se enchem de lágrimas pela cena do passado se repetindo...

Abro o bilhete amassado e coloco-o diante dos olhos.


Doce Laura,

Durante seis anos me atormentei com a cena de você acordando sozinha e nua sobre minha cama fria. Nunca me perdoei por ter lhe deixado e hoje estou aqui, repetindo essa façanha e me sentindo melhor por isso. Melhor porque sei que longe de mim tudo será mais fácil. Melhor porque não quero que meus filhos me vejam morrendo caso o tratamento não dê certo. Hoje vejo que não cometi erro algum... Dei a Samuel e Sarah a melhor mãe do mundo: a mulher mais corajosa e forte que existe. Por favor, diga a nossos filhos que tenho muito orgulho deles. Diga que os amo e que de onde estiver irei protegê-los. Diga, também, que se ainda irei tentar me curar é tudo por eles. E por você. Jamais se atreva a duvidar de uma coisa: eu te amo! Obrigado por me dar dois filhos lindos e por me perdoar. Obrigado por ter sido a melhor coisa de minha vida. Deixe-me viver sempre em teu coração.

Com amor,

Lorenzo.

 

Tive vontade de me jogar contra os lençóis e chorar, mas levantei-me e vesti-me rapidamente com as roupas sujas de ontem. Lorenzo me deixou uma camisa grande e vermelha que vesti com minha calça branca antes de pegar a bolsa e sair correndo porta a fora. Desci as escadas em total desespero almejando chegar em casa logo. Perguntei ao porteiro do prédio que horas Lorenzo havia saído e o homem respondeu que havia ido há vinte minutos. Vinte minutos!

Dirigi por Belo Recanto como nunca antes, rápido e eficaz. O cabelo grudava em meu rosto enquanto o carro percorria as ruas com velocidade alta e as lágrimas caiam sem intervalos por meu rosto desolado. Cheguei a meu prédio e larguei o carro na calçada, subindo pelo elevador apenas martelando as ideias e encaixando as peças do quebra-cabeça... Abri a porta e vi Sarah e Samuel sentados no sofá com roupas de sair. Sarah usava uma blusa branca com uma linda saia rodada rosa junto a sapatilhas e tinha o cabelo solto nas costas. Samuel estava de jeans e a camisa de seu time de futebol preferido. Era como se me esperassem todo esse tempo e tal fato me surpreendeu de imediato.

— Mamãe? O que foi? — Sarah questionou um pouco assustada por minha situação de ansiedade.

— De quem é essa camisa irada? — Samuel reparou de imediato na peça de roupa de Lorenzo.

— Longa história — Me aproximei dos dois e ajoelhei entre ambos. Segurei em suas mãos pequenas sem conseguir desviar o olhar dos dois pares de olhos verdes brilhantes — Preciso da ajuda de vocês. Vamos sair em cinco minutos e trata-se de algo muito importante!

— Como assim? A vovó ia vim buscar a gente para passear no shopping! — Choramingou Sarah — Lembra?

— O que é mamãe? — Samuel soou preocupado e apertei os olhos diante de seus argumentos.

— Esqueçam o passeio! Esqueçam a vovó! — Acenei as mãos no ar sem conseguir me concentrar. A babá apareceu na sala e a dispensei em um minuto. Voltei-me para os gêmeos ainda confusos sobre o sofá.

— Também quero ir passear com a vovó — Samuel cruzou os bracinhos e diante da reação de ambos tinha a certeza de que teria de dizer a verdade!

— Preferem ir para o shopping ou conhecer o pai de vocês? — Em retorno a minhas palavras recebi um silêncio total e duas carinhas lindas convertidas em espanto.

— Papai? Nosso papai?

— Ele não mora com os anjos? — Pularam do sofá, entusiasmados.

Vendo que ganhei a guerra fui para o banheiro e prendi o cabelo. Troquei meu jeans por outro mais limpo e coloquei um tênis em tempo recorde! Pegando a chave do carro, puxei Sarah para meu colo e Samuel pela mão.

— Eu sim quero conhecer o papai!

— Eu também! Não vejo a hora! Onde ele está mãe? Onde esteve durante esse tempo todo? — Samuel era o mais curioso e já no carro falaram disso por muito tempo.

Tentei dirigir mais devagar por causa deles e pensando que se estivesse em nosso destino se encontrar no aeroporto de fato iria acontecer!

É surreal pensar que estou levando Samuel e Sarah até o aeroporto antes que Lorenzo vá embora, mas grande parte de mim deseja que ele fique... O outro pouco quer que ele vá se tratar! A voz do coração me diz que o que mais anseio é que Lorenzo conheça os gêmeos caso o pior aconteça. Lorenzo merece ouvir os filhos o chamando de pai ao menos uma vez. Meus olhos se encheram de lágrimas apenas de cogitar perdê-lo.

Estacionei e sai do carro dando a mão aos dois pequenos. Adentrei ao aeroporto exasperada e indo em direção ao balcão de informações.

— Por favor, moça... A que horas sai o próximo avião para Madrid?

— O próximo é daqui meia-hora mocinha e... — Sai em direção à ala de embarques imediatamente.

— Nós vamos voar mamãe? Diz que sim, por favor! — Sarah choramingou olhando ao redor totalmente deslumbrada.

— Quero ver o papai... Onde ele está?

Uma vez na sala de espera, olhei ao redor e busquei com o olhar todos os cantos daquela imensa sala. Permaneci parada lá com Sarah de um lado e Samuel do outro me questionando se não era já muito tarde... Questionando-me onde estava Lorenzo...

 

Lorenzo

Doeu sair como um foragido e ver tudo acontecendo como na primeira vez em que dormi ao lado de Laura.

Permaneci parado durante dez minutos assistindo Laura dormir e criando coragem para ir embora... Eu sabia que era algo preciso. Uma vez que pretendo tentar me curar, é necessário ir embora! Sai do quarto como uma sombra e paguei a conta do hotel sem olhar para trás. Um táxi me conduziu até o aeroporto e contemplei pela janela a paisagem de Belo Recanto sumir sobre o asfalto. Tudo teria que ser diferente a partir de agora.

Vivi com Laura uma noite perfeita e prazerosa, mas aquela mulher não me queria em sua vida e tão pouco na dos gêmeos. Devo aceitar as coisas como são e nunca doeu tanto ir embora da vida de alguém... Nunca foi tão horrível dar adeus a quem sequer tive a oportunidade de conhecer.

Meus filhos.

Sarah e Samuel dançavam em minha mente como em nosso último encontro e era terrível pensar que aquilo era o fim .

Fiz o check-in do voo com o sorriso de minhas crianças e os momentos partilhados entre mim e Laura na noite anterior refletidos na memória. Ao menos foram onze dias que valeram a pena e tal fato me consolava... Onze dias onde pude ao menos descobrir que sempre estiver correto: Laura foi a melhor coisa de minha vida.

Segui em direção ao embarque, porém antes parei para comprar uma revista para ler durante a viagem. Mesmo que fosse incapaz de me concentrar, a leitura serviria de consolo durante os primeiros momentos de solidão. Trago total convicção de que assim que colocar meus pés em Madrid a minha equipe médica irá me trancar em um hospital para exames e procedimentos exaustivos. Talvez esse fosse meu final... Encarcerado e solitário dentro de um hospital.

Acabou. É isso.

— Lorenzo?

Ouvi uma voz doce e baixa chamar por meu nome. Detive-me no lugar já livre das malas e pensei seriamente se deveria me virar para ver sobre quem se tratava. Somente poderia ser ela... Porque Laura tornou isso mais difícil? Suspirei e me virei lentamente.

Não era minha imaginação e nada neste mundo poderia ter me preparado para o que encontrei naquele instante.

Laura encontrava-se parada a apenas alguns passos de distância e suas mãos estavam entrelaçadas com as de Sarah e Samuel. Ainda usava a camisa que deixei moldando seu corpo pela manhã e sorria com os olhos transbordando emoção.

Olhava-me nos olhos como se fosse explodir em lágrimas a qualquer momento. Ainda posso vê-la em minha cama. Ainda posso sentir seu corpo.

Deslizo os olhos para Samuel e Sarah, ambos nitidamente confusos e com um sorriso forte nos rostinhos angelicais. O garoto usa a camisa de meu time do coração e não acredito que seja algo previamente arquitetado. Emoções variadas tomam conta de meu peito naquele instante e levo a mão diretamente sobre o coração. Quanto tempo sonhei em conhecê-los... Quantas noites passei pensando em abraçá-los ao menos uma vez?

Sarah me encarava um pouco mais serena do que Samuel e a certeza de que sabia o tempo todo quem eu era me fez sorrir de volta. Aquele olhar me dizia que ela havia me procurado todo esse tempo e agora também estava feliz. Aquelas duas crianças eram minha família .

— Eu não esperava... — Não pude terminar a frase e certamente trago lágrimas nos olhos.

Chorar nunca fez parte de meu perfil, mas naquele instante não existia coração gélido capaz de se manter firme. Os meus filhos. Depois de tanto tempo...

— Eles querem falar uma coisa com você, Lorenzo — Laura referiu-se aos gêmeos e os dois concordaram com um largo aceno — Deem um beijo e um abraço no papai que antes que ele vá embora.

Laura mal terminou a frase quando Samuel e Sarah largaram sua mão e correram para mim. Abaixei-me instintivamente e os envolvi em meus braços com o maior ardor que existia em meu peito. Com força e uma saudades tão grande que mal poderia ser mensurada! Aquele abraço era o valor da alma... O valor da vida... O valor de tudo!

É impossível narrar a sensação de abraçar meus filhos pela primeira vez e senti-los próximos e animados. É indescritível saber que aquelas duas pequenas pessoas que tanto amo são frutos de uma noite onde brinquei com o coração de Laura em troca de uma aposta.

Encarei Laura por cima do ombro de ambos e percebi que chorava silenciosamente. As pessoas ao redor paravam em seus caminhos para assistirem nossa cena emocionante. Apertei os olhos quando a emoção explodiu em meio peito e senti dois pares de mãos pequeninas tocarem meu rosto. Sarah e Samuel me encaravam com os olhos esverdeados felizes e emocionados.

— Porque vai embora agora papai? — Samuel disse com expressão tristonha — Logo agora que acabou de chegar...

— Não vá embora papai... Nós queremos ficar perto de você. Nós te amamos! — Sarah era ainda mais doce em suas inocentes palavras.

Ambos me chamaram de papai e a sensação era a de ver o sol pela primeira vez. As trevas se foram e tudo parecia límpido... Os erros já podiam se afastar agora porque tudo havia valido a pena.

— Eu... — Não conseguia falar. É surreal olhar essas carinhas chorosas em minha frente e saber que Sarah está chorando. Por mim, que sequer mereço sua comoção — Eu quero ficar, mas tenho que ir! É muito importante que eu vá... A mãe de vocês vai explicar tudo — Os dois me abraçaram novamente e desta vez com ainda mais força. Tudo o que menos quero é ir embora e deixá-los novamente... Ah Deus! A sensação é devastadora! Os gêmeos não me largavam e olhei para Laura novamente — Porque você fez isso comigo?

— Eles tinham o direito de saber — Deu de ombros e secou uma lágrima grosseiramente.

— Você volta papai? Vamos nos ver novamente? — A expressão esperançosa de Samuel me fez considerar.

— É o que mais quero. Voltar e vê-los novamente — Por mais que não tivesse certeza do fato, não vi como dizer outra coisa — Eu amo vocês e sempre vou me lembrar dos dois — Toquei no rosto de Sarah e lhe dei um beijo na testa. Fiz o mesmo com Samuel — Papai pode ter demorado, mas descobri que vocês são tudo na minha vida. Peço que me perdoem por todo o tempo em que estive longe.

— Também te amamos papai — Samuel respondeu sem hesitar e os dois me beijaram o rosto juntos.

— Queríamos muito te conhecer e dizer isso — Sarah finalizou — Promete que sempre vai lembrar de nós?

— Claro que sim! Sempre! — Garanti com convicção e um largo sorriso — E vocês? Sempre se lembrarão de mim?

— Sempre! — Responderam juntos.

— O Papai precisa ir agora — Laura aproximou-se e fiquei de pé colocando os dois no chão. Olhei nos olhos de Laura ainda segurando as mãos de Samuel e Sarah — Você volta? — Sussurrou contendo as lágrimas.

Tenho que me curar. Preciso disso agora. É meu dever.

— Darei minha vida por isso — Suspirei e talvez tenha deixado uma lágrima cair. Laura voou em meu pescoço e me deu um selinho rápido. Não fui capaz de abraçá-la por saber que se o fizesse jamais iria soltar.

— Por favor... Volte. Por favor. Se você não voltar eu... Eu não sei o que fazer! Ainda te amo e... Faça isso por Sarah e Samuel.

Talvez eu não precise de tratamento, uma vez que já me sentia voltando a viver. Meu coração bate novamente e tenho algo pelo qual lutar. Tenho Laura, minha linda amada e Sarah e Samuel, meus filhos queridos.

Tenho uma família.

Uma nova vida.

 


Capítulo dezessete

"Lembrar é fácil para

quem tem memória.

Esquecer é difícil para

quem tem coração."

— William Shakespeare.


Nove meses depois...

Fiz de tudo para passar esse tempo bem. Tentei viver e somente isso já podia ser considerada uma grande vitória. Consegui fazer isso por seis anos, porque não por mais um? O grande problema era ver que o tempo passava e passava, mas nada mudava!

Um mês. Dois meses. Cinco meses... Sete... Nove meses já haviam ido e nenhuma carta ou mensagem de Lorenzo me havia sido direcionada. Acaso havia nos esquecido? Tentei de todas as formas me convencer do contrário, por isso inicialmente levei em conta sua doença, certa de que estava se cuidando e se dedicando para ficar bem.

Três meses depois Samuel e Sarah ainda me bombardeavam de perguntas e me irritei muito com Lorenzo por não me dar sequer uma misera resposta! Era complicado dizer que também não sei onde está o papai, muito menos para onde foi ou o que faz!

Estacionei o carro em frente à lanchonete da cidade onde Samuel e Sarah gostam de tomar café aos sábados. É Outubro e a paisagem de primavera está mais do que agradável esse ano. Olho pelo retrovisor e vejo dois pares de olhos verdes presos na praça do outro lado da rua... A praça onde Lorenzo conversou com eles pela primeira vez. Suspiro e saio do carro em seguida, abrindo a porta de trás para ambos saltarem de lá sem entusiasmo. Acomodamo-nos na mesa do fundo onde podemos ver a praça nitidamente.

Ver o semblante tristonho de meus filhos me fazia pensar de Lorenzo tinha essa direito... Era certo aparecer na vida deles e depois sumir abruptamente?

— Querem brincar na praça depois do café? — Ofereço com certa timidez. Sei que estão pensando em Lorenzo... Eu também estou. Os rostinhos idênticos assentem positivamente — Certo. Nós vamos.

— Eu não trouxe a bola — Samuel pegou o cardápio e começou a analisá-lo. Sarah estava pensativa olhando para fora do vidro.

— Sem problema... Compramos uma — Lorenzo não havia me dado noticias, porém estava enviando dinheiro. Não havia como saber o endereço fixo, mas a quantia caía em minha conta a mando da Empresa da família dele e realmente era uma generosa ajuda mensal — O que vão querer comer?

— Queijo quente e suco de maracujá.

— Queijo quente e suco de maracujá — Sempre o mesmo pedido igual, solicitei o que queriam e um chá preto para mim. Assisti os dois tomando o café em silêncio.

— Sabem que dia está chegando não sabem? — Foi à única coisa que me veio em mente para quebrar o marasmo.

— Sim. Vamos fazer seis anos — Sarah respondeu enquanto mastigava sem muito interesse.

— Já pensaram em algum presente? — Apesar de meu entusiasmo os gêmeos não estavam tão felizes. A presença de Lorenzo em meio ao anonimato desta mesa ainda era enorme.

— Queremos viajar de avião — Sarah pontuou seriamente.

— Não podemos e vocês sabem disso. Mamãe precisa trabalhar e não posso largar o emprego — Sarah suspirou e voltou a comer.

— Então podemos visitar o papai. O que acham? — Samuel pediu entusiasmado.

— Mamãe não sabe onde papai está. Ele foi embora — O tom seco de Sarah me machucou. Samuel abaixou o olhar e voltou a comer.

Neste momento eu odiava Lorenzo! Porque nenhuma notícia?

No sexto mês comecei a considerar outra hipótese... Haveria sua doença o levado? Meu coração dói com a simples ideia, porém não seria surpresa. Talvez antes de partir tenha deixado um aviso na empresa para me mandarem a pensão e talvez fosse por isso que eu recebia tanto deles. Porque faria isso? Porque iria e não me daria nenhum sinal?

Talvez não quisesse que Sarah e Samuel o vissem em um caixão e soubessem que não pôde cumprir a promessa de voltar. Lágrimas se formavam em meus olhos com a simples ideia. Ah! Como poderei viver sem ele? Certamente já vivi seis anos, mas sabia que estava em algum lugar vivo e bem.

— Porque está chorando mamãe? — Sequei as lágrimas com as costas de minhas mãos.

— Não é nada... — Menti.

— Está pensando no papai? — Olhei para Samuel um pouco surpresa — Sempre que chora de noite você diz o nome dele... — Abaixou o olhar um pouco envergonhado. Sarah também tinha lágrimas nos olhos e inclinou-se sobre a mesa para pegar em minha mão delicadamente.

— Não chore mamãe... Eu também sinto saudade, porém sei que papai vai voltar. Ele prometeu voltar! — Encarando-a penso o que fazer para apresentar a morte a essas duas crianças. Aperto seus dedos nos meus e lembro que ao menos os tenho. Ao menos não estou sozinha. Lorenzo deixou parte dele aqui para sempre!

— É verdade querida... Seu pai prometeu — Sussurro com um sorriso.

Levo os dois ao parque e sento-me em baixo da árvore com um livro de romance sobre as coxas. O dia está lindo e as flores caem sobre a grama... Aspiro o cheiro delicado de natureza e encaro a entrada do parque sabendo que está faltando algo nessa cena. Sarah e Samuel brincam no parquinho como há nove meses, porém Lorenzo não está entrando pelo portão. Não está vindo em minha direção. Volto a sentir lágrimas no rosto.

Onde você está meu amor? O que houve com você? Porque não volta para mim... Para nossos filhos? Você nos esqueceu?

Não demoro a recolher as crianças e voltar para o carro. Enquanto dirijo penso em algo... Talvez uma mudança.

— O que acham de mudarmos de cidade?

— Para que? — Samuel questiona no banco de trás com sua bola nova no colo. Olha-me com expressão confusa.

— Respirar novos ares — Dei de ombros sabendo que tudo isso significava afastar as lembranças de Lorenzo — Posso trabalhar em um novo hospital e vocês dois estudarão em uma escola melhor. Venderei esse apartamento e compraremos um bem mais bonito...

— Não mamãe. Não podemos ir embora daqui — Sarah sussurra com as mãos no meu banco — Se formos embora papai nunca mais vai nos encontrar.

Existem argumentos contra uma suplica tão emocionada?

Minha barriga pesa. Sinto dores nas costas, mas mesmo assim não consigo ficar parada. Tenho que terminar de ler esse maldito artigo para fazer a prova final do primeiro semestre do curso de enfermagem. Largo o livro sobre o sofá quando sinto um beliscão dentro de mim. Posso lembrar perfeitamente da dor quando espalmo a mão sobre minha barriga dilatada e enorme, assustadoramente grande. Um chute. Sinto um chute bem forte e outro beliscão.

— Acalmem-se — Sussurro olhando para a barriga. Quase posso ver os bebês se movendo lá dentro — Mamãe precisa estudar.

Ao ouvir minha voz eles param. Talvez não seja pela voz, mas porque mudei de posição. Acomodo-me novamente no sofá e pego o livro. Não demora nem dois segundos e sinto dor nas costas. Uma dor horrível e novamente o beliscão. Fecho os olhos e toco sobre a barriga, em baixo da blusa.

— Por favor, meninos — Sussurro novamente — Quietos agora.

Não adianta. Um novo beliscão. Ah! Está me irritando... Tento me erguer do sofá e demoro um pouco. Quando faço o movimento mais brusco sinto algo molhado em minhas pernas. Olho para baixo e vejo minha calça de ginástica molhada. Quantos tempos têm de gravidez mesmo? Oito meses? Não há ninguém em casa. O que fazer?

Não consigo pensar direito por causa da dor. Estou em trabalho de parto! Minha cesariana é para daqui algumas semanas! São gêmeos e sinto que não irei aguentar um parto normal. Estico o braço e ligo para a ambulância. Eles dizem que irão chegar em dez minutos.

— Estamos bem — Sussurro para a barriga novamente — Vai dar tudo certo! — Suspiro.

Não quero perdê-los e por um minuto esse pensamento me domina... E se não chegarem a tempo? E se eu ficar aqui muito tempo e perder meus bebês? Essas crianças são tudo o que tenho agora e trata-se de minha vida! Lutei contra tudo e todos e vou perdê-los de maneira cruel? Fecho os olhos e projeto uma imagem em minha mente... Nela Lorenzo está ajoelhado ao meu lado e segura minha mão. Inclina-se e me dá um beijo no topo da barriga, espalmando sua mão grande sobre ela.

— Vai ficar tudo bem — A miragem diz com um sorriso largo — Logo vamos ver nossos bebês. Logo tudo vai ficar bem.

A ambulância chegou, levaram-me para o hospital e mal podia conter minha emoção... Vou ver a carinha deles em breve! Quanto tempo fantasiei com este momento... Será que vão parecer com o pai? Serão lindos. Colocarei os nomes de que forma? Talvez Samuel e Lorenzo se forem dois garotos. Eles me deram medicamente para atrasar um pouco o trabalho de parto até tudo estar certo para minha cesariana de emergência. Fiquei sentada no quarto vendo outras mulheres grávidas ao meu redor e a maioria dela estava acompanhada pelo marido. Em minha mente eu também estava ali com dois bebês e um homem imaginário.

Meu Lorenzo dos sonhos estava sentado na beira da cama e me olhava apreensivo. Está preocupado, ansioso e diz que torce para nascer um menino. As lágrimas se formam em minha mente. Quero que aquele vulto suma, mas ele está lá. Quero Lorenzo aqui... Quero meu amor ao meu lado! Quando os médicos vêm me buscar para a cirurgia ele beija minha testa e sussurra que me ama.

Tudo o que consegui fazer quando os vi foi esticar os braços e envolver meus dois pequenos neles. Uma menina e um menino. Lindos, loiros e adoráveis. Eu os amei logo no primeiro olhar e sei que tudo valeu a pena. Meu coração infla quando escuto o choro quente de bebê ecoar pelo quarto uma e duas vezes. O Lorenzo imaginário apareceu naquela noite quando peguei Samuel no colo para amamentar e Sarah dormia em seu pequeno berço ao meu lado. Ele se aproximou do bebê em meus braços e deu um beijo em minha testa .

 

— Vou fazer uma festa no aniversário deles... — Comentei com minha mãe assim que passei lá para deixar os gêmeos antes de ir para o plantão. Ela e meu pai pediram um tempo com eles, já fazia muito tempo que não ficavam juntos.

— Isso é ótimo! — Pousou uma xicara de café preto a minha frente — Quer fazer isso para diverti-los e fazer com que esqueçam o pai? — Sentou-se.

— Não — Abaixei o olhar e suspirei — Quero fazer para torrar o dinheiro que Lorenzo manda ou pediu que alguém mandasse... — Sorri ironicamente e lágrimas inundam meus olhos — Já nem sei se ele está vivo ou não.

— Está tudo bem — Afaga minha mão com gentileza — Pelo menos agora você tem ajuda com as crianças.

— Não preciso de dinheiro mãe — Puxo minhas mãos e me levanto nervosa — Preciso dele aqui comigo e com as crianças. É disso que preciso!

— E se ele se foi? — Fico em silencio durante alguns segundos somente olhando-a.

Não posso cogitar uma resposta para tal pergunta.

E se ele se foi?

***

Antes de trabalhar passei em uma loja de festas e comprei alguns objetos decorativos para a festa de aniversário dos gêmeos. Comprei convites e decidi fazer a festa no salão de meu condomínio. Enumero em mente o número de convidados e chego à conclusão de que apenas convidarei poucos. Certamente meus pais, algumas amigas do hospital com os maridos e filhos e um médico do qual fiquei amiga. Também inclui alguns coleguinhas de classe mais chegados de Samuel e Sarah, as meninas do balé e os meninos do futebol. Ah sim... Isis, minha antiga amiga vive na Europa.

— Que milagre é esse de você estar me ligando? Faz mil anos que a gente não se fala! — Parecia feliz com minha ligação. Ouvi-la era muito nostálgico.

— Pois é... Liguei para te convidar para o aniversário de seu afilhado, se lembra? É essa semana, no sábado.

— Claro que me lembro, mas não sabia que iria ter uma festa... — Samuel é afilhado de Isis e Sarah de uma prima próxima — Sábado mesmo?

— Sim, no sábado. Você vem? Já faz mil anos que Samuel não te vê!

— Claro, vou embarcar na sexta mesmo. Estou precisando dar um pulo por ai... Como vai tudo? Os dois bebês estão bem?

— Bebês? Eles estão enormes! Daqui a pouco já vão para faculdade — Isis gargalhou.

— Exagerada... Estou louca para vê-los! Vi as fotos que você colocou na internet e meu deus... Como conseguiu fazer com que os dois parecessem tanto com Lorenzo? Estão lindos demais! Você também está linda! Nem parece ser mãe deles, mas sim irmã mais velha.

— Você é muito gentil — Pergunto sobre o que assola em minha mente? Suspiro e crio coragem — Você... Tem alguma noticia sobre Lorenzo? Tem o visto? — Mordo os lábios.

— Você não?

— Não, quero dizer... Ele veio e eu te contei, mas depois que foi embora nunca mais o vi. Já faz nove meses — Silêncio. Cheguei a pensar que Isis havia desligado.

— Também não sei de nada Laura. Comprei um jato particular da Empresa dele e quem me vendeu foi seu pai. Perguntei sobre Lorenzo e ele disse que a família não quer comentar nada a respeito... Isso faz uns vinte dias — Engoli em seco — Sei que dói dizer isso, mas... O boato que circula pela mídia daqui é que Lorenzo não resistiu à doença e a família não quer divulgar a morte por razões pessoais.

— Ah meu Deus — Tive que parar o carro com o impacto que sofri. Criei a imagem perfeita dele em um caixão em minha mente — Não me diga algo assim, Isis! É certo?

— Certo não é, mas ninguém o vê há muito tempo. Todos o dão como morto por aqui.

Não pude compreender nada que foi dito depois, apenas posso jurar que o mundo acabou para mim. Não existe mais cor azul no céu nem meus pés sobre a terra. Não há mais graça olhar para o sol e saber que o mesmo não ilumina a mim e a Lorenzo... Se olhar para a lua saberei que Lorenzo já não pode mais vê-la e a graça de viver se limita a nada.

A única coisa capaz de me mantar aqui agora são meus filhos. Não existe mais nada. Não existe amor.

Preciso ligar para a família dele e pedir satisfação! É necessário ouvir de alguém uma confirmação contundente... O pior é que ele prometeu voltar! Não deveria ter prometido, afinal... Dói tanto! Sento-me na ala de enfermagem em um local escondido e escuto o movimento ao redor como se fosse a quilômetros de distância.

Como vou contar a Samuel e Sarah que o pai deles se foi? Como dizer isso para duas crianças? A dor me dilacera o peito e as lágrimas descem por meu rosto descompassadamente.

Olho para o céu estrelado do lado de fora e só consigo pensar em uma coisa... Seus últimas palavras e pedidos. Seu lindo e inesquecível olhar.

Valeu a pena. Eu te perdoei. Eu te amo. Me espere. Nunca se esqueça, pois nunca te esqueci.

 


Capítulo dezoito

— Pode não ter sido muito tempo, mas sou realmente apaixonado por você... Eu te amo — Apertou meus dedos nos seus e encarou meu rosto — Porque está rindo de mim?

— Porque fica repetindo isso toda hora como se precisasse me convencer! — Dei um tapa em seu braço delicadamente e voltamos a caminhas juntos de mãos dadas — Já sei que você é apaixonado por mim como sou por você!

— Parece que não sabe às vezes — Envolveu-me em um abraço pelo ombro e quase cai com seu gesto, mas ele me equilibrou e rimos — Devo ficar lembrando o tamanho de meu sentimento já que a senhorita não diz nunca que me ama.

— Não digo que te amo? — O lugar que Lorenzo me trouxe naquela tarde era realmente bonito, um jardim secreto.

— Não ouvi isso sair de sua boca ultimamente — Reclamou com certa possessão. Olhei-o de baixo quando paramos sobre a ponte que cortava o lago e ficamos nos encarando no silêncio, apenas o barulho da natureza ao redor ecoando — Isso dói sabia?

— Como pode dizer que me ama se não faz nem um mês que estamos juntos? — Na realidade fazia menos tempo que do isso. As coisas com Lorenzo eram tão intensas que me assustavam! Devo dizer isso para ele?

— O tempo não quer dizer nada para mim — Enlaçou-me pela cintura e me trouxe para perto — Para você sim? — Mordi os lábios e olhei para baixo.

— Sempre quis dizer algo para mim... Porque agora não diria? — Se abaixou e me beijou delicadamente nos lábios. Estremeci.

— Então o tempo te impede de dizer que me ama? — Sussurrou compreensivo, porém nitidamente decepcionado. Mordi os lábios novamente, obtendo mais do gosto dele preso em mim.

— Não é isso... — Virei-me e comecei a descer pela ponte. Lorenzo estava ao meu lado segurando em minha cintura.

— Você não me ama? Sequer gosta de mim um pouco? — Puxou minha mão e nesse momento perdi o equilíbrio sobre meus pés. Cai de costas no chão do parque sobre a grama... Por sorte sobre a grama, diga-se de passagem. Fechei os olhos pela vergonha. Lorenzo estava parado a minha frente um tanto estático e não tinha expressão — Machucou? — Neguei com um aceno e ele riu ao notar que estava tudo bem.

— Cala boca — Repreendi antes que começasse a rir. Tentei me levantar e não tive muita sorte. Lorenzo se abaixou e me puxou pela cintura do chão. Fiquei de pé perto de seu corpo e ele analisou meu estado.

— Ficou mais bonita... Está vendo? Não quer dizer que me ama e leva um tombo da vida... — Começou a bater em minha roupa suja de terra. Primeiro nas pernas e depois no quadril, algo que me constrangeu.

— Está se aproveitando da situação para passar a mão em mim? — Questionei agarrada a seus braços. Agora sim eu sentia meu tornozelo latejando.

— Não preciso disso para passar a mão em você — Disse absolutamente sério. Estremeci de novo — Não adiantou muito... Sua calça está toda suja — Afastou-se um pouco e tirou a blusa de frio que usava. Era um moletom cinza com o nome da faculdade. Estendeu-me a peça de roupa — Vista. Vai ficar larga e você poderá ir para casa se sentindo melhor — Piscou compreensivamente.

Apanhei a blusa sem protestar por muitos motivos, entre eles e o fato de o moletom ter muito o cheiro de Lorenzo. Vesti a peça e realmente ficou bem larga e grande. Lorenzo me ajudou a ajeitá-la no corpo.

— Pronto? — Não precisei de resposta. Puxou-me para si e me beijou novamente. Envolvidos no beijo, não sei por quanto tempo ficamos assim... Até que senti a mão dele em mim novamente.

— Está vendo? Não preciso de desculpa para tocar em você — O empurrei e encarei seu rosto com desdém. Voltei a caminhar e não o esperei. Ele correu e me alcançou — O que foi?

— Acho que você tem razão — Cruzei os braços sobre o peito de maneira contrariada. Segui caminhando sem olhá-lo.

— Sobre... ?

— o tempo realmente não quer dizer nada — Torci os lábios quando me puxou pela cintura e me abraçou por trás. Gritei de surpresa e gargalhei, recebendo um beijo no cabelo e outro no pescoço.

— Quer dizer que você me ama?

— Eu te amo, rei da insistência!


— Mãe? Acorde, acorde!

— É NOSSO ANIVERSÁRIO, MÃE! Acorde!

Abri os olhos e dois rostinhos idênticos me encaravam. Sentei-me na cama e cocei o cabelo totalmente frustrada. Quero meu sonho de volta, pensei. Samuel e Sarah se ajoelharam na cama e me olharam confusos e com as mãos pequenas apoiadas nos joelhos. Bocejei e fiquei séria... Demorei alguns segundos para abrir um largo sorriso e voar para cima deles. As gargalhadas de ambos explodiram no quarto junto com os estalos de meus beijos em ambos.

— Parabéns meus amores! Mamãe ama muito vocês e deseja todos os anos de vida do mundo! — Samuel agarrou meu pescoço de um lado e Sarah do outro. Sorriam demais.

— Obrigado mamãe.

— O brigado mamãe.

— Já fizeram o pedido? Vocês sabem... Quando se faz aniversário tem que haver um pedido — Olhei para os dois e limpei algo no rosto de Samuel. Ambos se entreolharam de forma cumplice — O que foi?

— Já sabe nosso pedido mamãe — Sarah acariciou meu cabelo delicadamente. Olhava-me nos olhos e aquilo me deixava tensa. Era sempre como olhar para Lorenzo e a sensação era a mais doce do universo.

— Queremos o papai de volta — Samuel explicou e mordi os lábios.

Não posso mais ouvir sobre Lorenzo calada, sabendo que deve estar morto e nunca mais irá regressar. Encaro Samuel tendo a convicção de que é injusto iludi-los e sofrer em silêncio. Preciso contar e o segredo não pode mais esperar!

— É melhor vocês mudarem o pedido — Falei firmemente e tentando me controlar para não chorar — O pai de vocês não vai mais voltar. Ele... Se foi e desta vez é para sempre.

— Mas...

— Ele prometeu voltar! — O tom de Sarah foi insistente e tristonho. Notei que era no que realmente acreditavam... Que Lorenzo iria voltar. Mas não. Sei que não!

— Não vai. Eu sinto muito! — Samuel nada disse. Desceu de meu colo e saiu correndo do quarto. Suspirei. Sarah tinha lágrimas nos olhos e também desceu de meu colo. Sentou-se na cama e começou a chorar.

— Não mamãe. Meu pai volta sim, ele só está demorando um pouquinho! — Me arrependi no mesmo momento por ter falado o que falei exatamente nesse dia. Sarah chorava sinceramente e não por manha ou coisa parecida. Mereço sangrar até a morte por isso! Sentei-me ao lado dela e passei as mãos em seu cabelo delicadamente, abraçando-a contra o peito — Ele prometeu!

— Sempre fomos somente nós três, não é? — Sarah assentiu positivamente entre lágrimas e soluçando contra as mãos pequenas — Mamãe está aqui e nada vai acontecer com vocês dois. Nada! — Sarah me abraçou e enterrou o rosto em meu ombro, choro mais ainda.

Muitas pessoas chegaram para prestigiar o aniversário de Sarah e Samuel e descobri algo interessante... Ambos haviam convidado amiguinhos especiais da escola, justo aquele tipo de criança que o resto da sociedade geralmente esquece e nunca inclui em eventos sociais.

Sarah corria de um lado para o outro com Emily – sua amiguinha portadora de síndrome de down - e mais uma menina pequena e morena. As três meninas brincavam e intercalavam-se entre o pula-pula e a piscina de bolinhas coloridas. Realmente o salão do prédio havia ficado lindo com a decoração e os grandes brinquedos que a empresa contratada trouxe. Tudo estava dividido entre cores lilás - à favorita de Sarah - e verde claro - a cor favorita de Samuel. Era o aniversário mais bonito que fiz para os dois desde que nasceram e muito especial.

Ressaltei aos dois que o pequeno evento havia sido realizado com a ajuda de Lorenzo, pois sem sua pensão mensal jamais haveria sido possível algo tão encantador.

Minha mãe está conversando com meu pai e tentando tirar um pouco de chantilly da fantasia de Samuel. Meu garoto usa uma roupa de Lanterna-verde e Sarah uma fantasia de princesa. Insisti para que fosse a cinderela, já que é loira, mas a teimosa insistiu em ser a branca de neve!

Sentei-me em um canto quando finalmente fiquei sozinha. Isis estava agora com Sarah para cima e para baixo, tirando fotos de tudo e todos com os gêmeos. Tornou-se é a fotografa oficial desses dois e deve ter mais álbuns deles do que eu mesma!

— Laura?

Por um momento congelo. Meu nome sendo chamado em voz de homem era muito diferente, diga-se de passagem!

— Gael? — sussurro ao ver meu amigo médico parado atrás de mim com dois pacotes grandes de presente. Trata-se de um elegante homem moreno e usa roupa casual, diferente de seu uniforme da emergência. Com certeza adoto expressão tristonha por havia pensado que talvez pudesse ser... Ele — Pensei que não viria mais!

Coloquei-me de pé e dei dois beijos na face de Gael.

— Como poderia recusar um convite feito pessoalmente por você? — Abriu um largo sorriso. Constrangida por sua simpatia olhei ao redor. Isis estava nos encarando fixamente ao lado de Sarah, que fuçava na câmera digital totalmente alheia a situação. Desviei o olhar quando Sarah me encarou também.

— Obrigado por ter vindo! — Abracei a mim mesma em uma postura defensiva.

Por um momento me questionei o motivo de havia convidado Gael, uma vez que tenho plena convicção de que nutre um sentimento a mais por mim já faz algum tempo. Jamais lhe dei a devida importância e sempre fugi de suas investidas sutis. Por educação o convidei para a festa e agora tudo estava difícil de contornar.

— Onde estão os gêmeos? Quero entregar os presentes que comprei! — Parecia empolgado com a possibilidade.

— Estão por aqui — Olhei ao redor e vi Samuel me encarando também. Fiz gesto para que se aproximasse e Samuel foi o primeiro a vir correndo. Fiz o mesmo com Sarah, que largou Isis e caminhou em disparado. Ambos pararam a minha frente e apoiei a mão em meus ombros. Encaravam Gael como se fosse um monstro — Veja Gael... Esses são Samuel e Sarah, meus bebês de seis anos! — Beijei a cabeça de ambos — Samuel e Sarah, esse é Gael, um amigo do hospital. Ele é médico!

— Seus filhos são lindos, Laura, mas não parecem muito com você — Gael comentou com um sorriso e estendeu a caixa para cada um deles. Sarah ficou com a rosa e Samuel com a azul — Meus parabéns crianças! Espero que gostem!

— Obrigado — Sarah soou sem emoção.

— Gael é seu namorado, mamãe? — Samuel olhou-me de baixo e intrigado. Corei e Gael sorriu.

— Não Samuel, ele não é! — Repreendi e ele abraçou o presente.

— Vocês gostariam que mamãe tivesse um namorado? — Olhei para Gael totalmente incrédula após sua pergunta direta! Como diz isso para meus filhos desta maneira? Sarah não escondeu a irritação quando direcionou os olhos verdes em direção a ele.

— Nós já temos um pai e não queremos outro!

— Não queremos outro pai! Se veio aqui porque é namorado da mamãe, pode levar seu presente! — Samuel jogou o presente nas mãos de Gael e cruzou os braços em frente ao peito. Parecia um machão em miniatura enquanto Sarah analisava a cena de maneira preocupada.

— Samuel! Pelo amor de Deus! — Repreendi com as bochechas coradas e sem saber o que dizer diante da expressão aterrorizada de Gael. Apanhei o presente de Samuel de volta — Me desculpe Gael, por favor, desculpe por isso e...

— Laura! Venha logo... A moça está te chamando com urgência! Com licença! — Em segundos Isis me puxou dali e os gêmeos vieram junto. Logo notei não passava de uma desculpa para me tirar da cena — Esse menino é inconsequente igual ao pai! — Comentou balançando o cabelo de Samuel e beijando sua cabeça — Amor da madrinha... — Ele a abraçou pela cintura e sorriu.

— Que vergonha eu passei Samuel! Que vergonha enorme! — Repreendi e desfiz o embrulho do presente na raiva. Meu filho ria e Sarah ainda estava quieta — Isso não é engraçado!

— Foi engraçado! — Isis também gargalhava.

— Aquele moço não pode namorar você, mãe! Você tem o papai! — Samuel repreendeu com a voz nervosa.

— O seu pai se foi, mas mesmo que não houvesse ido, isso não é motivo para o senhor faltar com educação a ninguém! É melhor nunca mais fazer isso Samuel!

— Não seja dura com ele Laura! O menino só está com ciúmes da mãe! — Nada respondi. Ainda estava constrangida com o que aconteceu.

— Você não precisa de outro namorado. E o papai? Como vai ser quando ele voltar? — Isis olhou de mim para Samuel e notei a confusão.

— É melhor vocês voltarem para a festa crianças — Disse para os gêmeos em tom cordial — Seus amiguinhos estão esperando — Não demorou e Samuel e Sarah saíram para a festa novamente — Ainda não contou a eles?

Joguei os presentes em me colo de lado e fechei os olhos perante as palavras de Isis.

— Não contei nada para eles — Sussurrei.

— Mas Lorenzo está morto!

— Você não tem certeza do que diz! — Tentei argumentar.

— E você não tem certeza de que ele está vivo! Já se foram nove meses Laura, nove meses! Precisa parar de ficar mentindo para as crianças e dizer de uma vez que Lorenzo nunca vai voltar — A simples ideia me dilacera o peito e a ficha simplesmente não cai — Precisa parar de mentir para si mesma! O grande problema não é contar a eles... O grande problema é admitir para si! — Tocou em meu ombro delicadamente — Lorenzo não vai voltar nunca .

Lágrimas caíram por meu rosto, porém as sequei rapidamente. Não posso ficar frágil desse jeito e tenho que segurar a barra. Tenho que aguentar mais essa por meus filhos! Penso em nosso último encontro e levo a mão ao peito. Lorenzo ainda é tão presente que se torna palpável. Tão real que ainda o sinto.

— Hoje é o aniversário deles e não posso dizer que o pai deles não irá volta agora! — Isis assentiu positivamente.

— Concordo. É algo muito forte para ser dito assim, do nada.

— Vou dizer... Tenho que dizer, não é? — Sinto as lágrimas queimando em meu rosto — Você por acaso tem o telefone da família dele? Quero dizer... Para que eu possa entrar em contato. Quem sabe os pais iriam gostar de conhecer as crianças. Samuel e Sarah gostariam muito de conhecer os outros avós — Foi à desculpa mais esfarrapada que arranjei para não dizer “Estou desesperada! Ainda o amo e preciso saber se realmente aconteceu!”.

— Claro... Depois da festa te passo tudo certinho — Isis se aproximou e me deu um abraço — Não chore amiga. Ele te amou também e você fez dele um homem muito feliz com seus filhos, Lorenzo mesmo te disse isso. Não fique triste... Ele se foi muito feliz!

Se foi muito feliz e levou meu mundo e meu coração com ele! Sigo aqui para sempre sem ar.

***

Os gêmeos correm de um lado para outro e finalmente todos se juntam ao redor da mesa com um único proposito: cantar a música de parabéns.

É o momento que os gêmeos mais ansiaram e me chamam com as mãos para que eu fique ao lado deles na mesa do bolo. A linda decoração verde e lilás se desenha ao redor e me posto em meio aos dois. Existem dois bolos - o lilás é de Sarah e o verde de Samuel. Ambos trazem uma vela com o número seis em cima e a emoção que sinto é demasiadamente distinta. Samuel e Sarah juntos a mim após seis anos .

Tudo se passa em minha cabeça enquanto as pessoas cantam e batem palmas animadamente. Todos os momentos que me trouxeram até aqui, principalmente a primeira vez em que os vi na imagem borrada de um ultrassom antes de fazer um aborto que nunca aconteceu. A luz está apagada e as palmas soavam, assim como a vela iluminava o rosto de cada um dos gêmeos.

Lembro-me de Lorenzo e eu nos conhecendo.

Nosso primeiro beijo.

Nossa primeira e não mais única noite.

Minha descoberta de gravidez.

O aborto.

A imagem de meus gêmeos, coisas estranhas e redondas, no visor da ultrassonografia.

A primeira vez que peguei ambos no colo.

O primeiro “eu te amo mamãe”.

E agora ele se foi.

Todos batiam palma ainda mais alto quando acabou a música. Sarah e Samuel se inclinaram ao mesmo tempo e deram as mãos antes de cada um apagar sua vela. Permaneci olhando para a união de suas mãos pequenas a minha frente e soube que ambos fariam o mesmo pedido. A luz se acendeu e olhei para frente instantaneamente, além de todos os convidados aglomerados ao redor da mesa. Meu coração parou e meus olhos saltaram do rosto quando o vi .

No primeiro momento me perguntei se não se tratava de uma miragem ou uma alucinação como já aconteceu tantas outras vezes, mas ao reparar em seu olhar profundo tive a ciência de que era real .

Lorenzo está parado na entrada do salão usando uma camisa preta e jeans. Usa jaqueta de couro e o cabelo bagunçado como sempre, pálido e carregando em suas mãos duas sacolas de presente. Olha-me fixamente e trás um olhar sonhador, feliz e emocionado. Existem lágrimas em seus olhos e naquele momento tenho a certeza de que ainda estou viva .

— PAPAI? — Samuel diz ao meu lado olhando na mesma direção — Sarah... É o papai! — Todos os convidados olham para trás, mas não dou importância. Para mim o mundo parou ali, naquele instante. A alegria explode em meu coração por saber que ele vive... Está bem aqui!

— PAPAI! Sim, é ele!

Não tive tempo de sequer respirar. Sarah e Samuel saltaram da cadeira em que estavam em cima e deram a volta na mesa ultrapassando todos os convidados que olhavam de mim para Lorenzo de maneira perplexa. Não consigo me mover e por mais que pense, nada faz sentido!

Não tiro os olhos da cena a seguir, quando Lorenzo se abaixa e envolve os gêmeos um em casa braço, deixando as sacolas desmoronarem ao seu lado. Ele aperta os dois contra o peito e se levanta equilibrando-os. É a cena mais linda que já vi depois do aeroporto e Lorenzo está tão emocionado quanto... É como se voltasse a viver!

Sarah está chorando, noto de imediato. Samuel abraça o pai com força e era como se nunca fosse soltá-lo. Os três formam um laço inquebrável diante dos olhos de todos os presentes na festa e criam em meu coração um sentimento indescritível

Tapo o rosto com as mãos agradecendo aos céus por tê-los aqui. Lorenzo... O homem de minha vida!

Meu coração se junta em pedaços novamente e então choro.

 


Capítulo dezenove

Uma vida de luta foi certamente o que vivi durante nove meses.

Lutei contra um câncer considerado curável, porém o nome não negava sua gravidade. Tratava-se de um câncer .

Lutei, também, contra a solidão de viver sozinho dentro de um quarto de hospital onde descobri que o sofrimento não era apenas uma palavra em meio ao dicionário. Não era fácil resistir a tantos efeitos colaterais e muito menos aos variados tipos de dor, mas nada se assemelhava ao ardor da saudade. Um foto de Sarah e Samuel era tudo o que eu tinha de ambos e o retrato amassado andava preso em minha carteira como um amuleto da sorte. Dali saia toda minha força e meu motivo de resistir. Ali estava meu motivo de lutar!

Não deixou de ser uma batalha junto a meus próprios pais, que não compreendiam porque não contei sobre a doença antes e recrutaram os melhores tratamentos que o dinheiro poderia comprar. Lutei contra mim mesmo em várias situações e me repudiei por ter nutrido tanta mágoa a ponto de torná-la um câncer. Acima de tudo, mais do que a qualquer coisa, a guerra contra os sentimentos em meu coração representavam um tormento pessoal.

Laura .

Após tê-la em meus braços novamente era quase uma tortura física dormir cada noite sem estar ao lado dela. A espera soava absurdamente longa e parecia não ter fim.

Durante nove meses imaginei dois rostinhos idênticos e uma face linda de mulher a cada vez em que fechada os olhos. Podia contemplar perfeitamente o sorriso de Laura e sentir o sabor de seus lábios contra os meus... As mãozinhas pequenas de Samuel e Sarah me percorriam a face em sonho e era possível ouvir os ecos ao longe do jeito meigo como me chamavam de “papai”.

Em meus devaneios éramos uma família feliz e estávamos juntos brincando no parque onde os vi tão próximos de mim pela primeira vez. Em meus delírios Laura era minha esposa e recuperávamos o tempo perdido em meio a momentos apaixonados... Um completava o outro, mas tudo sumia quando os efeitos dos remédios cessavam. Apenas sonhos e delírios.

Jamais esqueci a última vez que os vi. Jamais esqueci o quão emocionado fiquei naquela manhã no aeroporto e toda vez que a quimioterapia era demais ou o tratamento me levava a limites extremos, o remédio era fechar os olhos e lembrar com detalhes do momento mais marcante de minha história. Lembrar-se de meus filhos me chamando de papai e de Laura dizendo que me amava era uma espécie de cura para minha alma machucada, talvez a lembrança mais doce que trago no peito.

Um trabalhador voluntário do hospital me disse em certa visita que o pensamento positivo é demasiadamente eficaz no tratamento contra o câncer e por isso decidi investir em boas recordações. Em minha cabeça já me considero um homem curado e não tenho mais o maldito câncer, apenas amor e saudade de minha família que nem de fato chegou a ser.

Diversas vezes fui puxado para baixo e pensei em desistir, repetindo a mim mesmo que jamais veria novamente o rosto de minha mulher e de meus gêmeos. Consegui nas redes sociais de Laura uma foto onde ela posava com Sarah e Samuel e mandei imprimir e emoldurar.

Aquele pequeno retrato na cabeceira de minha cama no hospital servia como um santuário e quando algo se tornava insuportável eu me agarrava aquela doce imagem com toda minha alma.

Não me esqueci de vocês jamais, meu amor, e nunca esquecerei. Nunca esquecerei!

Cheguei a quase digitar tais palavras em suas mensagens privadas, porém me controlei. Preciso ser forte e me manter distante, uma vez que apenas assim poderei evitar mais sofrimento para aqueles que tanto amo.

Não era justo aparecer na vida de meus filhos e sumir em seguida, mas mais injusto ainda era morrer sem conhecê-los e um dia ambos teriam de compreender. Um dia aquela encantadora duplinha teria de me perdoar por ressurgir das cinzas e evaporar como sombra.

Nove meses se passaram para que o martírio chegasse ao final.

Ironicamente tratava-se do tempo de uma gravidez e talvez a marca de tempo que Laura deve ter sofrido sem meu apoio e carregando minhas duas crianças.

Você está de alta. Agora serão realizados apenas exames para controle.

Para qualquer pessoa acometida por câncer essas palavras significam a libertação de um tratamento longo e exaustivo, além do retorno para a vida social normal. É indescritível a sensação de saber que venci , ao menos por enquanto.

O doutor me explicou que a fase remissiva da doença poderia durar até cinco anos e por isso eu deveria estar constantemente em alerta e realizando todo o acompanhamento necessário. Apesar de existir a possibilidade, ainda assim era uma grande vitória. Haveria um tempo para que meus filhos me conhecessem!

Não estou mais doente... Talvez seja um milagre atrelado a minha fé de que a cura chegaria e minha nova vida começaria. Meu maior desejo após ouvir as palavras do médico era voltar para meus filhos e a maior felicidade se resumia a saber que agora posso, de fato!

Quando muitos já jogavam flores sobre meu caixão, sai do hospital e vi o sol brilhando novamente como um grande raio de esperança. Quero voltar. Quero ir até Belo Recanto. Quero estar com meus filhos. Quero amar Laura.

Demorou muito para a ficha cair e mais ainda para todas as peças se encaixarem. Paguei por meus pecados e Deus sabia o quanto doeu. Ainda me sinto fraco e cansado, completamente nutrido pela ciência de que demorará um pouco para que volte ao cem por cento.

Pensei em ligar para Laura e dizer que estava bem e indo ao encontro deles – desta vez para ficar - porém coincidentemente descobri por sua rede social que o aniversário de seis anos dos gêmeos aconteceria no sábado próximo.

Era o sinal que me faltava para finalmente dar asas ao coração e ao desejo de ressurgir.

O presente de Samuel foi fácil encontrar. Providenciei uma camisa original e autografada de seu time de futebol favorito. Encontrar algo para Sarah era mais difícil por ela ser uma menina, mas pensei muito e optei por um bonito jogo de chá em miniatura.

Não foi difícil viajar por doze horas, mas sim me ver em frente ao prédio de Laura sem ter as palavras corretas para me expressar naquele instante.

Minha insegurança se multiplicou no exato momento em que estacionei o carro alugado no meio fio e um homem de porta alto, moreno e bem apessoado desceu de um veículo vermelho e se dirigiu para o prédio duas caixas de presente em mãos. Uma delas era rosa e a outra azul, evidenciando que estava indo para o aniversário dos gêmeos. Não posso condenar Laura se por acaso achou outro homem para sua vida, mas onde ficaram as juras de amor que me fez antes que eu partisse? Haveria ela me esquecido?

Resolvi arriscar. Era meu momento e finalmente estaria frente a frente com Sarah e Samuel.

As luzes estavam apagadas quando adentrei ao salão e me assustei com esse fato. Ouvi a música de “parabéns para você” e respirei aliviado. Detive-me em frente à porta, bem de frente para a multidão reunida em volta de uma mesa grande e decorada em tons de lilás e verde.

Tudo aconteceu muito rápido quando as luzes se acenderam. Consegui fixar o olhar e notar que ao centro da mesa - atrás de dois bolos redondos - estavam Samuel, Laura e Sarah. Samuel usava uma fantasia de lanterna-verde e Sarah é a branca de neve loira mais linda que já vi... Não perco muito tempo no vestido lilás que Laura usa, uma vez que nossos olhares se encontram rapidamente e somos atraídos por uma força sobrenatural.

Encaramo-nos através do espaço por alguns segundos e vejo ao longe seus olhos se enchendo de lágrimas emocionadas. Ela não me esqueceu.

“Papai!”

Os gêmeos gritam emocionados e não hesitam em correr em minha direção. Assisto a Sarah levantar a barra de seu vestido para não pisotear a mesma e lançar os braços ao meu redor. Samuel está pendurado em mim como um macaquinho e foi necessário apenas me abaixar para envolvê-los em meus braços ternos. A sensação é tão gratificante... É tudo pelo qual lutei durante esses nove meses e o que tenho de mais precioso e sagrado! Meu mundo voltou ao eixo e pela primeira vez estou verdadeiramente feliz. Sarah está chorando e também tenho lágrimas nos olhos. Não posso controlar o alivio que me assola.

— Sabia que você voltaria papai — Samuel diz ainda abraçado a mim e com o rosto contra meu ombro.

— Eu disse que viria... Sarah... Não chore, filha — Sussurrei para ela docemente e olhando em sua direção. Todo mundo nos assistia.

— Pensei que não iria te ver de novo papai. A mamãe disse que você se foi e que não ia mais voltar!

— Mas voltei Sarah. Estou aqui agora — Sacudi-a em meu braço e arranquei uma risada de ambos.

— Estou muito feliz papai! Nosso pedido de aniversário se realizou!

Laura nos encarava sem qualquer reação. Mesmo que houvesse muita gente no salão cochichando entre si, a única que meus olhos viam era ela. Chorava também, mas não parecia triste. Sorri para ela e foi o suficiente para que viesse em minha direção. Ultrapassou as pessoas e voou em meu pescoço mesmo tendo Sarah e Samuel no caminho. Agarrou-se ao meu peito e me puxou contra si, criando um abraço de nós quatro pela primeira vez!

— Pensei que você havia perdido... Pensei... — Soluçava, mas não precisou terminar.

— Eu venci Laura... Por vocês, eu vencia! — Sussurrei para ela de modo a acalmá-la.

 

Laura

De uma hora para outra meu mundo deu um giro de trezentos e sessenta graus. Nunca acreditei em pedidos de aniversário ou qualquer coisa do tipo, mas definitivamente Samuel e Sarah me deram o que pensar.

— Vó! — Chamou Samuel ainda no colo de Lorenzo e minha mãe acenou para ele toda entusiasmada — Venha conhecer nosso papai!

Separei-me deles com certa impaciência e notei que todos estavam encarando querendo saber o que houve.

Lorenzo e eu trocamos um olhar esclarecedor, e vi o pedido de desculpa oculto ali. Respondi também com os olhos que estava aceito! Isis estava ao meu lado de repente, assistindo Samuel e Sarah percorrerem o salão de mãos dadas com Lorenzo. Ambos apresentavam o papai para todos ao redor e pareciam ser as crianças mais felizes do mundo!

— Desculpe-me — Disse envergonhada e sem voz. Nós duas olhamos na direção dos gêmeos, que ao lado do pai esqueceram totalmente o bolo e os parabéns — Realmente pensei... Juro que pensei...

— Tudo bem Isis — Tranquilizei-a finalmente. Meu coração está feliz demais para se preocupar com mágoas bobas e é evidente que não sei me controlar. Apenas olhar deixava claro que minha maior vontade era pular sobre Lorenzo e não soltá-lo jamais — Tudo bem.

Choro em silêncio quando noto a figura de minha mãe parada a minha frente.

— Você sabia que ele viria? — Questionou espiando Lorenzo e os gêmeos. Sarah está parada a frente de Lorenzo e Samuel sentado em seu joelho. Eles mantém uma conversa séria e parecem em uma cena de filme. Os três são lindos, parecidos e simétricos. Tenho vontade de chorar apenas com a visão e por haver imaginado que nunca mais iria vê-los juntos.

— Não, é claro que não!

— Nunca vi Samuel e Sarah tão felizes — Parecia realmente contente — Me faz feliz vê-los tão animados e finalmente ao lado do pai.

— Me faz feliz também.

Passar noites em claro pensando que o amor de minha vida estava morto era delirantemente difícil, chegando a ser dilacerante. Por um minuto cheguei a cogitar nunca mais ser feliz e, de repente, lá está à felicidade batendo novamente a minha porta de braços abertos.

— Laura... — Minha mãe já havia saído quando Gael apareceu de repente, interrompendo meu caminho até Lorenzo e as crianças. Paro abruptamente e o encaro confusa. Vejo os olhos de Lorenzo subirem direto para mim um tanto curiosos — Olá.

— Sim? — Educadamente tento sorrir.

— Estou aqui para me despedir. Acho que já é hora de ir — Comenta tocando em meu ombro. Não me movo, apenas olho sua mão sem muito entusiasmo. Por trás dele vejo Lorenzo assistindo toda a cena ao lado das crianças.

— Acho que está certo, eu... Sinto muito. Obrigado por ter vindo. Agradeço sua presença — Sorrio constrangida e ele tira a mão de meu ombro notando que estou encarando Lorenzo por detrás dele. Vira-se novamente para mim.

— É bom ver que o pai dos gêmeos veio à festa — Parece sincero e concordo com sua frase — Parece ser importante para você — Não soa empolgado ao dizer. Concordo mais uma vez.

— Sem sombra de dúvidas. Aquele é o pai dos meus filhos.

— Você... O ama? — Abaixo o olhar e não posso evitar sorrir com o coração.

— Eu não deveria, mas o destino tem seus próprios planos e ninguém sabe o que existe por trás dos mistérios do coração — Gael coça a nuca desconsertadamente — Sim, eu o amo.

— Te desejo muita felicidade. Você é uma mulher incrível — Se aproxima e beija sobre minha mão — Adeus Laura — Pisca um dos olhos e sai sem olhar para trás.

— Adeus — Repito e passo a seguir o caminho para perto dos gêmeos mais uma vez. Paro ao lado deles notando que Lorenzo me avalia sem reação.

— Mamãe... Papai mandou perguntar se você namora aquele impostor — Samuel falou assim que me viu. Lorenzo o repreendeu com um olhar firme. Sarah ria.

— Não foi bem isso o que eu disse!

— Diga ao seu papai que a resposta é não, Samuel — Sentei-me ao lado de Lorenzo, que agora tinha os gêmeos sentados em seu colo.

— Não papai.

Muitas coisas se passam por minha cabeça naquele momento, inclusive que todos ao meu redor requisitam minha presença. Os gêmeos, anfitriões de verdade, já se retiraram e não existe mais nada que não seja o pai para eles naquele momento.

— Acho que vai demorar a podermos conversar — Lorenzo sussurra para mim.

— Sim, mas vamos conseguir em algum momento — Asseguro.

A moça do álbum de fotos está nos requisitando para bater fotos com os gêmeos. Sarah e Samuel relutam, mas vão quando Lorenzo diz que também posará. Ela nos junta em frente a uma parede branca e tenho plena consciência que um dos braços de Lorenzo está em minha cintura. Aperto os olhos com a sensação que me percorre o corpo... Eu o amo tanto. Sinto tanta saudade...

Samuel e Sarah estão lado a lado em frente a nós e a emoção me percorre o sangue. Aquela é nossa primeira foto em família e o fato me emociona mais do que deveria! Pensei em tudo para essa noite, menos neste adorável reencontro. O flash explode em nosso rosto e de repente a foto está lá.

— Nossa! Ficou lindo! — Sarah comenta com os olhos brilhantes enquanto analisa o retrato na máquina — Não é papai?

— Sim filha, ficou lindo demais... — Lorenzo olha para a foto com o mais terno sentimento. Está emocionado também e nossos olhares se encontram. Naquele instante o mundo para. Sempre desejamos a mesma coisa, apesar de tudo. Sempre almejando estar juntos.

— Vão com o papai agora. Mamãe precisa atender aos convidados. Assim que a festa acabar ficaremos juntos — Garanto aos gêmeos e Lorenzo se aproxima para me dar um longo abraço.

— Espero que isso seja uma promessa.

***

A festa acabou.

Todos já foram embora e tudo o que vejo é um salão bagunçado, revirado e colorido. Olho para o canto do salão e visualizo um homem exausto que segura duas crianças pequenas e adormecidas. Só restam eles ali, o ponto que irradia luz no ambiente. Suspiro. Sei que é agora.

Caminho até eles com impaciência. Lorenzo ergue os olhos para mim e nos encaramos por um tempo. Sarah dorme em seu ombro esquerdo e Samuel no direito. Estão sentados no chão ao lado do pula-pula inflável e o pai os sustenta com cuidado e devoção. Abaixo-me ao lado de Lorenzo e faço sinal para me passar um deles. Ele, com cuidado, passa Sarah para meu colo com delicadeza. Sarah me abraça com força e se enrola em meu corpo do mesmo jeito que Samuel faz com Lorenzo. Ela é leve e cheirosa mesmo estando suada por ter brincando a noite toda.

Carregamos os gêmeos sem problemas, faço malabarismo para fechar a porta do salão e subimos pelo elevador. Não falamos nada para não acordá-los, mas Lorenzo não pode evitar rir toda vez que quase deixo Sarah cair.

— Como você conseguiu sobreviver com eles por todo esse tempo? — Questionou aos sussurros em meio ao escuro do corredor de minha porta. Coloco a chave na fechadura com sucesso na primeira tentativa.

— Isso não foi engraçado — Respondo rindo também — Mas sim, foi um milagre!

Abro a porta e adentramos ao apartamento escuro. Lorenzo acende a luz e depois fecha a porta, seguindo-me até os quartos. Duas das três portas tem uma placa com nome na frente e ele se dirige até a porta com o nome Samuel escrito em letras garrafais e pintado de azul. Abro a porta do quarto de Sarah e a coloco sobre o lençol cor de rosa sem esforços. Tiro suas sandálias e a coroa de sua cabeça, cobrindo-a com o edredom lilás.

Volto para a sala e ainda nada de Lorenzo. Caminho até o quarto de Samuel e paro na porta limitando-me a observar. Ele está sentado ao lado de Samuel na cama olhando-o como se fosse à coisa mais bonita do mundo. Os sapatos de Samuel estão no chão e o pequeno está coberto.

Não sei quanto tempo permaneci parada ali admirando os dois garotos de minha vida, talvez até o momento em que Lorenzo me encarou com um pequeno sorriso. Deu um beijo na testa de Samuel e se levantou, vindo em minha direção. Fechou a porta e saímos juntos do quarto.

— Acho que já vou indo.

— Não, não vá! — Falo como se fosse um soco em minha alma cada uma de suas palavras. A timidez me domina ao pensar no tanto de tempo que se passou... Sinto-me como uma verdadeira estranha com Lorenzo ali, em minha na sala vazia — Ao menos tem para onde ir?

— Estou no mesmo hotel da outra vez — Estamos longe um do outro, eu parada ao lado do sofá e ele próximo à porta. Arrisco um passo e Lorenzo não se move, apenas me analisa profundamente.

— Então fique — Meu tom foi doloroso até mesmo para mim. Lorenzo permanece calado durante algum tempo e dá um passo para perto de mim fazendo com que a distância se encurte cada vez mais.

— Acha prudente? Está tarde e você deve estar cansada da festa. Precisa dormir.

— Claro que é prudente! Tenho um vinho e nós temos muito para conversar... É unir útil ao agradável.

— É realmente uma proposta tentadora — Aproximo-me mais e paro a sua frente. Deslizo as mãos para seu ombro e tiro sua jaqueta com cuidado, fazendo-a cair sobre o sofá. Lorenzo me olha com curiosidade e suspira pesadamente. Nossa proximidade é um perigo...

— Por favor.

— Não acha que os gêmeos irão estranhar eu dormindo aqui? — Existe um pouco de humor por trás de suas palavras.

— Não. Nunca deixei ninguém dormir aqui antes, mas como você é o pai deles... Posso abrir uma exceção — Cruzo os braços em frente a mim de modo protetor. Sou tão fraca... Desejo me atirar nos braços dele, mas não sei o que está pensando. Ele me quer? Porque demorou tanto tempo para regressar? São tantas perguntas... — Fique por essa noite. Devo insistir — Sua expressão suaviza e ele assente positivamente.

— Tudo bem. Ficarei por essa noite.

 

Lorenzo

Estávamos em seu quarto e Laura mexia em seu armário.

Seu quarto é bem decorado em preto e branco, conta com uma cama grande e muitas fotos de Samuel e Sarah sobre a estante de madeira.

Sinto-me em seu paraíso pessoal a cada instante que se passa, profundamente envolvido e agraciado por seu doce aroma. Finalmente volta-se para mim com uma camisa vermelha em mãos e rapidamente noto se tratar de minha camisa, a que deixei com ela antes de partir. Um nó se forma em minha garganta quando recordo aquela noite enquanto nos encaramos através do espaço.

— Tome essa. Deve servir para dormir tranquilamente — Oferece com um meio sorriso. Nego com um aceno.

— Essa é sua... Foi um presente — Laura cora rapidamente e esconde a maneira como se derrete aos poucos — Não posso aceitar de volta uma doce lembrança.

— Como pretende dormir? — Não posso evitar sorrir e me aproximar dela. Toco seu queixo delicadamente sentindo sua pele sedosa em minhas mãos novamente.

— Essa camiseta que estou usando está de bom tamanho. Obrigado Laura... Obrigado por ter me deixado ficar e por ter cuidado tão bem deles durante todo esse tempo — Abaixo a mão após lhe tocar alguns fios de cabelo e a vejo suspirar enquanto desvia o olhar um pouco nervosa.

— Acho que mereço uma explicação, Lorenzo — Sussurra em tom suplicante e noto em seu olhar uma pontada de sofrimento — Passei meses imaginando o pior... Imaginando que havia se esquecido de nós e até mesmo cogitei que pudesse estar... — Não concluiu a frase, apenas me tocou o rosto com ternura — Não tem ideia de como foi difícil e devastador olhar para os gêmeos e não ter o que dizer.

— Eu prometo que jamais te deixaria novamente e não pretendo fazê-lo enquanto viver, Laura. Tive de nascer de novo para dar valor a vida e ao que realmente importa. Não pretendo abrir mão de tudo com tanta facilidade — O olhar castanho se incendiou com as palavras doces — Mas por hora vou te deixar se trocar. Em qual direção fica o banheiro?

— Ao fim do corredor — Sua voz é um sussurro e vejo que concorda com a conversa adiantada.

Beijo-a na testa antes de sair do quarto e voar para o banheiro. Higienizo-me em algum tempo e volto para a sala ampla, onde me sento ao sofá vendo alguns brinquedos empilhados em um cesto ao lado. Pego nas mãos um avião amarelo e pequeno.

Samuel e Sarah.

Sorrio ao me lembrar da felicidade nos rostinhos lindos assim que me viram entrar no salão. Eles me amam... Tudo valeu a pena! “Esse é meu papai”. “Eu amo meu papai”. “Estávamos com saudades papai”. Tudo isso é a recompensa pelo martírio que passei e vale cada instante e lágrima perdida.

— Então... Vamos ao vinho?

Ergo o olhar e deixo o avião cair ao chão. Laura está usando a camisa. A minha camisa vermelha. A mesma vai até o meio de suas pernas nuas e seu cabelo permanece preso em um coque frouxo. Rezo silenciosamente... Meus filhos estão no quarto do lado. Abaixo-me e apanho o avião com as mãos tremulas.

— Vinho? É claro... Vinho. Vamos ao vinho! — As palavras saem tremulas. Coloco o brinquedo no cesto e quando olho novamente Laura foi para a cozinha. Sigo-a e noto que está usando meias de ursinho, aquelas de crianças andarem em casa. Abre o armário e apanha duas taças de cristal pousando-as sobre o balcão. O vinho está na parte mais alta do armário. Tenta uma vez alcança-lo, mas a tentativa é em vão — Uma ajuda? — Aproximo-me dela.

— Seria bom, obrigado — Antes que termine de responder pego-a pela cintura e a ergo acima de minha cabeça. Vejo perfeitamente suas costas nuas e sua calcinha delineando no corpo. Sinto-a estremecer e sua pele quente queima em meus dedos. Não posso negar o quanto me atrai... Não posso negar que mal consigo tirar os olhos de seu corpo! Laura é atraente a seu modo e nunca deixou de ser bonita, mesmo depois de duas crianças tomando-lhe o tempo totalmente. Laura finalmente apanhou o vinho — Pronto! — Sussurra com a voz tremula.

Antes de soltá-la deposito um beijo sobre suas costas. Ela estremece em meus braços quando a coloco no chão com cuidado e ficamos um tempo parados... Apoiada no armário baixo, Laura sequer move-se, apenas ofega. Quando se vira trás a expressão mais corada que já vi em seu rosto. Ajeito sua camisa nos ombros e sorrio.

— Mesmo depois de tudo você ainda não presta — Ultrapassa-me e alcança o balcão. Fico olhando-a abrir o vinho sem dificuldade e servir as duas taças.

— Não presto? — Chego por trás e a envolvo com os braços sem tocá-la. Prendo-a contra o balcão de costas para mim e sinto seu corpo roçando o meu — Não estou seminu na sua frente... Sei o que está fazendo — Sussurro ao seu ouvido. Laura se vira com as duas taças e me passa uma.

— O que houve com seu lado terno e doce? — Ficamos frente a frente. Ela bebe um pouco do vinho.

— Ainda sou terno e doce, mas as coisas podem mudar se você não ajudar — Bebo um pouco do meu vinho também.

— Estava abusando de mim há cinco segundos... — Deu um sorriso torto e doce. Sorri também e bebi mais vinho — Quer saber uma coisa? Tive saudade de seu lado descontraído na última vez em que estivemos juntos — Levou uma das mãos ao meu rosto e fechei os olhos com seu toque doce e quente — Você me parecia tão triste e ferido. Não havia alegria nesse olhar, não como agora ou há seis anos quando nos conhecemos na Espanha.

Abro os olhos e a vejo. Minha menina linda... Toco seu rosto também e desço a mão, puxando-a pela cintura para perto de mim. Sua taça tremula em seus dedos e nos encaramos com profundidade e intensidade suficiente para mover o mundo com o olhar.

— Agora tenho motivos para sorrir. Agora tenho motivos para voltar a ver beleza no mundo em que vivo e saber que as coisas valem a pena — Ergo a taça em sua direção como se propusesse um brinde — Os bons momentos valem a pena! Agora tenho dois filhos e tenho você... Vocês resumem meu motivo de sorrir e pelo qual lutei. O grande amor que me levou a me curar... — Seus olhos ficam surpresos e ela me empurra delicadamente, totalmente surpresa.

— Você o que? — Sorri de um lado a outro. Lágrimas dominam seus olhos — Ouvi bem? Você se curou?

— Sim! Estou curado Laura. Estou curado porque você me deu forças para isso — Segurei sua mão com emoção e alegria — Nunca esqueci e jamais esquecerei. Eu te amo.

 


Capítulo Vinte

 

Desenrolei uma narrativa exaustiva sobre os últimos nove meses de minha vida.

Laura não parecia somente surpresa, mas também demonstrava imenso desespero a cada palavra por mim proferida. Não corte parte alguma e posso jurar que ficamos até às três da madrugada sentados no sofá da sala apenas tratando daquele assunto. Foi necessário um monologo largo e exaustivo para resumir nove meses em horas. Esquecemos o vinho e demos lugar às lembranças.

— É terrível ouvir tudo isso e ainda mais sobre... O seu sofrimento — Não me olhava nos olhos mesmo que estivéssemos frente a frente na sala. Parecia ser impossível me encarar e, por minha vez, me perdia em seu rostinho triste e doce.

— O que está querendo dizer? — Questionei ao notar sua vontade de se expressar, mas sem saber como — Me olhe. Diga-me — Praticamente implorei e não precisei fazer duas vezes. Ela ergueu os olhos e duas lágrimas caíram solitárias por sua face devastada pela narrativa. Aquele gesto foi o suficiente para me dilacerar o coração.

— Estou querendo dizer que... — Suspirou e soluçou, mas recuperou a linha de raciocínio prontamente — Não sabe o martírio que passei sem ter ideia de onde de você estava, de como estava... — Sussurrou secando as próprias lágrimas. Movi-me desconfortavelmente no sofá de modo a me aproximar, mas senti medo de estragar tudo — Não sabe como foi horrível não ter o que dizer a Samuel e Sarah quando me perguntavam sobre você — Desviou os olhos para as mãos vazias e percebi então que era sobre isso que falava. Mãos vazias. O vazio que deixei ao ir embora significa todas aquelas lágrimas — Não tem ideia de como foi angustiante passar os últimos dias achando que você... Que havia partido para sempre e me deixado para trás!

Encaramo-nos no silêncio da sala.

Apertei as mãos em punhos... Novamente dei com a cara no muro buscando proteger aqueles que amo. Mais uma vez fiz a coisa errada tentando fazer o certo. Tentei preservá-la não contando nada para que não sofresse, mas somente consegui abrir a ferida e banhá-la com sangue na pior das torturas.

O olhar tristonho de Laura refletia a saudade. A dúvida. As mãos vazias.

Ergui-me do sofá sem hesitar e dei alguns passos, mas cai de joelhos a frente de Laura logo em seguida. Apenas me olhando, não esboçou qualquer reação quando deitei o rosto em suas pernas nuas. Depois de alguns segundos infiltrou os dedos pequenos em meu cabelo e acariciou-me com cuidado e carinho. Aspirei seu aroma delicado já encantando por seu jeito doce e quente.

— Perdoe-me... Por favor, me perdoa mais uma vez! — Sussurrei com a voz abafada por sua pele clara. Pressionei os lábios em suas coxas nuas propositalmente. Precisava senti-la perto e contra meus lábios — Se não liguei ou dei qualquer noticia foi para poupá-la de ainda mais sofrimento e transtornos relacionados a mim! Não foi minha intenção te deixar as cegas e de mãos vazias, mas sim livrá-la de qualquer angústia! Novamente fiz tudo errado buscando acertar.

— Da primeira vez perdoei com todo meu coração e foi a mais pura verdade... — Parei e ouvi sua voz doce e embaraçada. Lágrimas. Ela está chorando... — Desta vez, Lorenzo, foi tudo muito diferente! Doeu demais acreditar que você havia partido e ainda mais pensar que estava sozinha de verdade e sem nenhuma esperança — Silenciei. As palavras me faltaram. Laura sempre me esperou... — Antes eu sabia que em algum lugar do mundo estava você e que sabia onde me encontrar. Não sei se posso esquecer a dor que senti nesses últimos dias imaginando sua morte e o sofrimento que Sarah e Samuel teriam quando descobrissem!

Ergui o rosto e encarei seus olhos profundos e bonitos. Também Sinceros. Honestos. Apaixonados.

Foi como contemplar todo o sofrimento do qual falava refletido ali, naquele singelo olhar.

Dor. Angustia. Desespero... Eu te amo tanto!

Não consegui falar, apenas me lancei para frente a abracei-a perto de mim. Seus soluços sumiram aos poucos e Laura grudou o rosto em meu peito, deitando contra mim. Suspirei com o fato doce de tê-la ali e com a sensação quente de saber que me amava. Laura sempre soube que um dia me teria de volta e sempre me esperou! Beijei seu cabelo, incapaz de sentir algo além de amor. Amor. Nunca senti tanto amor!

Meu coração pulsa rápido e parece que vai explodir. Senti-la perto de mim é como respirar, é onde tudo faz sentido. Então eu sei... Sei que nunca mais estarei sozinho. Sei que meu grande prêmio está em meus braços

— Eu voltei. Estou aqui — Sussurrei em seu ouvido, escutando agora seus sofridos soluços. Suas mãos se prendiam em minha camisa e ela agarrava meus bíceps com força, como se sua vida dependesse disso — Estou aqui e nunca mais vou te deixar. Sou seu, minha garota do interior.


Laura

— Vamos acordá-los?

— Não sei... — Ouço os sussurros, mas mesmo assim fico de olhos fechados — Eles podem dormir juntos, Sarah? Quero dizer... Mamãe disse que apenas os meninos e meninas casados podem dormir juntos — Oh! A surpresa toma conta de mim.

Aniversário dos gêmeos. Surpresa. Lorenzo aparecendo do nada. Nós dois e um vinho. Lágrimas. Abraços. Eu sou seu. Não foi um sonho! Oh!

Mesmo fechados meus olhos se banham de lágrimas e me sinto em chamas. Rapidamente tomo consciência de que alguém está deitado atrás de mim e sinto os braços fortes ao meu redor... Lorenzo. Ele está aqui. Seu corpo quente me aquece e sua respiração roça minha nuca... Como aconteceu? Recordo-me, de repente, que comecei a chorar e ele me prensou contra seu peito. Não me beijou e nem sequer me tocou, apenas me segurou e deitamos juntos no sofá da sala. Depois de sentir seus lábios doces em meu cabelo e sua voz bonita cantarolando uma musica terna cai no sono. Em lindos e doces sonhos, não mais de mãos vazias.

— Claro que podem dormindo juntos, Samuel! — Sarah disse em tom autoritário — São papai e mamãe. Nosso pai e nossa mãe. Papais e mamães dormem juntos não é?

— Acho que sim... É... Você tem razão.

— Veja que bonitinhos — Suspira. Quase gargalhei com seu tom romântico e quase pude visualizá-la se derretendo a nossa frente — Será que vão se casar?

— Tomara! Assim teremos um pai todos os dias do ano, não somente quando ele quer — Aquilo me surpreendeu também, tanto que abri os olhos e encarei ambos um pouco séria. A cara de assustados que fizeram ao ver que acordei me fez rir um pouquinho e perder a carranca. Sarah usava a roupa da branca de neve totalmente amassada e Samuel sua fantasia de lanterna verde do mesmo modo. Desleixados, bagunçados e assustados, encontravam-se parados em frente ao sofá em que estou deitada com Lorenzo.

— Bom dia — Falo com tomo sonolento e pesado. Os braços de Lorenzo pesam ao meu redor, mas não reclamo. É bom. É gratificante.

— Bom dia mamãe — Sarah responde com um sorriso.

— Bom dia — Samuel está corado de vergonha — Acorde o papai. Queremos fazer panquecas de chocolate para ele! — Os dois se empolgaram com a fala de Samuel. Suspirei. Está tão bom aqui, mas preciso ficar de pé. Não me movo.

— Acordem-no vocês — Dei a ideia com tom divertido — Ele está me cercando! — Não precisei falar duas vezes! Os gêmeos escalaram o sofá e pularam sobre Lorenzo com entusiasmo, chamando o nome dele repetidas vezes. Sarah sentou-se sobre ele com uma perna de cada lado e começou a cutucar seu ombro. Samuel chacoalhava sua perna e eu sorria de maneira alegre e feliz.

Quantas vezes não os imaginei assim?

— Acorde papai! Vamos comer panquecas!

— Papai! O Gael quer pegar a mamãe... Acorda! — Samuel cantarolou e curiosamente Lorenzo abriu os olhos. Sorri mais ainda após sua reação.

— Quem é Gael? — Sarah e Samuel gargalharam alto na sala junto a mim. Lorenzo encarava Sarah sentada sobre ele com confusão. Não é sonho... É realidade! Uma linda realidade.

— Aquele doutor que quer namorar a mamãe — Sarah respondeu com carinha de tédio.

— Bom dia, branca de neve! Bom dia, lanterna verde! Bom dia mamãe... — Quando reparei Lorenzo me olhava. Corei e os gêmeos presenciaram o modo constrangedor como ele me analisava... Aquela tensão entre nós se fazia completamente nítida.

— Vamos comer panquecas! — Samuel chacoalhou a perna de Lorenzo mais forte — Vocês podem namorar depois! — Rolei para o lado e sai dos braços de Lorenzo me equilibrando para não me estatelar ao chão. Fiquei de pé e percebi que estava apenas com a blusa vermelha dele. — Você faz as panquecas mãe?

— Faço! Claro que faço! — Calcei o chinelo evitando olhar para Lorenzo, mas quando o vi estava abraçado com os gêmeos. Sarah em cima dele e Samuel ao lado. Ele beijou ternamente o cabelo de Sarah e a testa de Samuel.

Suspirei de felicidade e alivio, estando quase ao ponto de chorar! É muito bom vê-los assim, com o pai que tanto amam. Com o homem que tanto amo também .

— Pensei que nós íamos fazer as panquecas de chocolate, irmão — Sarah reclamou abraçada a Lorenzo.

Melhor a mamãe... As delas são melhores.

— Não tenho duvidas que seja as melhores... — Lorenzo piscou para mim. Esse olhar...

— Está bem! Lanterna verde e branca de neve! É melhor irem retirar o disfarce! Coloquem roupas limpas e penteei o cabelo dona Sarah! — Ordenei ao sair da sala em passos rápidos.

A cozinha - inutilizada nos últimos dias - está limpa e impecável. Apanho o liquidificador e os ingredientes das panquecas e coloco no balcão. Encontro às taças de vinho da noite anterior e coro com a lembrança... Uau. Escuto barulhos e reparou que estão falando, mas não posso identificar o quê. Mexem no quarto e no banheiro, além de rirem alto. Nesse meio tempo faço muitas panquecas e aqueço a calda de chocolate belga. Ajeito a mesa e sou surpreendida por braços fortes me rodeando pela cintura enquanto pego xicaras no armário. Estremeço ao me lembrar de quem se trata.

Ele. Lorenzo.

Sinto um delicado beijo em meu cabelo e suas mãos se movendo em minha barriga.

— Não dá mais para ficar longe de você... — Sussurra ao meu ouvido. Por pouco não deixo as xicaras caírem ao chão. Aperto os olhos sem querer me afastar de seus braços fortes.

— Foi você quem escolheu se afastar por tantos anos — Engulo em seco. Quero agarrá-lo ali mesmo, mas os gêmeos estão aqui. Preciso me controlar. Lorenzo disse que é meu, porém não é a primeira vez que tais palavras saem de sua boca. Preciso ter cuidado, de qualquer modo.

— Hoje, mais do que nunca, sei que deveria ter ficado... — Suas palavras tocam meu coração em cheio.

As crianças entraram correndo na cozinha e Lorenzo me largou na hora. Samuel e Sarah trocaram de roupa - ela usava um vestido lilás e sapatilhas e ele uma bermuda vermelha e camisa branca com sandálias. O cabelo de Samuel estava igual ao de Lorenzo, para cima e despenteado.

— Quem arrumou seu cabelo Samuel?

— Meu papai...

— O meu também — Olhei para suas marias-chiquinhas e sorri. Estavam perfeitas e simétricas no cabelo loiro escuro. Lorenzo gaba-se com expressão orgulhosa.

— Tenho algumas habilidades... Vai além da sua compreensão! — Brincou e sentou-se a mesa ao lado dos gêmeos. Ambos parecem mais felizes que nunca na presença do pai.

Uma leve batida soou na porta e olhamos ao mesmo tempo.

Coloco-me de pé quando outra batida soa e me aproximo do olho mágico. É Gael e está carregando uma flor de maneira impaciente. Olho para a mesa e vejo a cena mais fofa do mundo acontecendo. Lorenzo e os gêmeos sorriem juntos e conversam animadamente.

O que fazer? Abro a porta e falo com Gael?

Por um momento me lembro de como estou vestida... Apenas uma camisa longa de Lorenzo descansa sobre meu corpo. Caminho em direção ao quarto tropeçando em tudo e apanho um short. Visto com pressa, volto para a sala e mais batidas na porta são ouvidas. Detenho-me ao perceber o que aconteceu. Lorenzo abriu a porta e está olhando para Gael com certeza surpresa.

— O que você quer com Laura? — Pego a conversa pela metade e fico com medo de me aproximar. Lorenzo está um pouco enciumado e as crianças espiam da cozinha com muita curiosidade.

— Isso é entre nós dois e... — Entro na frente deles antes que Lorenzo comece a perguntar demais — Olá Laura.

— Olá Gael — Respondo sem muito entusiasmo. Lorenzo fica parado atrás de mim e não me viro para ver seu rosto. Sua mão roça em minha cintura e o clima é de tensão total — O que deseja? Posso te ajudar em algo?

— Quero te perguntar uma coisa... Em particular, de preferência — Está se referindo a Lorenzo. Aperto os olhos e suspiro. Viro-me para Lorenzo e ele está surpreso com a atitude ousada de Gael. Será que não percebe que estamos juntos? Essa situação pode ser mais constrangedora?

— Lorenzo... Vai ficar com os gêmeos, por favor. Prometo que não demoro a voltar — Falo correndo e nervosa. Os olhos de Lorenzo não me abandonam, porém quando sai de perto e se encaminha para cozinha sinto sua ira toda direcionada a Gael — Pronto... Estamos a sós.

Teria Lorenzo direito de se enciumar?

— As crianças gostaram do presente?

Aperto os olhos. Que pouco original!

— Sim... Gostaram muito! — Menti. Gael me esticou uma flor sem dizer nada — Ah... Obrigado — Apanhei a flor vermelha por educação.

— Laura... — Chegou mais perto de mim. Nem me movi, tendo plena consciência de que Lorenzo está me olhando de dentro do apartamento — Sobre ontem... Sei que pediu que eu fosse embora e deixou claro a posição do pai de seus filhos em sua vida, mas algo me instiga a insistir! Não quero soar intrometido, mas esse homem te deixou com dois filhos durante tanto tempo... Está certa do que está fazendo? É verdade que entre nós não existe mesmo a mínima chance?

Pensei por um segundo sobre o que responder a ele.

— Gael... É verdade que Lorenzo me deixou com duas crianças. É verdade que existe muito que ser pensado, mas também é verdade que eu o amo ... — Gael engoliu em seco diante da força de minhas palavras — Agora estou em um momento onde tudo mudou e devo dar uma chance à vida e aos meus filhos. Meu coração pede que Lorenzo fique e não posso negar que mesmo depois de tudo desejo tentar! Você é um homem muito legal e bondoso, mas não posso te enganar. O que temos é uma amizade e nunca passou disso... Eu... Eu amo Lorenzo.

— Ama? — Concordo — Porque você o ama?

— Como assim, por quê? — Questionei confusa.

— Ele te deixou e não é segredo para ninguém toda sua história... Até ontem você era mãe solteira e agora ele aparece querendo concertar um erro de seis anos atrás? Com certeza te fez sofrer muito e você, depois de tudo, ainda se curva para ele? Pensei realmente que fosse uma mulher diferente Laura... Realmente pensei que fosse mais forte — Aquilo me chocou, porém não consegui responder inicialmente. Minha primeira reação foi jogar a flor sobre ele.

— Talvez eu não seja a mulher que você e todos ai fora idealizaram , mas certamente sou mais feliz do que muitas outras! O que me faz não é um erro, mas sim a possibilidade de acertos! Se Lorenzo se arrependeu é isso o que me importa! Se Lorenzo ama meus filhos e quer uma chance, quem sou eu para negá-la? Ninguém conhece minha história profundamente e ninguém chorou minhas lágrimas, portanto ninguém tem o direito de dar qualquer palpite sobre minhas decisões! — Apanho a porta com muita certeza no olhar. Gael me encara sem qualquer ação — Adeus Gael, e espero que daqui para frente aprenda a opinar menos e amar mais!

Viro-me e dou de cara com um Lorenzo transtornado me encarando em meio à sala.

— Ele tem razão — Diz sem sorrir — Tem razão sobre mim — Ele ouviu tudo! Agarro-me ao mínimo de integridade que me resta.

— Não dê ouvidos... Gael não sabe absolutamente nada! — Interrompe-me.

— Sabe o suficiente! Sabe que te deixei e que não mereço seu amor — Um sorriso pequeno e irônico está em seu rosto. Engulo a respiração e abaixo a cabeça — Como pode me amar? Como, depois de tudo o que te fiz?

O silencio domina a sala.

Não sei o que dizer e sequer tenho essa resposta.

Como ainda amo Lorenzo depois de tudo o que houve?

Encaro-o buscando as respostas em meu coração.

Este homem é pai de meus filhos, me fez sofrer e quase o perdi... O passado, na verdade, virou pó em meio a tudo isso. Apenas sei o que o amo e não tenho cara para admitir isso frente a ele.

— Existem coisas que simplesmente não se explicam, coisas que apenas se sentem — Nossos olharem se cruzam e me aproximo para tocar seu rosto. Lorenzo me acompanha a todo o instante — Apenas sei que morri um pouco a cada dia quando imaginei a possibilidade de perdê-lo para a vida.

Não demorou para que nos abraçássemos e Lorenzo me envolvesse em um beijo com sabor de quatro de janeiro.

 


Capítulo Vinte e Um

 

“Um sonho sonhado sozinho

é um sonho. Um sonho sonhado

junto é realidade”.
— Raul Seixas.

 

Sarah e Samuel estão mais radiantes do que nunca no banco de trás do carro enquanto dirijo até o parque recém-inaugurado da cidade. Não está muito quente em Belo Recanto, mas pelo menos até agora não caiu uma gota de chuva sequer. Descemos do carro e os gêmeos agarraram-se nas mãos do pai postando-se um de cada lado. Fechei o automóvel e peguei minha bolsa enorme com kit infantil completo.

— Está um pouco frio aqui — Lorenzo comenta comigo um tanto sério — Não acha melhor colocar uma blusa neles?

— Acho que é uma boa ideia — É estranho ter um Lorenzo preocupado com o bem-estar dos gêmeos, por isso sorriso com suas palavras. Tiro duas blusas de moletom em miniatura de dentro da bolsa grande e estendo a rosa para Sarah e a marrom para Samuel.

— Eu não quero colocar blusa mamãe... — Samuel me devolve a blusa.

— Foi seu pai que mandou — Samuel olha para Lorenzo, que ajuda Sarah e colocar a blusa, e não hesita em vestir a sua também. Nunca pensei que a frase “seu pai mandou” surtisse tanto efeito! Em outra ocasião eu teria que ter feito um show para que ele vestisse a blusa e dar mil e um motivos antes de ameaçar tirar o vídeo game. Isso foi rápido e indolor.

— Venha papai, vamos balançar! — Lorenzo me olha pedindo socorro e eu os sigo até os balanços. Sarah parece radiante com a situação, sentando-se no balanço e Lorenzo a empurra com delicadeza.

Samuel senta-se no outro balanço e eu o empurro sem muito entusiasmo... O acontecimento com Gael me persegue e ainda está saltitando em minha mente. Talvez seja algo notório, uma vez que Lorenzo me encara sem disfarçar o interesse.

— Está tudo bem? — A conversa paralela de Samuel e Sarah desaparece. Apenas escuto a ele.

— É só que... É tudo muito diferente — Suspiro e sorrio de canto.

— Brinquem direitinho. Papai e mamãe vão sentar ali no banco — Lorenzo diz para os gêmeos, que concordam em seguida.

Ambos saem do balanço e correm para o escorregador alto. O parque é quase deserto, contando apenas com nós quatro e mais poucas pessoas.

Sigo o que Lorenzo falou e me dirijo ao banco mais próximo. É um vermelho embaixo de uma grande e agradável árvore. Sento-me e suspiro de felicidade, já me sentindo cansada para ficar brincando com eles a todo pique devido a rotina intensa a qual me submeto. Lorenzo nota minha exaustão e sorri para mim ao mesmo tempo em que tira sua jaqueta de couro e me estende. Fico olhando para ele sem muita reação e apenas consigo me lembrar de toda a dor que ontem ainda me assolava.

De um dia para o outro Lorenzo renasceu aos meus olhos e tornou meu sonho realidade. Aceito sua blusa com certa hesitação e largo a bolsa de lado para poder vesti-la. É agradável, grande e quente... É como me lembro de usar as roupas dele. Lorenzo se senta ao meu lado e ficamos somente olhando os gêmeos por incontáveis minutos. Deito-me em seu ombro quando seus braços me cercam com carinho.

— Obrigado por ter voltado — Sussurro sem realmente saber por que fiz isso. Pensei alto.

— Não tem que me agradecer — Respondeu seguramente — Prometi e não existe lugar no mundo onde eu queria estar além de que aqui, junto de vocês. Acho que sabe disso melhor do que ninguém.

— Não, eu não sei — Afasto-me um pouco e me abraço, envolvendo a blusa ao redor de meu rosto. Quero me afundar nela... Melhor ainda, afundar-me nos braços dele.

— Pois agora sabe — Seu olhar esverdeado é firme — Se me curei foi para estar aqui, não em qualquer outro lugar. Outro lugar não será suficiente sem vocês — Engoli em seco. Sempre me pega de surpresa.

— Vai ficar por muito tempo? — Parece uma conversa minimamente calculada, não espontânea e livre de pudores como ontem à noite. Nós dois temos medo da reação um do outro. Não quero soar dependente dele, mas eu sou. Ridiculamente dependente.

— Preciso voltar para casa o mais rápido possível... Tenho coisas para resolver na Empresa da família, meu pai está doente e não pode dar conta dos negócios. Além disso, ele não admite qualquer pessoa de fora da família à frente dos negócios, então eu preciso voltar! — Não respondo a nada. Mais uma vez ele vai embora. Abaixo o olhar e sinto o vazio me preencher o peito — Tem recebido o dinheiro que te mando?

— Sim, eu recebo — Assumo — Mas volto a repetir que não é preciso.

— Todo pai paga uma pensão, porque sou uma exceção à regra? — Sorri de canto — Ainda mais com esses dois... É minha responsabilidade.

— Está certo — Mordo os lábios. Lorenzo se aproxima e pega em minha mão. Encaro nossos dedos unidos de maneira surpresa.

— Eu vou, mas prometo que retorno — Pigarreia sem o mínimo jeito de falar. Quase o abraço com sua proximidade agradável — Antes de ir, no entanto, quero perguntar algo. Como nós dois... Você sabe... Ficamos?

— Como ficamos? —Realmente não esperei por isso — Você sempre tão direto!

— Acredito que depois de tudo nós não temos tempo a perder. Já se passaram sete anos! — Sou obrigada a concordar.

— Acho que não ficamos — Dou de ombros e sou sincera, mesmo que isso me doa — Você na Europa e eu aqui... Como pode funcionar?

— Quem disse que vamos estar separados? — Ergo os olhos para ele cheia de interesse — Não entendeu quando eu disse que nenhum lugar me interessa sem vocês? — Um sorriso ilumina seu rosto. Lorenzo nos quer em Madrid também! A confusão me domina com a certeza do que entendi.

— Não é tão fácil deixar uma vida para trás, Lorenzo!

Voltou-se para mim com a compreensão estampada no olhar. Grande resquício de súplica também o dominava da mesma maneira.

— Sei que não é algo simples e não estou pedindo para que largue tudo agora. Posso esperar um mês ou dois — Calo-me diante de sua seriedade. Um mês ou dois para ir embora e deixar tudo que construí? É no mínimo desesperador me imaginar morando com Lorenzo em Madrid sozinha e longe de tudo o que conheço. Eu o amo e esperei por isso muito tempo, certamente, mas não sei se sou capaz de largar tudo e recomeçar caso não dê certo entre nós — Tem de ser uma decisão muito segura de sua parte! Eu, por minha vez, já estou bem certo do que desejo.

— Penso que isso é muito rápido e você tem razão. Preciso estar totalmente segura — Dou de ombros delicadamente — Quero dizer... Até ontem eu te dava como morto e agora você quer me levar para a Europa de novo? Não estamos falando apenas de nós dois, mas também das crianças! Sarah e Samuel tem uma vida aqui, circulo social, escola, meus pais e todo o mundo que conhecem! — Lorenzo entendeu minha hesitação e se aproximou mais, passando o braço por minhas costas e me achegando a ele. Não fiz qualquer oposição.

— Compreendo que seja rápido e tudo o que diz é certo. Como pode se arriscar por alguém que um dia te fez tanto mal? — Parece tristonho, mas sua voz é compreensiva e algo que me reconforta — Te asseguro que mudei... Mudei por você e já aprendi a lição! Nunca mais vou te deixar sozinha e, mesmo que você não queira ir comigo para a Europa, ficarei aqui nessa cidade no seu pé para sempre. Não importa! Não faz sentido viver sem vocês e estou disposto a provar o quão certo é tudo o que digo!

Puxei-o para perto de mim e o beijei com um gemido de satisfação escapando pelos lábios. Enrosquei sua língua na minha e pressionei fortemente contra sua boca... Foi o melhor beijo que trocamos em toda nossa história!

Não pela maneira como aconteceu, mas porque cheguei a pensar que nunca mais iria sentir isso novamente. Quase perdi o raciocínio e desmaiei de felicidade... Lorenzo é errado, mas eu o amo e o tenho de volta. Nos separamos e o abracei pelo pescoço com pressa, deitando o rosto em seu ombro forte. Não sei se sou capaz de soltá-lo, uma vez em meus braços acolhedores e carinhosos.

Não são necessárias palavras e tão pouco promessas. Sei que estou nos braços de um novo homem.

— Nunca vou poder agradecer por você estar de volta. Não posso sequer pensar em te perder... Por favor, não faz isso comigo de novo! Não me deixa nesse inferno ardendo sem ter qualquer noticia! — Implorei ao seu ouvido. Suas mãos fortes me seguram pelas costas como uma criança e ele acaricia meu cabelo com cuidado.

— Nunca vou poder agradecer por ter me curado e pelo seu perdão. Não se preocupe... Nunca mais irei embora e não faz pare de meus planos te deixar... Quando vi a morte batendo na porta a única coisa boa que apareceu foi você. Te amo como um louco — Sorrio contra seu rosto. Como um louco. Sim, é o que ele é! Aperto seu cabelo em meus dedos e ficamos assim por um bom tempo — Se não quiser ir para Madrid definitivamente ao menos faça um teste de como pode ser.

— Como? — Me separei de seu abraço para olhá-lo. Parecia perdido em palavras.

— Vou precisar viajar logo e você pode vir comigo durante uns três dias e ver como é minha vida por lá. Nós levamos os gêmeos para meus pais conhecerem e apresentamos o país para os dois. Meus pais, aliás, terão uma enorme surpresa! — O encaro com certo receio.

— Não contou aos seus pais sobre... Nós? Quero dizer... Que você é pai? — Lorenzo percebe minha surpresa e dá um sorriso curto.

— Sobre você eles sabem, mas sobre os gêmeos, não.

— Porque não sabem?

— Porque se eu contasse que tenho dois filhos eles jamais acreditariam! — Gargalhamos juntos — Meus pais são loucos para ter um neto e ficariam radiantes com a ideia. Saber sobre Sarah e Samuel será a maior alegria deles — Tocou meu rosto tristinho — Garanto isso a você.

— A resposta é sim — Respondo em seguida a suas palavras. O sol toca meu rosto enquanto Lorenzo busca decifrar o mistério por trás das palavras.

— O que? — Questiona confuso.

— Vou passar três dias em Madrid com você... Ainda estou convidada? — Lorenzo sorri e me abraça com força.

— Obrigado Laura!


Lorenzo

Laura me ofereceu seu apartamento por tempo indeterminado.

Iremos viajar na manhã seguinte caso sua folga acumulada seja aprovada para os próximos dias, portanto não irei tomar muito seu tempo aqui. É um momento perfeito para ficar e aproveitar ao lado de meus filhos.

— Onde fica Madrid papai? — Sarah está deitada em meu colo com a cabeça apoiada em meu peito. Eu a seguro de lado enquanto vemos o desenho e ela toma sua mamadeira de leite. Abaixo os olhos para seu rostinho infantil e visualizo perfeitamente a beleza em pessoa.

— Fica do outro lado do oceano — Acaricio seu cabelo loiro colocando a franja que cai em seu rostinho para trás. Ela me encara confusa.

— O que é oceano? — Apesar de Laura ter me alertado sobre esses surtos de curiosidade, não estou nem um pouco familiarizado com crianças.

— É um conjunto de águas que separa dois continentes, querida — Expliquei da maneira mais simples que consegui, porém sua carinha confusa ainda permanecia — É um montão de água... Muito mesmo!

— É lá que vivem os peixes? — Questiona e concordo. Sua boca formou um “o” em expressão fascinada e surpresa. Demorou um pouco para voltar a sugar sua mamadeira cor-de-rosa — E como vamos passar por cima da água?

— Podemos passar de barco ou de avião. Nós iremos de avião porque é bem mais rápido — Pisco para ela, que se senta rapidamente e quase deixa a mamadeira cair.

— Avião? Nós vamos voar no céu? — Seus olhos verdes brilham demasiadamente. Ainda não me acostumei com a maravilha de ver em um pequeno ser as características suas e da pessoa amada. Sarah e Samuel têm os meus olhos . Entristeço-me ao pensar o quão doloroso foi para Laura olhar para os dois durante todos esses anos e lembrar a mim todo o momento.

— Sim filha, nós vamos voar! — Não terminei de falar e ela saiu correndo do sofá com suas pantufas batendo no assoalho de madeira.

— SAMUEL! SAMUEL! PAPAI DISSE QUE NÓS VAMOS VOAR DE AVIÃO! SAMUEL! — Olho para vê-la sumir dentro do banheiro cheio de fumaça. Samuel está tomando banho na banheira rodeado de brinquedos e ela se ajoelha ao lado da banheira. Os dois começavam a tagarelar cheios de especulações e de maneira inocente.

— O que está havendo? — Vejo Laura pela primeira vez desde que chegamos do parque. Estreito o olhar em sua direção. Está vestida de branco e parece um anjo caído das nuvens. Usa um vestido e uma meia-fina tão alva quanto sua pele — Lorenzo? — Me chama antes de voltar para dentro de seu quarto. Não hesito ao ficar de pé e vou até lá em passos largos e ansiosos. Sarah e Samuel ainda conversam no banheiro sobre aviões.

— Sarah está contando para Samuel que vamos para Madrid de avião — Comento ao entrar no quarto. Vejo-a parada em frente a um espelho de corpo inteiro passando maquiagem no rosto, talvez um pouco de lápis de olho. Paro na porta com os braços cruzados e não evito assisti-la. Qualquer coisa que faça me fascina e é como se um momento perdido estivesse sendo dado a mim de brinde. Um momento que já deveria estar gravado em minha memória e fazer parte de meu passado — Aonde vai?

— Para o hospital trabalhar — Termina de passar o lápis de olho e se vira para mim com um sorriso presunçoso — Quer ir também?

— Não teve graça... — Repreendo entredentes — Vai pedir sua folga?

— Certamente — Garantiu caminhando até uma estante grande de sapatos e tirando seu próprio par dos pés. Trocou o mesmo por uma sapatilha — Tenho certeza que serei atendida. Eles gostam de mim e tenho folga acumulada.

— Ótimo — Suspiro. Não consigo simplesmente tirar a ideia de beijá-la da cabeça.

— Pegue o telefone para mim? Preciso chamar a babá — Parece entretida em procurar um brinco pequeno e discreto em sua caixa de joias. Encaro-a pelo espelho com certa ofensa no olhar.

— Fico com eles. Não precisa de babá! — Cruzo os braços de forma rígida.

— O que? — Vira-se enquanto coloca seu brinco — Você vai ficar sozinho com eles? Lorenzo... Eles são terríveis quando querem ser! Não se deixe enganar por essas carinhas de anjo!

— Acho que posso aguentar essa — Dou de ombros e, ao contrário do que pensei, Laura cede facilmente.

— Certo. Você ficará com eles! Essa eu quero ver... — Apanha sua bolsa sobre a cama e checa algumas coisas lá dentro — O telefone da pizza está colado na geladeira e eles entregam rápido.

— Tem pizzaria nessa cidade? — Questiono com certa ironia e Laura me olha com reprovação.

— Não seja palhaço! — Coloca a bolsa no ombro e passa por mim com pressa — SAMUEL! SARAH! — Rapidamente os dois aparecem. Sarah está com seu pijama de antes e Samuel molhado envolto por uma toalha. O cabelo loiro está escuro e molhado todo arrepiado.

— O papai vai ficar com vocês e eu irei trabalhar — Ambos concordam com acenos vigorosos. Estou parado ao lado dela analisando a duplinha — Sabem as regras e não o deixem louco! Se comportem!

— Sim mamãe. Bom trabalho! — Sarah vai até Laura e a abraça pela cintura. Laura se abaixa e beija o cabelo loiro de nossa filha e em seguida Samuel faz o mesmo. Sarah corre para o sofá e se senta para ver novamente o desenho de antes e Samuel dirige-se para o quarto.

— O telefone dos bombeiros está na agenda e o meu celular também e... — A interrompo com um aceno e nós sorrimos.

— Pode ir tranquila... Garanto que eles vão ficar bem — A levo até a porta pelo braço. Laura se detém e me olha um pouco séria — Está mesmo com medo de acontecer alguma coisa? Eles são meus filhos também.

— Apenas insegurança, nada mais... Isso é estranho — Sorri com lágrimas nos olhos. Ficamos nos encarando por um tempo até que tomo coragem e ergo a mão para tocar em seu rosto bonito.

— Gael vai estar lá? — Laura revira os olhos e suspira. Lança-se para frente e me dá um selinho longo. Quando nos separamos ela nada diz e sai apressadamente.

Demoro uns segundos para volta a realidade e quando o faço escuto uma risadinha infantil atrás de mim. Viro-me e dou de cara com Sarah esparramada no sofá com a mamadeira de leite entre os lábios e um sorriso presunçoso dividindo o espaço com a mesma. Está rindo de minha cara de apaixonado!

***

Nunca me imaginei vendo filma de princesa em pleno domingo à noite!

Nunca me imaginei fazendo mamadeira de morango e muito menos sentando no meio do tapete para montar um quebra-cabeça enorme com a cara do Bob Esponja! Em que tipo de mundo me meti, afinal? O mundo dos pais é tão colorido e complexo, porém não posso negar que me encanta. Não existe nada tão bom quanto ficar ao lado deles!

Pedi a pizza, mas os dois não comeram muito. Estavam preocupados em ver quem deitava mais perto de mim no sofá ou quem sabia mais coisas do filme que assistíamos para me contar. Falar da princesa e do príncipe nunca me foi tão interessante e parecia que ambos sabiam de tudo um pouco. São realmente muito inteligentes.

Ao contrário do que Laura me disse, não tive muito trabalho. A pior coisa mesmo foi ter que contar uma história. Nunca fui um homem sensível e muito menos sabia narrar contos, mas tive de me virar. Deitei os dois no sofá grande ao meu lado e comecei a improvisar algo sobre a branca de neve.

Minutos depois do inicio da narrativa o que tive foi uma Sarah e um Samuel adormecidos em sono profundo. Uau. Pode ser mais fácil do que pensei... É simples como respirar. Ao observá-los adormecido ao meu lado tenho a certeza de que nunca é tarde para recomeçar. Mesmo depois de ter caído, ainda estou aqui.

Eu posso ser um bom pai.


Laura

Foi uma das noites mais longas de minha vida.

Esperei o plantão acabar contando as horas para sair correndo do hospital. Comprei o café da manhã e voltei para casa rapidamente pensando em tudo o que estava para acontecer.

Vamos para Madrid!

Consegui minha estimada folga de cinco dias e tudo vai dar certo. Dirijo pensando sobre o que vou encontrar nessa viajem e sei que finalmente verei o mundo de Lorenzo.

Seus pais.

Isso é grande, com certeza. Os pais de Lorenzo vão conhecer Samuel e Sarah e será uma bela surpresa, ao menos espero! O fato é o que mais me assusta... Apresentar meus filhos aos avós paternos sempre pareceu algo distante e impossível. Apresentar-me a eles como a mãe dos filhos de Lorenzo será algo sério também!

Finalmente chego ao prédio e subo correndo com as compras. Devem estar me esperando! Abro a porta e deixa as coisas sobre a mesa com a cena que presencio.

Os três estão deitados no sofá em sono profundo e o quebra-cabeça do Bob Esponja que Sarah e Samuel sempre tentaram montar em vão está perfeitamente encaixado sobre o tapete. O que foi isso? Observo atônita a cena e tento me localizar na situação. Lorenzo está deitado no meio, Samuel sobre ele e Sarah comprimida no canto ao seu lado. Parecem confortáveis e agradáveis... Felizes.

Certa onde de ternura me invade e abraço-me com emoção.

Até agora é um dilema saber como consegui amar Lorenzo novamente.

Caminho até eles com lentidão e vejo-os mais de perto... Não posso me controlar. Abaixo e beijo a testa de Samuel e Sara, fazendo o mesmo com Lorenzo. Não é possível caber tanto amor e emoção em um só coração! Não é possível ter um sonho realizado desse modo tão completo.

Meus amores.

Os três juntos a mim... Meu sonho .

 


Capítulo Vinte e Dois

— Quando vai começar a subir?

— Demora muito tempo daqui até lá?

— Podemos ir lá até a frente com o piloto? Quero pegar o controle!

— Você sabe a que altura nós ficamos do chão?

Eram inusitadas e divertidas as perguntas que os gêmeos direcionavam a Lorenzo desde que colocaram os pés no aeroporto. Ao menos me distraio com as coisas que falam e não perco o tempo livre pensando no que vou encontrar ao descer do avião, já em solo espanhol.

— Está nervosa por algum motivo? — Inicialmente não ouço a pergunta de Lorenzo — Laura? — Olho para o lado e vejo seus olhos verdes e curiosos em meu rosto. Pisco algumas vezes e seco a testa com a manga de minha blusa de frio. Sim, estou suando! — Você está bem?

— Sim... Quero dizer, não! — Assumo com certa hesitação. Os gêmeos estão me olhando com curiosidade e preocupação — Faz muito tempo que eu não voo e da última vez que o fiz estava grávida voltando da Espanha. Não é uma ótima lembrança.

O rosto de Lorenzo se modificou, tornando-se duro e cauteloso.

Repudiei-me em mente com o comentário infeliz. Desviei o olhar do dele e me concentrei no avião subindo... Sarah e Samuel curtem a todo instante. Nunca vi duas crianças gostarem tanto de uma coisa como eles gostam de aviões! Lorenzo parece saber tudo sobre o tema e lhes conta cada pequeno detalhe. Agradeço pelas perguntas não serem direcionadas a mim, mas a empolgação das crianças passa logo.

Logo na primeira meia-hora que estamos no ar Sarah dorme contra o peito de Lorenzo e Samuel faz o mesmo nos minutos seguintes, esparramando-se no banco livre. Apenas ficamos Lorenzo e eu envoltos pelo silêncio da primeira classe quase vazia.

— Está assim por causa dos meus pais, não é? — Sussurra ninando uma Sarah adormecida há muitos minutos. Ela está enrolada em seu colo como uma gatinha manhosa e o rosto escondido no pescoço do pai. Lorenzo acaricia seu cabelo solto e mais cumprido com delicadeza.

— Claro que não — Minto descaradamente. É claro que estou assim por causa dos pais dele! O que irão pensar de mim?

— Eles vão nos buscar no aeroporto — Diz experimentando minha reação. Aperto os olhos e suspiro, me agarrando as laterais do banco — O que na verdade te assusta sobre eles, Laura? Vai ficar tudo bem — Parece muito seguro. Um lado meu gosta disso, mas ainda hesita diante da situação.

— Estou com medo do que vão pensar... — Fiquei com medo de dizer isso também. Torço os lábios com o sorriso lindo que Lorenzo desfere para Sarah quando a mesma muda de posição em seu colo. Ele a envolve com seus braços fortes e longos cheio de carinho. É muito ciumento e protetor com essas crianças.

— Acha que eles terão algo para pensar depois de ver essas carinhas lindas aqui? — Refere-se aos gêmeos. A presença de ambos irá encher de luz a vida dos avós. Pela primeira vez começo há confiar um pouco mais — Acredite quando digo que meus pais irão amar vocês. Isso é real.

— Ao menos são três dias... Apenas três dias — Agradeço mentalmente. Lorenzo deve saber que fiz isso pelos gêmeos e por ele. O amo e os pais de Lorenzo tem todo o direito de conhecer as crianças.

— Não são três dias. É uma vida inteira, Laura. Vocês três são minha família e meus pais também — Sua convicção me faz confusa — Não me venha com essa de “apenas três dias”.

— Não me venha com essa de “uma vida inteira”! Você será pai de Sarah e Samuel para sempre, mas eu e você... — Hesitei ao ver seus olhos interessados. Ele beija a cabeça de Sarah com delicadeza — Nós ... Não sabemos o que vai acontecer com nós .

Encaro a janela com o coração na boca e as dúvidas na alma. Não posso negar que ainda tenho inseguranças para com Lorenzo e tudo parece muito incerto. Não quero magoá-lo, porém tão pouco posso iludi-lo!

— Algo me diz que nós somos para sempre... — Sussurra ao meu ouvido, mas mesmo assim não o encaro.

— Já ouvi tais palavras antes — Segui olhando para a janela e Lorenzo nada disse. Havia dor em seu silêncio e me arrependi no mesmo momento pelo comentário infeliz.

É realmente difícil assimilar os pensamentos.

Conheci dois tipos de Lorenzo em duas diferentes fases da vida e não sei até que ponto um deles começa e o outro terminar.

O primeiro Lorenzo era o rapaz jovem e forte da faculdade, aquele homem encantador que me seduziu com facilidade e me deixou perdida de amor por uma história que nunca existiu. Tudo o que fui para ele se resumia a uma aposta onde terminar grávida e desiludida.

Já o Lorenzo de seis anos depois se mostrou enfermo e arrependido. Agora existia um homem doce que pensou estar vivendo os últimos momentos de sua vida e buscava recuperar o tempo. Essa parte dele sim merecia um crédito e todo o amor do mundo, mas como diferenciá-lo do anterior?

Eu o amo, mas é difícil confiar cegamente nele.

Além de tudo, entre o Lorenzo da faculdade e o homem de agora, existe uma terceira parte. O que pensar sobre o Lorenzo que voltou curado após nove meses? Quem ele é? Estou diante do homem que me quebrou ou do que me jurou amor?

— Ter sua confiança é tudo o que mais quero na vida, Laura — Sussurra após um tempo de silêncio e alguns instantes de viagem — Penso que com o tempo as coisas podem melhorar para nós — Estico a mão e toco sobre a sua livre. Lorenzo não me encara.

— Penso da mesma maneira — Sussurro e mordo os lábios — Peço que, por favor, me entenda! Não é tão simples aceitar as mudanças desse jeito e assimilar que as coisas agora são diferentes. Dê-me apenas um tempo! — Aproximo-me e desfiro um beijo em seu rosto. Ouço seu suspiro apaixonado — Sei que com o tempo meu coração irá se abrir novamente e tudo será melhor.

Não obtenho resposta, apenas um sorriso curto depois que me afasto. No fundo eu sei que ele me entende e pondera que estou lhe dando, ao menos, uma chance.

***

Sarah acorda desnorteada com o avião aterrissando e Samuel desperta segundos depois com a cara amarrada por não ter presenciado um dos momentos mais empolgantes da viagem, segundo ele. Ambos saem correndo e puxando Lorenzo no desembarque, já eu demoro algum tempo para tirar o sinto de segurança e pegar as bagagens de mão.

— Esperem a mamãe! — Os três param no caminho e me aguardam ao mesmo tempo. Caminho no mesmo ritmo lento e demasiadamente ansiosa para finalmente encontrar os pais de Lorenzo.

A primeira impressão que tenho de Madrid - o mundo de Lorenzo - é diferente de tudo que já conheci. Já estive na Espanha há seis anos, mas nada parece igual. Lorenzo conhece muito e explica detalhadamente tudo o que os gêmeos questionam. É muito educado e vasto em cultura, fazendo com que as crianças – e eu também! – o admirem mais a cada instante.

Seguro a mão pequena de Samuel e formamos uma corrente de quatro pessoas. Pela primeira vez estremeço com a ideia de sermos uma família . Ao mesmo tempo em que me parece um sonho, imagino que seria catastrófico para os gêmeos se algo viesse a separá-los de Lorenzo.

Caminhamos em direção ao portão de desembarque e Lorenzo tenta enxergar por cima dos passageiros a nossa frente. As pessoas aqui são muito diferentes dos habitantes de Belo Recanto e causam curiosidade em Sarah e Samuel.

Garota do Interior. Naquele instante percebo que o termo nunca se adaptou tão bem a mim!

Lorenzo tinha razão. Sou absurdamente provinciana e, entre esse mundo louco e o meu pequeno interior, prefiro certamente a calmaria de Belo Recanto. Apenas por Lorenzo estou aqui para me arriscar .

— Lorenzo? — O nome dele soa quando passamos pelo portão principal. Nós quatro giramos o rosto juntos em direção à voz.

A senhora que chamou por ele é baixa, bem cuidada e usa um vestido cinza. Está de saltos e seu vestuário impecável demonstra rapidamente que se trata de uma dama da sociedade. Ao lado dela está um homem alto, aloirado e formal. A semelhança do belo casal com o pai de meus filhos me toma em surpresa! Vejo traços de Sarah no rosto da mulher e isso deixa evidente que meus filhos também são parte deles.

Aperto os olhos para a realidade quando Lorenzo larga a mão pequena de Sarah e vai em direção aos pais, que analisam curiosamente a mim e as crianças.

— Quem são essas pessoas mamãe? — Samuel questiona me olhando de baixo.

— São seus avós... — Trago os gêmeos para perto pousando a mão no ombro de ambos. Lorenzo abraça os pais com bastante entusiasmo e sinto que ali existe um recomeço.

— Nós já temos a vovó Jade e o vovô Fúlvio — Sarah fala bem baixinho.

— Esses são os pais do papai — Esclareço carinhosamente.

Lorenzo conversa com os pais em tom calmo e com um sorriso orgulhoso nos lábios. O casal parece atônito e questiona detalhes por todo o tempo. Ele não contou sobre os gêmeos! Finalmente o pequeno diálogo termina e eles se aproximam de nós em passos hesitantes e olhares surpresos e apaixonados.

— Laura, esses são meus pais, John e Gabbie Valencia — Apresenta-me ao casal e dou um passo à frente para apertar as mãos ansiosas — Pai, mãe, essa é Laura.

— É um prazer finalmente te conhecer, Laura — O senhor Valencia me cumprimenta enquanto a senhora, Gabbie, encara os gêmeos com lágrimas nos olhos e sem disfarçar a emoção.

— E finalmente... — Lorenzo diz animadamente — Esses são nossos filhos, Samuel e Sarah.

— Eles são... — A mãe dele sussurra e Lorenzo a interrompe.

— Sim, são gêmeos!

Perco a conversa quando a mãe dele me envolve em um abraço forte pela nuca. Cambaleio com ela sobre mim e abraço de volta, olhando para Lorenzo sobre o ombro da mesma. Não esperei por isso! Sarah e Samuel assistem tudo sem compreender ao certo.

— Oh querida, agora tudo faz sentido! É por isso que Lorenzo sumiu tanto tempo e... Oh! — Separa-se de mim rapidamente e se ajoelha a frente de Samuel e Sarah. Passa a mão no rostinho deles com muito carinho — Vocês dois são lindos! Se parecem muito com Lorenzo... — Ainda toca o rosto deles como se não acreditasse que fosse real.

— Porque nunca nos contou sobre eles, filho? — John levou uma das mãos ao ombro de Lorenzo — Você sempre soube que eu e sua mãe desejávamos demasiadamente ter um neto e seria de imensa alegria, seja lá qual fosse à situação! Além do mais, sua namorada é uma bela moça. Você não é daqui, é? — Desvio o olhar dos gêmeos com a mãe de Lorenzo e nego com um aceno.

— Não senhor... Sou brasileira e venho de uma cidade pequena chamada Belo Recanto — Esclareço com um breve sorriso.

— Nós nos conhecemos na faculdade, mas é uma longa história! — Lorenzo para próximo a mim. O pai dele acha que somos namorados e ele não desmentiu!

— Quantos anos eles tem? — Observa Gabbie ainda fascinada com as crianças.

— Fizeram seis no ultimo sábado — Respondo e vejo o espanto dele nitidamente.

— A senhora é nossa avó? — Sarah levanta a mão e toca o rosto de sua avó com o mesmo carinho que ela recebe. O sorriso da mulher vai além deste mundo e troco um olhar cumplice com Lorenzo... Ah! Está dando certo!

— Sim querida, sim! — Passa a mão nos bracinhos de Sarah, que sorri — Você é tão graciosa... Sempre foi meu sonho ter uma filha e agora tenho uma neta! — Sarah a abraça pelo pescoço com ternura. Samuel faz o mesmo.

— Ganhamos um pai e agora temos mais dois avós... Isso é muito legal Sarah!

O olhar do pai de Lorenzo diz tudo e compreendemos de imediato.

Gabbie e John querem saber o que aconteceu e o porquê de repentinamente surgirem dois netos já com seis anos. Teremos de abrir as feridas e dizer tudo o que aconteceu no passado e também agora, no presente.

A casa dos pais de Lorenzo é grande e muito agradável. Realmente a família Valencia tem muito mais dinheiro do que um dia cheguei a imaginar. Os pais dele - Gabbie e John - sobem as escadas principais com os gêmeos e parecem muito empolgados para explorar o interior do enorme imóvel.

— Você mora aqui? — Questiono bem baixinho.

— Não. Aqui é a casa dos meus pais, porém ando passando um bom tempo neste lugar. Foi melhor do que ficar sozinho em meu apartamento.

— Onde vamos ficar?

— Você é quem sabe — Dá de ombros e sorri para me acalmar — Minha casa fica só um pouco distante daqui.

— É menor do que esta? — Lorenzo ri e me abraça de lado. Começamos a caminhar em direção a entrada.

— Sim, de fato menor. Está se sentindo mal aqui?

— Talvez um pouco deslocada... — Agarro seu braço e sorrio de maneira envergonhada.

— Não precisa... Meus pais gostaram de você e são muito tranquilos.

— Mamãe, a vovó disse que podemos nadar na piscina depois do almoço! — Sarah abraça minha perna com carinho e muito feliz — Não é legal?

— É muito legal, mas nós vamos ficar na casa do papai! — Sarah olha para Lorenzo.

— Mas essa não é sua casa papai?

— Não, é a casa da vovó... — Samuel chega acompanhado dos avós.

— Vovó disse que hoje terá uma festa — Anuncia animado.

— Hoje é aniversário de minha mãe — Comenta Lorenzo.

— Oh! Meus parabéns! Eu realmente não tinha ideia! — Me aproximei para abraçá-la e Gabbie retribui com emoção.

— Não precisa se desculpar querida... Você já me deu algo de valor incondicional! Graças a você agora tenho dois netos lindos neste dia especial. Não existe maneira de dizer obrigado!

***

Samuel e Sarah adoraram o apartamento de Lorenzo e correram pelo jardim de primavera cercado com flores coloridas. Quem diria que esse tipo de lugar agrada a Lorenzo?

— Comprei esse apartamento faz uns meses. Pedi ao meu advogado para que pesquisasse um lugar seguro para crianças e com ótimas escolas por perto — Sorri com seu comentário. Samuel e Sarah estão na banheira de um dos quartos de hóspedes se banhando enquanto conversamos e ficamos de olho neles, que se divertem com a espuma.

— Estava falando sério quando disse que queria que eu e os gêmeos vivêssemos para cá definitivamente? — Move a mão e retira uma mexa de cabelo de meus olhos. Continuo estática diante dele, apenas esperando suas revelações.

— Mobilhei um quarto para eles, um para cada um — Sorriu timidamente.

— Porque não mostrou? — Seguro sua mão.

— Porque ainda não sei qual será sua resposta e não quero iludir a mim e aos gêmeos começando uma coisa que talvez não tenha fim... Não um final feliz — Engulo em seco e não consigo desviar o olhar dele.

Os gêmeos terminam o banho e os arrumo para o aniversário da avó com certo entusiasmo. Preciso decidir logo sobre qual rumo dar a minha vida e não posso mais seguir enrolando.

Meu coração sabe o que desejo... Quero Lorenzo e perpetuar uma família com ele. Foi para isso que tive as crianças, afinal. O desejo de me reconciliar com o pai deles sempre existiu em meu interior e acreditei em nosso amor mesmo quando ainda não existia!

Tenho a chance em mãos não posso dar para trás! Hoje à noite, durante a festa, teremos que tomar nossa decisão.


Lorenzo

Sarah e Samuel parecem dois bonequinhos feitos à mão.

Sarah, com seu vestido lilás e suas sapatilhas, cumprimenta a todos meus parentes ao lado de meus pais, que insistem em apresentar os netos para todos. É sempre uma longa história, uma vez que todos se assustam com meus filhos repentinos que apareceram de uma hora para outra. Samuel, tão lindo quanto Sarah em sua roupa mais social, acompanha-me em todos os lugares. Segura em minha mão e parece feliz... É difícil acreditar que deixo alguém feliz apenas com minha presença.

— Sabe onde está sua mãe? — Pergunto a ele ajeitando seu cabelo mais cumprido para longe do rosto.

— Ali fora, na sacada — Aponta para trás de mim e sigo a linha reta que forma seu dedo.

Nós dois encaramos Laura, que olha para fora sem muito entusiasmo. Está pensativa e linda, obviamente, usando um vestido da cor pêssego e esvoaçante. Respiro fundo diante de sua visão. Quando em vida me imaginei, sete anos depois de nossa história louca da faculdade, contemplando-a na sacada da casa de meus pais enquanto seguro nosso filho no colo? Quando imaginei amar tanto essa mulher a ponto de nada mais fazer sentido para mim se não for feito ao lado dela?

— Filho... Vai lá com sua irmã. Vou ter uma conversa com a mamãe — Samuel não espera segunda ordem. Desce de meu colo com um largo sorriso e vai até Sarah, que acompanha meus pais. É bem recebido ao se juntar ao grupo e parece contente.

Eu sei que é o que os gêmeos mais querem... Eu e Laura, juntos de verdade e unidos como um casal com filhos deve ser.

Sem hesitar vou até a sacada atrás de Laura e fecho a porta de vidro com cortinas. Assustada, notar que sou eu se acalma aos poucos. Volta-se para frente novamente, tocando as mãos delicadas no parapeito de mármore. Paro atrás dela e noto que não se move, apenas aprecia a vista a nossa frente. É realmente bonita... Dá diretamente para o jardim dos fundos onde há um pequeno lago artificial com um chafariz reluzindo o nome da família.

— Seus pais são muito criativos, devo admitir — Seu corpo trêmulo roça o meu. Suas mãos soam nas minhas.

— Têm ótimo gosto. Não é a toa que aprovaram cem por cento você — Vira a cabeça um pouco para me olhar.

— Aprovaram? — Concordo com um aceno — O que disseram? — Vira-se totalmente, apoiando o corpo no parapeito. Chego mais perto ainda, praticamente prensando-a contra meu peito.

— Meu pai te considera uma mulher linda, doce e educada. Já mamãe acha que você é o tipo de mulher que sempre precisei — Laura sorri abertamente e cora, escondendo o rosto nas mãos. Afasto suas mãos com cuidado — Ela tem razão. Hoje vejo que sempre precisei de você.

Aproximo-me e arrisco envolver sua cintura com as mãos. Não sou afastado. Preciso dela desde o momento em que a vi sentada na boate com seu vestido recatado e sorriso tímido. Não sei como fui capaz de passar tanto tempo longe, não sei como sobrevivi sem o que me faz viver! A única verdade que conheço é que a amo e Sarah e Samuel são as melhores coisas de minha vida porque me unem a Laura eternamente.

Nada mais é preciso.

A mão pequena de Laura me segura pelo queixo e a outra se comprime em meu peito. Penso que vai me afastar, porém aproxima mais os lábios dos meus de modo a nos beijarmos com fervor. Sinto o céu na doçura de sua boca e aperto-a contra mim ainda mais fortemente. O sentimento dói em meu peito, mas é o que me mantem aqui para ela. Todo esse amor insano e imensurável.

— Quero ficar com você para sempre. Não importa mais nada, apenas diga que me ama também — Sussurra colando nossas testas. A puxo para um beijo novamente.

— Sou seu. Qualquer coisa que você quiser... Qualquer coisa — Laura ri do meu desespero por seus lábios, mas me beija com tal intensidade — Me peça qualquer coisa, menos para te deixar!

— Não me deixe. Fique comigo para sempre — Sussurra com a voz apaixonada acentuada.

— Vai ficar aqui comigo? Não vai voltar para Belo Recanto? — Nos encaramos seriamente. Laura sorri e me beija para me calar.

— Resolvemos isso depois. Por agora te dou a certeza que não vou te deixar também... Não existe eu sem você!

— Passe essa noite comigo — Sussurro ao seu ouvido.

Samuel e Sarah demoraram a dormir, mas mesmo assim não tiraram de nós toda a vontade de matarmos o desejo que nos consumia. Laura me olhava de canto com certa impaciência enquanto as crianças ainda estavam presentes e o sangue fervia em minhas veias por apenas imaginar o que estava por vir.

Adentro a meu quarto depois de colocar os gêmeos na cama e a vejo sentada a beira de minha cama tirando as sandálias dos pés delicados. Detive-me após fechar a porta e respirei profundamente. Seus olhos grandes sobem em minha direção e se demoram demonstrando nervosismo. Movendo-se, apoia os braços no colchão.

— Foi para isso que me convidou para passar a noite com você? Para ficar apenas me admirando? — Seu tom sedutor me fez sorrir. Tirei a jaqueta e os sapatos, aproximando-me da cama em passos curtos.

É tudo sempre diferente da primeira vez e até mesmo os sonhos se tornando passageiros. Sempre distinto, parece novo, porém ainda posso me lembrar de cada detalhe de nossos momentos de amor mesmo com a nuvem densa do desejo formada em meu interior. Não admiro Laura apenas por ser mãe de meus filhos, mas também por ser linda, doce e sempre encantadora. Desde a primeira vez em que a vi tive a certeza de que algo fortíssimo nos unia e a cada instante em que passávamos juntos a convicção me atingia de maior maneira.

Não me recordo ao certo como aconteceu, mas em meio a caricias e afagos estreitei Laura em meus braços e segurei seu rosto com amor e decisão estampados no olhar.

Sinto-a estremecendo em meus braços antes de sussurrar o que estava entalado em minha garganta.

— Case-se comigo? — Digo as palavras ao seu ouvido ainda totalmente perdido em sensações.

— Sim.

 


Capítulo Vinte e Três


Acidente: anormal, imprevisto, fatalidade.


Dois meses depois...

As coisas acontecem de repente e sem qualquer planejamento. Não é preciso ser muito esperta para saber disso, porém mesmo estando acostumada as reviravoltas da vida ainda não havia me precavido para tanto.

Há sete anos em Belo Recanto eu reconstruía minha vida deteriorada e revirada com a ilusão de conseguir dar uma situação digna para meus filhos. Por um milagre consegui. Há menos de um ano nem sequer imaginava reencontrar Lorenzo e muito menos descobrir que o pai dos meus filhos - o homem que amo apesar de tudo - estava comprometido com uma doença de alto risco!

Em qualquer uma dessas épocas debocharia de alguém que me dissesse que agora, no presente momento, estou ajeitando minha vida para ir morar na Europa com o mesmo Lorenzo que me magoou no passado e é o pai de meus filhos.

Tudo aconteceu por acidente e foi uma cartada da vida. Consegui me reerguer apesar de todas minhas dificuldades. Lorenzo conseguiu superar sua doença e se tornou o maior vencedor de todos... Nós dois superamos o passado e conseguimos juntos focar no futuro. Em nosso amor.

Tudo por causa de acidentes.

Dirijo para casa quando meu celular toca. Meus olhos coçam e não vejo a hora de retornar a minha casa e dormir até às três da tarde. Passei doze horas no plantão da madrugada e acabei de deixar os gêmeos na escola. É a última semana deles aqui na cidade, uma vez que em breve, mais precisamente em duas semanas, estaremos nos mudando definitivamente para a antiga e bonita Espanha.

— Alô?

— Deixou as crianças na escola? — Sorrio ao ouvir a voz de Lorenzo.

Mesmo estando em outro continente e do outro lado do oceano Lorenzo cumpriu com sua promessa... Não me deixou. Desde que voltei da viajem com os gêmeos já veio nos ver três vezes e sempre quando tem um tempo livre aparece por aqui e fica uns dias. Os dois meses que colocamos de prazo para ajeitarmos nossa vida antes de casar foram, de certo modo, positivos. Conseguimos nos adaptar a ideia de que a partir de agora seremos uma família de verdade e consequentemente pensar e esclarecer um com o outro o tipo de casamento que queremos ter... Tanto o cerimonial quanto o na prática.

Em relação à cerimônia Lorenzo quer tudo tradicional e incontestavelmente dentro dos padrões católicos, religião de sua família. Tive que concordar, é claro, não posso negar um casamento para os meus pais e os dele.

— Sim, deixei as crianças na escola... Agora vou para casa porque estou desmaiando de sono.

— É sua última semana. Estão pegando muito pesado no hospital?

— Não, está tudo ok. O que vai ficar pesado é sua conta telefônica. Pelo amor de Deus, você me liga de cinco em cinco minutos! — Brinco com a voz sonolenta e ainda dirigindo.

— Não ligo de cinco em cinco minutos... Só de três em três horas. Ou menos, às vezes. Preciso saber tudo o que deseja para o casamento ficar perfeito — Não posso evitar sorrir. Parece mais empolgado do que eu para nosso casamento, fato que acho impossível. Desde os dezoito anos sonho em me casar com ele... Finalmente minha hora de brilhar chegou.

— Eu entendo amor, mas será que pode ligar somente daqui a oito horas? Vou chegar em casa e desmaiar — Peço em uma súplica engraçada.

— Você anda cansada... — Notoriamente seu tom é preocupado — Não está doente, está?

— Não amor, não estou doente! — Tranquilizo-o. Doença é uma palavra traumática para ele — Você anda bem? Está se comportando?

— Sempre para você.

— Ótimo... Descobri que sou muito ciumenta quando se trata de você. Cheguei em casa... Vou dormir. Eu te amo.

— Tudo bem minha dorminhoca. Eu te amo também... Até daqui a oito horas.

***

Subo para meu apartamento arrastando o corpo pelos corredores.

O sono forte me domina completamente. Não me lembro de ter me sentido assim antes. Sei que não tem nada a ver com o plantão, uma vez que sempre fui muito forte para ficar acordada. Porque isso agora? Abro a porta e saio chutando as caixas e embrulhos. Todos meus móveis estão sendo vendidos e apenas alguns objetos pessoais serão levados para o novo país. Quase tudo está empacotado, exceto o sofá e coisas básicas.

Largo a bolsa no chão e adentro ao banheiro. Abro a torneira deixando um jato forte e jogo água no rosto... Nem sequer isso me anima. Pareço amarela e pálida... Então noto que não comi durante as últimas doze horas. Praguejo, vou até a cozinha e vasculho em busca de alfo desempacotado. Encontro um cereal dos gêmeos e como algumas colheradas com leite e frutas.

Deito-me após comer e não demoro a sentir enjoo. Boto tudo para fora e me irrito. Jogo-me ao sofá e encaro o teto... Sinto-me ridiculamente fraca. Encolho-me ao sofá, suspiro e fecho os olhos. Minha mente gira devagar.

Será que estou doente?

Gelo por dentro somente de pensar na hipótese! Lorenzo não pode nem ouvir falar sobre isso!

Durmo por oito horas e acordo com a mesma sensação de quando me deitei. Chovia quando estaciono o carro próximo a entrada do colégio e vejo Sarah e Samuel em clima de despedida com os coleguinhas. Aquilo me enche os olhos de lágrimas... Parecem tão tristes, emotivos e lindos em suas capas de chuva. Olham para mim e faço sinal para que venham a meu encontro. Finalmente chegam perto e meu carro se enche de luz. Até mesmo meu mal estar se esvai ao ver o sorriso e a alegria de ambos.

— Todos estão tristes porque vamos embora mamãe... — Comenta Samuel ao subir no banco de trás. Travo as portas do carro quando Sarah se senta na frente, ao meu lado.

— Isso é comum filho... É sinal que vocês têm ótimos amigos aqui — Volto a dirigir. A vertigem me domina. Tudo roda e sinto medo de bater o carro por um minuto, mas me concentro.

— Nós vamos vir visitá-los mamãe? Quando estivermos morando longe vamos voltar aqui? — Sorrio em meio à dor de cabeça. É nítido que estão felizes por ir embora, mas tristes por ter que deixar para trás toda uma vida, apesar de curta. É bom ver a contradição exibida nos rostinhos que tanto amo.

— Claro meu amor, claro — O alivio é nítido nos olhos verdes de ambos — Sempre virei visitar meus pais e vocês seus amiguinhos.

— Papai te ligou hoje? — No exato momento em que Samuel fala, o celular toca em minha bolsa — É o papai!

— Pegue o celular em minha bolsa — Quando falo Sarah já está atendendo ao telefone, presente de Lorenzo, que parece muito grande para ela manusear corretamente com sua pequena mãozinha.

— Oi papai! Tudo bem? Estou com saudades! — A felicidade de Sarah é enorme. O volume e a proximidade são altos, por isso posso ouvir a voz de Lorenzo ecoando.

— Oi filha, papai também está com saudades! Estou bem e você? Como vão mamãe e Samuel?

— Mamãe está estranha. Está branca e parece doente — Freio o carro com força ao ver o sinal. Nós chacoalhamos e olho para Sarah totalmente desnorteada! E eu que pensei que crianças não prestam atenção nessas coisas... Como assim ela notou que estou em um péssimo dia?

— Notei isso também... Vocês deveriam insistir para que ela vá a um médico. Ou papai terá que ir até ai e atrasar todo o casamento! — Suspiro e aperto os olhos. Volto a dirigir quando o farol abre.

A conversa vai mais fundo, porém Sarah desliga assim que chegamos à casa de meus pais.

— Querida, não esperava por vocês... Como vão as coisas do casamento? — Os gêmeos correm para a sala onde meu pai assiste ao jogo do campeonato. Fúlvio envolve os netos e começa contando um pouco sobre a Europa, dizendo que lá será o novo lar deles. Os dois parecem muito interessados e compartilham as coisas que Lorenzo já lhes contou.

— Bem mãe, bem. Vim pegar o casaco dos dois que deixei aqui ontem... Fez falta para irem ao colégio de manhã. E ah, as roupinhas todas. Preciso empacotar tudo — Me sento, ou melhor, me jogo na cadeira da cozinha enquanto minha mãe vai até o armário dos fundos. Volta cinco minutos depois com um bolo de roupas infantis e coloridas.

— Não entendo para que levar suas coisas... Seu marido é rico e vai dar a você e as crianças do bom de do melhor! Não há necessidade de tudo isso Laura — Coloca em cima de minhas pernas os cestos de roupas. Está leve. Começo a revirar as peças e noto que algumas roupas dali nem servem mais aos gêmeos. Os anos passaram muito rápido!

— Sei que Lorenzo vai me dar do melhor, mas por enquanto prefiro viver minha realidade — Dobro e separo as roupas que irei usar porque ainda parecem boas. São realmente poucas as que creio caber neles.

— Você teve muita sorte minha filha... Fico muito feliz. Espero que quando se mudar ainda se lembre de mim e de seu pai — Sorrio apesar de ainda enjoada.

— Pode ter certeza disso mãe. Vou me lembrar sim — Suspiro com a dor de cabeça — Sempre virei visitá-los.

— Você está bem? — É rápida na pergunta. Se levante e vem até mim, tocando meu rosto. Está frio e suado — O que você tem?

— Estou um pouco tonta mãe, só isso — Balanço o rosto — Tem um remedinho para dor de cabeça por ai? Acho que preciso de um...

— Claro! Já pego — Ela some no corredor e escondo a cabeça entre as mãos. Está ficando pior... Insuportável! Volta e mal percebo. Engulo o comprimido com água em goles longos — Você está péssima! O que sente?

— Dor de cabeça e tontura.

— Melhor procurar um médico Laura. Sua saúde sempre foi muito frágil, não brinque com ela... Você tem dois filhos e um noivo, além de muita vida pela frente! — Concordo, mas quero me livrar logo de seu olhar acusatório.

— Vou para casa. Os gêmeos precisam descansar para estarem bem na viagem — Ponho-me de pé com o cesto de roupas e me aproximo dela. Beijo seu rosto — Te amo mãe. Obrigado por ter me apoiado em todo esse tempo.

— Também te amo Laura. Vê se não se esquece de nós!

Chamo os gêmeos e dou um tchau tímido para meu pai, que retribuiu com um sorriso longo e orgulhoso. Isso me deixa feliz... Sei que agora ele tem orgulho de mim. Agora, com Lorenzo em minha vida, sabe que não sou uma qualquer e que fiz tudo direito.

Os gêmeos se acomodam no carro e seguimos em silêncio para casa. Minha dor de cabeça passa com o remédio e me sinto disposta por alguns momentos. Dou banho nas crianças, jantar e finalmente tenho um tempo para mim. Entro no e-mail e há uma mensagem recente de Lorenzo.

 

Assunto: Marido Preocupado!

Vá ao médico! Não seja Teimosa!

Sorrio e digito uma resposta.

 

Assunto: Já pensou em alguma coisa boa?

Eu sim... Penso em você toda hora. Não se preocupe com minha saúde... Já resisti a um parto de gêmeos!

Vasculho pela internet dois minutos... Coloco o nome da família de Lorenzo na pesquisa e realmente constato que são mais importantes do que pensei! Encontro uma foto dele comigo e com as crianças na festa de aniversário de minha sogra. Passo cinco minutos olhando.

 

Assunto: Parto de gêmeos?

Já resisti a Leucemia e sei o quão importante é visitar o hospital!

 

Assunto: Pare!

Não gosto de lembrar isso!

 

Assunto: Posso dormir com você?

Sonhe comigo. Te amo.

 

Assunto: Pode.

Sempre.
Te amo.

***

O relógio marca exatamente às nove horas da manhã quando adentro a recepção do hospital onde trabalho e sou recebida por todos com certa surpresa. Pela primeira vez em muito tempo não chego vestida de branco, mas com vestido e sapatilha. Carrego minha bolsa, os documentos e sou uma paciente como qualquer outra. Arrasto-me pelos corredores com um mal estar deprimente e a expressão não esconde minha agonia em estar enferma.

— Laura? — Fran, minha colega de trabalho, me encara de maneira confusa — Hoje não é seu dia... Aconteceu alguma coisa?

— Bom dia Fran — Sorrio curtamente e ela me ajuda a sentar em uma das cadeiras da recepção. Logo nota que não estou bem — Estou um pouquinho ruim. Vim ver a Lisa, ela está?

— Claro, em cinco minutos ela volta do café e te receberá... Você é da casa! — Pisca para mim com cumplicidade — Vou falar com ela... Aguente ai!

Fran some no corredor as pressas e agradeço pelo hospital estar vazio.

Durante a noite os sintomas ficaram ainda mais severos e decidi não dar lugar ao azar. Lisa, a ginecologista do hospital, aparece animada como sempre e caminha em minha direção. Usa seu jaleco branco e o cabelo longo e loiro preso para trás. Não hesita em se abaixar e me dar um beijo rápido no rosto.

— Querida, o que temos aqui? Nossa! Você está péssima! — Senta-se a minha frente e segura meu rosto — E gelada! É melhor irmos até a sala de enfermagem... Vou te por no soro agora.

Faço o que ela manda e descrevo os sintomas detalhadamente. Lisa apenas sorri enquanto Fran procura minha veia para furar e pede um exame de sangue de emergência. Fico confusa perante sua despreocupação.

— Não vejo razão para estar assim, uma vez que não tenho sintomas preocupantes. A única explicação plausível que encontro é gravidez, mas... — Lisa se aproxima e toca minha barriga por cima do vestido. Apalpa delicadamente.

— Como sempre uma profissional muito observadora e perspicaz — Lisa me examina com cuidado e faz algumas poucas perguntas — Você está grávida — Gargalho sem muita força.

— Não, não posso estar — Dou de ombros sob seu olhar desconfiado — Eu tomava remédio até poucos dias!

— Quer um ultrassom ou vai esperar o exame provar isso para nós? O soro precisa agir e alimentar o bebê... Talvez pouco mais de oito semanas — Anota em meu prontuário como se tivesse absoluta certeza do que está falando — Precisa ligar para alguém?

— Como assim Lisa? Não pode ser!

— Fique calma, Laura! Você está noiva e a situação é outra. Não entre em pânico e fiquei quietinha para não ficar ainda mais enjoada — Adverte com carinho — Preciso atender outra paciente, querida. Estarei em meu consultório!

Lisa sai após passar alguns procedimentos para a enfermeira que me atende e encosto-me ao travesseiro e suspiro.

Grávida .

Tudo isso parece um estranho momento do passado sendo revivido e minha mente não é capaz de processar adequadamente tais situações! Grávida de Lorenzo como no passado!

Como fui deixar que acontecesse novamente justo agora que vamos morar em Madrid e serei uma recém-casada? Penso em todas as vezes que tive relações com Lorenzo. Não foram muitas, porém suficientes para me colocarem novamente em uma história complicada.

— Espere Fran! — Segurou o pulso de Fran antes que ela saia.

— Sim?

— Doutora Lisa disse “oito semanas”? — Ainda sinto dores e estou acabada. Não posso sequer acreditar em tudo isso, porém nada se compara ao choque que tive ao descobrir a gravidez de Sarah e Samuel. No fundo, lá dentro de meu peito, algo sussurra que dessa vez não estou sozinha e muito menos serei desamparada.

— Sim Laura, foi o que ela disse — Afaga minha mão com carinho — Meus parabéns. Você quer comer alguma coisa?

— Obrigado Fran. Será que pode pegar minha bolsa? — Sem hesitar Fran me passa a bolsa e se retira me deixando ciente de que qualquer coisa que necessitar poderei chamá-la.

Não presto muita atenção, uma vez que retiro meu celular da bolsa e fico minutos olhando para o papel de parede. É uma foto de Lorenzo com os gêmeos e eles fazem a mesma careta. Afago minha barriga com carinho e devaneio alguns segundos com a situação.

Suspiro e abaixo o celular. Como vou contar isso a Lorenzo?

Faço as contas mentalmente. Se for verdade o que Lisa disse significa que engravidei assim que Lorenzo reapareceu, justo na viagem para Madrid. Não demora muito e todas as peças se encaixam. Fran aparece com meu exame uma hora depois e confirma tudo o que Lisa falou.

Estou grávida!

Permaneço minutos em choque e somente consigo fazer uma coisa... Ligar para minha mãe.

— O que está fazendo em um hospital? — Parece muito preocupada — Quer que eu vá para ai?

— Não mãe. Estou bem... Eu... Estou grávida! — Por vários segundos Jade permanece muda.

— Grávida? — Arrisca dizer.

— Sim mãe, grávida. Já tem oito semanas.

— Você já contou ao seu noivo?

— Não! — De certo nota o tom tremulo de minha voz — Quero te pedir um favor... Será que dá para você pegar os gêmeos na escola? Não sei que horas vou sair daqui e assim que estiver com alta, passo na sua casa e os apanho.

— Claro que os busco! Aliás, meus parabéns!

Agora que tenho um noivo e que vou me casar todos tratarão a chegada do bebê com extrema alegria, ao contrário do que foi com Sarah e Samuel. Deito-me e choro sozinha... Não de dor, não se tristeza, mas também não de contentamento! Não estava em meus planos ficar grávida novamente! Eu pretendia guardar esse início de casamento para mim e Lorenzo aproveitarmos com os gêmeos, mas já que aconteceu nada mais importa! Preciso cuidar de meu novo bebê e entender que agora sou uma mãe grávida novamente!

Tudo isso por culpa de um acidente.

— Está se sentindo melhor agora? — Lisa questiona assim que me tira do soro. Realmente minha cabeça parou de girar e estou me sentido forte.

— Melhor agora — Limpo as lágrimas que caem quando me sento.

— Está tudo bem querida? Você não esperava essa gravidez, certo? — Toca meu ombro com carinho.

— Não agora Lisa, porém estou mais confusa do que triste — Admito em meio às lágrimas. Sinceramente não sei por que choro... Depois de muitas horas pensando já me acostumei com o bebê — Me responda uma coisa...

— Claro. O que quiser.

— É um bebê só desta vez, certo? — Lisa ri alto.

— O exame que fizemos apontou uma quantidade de hcg correta para ao tempo de gestação, mas você poderá ter certeza daqui a umas semanas — Sorrio e seco as lágrimas. Apanho minha bolsa e ficou de pé.

— Agora vem à parte difícil... Contar ao papai! — Mostro o celular para Lisa.

— Tenho certeza que seu noivo irá ficar muito feliz de poder ficar ao seu lado nesse momento. Vai ser algo muito bom para ele, não é?

Saio do hospital pensando nas palavras de Lisa. Lorenzo tem tudo para ficar feliz, afinal, sempre diz que se arrependeu de não ter conseguido acompanhar a gravidez dos gêmeos. Sento-me no banco do motorista em meu carro e escrevo uma mensagem para minha mãe.

Mãe, não conte nada aos gêmeos sobre o bebê. Já estou chegando.

Hora do show!

Ligo o carro e juntamente o rádio. Chove e por isso me cubro com um casaco de lã escuro. A música que toca é alguma antiga e clássica, por isso me derreto em lágrimas novamente. Sem dirigir, toco sobre minha barriga toda sentimental e isso me dilacera!

Porque fico tão sensível quando grávida, porque sinto uma agonia indecifrável no peito? É como se o tempo estivesse acabando e mal sei explicar. Posso sentir a rigidez de meu ventre e visualizar uma nova criança... Penso em Sarah e Samuel e isso me faz confusa. Não sei ao certo se desejo uma menina ou um menino e tão pouco posso deixar de amar a ideia de ter os dois.

Começo a dirigir e disco o número dele Lorenzo no visor do celular. A estrada para casa está vazia, deserta, molhada e cinzenta. Meus para-brisas se movem de um lado a outro em um ritmo constante, nervoso e formal. Suspiro. Ele atende de maneira preocupada.

— Laura? O que foi querida? Porque está chorando? — Estou chorando? Nem sequer notei! Tudo dentro de mim é confuso e incompreensível.

— Meu amor... Tenho que te contar uma coisa... — Engulo as lágrimas e vejo espirais de gotinhas batendo no vidro do carro.

— O que é? Você está bem? Estou preocupado, acho que irei para ai amanhã mesmo e...

— É melhor você vir.

— Você quer que eu vá? — Isso é novo e Lorenzo tem razão em estar surpreso. Sempre tento evitar que venha e largue suas coisas, mas agora é inevitável.

— Sim, preciso de você... Muito.

— Está me assustando...

— Estou grávida! — Minha alegria ao dizer surpreende. Passo a rir sozinha com seu silêncio do outro lado da linha — Ainda está assustado?

— Como assim grávida ? É verdade? — Sua voz tremula em emoção — Laura...

— Tem uma criança dentro de mim! Francamente... Pensei que só teria que dizer isso aos gêmeos — Lorenzo gargalha em plena emoção e nós dois nos deleitamos com o momento.

— Estou feliz! Quero dizer... Vai ser incrível! Eu te amo! — As palavras dele são embaralhadas e engraçadas — Não posso crer que a vida me deu também essa nova chance!

— Também te amo e também não posso crer! Tudo vai dar certo!

Tudo iria dar certo se não fosse uma luz absurdamente forte que me cegou na hora em que meu carro se chocou contra outro que vem pelo caminho. Não sei de mais nada após aquele momento, pois tudo se apagou quando o celular caiu de minha mão e meu corpo se chocou em algum lugar.

O mundo se tornou um espiral de coisas sem sentidos e mergulhei em uma escuridão longa e nebulosa pensando somente em uma coisa... Meu bebê.

 


Capítulo Vinte e Quatro

 

Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre

junto de seu filho e ele, velho embora,

será pequenino feito grão de milho.

— Carlos Drummond de Andrade


Três meses depois...


— Apanhou sua mochila Samuel?

— Sim papai, está aqui...

— E você Sarah? Já arrumou tudo? Os cadernos, a bolsa... ?

— Sim papai, está certo. Sabe onde está minha lancheira?

— Ah é! O bendito lanche... Um segundo! Peguem os casacos e me esperem na porta. Não saiam ainda — Corro para a cozinha do apartamento e retiro de cima do balcão as duas lancheiras que Jade deixou na noite anterior. Uma rosa e uma azul. Checo se está tudo certo e apanho as chaves do carro sobre o balcão. Volto para a sala correndo — Tudo certo... Vamos!

Abro a porta depois de entregar as respectivas lancheiras a seus donos.

— Papai, o nosso casaco! — Relembra já quando fecho a porta.

— Vocês não pegaram? — Volto a abrir a porta olhando para um Samuel confuso. Usa seu uniforme escolar e parece limpo — Já volto... — Abro a porta com pressa e pego os dois pequenos casacos.

— Fica muito alto papai. Nós não alcançamos! — Como não calculei que eles são pequenos demais para pegar os casacos em uma altura tão grande? Abaixo-me a frente de Sarah e a ajudo a encaixar as mãos pequenas nas extremidades do casaco vermelho. Ela não me olha nos olhos, apenas se encaixa na roupa.

— Desculpe querida... O papai apenas esqueceu! — Sorrio e ela faz o mesmo. Segura em meu rosto assim que está perfeitamente embalada em sua roupa.

— Você é muito bom. Está cuidado da gente enquanto mamãe não está aqui.

Fecho os olhos sentindo apenas a palma pequena de Sarah contra meu rosto. Não quero mais pensar, quero que tudo fique calado depois de tais inocentes palavras.

Enquanto mamãe não está aqui.

Meu coração para de bater com as lembranças e não posso me conter... Fiz de tudo para resistir às lágrimas, mas a menção de Laura depois de todos esses dias me levou a baixo. Nem sequer falaram dela depois de ouvirem sobre o acidente... Sarah teve que quebrar meu coração de novo.

— Não chore papai... Não chore! — Ouço a voz de Samuel ao meu lado — Está vendo o que você fez? Não é para falar da mamãe! — Ele repreende a irmã. Abro os olhos e vejo Sarah remover a mão de minha face com os olhos verdes transbordando mais do que os meus.

— Desculpe-me... — Choraminga esfregando os olhos — Eu não queria falar papai, não queria...

Puxo Sarah para perto de mim com cuidado abraçando-a perto de meu peito o máximo que posso. Faço o mesmo com Samuel... Não posso ser tão duro. Não posso repreender o garoto por uma saudade que pertence a nós três, uma dor compartilhada. Sarah encara a dor mais facilmente por ser doce e muito ingênua, Samuel vê tudo com raiva por ter sido jogado na realidade tão terrivelmente e por minha parte não sei como lidar. Prefiro morrer ao lado de Laura, mas sei que essa não seria sua vontade.

Laura viveu para os filhos sempre e não seria justo eu fraquejar agora. Não seria justo dar o braço a torcer e me entregar de primeira, sendo que ela passou por barras tão pesadas quanto e sempre esteve ao lado deles. Sempre!

Agora é minha vez de retribuir... Minha vez de ser o forte.

— Tudo bem crianças, tudo bem — Os dois me abraçam da mesma forma. Apertado. Com força. Com lágrimas. Samuel também chora... Perguntou-me se ainda posso suportar depois dessa — Não é assim. Vocês tem que falar da mamãe... Ela iria gostar disso.

— Mas vovó disse que não é para falar porque te faz ficar triste — Ele se afasta de meu ombro e me olha nos olhos.

Fico em silêncio um bom tempo... Tento entender porque Jade disse isso a eles e encontro à resposta em segundos. Apenas lembro o estado calamitoso que fiquei ao entrar no hospital e receber a noticia da boca de minha sogra. A terrível noticia que evitei pensar por todo o caminho.

Lágrimas? Choque? Loucura? Foi pouco! Até agora, dias depois de tudo, não consigo acreditar que seja verdade. Penso estar imerso em um sonho ruim que em breve acabará. O problema é que o sonho nunca tem fim... Nunca desperto! Estou preso aqui e Laura também está, porém do outro lado.

— Podem falar da mamãe o quanto quiserem. Isso não me deixa triste, me deixa apenas com saudades. Vocês também estão com saudade não é? — Os dois assentem positivamente ao mesmo tempo — Nós três temos saudade.

— Ela vai voltar papai? — Sarah questiona assim que paro de falar. Somente olho-a com a dor estampada no semblante.

Ela vai voltar papai? Ela vai voltar?

Toco o rosto de Sarah delicadamente e lembro-me da primeira vez que a vi.

Mochila nas costas, boina no cabelo loiro, olhos curiosos e incertos sobre minha pessoa. Tão linda... Tão surpreendente! Nunca pensei em uma menina, porém Laura me deu uma surpresa incrível. Nunca pensei em gêmeos, mas Laura me deu alegria em dobro! Eles me disseram que Laura jamais irá voltar, mas confesso não acreditar em tais palavras. A mulher que me puxou pela mão quando a morte bateu a minha porta sempre me surpreendia!

— Um dia querida. Um dia sua mãe vai voltar — Sarah não sorri. Samuel também não. Os dois pegam as lancheiras — Vamos. Já estamos atrasados.

Dirijo um pouco até o colégio deles e não desço do carro. Estaciono no meio fio vendo o rosto tímido de Sarah voltado para a janela... Sei o que pensa. Sei por que tenta ficar calada sem realmente querer. Pensa em Laura... Pensa na saudade.

— Você vai ao hospital? — Questiona Samuel hesitante.

— Sim, vou — Sorrio sem humor.

— Podemos ir um dia?

— Talvez possa ser doloroso... — Aperto as mãos no volante. Os gêmeos no hospital... Ah meu Deus! Ver tudo aquilo e presenciar, de fato, o sofrimento e a decadência... Não sei se posso privá-los, tão pouco.

— Nós queremos sentir o irmãozinho. Você disse que se colocar a mão na barriga dela dá para sentir — Sorrio de canto. O rosto dele mostra-se esperançoso e Sarah abre um sorriso também.

— Sim... Nós queremos sentir o irmãozinho papai... Podemos ir algum dia? — Suspiro e aperto os olhos e as mãos no volante.

— Um dia — Não minto e tão pouco prometo. Eles parecem felizes. É o que querem ouvir, afinal de contas... Um pouco de esperança. Um pouco de expectativa — Bom... Até as três. Amo vocês — Os dois repetem o mesmo e descem do carro em direção ao colégio. Fico olhando-os se reunirem a aglomeração de crianças e quando noto que estão em local seguro dou a partida novamente. Lá vou eu em direção a mais um dia...

***

— Olá. Não sabia que viria hoje.

Assim que passo pela porta do hospital dou de cara com a mãe de Laura, tecnicamente, minha sogra. Está sentada na sala de frente ao quarto com uma xicara de chá grande em mãos, usa touca na cabeça e um casaco pesado. Parece mais conformada do que há uns meses atrás.

— Lorenzo. Você demorou! — Sorri de canto sem muita empolgação. Não a culpo. Sento-me ao seu lado e me ajeito mais em meu casaco grande — E os gêmeos?

— No colégio... Demorei exatamente por isso. Fiz confusão com as lancheiras e depois... — Me detenho. Devo falar a ela o que Samuel e Sarah me pediram? Não sei ao certo se irei atender ao pedido e talvez seja melhor evitar uma discussão — Estão bem na medida do possível — Ajeito a frase.

— Laura estaria muito orgulhosa... — Comenta depois que um silêncio perturbador toma conta da sala. Olho em sua direção um pouco encabulado — Quero dizer, orgulhosa de você com eles — Move a xicara para espalhar o conteúdo do fundo. Encosto a cabeça na parede e fecho os olhos com as palavras dela — Está fazendo um ótimo trabalho nesses últimos meses. Está sendo um ótimo pai.

Um ótimo pai.

Antes do acidente pensei em várias hipóteses de futuro. Pensei em uma casa linda que já estava quase pronta, pensei em um cachorro e, quem sabe, mais uns dois filhos. Minha mente esperava brigas, é claro, como todo casal, e também muita complicação. Laura é uma ótima mãe. É uma mulher doce, maternal e delicada por natureza, já eu sou um caos com crianças e um idiota em assuntos do coração.

Como irei ser bom o suficiente para meus filhos? Temi tudo e esperei qualquer coisa, mas jamais algo como o que houve. Nunca me vi sozinho desta forma, nem mesmo nos nove meses de martírio que passei doente. Nunca cogitei estar enfiado em um hospital por dois meses inteiros ao lado de Laura por causa de um maldito acidente.

Por quê? Pergunto-me todos os dias...

Já não está boa a dose de sofrimento? Já não foram suficientes todas as lágrimas que derramei e todo o inferno que foi minha vida antes de encontra-la?

Não encontro à resposta e tão pouco consigo entender o sentido de tudo isso.

Fúlvio sai do quarto e entendo porque Jade está aqui fora. É permitido entrar uma pessoa por vez e seu marido estava lá dentro. Ele tem lágrimas nos olhos e parece chocado... Surpreso. É a primeira vez que o vejo vindo visitar a filha e sei que nunca antes teve essa coragem. É realmente dilacerante ver alguém que ama nesse estado.

— Lorenzo... Bom dia — Nitidamente envergonhado, seca as lágrimas que derrama. Tento não constrangê-lo. Sorrio de lado em um cumprimento — Demorei muito? Pode ir.

— Não, tudo bem. Vou ficar aqui até as três... Jade pode ir — Ofereço meu lugar na sala para ela, que recusa ficando de pé com sua xicara.

— Estamos aqui desde as cinco da manhã e nem assim conseguimos pegar um chutinho do bebê — Torce os lábios em nítida tristeza — Você o sentiu Fúlvio?

— Para falar a verdade nem sequer me lembrei de que ele chuta... Parece ser uma coisa surreal ter uma criança lá — Deteve-se e olhou para o chão — É inacreditável ter uma alegria junto a uma infelicidade tão grande.

Fúlvio resumiu tudo em uma única frase, juntamente com todos meus sentimentos. “É inacreditável ter uma alegria junto a uma infelicidade”.

Despeço-me de meus sogros com um aceno e seguro a maçaneta da porta por longos segundos. Todo dia é dia. Todo dia uma nova esperança. Adentro ao quarto escuro e antisséptico. O local é absurdamente branco em todos os aspectos e nas paredes de frente para o leito existem desenhos colados com durex... Desenhos coloridos com flores, raios de sol e quatro pessoas de mãos entrelaçadas. Sei o que significam e não preciso perguntar. Ao lado, bem pequeno, há um desenho de mais uma pessoinha, uma caricatura pequena. Foi Sarah quem incorporou o bebê ao desenho quando lhe contei que na barriga de sua mãe havia um irmão.

“Como pode haver um irmão na barriga da mamãe se ela está dormindo?”

Questionou exatamente o que eu temia... A pergunta sem resposta!

Nem os médicos conseguiam explicar como Laura conseguia manter a gravidez após seu acidente. Ninguém acreditava que essa criança iria vingar, mas depois de três meses a medicina continuava a ser desafiada. Meu filho ainda cresce... Meu filho está vivendo... Até quando?

Não é possível saber... Não é possível para ninguém acreditar quando conto que Laura sofreu um acidente e teve lesões cerebrais, porém estava grávida e ainda carrega o bebê. O quarto é frio, pesaroso e assemelha-se a um abismo profundo para quem tem medo de altura. As cortinas mal se movem e nem mesmo a chuva forte que cai do lado de fora do vidro é capaz de colocar um pouco de vida ali.

Vida.

O que é minha vida agora, se a pessoa que mais amo está em outro mundo ainda presa a este?

Dou a volta na cama alta para me sentar na poltrona cinza ao lado do leito e ouço somente o barulho do aparelho de monitoramento. Olho para o corpo de Laura sobre a cama e não consigo deixar de desferir um sorriso. Suas bochechas pálidas, para mim, ainda tem cor. Sua pele absurdamente branca, para mim, ainda reluz. Suas mãos, embora frias, para mim ainda são quentes e agradáveis... Laura, apesar de ter aparência mórbida, para mim ainda é o amor de minha existência e meu motivo de tudo .

Estico o braço delicadamente e roço sua mão fria... Aproximo-me e beijo delicadamente seus dedos pequenos, deitando minha cabeça ali e sentindo um pouco dela perto. Nem que seja que apenas fisicamente.

— Olá — Sussurro na imensidão silenciosa — Eu falei de você para os gêmeos hoje, sabia disso? — Ergo sua mão e a espalmo em minha bochecha. É ridículo, mas me faz se sentir bem de uma forma que não consigo compreender a três meses. Encaro seu rosto... Os olhos estão fechados e a boca desenhada em uma linha rígida. Não aparenta tranquilidade como os demais que descansam. Parece estar impaciente e inquieta como se estivesse ali, mas não pudesse abrir os olhos apenas para cumprir um protocolo. Apenas porque é impulsionada por uma força maior para não fazê-lo.

Por quê? Porque não pode voltar para mim, querida?

A casa em Madrid está vazia. O padre ainda espera um milagre para realizar nossa cerimonia... Um milagre!

Deslizo os olhos para seu ventre e suspiro pesadamente, mudando o olhar de direção. Por um segundo me esqueci... Não estamos aqui sozinhos. Quando me lembro da criança me recordo também do apito que ressoa ao lado do aparelho de coração de Laura. Um barulho bem mais rápido, assemelhando-se a um ressoar maior que o dela.

Trata-se de outro coração resistente que não se entregou. Um coração monitorado que desafia a todos os outros. Desço a mão lentamente e toco sobre a barriga coberta pela roupa de hospital. Sinto um movimento ondular sob meus dedos e estremeço ao me lembrar da bomba que me jogaram assim que cheguei.

“Sua esposa está em coma, porém ainda carrega o bebê. Nós precisamos removê-lo, porém não podemos fazer isso sem sua permissão. Você escolhe removê-lo para a maior segurança dela ou arriscar?”

Os médicos me enumeraram os riscos, mas nada me fez mudar a decisão. Laura sempre lutou pelos filhos e agora não seria diferente.

Nada mudou. Nada se alterou nem para bom nem para ruim. Escolhi arriscar, mesmo que doa. Pensei por uma noite todo sobre qual decisão tomar e estive a um tris de mandar que tirassem a criança dela, mas naquela noite tive um sonho. Um sonho que me fez mudar de ideia.

No sonho ouvi nitidamente o barulho de dois corações ressoando ao fundo, o de Laura e o da criança. No sonho Laura vinha a mim vestida com seu vestido favorito e trazia atado a sua mão um pequeno anjo. Nós nos olhamos e ela sorriu me apresentando a criança. Não pude distinguir o sexo, mas tinha asas, era claro e brilhava próximo a ela. Olhava-me com um sorriso doce e cachinhos dourados caindo ao redor do rosto.

“Veja só meu amor... Olhe só quem encontrei! Podemos levá-lo para casar? Ele precisa de uma família e nós podemos amá-lo. Diz que sim... Não irá se arrepender! Olhe seu rosto, veja como é nosso... Eu o amo”.

Abri os olhos exatamente naquele instante. Olhei para o lado de vi Sarah e Samuel dormindo na cama como dois anjos. Anjos. Não tive como ser a favor de interromperem a gravidez e sequer tive forças.

Movo a mão sobre o ventre dela com delicadeza. Cada vez que faço isso a sinto aqui, bem perto de mim. Se fechar os olhos posso vê-la parada atrás de mim com suas pequenas mãos em meus ombros e os cabelos escuros espalhados ao redor do rosto como uma cortina perfeita. Vejo-a vestida de branco com suas sapatilhas e a aliança dourada que lhe dei descansando no dedo anelar.

Tudo é um sonho e devo me contentar com a dura realidade que me cerca. Estou sozinho agora.

Por quanto tempo? Como? Até quando?

***

Dias depois...


Sarah está doente.

Quando pensei que não poderia piorar, a baixinha me vem com essa história de asma emocional e uma febre altíssima que nem os médicos conseguem explicar. Minha sogra disse ser um ataque normal em Sarah, uma vez que é uma menina muito sensível e qualquer alteração em sua vida que provoque um abalo emocional forte pode acarretar transtornos em seu lado físico. Os médicos não acharam nada anormal nela, apenas me pediram para dar muita atenção e estar próximo.

Os gêmeos nunca antes ficaram tão longe da mãe. Nunca antes se sentiram tão confusos e sozinhos. O mundo desabou na cabeça deles de uma hora para a outra.

Samuel não é mais o menino feliz de antes. Às vezes tem surtos e não brinca, não joga videogame, apenas fica sentado em frente à televisão com o rostinho apoiado no joelho e a carinha triste. Vê todas as novelas que passa e fica quieto, não sorri e tão pouco fala muito. Tento fazer com que leve uma vida normal, porém não sou controlador de tudo. Uma hora eles fraquejam. Quando percebem o risco da situação não conseguem mais manter para si o medo e a saudade. Não posso culpá-los e tão pouco devo.

— A água está quente? — Olho-a parada ao lado da banheira cheia usando uma grande camiseta.

— Sim filha, está quente. Você não pode tomar um banho muito quente também... Sua temperatura precisa abaixar e não subir — Ergo a manga da camisa e sinto novamente a temperatura morna da água. Meus dedos mergulham na água e Sarah observa com um biquinho nos lábios infantis — Anda. Entre.

— Não quero — Sua voz é embaraçada. Ela quer chorar. Suspiro e me ajoelho ao lado da banheira bem a sua frente. O que mais posso fazer? Olha-me com os olhinhos verdes brilhando em lágrimas... Lágrimas que se formam por minha causa.

— O que posso fazer Sarah? — Abaixa os braços e uma lágrima cai em sua bochecha. Ergo a mão e a seco com cuidado — Estou tentando — Sussurro com a mão em seu rostinho de boneca — Tentando. Sei que não sou tão bom quanto sua mãe, sei sim... Sei que sente saudade dela e que dói muito toda essa distância, mas... — Ergue a mão pequena e toca a minha sobre seu rosto. Fico paralisado por um temo admirando naquele inocente olhar alguns traços de Laura. Toda sua compreensão e toda sua doçura são traços dela. Suspiro — Nós temos que seguir em frente enquanto Laura não está aqui porque é isso que ela iria querer — Soluça e deixa mais lágrimas caírem. Novamente as seco — Laura é muito melhor do que eu e você não sabe o que eu daria para estar no lugar dela e não precisar ver você e o seu irmão sofrendo desse jeito!

Não terminei.

Sarah me abraçou pelo pescoço e começou a chorar ainda mais contra minha camisa. Apertei os olhos e demorei belos segundos para envolvê-la também. Laura é muito melhor do que eu. O que sou? O que consigo ser? Não sou digno de Sarah e Samuel, nem mesmo dela! Daria tudo para estar lá sofrendo mais um pouco.

— Não fale isso papai. Eu te amo muito e não quero que você durma para sempre com a mamãe — Afasta-se. Segura em meus ombros e coça os olhos com a mãozinha — Que bom que você voltou! Por favor, não vá embora.

— Não, isso nunca! Vou ficar aqui com você para sempre! Para sempre! — Pareceu aliviada e assentiu um pouco mais calma — Agora vamos... Banheira. Banho.

Não hesitou. Removeu sua roupa e a coloquei sentada em meio à banheira com alguns brinquedos ao redor. Sento-me ao lado da banheira e ajudo-a a lavar o cabelo para distraí-la. Nunca me imaginei dando banho em minha filha e preocupado com meu filho. Não é sobre cuidar deles, mas lidar com eles. Enxaguo seu cabelo loiro e brinco um pouco com ela. Ficamos movendo os patinhos pela superfície da água e simulando uma conversa boba... Ela sorri e diverte-se. Finalmente a febre baixa e removo-a da banheira.

Samuel está dormindo no sofá com um urso de baixo do braço quando coloco Sarah na cama de Laura e faço o mesmo com o garoto. Sento-me perto deles e ali permaneço.

É tudo o que posso fazer. Ficar . Talvez essa seja minha lição. Ficar com eles . Com meus corações resistentes.

 


Capítulo Vinte e Cinco

 

“O milagre não prova o impossível.

Serve, apenas, como confirmação

do que é possível.”

— Autor Desconhecido.


O tempo voa, Sarah e Samuel crescem e Laura não está aqui.

Mais dois meses se foram e o verão chegou à pacata cidade de Belo Recanto, trazendo poucos raios de sol para iluminar esse local sempre encoberto. A pequena cidade que abrigou por anos minha felicidade mostra-se neste momento sem qualquer graça.

— Posso jogá-lo para o alto, bem lá em cima? — Um amontoado de folhas está preso ao chão do parque central da cidade, aquele em frente à lanchonete de sempre. O parque onde beijei Laura pela primeira vez depois de seis longos anos. O parque onde conheci meus dois filhos e conversei com eles pela primeira vez.

Uso um óculos de sol grande enquanto assisto Sarah - usando um macacão amarelo, sandálias e maria-chiquinha no cabelo - jogando folhas para o alto com o irmão. Devem ser marcas do outono próximo, não sei ao certo, mas as flores são largas, bonitas e colorem o ambiente. Não sou imune à beleza deles. Retiro o celular do bolso e capto fotos diversas como fiz ao decorrer de todos esses meses.

Como as crianças podem mudar tanto em tão pouco tempo?

Pouco tempo... Já são cinco meses! Cinco! E eu consegui... Nesses cinco meses fui um bom pai, cuidei deles com todo meu amor e dei o máximo de mim, tudo e mais um pouco para não fracassar.

Foi incrível e ainda é...

Como consigo viver sem ela?

Sou movido à esperança.

— Sim, jogue tudo! — Sarah grita e os dois riem jogando as folhas vermelhas para o alto.

Uma mulher varre o parque do outro lado e para apenas para observar os dois brincando a minha frente e gargalhando alto. É a coisa mais linda que já vi... O sorriso deles. O som delicioso da alegria de meus filhos. As folhas lindas voando ao redor dos mesmos. Os raios de sol emoldurando seus lindos rostos infantis... Queria que Laura presenciasse este momento.

— Olhe papai, vai bem alto! — Samuel empolga-se e aceno quase hipnotizado.

Estou totalmente envolvido pela magia de instante. As folhas caem e se espalham, não há mais como reuni-las nas mãos e jogar para cima. Sem o alvo da brincadeira ambos olham para mim e apostam uma corrida até meus braços. Abro os mesmos para receber aquele ataque repentino e Samuel e Sarah se encaixam em meu abraço com perfeição, me deitando na grama e fazendo cócegas por meu abdômen.

Nossas três risadas se entrelaçam no ambiente e nesses cinco meses não me lembro de ter sorrido assim. É a primeira vez que nos entregamos a uma felicidade que nos foi retirada. É a primeira vez que nos esquecemos um pouco que seja de todo o sofrimento oculto atrás de nossos corações.

— Vamos comer panquecas de caramelo na lanchonete pai? — Sarah sugere quando resolvem me deixar respirar e saem de cima. Nós três sentamos na grama abraçados. Samuel de um lado e Sarah do outro, ambos perto de meu peito. Beijo o cabelo de Sarah.

— Claro... Agora mesmo.

Descobri, nesses meses, que sou um pai coruja. Tudo o que querem estou disposto a fazer e não recuso. Minha mãe diz que é porque ambos são educados e não exigem nada de extravagante ou errado, mas eu faço. Não os atendo porque desejo ser o que Laura foi, mas porque amo agradá-los.

Encaro aqueles dois pequenos sentados a minha frente na mesinha perto da porta com as bocas sujas de caramelo e sorrio vitorioso para mim mesmo. Os pais de Laura queriam pegar a guarda provisória dos dois enquanto Laura está em coma, porém bati o pé perante a lei e disse que não. Eu sou o pai . Os dois irão ficar comigo! Provei que sou capaz e espero continuar firme em uma posição tão difícil.

É o trabalho mais duro de minha vida.

— Papai... O nosso irmão só vem para casa quando mamãe acordar? — Ergo os olhos delicadamente para Samuel tirando a atenção de meu hambúrguer vegetariano. Meu filho me encara com total noção do que diz e sem hesitar em algum momento. Seus olhos verdes estão atentos e esperançosos. Não é algo com que se possa brincar.

— Não Samuel. Não sei quando seu irmão vem para casa.

Não sei, tão pouco, se realmente existirá algum irmão. Não sei, tão pouco, se sua mãe irá acordar! Suspiro. Não quero estragar o momento de alegria que estamos vivendo com colocações improprias.

Sou rude demais às vezes com as palavras e não é a hora certa de dizer que não existe certeza. Não existe nada além de nós três e um apartamento vazio e cheio de recordações.

Já estão pesquisando para mim uma casa maior aqui nas redondezas. A família de Laura não quer que ela vá embora de Belo Recanto e concordo. O hospital onde Laura está internada é o melhor da região e os profissionais de lá tomam todo o cuidado com seu caso. Além de uma paciente especial, Laura é funcionária e amiga de grande parte da equipe. Não poderia haver local melhor para sua estadia!

Transportá-la será desnecessário, uma vez que contratei os melhores neurologistas e obstetras que conheço para tratarem dela. O caso continua estagnado, exceto pela criança, que já tem sete meses de vida intrauterina. Os médicos acham que não demorará muito a nascer, porém fazem de tudo para segurar o bebê até os oito meses. Não é seguro trazê-lo ao mundo agora.

Saímos da lanchonete de mãos dadas e os dois querem dar uma olhada na livraria da cidade. Vou até lá guiando ambos pelas mãos pequenas e somem de minha vista em dois segundos quando entramos na loja.

Sarah vê os romances de princesa e Samuel alguns infantis. Ela é bem mais madura do que ele, minha avaliação tem razão. Caminho entre as prateleiras esperando que encontrem um livro e a brilhante ideia de falar para ambos da casa nova me passa pela cabeça agora. Estamos em um clima bom e talvez seja a hora de dizer que vamos nos mudar para um imóvel maior para caber nós três e o possível bebê. Pensando melhor, é mais simples cortar a parte do bebê. Não quero mais ilusões do que as coisas de recém-nascido que minha sogra e minha mãe insistem em comprar.

Apesar de acredita que é possível, tento não me apegar à ideia de uma nova criança. Sei que existe, mas prefiro esperar. Os dois pequenos discutem sobre um livro de capa colorida um ao lado do outro e apenas assisto. Vejo de longe que é a história do Peter Pan e o outro livro que Samuel parece querer é um com uma princesa muito bonita na capa.

O celular vibra, de repente, em meu bolso. Aquele simples barulhinho repetitivo me quebra por dentro. Peguei trauma de celular e uso apenas para o necessário. A última ligação que atendi com felicidade e entusiasmo acabou em um acidente que tirou minha vida pela metade e me levou o coração.

— Lorenzo — Sussurro com a voz gelada e dura ao colocar o fone na orelha.

— Oi Lorenzo, aqui é a Fran, enfermeira do hospital onde Laura está — Interrompo-a.

— Fran? O que aconteceu?

Minha voz é irreconhecível. Deus sabe como isso me apavora diariamente... Uma ligação do hospital pode significar o fim de tudo! O fim da linha para qualquer esperança! Engulo em seco e olho os gêmeos de longe. Ambos sorriem e folheiam as páginas coloridos do livro. Vejo as gargalhadas largas de ambos e o jeito como os olhinhos brilham de felicidade... Aquilo é um impulso do chão. Retiro força não sei de onde para continuar ouvindo aquela sentença lenta e torturadora.

— Desculpe interromper seu dia, mas você precisa vir aqui neste momento.

— O que aconteceu Fran? — Insisto de maneira tristonha.

— É a criança. Acabou de nascer.

Minha mente apaga por dois segundos e volta de repente.

— E está viva? — É tudo o que consigo perguntar em meio a tremedeira que assola meu corpo e as palpitações erráticas de meu coração parado.

— Não sei por quanto tempo, mas sim — Suspira com a voz derrotada e chorosa — Por favor, Lorenzo, venha até aqui o mais rápido que puder!

Não falo nada, apenas desligo o celular e enfio no bolso com pressa.

— Sarah, Samuel! — Chamo e os dois me encaram no mesmo instante — Vamos para a casa da vovó — Levo-os pela mão até a saída da livraria sem ouvir sequer uma palavra.

Talvez seja a expressão de dor em meu rosto que fale mais do que mil palavras. Eles sabem quando a coisa está séria e sabem quando algo vai dar errado. Por favor, que dê tudo certo!

“Não sei por quanto tempo”.

Essa bendita frase feita não sai de minha cabeça, muito menos o tom que Fran usou para proferi-la.

Busco me manter firme tentando ser frio e cauteloso. Não adianta! Não há como ser uma pedra quando as emoções me movem a mais de mil quilômetros. Jade aparece na varanda com o rosto convertido em preocupação ao me ver saindo do carro com os gêmeos.

— Acabaram de me ligar...

— Estou indo para lá. Será que pode ficar com eles? — Achei que iria dizer não. Talvez sua vontade fosse ir junto a mim, porém sei que ao ver o modo como meus olhos lutam para conter as lágrimas reconsiderou. Assentiu positivamente e pegou os gêmeos pelas mãos — Obrigado — Sussurro a palavra contendo vários significados agora. Abaixo-me e encaro os pequenos na altura de seus olhos — Papai já volta. Vou ver a mamãe e já volto. Se comportem.

Ambos se lançam para frente e me abraçam ao mesmo tempo beijando meu rosto. Beijo cada um deles e, novamente, é o que me dá força. Levanto-me com as lágrimas prestes a sair e vou à direção do carro com pressa.

É um terrível final para nosso dia de felicidade.

***

— Tivemos que interromper a gravidez devido a alterações na pressão arterial. O bebê já estava grande demais para ser suportado nestas condições e como é um caso desconhecido por todos resolvemos não arriscar. Eu sinto muito. Fizemos o melhor que pudemos.

Os olhos de Fran sobre mim são cautelosos e singulares. Triste, porém com uma pontinha brilhante de esperança. Algo dentro de mim ressuscita depois de suas palavras... Será que tenho uma chance de vencer?

— Os dois estão bem? — Sussurro. É a única coisa que me importa agora.

— Depende do que você considera bem — Cruza os braços em frente ao peito e passa a explicar. Estamos parados na sala dela totalmente silenciosa e calma para meu melhor atendimento.

— Estão ou não? — Insisto com o máximo de educação que posso ter com a situação.

— Laura passou pela cirurgia de remoção da criança com instabilidade e continua em coma. Podemos dizer que nada mudou após separarmos ela e a criança. O bebê é prematuro e não tem peso suficiente devido às condições da gravidez e está atrasado no desenvolvimento. Nasceu frágil e com problemas para respirar. Precisamos colocar na incubadora e tentar ajudar a respiração a se desenvolver — Abaixa os olhos enquanto diz. Fico olhando o rosto da japonesa com um pingo de fé apitando dentro de mim — Diria que Laura tem mais chances de acordar do coma que a menina de sobreviver.

Respiro fundo com as palavras que não me consolam em nada. Meu coração se aperta... Pode existir dor maior do que essa?

— Uma menina? — Sussurro praticamente sem voz.

— Sim. Uma menina — Sorri de canto com os olhos pequenos e firmes na posição de durona — Mas eu sugiro que não se apegue muito. É uma prematura muito frágil e todos acreditam que não irá vingar, porém faremos todo o possível.

— Está me pedindo para não me apegar a minha filha? — Coloco as mãos nos bolsos em sinal de nervosismos — Me desculpe, mas isso é impossível! Se eu não acreditar nela quem irá acreditar?

— Não é isso... — Interrompo-a.

— Eu entendi bem. A ciência não acredita nela do mesmo jeito que ninguém acreditou que Laura pudesse concebê-la — Me encara confusa como se perguntasse a si mesma onde quero chegar com esse discurso bárbaro — No entanto aqui está ela... Não forte, porém viva. E Laura também. Porque a menina iria chegar até aqui e desistir? Não creio que foi um simples acaso... Depois de tudo o que vivi nos últimos anos não posso se dar ao luxo de acreditar no acaso.

O silêncio domina o ambiente e a enfermeira-chefe olha para os próprios pés, totalmente desgostosa. Sinto-me aliviado por ter dito tudo isso. É como se houvesse lavado minha alma dolorida.

— Falo com meu lado profissional, senhor Valencia. Eu também não acredito que tudo isso seja por acaso... É obvio que existe alguma coisa por trás disso tudo, desse acidente. Laura nunca mereceu isso, ao contrário! Sempre foi trabalhadora e lutou muito por seus filhos. Duvido que com essa garotinha que acabou de nascer seja diferente. Laura lutou por ela também, mais do que por todos — Mantenho-me calado. O que posso dizer se isso é tão obvio para mim também? Tem algo por trás disso, talvez uma lição — O senhor que ver a criança?

— Por favor.

Sou guiado por um corredor imenso e antisséptico. Subo no elevador por vários andares até chegar em um local perturbadoramente triste. Temos três crianças dentro de caixas separadas e pequeninas. Rapidamente noto que dois dos três são um casal de gêmeos meninos que são pequenos demais para sobreviverem sozinhos e, ao lado dos dois, existe uma garota solitária com fios por todo o corpo e que usa uma pequena toca na cabeça minúscula. Parece ser de mentira pelo tamanho... Parece lutar contra o tempo respirando fortemente com a sonda presa ao nariz. É pálida e muito magra... Uma imagem da dor. Deliberadamente abre os olhos chamativos e me encara. Olhos escuros e conhecidos. Olhos de sua mãe.

Como ela está aqui? Como isso foi acontecer? Como é possível, depois de tudo?

Sei que não há explicação.

Stela.

Vem do latim e significa estrela. É como irei chamar essa menina que representa uma única estrela em meio à noite turbulenta. Uma vitória sobre doença, separação e ódio. Sobre a dor. Sobre acidentes. Sobre a morte! Já vencemos a morte várias vezes e ainda existem obstáculos relacionados a ela.

— Olá pequena garota. Como vai? Segue forte? — Sorrio com o rosto próximo do berço em forma de caixa. Perturbador. Doloroso. Mas é o que me resta.

Nunca me senti tão emocionado e com algo distinto batendo no peito. Existe um adorno onde posso inserir a mão e tocá-la com uma luva... Eu o faço. Delicadamente roço a ponta da luva de borracha na pele do bracinho minúsculo e inacreditável dela e sinto uma energia diferente. Uma coisa apavorante e forte ao mesmo tempo.

Deram dias de vida para ela, talvez horas. Aqueles pequenos olhos estão em mim. Olhos que não vejo há cinco meses... Existe esperança. Somente vê-la já é um grandioso milagre.

Fran toca em meu ombro. Eu preciso ir.

— Vai dar tudo certo. O papai promete — É o que sempre digo a Sarah e Samuel todos os dias antes que adormeçam ao meu lado. São as palavras de conforto que encontro para tirar um peso de cima de pequenas costas. Sei que vai dar tudo certo — Te amo muito Stela.

Olho para a enfermeira Fran e ela tem lágrimas nos olhos. A japonesa que sempre foi marrenta está se desmanchando. Ponho-me de pé e ela me olha desconcertada pela posição em que se encontra. Eu compreendo. Sem esperar, toca meu ombro novamente e me dá tapinhas amigáveis. É como um abraço silencioso ou uma demonstração de força. Isso reconforta. Isso mostra que a esperança ainda existe apesar dela me dizer que não. Antes de sairmos do local perturbador lanço uma última olhada para o bebê...

Pequena Stela, sua mãe teria muito orgulho.

O que Laura quis ensinar a Sarah e Samuel em seis anos Stela aprendeu em sua vida intrauterina. Ser forte. Persistente. Vívida. Uma vencedora!

— Quando poderei voltar para ver minha filha? — Sussurro assim que saímos e voltamos a caminhar pelo longo corredor.

— Sempre poderá vê-la, mas será difícil até ela ficar com a imunidade mais alta. Por enquanto é bom não arriscar — Descemos novamente para o andar de Laura. Paramos juntos a porta e seco as lágrimas que reuni durante todo esse tempo e agora extravasam. O olhar de Fran volta a ser cético e profissional — Como eu disse... Não crie muitas expectativas sobre Laura ou sobre a menina. Sinto muito.

Encaro-a através do espaço por uns segundos. Não escuto aquilo. É o mesmo que me pedir para morrer. Vivo a base de esperança.

— Posso trazer Sarah e Samuel para visitarem Laura?

— A decisão é sua. A carga emocional é o que mais conta, não as circunstâncias — Torce os lábios em um sorriso triste — Vou falar com a neurologista. Ela quer fazer exames em Laura para ver se a saída do bebê alterou em algo no quadro — Concordo — Com licença.

Adentro ao quarto de Laura novamente e desta vez está com a maca em posição sentada e permanece inerte do mesmo modo. Está com a barriga menor, porém ainda um pouco inchada. Não cresceu tanto, uma vez que a bebê é muito pequena. Dou a volta e sento-me no local de antes novamente. Observo-a criticamente e ajeito uma mexa de cabelo solto atrás de sua orelha.

— Ela é ótima — Sussurro com a voz doce, pegando sua mão e depositando um beijo. Sinto seu cheiro característico de hospital, porém em minha imaginação ainda é aquele perfume gostoso de flores exóticas. Ela ainda é a vívida e maravilhosa Laura — Quero dizer... Nossa filha caçula. Escolhi um nome e espero que você goste. Stela. Para combinar com os gêmeos. Sabe como é... Significa “estrela”... Ela soube sobreviver e brilha em meio a minha escuridão — Sorrio de canto levemente. Deito o rosto contra sua mão gelada. Fico assim por longos segundos — Nunca pensei que teríamos outra filha e estou muito feliz. Mesmo em tais condições você soube ser a melhor novamente... Obrigado Laura!

É tudo o que tenho a dizer. Não existe mais nada que me surpreenda depois dessa situação. Stela está aqui... Qual das duas terei comigo?

Laura?

Stela?

As duas?

Nenhuma?


Três meses depois...


— Onde ela está?

— Queremos vê-la papai!

— Posso pegar no colo? Prometo que vou segurar direitinho e terei muito cuidado com ela... Eu sei dar banho em bonecas, pai, posso te ajudar a cuidar dela! O que acha?

Aperto da mão pequena de ambos nas minhas e os carrego para dentro do hospital com uma alegria tão plena que mal sei explicar. Aquela alegria que não domina meu coração há meses... A alegria de ver a esperança se converter em realidade. Minha fé não foi em vão, muito menos as noites em claro e o sofrimento que passei durante três meses ao lado de uma incubadora em uma sala fria e sem resquícios de felicidade.

— Acho que a senhorita será de grande ajuda Sarah Valencia. O papai está aceitando tudo o que aparece... — Não paro na recepção e sigo direto para a sala da enfermeira Fran.

Sarah e Samuel desfilam ao meu lado e todos que passam por nós os saldam com acenos e sorrisos. Ambos se sentem celebridades junto a mim e caminhando graciosamente. Em três meses as coisas mudaram bastante... Em três meses a mente dos gêmeos sofreu uma drástica mudança, como se houvessem esquecido um pouco do que aconteceu com Laura. Talvez a palavra adaptados seja a mais correta.

Passaram a compreender melhor que a mãe deles não vai voltar e seguiram a vida como conseguiram, voltando até a tentar ser como antes. Eu já podia ver um sorriso esperto em Samuel, uma brincadeira mais infantil, a felicidade em coisas simples que antes não era evidenciada... Talvez Sarah estivesse mais madura por tudo isso, uma vez que conforme o aniversário de ambos se aproximava ela parecia evoluir drasticamente, porém estava seguindo o mesmo caminho do irmão... Deixava as coisas para trás e tentava se adaptar a vida agora apresentada na realidade.

Três meses depois Stela está forte e saudável como um bebê que nasceria aos nove meses. Agora já pesa três quilos e é forte o suficiente para se manter sozinha. Essa noticia sim me trouxe a felicidade. Essa noticia sim fez meu dia nascer feliz, porém o dilema retornou com a ida próxima de minha filha caçula para casa.

Samuel e Sarah são grandes e, na medida do possível, sabem se cuidar nem que seja um pouco. Quero dizer que não preciso ficar trocando frauda ou dando comida... Ambos sabem ir ao banheiro e me pedir comida quando sentem fome. Ambos reclamam e dormem sozinhos... Mas e Stela? Como irei lidar com uma recém-nascida tento que zelar por Sarah e Samuel?

Terei que ir para Madrid com os gêmeos e aceitar a ajudar que minha mãe propôs.

Não é fácil decidir por isso, uma vez que Jade está enchendo minha cabeça, porém minha sogra não pode me ajudar e tão pouco seu marido. Ambos trabalham e decidiram que não podem assumir a responsabilidade inteiramente. Já minha mãe, cansada de sofrer com a situação de Laura e cheia de felicidade e empolgação com os netos, me propôs viver com ela por um tempo em sua mansão com os três, pelo menos até que Stela atinja seus cinco ou seis anos e Sarah e Samuel já estejam na adolescência. É tentador... É o que preciso... Uma ajuda!

Olho para o lado de vejo Laura.

Como vai ficar aqui sem mim? Sem as crianças?

Laura não sabe que vocês estão aqui Lorenzo. Não tem nem ideia do que se passe ao seu redor! Você pode passar anos fora que Laura nem irá sentir falta... É difícil, eu sei que você quer acreditar que ela sente algo por você e pelas crianças, mas Laura não esta aqui. Isso é apenas seu corpo. Sinto muito.

A voz da neurologista ecoa em minha mente enquanto estou parado ao lado do leito ocupado. Se isso é apenas seu corpo me pergunto onde está sua alma e cada vez que olho para a pequena Stela tenho medo da resposta... Cada vez que vejo aqueles olhinhos escuros brilhando para mim na luz da incubadora ou o sorriso pequenino que preenche seus lábios quando faço uma careta do lado de fora estremeço por dentro com medo de que Stela seja a resposta. Medo de que Stela seja sua alma, ali, para mim.

— Pai?

Desperto do transe com a voz de Samuel vindo de baixo, do meu lado. Olho-o um tanto intrigado.

— O que?

— Podemos entrar agora? — Noto que estamos parados na frente do berçário onde Stela está ficando nos últimos dias de hospital e recebendo leite de doação, já que Laura não tem sequer uma gota. Pisco várias vezes antes de girar a maçaneta em mãos a fazer os gêmeos passarem.

Ela não está ali. Preciso de ajuda. Vou ter que aceitar a proposta de minha mãe.

Não tenho opção a não ser voltar para Madrid durante um tempo. Não quero largar meus filhos com uma pessoa estranha no momento em que mais precisam de mim e no momento em que mais necessito deles por perto. Os três são minha vida e o que tenho de mais real... Ficar em Belo Recanto não era a melhor opção agora. Laura não sabe que estamos aqui. Laura não está aqui. Nós estamos.

Sarah e Samuel estão debruçados sobre o berço tentando ver a bebê, que descansa. A enfermeira está sentada em uma cadeira ao lado e observa os três com um grande sorriso. Não era para ser essa mulher aqui, mas sim Laura.

— Papai... Ela é tão pequena! — Sarah está na pontinha dos pés para ver a bebê.

Aproximo-me notando que a mala de Stela está pronta sobre a cama esperando apenas para ir embora conosco, finalmente. Está parecendo uma boneca usando um macacão lilás e uma pequena faixa no cabelo loiro escuro, um tom mais escuro que o de Sarah e Samuel. Observo os três com um sorriso emocionado... Eu consegui. Eu resisti!

Sinto lágrimas nos olhos quando coloco as duas mãos, uma no ombro de Samuel e uma no ombro de Sarah. Os dois estão focados na irmã e sequer ligam para mim.

— É pequena, mas um dia foi menor — Sussurro. As lágrimas já queimam meu rosto quando começo a pensar em tudo o que tive que passar e no que ainda estou passando. Quando penso na trajetória até aqui...

Quando poderia imaginar que ao me aproximar daquela garota no balcão da boate estaria mexendo tão drasticamente em nossas trajetórias?

Valeu apena?

As lágrimas são uma realidade e as três crianças encantadoras a frente são a resposta.

— Veja! Ela está bocejando... — Samuel diz empolgado para Sarah — Oi irmã! Nós vamos para casa hoje... Eu, você, Sarah e papai... Vai ser legal! — A bebê desliza os olhos escuros para ele e fica encarando interessada enquanto move as mãos — Ela gosta de mim!

— Stela tem os olhos iguais aos da mãe — Comenta uma Sarah sorridente — Não é pai?

Sarah me encara e fica paralisada com as palavras proferidas. Samuel faz o mesmo e a carinha de desespero de ambos me assusta, principalmente quando percebo que não sabem o que fazer. Constrangeram-se pela menção de Laura após tanto tempo e isso me emociona. Me abaixo a frente deles e toco o rosto dos dois, puxando-os para um abraço longo. Sinto-os perto e escuto o choro de Stela.

Seu choro é vigoroso e sinal de que algo deu certo. Tudo valeu apena.

 


Capítulo Vinte e Seis


“E que a minha loucura

seja perdoada. Porque metade de

mim é amor e a outra metade... Também”.

— Oswaldo Montenegro .


Meu amor, você perdeu tanto tempo...

Nossos gêmeos já têm sete anos. Nossa garotinha a cada dia que passa se torna a criança mais doce que pisa sobre a terra. Nosso garoto aprendeu a andar de bicicleta no ultimo sábado com meu auxilio e de meu pai... Fomos ao estádio ver o Chelsea jogar e Samuel me confessou que queria ser jogador também. Eu o coloquei em uma escolinha de verão e tomara que dê certo.

Por fim - e não menos importante - Stela já tem um ano e dá seus primeiros passos e também arrisca algumas palavras. “Papai” foi à primeira delas e isso me deixou extremamente orgulhoso! Tudo só poderia ser melhor se você estivesse aqui conosco. Já faz um ano que partimos e não há sequer um dia em que eu me esqueça de você e de toda a saudade que me queima no peito.

Não há um minuto em que eu me esqueça de que jamais tivera a oportunidade de por os olhos em nossa caçula. Apesar se nunca ter lhe conhecido Stela sente sua falta. Sarah sente sua falta. Samuel sente sua falta. Eu sinto sua falta a cada batida de meu coração! Não se preocupe e não se acanhe... Enquanto eu estiver aqui nossos três bens preciosos estarão protegidos para sempre.

Por você. Por nossa história. Por todo meu amor!

Com amor, Lorenzo.

 

A chuva castiga Madrid como há muito tempo não acontecia. Sentado perto da lareira, assisto Sarah com as mãos pequenas escoradas na janela grande que dá para a rua assistindo as gotas se chocarem contra o vidro. A televisão está desligada porque nada se pode ouvir e Samuel somente aprecia o fogo que crepita delicadamente sentado perto de mim e com a cabeça deitada em minha perna. Está parcialmente escuro e somente o fogo faz luz em meio à sala quieta e tranquila, abalada pelo temporal fortíssimo.

— Vou olhar Stela... — Sussurro ao ficar de pé e acariciar o cabelo de Samuel, que quando saio se empertiga em minha cadeira.

Sarah não se move e continua olhando fixamente para além da chuva. Lanço um olhar para ela antes de subir as escadas que levam ao andar superior.

Estamos na casa de meus pais, a antiga e maravilhosa mansão dos Valencia. Ambos foram para uma viagem de aniversário de casamento no Japão e me deixaram sozinho com as crianças. Os dois realmente devem comemorar a vitória de terem reunido vinte e oito anos de casamento. Pergunto-me se irei me dar o luxo de se casar um dia...

Continuo subindo ao ouvir um trovão fortíssimo seguido a uma rajada intensa de vento. É assustador!

Um ano e cinco meses .

Esse é o tempo em que estou sem a essência de minha vida.

Apesar de terem superado o choque primário e quase nem falarem mais o nome dela, sei que os gêmeos estão gritando em silêncio e não podem ser ouvidos. Sei também que Stela procura alguma coisa além de mim quando está chorando e me encara com seus olhos castanhos e confusos.

Ela não me quer. Não somente a mim. Papai não é suficiente...

Abro a porta cor de rosa e deparo-me com a pequena sentada dentro de seu berço com a chupeta entre os lábios e os olhos castanhos bem atentos. Acordou em meio à chuva e não chorou... Stela não é uma criança que costuma chorar. É tranquila e sempre calada, talvez já tenha experiência suficiente com sofrimento para se dar ao luxo de chorar. É realmente muito parecida com a mãe. Os gêmeos se parecem comigo tanto quanto a pequena estrelinha brilha como Laura.

Assim que me vê parado perto de seu berço estica os braços pequenos e exige meu colo. Sorrio e aproximo-me. Abaixo-me e pego-a por baixo dos braços pequenos e a penduro em minha cintura, notando que está gelada de medo. Agarra-se a meu pescoço com força e deita o rosto em minha camisa... Stela é tão tímida. Tão medrosa. Tão insegura. Sei que é a falta de Laura.

— Está tudo bem, pequena estrelinha. Papai está aqui querida — Sussurro ao seu ouvido e acaricio delicadamente suas costas.

— Medo papai. Medo — As palavras são entrecortadas e encobertas pela chupeta. Olho-a e vejo naquele rosto pequenino uma vida e uma força que me consomem. Vejo ali uma esperança que me mantem vivo a cada dia e enxergo o que mais ninguém vê.

Aquele lindo bebê continua sendo a alma de Laura presente em nossas vidas.

“Você precisa aceitar que Laura não vai voltar”, dissera Jade da ultima vez que veio visitar os gêmeos e Stela, “Ela está morrendo e você e as crianças precisam de uma mulher. Porque não arranja alguém para tapar esse buraco, Lorenzo?”.

As palavras dela me feriram de tal forma que comecei a revivê-las em silêncio. Um ano e cinco meses. Nada muda. Nada acontece!

Os médicos começam a considerar a opção de desligar os aparelhos. O que vou fazer? Há cinco meses não tenho noticias de Jade ou qualquer coisa sobre Belo Recanto. Nunca mais voltei lá e nunca mais fui visitar o corpo inerte de Laura. Não é o que quero, mas tenho forças. Não é fácil para mim lembrar que a mãe de meus filhos está mais morta do que viva e quase não há esperanças.

Deixei para trás todo um mundo de sofrimento e trouxe as crianças para uma coisa nova. É o certo. É o melhor. Laura, onde estiver, irá entender. A própria me disse em várias ocasiões que nossos filhos eram a prioridade e nada deveria ser maior do que eles! Irá me perdoar? Vivo na incerteza, mas tenho plena consciência de que dou o melhor de mim e que não a decepcionei jamais.

— O que você quer? Quer leite? — Saio do quarto tentando acalmar Stela, que parece exasperada com a chuva. Ainda está envolta em minha camisa branca como se sua vida dependesse disso. Nega tudo o que digo com um aceno — Então pode ficar deitada que o papai não vai te soltar — Desço as escadas e deparo-me com a mesma cena que deixei. Samuel segue sentado em minha cadeira parcialmente adormecido em frente ao fogo e Sarah esgueirada contra a janela molhada — Sarah? — Sussurro, porém ela não se vira.

— Essa garota é maluca... — Diz Samuel abrindo os olhos de repente. Ao vê-lo Stela estica os braços pequenos em sua direção e ele a acolhe junto dele. Stela o abraça e ambos ficam sentados na poltrona juntos — Acha que está vendo fantasmas.

Lanço um olhar curto para Sarah, que não se move. Suspiro e aperto os olhos indo em direção à cozinha apanhar uma mamadeira para Stela. Ela não comeu nada antes de dormir e precisa se alimentar.

Apesar de um ano ter se passado desde seu nascimento ainda é muito magrinha e frágil. Precisa de cuidados especiais. Stela e Sarah. As duas são sensíveis ao extremo e totalmente ligadas a uma força que desconheço. Sarah sempre sabe quando algo vai acontecer e fica diferente. Stela, ao contrário, fala sozinha com algo invisível. Dizem que é coisa de criança, porém não coloco tanta fé. Em certa noite a bebê, então deitada em minha cama ao lado dos irmãos, ria para o nada com muita vontade e felicidade nos olhos escuros. Quando questionei algo, Sarah me deu a seguinte resposta: Ela está falando com um anjo e ele diz que mamãe vai voltar.

Foi à única vez em meses que qualquer um deles mencionou Laura diretamente.

Volto para a sala e coloco a mamadeira nas mãos pequenas de Stela, que sorri amigavelmente para mim e apanha a mesma levando aos lábios.

— Quer comer Samuel? Pelo jeito Annie não deixou jantar para nós hoje... — Sugiro me sentando a frente deles.

— Não. Tudo bem. Estou sem fome — Garante deitando a cabeça ao lado da de Stela.

— Sarah? — Encaro-a esperando uma reação. Nada. Segue concentrada e quieta — Sarah?

— Não adianta pai... Deixe-a! — Insiste Samuel — Está chovendo muito não é? — Me encara desejando desviar o foco de Sarah.

Samuel segura a mamadeira de Stela e seus olhos verdes brilham na luz fraca do fogo que tamborila no cômodo. Uma ternura gigantesca de apodera de mim quando me recordo de que meu garoto está sendo o mais fiel a mim entre os três. É demasiadamente gratificante não me sentir tão só tendo duas garotas lindas dentro de casa para tomar conta.

— Papai... Tem alguém lá fora olhando para mim — Sarah sussurra e estremeço da cabeça aos pés com sua voz doce e delicada.

Samuel e eu olhamos no mesmo momento em direção a Sarah, que permanece na mesma posição com as mãos contra a janela e ajoelhada no sofá. Está pálida, com as pupilas dilatadas e os lábios separados. Permaneço parado durante um tempo sustentando seu olhar calmo, porém logo me levanto e caminho em direção a ela.

— Fique quieta — Sussurro chegando perto. A chuva está mais intensa em contraste com o dia nublado e cinzento do outro lado do vidro. Paro ao seu lado sem me mostrar na janela — Há quando tempo alguém está te olhando?

— Não sei — Aperto as mãos em punhos ao lado do corpo. Estou sozinho nessa casa gigante sem meus pais. A segurança fica mais a frente, ou seja, a pessoa que está encarando Sarah teve de passar por um batalhão de homens de preto. Quem? Delicadamente afasto Sarah da janela. Posiciono-me ao lado dela e aperto os olhos para ver alguma coisa — Está bem ali papai, parado no meio da chuva — Aponta com seu dedo pequeno em direção a um ponto distante.

Perfeitamente vejo a figura de uma pessoa delineada na vidraça úmida, porém sou incapaz de distinguir quem é. Encontra-se a uns dez metros de distancia e usa roupas escuras. A pessoa realmente olha em direção a casa sem desviar, encarando e esperando. Engulo a respiração. Olho para baixo de mim e vejo Sarah, com metade de minha altura, espiando no vidro. Atrás está Samuel carregando Stela, que parou de tomar sua mamadeira e está empertigada entre nós.

— Vejo também — Samuel tem a voz amedrontada — Está olhando para nós.

Afasto-os de uma vez e os três me encaram assustados. Seja lá quem for está esperando algo de nós. Quer alguma coisa aqui e sabe muito bem para onde olha. É claro que vou lá... É claro que irei tirar satisfação! Ninguém vai ameaçar meus filhos desse jeito e sair impune. Ninguém irá perturbar nossa paz já ameaçada.

— Samuel suba com suas irmãs e fique no quarto de seus avós. Tranque a porta e não saia de lá até eu chamar! Qualquer um que queira entrar e não seja eu, não deixe. Se tentar abrir a porta, corra e tranque-se no quarto secreto — Ele assente e puxa Sarah pela mão. Eles correm escada acima, mas ainda ouço a voz de Sarah.

— Tome cuidado papai, por favor — Pede com a voz chorosa. Eles somem na escada e ouço o barulho da porta. Sei que no quarto de meu pai estão seguros, uma vez que o quarto secreto foi projetado exatamente para casos de roubo ou invasão domiciliar.

Com cara coragem me dirijo até a porta e destravo-a. Não tenho nada para me defender, porém tenho forças. Não sei de onde, porém as tenho.

Talvez pensar que os três estão lá em cima precisando de mim me mova... Retiro a camisa, fico com calça jeans preta e uma regata branca para me molhar. Em segundos me encharco de água fria e sofro da sensação cortante que me persegue quando as gotas me tocam. Caminho em direção à pessoa com a visão turva e embaçada pela chuva. Meus passos são desferidos duramente enquanto sigo encarando a figura.

Tento formar palavras para despejar contra o invasor, porém tudo ou qualquer coisa dentro de mim morre quando noto de quem se trata.

Detenho-me a dois metros da figura e minha respiração para. Tudo ao meu redor morre

O que isso significa? Será que morri e mal percebi? Será que alguma coisa está totalmente desregulada em meu cérebro? Levo às mãos a cabeça e esfrego o cabelo. Aperto os olhos para ver novamente e dou um giro no mesmo lugar... Deus.

Não se trata de um invasor, mas sim de uma invasora.

Não se trata de um estranho, mas sim de uma pessoa muita conhecida.

O choque presente em mim devora tudo ou qualquer sanidade e capacidade de raciocinar. Choro. Lágrimas caem pesadamente em meu rosto enquanto contemplo aquele rosto delicado, lindo, degradado por dor e saudade. Aqueles olhos que vejo todos os dias ao olhar para Stela, minha pequena fagulha de esperança. Um sorriso que jamais deixarei para trás. Um coração batendo que me manteve firme até aqui, sempre e sempre.

Estou engasgado em palavras. A única coisa que consigo fazer é chorar e me ajoelhar aos pés dela, ali, em meio à chuva e com o coração doendo. Doendo porque se recompõe. Encaro seu rosto sem qualquer força que me mantenha em pé diante da situação.

Estou subjugado por meu próprio amor.

Olho-a novamente e está ajoelhada a minha frente agora com a mão pequena sobe para meu cabelo e toca-o delicadamente. Aperto os olhos com força pela sensação que me rasga o peito e deito-me contra o sonho que nutri por tanto tempo. Seus olhos grandes me olham dilatados e bonitos. Sequer a chuva nos separa, muito menos as lágrimas e todo o resto entre nós! Toco seu cabelo escuro colado ao rosto e sua pele tão branca quando a de Stela, Sarah e Samuel...

Sua alma não se foi. Sua alma está aqui! Agora entendo que Sarah, Samuel e Stela são apenas parte dela. Parte da alma da mulher que amo fundida a parte da minha.

— Acaso isso é um sonho? De onde foi você saiu? — Ela descansa os dedos sobre meus lábios e cola a testa na minha. Nós dois ali, sob a chuva. Aperto os olhos fortemente.

— Perdoe-me.

É tudo o que diz. É tudo o que me basta.

 

Laura


Depois de tanto tempo vejo uma luz ao fim do túnel.

Uma pequena rajada rápida e intensa de luz límpida e forte. É branca, agradável e densa... Acalma-me.

Onde estive esse tempo todo?

Sinto uma paz interior profunda, parece que dormi por muito tempo e agora estou renovada. Empurro contra a luz e consigo ressurgir dela enquanto minha cabeça dá voltas e mais voltas. Abro os olhos, finalmente, e olho para os lados.

Onde estou?

É um quarto de hospital branco, claro e antisséptico. Fios e mais fios estão ligados a mim, porém não me sinto mal com eles. A única coisa desastrosa é que estou impossibilitada de me mover por causa deles. Estou respirando por uma tudo, que coisa mais estranha! Posso fazer isso sozinha, posso sim.

Questiono-me o porquê de estar aqui.

Fecho os olhos novamente tentando voltar para onde quer que esteja antes... Nada. Estou acordada e movo-me com cuidado. Passo a língua nos lábios e delicadamente tento mover todo meu corpo aos poucos. Alguns desenhos estão colados na parede branca.

Desenhos... Crianças... Meus filhos! Lorenzo... Minha gravidez. Aperto os olhos. Não.

Escuto um barulho vindo da porta. Olho e paraliso quando vejo dois homens de branco me olhando em total pânico. Ambos paralisaram também e me encaram com surpresa. Sinto as lágrimas em mim e meu rosto banhado por elas.

— O que houve comigo? — Sussurro para os dois médicos que desconheço — Onde eu estou? Onde estão meus filhos? Onde está Lorenzo?

Muito tempo se passa enquanto me fazem perguntas. Examinam-me em todos os lugares e me submetem a exames. Tudo é uma loucura e ninguém me diz nada, apenas pedem calma. Minha cabeça dói, mas de preocupação! Não vejo ninguém e não reconheço ninguém!

Porque Lorenzo não está aqui? Minha mãe aparece quando as coisas se acalmaram. Sinto-me sozinha, porém o abraço apertado e as lágrimas dela me reconfortam... Mamãe. Meu pai também está e pela primeira vez durante toda minha vida chora por causa de mim. Ambos não parecemos muito diferentes e não estou tão diferente também, apesar de pálida. Deixaram-me contemplar meu rosto no espelho e constatei por mim mesma que o tempo não foi tão longo assim.

— Oh minha filha, eu pensei que nunca mais iriamos te ver assim, com vida! — Toca meu rosto delicadamente, com amor e cuidado. Apenas olho para ela.

— Por quanto tempo eu dormi? — Questiono vendo-a pegar em minha mão. Meu pai está atrás dela de braços cruzados e chorando... É tão estranho. Ambos me encaram com certa cautela e ela mede as palavras — Diga-me de uma vez! Por favor, quanto tempo se passou?

— Um ano — É meu pai que me dá a resposta terrível. Um ano! Meus lábios se separam em total espanto.

— O que aconteceu comigo? Como vim parar aqui? — Questiono tudo o que tenho vontade e o que os médicos se recusam a me reportar.

— Um acidente de carro. Não se lembra? — A voz de meu pai soa triste e entrecortada.

Acidente de carro.

A pequena frase me faz recordar um momento terrível. Vejo a estrada e o caminhão... Escuto a voz de Lorenzo do outro lado da linha... Então apago.

— Onde está Lorenzo? E os meus filhos? — A pergunta os assusta. O olhar que trocam é doloroso e sem muito nexo. Insisto — Onde eles estão? Porque não estão aqui?

— Todos estão bem, Laura, e não estão aqui porque estão em Madrid com os pais dele — Travo-me.

— O que estão fazendo lá? — Não estou alterada, somente confusa. Talvez seja por isso que meu pai continua falando comigo.

— Foram morar lá depois... Depois que... — Minha mãe o cutuca fortemente. Tem algo ali que ambos não querem me dizer — Depois de um ano.

— Por quê? — Sussurro com pena.

— Porque pensamos que você nunca mais iria voltar. Porque Lorenzo tem os pais em Madrid e eles são ricos... A família de Lorenzo pode dar tudo às crianças e é ao lado do pai deles que devem estar — Sustento o olhar sincero de meu pai. Lorenzo ficou com os gêmeos... Ele fez isso mesmo? É inacreditável! — Lorenzo está sendo muito bom para eles e fez o melhor.

— Meu Deus...

— Não ligamos para eles ainda. Queríamos te ver primeiro para depois contar a Lorenzo. Eles já sofreram demais esperando para terem outra esperança quebrada — Respira profundamente olhando minha mão pálida — Você quer que liguemos?

— Não.

***

Removeram os fios e me devolveram a vida.

Meses se passaram desde que acordei e desde então não permiti que meus pais dissessem sequer uma palavra a Lorenzo sobre meu retorno.

Ambos foram atenciosos comigo como nunca antes e arrumaram totalmente meu antigo apartamento. Quando voltei para o mesmo encontrei do exato modo como era antes de tudo isso. Pequeno, porém aconchegante. Ajeitado, limpo e cheio de recordações. Jade e Fúlvio se foram depois de muita insistência. Posso me cuidar sozinha e já não preciso de ninguém me seguindo para cima e para baixo. Devo retomar minha vida e ainda maquino um jeito de me enfiar novamente na vida de Lorenzo e de meus filhos. Tudo mudou.

Caminho pela sala arrastando a mão pela prateleira de fotografias. Paro diante de uma linda imagem onde estão Sarah e Samuel com uns três anos... Lindos, rosados e aloirados. A cara do pai!

Meu peito se infla de saudade, mas tenho a certeza de que ambos estão bem. Jade me assegurou diversas vezes que Lorenzo está tomando conta deles com muito carinho e não lhes falta nada. Tenho plena certeza que nesse um ano e cinco meses em que estive longe meus filhos foram muito bem tratados. Volto a caminhar pelo apartamento vazio e repleto de saudade. O quarto dos gêmeos está vazio e triste. No de Sarah só restam às paredes rosadas e no de Samuel os pôsteres de futebol. Se foram.

Meu quarto...

O lugar onde tanto chorei por causa de Lorenzo está idêntico, sem tirar nem colocar. Existem agora apenas alguns envelopes sobre o criado mudo trazendo um ar de inovação. Caminho até lá com calma e apanho os envelopes me sentando na beira da cama. Olho um por um e todos possuem o mesmo endereço. Vieram do mesmo local. Espanha.

Como chegaram ali? Quem os colocou em meu quarto? Jade? Abro todos com rapidez... Passo os olhos pelos cartões lindamente decorados.

 

Dezembro. Cartão de natal.

Feliz natal mamãe! Queríamos que estivesse aqui e jamais nos esquecemos de você. Com muito amor, Sarah, Samuel e papai.

 

Sorrio diante da imagem linda dos três reunidos em volta da árvore. Parecem estar apenas de visita. Meu pai disse que mudaram há cinco meses. Deveriam ter ido comemorar a data com os pais de Lorenzo. Outro cartão. É de outubro e anterior ao de natal.

 

Aniversário: Parabéns pelo seu aniversário!

Desejamos passar essa próxima data ao seu lado e com muita felicidade. Sarah, Samuel e Lorenzo.

 

Na foto os gêmeos estão maiores. Outubro... Eles já têm sete anos! Um cartão de férias que nada diz. Talvez seja uma lembrança... Também existem várias cartas de Lorenzo, porém a primeira que abro já é suficiente para fazer todo meu mundo desabar.

 

Hoje o dia está nublado. Sarah tem alegria a tudo isso, mas insistiu em me ajudar a encher os balões. É Outono... O primeiro aniversário de Stela chegou e todos estamos empolgados. Sem você, meu amor, qual é a graça de tudo?

Qual é o sentido de tudo?

Tento me reerguer com a ajuda deles e funciona às vezes, talvez por uns segundos. Os três me movem com a ideia de que você irá chegar a qualquer momento pela porta da frente e se juntar a nós. Somente assim essa dor aguda que se propaga em meu peito irá passar. Tanto tempo se passou, mas não há só um dia em que eu não pense em você. Sei que se um dia ler essas cartas vai se cansar de ver essa frase em todas elas, mas não posso evitar escrevê-las.

Eu te amo. Nossos filhos te amam e eles sentem muita saudade.

Se eu pudesse fazer um pedido por Stela nesse aniversário, pediria que você não fosse sem ao menos conhecê-la. Ela se parece com você e é incrível... Ela te espera assim como eu te espero.

Por favor, não vá embora sem antes conhecê-la! Nós lutamos por ela e fizemos acontecer. De qualquer forma, te amo.

Por favor, volte para mim,

Lorenzo.

 

Já cega de lágrimas me estiquei para pegar o telefone e ligar para Madrid quando um envelope pesado caiu do bolo de cartas. Apanhei-o do chão e vi que era meu passaporte atualizado junto a um bolo de dinheiro. Um bilhete estava junto e essa entrega também vinha da Espanha.

 

Para você voltar para nós. Quem sabe um dia...

Sarah, Samuel Stela e Lorenzo.

 

Stela.

Quanto mais lia esse nome, menos tudo fazia sentido! Apesar de ter ouvido várias e várias vezes sobre o milagre da pequena estrelinha era impossível acreditar! Minha filha... Meu milagre... Saio em disparado em direção ao guarda roupa e começo a colocar roupas na mala. Tenho um destino certo. Madrid.

***

Então eu o vejo em meio à chuva e correndo para mim.

Então nós nos encaramos depois de tanto tempo e ele cai ajoelhado aos meus pés e tudo ou qualquer coisa some de minha mente.

Ajoelho-me de frente para ele também e seguro seu rosto. Beijo sua testa, sua bochecha úmida e delicadamente selo os lábios nos dele. Lorenzo me toca como se quisesse acreditar que não é um sonho e como se quisesse me pegar para si. Encaro-o também com o coração estraçalhado.

Depois de tanto tempo ainda é lindo e aquele com quem sempre sonhei. Ainda está aqui.

— Vem... — Coloca-se de pé segurando em minha mão — Vamos entrar.

Ergo-me e sigo-o até a casa. Lorenzo me guia pela mão e a todo o momento me olha como se eu fosse sumir a qualquer instante. Finalmente chegamos à entrada e fecha a porta. O lugar é tão lindo quanto me lembro... A casa dos pais dele. Apenas noto que estou batendo os dentes quando Lorenzo me estende uma toalha e ajuda-me a tirar o casaco.

— Obrigado — Digo me enrolando na toalha e fria até nos ossos. Acomodo-me a beira do sofá quando Lorenzo me faz sentar bem perto da lareira acesa. Vejo uma mamadeira jogada no sofá, porém ele já sumiu quando o procuro. Subiu.

Aguardo com os dentes batendo. Não demora nem três segundos para Lorenzo descer ao lado de duas crianças e com uma garotinha no colo. Imediatamente reconheço Sarah e Samuel... Os dois têm os olhos grandes no rosto quando me enxergam e se agarram a Lorenzo molhado e tremulo carregando a criança. Não desvio os olhos da menina nem mesmo quando os gêmeos correm para me abraçar e dizem coisas diversas.

Aquela criança... Eu estava grávida!

Como fui capaz de gerá-la entre a vida e a morte? Como fui capaz de nunca ter acredito em milagres se um deles aconteceu justo comigo?

A minha vida, assim como a de Stela, era um grande milagre!

 


Capítulo Vinte e Sete


Definição da palavra sempre: Sem cessar, sem fim e sem interrupção. A qualquer tempo. Para sempre, de maneira definitiva.


É difícil aceitar a realidade na qual me vejo inserida.

Dormi por um ano e meio e deixei duas crianças antes de acontecer. Acordei depois do que pareceu uma eternidade e me deparo com a pequena Stela aliada à soma.

Por mais que Lorenzo tenha me mostrado as fotos da gravidez, não posso acredita que tudo tenha sido real e na maneira como a pequena conseguiu se desenvolver dentro de mim em dada condição. Acaricio o rosto da pequena Stela, que dorme em meu colo, com a mente desafiando totalmente a lógica. Sou enfermeira e apenas classifico esse fenômeno como milagre.

Stela é como um anjo em meio ao caos e me apaixono por ela a primeira vista. Um pedaço de mim em meio a tanto sofrimento e algo tão puro e doce para justificar meu apego à vida. Stela é um sonho... É aquele bebê que comemorei a vitória por estar chegando. Nunca pensei ser capaz de amar alguém tão rapidamente.

— Ela já dormiu?

Ergo os olhos e vejo Lorenzo parado na sala de frente a nós. Acabou de subir com Sarah e Samuel, que ficaram comigo o tempo todo e até o ultimo segundo antes que o sono os vencesse. Não posso descrever o quanto mudaram e o quanto evoluíram mesmo que pareçam os mesmos. Existe uma maturidade além da idade deles naqueles olhos verdes agora e certamente é um reflexo das consequências da dura realidade que enfrentaram nos últimos meses.

— Sim... — Sussurro não querendo de forma alguma acordá-la.

Stela é diferente de Sarah e Samuel. Tem olhos escuros e os cabelos são um pouco mais castanhos. Olha do mesmo modo, porém se porta de maneira distinta. Não conseguiu desviar os olhos de meu rosto desde que cheguei e somente agora me dou conta que não passei sequer um momento sozinha com Lorenzo.

Ele se aproxima e retira Stela de meu colo com extremo cuidado carregando-a em seus braços até a escada. Sobe com ela sem me dizer nada e espero. Somente espero. Um arrepio estranho me percorre o corpo de cima a baixo quando me sento de frente para a lareira. Abraço a mim mesma usando uma camisa de frio de Lorenzo.

Ele ainda me ama?

Depois de todo esse tempo no escuro, ainda me ama?

Aperto os olhos e sinto o calor do fogo me dominando. É agradável e delicado. Conto os segundos para que Lorenzo volte, para que me olhe nos olhos e responda o que quero saber.

Nossos filhos ainda me amam e agora preciso dele. Pedi desculpas a Sarah e Samuel, que não souberam responder outra coisa que não fosse “nós sempre te esperamos”. Eu me apresentei a Stela e foi como se ela sempre houvesse me conhecido. Apenas colocou a pequena mão espalmada em minha bochecha e ficou por longos segundos me encarando com os olhos cheios de palavras... Ela me ama também. Ela também sempre me esperou.

E ele?

Lembro-me das cartas e de suas palavras bonitas, mas será que não houve outra? Será que serei capaz de perdoá-lo se tiver se envolvido com alguém? Não é culpa dele minha ausência e tão pouco o fato de ter vindo para a Espanha. Lorenzo seguiu a vida como conhecia e fez o melhor para as crianças.

Repudio-me em mente pelo acidente. Se houvesse sido um pouco mais atenta naquela tarde... Se houvesse olhado direito para a direção e não houvesse fala ao celular tudo poderia ter sido diferente! A gravidez de Stela não teria sido tão desastrosa, Sarah e Samuel me teriam e Lorenzo contaria com nossa união.

Desperto de meus pensamentos quando algo grande e pesado é colocado em meu colo. Abro os olhos e vejo Lorenzo parado a minha frente novamente. Ergo os olhos para ele ao pegar entre meus dedos trêmulos um álbum de fotografias colorido. Em letras tremidas vejo o nome de nossos três filhos gravados na capa. Engulo a respiração e não sei realmente se estou preparada para ver isso, especialmente quando noto que a data grafada em baixo é logo em seguida ao acidente que me tirou de orbita por um tempo.

— Registrei todos os momentos deles — Sussurra se abaixando e se sentando bem ao meu lado de frente ao fogo. Mantenho os olhos baixos no livro ignorando seu cheiro agradável, sua camisa regata e sua calça cinza. Ele está tão bonito — Fiz isso para que você não perdesse nada enquanto estava dormindo.

— Eu...

— Por favor, abra. Veja. Prometo que não irá se arrepender — Sussurra compreensivamente e próximo de meu ouvido. Mordo os lábios antes de abrir o bonito álbum e separar a capa da primeira foto. Não posso resisti e levo os dedos sobre a primeira foto assim que boto os olhos nela.

É a primeira e última foto que tive de mim, Lorenzo e os gêmeos. Foi tirada no aniversário deles de seis anos quando Lorenzo retornou. Trata-se da coisa mais bonita que já vi e o mais real para mim. Aquilo mexe diretamente em meu coração e bagunça todos meus sentimentos. Já sinto os olhos queimando quando viro a página e encontro uma foto minha em coma. É chocante ver os machucados espalhados por meu rosto e os fios ligados ao meu corpo... Sou eu?

As lágrimas já deslizam por meu rosto e aquela sensação de queimação delicada me percorrendo as bochechas. Viro a página e encontro uma foto onde Lorenzo está no quarto ao meu lado e com uma das mãos sobre meu ventre dilatado. Estou grávida. Sinto um arrepio do começo da espinha até a cabeça. Quase perco o foco, tamanho o impacto em minha alma.

As demais fotos são bonitas, alegres e até mesmo apreciáveis. Basicamente vejo Sarah e Samuel em sua formatura do jardim de infância, ambos com uma beca azul e os rostos parecidos. Vejo o primeiro dente de Samuel caindo, ele parado na porta com a boca cheia de sangue e Sarah rindo ao fundo. A próxima foto é dela exatamente do mesmo jeito e a risada de Samuel é banguela. Também sorrio perante a alegria deles... Então novamente me choco.

É mesmo Stela naquela incubadora, tão pequena e cheia de fios?

A visão é perturbadora e inacreditável. A bebê Stela que hoje vi é tão forte e bonita... A que vejo parece demasiadamente frágil! Em outra foto Lorenzo está segurando-a e alimentando-a com mamadeira. A diferença de tamanho entre o braço de Lorenzo e Stela é gritante! Isso me rasga o peito.

— A culpa é minha... — Sussurro pensando alto e me envergonhando quando noto que Lorenzo ouviu.

— A culpa é sua? —Está muito perto e posso sentir seu hálito em meu pescoço — Pode apostar que não.

Tiro os olhos do álbum dramático e o fecho com força, evitando encarar aquela dolorosa realidade da qual me ausentei por meses. Lorenzo não tem outra, afinal. Fica de pé, longe de mim, e vai até o bar no canto da sala. Tira de lá dois copos pequenos e coloca um pouco de vinho em taças de vidro.

— A culpa propriamente dita não existe quando se fala em acaso — Jogo o álbum na mesa de centro e vou até ele. Lorenzo descansa com os braços apoiados no balcão de mármore. Bebe seu vinho e não me olha. Apanho o outro copo cheio e me apoio da mesma maneira ao lado dele bebendo em goles pequenos.

Tenho que mostrar que não está mais sozinho. Agora me tem aqui. Agora tem que me ver!

— Se eu houvesse ficado contigo quando me disse que estava grávida há oito anos nada disso teria acontecido. Nada! — Seu tom de ressentimento é nítido e me parte o coração. Sei que não devo ficar bebendo por causa da medicação, mas aquele vinho doce me cai muito bem. Queima todas as minhas inseguranças quando desce rasgando em minha garganta seca — Haveria poupado todo esse sofrimento... — Abaixa a cabeça entre os ombros e aperta os olhos — Por mais que o tempo passe é difícil me perdoar.

— Se eu não houvesse aceitado beber com você naquela noite, na boate, nada disso teria acontecido.

Minha frase é breve, porém cheia de significado. Lorenzo nem sequer respira após tê-la ouvido e somente pragueja em silêncio. Ainda chove e o fogo ainda queima na lareira de maneira fraca. Tudo o que sinto é cheiro de vinho aliado a essência máscula de Lorenzo.

Espio-o pelo canto dos olhos e Lorenzo se endireita mantendo a postura rígida e presente na conversa. Chacoalha a taça e bebe mais um pequeno gole.

— Você se arrepende?

Vejo-o estreitar o olhar temendo totalmente uma resposta negativa. Já a tenho na ponta de língua e não preciso pensar muito para responder.

— Jamais me arrependeria, uma vez que meus filhos são minha maior felicidade e os três vieram de você! Jamais me arrependeria porque sua regeneração e o significado que deu a nossa história após tudo é a maior prova de amor que uma mulher pode receber. Eu te amo.

Um sorriso doce brota em seus lábios e suspira antes de virar o resto do conteúdo e bebê-lo todo. Deposita o copo no bar com certa força.

— Você sabe que não mereço o seu amor... Você sabe que... — Interrompo após virar meu conteúdo também. Sinto-me tonta, tremula e irritada de repente. Bato o corpo no balcão.

— Sei o que? Que você errou e tudo foi uma aposta? Que realmente te odiei um dia? O acidente não afetou em nada minha memória — Tenta dizer algo — Agora quem fala sou eu e você escuta... — Sequer se move e fica naquela posição acuada com a cabeça baixa e os ombros encolhidos — Isso é passado e pensei que já houvéssemos superado depois que você me pediu perdão e que sua doença foi embora. Você pôde voltar para mim e o fez! — Chego o mais perto que posso, colando meu peito em seu braço forte — Já me esqueci. Já te perdoei! O passado sempre será uma barreira entre nós se você não se perdoar e não puder esquecer o que me fez.

— Não posso esquecer — O tom é doloroso. Aquilo me machuca! Com uma das mãos toco seu ombro delicadamente e fecho os olhos ao sentir sua pele quente contra meus dedos — Te fiz sofrer a história toda! Será que não compreende que talvez eu seja o pior para você?

— Será que não compreende que sem você não haveria uma história? — Ri se muita graça e depois volta a ficar calado — Lorenzo... Você me deu todas minhas alegrias! Me deu Sarah, Samuel e Stela! — Sorrio docemente com a lembrança dela — Me deu motivos para acreditar! Acha realmente que não merece meu amor?

— Laura...

— O passado foi compensado por tudo o que você fez desde que voltou para minha vida. Eu não te culpo e nunca te culpei... De minha maneira irracional sempre te compreendi — Delicadamente toco seu cabelo. Ele não recusa e sequer se move com meus dedos acariciando seu couro cabeludo de forma calma — Você não desistiu de mim, ficou ao lado de nossos filhos quando eles mais precisaram e isso foi uma prova gigantesca de que estamos juntos nessa. De que agora em diante não estou mais sozinha... De agora em diante eu tenho você! Não é tarde para recuperarmos o tempo! Temos três filhos pequenos, somos jovens e com a vida pela frente... Por favor, não insista nisso de dizer que não merece meu amor! Será que não vê que tudo isso está relacionado? Que foi uma prova evolutiva? Nós crescemos como pessoas e evoluímos a nossa maneira... Agora, depois de todos esses obstáculos, não sei se posso existir em você. Eu... Não sei realmente quem sou sem você!

Detenho-me. Estou praticamente pendurada no ombro dele quando me dou conta. Lentamente Lorenzo se vira para mim obrigando-me a se afastar dois passos. Encaro-o seguramente sem desviar. Finalmente me encara e mordo os lábios delicadamente.

— É claro que estarei ao seu lado, Laura — Toca meu rosto com carinho — Até hoje não consigo compreender porque te fiz sofrer tanto... — Trás um olhar mais leve e calmo.

— Você me fez viver em contrapartida e talvez isso baste — Toco sua mão sobre meu rosto e ele sorri.

— Obrigado por resumir meus sentimentos. Você sim me fez viver! — Lorenzo me puxa pela cintura e nossos lábios se unem em um frenesi de sentimentos — Eu te amo.

A única coisa que sei fazer é envolvê-lo pelo pescoço e retribuir com entusiasmo. Saboreio seu beijo cálido como no dia em que nos conhecemos e recordo aquele sorriso bonito pintado em seu rosto inacreditável aliado a sua jaqueta de couro que mais tarde envolveu meus ombros. O jeito meigo como me chamou para dançar também aparece em minha memória em boas lembranças.

Minha vida não tinha sentido antes daquele momento. Nada estava em seu lugar, as coisas eram monótonas e não faziam sentido. Lorenzo me trouxe a vida mesmo que da maneira errada. Eu precisava aprender.

— É melhor subirmos. As crianças podem acordar.

Foi à única coisa que consegui dizer. Em seguida estávamos no quarto dele e a chave foi passada na porta. Tudo o que pude sentir foram os lábios dele roçando os meus e suas mãos percorrendo meu corpo para remover minha camisa por cima da cabeça. Também o despi com a mesma sofreguidão, irradiando desejo e implorando por uma migalha de seu imenso carinho.

Os lençóis de sua cama fria se aqueceram rapidamente com a paixão de desferimos sobre ele e Lorenzo parecia mais vivo do que nunca. Mostrava-se apaixonado como se em todo esse tempo houvesse poupado sentimentos e agora os libertava totalmente para mim.

— Pensei que nunca mais iria te ver bem e agora estamos aqui — Sua voz é terna depois de tudo. O abraço e deito sobre seu peito enquanto ele cheira meu cabelo com cuidado. Acaricia meu braço com devoção e aconchego-me encolhendo-me em seus braços fortes.

— Mais um milagre? — Brinco com a voz pesada. Ouço seu sorriso antes de sentir um beijo em minha testa.

— O melhor de todos eles — Sorrio antes de cair no sono. Estar com Lorenzo é tudo o que pedi em todos esses anos e agora nada vai nos atrapalhar. Seus braços ao meu redor garantem o melhor sono de todos mesmo para mim, que dormi por quase uma eternidade.

Estou em um ambiente barulhento e movimentado.

Vejo luzes coloridas no andar de baixo e uma música qualquer ressoa. Uma música alegre e para dançar. Estou sentada neste balcão alto com um copo grande e familiar de suco cheio a minha frente. Ao meu lado vejo sentada uma garota bonita, bem vestida e nitidamente popular. Está olhando para trás com certa curiosidade e deslocando o olhar em uma direção certeira. Eu sei quem ela é! Isis! Desvio o olhar para minha roupa... Um vestido preto e simples. Movo os lábios delicadamente e constato que uso batom.

— Laura — Me cutuca — Tem um homem lindo olhando para você!

Meu corpo todo congela.

Sei que cena é essa... Sei onde estou! O olhar de Isis é intrigante, tanto que me fez se virar e espirar o homem por cima de meu ombro. Tem mesmo um rapaz olhando e um dos mais populares da faculdade. Lorenzo! Será que foi um sonho tudo o que houve? Será que é uma chance de recomeçar?

É como se a cena fosse adiantada. Isis não está mais ao meu lado e me vejo sozinha diante do balcão de bebidas. Não tenho sequer tempo de pensar... Ele está aqui, ao meu lado.

— Com licença... Você é a Laura, não é? A de jornalismo...

Virei-me para encará-lo. Como sempre se mostrava bonito e usa a jaqueta de couro... Agora me recordo como me apaixonei por ele. Esse sorriso sedutor hipnotiza qualquer garota na primeira tentativa. Agora, naquele instante, tenho a chance de mudar tudo e acabar de vez com isso! Posso rejeitá-lo! Ignorá-lo!

— S im, sou eu mesma — Respondo com toda educação e olhando-o seriamente.

Existe uma diferença... Agora sei que ele só quer me usar! Agora sei que é tudo uma aposta e tenho a possibilidade de mudar o curso das coisas! Posso muito bem pular fora dessa e ser outra mulher. Não preciso viver tudo aquilo novamente.

— S erá que eu... Posso me sentar? — Fala de maneira tímida. Sustento seu olhar de forma segura e impenetrável. Tomo uma decisão.

— Desculpe, mas já estou indo embora e... — Me interrompe.

— Não faça isso! Eu estava te observando e notei que há um...

— C hiclete no meu sapato? — Abaixo-me e mostro o sapato. Rapidamente tiro o chiclete enroscado ali com um guardanapo em tempo recorde. Lorenzo ainda me olha surpreso quando me levando e pego a bolsa.

— J á sabia? — Coça a cabeça com o rosto corado.

— Por obra do destino — Coloco a bolsa no ombro — Agora, por favor, com licença. Boa noite e não me procure mais.

Saio pela porta sem olhar para trás. Deixo-o plantado lá perto do balcão. Acabei ali com todo meu sofrimento e com toda a dificuldade. Foi à decisão correta?

Rapidamente a cena se modifica. Vejo passando por mim vários flashes de uma jornada na faculdade de Jornalismo. Vários amigos em todas as aulas, estudando para as provas com Isis e Jennifer, em festas com amigos, um rapaz de óculos e muito alto que segurava em minha mão.

Meu namorado, um gênio da informática e muito tímido. Pareço feliz e tenho alguém! Em seguida estou na formatura sobre um palco grande, com beca e ao lado de amigos. Meus pais estão orgulhosos, tiram fotos e mandam beijos. Recebo o diploma das mãos do professor mais renomado da faculdade, o mesmo me ofereceu um estágio em um grande jornal ao final da formatura.

Mais um tempo se passa. Estou agora morando nos Estados Unidos em uma cobertura maravilhosa. Meu apartamento é amplo, tenho um gato chamado Grove e vivo sozinha.

Vejo as prateleiras que trazem fotos de meus pais, amigos e a Madonna! Céus! Madonna! Não tenho aliança, sou solteira e já tenho quase vinte e oito. Meu sucesso é eminente, uma vez que me vejo desfilando por um evento social rodeada de celebridades. Consegui tudo o que queria! Sucesso, riqueza, luxo e glamour. Sou magra como antes, porém não tenho nenhuma cicatriz de cessaria, muito menos estria de gravidez.

Na próxima cena de minha vida perfeita estou em Paris com Isis e seu namorado fazendo compras. Nenhum amigo sumiu. Todos são como antes, porém em dado momento o namorado de Isis recebe uma ligação e seu humor muda.

“Lembram-se do Lorenzo Valencia?”

Nós duas nos olhamos e assentimentos positivamente.

“Acabei de saber que ele morreu na última madrugada. Parece que tinha leucemia. Ele não se tratou e morreu rapidamente. Muito triste não é? Era um homem tão rico e influente!”.

Não tenho tempo de entrar em choque.

Na próxima cena estou no enterro de Lorenzo com todos da faculdade. Parada ao lado do caixão o vejo gélido e imóvel ali. Apenas seu corpo. Sua alma se foi sem ao menos ter uma chance e pego pensando o porquê de ter lhe dito não. Toco sua mão e percebo que também estou fria... Também estou sozinha... Morta em vida!

Tenho sucesso, dinheiro e reconhecimento, mas não tenho o sorriso de Sarah e Samuel. Não tenho o calor de seus braços e o carinho de seus beijos. Não tenho o pseudônimo “mamãe”. Meus braços não estão acalentados pela presença de Stela. Sou apenas um nada. Não passo de um troféu para meus pais e um apoio ridículo e temporário para os amigos. Também estou morta como ele... Também não vivo sem o seu amor!

Porque eu disse não? Porque sacrifiquei todo meu amor em nome de futilidade?

Nada mais vale a pena. Minha vida toda se baseou em... Nada.

Abro os olhos.

Olho ao redor e me dou conta que já é dia. Os raios de sol são fortes e estão entrando pela janela entreaberta. Hoje é dia... Quatro de Janeiro . Retiro os pés da cama e me dou conta que estou usando uma blusa larga.

Caminho pelo corredor grande totalmente desesperada e busco ouvir alguma coisa, nem que seja uma pequena voz que me identificasse ao mundo real. Paro aos pés da escada e, depois do que pareceu uma eternidade, escuto risadas infantis. Vou a passos curtos até lá, parando na porta e me agarrando ao batente quando vejo todos eles ali... Os quarto . Lorenzo, os gêmeos e Stela. Meu coração se alivia, minha mente se acalma e o coração se estabiliza. Foi um sonho... Foi tudo um sonho!

Uma mentira muito vívida, diga-se de passagem, que prefiro encarar como um aviso. Um aviso de que fiz a escolha certa, de que nada teria sido melhor para mim do que ter dito sim a Lorenzo naquela boate. Sim para ele em todos os momentos! Vejo a alegria dele em colocar os pratos na mesa dos empregados enquanto Sarah, Samuel e Stela - em sua cadeira especial de bebê - o assistem com entusiasmo. Uma pilha de panquecas está no centro da mesa tornando a visão muito familiar.

Sei que Lorenzo estaria morto sem mim. Sei que eu não seria nada sem ele... Verdadeiramente nada!

Os olhos de Sarah me encontram após um tempo no anonimato e ela sorri de longe e encara Lorenzo como se o dissesse que estou aqui. Não demora nem dois segundos e os quatro estão me olhando com certa timidez.

— Bom dia mãe... Nós fizemos panquecas! Está uma delicia! — Samuel diz cheio de alegria, colocando o dedo na calda de chocolate.

— Nós não... Eu e Sarah fizemos a panqueca! Você está comendo tudo antes da hora — Samuel gargalha e Sarah ri baixinho apoiando o rosto nas mãos. Stela só me olha, porém quando percebe que estou chegando estica os braços para mim.

— Vem comer mamãe. Parece que a Stela quer você agora.

Aproximo-me deles com certa hesitação. Ainda é estanho ter Stela ali, mas ao pegá-la em meus braços tenho plena certeza de que posso me costumar com a ideia. Ela é tão linda e tem os meus olhos.

Nunca pensei que seria tão feliz pela simples ideia de ter um filho. Lorenzo puxa a cadeira e me sento com Stela no colo. Acomoda-se ao meu lado e serve os gêmeos, que tagarelam bastante.

— Você está bem agora mamãe? — Sarah questiona curiosa.

— Não vai dormir de novo, vai? — Estão sujos e com o rosto melado de chocolate. Lorenzo fica em silêncio perante suas falas.

— Claro que irei dormir, mas prometo me levantar mais cedo de agora em diante — Todos riram, inclusive Lorenzo. Stela ainda em encara e não parece capaz de desviar o olhar do meu. Acaricio seu cabelo delicadamente — O meu lugar é aqui, afinal.

— O que você via quando estava dormindo? — Sarah segue curiosa.

Lorenzo me busca de canto com certa cautela.

— Nada — Dou de ombros. É a verdade.

— Não se lembra?

— Na verdade não.

— Stela via um anjo e ele falava sobre você. Ela dizia “mamãe”. Talvez seja por isso que ela te conheça.

A frase de Sarah me impacta de tal forma que quase acredito ser real. Existe muito mais entre o céu e a terra do que sou capaz de compreender. Abraço Stela e beijo seu cabelo cheiroso... Minha pequena esperança.

— Sim, talvez sim. A única certeza que tenho é que nunca deixei vocês... Nunca.

O sorriso bonito deles me evidencia que sabem que nunca os deixei. Lorenzo pega minha mão delicadamente sobre a mesa e a beija. Nos olhamos com muita cumplicidade.

— Agora mamãe está aqui e não vou deixar de jeito nenhum que ela se vá. Prometo — Sorrio para ele e beijo sua mão também.

— Nunca mais vou embora... Não mesmo. Eu amo vocês todos e sem vocês eu não seria nada — Lorenzo me silencia apenas com o olhar.

— Sei disso — Sorri e se vira para Sarah e Samuel — Tragam para mamãe o presente que eu disse — Estreito o olhar. Não compreendo o fundamento até Samuel apanhar uma caixinha da mão de Sarah e colocar sobre a mesa, empurrando-a para mim. Confusa, uso a mão livre para abrir a mesma. Vejo lá dentro um bonito anel de ouro um tanto grosso. Está todo marcado com palavras e desenhos minúsculos.

Trago para perto dos olhos e vejo que há três crianças desenhadas na parte de dentro. Estão de mãos dadas, duas meninas e um menino. Sarah, Samuel e Stela... Sorrio diante da doçura disso tudo. Vejo o lado de fora e há uma frase bem nítida.

Você me faz viver.

As quatro palavras que compreendem meu sentimento. Meus olhos já transbordam e minha emoção é demasiada. Não sei se posso suportar ainda mais que isso.

— Feliz quatro de janeiro mamãe — Os gêmeos me abraçam com carinho. Pela primeira vez tenho em meus braços meus três filhos!

Lorenzo piscou para ambos em sinal de que fizeram corretamente o trabalho. Aquilo é o meu fim. Mesmo com Stela no colo ponho-me de pé e abraço Lorenzo, que também me retribui com emoção. Trocamos um beijo breve antes de Sarah e Samuel nos envolverem pelas pernas.

Nós cinco... Sei que tudo vai ser perfeito.

Sei que aquela foi à decisão mais importante e correta que tomei. Duas pequenas palavras trocaram o sentido de minha vida para sempre e a coloriram de forma inacreditável.

— Será que eu... Posso me sentar?

— Sim, pode.


“Não há caminho errado. O aprendizado e a experiência estão em todos os caminhos” — Gasparetto

 

 

                                                                  Izabella Mancini

 

 

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