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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUATRO ESTAÇÕES - P.2 / Stephen King
QUATRO ESTAÇÕES - P.2 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                                                                     OUTONO DA INOCÊNCIA

                                  

                                       O Corpo

         As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem - as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto estava falando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda.

 

 

 

 

       Eu tinha doze anos, quase treze, quando vi pela primeira vez um ser humano morto. Foi em 1960, há muito tempo atrás... embora às vezes não me pareça tanto tempo.

Principalmente nas noites que acordo sonhando. com a chuva de granizo caindo em seus olhos abertos.Tínhamos uma casa em cima de um enorme olmo que projetava-se sobre um terreno baldio em Castle Rock. Há uma companhia de mudanças no terreno hoje em dia e o olmo não existe mais. Progresso. Era uma espécie de clube, embora não tivesse nome.

Eram cinco, talvez seis membros assíduos, mais alguns idiotas que às vezes apareciam.

Deixávamos eles entrarem quando havia jogo de cartas e precisávamos de sangue novo.

O jogo geralmente era vinte-e-um, e jogávamos valendo centavos, no máximo cinco.

Mas você ganhava o dobro no vinte-e-um com cinco cartas fechadas... o triplo com seis

cartas fechadas, embora Teddy fosse o único louco a se arriscar.

         As laterais da casa da árvore eram tábuas encontradas no monte de lixo atrás da Mackey Lumber & Building Supply na Carbine Road - estavam rachadas e cheias de buracos que tapávamos com papel higiênico ou toalha de papel. O telhado era uma chapa de zinco ondulada que tiramos do despejadouro, olhando o tempo inteiro para trás porque diziam que o cachorro que tomava conta do lugar era um verdadeiro comedor de criancinhas. Encontramos uma porta de tela ali no mesmo dia. Era à prova de vôo, mas estava realmente enferrujada - quero dizer, a ferrugem era demais. A qualquer hora do dia que se olhasse através da porta de tela parecia o pôr-do-sol.

         Além de jogar cartas, o clube era um bom lugar para fumar cigarros e ver revistas de mulher nua. Havia meia dúzia de cinzeiros de zinco amassados, CAMEL escrito no centro, vários posters centrais das revistas pregados nas paredes rachadas, vinte ou trinta baralhos de moto (Teddy conseguia com o tio dele, que era dono da papelaria de Castle Rock - quando o tio de Teddy perguntou-lhe um dia que tipo de jogos fazíamos, Teddy disse que fazíamos torneios de cribbage, e ele achou ótimo), um estojo de fichas de pôquer de plástico e uma pilha de revistas de assassinato antigas chamadas Máster Detective para folhear quando não havia nada mais emocionante para fazer. Também construímos um compartimento secreto de 30x25 cm embaixo do chão para esconder a maior parte dessas coisas nas raras ocasiões em que o pai de algum garoto resolvia que estava na hora de fazer uma visita rotineira ao clube para ver se éramos mesmo bons meninos. Quando chovia, estar no clube era como estar dentro de um tambor de aço jamaicano... mas naquele verão não choveu.

       Fora o mais seco e quente desde 1907 - ou assim diziam os jornais, e naquela sexta-feira antes do fim de semana do Dia do Trabalho e do começo de mais um ano letivo mesmo as varas-de-ouro nos campos e as valas próximas às estradas secundárias tinham um

aspecto seco e queimado. Ninguém ganhara muito dinheiro com a colheita naquele ano e as grandes pilhas de enlatados do Castle Rock Red & White ainda estavam lá, acumulando poeira. Ninguém tinha nada para vender naquele ano, com exceção talvez de vinho de dente-de-leão.

         Teddy, Chris e eu estávamos no clube naquela sexta-feira de manhã reclamando de estar tão perto a volta às aulas, jogando baralho e trocando piadas antigas e batidas sobre caixeiros viajantes e franceses. Como você sabe que um francês esteve em seu quintal?

Ora, as latas de lixo estão vazias e a cachorra, grávida. Teddy queria parecer ofendido, mas era o primeiro a contar uma piada, só trocando francês por polonês.

         O olmo dava uma boa sombra, mas estávamos sem camisa para não ficarem encharcadas. Jogávamos, o jogo mais sem graça que já foi inventado, mas estava quente demais para pensarmos em algo mais complicado. Tínhamos improvisado um time de beisebol muito bom que durou até metade de agosto, mas depois muitos garotos sumiram. Estava quente demais.

       Era minha vez e eu tinha muitas cartas de espadas. Começara core treze, recebi um oito para formar vinte e um e nada mais acontecera depois. Chris passou. Recebi as últimas cartas, nada que ajudasse.

     -Vinte e nove - disse Chris baixando ouros.

       - Vinte e dois - disse Teddy com ar desgostoso.

       - Estou fora - disse eu, e abaixei as cartas fechadas na mesa.

       - Gordie está fora, Gordie levou um ferro e se mandou - buzinou Teddy, e acabou com sua risada característica de Teddy Duchamp - Eeeee-eee-eee, como um prego enferrujado sendo lentamente arrancado de uma tábua podre. E, ele era estranho; todos nós sabíamos. Ia fazer treze anos como todos nós, mas os óculos de grossas lentes e o aparelho de surdez que usava faziam-no parecer um velho As crianças sempre tentavam tirar seus cigarros na rua, mas o volume embaixo da camisa era apenas a bateria de seu aparelho de surdez.

       Apesar dos óculos e do botão cor da pele enfiado no ouvido, Teddy não via muito bem e sempre entendia mal o que as pessoas lhe diziam. No beisebol tínhamos que colocá-lo perto da cerca, depois de Chris à esquerda do campo e Billy Greer à direita. Só esperávamos que ninguém jogasse a bola tão longe, porque Teddy ia atrás dela furioso, enxergando ou não. De vez em quando ficava louco de perder uma boa, e uma vez entrou de cara na cerca junto da casa da árvore a toda velocidade, feito um dançarino de boggie. Ficou lá deitado de costas com o branco dos olhos aparecendo durante quase cinco minutos, e eu fiquei com medo. Então levantou com o nariz sangrando e um galo enorme e roxo crescendo na testa, tentando dizer que a bola não tinha valido.

       Sua vista era naturalmente ruim, mas o que aconteceu com seus ouvidos não era nada natural. Naquela época, quando era legal ter os cabelos curtos para as orelhas ficarem aparecendo como um par de alças de vaso, Teddy teve o primeiro corte de cabelo à Ia Beatles de Castle Rock - quatro anos antes de alguém na América ter ouvido falarem Beatles. Ele deixava as orelhas cobertas porque pareciam dois bolos de cera quente.

       Um dia, quando tinha oito anos, o pai de Teddy ficou furioso com ele porque quebrou um prato. Sua mãe estava trabalhando na fábrica de sapatos no sul de Paris quando isso aconteceu, mas quando soube já era tarde.

       O pai de Teddy levou-o até um enorme fogão a lenha em brasa de fundos da cozinha e enfiou um lado do rosto de Teddy numa placa em brasa de ferro fundido. Ficou segurando por uns dez segundos Depois levantou Teddy pelos cabelos e colocou o outro lado. Então chamou a unidade de Emergência e disse para virem buscar o filho. Desligou o telefone, foi até o armário, pegou o .410 e sentou-se para ver televisão com a arma nos joelhos. Quando a Sra. Burroughs, que morava ao lado, veio perguntar se Teddy estava bem - ela ouvira os gritos - o pai de Teddy apontou a arma para ela. A Sra. Burroughs saiu da casa dos Duchamp mais ou menos à velocidade da luz, trancou-se em casa e chamou a polícia. Quando a ambulância chegou o Sr. Duchamp deixou os enfermeiros entrarem, foi para a varanda dos fundos e ficou de guarda enquanto levavam Teddy para a velha ambulância Buick na maca.

         O pai de Teddy explicou para os enfermeiros que os oficiais filhos da puta tinham dito que a área estava livre, mas ainda havia alemães de tocaia por toda parte. Um dos enfermeiros perguntou a ele se achava que poderia resistir. O pai de Teddy deu um sorriso contraído e disse ao enfermeiro que esperaria até que o inferno virasse uma geladeira, se fosse preciso. O enfermeiro cumprimentou-o e o pai de Teddy fez continência. Alguns minutos depois que a ambulância saiu, a polícia chegou e tirou Norman Duchamp do serviço.

         Ele vinha fazendo coisas estranhas, como atirar em gatos e colocar fogo em caixas de correspondência há mais de um ano, e depois da atrocidade que fez com o filho, fizeram-lhe um rápido interrogatório e mandaram-no para Togus, um hospital de veteranos. Togus é para onde você vai se você foi dispensado das Forças Armadas por motivos psicológicos. O pai de Teddy tinha participado do desembarque na Normandia, e era isso que Teddy sempre dizia. Teddy tinha orgulho dele apesar do que tinha feito, e ia visitá-lo com a mãe todas as semanas.

         Era o garoto mais calado com o qual andávamos, eu acho, e era maluco. Fazia as coisas mais loucas que se podia imaginar. A pior era o que chamava de "escapada dos caminhões". Corria na frente deles na 196 e algumas vezes não o pegavam por uma questão de milímetros. Só Deus sabe quantos enfartes não causou, e morria de rir quando a rajada de vento do caminhão que passava balançava suas roupas. Ficávamos com medo porque sua vista não prestava, com ou sem os óculos fundo-de-garrafa. Parecia apenas uma questão de tempo até não enxergar bem um dos caminhões. E você tinha que ter cuidado para não desafiá-lo, porque Teddy aceitava qualquer desafio.

       - Gordie está fora, eeeeeeeee-eee-eee!

       - Idiota - disse eu, e peguei uma Master Detective para ler enquanto eles terminavam de jogar. Virei a página na parte em que dizia: "Ele Matou a Bela Aluna Dentro do Elevador Parado" e comecei a ler. Teddy pegou as cartas, olhou-as rapidamente e disse: - Bati.

     - Seu monte de merda de quatro olhos! - gritou Chris.

     - O monte de merda tem mil olhos - disse Teddy sério, e Chris e eu começamos a rir.

Teddy ficou olhando para nós com a testa meio franzida, como que imaginando o que nos teria feito rir. O cara tinha outra coisa - sempre se saía com umas coisas estranhas como "o monte de merda tem mil olhos" e você nunca tinha certeza se ele queria ser engraçado ou não. Olhava as pessoas com a testa meio franzida, como se estivesse perguntando: Ah, meu Deus, o que é desta vez?

         Teddy tinha feito trinta - valete, dama, e rei de paus. Chris só tinha dezesseis e era sua vez.

         Teddy embaralhava as cartas daquela maneira desajeitada e eu estava na parte mais horrível da história do assassinato onde o marinheiro louco de Nova Orleans estava pisoteando a aluna da faculdade de Bryn Mawr porque não suportava lugares fechados

quando ouvimos alguém subindo correndo a escada que ficava presa do lado do olmo.

Bateram na parte de baixo do alçapão.

       - Quem é? - gritou Chris.

       - Vern! - Ele parecia excitado e sem fôlego.

Fui até o alçapão e puxei a lingüeta da fechadura. O alçapão abriu para cima e Vern Tessio, um dos membros, entrou no clube. Estava suando em bicas e o cabelo, que penteava igual ao seu ídolo de rock, Bobby Rydell, estava colado à cabeça.

     - Puxa! - disse ofegante. - Vocês não vão acreditar no que eu vou contar.

     - O que? - eu perguntei.

     - Espera aí deixa eu respirar. Vim correndo desde lá de casa.

     - Vim correndo desde casa - tremeu a voz de Teddy num horrível falsete - só para pedir perdãooo...

     - Vai se foder, cara - disse Vern.

     - Não enche o saco, macaco - retrucou Teddy espirituoso.

   - Você veio correndo desde casa? - perguntou Chris sem acreditar. - Cara, você tá maluco. - A casa de Vern ficava à mais de três quilômetros na Grand Street. – Deve estar um calorão lá fora.

     - Vale a pena - disse Vern. - Meu Deus. Vocês não vão acreditar nisso. Estou falando sério. - Passou a mão na testa suada para mostrar que era sério.

     - Está bem, o que foi? - perguntou Chris.

     - Vocês podem acampar hoje à noite? - Vern nos olhava com intensidade, excitado.

Seus olhos pareciam duas passas enfiadas dentro de círculos escuros de suor. - E se vocês disserem para seus pais que vamos acampar no jardim atrás da minha casa?

     - É, acho que sim - disse Chris pegando uma nova mão de cartas e olhando. - Mas meu pai anda de mau humor. Bebida, sabe?

     - Você tem que ir, cara - disse Vern. - Sério. Você não vai acreditar. Você pode, Gordie?

     - Provavelmente.

     Eu podia muito bem fazer essas coisas - na verdade eu era o Garoto Invisível durante todo o verão. Em abril meu irmão mais velho, Dennis, morrera num acidente de jipe.

Foi em Fort Benning, na Georgia, onde estava em treinamento militar. Ele e um outro cara estavam a caminho da cooperativa e um caminhão do Exército bateu neles pelo lado. Dennis morreu na mesma hora, e seu companheiro está em coma desde o acidente. Dennis faria vinte e dois anos naquela semana. Eu já tinha comprado um cartão de aniversário para ele no Dahlie's em Castle Green.

       Chorei quando soube e chorei mais no funeral e não podia acreditar que Dennis não existia mais, que a pessoa que me dava cascudos, me metia medo com uma aranha de borracha até eu chorar e me dava beijos quando eu caía e machucava os joelhos e sussurrava em meus ouvidos "Agora pare de chorar, querido!" - que uma pessoa que me tocara podia estar morta. Eu ficava triste e com medo dele... mas parecia que aquilo tinha partido o coração de meus pais. Para mim Dennis era pouco mais que um conhecido. Era dez anos mais velho que eu, imaginem, e tinha seus próprios amigos e colegas de turma. Comemos na mesma mesa durante muitos anos e às vezes era meu amigo e às vezes meu torturador, mas era, principalmente, apenas um cara. Quando morreu já tinha saído de casa há um ano, com exceção de algumas licenças que recebeu para nos visitar. Nem mesmo nos parecíamos. Levei muito tempo depois daquele verão para perceber que a maioria das lágrimas que derramei foram para minha mãe e meu pai. Não adiantou nada, nem para mim.

       - Então o que você está resmungando aí, grande Vern? perguntou Teddy.

       - Bati - disse Chris.

       - O quê? - gritou Teddy, esquecendo na mesma hora tudo sobre Vern. - Seu mentiroso de uma figa! Você não tem vinte e um. Eu não te dei carta nenhuma. Chris sorriu afetadamente. - Pede as cartas, bundão. Teddy alcançou a carta de cima da pilha. Chris alcançou o maço de Winston na prateleira atrás dele. Abaixei-me para pegar a revista de mistério.

Vern Tessio disse: - Vocês querem ir ver um morto?

Todos pararam.

       Todos nós tínhamos ouvido o caso no rádio, claro. O rádio, um Philco com a caixa quebrada que também fora pego no despejadouro, ficava ligado o tempo todo. Ouvíamos a rádio WA LM de Lewiston, que tocava supersucessos da época como: "What in the World's Come Over You" de Jack Scott, "This Time" de Troy Shondeli, "King Creole" de Elvis e "Only the Lonely" de Roy Orbison. Quando vinham as notícias geralmente trocávamos de estação. As notícias eram muitas besteiras sobre Kennedy, Nixon, Quemoy e Matsu, a defasagem no número de mísseis e a bosta que Castro estava demonstrando ser. Mas todos nós ouvimos a história sobre Ray Brower com um pouco mais de interesse, porque era um menino da nossa idade.

       Era de Chamberlain, uma cidade que ficava a uns sessenta quilômetros a leste de Castle Rock. Três dias antes de Vern entrar bufando no clube depois de correr três quilômetros pela Grand Street, Ray Brower tinha saído com uma cesta de sua mãe para colher amoras. Escureceu e ele ainda não tinha voltado, então os Brower chamaram o xerife do condado e iniciou-se uma busca primeiro apenas por perto da casa do menino, depois nas cidades de Motton, Durham e Pownal. Todos participaram - policiais, delegados, encarregados de supervisionar as regras do jogo e voluntários. Mas três dias depois o menino ainda estava desaparecido. Você diria, ouvindo a história no rádio, que nunca encontraria o pobre coitado vivo; no final a busca não daria em nada. Poderia ter morrido asfixiado numa cascalheira ou afogado num córrego, e daqui a dez anos um caçador encontraria seus ossos. Já tinham começado a drenar os lagos em Chamberlain e na Represa de Motton.

         Nada disso poderia acontecer no sudoeste do Maine hoje em dia, a maior parte da área foi urbanizada e as comunidades de trabalhadores em volta de Portland e Lewiston espalharam-se como tentáculos de um polvo gigantesco. As florestas ainda estão lá e tornam-se cada vez mais densas à medida que você caminha para o lado oeste em direção às Montanhas Brancas, mas hoje em dia se você tiver tempo de caminhar cinco minutos numa direção só, certamente vai cruzar duas pistas de asfalto. Mas em 1960 toda a área entre Chamberlain e Castle Rock era subdesenvolvida, e havia lugares que não eram desmatados desde antes da Segunda Guerra Mundial. Naquela época ainda era possível entrar na floresta, perder-se e morrer ali.

         Vern Tessio estava embaixo da varanda de sua casa naquela manhã, cavando.

Todos nós entendemos na hora, mas talvez eu precise de alguns minutos para explicar a vocês. Teddy Duchamp era meio burro, mas Vern Tessio nunca poderia participar de uma sabatina de conhecimentos gerais. Entretanto se irmão Billy era ainda mais bobo, como vocês verão. Mas primeiro tenho que contar por que Vern estava cavando embaixo da varanda.

         Quatro anos antes, quando tinha oito anos, Vern enterrou um vidro quase cheio de moedas embaixo da longa varanda que havia na frente da casa dos Tessio. Vern chamava o espaço escuro embaixo da varanda de "caverna". Ele estava brincando de pirata, e as moedas eram o tesouro - só que se você estivesse brincando de pirata com Vern não poderia chamar aquilo de tesouro, mas sim de "ganho". Mas ele enterrou o vidro de moedas, cobriu o buraco e colocou folhas velhas que caíram lá embaixo com o passar dos anos sobre a terra remexida. Desenhou um mapa do tesouro, que guardou em seu quarto junto com o resto de suas tralhas. Esqueceu completamente do assunto durante um mês mais ou menos. Um dia, sem dinheiro para ir ao cinema ou coisa parecida, lembrou das moedas e foi pegar o mapa. Mas sua mãe já arrumara o quarto duas ou três vezes desde aquele dia e recolhera todos os papéis de deveres de casa, papéis de bombom, revistas de história em quadrinhos e livros de piada. Queimou-os no fogão para acendê-lo um dia de manhã, e o mapa de Vern subiu pela chaminé da cozinha.

          Pelo menos foi o que ele imaginou.

         Tentou encontrar o lugar e cavou ali. Sem sorte. A direita e à esquerda. Sem sorte de novo. Desistiu naquele dia mas de vez em quando tentava. Quatro anos, cara. Quatro anos. Não é uma droga? Você não sabia se ria ou se chorava. Virou uma espécie de obsessão para ele. A varanda da frente dos Tessio tinha a extensão da casa, provavelmente doze metros de comprimento, por dois de largura. Tinha cavado cada droga de centímetro daquela área talvez duas, três vezes, e nada das moedas. O número de moedas começou a crescer em sua cabeça. Quando contou a Chris e a mim pela primeira vez tinha talvez três dólares em moedas. Um ano depois subiu para cinco e ultimamente andava por volta dos dez mais ou menos, dependendo de estar ele muito ou pouco duro.

           De vez em quando tentávamos dizer a ele o que para nós parecia claro - que Billy sabia do vidro e o pegara. Vern recusava-se a acreditar, embora odiasse Billy como os árabes odeiam os judeus e provavelmente condenaria alegremente seu irmão à morte por roubar no supermercado, se a oportunidade surgisse. Também recusava-se terminantemente a perguntar a ele. Provavelmente tinha medo que Billy risse e dissesse: Claro que eu peguei, seu babaca, tinha vinte dólares e eu gastei cada centavo de merda.

Ao invés disso, Vern ia procurar as moedas sempre que se inspirava (e sempre que Billy não estava por perto). Sempre saía de baixo da varanda engatinhando com os jeans sujos, os cabelos cheios de folhas e de mãos vazias. Sempre zombávamos dele e seu apelido era Centavo - Tessio Centavo. Acho que foi para o clube tão rápido não apenas para dar a notícia, mas para mostrar a nós que finalmente tirara algum proveito de sua caça às moedas.

           Acordou naquele dia antes de todo mundo, comeu seus flocos de milho e estava na alameda da casa jogando basquete numa cesta velha que ficava presa no alto da garagem, pouca coisa para fazer, ninguém com quem brincar de esconde-esconde, então decidiu ir procurar as moedas. Estava embaixo da varanda quando a porta de grade bateu lá em cima. Ficou imóvel, sem fazer nenhum barulho. Se fosse seu pai, sairia, se fosse Billy continuaria imóvel até que ele e o amigo disc-jóquei, Charlie Hogan, fossem embora.

           Dois pares de pernas cruzaram a varanda, então Charlie Hogan disse com voz trêmula, de chorão. - Meu Deus, Billy, o que vamos fazer?

             Vern disse que ouvir Charlie Hogan falar daquela maneira - Charlie era um dos caras mais brigões da cidade - o fez ficar de orelhas em pé. Afinal de contas Charlie andava

com Ace Merrill e Eyebali Chambers, e se você andava com tipos como esses, tinha que ser valente.

           - Nada - disse Billy. - E isso que vamos fazer. Nada.

           - A gente tem que fazer alguma coisa - disse Charlie, e sentaram-se na varanda perto do lugar onde Vern estava agachado. Você não viu?

           Vern arriscou-se e rastejou um pouco mais perto dos degraus, quase babando. Aquela altura achou que talvez Billy e Charlie estivessem bêbados e tivessem atropelado alguém. Vern teve o cuidado de não estalar nenhuma das folhas velhas enquanto se movia. Se os dois descobrissem que estava embaixo da varanda e que ouvira toda a conversa, você poderia botar tudo que sobrou dele numa lata de ração de cachorro.

          - Agente não tem nada com isso - disse Billy Tessio. - O garoto está morto, também não faz diferença para ele. Quem é que está ligando se o encontraram ou não? Eu não estou.

         - Era sobre esse menino que eles estavam falando no rádio disse Charlie. - Com certeza. Brocker, Brower, Flowers, sei lá. A merda do trem deve ter pegado ele.

         - E - disse Billy. Barulho de alguém riscando um fósforo. Vern viu-o cair na alameda de cascalhos e sentiu um cheiro de fumaça de cigarro. - Eu vi. E você vomitou.

         Silêncio, mas Vern sentiu ondas emocionais de vergonha irradiando de Charlie Hogan.

         - Bem, as garotas não viram - disse Billy depois de um tempo. - Ainda bem. – Pelo barulho bateu nas costas de Charlie para animá-lo. - Iam espalhar para todo o mundo, daqui até Portland. Mas a gente se mandou rápido. Acha que elas perceberam que havia algo errado?

- Não - disse Charlie. - A Marie não gosta de descer a Back Harlow Road até o cemitério, de qualquer maneira. Tem medo de fantasmas. - Novamente a voz chorona - Meu Deus, era melhor se a gente não tivesse roubado carro nenhum ontem à noite! Só ido ao show como estava combinado!

         Charlie e Billy saíam com um casal de malucos chamados Marie Dougherty e Beverly Thomas; você só via esses tipos do lado de fora de um baile de carnaval - espinhas, bigode, tudo. As vezes os quatro - ou seis ou oito, se Fuzzy Bracowicz ou Ace Merrill também estavam com suas garotas - roubavam um carro em algum estacionamento de Lewiston e saíam alegremente para o campo com duas ou três garrafas de vinho e um pacote de seis garrafas de ginger ale. Levavam as garotas para algum lugar, estacionavam o carro, bebiam Purple Jesus e transavam. Depois largavam o carro em algum lugar perto de casa. Emoções baratas - como dizia Chris às vezes. Nunca tinham sido pegos, mas Vern sempre torcia para isso. Realmente adorava a idéia de visitar Billy aos domingos no reformatório.

       - Se disséssemos à polícia iam querer saber como tínhamos chegado em Harlow – disse Billy. - Não temos carro, nenhum de nós. É melhor ficarmos de boca fechada. Aí não podem mexer com a gente.

       - Podíamos dar um telefonema anônimo - disse Charlie.

       - Eles descobrem essas coisas - disse Billy pessimista. - Já vi na Patrulha Rodoviária. E no Dragnet também.

       - Sim, é verdade - disse Charlie angustiado. - Meu Deus. Queria que Ace tivesse ido com a gente. A gente dizia para a polícia que estava no carro dele.

     - É, mas não foi.

     - É - disse Charlie. Suspirou. - Acho que você está certo. - Uma ponta de cigarro caiu na alameda. - A gente saiu e foi mijar perto dos trilhos, não foi? Não podia andar na outra direção, podia? E eu vomitei no meu sapato novo. - Sua voz caiu um pouco. - A porra do garoto estava caído lá, sabia? Você viu o filho da mãe, Billy?

     - Vi - disse Billy, e uma segunda ponta de cigarro juntou-se à primeira na alameda. - Vamos ver se Ace já acordou. Quero tomar um pouco de suco.

     - Vamos dizer a ele?

     - Charlie, não vamos contar para ninguém. Ninguém, nunca. Sacou?

     - Saquei - disse Charlie. - Meu Deus, seria melhor se a gente não tivesse roubado a merda daquele Dodge.

     - Porra, cala a boca e vamos embora.

     Dois pares de pernas vestidos em jeans justos e desbotados, dois pares de pés em botas pretas com fivelas laterais desceram os degraus. Vern ficou apavorado (- Minhas bolas ficaram tão encolhidas que achei que iam sumir - contou-nos depois.) Com certeza o irmão ia vê-lo embaixo da varanda, arrancá-lo dali e matá-lo - ele e Charlie Hogan iam

chutar os miolos que Deus lhe dera e depois pisá-lo com as botas pretas. Mas foram embora, e quando Vern teve certeza que tinham ido saiu engatinhando de baixo da varanda e veio correndo para cá.

     - Você teve sorte mesmo - disse eu. - Eles iam matar você.

Teddy disse: - Eu sei onde é a Back Harlow Road. É uma rua sem saída que acaba perto do rio. A gente ia pescar lá.

   . Chris assentiu. - Tinha uma ponte, mas teve uma enchente. Há muito tempo. Agora só tem os trilhos do trem.

     - Um garoto podia ir mesmo desde Chamberlain até Harlow? - perguntei a Chris. – São trinta ou quarenta quilômetros.

       - Acho que sim. Provavelmente encontrou o trilho do trem e o seguiu toda vida. Talvez

tenha achado que ia encontrar o caminho de volta ou que poderia pegar um trem se fosse preciso. Mas agora só tem trem de carga - até Derry e Brownsville, - mesmo assim não muitos. Teria que ter ido até Castle Rock para sair. Quando ficou escuro um trem finalmente deve ter vindo... e pei!

         Chris bateu a mão fechada na palma esquerda, fazendo um barulho aberto. Teddy, um

veterano de escapadas na 196 parecia ligeiramente satisfeito. Senti-me um pouco

angustiado, imaginando o garoto tão longe de casa, morto de medo mas seguindo os trilhos, provavelmente andando na ponta dos pés por causa dos barulhos da noite vindo das árvores altas e arbustos... talvez até dos canos de esgoto debaixo do leito da ferrovia. Então vem o trem, e talvez os faróis dianteiros o tenham hipnotizado até ser tarde demais para pular. Ou talvez ele estivesse deitado nos trilhos morto de fome quando o trem veio. De qualquer maneira, de uma forma ou de outra, Chris disse tudo: o resultado fora aquele. O garoto estava morto.

       - E então, vocês querem ir ver? - perguntou Vern. Estava se contorcendo todo como se quisesse ir ao banheiro, de tão excitado.

       Todos olhamos para ele por um instante, sem dizer nada. Então Chris abaixou as cartas e disse: - Claro! E aposto qualquer coisa que vamos sair nos jornais!

       - Hã? - disse Vern.

       - É? - disse Teddy, e deu seu sorriso de louco fugitivo de caminhões.

       - Olha - disse Chris debruçando-se na improvisada mesa de jogo. - A gente pode encontrar o morto e anunciar. Vamos ser notícia!

       - Não sei - disse Vern nitidamente confuso. - Billy vai saber como descobri. Vai me bater até arrancar minha pele.

       - Não, não vai - disse eu - porque nós vamos encontrar o garoto, e não Billy e Charlie Hogan num carro roubado. Então não vão mais precisar se preocupar. Provavelmente vão lhe dar uma medalha, Centavo.

       - É? - Vern sorriu, mostrando os dentes ruins. Foi um sorriso meio confuso, como se a idéia de que Billy ficaria satisfeito com alguma coisa que fizesse tivesse o efeito de um golpe no queixo. - É, você acha?

       Teddy também estava sorrindo. Depois ficou sério e disse: Hu-hu... !

       - O que foi? - perguntou Vern. Estava novamente se contorcendo, com medo de que alguma objeção realmente séria tivesse passado pela cabeça de Teddy... se é que alguma coisa passava por sua cabeça.

       - Nossos pais - disse Teddy. - Se encontrarmos o corpo do garoto amanhã no sul de Harlow eles vão saber que não passamos a noite acampando no jardim de Vern.

       - É - disse Chris. - Vão saber que fomos procurar o garoto.

       - Não - disse eu. Sentia-me esquisito - ao mesmo tempo excitado e com medo porque sabia que íamos encontrar. A mistura de emoções me deixou profundamente infeliz e com dor de cabeça. Peguei as cartas e comecei a embaralhá-las para ter o que fazer com as mãos. Isso e jogar cribbage era tudo que aprendera com meu irmão mais velho Dennis. Todos os garotos tinham inveja do meu jeito de embaralhar e todos me pediam para ensinar como era... todos menos Chris. Acho que só Chris sabia que ensinar para alguém era como dar um pedaço de Dennis, e eu não tinha tantas coisas dele para sair dando por aí.

         Eu disse: - A gente diz que cansou de acampar no jardim de Vern porque já fizemos isso muitas vezes. Então decidimos seguir a linha do trem e acampar na floresta. Aposto que não vão nem nos bater porque todos vão estar muito excitados com nossa descoberta.

         - Meu pai vai me bater de qualquer jeito - disse Chris. - Ele anda de mau humor. - Balançou a cabeça, tristonho. - Dane-se, vale a pena apanhar.

         - Está bem - disse Teddy levantando-se. Ainda estava sorrindo feito um louco, pronto para dar sua risada altamente penetrante como um cacarejo. - Vamos nos reunir na casa do Vern depois do almoço. - O que vamos dizer a eles a respeito do jantar?

Chris disse: - Você, eu e Gordie podemos dizer que vamos jantar na casa do Vern.

       - E eu digo à minha mãe que vou jantar na casa do Chris disse Vern.

       Aquilo funcionaria, a menos que houvesse uma emergência ou se nossos pais se encontrassem. E nem Vern nem Chris tinham telefone. Naquela época muitas famílias consideravam o telefone um luxo, principalmente as famílias mais humildes. E nenhum de nós vinha de famílias de classe alta.

       Meu pai era aposentado. O pai de Vern trabalhava num moinho e dirigia um De Soto de 1952. A mãe de Teddy tinha uma casa na Danberry Street e recebia inquilinos sempre que podia. Não tinha nenhum naquele verão; a placa QUARTO MOBILIADO PARA ALUGAR estava na janela da sala de estar desde junho. E o pai de Chris estava sempre de "mau humor", mais ou menos; era um bêbado que vivia em boa situação financeira a maior parte do tempo e passava muitas horas na Taverna Sukey's com Junior Merrill, o

pai de Ace Merrill, e outros bêbados da região.

       Chris não falava muito sobre o pai, mas sabíamos que o odiava. Chris aparecia marcado a cada duas semanas mais ou menos. Escoriações nas faces, nó pescoço e um dos olhos inchados e roxo como o pôr-do-sol, e um dia chegou no colégio com um enorme

curativo na parte de trás da cabeça. As vezes nem ia ao colégio. Sua mãe telefonava para lá porque ele não tinha condições físicas de ir. Chris era inteligente, muito inteligente, mas matava muita aula, e o inspetor externo, Sr. Halliburton, sempre aparecia na casa de Chris com seu Chevrolet preto com o adesivo NÃO ACEITO ACOMPANHANTES pregado no quebra-vento. Se Chris estivesse matando aula e Bertie (como o chamávamos - pelas costas, claro) o pegasse, levava-o de volta para o colégio e fazia com que fosse suspenso por uma semana. Mas se Bertie descobrisse que Chris estava em casa porque seu pai o espancara, não dava um pio. Só me ocorreu questionar essas atitudes cerca de vinte anos depois.

         No ano anterior Chris fora suspenso do colégio por três dias. Um bolo de dinheiro do lanche sumiu quando era sua vez de ser monitor e recolhê-lo, e como era um Chambers sem importância teve que apanhar, embora sempre jurasse que não tinha pego o dinheiro. Foi quando o Sr. Chambers o fez passar uma noite no hospital; quando seu pai soube que fora suspenso quebrou seu nariz e seu pulso direito. Chris vinha de uma família ruim, está bem, e todos pensavam que fosse ser mau-caráter... inclusive ele próprio. Seus irmãos cumpriram as expectativas da cidade admiravelmente. Frank, o mais velho, fugiu de casa quando tinha dezessete anos, entrou para a Marinha e acabou na cadeia de Portsmouth por estupro e assalto criminoso. O segundo mais velho, Richard (seu olho direito era estranho e tremia, por isso todos o chamavam de Eyeball) abandonara o colégio no fim do segundo grau e juntara-se com Charlie, Billy e seus amigos disc-jóqueis.

         - Acho que tudo vai dar certo - disse eu a Chris. - E John e Marty? - John e Marty DeSpain eram dois outros membros regulares de nossa gangue.

        - Ainda estão viajando - disse Chris. - Só voltam segunda-feira.

         - Hum. Isso é mau.

         - Então, estamos prontos? - perguntou Vern ainda se contorcendo. Não queria estender a conversa por nem mais um minuto.

         - Acho que estamos - disse Chris. - Quem quer jogar baralho?

       Ninguém queria. Estávamos excitados demais para jogar baralho. Descemos da casa da árvore, pulamos a cerca para o terreno baldio e jogamos beisebol com a velha bola de Vern por um tempo, mas também não teve graça. Só conseguíamos pensar no tal do Brower atropelado por um trem e como o encontraríamos ou o que havia sobrado dele. Por volta de dez horas fomos para casa combinar tudo com nossos pais.

       Cheguei em casa às onze e quinze depois de parar na livraria para olhar as brochuras.

Fazia isso a cada dois dias para ver se tinha algum John D. MacDonalds novo. Ainda dispunha de quinze minutos, e pensei que se tivesse iria comprá-lo. Mas havia só os velhos, e já lera a maioria meia dúzia de vezes.

       Quando cheguei em casa o carro não estava lá, e lembrei que minha mãe e algumas de suas colegas tinham ido a Boston assistir a um concerto. Uma grande e antiga apreciadora de concertos, minha mãe. E por que não? Seu único filho estava morto, e ela tinha que fazer alguma coisa para distrair-se. Acho que isso soa muito amargo. E, acho que se você estivesse lá entenderia por que me sentia dessa maneira.

         Papai estava do lado de fora regando o jardim arruinado com um fino jato de água da mangueira. Se você não pudesse dizer que era uma causa perdida, pela sua cara mal humorada, com certeza poderia olhando o jardim. O solo era uma poeira clara e cinzenta. Tudo nele estava morto, com exceção do milho, que só dera uma vez. Papai dizia que nunca soubera regar um jardim; que tinha que ser a mãe natureza ou ninguém. Ele regava muito um pedaço e ensopava as plantas. Na ala seguinte as plantas estavam morrendo de sede. Nunca achava um meio-termo satisfatório. Mas não falava sobre isso com muita freqüência. Perdera um filho em abril e um jardim em agosto. E se não queria falar sobre nenhum dos dois acho que era privilégio seu. Só ficava chateado porque parara de falar sobre tudo mais. Aquilo era levar a democracia longe demais.

       - Olá, papai - disse eu parando a seu lado. Ofereci-lhe um chocolate que comprara na livraria. - Quer um?

       - Olá, Gordon. Não, obrigado. - Continuava salpicando a pouca água sobre a incorrigível terra cinzenta.

       - Tudo bem se eu for acampar hoje à noite no jardim atrás da casa de Vern Tessio com os garotos?

       - Que garotos?

       - Vern, Teddy Duchamp. Talvez Chris.

       Esperava que começasse por Chris - que Chris era má companhia, um sujeito corrupto moralmente, um ladrão, um aprendiz de delinqüente.

       Mas apenas suspirou e disse: - Acho que tudo bem.

       - Ótimo! Obrigado!

       Virei-me para entrar em casa e verificar o que havia no rádio quando me interrompeu: - São as únicas pessoas com quem você quer estar, não é, Gordon?

       Olhei de novo para ele, procurei um argumento, mas não havia nenhum argumento naquela manhã. Seria melhor se houvesse, eu acho. Seus ombros estavam caídos. Seu rosto, apontando para o jardim morto e não para mim, estava deprimido. Havia um brilho artificial em seus olhos que poderiam ser lágrimas.

     - Ah, papai, eles são legais...

     - Claro que são. Um ladrão e dois débeis mentais. Ótimas companhias para meu filho.

     - Vern Tessio não é débil mental - disse eu. Em relação a Teddy era mais difícil contestá-lo.

      - Doze anos de idade e ainda está no quinto ano - disse meu pai. - E durante todo esse

tempo não aprendeu nada. Quando o jornal de domingo chega, leva uma hora e meia para ler os quadrinhos.

     Aquilo me deixava maluco, porque achava que não estava sendo justo. Estava julgando Vern como julgava todos os meus amigos, de tê-los visto uma vez ou outra entrando ou saindo de casa. Estava errado. E quando chamava Chris de ladrão eu sempre ficava furioso, porque ele não sabia nada sobre Chris. Queria lhe dizer aquilo, mas se o aborrecesse não me deixaria sair. E ele não estava aborrecido, de qualquer maneira, não como ficava às vezes na hora do jantar, discursando tão alto que ninguém tinha vontade de comer. Agora estava parecendo apenas triste, cansado e desgastado. Tinha sessenta e três anos, e com essa idade podia ser meu avô.

     Minha mãe tinha cinqüenta e cinco - também não era nenhuma mocinha. Quando ela e meu pai casaram-se tentaram constituir uma família imediatamente, minha mãe ficou grávida e abortou naturalmente. Teve mais dois abortos naturais e o médico lhe disse que nunca conseguiria dar à luz uma criança. Ouvia toda essa história, do começo ao fim, sempre que um deles me passava um sermão, sabe? Queriam que eu achasse que era um presente especial de Deus e que não estava dando valor ao fato de ter nascido quando minha mãe tinha quarenta e dois anos e estava começando a ficar grisalha. Eu não dava valor à minha sorte nem às suas tremendas dores e sacrifícios.

       Cinco anos depois de o médico dizer que minha mãe nunca teria filhos, ficou grávida de Dennis. Carregou-o durante oito meses e então ele simplesmente veio, com seus quatro quilos - meu pai costumava dizer que se ela tivesse dado à luz no nono mês, Dennis teria pesado oito quilos. O médico disse: "Bem, às vezes a natureza nos engana, mas ele será o único. Graças a Deus, e dê-se por satisfeita. Dez anos depois ficou grávida de mim. Ela não apenas deu à luz a mim como o médico teve que usar fórceps para me tirar. Já ouviu falar de uma família tão complicada? Nasci filho de dois velhos, para não me estender muito, e meu único irmão já jogava beisebol com os garotos mais velhos no parque antes mesmo de eu deixar de usar fraldas.

         No caso de mamãe e papai um presente de Deus teria sido suficiente. Não vou dizer que me tratavam mal e nunca me bateram, mas eu fui uma tremenda de uma surpresa, e acho que quando se está nos quarenta não se é tão apreciador de surpresas quanto nos vinte.

Depois que nasci, minha mãe fez aquela operação que suas amigas de reunião chamavam de "limpeza". Acho que queria certificar-se de que não haveria mais presentes de Deus. Quando entrei para a faculdade descobri que por sorte não nascera retardado... embora eu ache que meu pai tinha suas dúvidas quando via meu amigo Vern levar dez minutos para decifrar os diálogos dos quadrinhos.

         Quanto a ser ignorado: Nunca consegui definir isso bem até fazer um trabalho sobre um romance no segundo grau chamado O Homem Invisível. Quando concordei em fazer o trabalho para a Sra. Hardy achei que fosse a história de ficção científica sobre o caraenrolado em ataduras.

         - Claude Rains fazia o papel no cinema. Quando descobri que era uma história diferente tentei devolver o livro, mas a Sra. Hardy não me deixou fugir da raia. Acabei ficando muito feliz. Esse Homem Invisível é sobre um negro. Ninguém o nota, a não ser que ele faça alguma confusão. As pessoas olham através dele. Quando ele fala ninguém responde. E como um fantasma negro. Quando comecei a ler, devorei o livro como se fosse do John D. MacDonald porque o tal do Ralph Ellison estava escrevendo sobre mim. Na mesa do jantar era Denny, quantas você acertou e Denny quem convidou você para a festa de Sadie Hopkins e Denny quero falar com você de homem para homem sobre o carro que vimos. Eu dizia: - Passa a manteiga - e papai dizia: - Denny tem certeza que é o Exército que você quer? - Eu dizia: - Alguém me passa a manteiga? – e mamãe perguntava a Denny se queria que ela comprasse uma camisa que estava sendo vendida com desconto no centro, e eu acabava pegando eu mesmo a manteiga. Uma noite, quando tinha nove anos, só para ver o que ia acontecer eu disse: - Quer passar a merda desses tomates? - E minha mãe disse:                     - Denny, a tia Grace telefonou hoje e perguntou sobre você e Gordon.

         Na noite em que Dennis formou-se com honras no segundo grau na Escola de Castle Rock fingi que estava doente e fiquei em casa. Pedi ao irmão mais velho de Stevie Darabont, Royce, para comprar uma garrafa de vinho tinto para mim, bebi metade e vomitei na cama no meio da noite.

       Numa situação familiar como essa presume-se que você odeie o irmão mais velho ou ame-o desesperadamente - pelo menos é o que ensinam na faculdade de psicologia. Besteira, certo? Mas quanto a mim não sentia nada disso em relação a Dennis. Raramente discutíamos e nunca brigamos. Teria sido ridículo. Já imaginou um menino de quatorze anos tentando encontrar um motivo para bater no irmão de quatro? E nossos país eram um pouco influenciados demais por ele para sobrecarregá-lo com a custódia do irmão menor, por isso ele nunca ressentiu-se de mim como outros garotos mais velhos ressentem-se dos irmãos mais novos. Quando Denny me levava a algum lugar com ele era por sua livre e espontânea vontade, e foram algumas das ocasiões mais felizes de que me lembro.

       - Ei, Lachance, quem é esse idiota?

       - Meu irmão mais novo, e dobre a língua, Davis. Cuidado que ele te come vivo. Gordie é valente.

       Cercam-me por um momento, enormes, insuportavelmente altos, só por um momento como se eu fosse um raio de sol. Eles são tão grandes, tão adultos.

         - Ei, garoto! Esse babaca é mesmo seu irmão mais velho?

       Assenti timidamente.

         - Ele é mesmo um babaca, não é, garoto?

       Assenti novamente e todos, inclusive Dennis, caem na gargalhada. Então Dennis bate duas palmas vigorosas e diz: - Como é, vamos jogar ou ficar aqui parados como um bando de idiotas?

       Correm para seus lugares já quicando a bola no meio de campo.

       - Vai sentar lá no banco, Gordie. Fica quieto. Não incomoda ninguém.

       Vou me sentar no banco. Estou bem. Sinto-me insuportavelmente pequeno sob as doces nuvens do verão. Observo meu irmão jogar. Não incomodo ninguém.

       Mas não houve muitas ocasiões como aquela.

       As vezes lia histórias para mim antes de dormir que eram melhores que as de mamãe; as histórias de mamãe eram sobre O Lobo Mau e os Três Porquinhos, uma coisa legal, mas as de Dennis eram sobre Barbazul e Jack o Estripador. Também tinha uma versão da história de Billy Goat onde o monstro embaixo da ponte acabava levando a melhor. E, como já contei, ele me ensinou a jogar cribbage e embaralhar cartas. Não muito, mas ei!, do mundo se leva o que se pode, certo?

       A medida que eu fui crescendo meus sentimentos de amor por Dennis foram substituídos por uma admiração quase clínica, o tipo de admiração que os meio-cristãos sentem por Deus, eu acho. E quando ele morreu fiquei um pouco chocado e um pouco triste, da maneira que eu imagino que os mesmos meio-cristãos devem ter se sentido quando a revista Time disse que Deus estava morto. Deixe-me dizer de outra forma:

Fiquei tão triste com a morte de Dennis como quando ouvi no rádio que Dan Blocker tinha morrido. Via os dois quase com a mesma freqüência, e Denny nunca foi represado.

       Ele foi enterrado num caixão fechado com a bandeira americana em cima (tiraram a bandeira de cima do caixão antes de finalmente descê-lo, dobraram-na como um chapéu de bicos e deram para minha mãe). Meus pais simplesmente ficaram arrasados. Quatro meses não foram suficientes para recuperá-los; eu não sabia se algum dia iriam recuperar-se. Sr. e Sra. Deprimidos. O quarto de Dennis, uma porta depois da minha, ficou com sua vivacidade suspensa, ou talvez parado no tempo. As flâmulas de esportes ainda estavam na parede, as fotos das garotas que tinha namorado ainda pregadas no espelho, onde ficava horas penteando o cabelo para trás com o topete igual ao de Elvis. O porta-revistas com exemplares de True e Sports lllustrated permanecia em sua mesa, as datas parecendo cada vez mais antigas à medida que o tempo passava. E o tipo de coisa que se vê em filmes melodramáticos. Mas para mim não era melodramático; era horrível. Não entrava no quarto de Dennis a menos que fosse obrigado, porque sempre achava que ele estaria atrás da porta, embaixo da cama ou dentro do armário. O armário era que ficava mais na minha cabeça, e se minha mãe me mandava ir lá pegar o álbum de cartões-postais de Denny ou sua caixa de sapatos com fotografias, eu imaginava que a porta abriria lentamente enquanto eu ficava imóvel e apavorado. Imaginava-o pálido e sangrando na escuridão, a parte lateral de sua cabeça esmagada, um bolo de sangue e miolos cheio de veias secando em sua camisa. Imaginava seus braços surgindo, suas mãos transformando-se em garras e ele rosnando: Devia ter sido você, Gordon. Devia ter sido você.

Cidade da Moda, de Gordon Lachance. Publicado originalmente em Greenspuns Quarterly, número 15, outono, 1970. Reprodução autorizada.Março.

       Chico está de pé na janela, braços cruzados, cotovelos sobre o parapeito que divide a vidraça superior da inferior, nu, olhando para fora, a respiração embaçando o vidro. Uma corrente de ar contra sua barriga. O vidro inferior da vidraça à direita está faltando. Fecharam com um pedaço de papelão.

       - Chico.

       Não se vira. Ela não fala de novo. Ele pode ver o fantasma dela no vidro, na cama dele, sentado, cobertores levantados num aparente desafio à gravidade A maquiagem de seus olhos derreteu formando profundas olheiras embaixo deles.

         Chico desvia o olhar para além de seu fantasma, para além da casa. Chove. Pedaços de neve derreteram revelando um terreno liso. Ele vê a grama morta do ano anterior, um brinquedo de plástico - de Billy, - um ancinho enferrujado. O Dodge de seu irmão Johnny está sobre cubos de madeira, as rodas sem pneus parecendo tocos. Ele lembra das ocasiões em que ele e Johnny trabalharam nele, ouvindo os super-sucessos e canções antigas na W LA M de Lewiston no velho rádio transistor de Johnny – várias vezes Johnny lhe dera cerveja. Ele vai correr muito, Chico, Johnny dizia. Vai comer todos os carros nessa estrada de Gates Falls até Castle Rock, Espera só até a gente colocar aquele câmbio!

         Mas aquilo fora no passado, e isso era agora.

Depois do Dodge de Johnny estava a auto-estrada. Rota 14 vai até Portland e sul de New Hampshire, direto até o norte do Canadá, se você dobrasse à esquerda na U.S. 1 em Thomaston.

       - Cidade da Moda - diz Chico para o vidro. Ele fuma um cigarro.

       - O quê?

       - Nada, querida.

       - Chico? - Sua voz está confusa. Ele vai ter que trocar os lençóis antes que o pai volte.

Ela sangrou.

       - O quê?

       - Eu te amo, Chico.

       - Está bem.

Mês nojento. Você é uma puta velha, pensa Chico. Nojenta, horrorosa, com os peitos caros e chuva no rosto.

       - Este quarto era de Johnny - diz ele de repente.

       - Quem?

       - Meu irmão.

       - Ah. Onde ele está?

       - No exército - diz Chico, mas Johnny não está no exército. No verão anterior trabalhava numa pista de alta velocidade, e um carro perdeu o controle e foi derrapando em direção à lateral, onde Johnny trocava os pneus traseiros de um carro de corrida. Alguns rapazes gritaram para que tomasse cuidado, mas Johnny não ouviu. Um dos rapazes que gritou foi o irmão de Johnny, Chico.

       - Não está com frio?

       - Não. Bem, meus pés. Um pouco.

       E ele pensa de repente: Bem, meu Deus. Nada do que aconteceu a Johnny deixará de acontecer a você, mais cedo ou mais tarde. Ele vê a cena novamente: O Ford Mustang derrapando e deslizando, os nós da espinha de seu irmão aparecendo nas dobras da camiseta; ele estava acocorado trocando um dos pneus traseiros do Chevy. Houve tmpo de ver a borracha soltando dos pneus do Mustang descontrolado, de ver o cano de descarga solto arrancando faíscas no meio da pista. Bateu em Johnny quando tentava levantar-se. Em seguida, a labareda amarela.

         Bem, pensa Chico, poderia ter sido lentamente, e pensa em seu avó. Cheiro de hospital. Enfermeiras jovens e bonitas trazendo a "comadre" O último frágil suspiro. Havia alguma maneira boa?

       Treme e duvida da existência de Deus. Toca a pequena medalha de prata de São

Cristóvão que pende de um cordão em seu pescoço. Não é católico e certamente não é mexicano; seu nome verdadeiro é Edward May e todos seus amigos o chamam de Chico, pois seus cabelos são pretos e ele os penteia para trás com Brylcreem e usa botas de bico fino e salto alto. Não é católico, mas usa a medalha. Talvez se Johnny estivesse usando uma, o Mustang sem controle não o tivesse pego. Nunca se sabe.

Fuma e olha fixamente pela janela, e atrás dele a garota levanta da cama e corre em sua direção, talvez com medo de que se vire e a veja. Coloca uma das mãos, quente, em suas costas. Seus seios comprimem-se na lateral de seu corpo. A barriga toca suas nádegas.

       - Hum, que frio.

       - E este lugar.

       - Você me ama, Chico?

       - Adivinha! - diz ele sem pensar, e depois mais sério: Você era moca.

       - Como assim?

       - Virgem.

       As mãos sobem e um dos dedos percorrem a pele na base do pescoço. - Eu falei, não foi?

       - Foi difícil? Doeu?

       Ela ri. - Não. Mas fiquei com medo.

       Observam a chuva. Um Oldsmobile novo passa na 14, levantando água.

       - Cidade da Moda - diz Chico.

       - O quê?

       - Aquele cara. Está indo para a Cidade da Moda. Em seu novo carro da moda.

Ela beija o lugar que seu dedo tocava carinhosamente, e ele esfrega o lugar, como se ela fosse uma mosca.

       - Qual o problema?

       Vira-se para ela. Seus olhos caem até seu pênis e sobem rapidamente. Ela cruza os braços em volta de si, então lembra que nunca fazem isso no cinema, e deixa-os cair ao lado novamente. Seus cabelos são pretos e sua pele é branca como a neve. Seus seios são firmes, a barriga provavelmente um pouco mole demais. Um defeito para lembrar, pensa Chico, que isto não é filme.

       - Jane?

       - O quê? - Ele sente que está ficando pronto, não começando, mas ficando pronto.

       - Tudo bem - diz ele. - Somos amigos. - Olha para ela propositadamente, deixando seu corpo tocá-la. Quando olha seu rosto novamente vê que está corada. - Você se incomoda que eu te olhe?

       - Eu... não. Não, Chico.

       Ela anda para trás, fecha os olhos, senta na cama e recosta-se de pernas abertas. Ele a vê inteira. Os músculos, os pequenos músculos da parte interior de suas coxas... pulam, incontrolavelmente, e isso de repente o excita mais que seus seios duros em forma de cones ou a suave pele rosada de sua vagina. A excitação o faz tremer, um palhaço excitado. O amor pode ser divino como os poetas dizem, ele acha, mas o sexo é um palhaço pulando cheio de excitação. Como uma mulher podia olhar para um pênis ereto sem perder o ar de tanto rir?

       A chuva bate contra o telhado, contra a janela, contra o papelão encharcado tampando o buraco na parte inferior da janela. Ele pressiona a mão contra o peito parecendo por um momento um romano na arena prestes a discursar. Sua mão está fria. Ele a deixa cair ao lado.

       - Abra os olhos. Somos amigos, já disse.

       Obedientemente ela abre. Olha-o. Seus olhos agora parecem violeta. A água da chuva escorrendo pela janela forma sombras onduladas em seu rosto, pescoço e seios. Esticada na cama sua barriga fica lisa. Está perfeita nesse momento.

       - Ai - diz ela. - Ai, Chico, é tão estranho. - Um tremor percorre seu corpo. Curvou os dedos do pé involuntariamente. Olha o peito de seu pé. É rosa. - Chico, Chico.

       Ele caminha em sua direção. O corpo dele treme e os olhos dela estão assustados. Ela

diz alguma coisa, uma palavra, mas ele não sabe o que é. Não é hora de perguntar. Ele fica semi-ajoelhado em frente a ela por um momento olhando o chão com a testa franzida, concentrado, tocando suas pernas acima dos joelhos. Ele mede o fluxo dentro de si. Sua ereção é inconsciente, fantástica. Faz uma pausa maior.

       O único barulho é o tique-toque baixo do relógio na mesa-de-cabeceira com os pés de bronze, sobre uma pilha de revistas em quadrinho do Homem Aranha. A respiração dela fica cada vez mais rápida. Os músculos dele deslizam suavemente enquanto mergulha, subindo e descendo. Começam. Desta vez é melhor. Do lado de fora a chuva continua a levar a neve.

       Uma meia hora depois Chico sacode-a para que acorde de um cochilo. - Temos que sair - diz ele. - Papai e Virginia vão chegar a qualquer hora.

       Ela olha seu relógio de pulso e senta-se. Dessa vez não tenta cobrir-se Seu tom – seu falar entrecortado - mudou. Não amadureceu (embora provavelmente acredite que sim) nem aprendeu nada mais complexo que amarrar um sapato, mas seu tom mudou mesmo assim. Ele balança a cabeça e ela sorri tentadoramente para ele. Ele pega os cigarros na mesa-de-cabeceira. Enquanto ela veste a calcinha ele pensa na letra de uma música engraçada: Continue tocando até eu parar... toque seu chá-chá-chá. Tie Me Kangaroo Down, de Rolf Harris. Ri. Johnny costumava cantar essa música. Acabava assim:

Depois lhe sentamos o pau, babau.

       Ela fecha o sutiã e começa a abotoar a blusa. - De que você está rindo, Chico?

       - Nada - diz ele

       - Fecha meu zíper?

       Ele vai até ela, ainda nu, e fecha seu zíper. Beija seu rosto. Vá ao banheiro se maquiar se quiser - diz ele. - Só não demore muito, está bem?

       Ela caminha pelo corredor graciosamente e Chico a observa, fumando. Ela é alta – mais que ele - e tem que abaixar a cabeça um pouco quando passa na porta do banheiro. Chico encontra sua cueca embaixo da cama. Coloca-a na cesta de roupa suja pendurada na porta do armário e pega outra na cômoda. Veste-a e quando volta para a cama escorrega e quase cai numa poça de água que o papelão deixou entrar.

       - Droga - murmura chateado.

       Olha o quarto que fora de Johnny antes de morrer (por que lhe dissera que ele estava no exército, meu Deus? pensa ele... um pouco constrangido). Paredes de fibra compensada - tão finas que pode ouvir papai e Virginia de noite - que não vão até o teto. O chão tem um ângulo estranhamente inclinado, de modo que a porta do quarto só fica aberta se você prendê-la - se esquecer ela volta e bate assim que você vira as costas. Numa das paredes há um pôster do filme Sem Destino - Dois Homens Saíram em Busca da América e Não Conseguiram Encontrá-la em Lugar Nenhum. O quarto tinha mais vida quando Johnny morava nele. Chico não sabe como nem por quê; apenas essa é a verdade. E sabe outra coisa também. Sabe que às vezes o quarto tem fantasmas à noite. As vezes acha que a porta do armário vai abrir e Johnny aparecer, seu corpo queimado, deformado e negro, sua dentadura começando a derreter e soltar os dentes amarelos; e Johnny irá sussurrar: Sai do meu quarto, Chico. E se encostar a mão em meu Dodge eu te mato. Entendeu?

         Entendi, mano - pensa Chico.

         Por um instante permanece parado, olhando o lençol amassado e manchado de sangue, então estica o cobertor com um único movimento rápido. Aqui. Exatamente aqui. Que tal, Virginia? Isso te excita? Veste as calças, as botas, encontra um suéter.

         Está penteando o cabelo em frente ao espelho quando ela sai do banheiro. Está elegante. Sua barriga mole demais não aparece no macacão. Ela olha para a cama, faz algumas coisas nela e fica parecendo que está arrumada.

       - Bom - diz Chico.

       Ela ri um pouco inibida e põe uma mecha de cabelo atrás da orelha. É um gesto evocativo, tocante.

         - Vamos - diz ele.

         Passam pelo corredor e pela sala de estar. Jane pára em frente à TV com a fotografia colorida no alto. São o pai dele e Virginia. Johnny no segundo grau, Chico no ginásio e Billy bebê - na fotografia Johnny está carregando Billy. Todos eles têm sorrisos forçados e duros... todos menos Virginia, com seu rosto sério e indecifrável. Aquela foto, lembrava Chico, fora tirada menos de um mês antes de seu pai casar-se com a puta.

       - São seu pai e sua mãe?

       - Meu pai - disse Chico. - Ela é minha madrasta, Virginia. Vamos.

       - Ela ainda é bonita assim? - pergunta Jane, pegando o casaco e entregando a Chico seu blusão de couro.

       - Acho que meu velho acha - diz Chico.

       Saem no alpendre. Está úmido e ventando - o vento uiva entrando pelas fendas da parede. Há uma pilha de pneus careca, a antiga moto de Johnny que Chico herdou quando tinha dez anos e que logo destruiu, uma pilha de revistas de detetive, cascos de Pepsi, uma peça de motor com graxa, um caixote laranja cheio de livros em brochura e uma antiga pintura de um cavalo sobre a grama verde.

         Chico ajuda-a a sair. A chuva cai impiedosamente sem parar. O velho sedã de Chico está parado numa poça na entrada de carros, parecendo triste. Mesmo sob cubos e com um pedaço de plástico no lugar do quebra-vento, o Dodge de Johnny tem mais classe. O

carro de Chico é um Buick. A pintura está fosca e cheia de ferrugem. O banco da frente foi forrado com um cobertor marrom do exército. Um grande broche preso ao protetor solar do lado do passageiro diz: QUERO TODOS OS DIAS. Há um motor de arranque enferrujado no banco traseiro; se parar de chover ele vai limpá-lo, pensa, e talvez colocá-lo no Dodge. Talvez não.

         O Buick tem cheiro de mofo e o motor custa muito a pegar.

           - É a bateria?

           - Só a merda da chuva, eu acho. - Sai de ré na rua ligando os limpadores de pára-brisa e parando um momento para olhar a casa. É uma aquarela completamente sem graça. O alpendre destacado tem um aspecto deselegante e popular, papel alcatroado e telhas descascadas.

           O rádio começa a tocar estridente e Chico o desliga na hora. Há uma ligeira dor de cabeça de domingo no fundo de sua testa. Eles passam pelo Grange Hall, o Departamento de Voluntários do Corpo de Bombeiros e pela loja de Brownie. O carro de Sally Morrison está estacionado em frente à loja de Brownie e Chico ergue a mão para ela ao dobrar na Lewiston Road.

         - Quem é aquela?

         - Sally Morrison.

         - Bonita moça. - Bem natural.

         Ele procura os cigarros. - Ela já casou e se divorciou duas vezes. Agora é a puta da cidade, se você acreditar na metade das histórias que contam nesta cidadezinha de merda.

         - Parece jovem.

         - Ela é.

         - Você já...

         Ele desliza a mão por sua coxa e sorri. - Não - diz ele. Meu irmão talvez, mas eu não.

Gosto de Sally. Tem o dinheiro dela, o grande Bird branco e não liga para o que falam a seu respeito.

           Começou a parecer uma longa viagem. O Androscoggin, à direita, está cinza e soturno. Toda a neve já saiu. Jane ficou quieta e pensativa. O único barulho é o passar constante dos limpadores de pára-brisa. Quando o carro passa por depressões na rua a névoa baixa escondida esperando a noite chegar para subir e tomar toda a River Road.

           Cruzam a Auburn, Chico pega um atalho e entra na Minot Avenue. As quatro pistas estão praticamente desertas, e todas as casas do subúrbio parecem cheias. Vêem um garotinho com uma capa de chuva amarela caminhando pela calçada e cuidadosamente pisando nas poças.

           - Aí, cara - diz Chico devagar.

           - O quê? - pergunta Jane.

           - Nada, querida. Durma.

           Ela ri um pouco em dúvida.

           Chico dobra na Keston Street e na entrada para carros de uma das casas cheias. Não desliga o motor.

           - Entre, vou lhe dar biscoitos - diz ela.

          Ele balança a cabeça. - Tenho que voltar.

           - Eu sei. - Coloca os braços em volta dele e beija-o. - Obrigada pelo dia mais maravilhoso da minha vida.

           Ele sorri de repente. Seu rosto se ilumina. É quase mágico. Vejo você na segunda-feira, Janey-Jane. Amigos, está bem?

           - Você sabe que somos - diz ela, e beija-o novamente... mas quando ele pega em seu seio por cima do macacão, ela se esquiva. - Não. Meu pai pode ver.

           Ele a deixa ir, apenas com um vestígio do sorriso no rosto. Ela salta do carro rapidamente e corre pela chuva até a porta dos fundos. Um segundo depois desaparece.

Chico pára um segundo para acender um cigarro e então sai de ré da alameda para carros. O motor do Buick afoga e parece que nunca mais vai pegar. O caminho para casa é longo.

           Quando chega, a camionete de seu pai está estacionada na entrada de carros. Pára a seu lado e deixa o motor morrer. Por um momento fica parado em silêncio, escutando a chuva. E como estar dentro de um tambor.

           Dentro de casa Billy está vendo TV. Quando Chico entra Billy levanta com um pulo, excitado. - Eddie, Eddie, sabe o que o Tio Pete disse? Que ele e um grupo afundaram um submarino alemão na guerra! Você me leva ao show sábado que vem?

          - Não sei - diz Chico sorrindo. - Talvez, se você beijar meus sapatos todos os dias depois do jantar durante uma semana. Puxa o cabelo de Billy, Billy grita, ri e chuta-lhe as canelas.

           - Parem com isso - diz Sam May entrando na sala. - Parem com isso os dois. Vocês sabem que sua mãe não gosta de casa desarrumada - Ele afrouxara a gravata e desabotoara o primeiro botão da camisa. Tem um prato com três cachorros-quentes na mão, os três com pão branco e mostarda. - Onde você andava, Eddie?

         - Na casa de Jane.

           Puxam a descarga no banheiro. Virginia. Chico pensa rapidamente se Jane deixou cabelos na pia, ou um batom ou um grampo.

           - Você devia ter vindo conosco ver seu tio Pete e sua tia Ann - diz seu pai. Come um dos cachorros em três mordidas.

           - Você está virando um estranho por aqui, Eddie. Não gosto disso. Não enquanto lhe damos casa e comida.

         - Casa até certo ponto - diz Chico. - Cama até certo ponto.

         Sam olha para cima na mesma hora, primeiro magoado, depois irado. Quando fala, Chico vê que seus dentes estão amarelos de mostarda francesa. Fica ligeiramente nauseado. - Essa sua boca, essa sua boca suja. Você ainda não é grande, pirralho.

         Chico dá de ombros, pega uma fatia do pão de fôrma que está na bandeja perto da cadeira do pai e cobre-a de ketchup. - De qualquer maneira daqui a três meses vou embora.

         - O que você está dizendo?

         - Vou consertar o carro de Johnny e vou para a Califórnia. Procurar emprego.

         - Ah, sim. Muito bem. - Ele é um grande homem, grande de uma maneira confusa, mas Chico acha que ficou mais fraco depois que casou com Virginia e mais fraco ainda depois que Johnny morreu. E em sua cabeça ouve suas palavras para Jane: Meu irmão talvez, mas eu não. E em seguida: Toque seu chá-chá-chá... - Não vai conseguir chegar com esse carro nem em Castle Rock, que dirá na Califórnia.

         - Acha mesmo? É só me dar a merda da grana.

         Por um momento seu pai apenas o olha, depois atira-lhe o cachorro-quente que estava segurando. Bate no peito de Chico espalhando mostarda em sua suéter e seu cabelo.

         - Se falar essa palavra de novo que eu te arrebento a cara, espertinho.

       Chico pega o cachorro-quente e o olha. Salsicha barata e vermelha coberta de mostarda francesa. Traz um pouco de alegria. Joga-a de volta em cima do pai Sam levanta-se, o rosto vermelho como um tijolo, a veia no meio da testa pulsando. Sua coxa toca na bandeja e ela vira. Billy está em pé na porta da cozinha olhando-os. Segura um prato de

salsichas com feijão, o prato está inclinado e o caldo do feijão escorre no chão. Os olhos de Billy estão assustados, sua boca treme. Na TV o programa continua com um carro correndo em velocidade vertiginosa.

       - Você cria os filhos da melhor maneira possível e eles cospem em você - diz seu pai numa voz abafada. - É assim. - Ele apalpa sem olhar o assento da cadeira e pega o cachorro-quente pela metade. Segura-o dentro da mão como um falo duro. Incrivelmente começa a comê-lo... ao mesmo tempo Chico vê que começou a chorar. - Cospem em você, é assim.

       - Então por que você teve que casar com ela? - grita ele, e então tem que ouvir o resto:

Se você não tivesse casado com ela Johnny não teria morrido,

       - Isso não é da sua conta! - esbraveja Sam May entre lágrimas. - É problema meu!

       - Ah, é? - grita Chico. - Eu simplesmente tenho que viver com ela! Eu e Billy temos que viver com ela! Vê-la enganar você E você nem sabe...

       - O quê? - diz seu pai, e sua voz de repente torna-se baixa e ameaçadora. O pedaço de cachorro-quente que sobrou dentro de sua mão fechada parece um pedaço de osso sangrento. - O que eu não sei?

       - Você não consegue enxergar nada - diz ele, estarrecido com o que quase deixou escapar.

       - É melhor parar agora - diz seu pai - ou eu arrebento você, Chico. - Ele só o chama de Chico quando está realmente com muita raiva.

       Chico vira-se e vê que Virginia está parada do outro lado da sala consertando a saia minuciosamente, olhando para ele com seus grandes e calmos olhos castanhos. Seus olhos são bonitos; o resto não é tão bonito, tão atraente, mas aqueles olhos ainda a carregarão por muitos anos, pensa Chico, e sente o ódio doentio voltar Depois lhe sentamos o pau, babau.

       - Ela prende você pelo sexo e você não tem coragem de fazer nada!

       Toda essa gritaria finalmente é demais para Billy, e ele solta um grito de terror, deixa cair o prato de salsichas com feijão e cobre o rosto com as mãos. O caldo do feijão espirra em seus sapatos de domingo e cobre o tapete.

       Sam dá um único passo à frente e pára quando Chico faz um gesto breve e abrupto como se dissesse: É, vamos, vamos resolver isso logo, por que você demorou tanto?

Ficam parados como estátuas até que Virgínia fala - sua voz é baixa, calma como seus olhos castanhos.

       - Você trouxe uma garota para seu quarto, Ed? Você sabe o que seu pai e eu achamos disso. - Quase como um pensamento tardio: - Ela esqueceu um lenço.

       Ele a olha fixamente, iradamente incapaz de expressar o que acha - que ela é sórdida, que fala dos outros pelas costas e tira sua liberdade.

       Você poderia me ferir se quisesse, dizem os calmos olhos castanhos. Eu sei que você sabe o que estava acontecendo antes dele morrer. Mas é a única maneira que pode me ferir, não é Chico? E só se seu pai acreditasse em você. E se ele acreditasse seria fatal

para ele.

       Seu pai entra no jogo como um baixo investidor: - Você andou fodendo na minha casa, seu desgraçado?

       - Cuidado com sua linguagem, Sam - diz Virgínia calmamente.

       - É por isso que não quis vir conosco? Para poder fo... para poder...

       - Fala! - grita Chico. - Não deixe ela fazer isso com você! Falei o que quer!

       - Saia - diz ele apático. - E não volte até pedir desculpas para sua mãe e para mim.

       - Não se atreva! - grita ele. - Não se atreva a chamar essa puta de minha mãe! Eu mato você!

       - Pare, Eddie! - grita Billy. As palavras saem abafadas distorcidas por entre suas mãos que ainda lhe cobrem o rosto. Pare de gritar com papai! Pare, por favor!

       Sam cambaleia para trás e a parte traseira de seus joelhos toca a ponta da poltrona. Ele senta pesadamente e cobre o rosto com o braço cabeludo. - Não consigo nem olhá-lo quando você fala palavras como essa, Eddie. Você está fazendo eu me sentir muito mal.

         - Ela faz você se sentir mal! Por que não admite isso?

         Ele não responde. Ainda sem olhar Chico, procura outra salsicha envolvida em pão na bandeja. Procura a mostarda. Billy chora. Na TV os personagens cantam uma música de caminhoneiro. Minha roupa é velha, mas não quer dizer que não presta, dizem a todos os telespectadores do oeste do Maine.

       - O garoto não sabe o que está dizendo, Sam - diz Virginia educadamente. - Na idade dele é difícil. E difícil crescer.

       Ela o provocou. Pronto, é o fim.

       Ele vira e vai em direção à porta que leva ao alpendre e depois à rua. Ao abri-la, olha para trás para Virginia e ela o observa tranqüilamente quando fala seu nome.

         - O que é, Ed?

         - Os lençóis estão cheios de sangue. - Faz uma pausa. Eu tirei a virginidade dela.

Ele acha que viu alguma reação em seus olhos, mas provavelmente é apenas seu desejo.

         - Por favor, vá embora agora, Ed. Você está amedrontando Billy.

       Ele sai. O Buick não quer pegar e ele está quase conformado em ir andando na chuva quando o motor finalmente pega. Acende um cigarro e sai novamente na 14, dando socos e xingando o carro quando ele começa a falhar e engasgar. A luz da bateria pisca desastrosamente duas vezes, e depois o carro começa a andar lentamente. Finalmente estará a caminho de Gates Falls subindo a rua.

         Lança um último olhar para o Dodge de Johnny. Johnny poderia ter tido um emprego estável no moinho mas só no turno da noite. Não se importava de trabalhar à noite, dissera a Chico, e o salário era melhor, mas o pai deles trabalhava de dia, e trabalhar à noite no moinho significaria ter que ficar sozinho com ela, sozinho ou com Chico no quarto ao lado... e as paredes eram finas. Eu não consigo impedi-la e ela não deixa, dizia Johnny. Bem, eu sei o que isso seria para ele. Mas ela... ela simplesmente não pára e eu não consigo parar... ela está sempre em cima de mim, você sabe o que eu quero dizer, você já viu, o Billy é muito pequeno, mas você já viu...

         Sim, já vira. E Johnny tinha ido trabalhar na fábrica de automóveis dizendo ao pai que era porque podia conseguir peças para o Dodge mais baratas. E foi assim que ele estava trocando um pneu quando o Mustang veio derrapando e deslizando em direção à lateral da pista com o cano de descarga arrancando faíscas do chão; assim sua madrasta matara seu irmão, então continue tocando até eu parar, porque estamos indo para a Cidade da Moda nesse Buick de merda, e lembra do cheiro da borracha e das ondas que as protuberâncias da espinha de Johnny formavam no branco brilhante de sua camiseta, lembra de tê-lo visto chegar a levantar até certo ponto quando o Mustang o atingiu, imprensando-o contra o Chevy: e houve um barulho seco quando o Chevy caiu do macaco, e depois o cheiro rico de gasolina...

           Chico pisa no freio com os dois pés fazendo o sedã parar com um rangido na beira da faixa impedida pela água da chuva. Ele se joga violentamente sobre o banco, abre com pressa a porta do lado do passageiro e derrama um vômito amarelo sobre a lama e a neve.   Aquela visão o faz vomitar novamente, e a situação causa-lhe náuseas mais uma vez. O carro quase afoga mas ele evita a tempo, A luz da bateria pisca insistentemente quando ele acelera. Ele senta esperando a tremedeira passar. Um carro passa a toda velocidade, um Ford novo, branco, levantando grandes leques de água suja e neve derretida com lama.

           - Cidade da Moda - diz Chico. - Em seu novo carro da moda. Deprimente.

           Sente o gosto do vômito em seus lábios, na garganta e entupindo seu nariz. Não quer um cigarro. Danny Carter o fará dormir. Amanhã haverá bastante tempo para novas decisões. Entra novamente na Rota 14 e segue.

 

          Muito melodramático, não é?

           O mundo já viu algumas histórias melhores, sei disso - algumas centenas de milhares de histórias melhores, melhor dizendo. Devia estar escrito em cada página ISSO É PRODUTO DO CURSO DE COMPOSIÇÃO CRIATIVA DE UM ALUNO... porque era exatamente isso, pelo menos até certo ponto. Agora me parece ao mesmo tempo dolorosamente derivativo e dolorosamente imaturo; estilo de Hemingway (com exceção que está tudo no presente, por algum motivo - muito tendencioso) e tema de Faulkner.

Alguma coisa podia ser mais séria? Mais literária?

           Mas mesmo suas pretensões não podem esconder o fato de que é uma história extremamente sexual escrita por um jovem extremamente inexperiente (na época em que escrevi Cidade da Moda tinha ido para a cama com duas garotas e ejaculado prematuramente com uma delas - não como Chico na história anterior, eu acho). Sua atitude em relação às mulheres vai além da hostilidade, chegando quase a ser repugnante - duas mulheres em Cidade da Moda são prostitutas, e a terceira é um simples objeto que diz coisas como "Eu te amo, Chico" e "Entre, vou lhe dar biscoitos." Chico, por outro lado, é um herói machão fumante da classe operária que poderia ter saído de um disco do Bruce Springsteen embora não se ouvisse falar em Springsteen quando eu publiquei a história na revista literária da faculdade (onde saiu entre um poema chamado Imagem de Mim e um ensaio sobre os estudantes residentes na universidade escrito inteiramente em letra minúscula). E o trabalho de um jovem tão inseguro quanto inexperiente.

           E no entanto foi a primeira história que escrevi com a sensação de que era a minha história - a primeira que parecia completa, depois de cinco anos de tentativas. A primeira que pode ainda ser significativa, mesmo sem seus suportes. Repugnante mas viva. Mesmo agora quando a leio, sorrindo de sua pseudoconsistência e pretensões, posso ver o rosto de Gordon Lachance escondido entre as linhas, um Gordon Lachance mais novo do que o que escreve agora, certamente mais idealista que o escritor de best sellers que renova seus contratos de brochuras mais que de livros, mas não tão jovem como aquele que foi com seus amigos aquele dia ver o corpo de um menino chamado Ray Brower. Um Gordon Lachance na metade do processo de perda do brilho.

           Não, não é uma história muito boa - seu autor estava preocupado demais em ouvir outras vozes e não ouviu tão bem como devia a voz que vinha de dentro. Mas foi a primeira vez que realmente usei um lugar que conhecia e coisas que sabia numa ficção, e tive um enorme contentamento ao ver as coisas que me perturbaram durante anos saírem sob nova forma, uma forma sobre a qual eu havia imposto controle. Haviam se passado muitos anos desde que aquela idéia infantil de que Denny estava no armário como um fantasma em seu quarto mal-assombrado me ocorrera; teria acreditado sinceramente que a esquecera. Entretanto lá está ela em Cidade da Moda – apenas ligeiramente mudada... mas sob controle.

         Resisti ao ímpeto de mudá-la, de reescrevê-la; de condensá-la - e aquele ímpeto foi muito forte, pois acho a história muito embaraçosa agora. Mas ainda há coisas nela que gosto, coisas que seriam diminuídas pelas mudanças feitas por esse Lachance mais velho, ameaçado pelos primeiros fios de cabelo branco. Coisas como a imagem das sombras na camiseta branca de Johnny ou o reflexo da chuva escorrendo na vidraça no corpo riu de Jane, que parecem melhores do que têm direito de ser.

       Além do mais, foi a primeira história que nunca mostrei para minha mãe nem para meu pai. Era claramente sobre Denny. Claramente sobre Castle Rock. E, acima de tudo, claramente sobre 1960. Sempre se sabe a verdade, pois quando você fere a si ou a alguém com ela há sempre um sangramento visível.

       Meu quarto ficava no segundo andar, e devia estar fazendo pelo menos trinta e dois graus lá em cima. Chegaria a trinta e oito de tarde, mesmo com todas as janelas abertas.

Estava realmente muito feliz porque não ia dormir lá aquela noite, e só em pensar onde íamos fiquei excitado novamente. Enrolei dois cobertores feito um colchão e amarrei-os com meu velho cinto. Peguei todo o dinheiro que tinha, sessenta e oito cents. Então estava pronto para partir.

       Desci pela escada dos fundos para evitar encontrar meu pai na frente da casa, mas não precisaria ter-me preocupado; ele ainda estava no jardim com a mangueira, formando arco-íris inúteis no ar e olhando através deles.

       Desci Summer Street e cortei caminho por um terreno baldio para chegar na Carbine - onde estão os escritórios do Call de Castle Rock hoje em dia. Estava subindo a Carbine em direção ao clube quando um carro subiu no meio-fio e Chris saltou. Tinha sua mochila de escoteiro numa das mãos e dois cobertores amarrados com uma corda de pano na outra.

         - Obrigado, senhor - disse ele, e veio correndo em minha direção assim que o carro afastou-se. Seu cantil de escoteiro estava pendurado no pescoço passando por baixo de um braço, e finalmente terminava balançando na altura dos quadris. Seus olhos brilhavam.

       - Gordie! Quer ver uma coisa?

       - Claro, acho que sim. O quê?

       - Vem aqui primeiro. - Ele apontou o estreito espaço entre o Restaurante Blue Point e a farmácia de Castle Rock.

       - O que é, Chris?

       - Vem cá, já disse!

       Desceu correndo o beco e logo em seguida lo tempo suficiente para colocar de lado meu julgamento) saí correndo atrás dele. Os dois prédios não eram bem paralelos, de maneira que o beco ia se estreitando no final. Passávamos sobre restos de jornais velhos e ninhos brilhantes e perigosos de garrafas de cerveja e soda quebradas. Chris entrou atrás do Blue Point e colocou os cobertores no chão. Havia oito ou nove latas de lixo alinhadas, e o fedor era insuportável.

         - Hum, Chris! Espera aí, dá um tempo!

         - Preste atenção - disse Chris por hábito.

         - Não, sério, eu vou vo...

       As palavras sumiram de minha boca e esqueci totalmente as latas de lixo fedorentas.

Chris havia desenrolado os cobertores e pego algo dentro deles. Agora segurava uma enorme pistola com a coronha de madeira escura.

       - Quer ser o Lone Ranger ou o Cisco Kid? - perguntou Chris rindo.

       - Caramba, meu Deus! Onde você conseguiu isso?

       - Peguei no escritório do meu pai. É um quarenta e cinco.

       - E, estou vendo - disse eu, embora pudesse ser um .38 ou um .357 para mim - apesar de todos os John D. MacDonalds e Ed McBains que tinha lido, a única pistola que vira de perto tinha sido a do inspetor Bannerman... e embora todas as crianças pedissem para tirá-la do coldre, ele nunca tirava. - Cara, teu pai vai te matar quando descobrir. Você disse que ele estava de mau humor.

       Seus olhos apenas dançavam. - O negócio é o seguinte, cara. Ele nunca vai descobrir nada. Ele e aqueles outros bêbados estão todos enfiados no Harrison com seis ou oito

garrafas de vinho. Só voltam daqui a uma semana. Bêbados filhos da mãe. - Seus lábios contraíram-se. Era o único da turma que nunca bebia, nem que fosse para mostrar que era valentão. Dizia que não queria se tornar um beberrão como seu pai quando crescesse. E uma vez me disse particularmente - isso foi depois que os gêmeos DeSpain apareceram com um pacote de seis garrafas de cerveja que roubaram do pai e todos zombaram de Chris porque ele não tomou nem um gole - que tinha medo de beber. Disse que seu pai não tirava mais a boca da garrafa, que seu irmão estava bêbado como um porco quando estuprou aquela garota e que Eyeball estava sempre entornando vinho tinto com Ace Merrill, Charlie Hogan e Billy Tessio. Não era certo, me perguntou ele, que se começasse a beber não conseguiria mais parar? Talvez você ache estranho um menino de doze anos se preocupar em ser alcoólatra, mas no caso de Chris não era estranho. De jeito nenhum. Já pensara muito na possibilidade. E já tivera oportunidade para isso.

       - Tem cartuchos?

       - Nove - tudo que tinha na caixa. Ele vai achar que foi ele que usou atirando em latas quando estava bêbado.

       - Está carregada?

       - Não! Pelo amor de Deus, o que você acha que eu sou?

       Finalmente peguei a arma. Gostei de seu peso em minhas mãos. Podia me ver como Steve Carella do Esquadrão 87, ou perseguindo um herói da TV, talvez escoltando-o enquanto arrombava o apartamento revirado de algum traficante desesperado. Mirei uma das latas de lixo fedorentas e apertei o gatilho. KA-BLAM !

       A arma pulou em minha mão. Um fogo apareceu na ponta. Parecia que tinha quebrado o pulso. Meu coração deu um salto até a boca e parou ali, tremendo. Um buraco enorme surgiu na superfície de metal enferrujado da lata - trabalho de algum feiticeiro perverso.

       - Meu Deus! - gritei.

       Chris ria sem parar - não sabia se de prazer ou histeria. Você conseguiu, você conseguiu! Gordie conseguiu! - buzinava ele. - Ei, Gordon Lachance está dando tiros em Castle Rock!

         - Cala a boca! Vamos sair daqui! - gritei, e agarrei-o pela camisa.

       Enquanto corríamos, a porta dos fundos do Blue Point abriu-se e Francine Tupper saiu em seu uniforme branco de garçonete. - Quem fez isso? Quem está soltando bombinhas aqui?

       Corremos como loucos, entrando por trás da farmácia, da loja de ferragens e do Emporium Galorium, que vendia antigüidades, sucata e livros baratos. Subimos uma cerca furando nossas mãos no arame farpado e finalmente chegamos à Curran Street.

Joguei o 45 para Chris enquanto corríamos; ele estava morrendo de rir mas conseguiu pegá-lo, enfiá-lo na mochila e fechar um dos fechos. Quando chegamos na esquina de Curran e alcançamos novamente Carbine Street, começamos a andar para não parecermos suspeitos. Chris ainda estava rindo.

       - Você devia ter visto a tua cara! Foi engraçadíssimo. Muito bom mesmo. - Sacudiu a cabeça, bateu na perna e deu um gritinho.

       - Você sabia que estava carregada, não sabia? Seu idiota! Vou me dar mal. Aquela tal de Tupper me viu.

       - Droga, ela achou que fossem bombinhas. Além disso a velha não enxerga um palmo além do nariz, você sabe. Acha que usar óculos vai estragar seu lindo rosto. - Bateu com a mão nos quadris e começou a rir novamente.

       - Ora, eu não ligo. Mas foi sujeira, Chris.

       - Ora, Gordie. - Colocou uma das mãos no meu ombro. Eu não sabia que estava carregada, juro por Deus, juro pela minha mãe que só peguei no escritório do meu pai.

Ele sempre tira a munição. Devia estar muito bêbado quando guardou da última vez.

       - Você não carregou mesmo a arma?

       - Não senhor.

       - Jura pela sua mãe mesmo que ela vá para o inferno?

       - Juro. - Ele fez o sinal-da-cruz e tossiu, o rosto sincero e contrito como o de um menino cantor de coro. Mas quando entramos no terreno baldio onde ficava nossa casa na árvore e vimos Vern e Teddy sentados em seus cobertores enrolados nos esperando,

começamos a rir de novo. Chris contou a história toda para eles e depois que todos tiveram seus ataques de riso. Teddy perguntou a Chris por que achava que precisaríamos de uma pistola.

       - Para nada - disse Chris. - Pode ser que a gente veja um urso. Ou algo parecido. Além do mais dormir à noite na floresta faz a gente pensar em fantasmas.

       Todos concordaram. Chris era o cara maior e mais forte de nossa turma, e sempre podia se sair com coisas desse tipo. Teddy, por outro lado, seria escorraçado se dissesse que tinha medo de escuro.

       - Você colocou sua barraca no jardim? - perguntou Teddy a Vern.

       - Coloquei. E coloquei também duas lanternas piscando para parecer que estávamos lá quando ficar escuro.

       - Grande! - disse eu, e bati nas costas de Vern. Para ele era uma idéia genial. Ele riu e corou.

       - Então vamos - disse Teddy. - Vamos, é quase meio-dia.

       Chris levantou-se e nos reunimos à sua volta.

       - Vamos atravessar o campo de Beeman e passar por trás daquela loja de móveis de Sonny Texaco - disse ele. - Depois vamos pegar o caminho dos trilhos do trem perto do despejadouro e atravessar a ponte até Harlow.

       - Qual a distância que você calcula? - perguntou Teddy.

       Chris sacudiu os ombros. - Harlow é grande. Vamos andar pelo menos trinta quilômetros. Tudo bem para você, Gordie?

       - Podia ser até cinqüenta.

       - Mesmo que sejam cinqüenta vamos chegar lá amanhã de tarde, se ninguém afrouxar.

       - Não tem nenhum frouxo aqui - disse logo Teddy.

       Olhamo-nos por um momento.

       - Ai... - fez Vern, e todos nós rimos.

       - Vamos, meninos - disse Chris, e colocou a mochila nas costas. Saímos juntos do terreno baldio, Chris assumindo ligeiramente a liderança.

       Quando atravessamos o campo de Beeman e conseguimos subir com muito esforço a margem cheia de cinzas da estrada de ferro Great Southern e Western Maine já tínhamos tirado nossas camisas, enrolando-as na cintura. Suávamos muito. Do alto da margem olhávamos os trilhos lá embaixo, na direção em que iríamos.

       Nunca esquecerei aquele momento, por mais que o tempo passe. Eu era o único que tinha relógio, um Timex barato, uma bonificação que ganhara quando vendi uma pomada no ano anterior. Os dois ponteiros estavam exatamente em cima do doze, e o sol batia na paisagem seca e sem sombras com toda sua intensidade. Era possível senti-lo entrar no seu cérebro e cozinhar seus miolos.

       Atrás de nós ficava Castle Rock, espalhada sobre o longo morro conhecido como Castle View, circundando a praça arborizada e sombreada. Além do Rio Castle viam-se as chaminés verticais do moinho de lã lançando uma fumaça cor de chumbo contra o céu e

despejando sobras na água. O estábulo estava à nossa esquerda. E bem à nossa frente a estrada de ferro brilhante e heliográfica ao sol. Ela corria paralela ao rio, que ficava à esquerda. A direita havia uma grande quantidade de mato (hoje em dia há uma pista de motocicletas - todos os domingos às duas horas da tarde há competições). Uma antiga e abandonada torre de água despontava no horizonte, enferrujada e de certa forma amedrontadora.

       Ficamos parados ali naquele momento único do meio-dia, então Chris disse impaciente:

       - Vamos, vamos andando.

       Caminhamos ao lado dos trilhos nas cinzas, chutando pequenos tufos de poeira preta a cada passo. Nossas meias e tênis ficaram logo cobertos de poeira. Vern começou a cantar Roll Me Over in the Clover mas logo parou, o que foi um alívio para nossos ouvidos. Apenas Teddy e Chris haviam trazido cantis, e toda hora os usavam.

       - Podíamos encher os cantis novamente na bica do despejadouro - disse eu. - Meu pai disse que o poço é seguro. Tem sessenta metros de profundidade.

       - Está bem - disse Chris, o valente líder do pelotão. - Será um bom lugar para descansar, além do mais.

       - E comida? - perguntou Teddy de repente. - Aposto que ninguém lembrou de trazer nada para comer. Eu sei que não lembrei.

       Chris parou. - Merda! Eu também não lembrei. Gordie?

       Balancei a cabeça, pensando como podia ter sido tão burro.

       - Vern?

       - Nada - disse ele. - Desculpem.

       - Bem, vamos ver quanto temos de dinheiro - disse eu. Desamarrei minha camisa, estiquei-a sobre as cinzas e joguei meus sessenta e oito cents em cima dela. As moedas brilhavam incrivelmente ao sol. Chris tinha uma nota velha de um dólar e dois pennies.

Teddy tinha duas moedas de vinte e cinco cents e duas de cinco. Vern tinha exatamente sete cents.

       - Dois dólares e trinta e sete cents - disse eu. - Não está mau. Tem uma loja no final daquela rua pequena que vai dar no despejadouro. Alguém vai ter que ir lá comprar hambúrgueres e refrigerantes enquanto os outros descansam.

       - Quem? - perguntou Vern.

       - Vamos tirar na sorte quando chegarmos no despejadouro. Vamos.

      Coloquei todo o meu dinheiro no bolso da calça e estava amarrando a camisa na cintura quando Chris gritou: - O trem!

       Coloquei uma das mãos no trilho para sentir, embora já estivesse ouvindo o barulho. Os trilhos tremiam loucamente; por um momento parecia que estava segurando o próprio trem em minhas mãos.

       - Pára-quedistas para o lado! - gritou Vern, e pulou para a margem fazendo uma palhaçada. Vern adorava brincar de pára-quedista em qualquer lugar macio - uma

cascalhadeíra, um monte de feno, uma margem como aquela. Chris pulou depois dele. O barulho do trem estava realmente alto agora, provavelmente vindo em nossa direção a caminho de Lewiston. Ao invés de pular, Teddy virou-se na direção em que ele estava vindo. Seus grossos óculos brilhavam ao sol. Seus longos cabelos voavam despenteados sobre suas sobrancelhas em mechas suadas.

       - Vai, Teddy - disse eu.

       - Não, ha ha, vou escapar dele. - Olhou para mim, seus olhos atrás das lentes frenéticos de excitação. - Uma escapada de trem, sacou? Os caminhões não são nada perto dos trens!

     - Está maluco, cara? Quer morrer?

     - Como no desembarque na Normandia! - gritou Teddy, e ficou parado no meio dos trilhos. Estava em pé em cima de um dormente meio bambo.

       Fiquei atordoado por um momento, incapaz de acreditarem tamanha estupidez. Então agarrei-o e puxei-o lutando e protestando até a margem - e empurrei-o. Pulei depois dele e Teddy tentou me acertar no estômago enquanto eu ainda estava no ar. O vento passou por mim mas ainda consegui atingi-lo no esterno com o joelho e jogá-lo de costas no chão antes que conseguisse subir novamente. Caí no chão ofegante e sem apoio e Teddy me agarrou pelo pescoço. Rolamos até a beira da margem lutando e nos agredindo - enquanto Chris e Vern nos olhavam perplexos.

       - Seu filho da puta! - gritava Teddy para mim. - Seu escroto! Não vem querer mandar em mim! Eu te mato, seu merda!

       Estava voltando a respirar e consegui ficar em pé. Afastava-me à medida que Teddy avançava, erguendo as mãos abertas para evitar seus socos, meio rindo e meio com medo. Não era bom zombar de Teddy quando ele estava tendo um ataque de raiva.

Virava um monstro, e se quebrasse os dois braços era capaz de morder.

       - Teddy, você não pode escapar de nada antes de vermos o que vamos ver, mas um soco passou de raspão pelo meu ombro.

       - até lá ninguém pode nos ver, seu...

         Outro soco do lado do meu rosto e então teríamos começado mesmo a brigar se Chris e Vern

       - babaca!

           não tivessem nos agarrado e nos separado. Acima de nós o trem rugia como um trovão soltando diesel e produzia um forte barulho das rodas dos vagões sobre os trilhos.

Algumas cinzas caíram da margem e a discussão acabou... pelo menos até que conseguíssemos ouvir o que falávamos.

         Era apenas um pequeno cargueiro e quando acabou de passar, Teddy disse: - Eu mato

ele. Pelo menos lhe dou umas bolachas. Chris segurava-o cada vez com mais força enquanto ele tentava soltar-se.

       - Acalme-se, Teddy - dizia Chris calmamente, e continuou dizendo isso até que Teddy parou de lutar e ficou ali, os óculos tortos no rosto e o aparelho auditivo balançando em seu peito quase na altura da bateria, que ele colocara no bolso da calça jeans.

         Quando estava completamente calmo, Chris virou-se para mim e disse: - Por que você está brigando com ele, Gordon?

       - Ele queria escapar do trem. Imaginei que o maquinista iria vê-lo e falar. Poderiam mandar um policial.

       - Ahhh, ele não ia nem ver - disse Teddy, mas não parecia mais zangado. A tempestade passara.

       - Gordie só estava tentando agir corretamente - disse Vern. - Vamos lá, paz.

       - Paz, meninos - concordou Chris.

       - E, está bem - disse eu, e levantei a mão. - Paz, Teddy?

      - Eu podia ter escapado - disse ele. - Sabe disso, não é, Gordie?

       - Sei - disse eu, embora a idéia me desse calafrios. - Sei.

       - Está bem. Paz, então.

       - Façam as pazes - ordenou Chris, e soltou Teddy.

       Teddy bateu na minha mão com toda força e virou a sua. Bati nela.

       - Seu Lachance frouxo - disse Teddy.

       - Aiii... - disse eu.

       - Vamos, meninos - disse Vern. - Vamos, está bem?

- A qualquer lugar que você queira, mas não faça xixi nas calças - disse Chris sério, Vern recuou como se fosse dar-lhe um encontrão.

       Chegamos no despejadouro uma e meia e Vern foi o caminho todo de descida da margem gritando Pára-quedistas para o lado! Dávamos grandes saltos e passávamos por cima dos fios de água salobre que escorriam descuidados dos canos espetados para fora

das cinzas. Depois dessa área pantanosa ficava o começo do despejadouro arenoso e cheio de entulhos.

       Havia uma cerca de proteção de um metro e oitenta de altura em volta. A cada seis metros um aviso desbotado pelo tempo dizia:

 

                                   DESPEJADOURO DE CASTLE ROCK

                                   HORÁRIO: 16 ÀS 20 H

                                   FECHADO ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

                                   PASSAGEM RIGOROSAMENTE PROIBIDA

 

         Subimos até o alto da cerca e pulamos. Teddy e Vern foram na frente em direção ao poço, que tinha uma bomba antiga para puxar a água, aquelas que você morre para conseguir fazer funcionar. Havia uma lata de Crisco cheia de água ao lado da empunhadura da bomba, e o maior pecado era esquecer de deixá-la cheia para a próxima pessoa que chegasse. A empunhadura de ferro emperrou num determinado ângulo, e ficou parecendo um pássaro de uma só asa tentando voar. Já fora verde, mas quase toda a tinta saíra com o uso de centenas de pessoas desde 1940.

         O despejadouro é uma das lembranças mais fortes de Castle Rock. Sempre penso em pinturas surrealistas quando lembro dele - aqueles caras que estavam sempre pintando relógios com rostos escondidos languidamente dentro do tronco de árvores, quartos da era vitoriana no meio do deserto do Saara ou máquinas a vapor saindo de dentro de lareiras. Para meus olhos infantis nada no despejadouro de Castle Rock parecia estar no lugar a que realmente pertencia.

         Tínhamos entrado por trás. Se você entrasse pela frente, um largo e sujo caminho seguia portão adentro e ampliava-se numa área semicircular que havia sido Terraplenada, parecendo uma pista de aterragem, e acabava abruptamente à beira do fosso do despejadouro. A bomba (Teddy e Vern já estavam lá discutindo quem seria o primeiro a usá-la) ficava atrás desse grande fosso. Tinha talvez trinta metros e era cheio de todas as coisas americanas que acabaram, se desgastaram ou simplesmente não funcionam mais.

Havia tanta coisa que meus olhos doíam só de olhar talvez fosse a cabeça que doía, pois nunca conseguia decidir onde parar os olhos. Então os olhos paravam ou eram parados por alguma coisa que parecia fora do lugar como os lânguidos relógios com cara ou o quarto no meio do deserto. Uma armação de cama em bronze reluzindo bêbada ao sol. Uma bonequinha de criança com expressão espantada e as coisas mais variadas saindo do meio de suas coxas, como se as estivesse parindo. Um automóvel Studebaker virado de cabeça para baixo com seu nariz redondo de cromo brilhando ao sol como um míssil de Buck Rogers. Uma daquelas garrafas d'água gigantes que se usa em escritórios transformada, pelo sol do verão, numa esplendorosa e escaldante safira.

      Também havia muitos animais selvagens ali, embora não do tipo que se vê em filmes de Walt Disney nem no zoológico, onde os bichos são domesticados. Gordos ratos, marmotas macias e pesadas de se alimentarem de ração tão rica como hambúrgueres podres e vegetais bichados, gaivotas aos milhares ciscando como ministros pensativos e introspectivos, de vez em quando um enorme corvo. Era também o lugar onde os cachorros vira-lata da cidade vinham procurar uma refeição quando não conseguiam encontrar uma lata de lixo para derrubar nem um cervo para correr atrás. Eram um bando de cachorros miseráveis, mal-humorados; de ancas magras e sorrisos amargos, atacavam-se uns aos outros por um pedaço de salsichão estragado ou um monte de tripas de galinha defumando ao sol.

         Mas esses cachorros nunca atacavam Milo Pressman, o zelador do despejadouro, porque Milo nunca andava sem Chopper atrás de si. Chopper era - pelo menos até o cachorro de Joe Camber, Cujo, ter raiva vinte anos depois - o cachorro mais temido e menos visto de Castle Rock. Era o cachorro mais malvado num raio de sessenta quilômetros (pelo menos era o que ouvíamos dizer) e tão feio que assustava. As crianças contavam histórias a respeito da malvadeza de Chopper. Alguns diziam que era mistura de pastor alemão, outros que era boxer e um garoto de Castle View com o infeliz nome de Harry Horro dizia que Chopper era um Doberman pequeno cujas cordas vocais haviam sido removidas numa cirurgia para que ninguém ouvisse seu latido quando ia atacar. Havia

outros garotos que diziam que Chopper era um cão de caça irlandês maníaco e Milo Pressman alimentava-o com uma mistura especial de ração e sangue de galinha. Esses mesmos garotos diziam que Milo não ousava soltar Chopper a não ser que estivesse encapuzado como um falcão de caça.

       A história mais comum era que Pressman tinha treinado Chopper não apenas para morder, mas para morder partes específicas do corpo humano. Assim, um infeliz menino que ilegalmente pulasse a cerca do despejadouro para pegar tesouros ilícitos ouviria Milo Pressman gritar: - Pega, Chopper! a mão! - E Chopper pegaria a mão e não largaria mais, rasgando a pele e tendões, esfarelando ossos entre seus maxilares salivantes até Milo manda-lo parar. Havia o boato de que Chopper podia arrancar um olho, uma orelha, uma perna, um pé... e que o infrator reincidente que fosse surpreendido por Milo e seu sempre leal Chopper ouviria o terrível grito: - Pega, Chopper! o saco! - E aquece garoto seria um soprano para o resto da vida. O próprio Milo era visto mais freqüentemente e, assim, considerado uma pessoa mais comum. Era apenas um trabalhador humilde que completava seu modesto salário consertando coisas que as pessoas jogavam fora e vendendo-as pela cidade.

         Não havia sinal de Milo nem de Chopper naquele dia.

         Chris e eu vimos Vern usar a bomba enquanto Teddy rodava a manivela freneticamente. Finalmente foi recompensado com um fluxo de água clara. Um momento depois estavam os dois com a cabeça embaixo da tina, Teddy ainda bombeando à velocidade de quinhentos metros por minuto.

       - Teddy é maluco - disse eu tranqüilo.

       - É - disse Chris com simplicidade. - Não vai viver mais dó que o dobro da idade que tem agora, aposto. É o que dá o pai dele queimar suas orelhas. Ele é louco de fugir dos caminhões desse jeito. Não enxerga nada, com óculos ou sem.

       - Lembra aquela vez na árvore?

       - Lembro.

       No ano anterior Teddy e Chris haviam subido no grande pinheiro que há atrás de minha casa. Estavam quase no alto quando Chris disse que não podiam mais continuar pois todos os galhos a partir dali estavam podres. Teddy adquiriu aquela expressão maluca e obstinada e disse que estava pouco ligando, estava com as mãos muito sujas e ia continuar subindo até o fim. Nada que Chris dizia o fazia mudar de idéia. Então continuou e realmente conseguiu - pesava apenas quarenta quilos, lembre-se. Ficou lá, segurando o último ramo do pinheiro com as mãos meladas de alcatrão e gritando que era o rei do mundo ou qualquer estupidez como essa, quando houve um estalo de alguma coisa podre e estragada e o galho em que ele estava sentado cedeu e ele despencou. O que aconteceu depois foi uma dessas coisas que fazem você ter certeza que Deus existe. Chris esticou a mão puramente por reflexo e pegou um punhado dos cabelos de Teddy Duchamp. E embora seu pulso tenha inchado e ele tenha ficado duas semanas sem conseguir usar a mão direita, Chris segurou Teddy, até que ele, gritando e xingando, colocou os pés num galho grosso o suficiente para suportar seu peso. Se não fosse o instinto de Chris ele teria rolado e caído até lá embaixo, de uma altura de quarenta metros. Quando desceram Chris estava branco e quase vomitando pela reação de medo. E Teddy queria lhe bater por que puxara seu cabelo. E teriam brigado mesmo se eu não estivesse lá para separar os dois.

       - Sonho com aquilo de vez em quando - disse Chris e me olhou com olhos estranhamente indefesos. - Só que no meu sonho eu quase deixo ele cair. Pego só alguns fios de cabelo, Teddy grita e cai. Estranho, né?

       - Estranho - concordei, e por um momento olhamos dentro dos olhos um do outro e vimos algumas coisas verdadeiras que nos faziam amigos. Então desviamos nossos olhares e vimos Teddy e Vern jogando água um no outro, gritando, rindo e chamando-se de frouxos.

       - E, mas você não deixou ele escapar - disse eu. - Chris Chambers nunca deixa escapar, certo?

       - Nem quando uma mulher levanta da cadeira - disse ele.

       Piscou para mim, fez um O com o dedão e o indicador e colocou uma bala branca e lisa no meio.

     - Esperto, hem, Chambers - disse eu.

     - Mais do que você pensa - disse ele, e sorrimos um para o outro.

     Vern gritou: - Venham logo pegar a água antes que ela desça de novo!

     - Vamos apostar corrida? - perguntou Chris.

     - Nesse calor? Está maluco.

     - Vamos - disse ele ainda rindo. - Um, dois, três e...

     - Está bem.

     - Já!

     Saímos correndo, nossos tênis cavando o chão de terra duro e batido pelo sol, nossos torsos esticados à frente de nossas pernas dentro de blue jeans, as mãos fechadas. Foi empate. Vern ao lado de Chris e Teddy ao meu levantaram o dedo do meio ao mesmo tempo. Caímos rindo no lugar tranqüilo e fedorento, e Chris pegou o cantil de Vern. Quando estava cheio Chris e eu fomos até a bomba e primeiro Chris bombeou e depois

eu, a água fria contrastante tirando toda a fuligem e o calor imediatamente, colocando nossos couros cabeludos gelados quatro meses à frente, em janeiro. Então tornei a encher a lata de toucinho e fomos todos sentar à sombra da única árvore do despejadouro, um freixo atrofiado a dez metros da cabana de papel alcatroado de Milo Pressman. A árvore ficava ligeiramente inclinada para o oeste, como se quisesse recolher suas raízes como uma velha senhora recolhe suas saias e simplesmente se mandar do despejadouro.

       - O máximo! - disse Chris rindo e tirando os cabelos emaranhados da frente dos olhos.

       - Incrível - disse eu sacudindo a cabeça e ainda rindo.

       - É realmente um ótimo dia - disse Vern com simplicidade, e não estava se referindo somente ao fato de estarmos dentro do despejadouro, enganando nossos pais e subindo os trilhos da estrada de ferro até Harlow; estava se referindo a essas coisas também, mas para mim, agora, parece que havia mais alguma coisa, e todos nós sabíamos. Estava tudo ali à nossa volta. Sabíamos exatamente quem éramos e exatamente para onde estávamos indo. Era maravilhoso.

       Ficamos sentados embaixo da árvore por um tempo tagarelando como sempre fazíamos - quem tinha o melhor time de futebol (ainda os Yankees com Mantle e Maris, claro), qual o melhor carro (o Thunderbird 55, Teddy defendendo obstinadamente o Corvette 58), quem era o cara mais valente de Castle Rock que não pertencia à nossa turma (todos concordávamos que era Jamie Gallant, que tinha xingado a Sra. Ewing e saído da sala com as mãos nos bolsos enquanto ela gritava seu nome), o melhor programa da TV (ou Os Intocáveis ou Peter Gunn - tanto Robert Stack como Eliot Ness quanto Craig Stevens como Gunn eram ótimos), todas essas coisas.

Teddy foi o primeiro a perceber que a sombra da árvore estava ficando mais longa e perguntou que horas eram. Olhei meu relógio e fiquei surpreso ao ver que eram duas e quinze.

         - Ei, pessoal - disse Vern. - Alguém tem que sair para buscar alimentos. O despejadouro abre às quatro. Não quero estar aqui ainda quando Milo e Chopper derem o show.

       Até Teddy concordou. Ele não tinha medo de Milo, que tinha uma barriga protuberante e pelo menos quarenta anos, mas todos os meninos de Castle Rock se arrepiavam quando o nome de Chopper era mencionado.

       - Está bem - disse eu. - O cara mais esquisito vai.

       - Você, Gordie, - disse Chris rindo. - O mais esquisito de todos.

       - Igual à sua mãe - disse eu, e dei uma moeda para cada um. - Vamos tirar na sorte.

Quatro moedas subiram brilhando ao sol. Quatro mãos pegaram-nas no ar e colocaram-nas tampadas em cima da outra mão. Olhamos. Duas caras e duas coroas. Jogamos de novo e todos os quatro tiraram coroa.

      - Ah, meu Deus, isso é mau agouro - disse Vern sem contar nada de novo para trás.

Quatro caras era sinal de muita sorte. Mas quatro coroas era muito azar.

       - Deixa de besteira - disse Chris. - Isso não quer dizer nada. Vamos jogar de novo.

       - Não, cara - disse Vern, honesto. - É mau agouro mesmo. Lembra quando Clint Bracken e aqueles caras se arrebentaram em Sirois Hill em Durham? Billy me contou que eles estavam disputando cervejas na moeda e tiraram quatro coroas antes de entrar no carro. E bang! acabaram com o carro. Não gosto disso. Sinceramente.

     - Ninguém acredita nessa história de mau agouro - disse Teddy impaciente. - É coisa de criança, Vern. Vai jogar ou não?

       Vern jogou, mas com óbvia relutância. Dessa vez, ele, Chris e Teddy tiraram coroa. Eu exibia o rosto de Thomas Jefferson numa moeda de cinco cents. E de repente fiquei com medo. Foi como se uma sombra tivesse cruzado um sol interior. Os três ainda estavam

com mau agouro, como se um destino silencioso estivesse apontando para eles pela segunda vez. Abruptamente pensei em Chris dizendo: Pego só alguns fios de cabelo,

       Teddy grita e cai. Estranho, né?

       Três coroas e uma cara.

       Então Teddy começou a me apontar e rir de mim com sua risada maluca de escárnio, e a sensação passou.

     - Ouvi dizer que só "frescos" riem assim - disse eu acusadoramente.

     - Eeeee-eeee-eeee, Gordie - ria Teddy. - Vai buscar os alimentos, seu babaca.

     Realmente não fiquei lamentando de ter que ir. Estava descansado e não me incomodava de descer a rua até o Florida Market.

       - Não me chame com nenhum dos nomes da tua mãe - disse eu a Teddy.

       - Eeeee-eeee-eeee, que babaca você é, Lachance.

       - Vai, Gordie - disse Chris. - Vamos esperar você perto dos trilhos.

       - Acho melhor vocês não irem sem mim - eu disse.

       Vern riu. - Ir sem você é como tomar Slitz em vez de Budweiser, Gordie

       - Ah, cala a boca.

       Todos cantaram juntos: - Não calo e ninguém me manda senão eu me irrito. E quando olho para você eu vomito.

       - Aí a tua mãe vai lá e lambe - disse eu, e me mandei dali, fazendo um gesto para eles por cima do ombro quando estava longe. Nunca mais tive amigos como os que tinha aos doze anos. Meu Deus, e você?

       Cada macaco no seu galho, dizem hoje em dia, e é um barato isso. Então, se eu falar a palavra verão para você, você terá um conjunto de imagens pessoais e particulares que são totalmente diferentes das minhas. Isso é interessante. Mas para mim verão sempre significará descer correndo a rua até o Florida Market com as moedas tilintando nos bolsos, quarenta graus de temperatura, os pés calçados com Keds A palavra evoca a imagem dos trilhos da GS&WM unindo-se num ponto em perspectiva no horizonte, com um brilho tão intenso ao sol que quando fechava os olhos podia ainda vê-los no escuro, só que azuis em vez de brancos.

         Mas houve mais em relação àquele verão que nossa viagem até O outro lado do rio para procurar Ray Brower, embora isso permaneça como o mais forte. Sons dos Fleetwoods cantando Come Softly to Me, Robin Luke cantando Susie Darlin e Little Anthony estourando no vocal com I Ran All the Way Home. Todos eram sucessos naquele verão de 1960? Sim e não. A maioria sim. Nas longas noites azuladas em que o rock and roll da WLAM misturava-se com o beisebol noturno da WCO U o tempo mudava. Acho que tudo era 1960, e aquele verão continuou por um espaço de anos, mantido magicamente intacto num emaranhado de sons: o doce zumbido dos grilos, o barulho de metralhadora das cartas de baralho presas nos aros da bicicleta de algum menino que pedalava até em casa para o jantar mais tardio, a voz texana aberta de Buddy Knox cantanto Come along and be my party doll, and I'll make love to you, to you, e a voz do locutor de beisebol

misturando-se com a música e com o cheiro da grama fresca cortada: - A contagem está três e dois agora. Whitney Ford inclina-se para frente... ultrapassou o sinal... agora conseguiu... Ford faz uma pausa... atira a bola para o batedor... e agora! Williams pega!

Adeus! RED SOX VENCE POR TRÊS A UM! Ted Williams ainda jogava no Red Sox em 1960? Pode ter certeza que sim. Lembro claramente. O beisebol tornara-se importante para mim nos últimos anos, desde que tivera que encarar a realidade de que os jogadores de beisebol eram de carne e osso como eu. Essa conscientização aconteceu quando Roy Campanella capotou de carro e os jornais anunciavam manchetes fatais nas primeiras páginas: sua carreira estava arruinada, viveria o resto de sua vida numa cadeira de rodas. Aquilo voltou à minha lembrança como um golpe surdo quando sentei-me à máquina de escrever há dois anos atrás certa manhã, liguei o rádio e ouvi que Thurman Munson tinha morrido tentando aterrissar de avião.

           Havia filmes para ver no Gem, que há muito foi demolido; filmes de ficção científica como Gog com Richard Egan, filmes de faroeste com Audie Murphy (Teddy via todos os filmes de Audie Murphy pelo menos três vezes; acreditava que Murphy era quase um deus) e filmes de guerra com John Wayne. Havia jogos e refeições engolidas às pressas, grama para cortar, locais para os quais correr, muros para jogar moedas, pessoas para bater nas costas. E agora estou sentado aqui tentando olhar através de um teclado IBM e ver aquela época, tentando lembrar o melhor e o pior daquele verão marrom e verde, e posso quase sentir o garoto magro e com cascas de feridas ainda enterrado nesse corpo desenvolvido e ouvir aqueles sons. Mas a mais forte lembrança daquele tempo é Gordon Lachance descendo a rua, correndo em direção ao Florida Market com dinheiro trocado no bolso e suor nas costas.

         Pedi um quilo de hambúrguer e comprei pão, quatro garrafas de Coca e um abridor de dois cents para abri-las. O dono, um homem chamado George Dusset, pegou a carne, debruçou-se sobre a caixa registradora, uma das mãos apoiadas no balcão perto do vidro de ovos cozidos, um palito entre os dentes, sua enorme barriga redonda de urso enchendo a camiseta branca como uma vela ao vento forte. Ficou parado ali enquanto eu fazia as compras, certificando-se de que eu não tentava roubar nada. Não deu uma palavra até pesar o hambúrguer.

         - Conheço você. Você é o irmão de Denny Lachance, não é? - O palito andou de um canto ao outro de sua boca como que sobre rolamentos. Colocou a mão embaixo da caixa, pegou uma garrafa de soda e bebeu-a até o fim sem parar.

       - Sim senhor. Mas Denny, ele...

       - E, sei. E uma coisa triste, garoto. A Bíblia diz: "No meio da vida estamos na morte."

       Sabia disso? Hem? Perdi um irmão na Coréia. Você parece muito com Denny, as pessoas lhe dizem isso? Hem? E a imagem cuspida.

       - Sim senhor, às vezes - disse eu taciturno.

       - Lembro do ano que ele foi campeão. Jogava no meio. Como ele corria! Meu Deus do céu! Você provavelmente é novo demais para lembrar. - Olhava sobre minha cabeça para além da porta de grade, para o calor sufocante, como se estivesse tendo uma linda visão de meu irmão.

       - Lembro. Sr. Dusset...

       - O quê, meu filho? - Seus olhos ainda estavam distantes com as lembranças; o palito tremia um pouco entre seus lábios.

       - O senhor está com o dedo na balança.

       - O quê? - Olhou para baixo atônito, onde seu dedão pressionava firmemente o esmalte branco. Se não tivesse me afastado um pouco dele quando começou a falar de Dennis, não teria visto. - Ah, é. Hum. Acho que comecei a pensarem seu irmão, Deus o tenha. - George Dusset fez o sinal-da-cruz. Quando tirou o dedo da balança a agulha desceu cento e cinqüenta gramas. Colocou um pouco mais de carne no alto e depois fez o embrulho com o papel branco de açougueiro.

       - Muito bem - disse por entre o palito. - Vejamos o que tem aqui. Um quilo de hambúrguer, um dólar e quarenta e quatro. Pães de hambúrguer, vinte e sete. Quatro Cocas, quarenta cents. Um abridor, dois cents. Dá... - Somou uma sacola em que ia colocar as coisas. - Dois e vinte e nove.

       - Treze - disse eu.

Olhou para mim erguendo a cabeça lentamente e franzindo um pouco a testa. - Hem?

       - Dois e treze. O senhor somou errado.

       - Garoto, você está...

       - O senhor somou errado - disse eu. - Primeiro o senhor coloca o dedo na balança, depois cobra errado. Eu ia comprar mais alguma coisa, mas acho que não vou mais. - Coloquei dois dólares e treze cents sem hesitarem cima do balcão em frente a ele.

       Olhou para o dinheiro e depois para mim. Sua testa agora estava bastante franzida, as linhas do rosto parecendo fissuras. - O que você pensa que é, garoto? - disse ele em voz baixa ameaçadoramente confidencial. - Algum espertinho?

       - Não senhor - disse eu. - Mas o senhor não vai me enganar e ficar por isso mesmo. O que sua mãe diria se soubesse que o senhor engana criancinhas?

       Enfiou nossas coisas na sacola de papel com movimentos rápidos e inflexíveis, fazendo as garrafas de Coca se chocarem. Empurrou a sacola para mim grosseiramente sem se preocupar se eu ia deixá-la cair e quebrar todos os refrigerantes. Seu rosto moreno estava ruborizado e apático, esticado e não mais franzido. - Muito bem, garoto. Aqui está. Agora você desapareça da minha loja. Se eu vir você de novo aqui vou botá-lo para fora. Hum. Seu espertinho filho da mãe.

       - Nunca mais volto aqui - disse eu indo em direção à porta de grade e empurrando-a. A tarde quente zumbiu sonolenta lá fora, aparecendo verde e marrom e cheia de uma luz silenciosa. Nem nenhum de meus amigos. Acho que tenho mais de cinqüenta.

       - Seu irmão não era tão espertinho! - gritou George Dusset.

       - Foda-se! - gritei, e corri feito um louco rua abaixo.

       Ouvi a porta de grade abrir como um tiro e sua voz de boi me alcançar: - Se voltar aqui mais uma vez eu te arrebento, seu marginal!

       Corri até passar o primeiro morro, apreensivo e rindo sozinho, meu coração batendo como uma alavanca dentro do peito. Depois diminuí para uma caminhada rápida,

olhando para trás por cima do ombro toda hora para ter certeza que ele não vinha atrás

de mim de carro, ou coisa parecida.

         Não veio, e logo cheguei ao portão do despejadouro. Coloquei o saco dentro da camisa, subi o portão e pulei do outro lado. Estava na metade da área do despejadouro quando vi algo que não gostei - o Buick 56 do vigia Milo Pressman estava estacionado atrás do barraco de papei acaltroado. Se Milo me visse eu estaria perdido. Por enquanto não havia sinal dele nem do abominável Chopper, mas de repente a cerca de correntes atrás do despejadouro pareceu muito longe. Senti que queria ter ido pelo outro lado, mas já estava muito adiantado para virar e voltar. Se Milo me visse pulando a cerca do despejadouro estaria em dificuldades quando chegasse em casa, mas aquilo não me apavorava tanto quanto a idéia de Milo gritando para Chopper me pegar.

       Uma música apavorante de violino começou a tocar em minha cabeça. Continuava a colocar um pé depois do outro, tentando parecer natural, tentando dar a impressão de que meu lugar era ali, com um saco embaixo da camisa, dirigindo-me à cerca entre o despejadouro e os trilhos do trem.

         Estava a quarenta metros da cerca e começando a pensar que tudo ia dar certo quando ouvi Milo gritar: - Ei! Ei, você! Garoto! Saia dessa cerca! Saia daí!

         O mais inteligente seria ter concordado com o cara e dado a volta, mas àquela altura estava tão nervoso que em vez de tomar a atitude inteligente simplesmente saí correndo para a cerca com um grito apavorado, meus tênis levantando poeira. Vern, Teddy e Chris saíram de baixo de uma vegetação do outro lado da cerca e olhavam ansiosos através dos elos.

           - Volte aqui! - berrava Milo. - Volte aqui ou eu mando meu cachorro atrás de você, droga!

         Não achava exatamente que aquela voz era de bom senso e conciliação, e corri ainda mais até a cerca, meus braços sacudindo vigorosamente para cima e para baixo, a sacola marrom da mercearia friccionando minha pele. Teddy começou a dar sua risada idiota de escárnio, eee-eee-eee, como algum instrumento de palheta sendo tocado por um lunático.

         - Vai, Gordie! Vai! - gritava Vern.

         E Milo gritava: - Pega, Chopper! Pega aquele garoto!

         Joguei a sacola por cima da cerca e Vern empurrou Teddy para o lado para pegá-la.

Atrás de mim podia ouvir Chopper vindo, a terra tremendo, lançando fogo por uma das narinas e gelo pela outra, soltando gotas de enxofre de seus dentes trituradores. Dei um pulo para cima até a metade da cerca, gritando. Cheguei ao alto em menos de três segundos e simplesmente pulei - nem pensei no que fazia, em nenhum momento olhei para baixo para ver onde ia cair. Quase caí em cima de Teddy, que estava dobrado de tanto rir. Seus óculos tinham caído, as lágrimas escorriam de seus olhos. Não o acertei por pouco e caí no aterro de barro à sua esquerda. No mesmo instante Chopper alcançou a cerca atrás de mim e soltou um uivo de dor misturado com desapontamento. Virei-me segurando o joelho esfolado e lancei meu primeiro olhar para o famoso Chopper - e tive minha primeira lição da vasta diferença entre mito e realidade.

       Ao invés de um monstro de olhos vermelhos e selvagens e dentes projetados como canos de um carro envenenado, estava olhando para um vira-lata de tamanho médio, preto e branco, totalmente comum. Ele latia e pulava infrutiferamente, subindo nas patas traseiras pata tocar a cerca.

       Teddy andava empertigado de um lado para o outro em frente à cerca rodando os óculos com uma das mãos e incitando Chopper.

       - Beija meu traseiro, Choppie! - convidava Teddy, os perdigotos voando de sua boca. - Beija meu traseiro! Morde, seu merda!

       Encostou as nádegas contra a cerca de elos e Chopper fez o possível para corresponder ao pedido de Teddy. Com todo seu esforço só conseguiu bater o focinho. Começou a latir sem parar, espumando pelo focinho. Teddy ficava batendo o traseiro contra a cerca e Chopper investindo contra ela, sem conseguir nada a não ser esfolar o focinho, que agora estava sangrando. Teddy continuava a incitá-lo, chamando-o pelo nome horrível de "Choppie", e Vern e Chris estavam deitados no aterro sem forças de tanto rir, e só conseguiam respirar com dificuldade.

       E lá veio Milo Pressman vestido com roupas manchadas de suor e um boné de beisebol do New York Giants, a boca aberta de ódio.

       - Ei, ei! - gritava ele. - Meninos, vocês parem de implicar com esse cachorro!

Entenderam? Parem já!

       - Morde, Choppie! - gritava Teddy andando de um lado para o outro do nosso lado da cerca como um prussiano maluco revistando suas tropas. - Vem, me pega! Me pega!

       Chopper ficou louco. Quero dizer, de verdade. Corria em círculos, uivando, latindo e espumando, as patas traseiras levantando pequenos pedaços secos de terra. Dava umas três voltas, tomando coragem, acho, e jogava-se de encontro à cerca de segurança. Devia estar a cinqüenta quilômetros por hora quando se jogava, sem brincadeira – a boca arreganhada mostrando os dentes e as orelhas voando como se tivesse uma hélice por perto. A cerca toda fazia um som baixo e musical quando a corrente de elos se esticava para trás de encontro às colunas. Era como uma nota de cítara iimmmmmmmmmm. Chopper deu um latido sufocado, revirou os dois olhos e deu uma cambalhota no sentido contrário totalmente incrível, caindo de costas com um barulho surdo e levantando poeira à sua volta. Ficou deitado ali por um momento e depois saiu se arrastando com a língua caída para a esquerda.

         Com isso Milo ficou quase louco de raiva. Seu rosto adquiriu uma tonalidade espantosamente roxo-escura - até o couro cabeludo embaixo dos cabelos eriçados e curtos ficou roxo. Sentado na terra e atordoado, os jeans rasgados nos dois joelhos, meu coração ainda batendo por ter escapado por pouco, achei que Milo parecia a versão humana de Chopper.

         - Conheço você! - vociferava Milo. - Você é Teddy Duchamp! Conheço todos vocês!

Vou matar vocês se ficarem mexendo com meu cachorro dessa maneira!

         - Quero ver você tentar! - gritava Teddy de volta. - Quero ver você subir essa cerca e me pegar, sua bunda de vaca!

         - O QUÊ? DE QUE VOCÊ ME CHAMOU?

         - BUNDA DE VACA! - gritava Teddy feliz. - BUNDONA! BUNDA CAIDA! VEM!

VEM! - Ele pulava, as mãos apertadas, o suor escorrendo por baixo do cabelo. –VAI APRENDER A MANDAR ESSE CACHORRO ESTÚPIDO PEGAR AS PESSOAS! VEM! QUERO VER VOCÊ TENTAR!

         - Seu canalhazinho narigudo filho de um maluco! Vou fazer a sua mãe ir no tribunal

falar com o juiz sobre o que você fez com meu cachorro!

         - De que você me chamou? - perguntou Teddy com a voz rouca. Parara de pular. Seus olhos ficaram grandes e petrificados, e sua pele da cor de chumbo. Milo chamara Teddy de uma série de coisas, mas foi capaz de voltar atrás e repetir o nome que tocara seu ponto fraco sem problemas - desde então reparei como as pessoas têm inclinação para isso... para encontrarem o ponto fraco lá no fundo e não apenas tocá-lo, mas martelá-lo.

       - Seu pai era maluco - disse ele rindo. - Maluco do hospital de veteranos. Mais louco

que um rato dentro de casa. Mais maluco que um bode com febre. Mais pirado que um

gato de rabo comprido numa sala cheia de cadeiras de balanço. Maluco. Não é de

admirar que você esteja agindo desse jeito, como um p...

         - A TUA MÃE COME RATO MORTO! - gritava Teddy. E SE VOCÊ CHAMAR MEU PAI DE MALUCO DE NOVO EU TE MATO, SEU FILHO DA PUTA!

         - Maluco - disse Milo presunçoso. - Tinha encontrado o ponto certo. - Filho de um maluco, filho de um maluco, teu pai tem uns parafusos a menos, garoto. Vern e Chris estavam conseguindo parar com o ataque de riso, talvez se preparando para avaliar a seriedade da situação e tirar Teddy dali, mas quando Teddy disse a Milo que a mãe dele comia rato morto voltaram a rir, deitados, rolando de um lado para o outro, batendo com os pés no chão e segurando a barriga. - Chega - dizia Chris sem forças. - Chega, por favor, chega, juro por Deus que vou estourar!

         Chopper andava atordoado em oito atrás de Milo. Parecia o perdedor dez segundos depois de o juiz dar por encerrada a partida e declarar nocaute técnico. Enquanto isso Teddy e Milo continuavam a discussão sobre o pai de Teddy com os narizes colados na cerca de arame que os separavam e na qual Milo não tinha condições de subir por ser muito velho e gordo.

       - Não diga mais nada sobre meu pai! Meu pai participou do desembarque na Normandia, seu babaca filho da puta!

       - É, muito bem, e onde ele está agora, seu monte de merda de quatro olhos? Em Togus, porque é maluco!

       - Pronto, isso mesmo - disse Teddy. - É isso mesmo, chega, vou te matar. - Jogou-se na cerca e começou a subir.

       - Suba e tente, seu canalha magricela. - Milo ficou parado, rindo e esperando.

       - Não - gritei eu. Levantei-me, agarrei Teddy pelos fundilhos largos da calça jeans e arranquei-o da cerca. Nós dois nos desequilibramos e caímos, ele por cima. Amassou meu saco com força e eu gemi. Nada dói mais que te amassarem o saco, sabia? Mas eu continuava com os braços em volta da cintura de Teddy.

         - Deixa eu subir! - soluçava Teddy torcendo meus braços. Deixa eu subir, Gordie!

Ninguém fala do meu pai. DEIXA EU SUBIR, PORRA, DEIXA EU SUBIR!

       - E tudo que ele quer - gritei em seu ouvido. - Ele quer te pegar, te bater e depois te levar para a polícia!

       - Há? - Teddy virou o pescoço para me olhar, seu rosto atordoado.

       - Não adianta falar nada, garoto - disse Milo aproximando-se da cerca novamente com as mãos fechadas do tamanho de um pernil. - Deixa ele resolver os problemas dele sozinho.

       - Claro - disse eu. - Só que você pesa mais cem quilos que ele.

       - Conheço você também - disse Milo ameaçadoramente. Seu nome é Lachance. - Apontou para Vern e Chris, que estavam finalmente se levantando, ainda ofegantes de tanto rir. - E aqueles são Chris Chambers e um dos estúpidos irmãos Tessio. Os pais de vocês todos vão receber um telefonema meu, menos o maluco do Togus. Vocês vão todos para o reformatório. Seus delinqüentes!

       Ficou parado com as mãos sardentas esticadas, respirando com dificuldade, esperando que chorássemos ou pedíssemos desculpas ou talvez déssemos Teddy para servir de alimento para Chopper.

         Chris formou um O com o dedão e o indicador e cuspiu por dentro dele.

         Vern fez hum! e olhou para cima.

         Teddy disse: - Vamos, Gordie. Vamos nos afastar desse babaca antes que eu vomite.

         - Ah, você vai me pagar, seu desbocadozinho filho da mãe. Espera até eu te levar para a polícia.

       - Ouvimos o que você disse sobre o pai dele - disse eu. Somos testemunhas. E você tentou fazer aquele cachorro me morder. Isso é contra a lei.

       Milo pareceu um pouco apreensivo. - Você estava invadindo. - Estava droga nenhuma.

       O despejadouro é um lugar público.

       - Você pulou a cerca.

       - Claro, depois que você colocou o cachorro atrás de mim disse eu, torcendo para Milo não lembrar que eu tinha pulado o portão também para entrar. - O que você acha que eu ia fazer? Ficar parado e deixar ele me estraçalhar em mil pedaços? Vamos, pessoal. Vamos embora. O lugar aqui está fedendo.

       - Reformatório - prometeu Milo com a voz rouca e trêmula. - Reformatório para vocês, espertinhos.

       - Não vejo a hora de contar para a polícia que você chamou um veterano de guerra de maluco - gritou Chris por cima do ombro à medida que nos afastávamos. - O que o senhor fez na guerra, Sr. Pressman?

         - NÃO É DA SUA CONTA! - gritou estridente. -VOCÊS MACHUCARAM O MEU CACHORRO!

         - Põe ele no carro e leva para o veterinário - murmurou Vern, e então já estávamos subindo novamente a margem da estrada de ferro.

       - Voltem aqui! - gritou Milo, mas sua voz estava mais fraca e ele parecia estar perdendo o interesse.

       Teddy fez um gesto para ele quando nos afastamos. Olhei para trás por sobre o ombro

quando chegamos no alto da barragem. Milo estava lá em pé atrás da cerca de segurança, um homem grande com um boné de beisebol, o cachorro sentado a seu lado. Seus dedos estavam presos dentro dos elos em forma de losangos quando gritou para nós, e de repente senti muita pena dele - parecia o maior bebezão do mundo, trancado por engano no pátio de recreio gritando para alguém tirá-lo dali. Continuou gritando mais um pouco e depois ou desistiu ou sua raiva passou. Naquele dia não se ouviu mais falar nem se viu Milo Pressman e Chopper.

       Conversamos um pouco - num tom de justiça que na verdade soou meio forçado –sobre como tínhamos mostrado àquele idiota do Milo Pressman que não éramos apenas mais um bando de imbecis. Contei que o cara do Florida Market quisera nos enganar, e caímos num silêncio cheio de desalento, pensando no ocorrido.

       Quanto a mim achava que talvez aquele negócio de mau agouro tivesse mesmo alguma relação. As coisas não poderiam ter sido piores - na verdade, pensava eu, era melhor ir levando e poupar meus pais da dor de ter um filho no cemitério de Castle View e outro no Reformatório de Meninos de Windham. Não tinha dúvidas de que Milo iria à polícia assim que o problema do despejadouro estar fechado à hora do incidente se diluísse em sua cabeça dura. Quando isso acontecesse ele perceberia que eu realmente tinha invadido, lugar público ou não. Provavelmente aquilo lhe dava todo o direito do mundo de mandar o seu cachorro estúpido me morder. E embora Chopper não fosse o monstro que se dizia, com certeza rasgaria os fundilhos do meu jeans se eu não tivesse ganho a corrida até a cerca. Tudo aquilo colocava uma grande mancha escura no dia E havia outra idéia sombria martelando na minha cabeça - a idéia de que afinal de contas aquilo não era nenhuma brincadeira e merecíamos a má sorte. Talvez fosse até Deus nos avisando para irmos para casa. Afinal o que íamos fazer? Olha um garoto que tinha sido esmagado por um trem de carga?

         Mas estávamos fazendo isso, e nenhum de nós queria parar. Tínhamos quase atingido a ponte de cavaletes que levava os trilhos por cima do rio quando Teddy caiu num grande pranto. Foi como se uma grande onda interior tivesse rompido um conjunto muito bem construído de diques mentais. Não é besteira foi assim de repente e com a maior violência. Os soluços faziam-no curvar-se como se estivesse levando socos e pareceu estar liberando muitas coisas acumuladas, suas mãos iam do estômago aos pedaços de pele mutilados que eram o restante de suas orelhas. Continuava a ter ataques violentos e intensos de choro.

         Nenhum de nós sabia o que fazer. Não era o tipo de choro de alguém que se machucou numa brincadeira ou caiu da bicicleta na praça. Não havia nada fisicamente errado com ele. Afastamo-nos um pouco e ficamos olhando-o, as mãos nos bolsos.

       - Ei, cara - disse Vern numa voz muito delicada. Chris e eu olhamos para Vern esperançosos. "Ei, cara" era sempre um bom começo. Mas Vern não conseguiu

continuar.

       Teddy inclinou-se sobre os dormentes e colocou uma das mãos nos olhos. Agora parecia que estava fazendo a saudação a Alá - Salame, salame, como diz Popeye. Só que não era engraçado.

       Finalmente quando a intensidade do choro diminuiu um pouco, foi Chris quem se aproximou dele. Era o cara mais valente de nossa turma (talvez mais que Jamie Gallant, achava eu particularmente), mas era também o que conseguia melhor fazer as pazes. Tinha jeito para fazer aquilo. Já o tinha visto sentar-se perto de um garotinho com os joelhos arranhados, um garotinho que ele nem conhecia e começar a fazê-lo falar sobre alguma coisa - o circo que viria para a cidade ou um programa infantil da TV - até que o garotinho esqueceu que estava machucado. Chris era bom naquilo. Era tão valente que tinha que ser bom naquilo.

       - Escute, Teddy, você vai ligar para o que um monte de merda como ele disse do seu pai? Hem? É verdade! Isso não muda nada, muda? O que um monte de merda como ele diz do seu pai? Hem? Hem? Muda?

     Teddy balançou a cabeça violentamente. Não mudava nada. Mas ouvir aquilo à luz do dia, uma coisa sobre a qual deve ter ficado pensando continuamente nas noites em que não conseguia dormir, olhando a luz no canto da vidraça, uma coisa que tentava compreender à sua maneira lenta e desalentada até ela parecer sagrada, e de repente perceber que todos simplesmente desprezavam seu pai por ser maluco... aquilo o abalara. Mas não mudava nada. Nada.

       - Ele participou do desembarque na Normandia do mesmo jeito, não foi? - disse Chris.

Segurou uma das mãos suadas e encardidas de Teddy e deu-lhe leves tapinhas.

Teddy assentiu vigorosamente, chorando. Seu nariz estava escorrendo.

       - Você acha que aquele monte de merda esteve na Normandia?

       Teddy balançou a cabeça violentamente. - Nã-nã-não!

       - Você acha que o cara te conhece?

       - Nã-não! Não, m-m-mas...

       - Ou seu pai? Ele é um dos companheiros do seu pai?

     - Não! - Irado, horrorizado. Pensando. O peito de Teddy estufou-se e mais soluços saíram. Tinha tirado o cabelo de cima das orelhas e eu pude ver o botão redondo de plástico marrom do aparelho de surdez dentro da direita. A forma do aparelho fazia mais sentido do que a forma de sua orelha, se você entende o que quero dizer.

       Chris disse calmamente: - Falar é fácil.

       Teddy balançou a cabeça concordando sem olhar para cima.

       - E o que quer que tenha acontecido entre você e seu pai, as palavras não podem mudar isso.

       A cabeça de Teddy balançou sem definição, incerto se isso era verdade. Alguém havia

redefinido sua dor, e redefinido em termos chocantemente comuns.

       Aquilo teria

       (maluco)

       que ser examinado

       (maluco)

         mais tarde. Profundamente. Nas longas noites de insônia.

         Chris o consolava. - Ele estava te provocando, cara - disse ele com cadências suaves que eram quase uma cantiga. - Ele estava tentando te provocar para você pular a droga daquela cerca, entendeu? Não precisa ficar nervoso. Não precisa. Ele não sabe nada sobre o seu pai. Só sabe as coisas que ouviu dos bêbados no Mellow Tiger. Ele é um merda, cara. Está bem, Teddy? Hem? Está bem?

         O choro de Teddy diminuiu e ele apenas fungava. Limpou os olhos, deixando dois anéis de fuligem em volta deles, e sentou-se direito.

         - Estou legal - disse ele, e o som de sua própria voz pareceu convencê-lo. - É, estou legal. - Levantou-se e colocou de novo os óculos - cobrindo o rosto nu, pareceu-me.

Sorriu ligeiramente e passou o braço despido no lábio superior para limpar o catarro. Choradeira boba, né?

         - Não, cara - disse Vern embaraçado. - Se alguém começasse a falar do meu pai...

         - Você matava! -'disse Teddy na hora, quase com arrogância. - Enfiava o pau. Certo, Chris?

          - Certo - disse Chris amigavelmente, e bateu nas costas de Teddy.

         - Certo, Gordie?

         - Totalmente - disse eu pensando como Teddy podia se importar tanto com o pai que

praticamente o matara e como eu podia, de certa forma, não dar a mínima para o meu que, pelo que eu me lembrava, não me encostava a moo desde os três anos de idade, quando peguei descorante embaixo da pia e comecei a comer.

         Andamos mais duzentos metros ao lado da linha do trem e Teddy disse numa voz mais calma: - Ei, desculpa se eu estraguei a diversão de vocês. Acho que aquilo lá na cerca foi a maior estupidez.

       - Não tenho certeza se eu quero que seja uma diversão - disse Vern de repente.

       Chris olhou para ele.

       - Você está querendo dizer que quer Voltar?

       - Não, não. - O rosto de Vern contraiu-se com o pensamento. - Mas ir ver um garoto

morto - não devia ser motivo de festa, talvez. Quer dizer, sacou? Quer dizer... – Olhou para nós meio confuso. - Quer dizer, eu podia ficar um pouco com medo. Não sei se vocês estão entendendo.

       Ninguém disse nada e Vern investiu.

       - Quer dizer, às vezes tenho pesadelos. Como... ah, vocês lembram quando Danny Naughton deixou aquela pilha de revistas em quadrinho antigas, aquelas com vampiro e gente sendo esquartejada, essas coisas? Caramba, eu acordava no meio da noite sonhando com um cara enforcado no meio da casa com a cara verde, qualquer coisa assim, sabe, como isso, e parecia que tinha alguma coisa embaixo da cama e se eu olhasse a coisa ia, sabe, me pegar...

       Nós todos começamos a balançar a cabeça. Sabíamos como eram aquelas coisas Mas no entanto eu teria rido na ocasião se alguém me dissesse que um dia, não muito distante,

estaria faturando um milhão de dólares com todos esses medos infantis e suores

noturnos.

       - E eu não vou ter coragem de falar nada porque a droga do meu irmão... é, sabe, Billy... ele ouviu no rádio... - Sacudiu os ombros lastimoso. - Por isso que eu tenho medo de olhar o garoto, porque, sabe, se ele estiver muito horrível...

       Engoli em seco e olhei para Chris. Ele olhava sério para Vern e balançava a cabeça para que continuasse.

       - Se ele estiver muito horrível - resumiu Vern - vau ter pesadelos com ele e acordar achando que ele está embaixo da minha cama todo cortada em cima de uma poça de sangue como eles mostram naqueles programas da TV, só olhos e cabelo mas andando, entendeu, andaaando, sabe, pronto para agarrar...

       - Meu Deus - disse Teddy com a voz abafada. - Que história horrível para dormir.

       - Ah, não posso fazer nada - disse Vern num tom defensivo. - Mas sinto que a gente tem que ver, mesmo tendo pesadelos. Sabe? A gente tem. Mas... acho que não devia ser nenhuma diversão.

       - É, disse Chris suavemente. - Acho que não.

       Vern disse implorando: - Vocês não vão contar para ninguém, vão? Não estou falando dos pesadelos, isso todo mundo tem - estou falando de acordar achando que tem alguma coisa embaixo da cama. É muito bobo.

       Todos dissemos que não e um silêncio pesado caiu sobre nós novamente. Eram apenas quinze para as três, mas parecia muito mais tarde. Estava muito quente e muita coisa tinha acontecido. Ainda não estávamos nem dentro de Harlow. Teríamos que apressar o passo se quiséssemos realmente adiantar alguns quilômetros antes de escurecer.

       Passamos por um cruzamento da estrada de ferro e um aviso num poste comprido e enferrujado e todos nós paramos para tirar cinzas da placa de aço no topo, mas ninguém alcançou. E por volta de três e meia chegamos ao Rio Castle e à ponte de cavaletes da GS&WM que o cruzava.

       O rio tinha mais de cem metros de largura naquele ponto em 1960; voltei várias vezes para olhá-lo desde aquela vez e achei que ele diminuiu bastante até hoje. Estão sempre mexendo com o rio, tentando fazê-lo funcionar melhor para os moinhos, e já fizeram tantas represas que ele já está muito bem dominado. Mas naquela época havia apenas três represas ao longo do rio, que cortava todo o estado de New Hampshire e metade do Maine. O Castle era ainda quase todo livre naquela época e a cada três primaveras ele transbordava e cobria a Rota 136 na direção de Harlow ou Danvers, ou em ambas.

         Agora, no final do verão mais seco que o ocidente do Maine já vira desde a depressão,

ele continua largo. Do lado de Castle Rock, em que estávamos, a densa floresta do lado

de Harlow dava a impressão que era um país totalmente diferente. Os pinheiros e espruces ficavam azulados sob a bruma do calor da tarde, Os trilhos subiam quinze metros por cima do rio apoiados num suporte de estacas de madeira e vigas cruzadas. A água era tão rasa que você podia olhar para baixo e ver os tampões de cimento que haviam sido plantados três metros abaixo do leito do rio para sustentar a ponte.

       A ponte em si era bem chamativa - os trilhos corriam por sobre uma longa e estreita plataforma de madeira. Havia uma abertura de dez centímetros entre cada par de vigas por onde se podia ver o rio lá embaixo. Dos lados não havia mais de cinqüenta centímetros entre os trilhos e a beirada da ponte. Se um trem viesse, talvez houvesse espaço suficiente para não ser esmagado... mas o vento produzido por um trem de carga correndo livre e desimpedido com certeza varreria você, fazendo-o cair perigosamente contra as pedras acima da superfície da rasa água corrente.

       Olhando a ponte sentimos o medo começar a mexer nossas barrigas... e misturando-se

estranhamente com ele, a excitação de uma grande audácia, realmente grande, uma coisa da qual você podia se orgulhar durante muito tempo depois que voltasse para casa... se voltasse. Aquela estranha luz brilhava de novo nos olhos de Teddy e achei que ele não estava vendo a ponte, mas uma longa praia de areias brancas, mil tanques encalhados sob as ondas espumantes, dez mil soldados ocupando a praia, as botas de combate deixando marcas na areia. Estavam pulando os arames farpados! Jogando granadas nas trincheiras! Destruindo as casamatas para metralhadoras!

       Estávamos em pé ao lado dos trilhos onde as cinzas desciam na direção da margem do

rio - o lugar onde acabava a barragem e começava a ponte. Olhando para baixo eu via onde a descida começava a ficar mais íngreme. As cinzas davam vez a arbustos disformes e fortes e lajes de pedras cinzentas. Mais abaixo havia alguns abetos atrofiados com as raízes expostas contorcendo-se para fora das fissuras na laje de pedra: pareciam estar olhando seus pobres reflexos na água corrente.

         Nesse ponto o Rio Castle realmente parecia muito limpo; em Castle Rock ele estava

entrando no cinturão de moinhos têxteis do Maine. Mas não havia peixes pulando, embora se conseguisse ver o fundo - tinha-se que subir mais dezesseis quilômetros na direção de New Hampshire para vê-los no Castle. Ali não havia, e ao longo da margem viam-se colares de espuma suja em volta de algumas pedras - a espuma tinha cor de marfim velho. O cheiro também não era especialmente agradável; lembrava um cesto de roupa suja cheio de toalhas mofadas. As libélulas reuniam-se na superfície da água e depositavam seus ovos impunemente. Não havia trutas para comê-las. Droga, não havia nem peixinhos prateados.

       - Cara - disse Chris suavemente.

       - Vamos - disse Teddy daquele seu jeito brusco e arrogante. - Vamos embora. – Estava começando a afastar-se, andando na plataforma entre os trilhos brilhantes.

       - Vem cá - disse Vern apreensivo - algum de vocês sabe quando passa o próximo trem?

       Todos nós demos de ombro.

       - Tem a ponte da Rota 136 - disse eu.

       - Ei, espera aí, dá um tempo! - gritou Teddy. - Quer dizer que vamos ter que andar oito

quilômetros rio abaixo deste lado - e depois mais oito rio acima do outro lado... vamos chegar quando estiver escuro! Se usarmos a ponte podemos ir ao mesmo lugar em dez minutos!

       - Mas se um trem vier não há espaço para fugir - disse Vern. - Ele não estava olhando para Teddy. Estava olhando para baixo, para o rio veloz e delicado.

       - Dane-se - disse Teddy indignado. Ele pulou e ficou segurando um dos suportes de madeira entre os trilhos. Não estava muito alto - seus tênis estavam quase tocando o solo - mas pensar em fazer a mesma coisa no meio do rio com uma altura de quinze metros até lá embaixo e um trem berrando acima de minha cabeça e provavelmente soltando faíscas quentes no meu cabelo e atrás do meu pescoço... nada disso realmente me encantava muito.

       - Estão vendo como é fácil? - disse Teddy. Pulou para o chão, bateu as mãos e subiu de novo para a ponte.

       - Você está me dizendo que vai ficar pendurado assim se for um trem de carga enorme?

       - perguntou Chris. - Assim, pendurado pelas mãos durante cinco ou dez minutos?

       - Você é covarde? - gritou Teddy.

       - Não, só estou perguntando o que você ia fazer - disse Chris rindo. - Calma, cara.

       - De a volta se você quiser - esbravejou Teddy. - Quem está ligando? Eu espero você.

       Vou tirar um cochilo!

       - Um trem já passou - disse eu relutante. - E provavelmente só deve ter mais um, não deve ter mais de dois trens por dia que passem por Harlow. Olhem isto. - Chutei o mato nascendo entre os dormentes com um pé. Não havia mato entre os trilhos entre Castle Rock e Lewiston.

       - Olha aí Estão vendo? - disse Teddy triunfante.

       - Mas mesmo assim existe uma possibilidade - acrescentei eu.

       - É - disse Chris. Estava olhando para mim, seus olhos brilhavam. - Vai, Lachance?

       - Vai você primeiro.

       - Está bem - disse Chris. Abriu bem os olhos para Teddy e Vern perceberem. – Tem algum frouxo aqui?

     - NÃO ! - gritou Teddy.

       Vern limpou a garganta, resmungou, limpou de novo e disse "não" numa voz bem fraca.

       Deu um sorriso pequeno e aflito.

       - Muito bem - disse Chris... mas hesitamos por um tempo, até Teddy, que olhava curiosamente de um lado para o outro dos trilhos. Ajoelhei-me e segurei um dos trilhos de aço com firmeza em minhas mãos sem pensar que podia empolar a minha pele de tão quente. O trilho estava mudo.

     - Está bem - disse eu, e quando disse isso alguém deu um salto com vara dentro do meu estômago. Colocou a vara no meu saco e acabou sentado escarranchado no meu coração - foi a sensação que eu tive.

       Entramos na ponte em fila indiana: Chris na frente, depois Teddy, depois Vern e eu no final. Andávamos sobre os dormentes da plataforma entre os trilhos, e tínhamos que olhar para os pés, tendo medo de altura ou não. Um passo em falso e você caía sentado

com um dormente no meio das pernas e provavelmente um tornozelo quebrado para

completar.

       A barragem estava abaixo de mim, e cada passo à frente parecia selar mais a nossa

decisão... e fazê-la parecer mais estupidamente suicida. Parei para olhar para cima quando vi as pedras darem vez à água muito abaixo de mim. Chris e Teddy estavam bem na frente, quase no meio, e Vern andava cambaleando atrás deles olhando fixamente e com cuidado para os pés. Parecia uma velha senhora sobre pernas de pau tentando andar, a cabeça abaixada, as costas curvadas, os braços esticados para adquirir o equilíbrio. Olhei para trás por cima do ombro. Longe demais. Agora tinha que continuar, e não só porque um trem podia vir. Se eu voltasse seria um frouxo para o resto da vida.

       Então continuei a andar. Depois de olhar para baixo para a série interminável de

dormentes por um tempo, avistando a água correndo entre cada par, comecei a me sentir

tonto e desorientado. Cada vez que abaixava um pé parte do meu cérebro me assegurava

que ia mergulhar no espaço, embora eu soubesse que não.

       Fiquei perfeitamente consciente dos barulhos dentro e fora de mim, como uma orquestra maluca afinando os instrumentos para começar a tocar. As batidas contínuas do meu coração, reverberando nos meus ouvidos como um tambor sendo tocado com pincéis, o estalar dos tendões como as cordas de um violino que foi afinado muito alto, o sussurrar

constante do rio, o zumbido de um gafanhoto cavando a casca dura de uma árvore, o cantar monótono de um canário, e em algum lugar distante um cachorro latindo. Chopper, talvez. O cheiro de mofo do rio estava forte. Os longos músculos de minhas coxas tremiam. Ficava pensando corno teria sido mais seguro (provavelmente mais rápido também) se tivesse me ajoelhado eido engatinhando. Mas não ia fazer aquilo nenhum de nós iria. Se as matinês do Gem nos haviam ensinado alguma coisa, era que Só os Perdedores Engatinham. Era um dos dogmas do Evangelho Segundo Hollywood. Os caras bons andam firme, e se seus tendões estão estalando como cordas de um violino superafinado por causa da adrenalina correndo no seu corpo e se os músculos de suas coxas estão tremendo pela mesma razão paciência.

         Tive que parar no meio da ponte e olhar para o céu um pouco. A sensação de tontura

piorara. Via fantasmas de dormentes que pareciam flutuar na minha frente. Então foram

desaparecendo e comecei a me sentir bem de novo. Olhei para frente e vi que quase

alcançara Vern, que se arrastava, pior do que nunca. Chris e Teddy estavam quase do

outro lado.

         E embora desde aquela época eu já tenha escrito sete livros sobre pessoas que podem

fazer coisas exóticas como ler a mente e prever o futuro, foi naquela vez que tive minha

primeira e última premonição. Tenho certeza que foi isso, de que outro modo explicar?

Abaixei-me e segurei o trilho à minha esquerda. Tremeu em minha mão. Tremia tanto

que parecia que eu segurava um monte de cobras metálicas venenosas.

         Já ouviram dizer "Minhas tripas viraram água"? Sei o que a expressão significa -

exatamente o que significa. Talvez seja a expressão mais precisa já inventada. Já tinha

sentido medo, muito medo, mas nunca como daquela vez, segurando aquele trilho vivo

e quente. Por um momento pareceu que todo o meu organismo da garganta para baixo

ficou flácido e desfalecido. Um fino fio de urina desceu incontrolavelmente por dentro

de uma das coxas. Minha boca abriu. Não fui eu que abri, ela abriu sozinha, o maxilar

caiu como se de repente tivessem tirado as dobradiças de uma porta de alçapão. Minha

língua colou no céu da boca me sufocando. Todos os meus músculos ficaram presos.

Isso foi o pior. Meu organismo ficou flácido, mas meus músculos ficaram terrivelmente

travados e eu não conseguia me mexer. Foi apenas um minuto, mas pareceu uma eternidade.

         Todas as entradas sensoriais se intensificaram, como se uma onda repentina de energia tivesse ocorrido na corrente elétrica do meu cérebro, elevando tudo de cento e dez volts para duzentos e vinte. Podia ouvir um avião passando em algum lugar bem perto e tive tempo de desejar que eu estivesse dentro dele, sentado perto da janela com uma Coca

nas mãos e olhando ociosamente o curso brilhante de um rio que eu não sabia o nome.

Via todas as lascas e estrias dos dormentes sobre os quais estava agachado. E pelo canto

do olho podia ver o trilho que eu estava segurando brilhando insensatamente. A vibração daquele trilho entrava tão forte na minha mão que quando a tirei ainda estava vibrando, as extremidades dos nervos pulando sem parar, formigando como as mãos ou os pés formigam quando o sangue começa a correr depois que se dormiu em cima deles. Sentia o gosto da minha saliva que de repente ficou elétrica, ácida e grossa e coagulou nas minhas gengivas. E o pior, mais terrível de tudo, é que eu não conseguia ouvir o trem ainda, não sabia se estava vindo da frente ou de trás, ou se estava perto. Era invisível. E não dava sinal, a não ser os trilhos que tremiam. Só aquilo anunciava sua chegada iminente. A imagem de Ray Brower terrivelmente esmagado e jogado numa vala qualquer como um saco rasgado de roupa suja passou na frente de meus olhos. Iríamos nos juntar a ele, pelo menos Vern e eu, ou pelo menos eu. Tínhamos nos convidado para nossos próprios funerais.

       O último pensamento cortou o choque e eu me levantei. Provavelmente eu estava

parecendo uma caixa de surpresas para quem olhasse, mas eu me sentia como um garoto

em câmera lenta embaixo d'água, não subindo um metro e meio de ar, mas um metro e

meio de água, devagar, movendo-me com terrível languidez enquanto ia abrindo

caminho na água com dificuldade.

       Mas finalmente atingi a superfície.

       Gritei: - O TREM!

       O final do choque me abandonou e comecei a correr.

       A cabeça de Vern virou por cima do ombro. O espanto que deformou seu rosto foi

quase comicamente exagerado, tão grande quanto as letras de um livro infantil. Viu que eu começara a correr desajeitado e com dificuldades pulando de um dormente para o outro e viu que eu não estava brincando. Começou a correr também.

       Lá na frente vi Chris saindo da ponte e pisando em terra firme, e de repente odiei-o com todas as minhas forças. Estava salvo. Aquele idiota estava salvo. Vi-o cair de joelhos e segurar um trilho.

       Meu pé esquerdo quase caiu no vão. Levantei os braços, meus olhos quentes como rolamentos de alguma máquina, consegui o equilíbrio e continuei a correr. Agora estava bem atrás de Vern. Tínhamos passado da metade e pela primeira vez ouvi o trem. Estava vindo de trás, do lado de Castle Rock. Era um zumbido baixo que começou a aumentar ligeiramente e passou a um rugido, o barulho sinistro das grandes rodas encaixadas correndo pesadamente sobre os trilhos.

        - Aaaaaaaaaaaaai, merda! - gritava Vern.

       - Corre, seu frouxo! - gritava eu, e bati-lhe nas costas.

       - Não posso! Vou cair!

       - Mais rápido!

       - AAAAAAAAAA!, MERDA!

       Mas foi mais rápido, um espantalho desajeitado com as costas nuas e queimadas, a gola da camisa voando e balançando abaixo de suas nádegas. Via o suor nos seus ombros descascados em pequenas gotas perfeitas, escorrendo pelo cangote. Seus músculos se

contraíam e relaxavam, contraíam e relaxavam, contraíam e relaxavam. Sua espinha tinha uma série de nós, cada nó com uma forma que ia aumentando - via que esses nós iam crescendo quanto mais próximos do pescoço. Ainda estava segurando seus cobertores enrolados e eu os meus. Os pés de Vern batiam com um barulho surdo nos dormentes. Quase não conseguiu pisar em um, tropeçou, os braços esticados para não perder o equilíbrio, e eu empurrei-o para que continuasse.

         - Gordieeee, não posso, AAAAAAAAA!, MEEEEEEEERDAAA...

         - CORRE MAIS, BABACA ! - gritei, e estaria me divertindo?

       É, de alguma maneira peculiar e autodestrutiva que desde então só experimentei quando completa e literalmente bêbado, estava. Guiava Vern Tessio como um vaqueiro levando sua vaca para o mercado. E talvez ele estivesse se divertindo com seu próprio medo da mesma maneira, gritando como aquela mesma vaca, berrando e suando, seus quadris subindo e descendo como os foles de um ferreiro apressado, correndo desajeitadamente, tropeçando.

         O barulho do trem estava muito alto agora, o motor fazendo um estrondo contínuo. O apito tocou quando ele cruzou o entroncamento onde tínhamos parado para tirar as cinzas da placa. Eu já estava apavorado, quisesse ou não. Fiquei esperando a ponte começar a tremer sob meus pés. Quando aquilo acontecesse estaria bem atrás de nós.

       - MAIS RÁPIDO, VERN! MAIS RÁAAAAAAPIDO!

       - Oh, meu Deus, Gordie, oh, meu Deus, Gordie, oh, meu Deus - oooooooh - MEEEEEERDA !

       O apito do trem rasgou de repente o ar em mil pedaços com urre sopro alto e longo, destroçando todos os seus sonhos e as coisas que você viu em filmes e revistas em quadrinhos, mostrando o que os heróis e covardes realmente ouvem na hora da morte:

UUUUUAAAAAAMMM! UUUUAAAAAMWIMM!

       De repente Chris estava embaixo de nós á direita e Teddy atrás dele, a luz do sol refletindo arcos em seus óculos. Os dois tentavam dizer só uma palavra, pulem! mas o trem havia tirado todo o fôlego deles, e não conseguiram emitir um único som. A ponte começou a tremer quando o trem passou. Pulamos.

         Vern caiu estatelado na terra e eu ao seu lado, quase por cirna dele. Não consegui ver o trem nem sei se o maquinista nos viu quando mencionei a Chris a possibilidade de não nos ter visto alguns dias depois, ele disse: - Eles não apitam assim à toa, Gordie. – Mas acho que sim; acho que ele pode ter apitado só por apitar. Naquela altura esses detalhes não importavam muito. Coloquei as mãos nos ouvidos e baixei a cabeça sobre a terra quente quando o trem passou, o guincho de metal contra metal, o impacto do vento sobre nós. Não sentia vontade de olhar. Era grande, mas não olhei. Antes de ter cruzado a ponte, senti uma mão quente no meu pescoço, e sabia que era de Chris.

           Quando tinha sumido - quando tive certeza que tinha sumido - ergui a cabeça como um soldado na trincheira depois de um longo dia. Vern ainda estava estatelado na areia, tremendo. Chris estava sentado de pernas cruzadas entre nós, uma das mãos sobre o pescoço suado de Vern e a outra ainda sobre o meu.

           Quando Vern finalmente sentou, tremendo e lambendo os lábios compulsivamente, Chris disse:

       - O que vocês acham de tomarmos aquela Coca-Cola? Alguém me acompanha?

         Concordamos que seria uma boa idéia.

       Cerca de trezentos metros adiante, do lado de Harlow, os trilhos penetravam diretamente na floresta. A região densamente arborizada seguia em declive até uma área pantanosa. Era cheia da mosquitos do tamanho de aviões, mas estava fresco... abençoadamente fresco.

       Sentamo-nos à sombra para tomar nossa Coca. Vern e eu colocamos nossas camisas sobre os ombros por causa dos insetos, mas Chris e Teddy estavam nus da cintura para cima, parecendo calmos e recompostos como esquimós num iglu. Estávamos ali não havia cinco minutos quando Vern teve que ir para o meio dos arbustos se aliviar, o que foi motivo de muitas brincadeiras quando voltou.

       - Ficou com muito medo do trem, Vern?

       - Não - disse Vern. - Eu ia fazer cocô mesmo antes de atravessar, já estava com vontade.

       - Verrrrn... - gritaram Chris e Teddy em coro.

       - Verdade, cara. Mesmo.

       - Então você não se incomoda se a gente examinar seu fundilho, não é? – perguntou Teddy, e Vern riu, finalmente entendendo que estava sendo gozado.

       - Vão à merda.

      Chris virou-se para mim:

       - Teve medo do trem, Gordie?

       - Não - disse eu, e dei um gole na Coca.

       - Não muito, né, espertinho? - Deu um soco no meu braço.

       - Verdade! Não tive nem um pouco de medo.

       - É? Não teve medo? - Teddy me estudava cuidadosamente.

       - Não. Fiquei completamente morto de medo.

       Aquilo acabou com eles, inclusive Vem, e rimos durante muito tempo. Depois nos deitamos, sem falar bobagens, apenas bebendo nossa Coca quietos. Meu corpo estava quente, excitado, em paz consigo mesmo. Nada mais se agitava dentro dele. Eu estava vivo e feliz. Tudo parecia possuir um encanto especial, e embora não tenha dito aquilo, acho que não era importante - talvez aquela sensação de encanto fosse algo que queria guardar só para mim.

       Acho que naquele dia comecei a entender um pouco o que faz as pessoas se tornarem audaciosas. Paguei vinte dólares para ver Evel Kneivel tentar pular o canyon do rio Snake alguns anos atrás e minha mulher ficou horrorizada. Disse que se eu tivesse nascido em Roma teria ido para o Coliseu comer uvas e ver os leões devorarem cristãos. Estava errada, embora fosse difícil lhe explicar por quê (na verdade acho que pensava que eu estava tentando enrolá-la). Não soltei aqueles vinte dólares para ver o homem morrerem circuito fechado de TV de costa a costa, embora tivesse certeza que era exatamente o que ocorreria. Fui por causa das sombras que estão sempre em algum lugar no fundo da mente, por causa do que Bruce Springsteen chama de escuridão no limite da cidade em uma de suas músicas, e acho que de vez em quando todo mundo quer enfrentar a escuridão apesar dessa geringonça de corpo que algum deus brincalhão nos deu, seres humanos. Não... não apesar de nossas geringonças, mas por causa delas.

       - Ei, conta essa história - disse Chris de repente, sentando-se.

       - Que história? - perguntei, embora achasse que soubesse.

       Sempre me sentia mal quando a conversa se voltava para minhas histórias, embora

todos parecessem gostar - querer contar histórias, mesmo querer escrevê-las... era uma coisa íntima demais para parecer casual, como querer ser inspetor de esgotos ou mecânico de Grand Prix quando crescesse. Richie Jenner, um garoto que andava conosco até sua família mudar-se para o Nebraska em 1959, foi o primeiro a descobrir que eu queria ser escritor quando crescesse, que queria trabalhar com isso em tempo integral. Estávamos no meu quarto distraídos quando ele encontrou um maço de manuscritos embaixo das revistas em quadrinhos dentro de uma pasta no meu armário. O que é isso?, pergunta Richie. Nada, digo eu, e tento pegá-lo. Richie levantou as folhas... e devo admitir que não tentei muito torná-las. Queria que as lesse e ao mesmo tempo não queria - uma mistura estranha de orgulho e vergonha, que sinto até hoje quando alguém me pede para ler o que escrevo. O ato de escrever em si é secreto, como a masturbação - ah, tenho um amigo que escreve nas vitrines de livrarias e lojas de departamentos, mas é um cara corajoso demais, o tipo do cara que você gostaria de ter a seu lado se você tivesse um ataque do coração no meio da rua de uma cidade onde não conhecesse ninguém. Eu sempre quis que fosse como sexo, mas nunca consegui – é sempre aquele negócio de adolescente no banheiro com a porta trancada.

         Richie passou a maior parte da tarde sentado na beira da minha cama lendo as coisas que eu havia escrito, a maioria das quais influenciada pelos mesmos tipos de histórias em quadrinhos que faziam Vern ter pesadelos. Quando acabou, Richie olhou para mim

de uma maneira nova e diferente que fez com que eu me sentisse muito singular, como se tivesse sido forçado a reavaliar toda minha personalidade Ele disse:

         - Você é muito bom nisso. Por que não mostra para Chris?

       Eu disse que não, queria que fosse segredo, e Richie disse:

       - Por quê? Não é coisa de bicha. Você não é veado. Quer dizer, não é poesia.

       Mesmo assim, fiz Richie prometer que não contaria a ninguém, e claro que contou e no final todos gostavam de ler o que eu escrevia, que eram coisas como ser queimado vivo, um ladrão que ressuscita e massacra todo o júri que o condenara, ou um maníaco que

enlouquece e corta várias pessoas como costeletas de vitela antes de o herói, Curt Cannon, "cortar em pedaços os loucos subumanos desesperados em várias rodadas seguidas com sua .45 automática esfumaçante".

       Em minhas histórias havia sempre rodadas. Nunca balas.

       Para variar um pouco, havia as histórias de Le Dio. Le Dio era uma cidade da França, e durante o ano de 1942 um pelotão implacável de exauridos soldados americanos tentava retomá-la dos nazistas (isso foi dois anos antes de descobrir que os aliados só chegaram à França erre 1944), tentavam reconquistá-la lutando pelas ruas durante cerca de quarenta histórias que escrevi entre as idades de nove e quatorze anos. Teddy era completamente louco pelas histórias de Le Dio, e acho que escrevi as últimas doze só por sua causa - a essa altura eu já estava cheio de Le Dio e de escrever coisas como Mon Dieu, Cherchez le Boche! e Fermez la porte! Em Le Dio os camponeses franceses estavam sempre mandando os soldados americanos fermez la porte! Mas Teddy ficava preso àquelas páginas, os olhos arregalados, a testa suada, fazendo caretas. Às vezes eu quase podia ouvir tiros de Brownings refrigeradas a ar e zunidos de 88 disparando em seu cérebro. A maneira ansiosa como pedia mais histórias sobre Le Dio era ao mesmo tempo agradável e assustadora.

         Hoje em dia escrever é meu trabalho, o prazer diminuiu um pouco, e cada vez mais aquele prazer culposo e masturbatório associa-se em minha cabeça às frias imagens de inseminação artificial: devo obedecer às regras e regulamentos de meu contrato de

publicação. E apesar de saber que nunca serei considerado o Thomas Wolfe de minha geração, nunca tento me enganar: escapo toda vez que posso. Escrever menos seria, de forma grosseira, como virar bicha - pelo menos o que isso significava para nós naquela época. O que me assusta é ver que hoje em dia geralmente isso me incomoda. Naquela época, às vezes me aborrecia por ser tão bom escrever. Hoje, algumas vezes olho para essa máquina de escrever e me pergunto quando as palavras adequadas vão faltar. Não quero que isso aconteça. Acho que posso ficar tranqüilo enquanto as palavras adequadas não faltarem, entende?

           - Que história é essa? - perguntou Vern, apreensivo. - Não e história de terror, é, Gordie? Acho que não quero ouvir histórias de terror. Não quero não, cara.

           - Não, não é de terror - disse Chris. - É muito engraçada. Grossa, mas engraçada. Vai, Gordie. Conta essa pra gente.

         - É sobre Le Dio? - perguntou Teddy.

         - Não, não é sobre Le Dio, seu maníaco - disse Chris, e deu-lhe um soco de leve. É sobre o concurso de comer tortas.

         - Ei, eu ainda nem escrevi - disse eu.

         - É, mas conta.

         - Vocês querem ouvir?

         - Claro - disse Teddy. - Demais.

         - Bem, é sobre uma cidade fictícia. Gretna é seu nome. Gretna, Maine.

         - Gretna? - disse Vern, rindo. - Que nome é esse? Não existe nenhuma Gretna no Maine.

         - Cala a boca, idiota - disse Chris. - Ele não acabou de dizer que é fictícia?

         - É, mas Gretna é tão idiota...

         - Muitas cidades de verdade têm nomes idiotas - disse Chris. - Por exemplo, que tal Alfred, Maine? Ou Saco, Maine? Ou Jerusalem's Lot? Ou Castle-merda-Rock? Aqui não tem nenhum castelo. A maioria dos nomes das cidades são idiotas. Você não acha porque está acostumado. Certo, Gordie?

         - Lógico - disse eu, mas no fundo achava que Vern estava certo. Gretna era um nome muito idiota para uma cidade. Só que não consegui pensar em outro. - Bem, então estavam comemorando o Dia do Pioneiro, como em Castle Rock.

       - É, Dia do Pioneiro, isso é o máximo - disse Vern, convicto.

       - Coloquei toda a minha família naquela jaula sobre rodas que eles têm, até o idiota do Billy. Foi só meia hora e me custou toda a minha mesada, mas valeu a pena, só para saber onde aquele filho da mãe ia...

       - Quer calara boca e deixar ele contar? - gritou Teddy.

       Vern piscou os olhos.

       - Claro. Está bem.

       - Vai, Gordie - disse Chris.

       - Não é grande coisa.

       - A gente não espera grande coisa de um babaca como você - disse Teddy. – Mesmo assim conta.

       Limpei a garganta.

     - Então é o seguinte. É Dia do Pioneiro e na última noite acontecem três grandes eventos. A corrida com o ovo na colher para os menores, a corrida de saco para os garotos de oito ou nove anos, e o concurso de comer tortas. O principal personagem da história é um garoto gordo que ninguém gosta chamado David Hogan.

     - Como o irmão de Charlie Hogan, se ele tivesse - disse Vern, e se encolheu quando Chris socou-lhe outra vez.

     - Esse garoto tem nossa idade mas é gordo. Pesa uns noventa quilos e está sempre apanhando e sendo gozado. E todos os meninos, ao invés de chamarem ele de Davie, chamam ele de Rabo Grande e gozam dele sempre que têm uma chance.

       Balançaram a cabeça com respeito, mostrando a natural solidariedade a Rabo Grande, embora se um cara como esse aparecesse em Castle Rock, iríamos gozar dele o tempo todo.

     - Então ele resolve se vingar porque já está cheio, sabe. Ele só participa do concurso de comer tortas, que é o último evento do Dia do Pioneiro, e todos estão ansiosos. O prêmio são cinco dólares.

     - Então ele ganha e dá uma banana para todo mundo! - disse Teddy. - Demais!

     - Não, melhor - disse Chris. - Cala a boca e escuta.

     - Rabo Grande pensa consigo mesmo, cinco dólares, o que isso significa? Depois de duas semanas só vão lembrar que o porco imbecil do Hogan "papou" todo mundo, e vão querer ir na casa dele lhe dar uma boa lição, e passar a chamá-lo de Rabo de Torta em vez de Rabo Grande.

       Balançaram a cabeça mais uma vez, concordando que Davie Hogan era um cara esperto. Comecei a me esquentar para contar minha história.

     - Mas todo mundo quer que ele entre no concurso. Até o pai e a mãe dele. Quase lhe dão os cinco dólares.

     - É, isso mesmo - disse Chris.

     - Então ele pensa naquilo e sente ódio de tudo, porque ser gordo não é culpa dele. Sabe, ele tem aquelas glândulas defeituosas, alguma coisa, e...

     - Minha prima é assim! - exclamou Vern, excitado. - É verdade! Ela pesa quase cento e cinqüenta quilos! Acham que é a glândula hibóide, ou qualquer coisa assim. Não sei dessa glândula hibóide, mas sem brincadeira, ela parece uma baleia, e uma vez...

     - Porra, quer calar a boca, Vern? - gritou Chris, irado. Pela última vez! Juro por Deus!

Tinha acabado a Coca; pegou a garrafa verde em forma de ampulheta, virou-a de cabeça para baixo e ameaçou acertar a cabeça de Vern.

       - Ah, é, desculpe. Vai, Gordie. A história é incrível.

     Sorri. Na verdade não me incomodava com as interrupções de Vern, mas claro que não podia dizer isso a Chris, que se elegera Guardião das Artes.

       - Então ele fica pensando a semana inteira antes do concurso. No colégio as crianças a toda hora lhe perguntam:

     - Ei, Rabo Grande, quantas tortas você vai comer? Dez? Vinte? Oitenta?

     E Rabo Grande diz:

     - Como é que vou saber? Não sei nem de que são feitas. E estão todos muito interessados nesse concurso porque o campeão é um homem que se chama Bill Traynor, eu acho. E esse tal de Traynor não é nem gordo. Na verdade é magro como uma vara.

Ele consegue comer tortas como um animal, e ano passado comeu seis em cinco minutos.

     - Inteiras? - perguntou Teddy, impressionado.

     - Exatamente. E Rabo Grande é o garoto mais novo que já participou de um concurso desses.

     - Dá-lhe, Rabo Grande! - gritou Teddy, excitado. - Engole essas tortas de uma vez!

     - Fala sobre os outros - disse Chris.

     - Está bem. Além de Rabo Grande e Bill Traynor, havia Calvin Spier, o cara mais gordo da cidade - o dono da joalheria,

     - Gretna Jóias - disse Vern, e conteve o riso. Chris olhou-o de cara feia.

     - E tem esse cara que é disc-jóquei de uma estação de rádio de Lewiston, que não é muito gordo, só cheinho. E o último candidato era Hubert Gretna Terceiro, o diretor da escola de Rabo Grande.

     Ele ia competir com o próprio diletor? - perguntou Teddy.

     Chris abraçou os joelhos e se balançou para frente e para trás, alegre.

     - Não é demais? Continua, Gordie!

     Tinha conseguido prender a atenção deles. Estavam todos inclinados para a frente..

Senti uma sensação intoxicante de poder. Joguei minha garrafa de Coca vazia no meio da mata e mexi-me um pouco para ficar mais confortável. Lembro de ter ouvido a mejengra cantar novamente no meio da floresta, mais longe dessa vez, elevando seu canto monótono e infindável aos céus: doe-deedee-dee!

     - Então ele tem urna idéia - disse eu. - A maior vingança que um garoto já conseguiu

imaginar. Chega a grande noite - o fim do Dia do Pioneiro.

       O concurso de comer tortas vem antes dos fogos de artifício. A principal rua de Gretna é fechada para que as pessoas possam andar, e há uma grande plataforma armada rio meio

dela. Bandeiras penduradas balançam ao vento e a multidão é grande. Há também um fotógrafo do jornal local, para tirar uma fotografia do vencedor cheio de uvas na cara,

porque naquele ano as tortas eram de uva. E tem outro detalhe que quase esqueci de contar: eles tinham que comer as tortas com as mãos amarradas para trás. Então, imaginem só, eles sobem na plataforma...

 

De A Vingança de Rabo Grande, de Gordon Lachance. Publicado originalmente na revista Cavalier, março, 1975. Reprodução autorizada.

       Subiram na plataforma um a um e colocaram-se atrás de urna mesa comprida coberta por uma toalha de linho. A mesa estava cheia de tortas empilhadas e ficava na beira da plataforma. De cordões amarrados no alto pediam lâmpadas de 100 watts com bichos de

luz e insetos noturnos pairando suavemente ao redor, como num cumprimento. Em cima da plataforma, banhada pela luz de spots, uma grande faixa anunciava: GRANDE CONCURSO DE COMER TORTAS DE GRETNA DE 1960! De cada um dos lados da faixa havia dois alto-falantes fornecidos pela loja de Chuck. Bill Travis, o soberano campeão, era primo de Chuck.

     A medida que cada competidor subia na plataforma, as mãos amarradas para trás e a camisa aberta, como Sydney Carton a caminho da guilhotina, o prefeito Charbonneau anunciava seu nome pelo alto-falante de Chuck e amarrava um grande babador em seu pescoço. Calvin Spier recebeu apenas modestos aplausos; apesar de sua barriga, do tamanho de um barril de água de oitenta litros, as pessoas acharam que só perderia para Hogan (muitos consideravam Rabo Grande uma revelação, mas muito jovem e inexperiente para conseguir um resultado expressivo naquele ano.

       Depois de Spier, Bob Cormier foi apresentado. Cormier era disc-jóquei com um programa vespertino muito popular na rádio WLAM de Lewiston. Recebeu urna salva de palmas, acompanha da de gritinhos das adolescentes na platéia. As garotas achavam-no "uma gracinha". John Wiggins, diretor da Escola Primária de Gretna, veio depois de Cormier. Recebeu aplausos entusiasmados da ala mais idosa da platéia - e algumas vaias dos membros rebeldes de seu corpo discente. Wiggins conseguiu parecer paternalmente radiante e ao mesmo tempo agradecer baixando a cabeça com o cenho severamente franzido Em seguida, o prefeito Charbonneau apresentou Rabo Grande:

       - Um novo candidato do concurso anual de tortas de fluem todos esperam gravides realizações no futuro... o jovem talento David Hogan!

       Rabo Grande recebeu uma grande salva de palmas enquanto o prefeito Charbonneau amarrava o babador em seu pescoço, e quando os aplausos estavam começando a enfraquecer, um coro treinado, no alto da arquibancada, gritou com deboche:

       - Janta eles, Rabo Grande!

     Ouviram-se risadas abafadas, pessoas correndo, sombras que ninguém poderia identificar, risos nervosos, testas franzidas (a de Hizzoner Charbonneau era a mais franzida, o mais evidente representante da autoridade). O próprio Rabo Grande parecia nem estar percebendo. O pequeno sorriso que umedecia os grossos lábios e vincava a grande papada não se alterou quando o prefeito, ainda com a testa franzida, amarrou o babador em seu pescoço e lhe disse que não prestasse atenção às besteiras da platéia (como se o prefeito tivesse alguma noção das monstruosidades que Rabo Grande sofrera e continuaria sofrendo enquanto se arrastasse pela vida como um tanque de guerra nazista). A respiração do prefeito era quente e cheirava a cerveja.

       O último competidor a subir no palco decorado com bandeiras recebeu os aplausos mais fortes e longos; foi o legendário Bill Travis, um metro e noventa de altura, desengonçado, glutão. Travis era mecânico do posto de gasolina próximo à linha do trem, um cara simpático, pode-se dizer.

       Dizia-se na cidade que havia algo mais envolvido no grande concurso de comer tortas de Gretna além de meros cinco dólares- pelo menos para Bill Travis. Por dois motivos: primeiro, as pessoas sempre vinham ao posto cumprimentar Bill quando ganhava o concurso, e quase todos que iam cumprimentá-lo aproveitavam para encher o tanque. E as duas garagens às vezes ficavam lotadas o mês inteiro depois do concurso. As pessoas paravam lá para trocar um amortecedor, colocar graxa nos rolamentos das rodas, e sentavam nas cadeiras de teatro encostadas ao longo de uma parede (Jerry Maling, o dono do posto, as salvara quando o antigo Teatro Gem foi demolido em 1957), bebiam uma Coca da máquina e conversavam com Bill sobre o concurso enquanto ele trocava peças ou sumia embaixo de alguma camionete num carrinho de rolimã para procurar furos no cano de descarga. Bill parecia sempre disposto a conversar, uma das razões pelas quais era tão querido em Gretna.

         Algumas pessoas se perguntavam se Jerry Maling não daria gordas gratificações a Bill pelo lucro que sua façanha anual (ou comilança anual, se você prefere) lhe trazia, ou se recebia enormes aumentos. Como quer que fosse, não havia dúvidas de que Travis ganhava muito melhor que a maioria dos mecânicos de cidade pequena. Tinha uma bonita casa de dois andares na afastada rua Sabbatus, e certas pessoas maldosas referiam-se a ela como "a casa que as tortas construíram". Provavelmente era exagero, mas Bill conseguiu-a por outros meios, o que nos leva à segunda razão pela qual havia algo mais envolvido para Travis no concurso além de meros cinco dólares.

         O concurso era um evento excitante e lucrativo em Gretna. Talvez a maioria das pessoas fosse apenas para rir, mas uma boa minoria ia para apostar. Os competidores eram observados e analisados por esses apostadores tão entusiasticamente como cavalos puro sangue por farejadores de barbadas nas corridas. Os apostadores abordavam os amigos, parentes e até meros conhecidos dos competidores. Pediam todos e quaisquer detalhes sobre os hábitos alimentares dos competidores. Sempre se discutia muito sobre a torta oficial do ano - a de maçã era considerada "pesada", a de abricó, leve (apesar de que o competidor que só comesse três ou quatro tortas de abricó tinha que agüentar alguns dias de trotes). A torta oficial daquele ano, de uvas, era considerada satisfatoriamente média. Os apostadores, claro, interessavam-se especialmente pela reação do estômago dos competidores às uvas. Ele digere bem cachos e mais cachos de uva? Prefere geléia de uva à de morango?

       Era conhecido por comer sempre uvas com cereal no café da manhã, ou era, do tipo que comia exclusivamente bananas com creme?

       Havia outras perguntas de momento. Era um cara que começava comendo rápido e depois ia diminuindo, ou comia devagar e começava a comer mais rápido quando as coisas ficavam sérias, ou simplesmente um bom garfo que comia de tudo? Quantos cachorros-quentes conseguia comer enquanto assistia a uma partida de beisebol da Liga Babe Ruth no campo de St. Dam? Era bebedor de cerveja, e, se fosse, quantas garrafas esvaziava numa tarde? Arrotava muito? Acreditava-se que o cara que arrotava muito era um pouco mais difícil de vencer.

         Todas essas informações eram analisadas, as decisões tomadas e as apostas feitas. O volume de dinheiro que corria de mão em mão durante a semana seguinte ao concurso não posso precisar, mas se encostassem um revólver na minha cabeça e me obrigassem a adivinhar, diria que perto de mil dólares - provavelmente parece um .número insignificante, mas era muito dinheiro para circular numa cidade pequena como aquela há quinze anos atrás.

       E como o concurso era honesto e o período de dez minutos rigorosamente observado, ninguém se opunha a que um candidato apostasse em si mesmo, e Bill Travis fazia isso todos os anos. Corria o boato, enquanto ele sorria cumprimentando a platéia com um gesto de cabeça naquela noite de verão de 1960, de que apostara uma quantia substancial em si mesmo novamente, e o melhor que conseguira naquele ano fora cinco para um. Se você não é do tipo que gosta de apostar, deixe-me explicar de outra maneira: ele teria que arriscar duzentos e cinqüenta dólares para ganhar cinqüenta. Não era um bom negócio, mas o preço do sucesso - e enquanto estava ali, recebendo os aplausos e sorrindo com facilidade, não parecia muito preocupado.

         - E agora o campeão que vai defender o título - bradou o prefeito Charbonneau, - o candidato de Gretna, Bill Travis!

       - Bill! Bill!

       - Quantas vai liquidar esta noite, Bill?

       - Dá pra dez, Bill?

       - Apostei de novo em você, Bill! Não me decepcione, garoto!

       - Deixe uma torta para mim, Trav!

       Balançando a cabeça e sorrindo com a devida modéstia, Bill Travis deixou que o prefeito amarrasse o babador em seu pescoço. Sentou-se na extremidade da mesa, perto do lugar onde o prefeito ficaria durante a prova. Então, da direita para a esquerda, os competidores eram Bill Travis, David "Rabo Grande" Hogan, Bob Cormier, o diretor John Wiggins e Calvin Spier, equilibrando o peso na extremidade esquerda.

       O prefeito Charbonneau apresentou Sylvia Dodge, uma figura ainda mais controvertida que o próprio Bill Travis. Ela fora presidente da Liga de Mulheres de Gretna por tantos anos que já se perderam as contas (desde o First Manassas, segundo algumas pessoas espirituosas), e era ela quem supervisionava o preparo das tortas a cada ano, submetendo todas a seu rigoroso controle de qualidade, o que incluía a formalidade de pesagem na balança do açougueiro do supermercado, Sr. Bancichek, para ter certeza de que todas tinham o mesmo peso.

       Sylvia sorriu formalmente para a multidão, seus cabelos azuis cintilando sob a quente camada de luz das lâmpadas. Fez um breve discurso, dizendo como eslava emocionada em ver grande parte da população da cidade homenageando seus valentes antepassados, pessoas que fizeram daquele um grande país, que era grande, não apenas a nível do povo, que o prefeito Charbonneau conduziria à sede abençoada do governo da cidade novamente em novembro, mas também a nível nacional, em que o time de Nixon e Lodge levaria a tocha da liberdade do nosso grande e estimado General e a ergueria...

       A barriga de Calvin Spier roncou alto - goinnnngg! Houve até aplausos. Sylvia Dodge, que sabia perfeitamente bem que Calvin era democrata e católico (uma coisa só era perdoável, as duas, nunca), conseguiu ficar vermelha, sorrir e parecer furiosa ao mesmo tempo. Limpou a garganta e dirigiu um ressonante conselho a todos os rapazes e moças da platéia, dizendo para terem sempre em alta conta o vermelho, o branco e o azul, tanto em suas mãos quanto em seus corações, e para lembrarem que fumar era um hábito perigoso e maléfico que fazia as pessoas tossirem. Os rapazes e moças na platéia, a maioria dos quais continuaria usando medalhões da paz e fumando maconha em vez de Camel daqui a oito anos, mudaram de posição e esperaram o início do evento.

       - Menos conversa e mais comilança! - gritou alguém da última fila, e houve mais aplausos, dessa vez mais calorosos.

       O prefeito Charbonneau passou às mãos de Sylvia um cronômetro e um apito prateado da polícia, que ela tocaria ao final de dez minutos de comilança de tortas. Então o prefeito Charbonneau daria um passo à frente e ergueria a mão do vencedor.

Estão prontos..., a voz de Hizzoner soou triunfante pelo microfone e por toda Main Street.

       Os cinco comedores de torta responderam afirmativamente

       - PREPARADOS? - insistiu Hizzoner.

       Os comedores resmungaram que sim. No final da rua um menino soltou uma saraivada de fogos.

       O prefeito Charbonneau levantou a mão rechochunda e baixou-a:

       - JÁ!

       Cinco cabeças mergulharam em cinco pratos de torta. O som foi igual a cinco pés afundando na lama. Barulhos melosos de mastigação subiram pelo ar suave da noite e foram abafados quando os apostadores e adeptos no meio da multidão começaram a incentivar seus candidatos. E apenas a primeira torta havia sido devorada quando a maioria das pessoas percebeu que alguma coisa estava errada.

       Rabo Grande, considerado "pato" por sua idade e inexperiência, comia como um possuído. Suas mandíbulas destruíram a casca de cima (as regras do concurso exigiam que se comesse só a casca de cima, não a de baixo) e quando desapareceu seus lábios produziram um imenso barulho de sucção. Era como um aspirador industrial começando a funcionar. Então toda sua cabeça sumiu dentro do prato de torta. Levantou-se quinze segundos depois para indicar que tinha acabado. Suas bochechas e testa estavam cobertas de creme de uva, e parecia um calouro de um espetáculo de variedades. Tinha acabado - acabado antes que o legendário Bill Travis tivesse comido metade de sua primeira torta.

       Aplausos espantados ecoaram quando o prefeito Charbonneau examinou o prato de Rabo Grande e declarou-o suficientemente limpo. Colocou às pressas uma segunda torta no prato diante do "maestro". Rabo Grande devorou uma torta tamanho padrão em apenas 42 segundos. Era um recorde no concurso.

       Atacou a segunda torta mais furiosamente ainda, sua cabeça balançando e ele se lambuzando no macio recheio de uvas, e Bill Travis lançou-lhe um olhar preocupado quando pediu a segunda torta. Como contou depois a seus amigos, sentiu estar participando de um concurso de verdade pela primeira vez desde 1957, quando George Gamache devorou três tortas em quatro minutos e depois caiu duro para trás, morto. Disse que tinha pensado se estava enfrentando um garoto ou um demônio. Pensou no dinheiro que havia jogado naquilo e redobrou seus esforços.

       Mas se Travis havia redobrado, Rabo Grande havia triplicado. Uvas voavam de seu segundo prato de torta manchando a toalha da mesa à sua volta como uma pintura de Jackson Pollock. Havia uvas em seus cabelos, uvas no babador, uvas coladas na testa como se, na agonia da concentração, tivesse realmente começado a suar uvas.

       - Acabei! - gritou ele, levantando a cabeça do segundo prato antes que Bill Travis tivesse consumido a casca da outra torta.

       - Melhor ir mais devagar, garoto - murmurou Hizzoner. O próprio Charbonneau apostara dez dólares em Bill Travis. - Tem que manter o ritmo se quiser ir até o fim.

Foi como se Rabo Grande não tivesse ouvido. Avançou na terceira torta a uma velocidade lunática, suas mandíbulas movendo-se com leve rapidez. Então...

       Preciso interromper um minuto para contar que no armário de remédios da casa de Rabo Grande havia uma garrafa vazia. Antes aquela garrafa continha três quartos de óleo de rícino amarelo-pérola, talvez o líquido mais nocivo que o bom Deus, em Sua infinita sabedoria, criou na face da terra. Rabo Grande esvaziou a garrafa bebendo até a última gota e lambendo o gargalo em seguida, sua boca escorregadia, seu estômago acidamente embrulhado, sua mente cheia de doces idéias vingativas.

       Enquanto ia rapidamente devorando sua terceira torta (Calvin Spier, em último lugar como havia sido previsto, ainda não terminara a primeira), Rabo Grande começou propositadamente a torturar-se com fantasias pavorosas. Não estava comendo tortas; estava comendo bosta de vaca. Estava comendo enormes placas de escarro meladas e imundas. Estava comendo pedaços quadrados de intestino de marmota com creme de uvas por cima. Creme de uvas rançoso.

       Terminou a terceira torta e pediu a quarta, já uma torta à frente do legendário Bill Travis. A multidão volúvel, sentindo surgir um novo e inesperado campeão, começou a incentivá-lo vigorosamente.

       Mas Rabo Grande não tinha esperanças nem intenção de ganhar. Não conseguiria continuar naquele ritmo mesmo se o prêmio fosse a vida da sua própria mãe. E, além do mais, ganhar para ele era perder; vingança era o único prêmio que desejava. Com o estômago revolvendo-se com óleo de rícino, a garganta abrindo e fechando freneticamente, terminou sua quarta torta e pediu a quinta. Mergulhou a cabeça no prato quebrando a casca e aspirando uvas pelo nariz. Uvas escorreram por sua camisa. O conteúdo de seu estômago pareceu de repente ganhar peso. Mastigou a massa pastosa da casca e engoliu-a. Aspirou uvas.

       E de repente o momento de vingança chegara. Seu estômago, insuportavelmente cheio, revolvia-se. Estava apertado como uma mão presa dentro de uma luva de borracha. Sua garganta abriu-se.

       Rabo Grande ergueu a cabeça.

       Sorriu para Bill Travis com os dentes azuis.

       O vômito subiu por sua garganta como um canhão de seis toneladas atirando dentro de um túnel.

       Saiu de sua boca uma imensa rajada azul e amarela, quente. Cobriu Bill Travis que só teve tempo de pronunciar uma sílaba irrrg - foi o que pareceu. As mulheres na platéia berraram. Calvin Spier, que observava o imprevisto evento com uma expressão muda e assustadora, debruçou-se sobre a mesa como que para explicar à platéia embasbacada o que estava acontecendo, e vomitou na cabeça de Marguerite Charbonneau, a mulher do prefeito. Ela gritou e pulou para trás, colocando a mão levemente sobre o cabelo, que estava coberto com uma mistura de uvas amassadas, vagem moída e salsichões parcialmente digeridos (os dois últimos tinham sido o jantar de Cal Spier). Virou-se para sua amiga Maria Lavin e vomitou na parte da frente da jaqueta de camurça de Maria.

       Numa rápida sucessão, como uma reprise dos fogos de artifício:

       Bill Travis despejou um enorme e possante jato de vômito sobre as duas primeiras filas de espectadores com uma cara de assustado, como se dissesse: Meu Deus, não consigo acreditar que eu esteia fazendo isso.

       Chuck Day, que recebera generosa parcela do presente surpresa de Travis, vomitou em cima dos sapatos, e ficou olhando embasbacado para eles, sabendo muito bem que nunca conseguiria limpá-los;

       John Wiggins, diretor da Escola Primária de Gretna, abriu a boca azulada e disse reprovadoramente:

       - Realmente, isso... BLEARRG!! - Um homem de sua posição e cultura vomitou no próprio prato;

       Hizzoner Charbonneau, que de repente percebeu-se presidindo o que mais parecia um concurso num hospital de disenteria do que um concurso de comer tortas, abriu a boca para cancelar tudo e vomitou no microfone.

       - Deus nos salve! - murmurou Sylvia Dodge, e então seu jantar - mariscos fritos, salada de repolho, sucrilhos com manteiga e açúcar e uma generosa quantidade de bolo de chocolate - procurou a saída de emergência e lançou um jato largo e molhado nas costas do terno do prefeito.

         Rabo Grande, no absoluto apogeu de sua juventude, olhou feliz para a platéia. Havia vômito por toda parte. As pessoas cambaleavam como bêbadas em círculos, segurando a garganta e fazendos débeis barulhos. O cachorro pequinês de alguém passou correndo pelo palco latindo descontroladamente, e um homem vestindo jeans e camisa de seda estilo western vomitou em cima dele, quase afogando-o. A Sra. Brockway, esposa do pastor metodista, emitiu um longo e grave som seguido por um jorro de carne assada triturada, purê de batatas e sidra. A sidra parecia ter estado gostosa quando foi tomada. Jerry Maling, que tinha ido ver seu mecânico preferido sair vitorioso outra vez, decidiu ir embora de uma vez daquela loucura. Andou cerca de 15 metros quando tropeçou num caminhãozinho vermelho de uma criança e percebeu que tinha pisado numa poça de bile quente. Jerry devolveu seus biscoitos sobre si mesmo e contou depois aos amigos que agradeceu a Deus estar usando seu macacão. E a Srta. Norman, que lecionava latim e fundamentos de inglês no segundo grau da Escola de Gretna, vomitou dentro da própria bolsa na ânsia de asseamento.

       Rabo Grande observou tudo, seu rosto largo calmo e satisfeito, seu estômago de repente sossegado com um bálsamo quente que talvez nunca mais sentisse - aquele bálsamo era uma sensação de extrema e completa satisfação. Levantou-se, pegou o microfone ligeiramente melado da mão trêmula do prefeito e disse...

     - Declaro este concurso empatado. - Então deixa o microfone sobre a mesa, anda até o final da piataforma e vai direto para casa. Sua mãe está lá, pois não conseguiu uma baby-sitter para ficar com a irmãzinha de Rabo Grande, de apenas dois anos de idade. E logo que ele entra em casa, coberto de vômito e recheio de torta, ainda de babador, ela diz:

       - Davie, você ganhou?

       Mas ele não dá uma palavra. Sobe as escadas, entra no quarto, tranca a porta e deita na cama.

       Virei o último gole da Coca de Chris e joguei a garrafa no mato.

       - É, legal, e o que acontece depois? - perguntou Teddy, ansioso.

       - Não sei.

       - O que você quer dizer com não sei? - perguntou Teddy.

       - Quer dizer que é o fim. Quando você não sabe o que acontece depois é o fim.

       - O quêêêê? - gritou Vern. Havia uma expressão triste e desconfiada em seu rosto, como se achasse que linha sido pego jogando bingo na feira de Topsham. Que negócio é esse?

       Como termina a história?

       - Você tem que usar a imaginação - disse Chris, paciente.

       - De jeito nenhum! - disse Vern, com raiva. - Ele é que tem que usar a imaginação dele!

       Ele é que inventou a merda da história!

    - É, o que acontece com o cara? - persistiu Teddy. - Vai, Gordie, conta.

     - Acho que o pai de Rabo Grande estava no concurso e quando chegou em casa deu uma surra nele.

     - É, isso mesmo - disse Chris. - Acho que foi isso o que aconteceu.

     - E os garotos - disse eu, - continuaram a chamar ele de Rabo Grande. Só que alguns começaram a chamar ele de "Vomita as Tripas" também.

     - Esse final é horrível - disse Teddy, triste.

     - É por isso que eu não queria contar.

     - Você podia ter inventado que ele atirava no pai, fugia de casa e se juntava ao time do Texas Rangers - disse Teddy. - Que tal?

     Chris e eu trocamos um olhar. Chris sacudiu um dos ombros quase imperceptivelmente.

     - Acho que sim - disse eu.

     - Ei, tem mais histórias de Le Dio, Gordie?

     - Agora não. Talvez pense em alguma. - Não queria deixar Teddy triste, mas também não estava interessado em pesquisar o que estava acontecendo com Le Dio. – Desculpe se essa não foi muito boa.

     - Não, foi boa - disse Teddy. - Até antes do final foi boa. Aquela vomitação foi mesmo legal.

     - É, foi legal, bem grotesca - concordou Vern. - Mas Teddy tem razão quanto ao final.

Foi uma espécie de trapaça.

     - É - disse eu, e suspirei.

Chris levantou-se.

     - Vamos andar um pouco - disse ele.

Ainda estava dia claro, o céu de um azul firme e quente, mas nossas sombras já começavam a alongar-se. Lembro que quando garoto os dias de setembro para mim pareciam acabar cedo demais, pegando-me de surpresa - era como se dentro do meu coração eu esperasse que fosse sempre junho, quando a luz do dia permanecia no céu até quase nove e meia.

     - Que horas são, Gordie?

     Olhei meu relógio e espantei-me ao ver que já passavam de cinco horas.

     - É, vamos - disse Teddy. - Mas vamos fazer o acampamento antes de escurecer para podermos pegar lenha e tudo que precisarmos. Estou ficando com fome também.

     - Seis e meia - prometeu Chris. - Está bem para vocês?

       Estava. Recomeçamos a andar, agora nos guiando pelas cinzas ao lado dos trilhos. Logo o rio ficou tão longe para trás que mal conseguíamos ouvir seu barulho. Os mosquitos zumbiam e tirei um do meu pescoço com um tapa. Vern e Teddy subiam na frente, um contando estórias em quadrinhos para o outro. Chris estava atrás de mim, as mãos nos bolsos e a camisa batendo nos joelhos e quadris como um avental.

     - Eu tenho uns cigarros - disse ele. - Peguei no armário do meu pai. Um para cada. Para depois do jantar.

     - É mesmo? Grande!

     - É a hora em que o cigarro cai melhor - disse Chris. - Depois do jantar.

     - É.

     Caminhamos em silêncio por um tempo.

     - Essa história é muito boa - disse Chris, de repente. - Eles é que são meio burros para entender.

     - Não, não é tão legal assim.

     - Você sempre diz isso. Não vem com essa. Você vai escrever? A história?

     - Provavelmente. Mas não por enquanto. Não consigo escrever depois de contar. Vou dar um tempo.

     - O que foi que Vern disse? Que o final era uma trapaça?

     - O quê?

Chris riu.

     - A vida é uma trapaça, sabia? Olhe só para nós.

     - Não, estamos nos divertindo muito.

     - Claro - disse Chris. - O tempo todo, seu bobão.

     Ri. Chris também riu.

     - Elas saem como bolhas de uma garrafa de soda - disse ele depois.

     - O quê? - Mas eu achava que sabia o que estava dizendo.

     - As histórias. Isso realmente me intriga, cara. É como se você pudesse contar um milhão de histórias e só escolher as melhores. Um dia você vai ser um grande escritor, Gordie.

     - Não, acho que não.

     - Vai sim. Talvez até escreva sobre nós se estiver sem assunto.

     - Tenho que estar sem porra nenhuma para escrever. - Dei de ombros.

     Passamos outro período em silêncio, então ele perguntou de repente:

     - Pronto para voltar às aulas?

     Sacudi os ombros. Quem estava? Ficávamos um pouco animados quando pensávamos em voltar, em rever os amigos; curiosos para conhecer os novos professores, saber como seriam - bem jovens, saídos da escola, com os quais se podia conversar, ou velhacos que lecionavam desde o tempo do Alamo. De uma maneira estranha podíamos ficar animados com as longas e monótonas aulas, porque à medida que as férias de verão se aproximavam do fim às vezes ficávamos entediados e até achávamos que aprenderíamos alguma coisa. Mas o tédio do verão não era nada parecido com o tédio da escola, que sempre se instalava depois da segunda semana, e no começo da terceira chegava-se às questões de interesse: você conseguiria acertar bolinhas de papel na cabeça do cara enquanto o professor colocava no quadro "os principais produtos exportados pela América do Sul? Quantos guinchos altos você conseguiria produzir na superfície encerada da mesa se suas mãos estivessem suadas? Quem conseguia soltar os peidos mais altos no vestiário enquanto trocávamos de roupa para a aula de Educação Física? Com quantas garotas você conseguiria brincar de Pêra, Uva ou Maçã na hora do recreio? Ensino de primeira, meu bem.

     - Segundo grau - disse Chris. - E sabe de uma coisa, Gordie? Em junho próximo vamos acabar.

     - O que você está falando? E por que isso vai acontecer?

     - Não vai ser igual ao primário, é por isso. Você vai fazer matérias de faculdade. Eu, Teddy e Vern vamos fazer matérias banais, jogando porrinha com os repetentes, fazendo cinzeiros e casas de passarinho. Vern talvez até tenha que fazer recuperação.Você vai conhecer muitos caras novos. Caras inteligentes. É assim, Gordie, assim que eles fazem.

     - Conhecer um monte de babacas, você quer dizer - disse eu.

     Ele segurou o meu braço.

     - Não, cara. Não diga isso, Nem pense nisso. Eles vão entender suas histórias. Não são como Vern e Teddy.

     - Danem-se as histórias. Não vou me meter com um bando de babacas. Não mesmo.

     - Então você é um idiota?

     - Por que é idiotice querer estar com os amigos?

     Ele me olhou pensativo, como se estivesse decidindo se devia ou não me contar uma coisa. Havíamos diminuído o passo: Vern e Teddy estavam quase meia milha na frente.

O sol, agora mais baixo, chegava até nós pelo meio das árvores entrelaçadas em raios partidos e empoeirados, tornando tudo dourado - mas era um dourado de mau gosto, um dourado de moeda de brinquedo, se é que me entende. Os trilhos estendiam-se à nossa frente na escuridão que começava - pareciam quase cintilar. Reflexos de luz saíam deles aqui e ali, como se um cara muito rico fantasiado de trabalhador tivesse decidido incrustrar diamantes no aço a cada sessenta metros mais ou menos. Ainda estava quente. O suor escorria de nossos corpos, deixando-os escorregadios.

     - É idiotice se seus amigos conseguem te botar pra baixo disse Chris, finalmente. Conheço seus pais. Eles não ligam a mínima pra você. Gostavam mesmo era do seu irmão mais velho. Como meu pai, quando Frank foi preso em Portsmouth. Foi quando ele começou a ficar sempre irritado com os outros filhos e nos bater o tempo todo. Seu pai não te bate, mas talvez seja até pior. É a indiferença. Você podia contar para ele que tinha entrado para a shop division e sabe o que ele ia fazer? Virar a página do jornal e dizer: "Muito bem, Gordon, vá perguntar à sua mãe o que tem para jantar". E não tente

dizer que não. Conheço ele.

       Não tentei dizer que não. É amedrontador descobrir que alguém, mesmo um amigo, sabe exatamente o que se passa com você..

       - Você é um menino, Gordie.

       - Puxa, obrigado, papai.

       - Porra, eu queria ser seu pai! - disse ele, zangado. - Você não ia sair por aí falando desses cursos estúpidos se eu fosse seu pai! É como se Deus lhe desse uma coisa, essas histórias todas que você inventa, e dissesse: É o que temos para você, garoto. Tente não perder. Mas as crianças sempre perdera tudo, a menos que alguém tome conta delas, e se seus pais estão muito fodidos para fazer isso, talvez eu deva fazer.

     Pela expressão de seu rosto parecia que esperava que eu o abraçasse; estava descontente sob a luz verde-dourada do final da tarde. Havia quebrado a principal regra infantil daquela época. Podia-se falar qualquer coisa sobre outro garoto, podia-se fazê-lo de gato e sapato, mas nunca se falava um palavrão com relação à sua mãe ou seu pai. Isso era automático, da mesma forma que não se convidava amigos católicos para jantar na Sexta-feira Santa antes de ter certeza de que não iam servir carne. Se um menino falasse mal de sua mãe e seu pai, você tinha que lhe dar uns sopapos.

     - Essas histórias que você conta não são boas para ninguém a não ser para você mesmo, Gordie. Se você continua saindo com a gente só para a turma não se separar, você vai acabar outro tapado, tirando C para ficar no meio. Você vai para o científico e continuar com os mesmos cursos bobocas, jogando borracha e fazendo zona com os outros tapados. Vai ficar retido depois da aula. A merda das suspensões. E depois de um tempo você só vai querer saber de ter um carro para levar uma piranha para as festas ou para a Taverna Twin Bridges. Depois você vai engravidar ela e passar o resto da vida num moinho ou alguma sapataria de merda em Auburn ou talvez até em Hillcrest cuidando de galinhas. E aquela história das tortas nunca vai ser publicada. Nada vai ser publicado. Porque você vai ser mais um espertinho com titica na cabeça.

       Chris Chambers tinha doze anos quando me falou tudo aquilo. Mas enquanto falava, seu rosto contraía-se e adquiria uma expressão mais velha, sem idade. Falava sem tom, sem cor, entretanto tudo que disse provocou terror nas minhas entranhas. Era como se já tivesse vivido toda aquela vida, aquela vida em que lhe dizem para subir e girar a Roda da Fortuna, e ela gira e o cara pisa no pedal e só dá zero e todos perdem. Dão uma passagem grátis a você e ligam a máquina da chuva, muito engraçado, hã-hã, uma piada que até Vern Tessio apreciaria.

       Segurou meu braço nu e fechou os dedos firmemente. Afundaram em minha pele.

Tocaram nos ossos. Seus olhos estavam fechados e mortos - tão mortos que ele poderia ter acabado de sair do caixão.

     - Sei o que as pessoas nesta cidade pensam sobre minha família. Sei o que pensam de mim e o que esperam. Ninguém me perguntou se eu tinha pego o dinheiro do lanche daquela vez. Simplesmente tive três dias de férias.

     - Você pegou? - perguntei. Nunca tinha perguntado, e se me dissessem que perguntaria, teria chamado a pessoa de maluca. As palavras saíram como um tiro de pólvora seca.

     - É - disse ele. - É, peguei. - Ficou calado um tempo, olhando para a frente, para Teddy e Vern. - Você sabia que eu tinha pego, Teddy sabia, todo mundo sabia. Até Vern sabia, eu acho.

       Comecei a negar, depois calei a boca. Ele estava certo. Apesar de ter dito à minha mãe e meu pai que a pessoa era inocente até que se provasse a sua culpa, eu sabia.

     - Então talvez tenha me arrependido e tentado devolver - disse Chris.

     Encarei-o, meus olhos arregalados.

     - Você tentou devolver?

     - Talvez, eu disse. Só talvez. E talvez tenha devolvido à Sra. Simons e dito a ela, e talvez o dinheiro estivesse lá, mas peguei umas férias de três dias mesmo assim, porque o dinheiro nunca apareceu. E talvez na semana seguinte a Sra. Simons tenha aparecido com uma saia novinha em folha no colégio.

       Olhei fixamente para Chris, mudo de espanto. Ele sorriu para mim, mas foi um sorriso forçado e horrível, que não tocou seus olhos.

     - Só talvez - disse ele, mas lembrei da saia nova - marrom-clara, tipo rodada. Lembro de ter pensado que fazia a Sra. Simons parecer mais jovem, quase bonita.

       - Chris, quanto era o dinheiro do lanche?

       - Quase sete dólares.

       - Meu Deus - sussurrei.

       - Então vamos dizer que eu tenha roubado o dinheiro do lanche e depois a Sra. Simons roubou de mim. Vamos supor que eu tivesse contado essa história. Eu, Chris Chambers, irmão mais novo de Frank e Eyebali Chambers. Acha que alguém teria acreditado?

     - De jeito nenhum - murmurei. - Meu Deus!

     Ele deu um sorriso horrível, frio.

     - E você acha que aquela puta teria ousado fazer isso se um daqueles caras do The View tivessem pego o dinheiro?

     - Não - disse eu.

     - É, se tivesse sido um deles Simons teria dito: "Tá bem, tá bem, dessa vez passa, mas se fizerem outra vez vamos ter que dar uma surra de verdade em vocês". Mas eu... bem, talvez ela estivesse de olho naquela saia há muito tempo. De qualquer jeito, teve a chance e aproveitou. Eu é que fui o idiota, tentando devolver. Mas nunca achei... nunca achei que uma professora... ah, também quem está ligando? Não sei nem por que estou falando nisso.

       Passou a mão com raiva nos olhos e percebi que estava quase chorando.

     - Chris - disse eu, - por que você não entra nos cursos da faculdade? Você é inteligente para isso.

       - Eles decidem isso na diretoria. E nas reuniõezinhas inteligentes. Os professores sentam em circulo e só sabem dizer é, é, certo, certo. O que eles não querem nem sabei é se você se comportou no ginásio e o que pensam de sua família na cidade. Só estão lá para decidir se você vai ou não contaminar os queridinhos da faculdade. Mas vou tentar me interessar. Não sei se conseguiria, mas vou tentar. Porque quero sair de Castle Rock, ir para a faculdade e nunca mais ver meu pai nem meus irmãos. Quero ir para algum lugar onde ninguém me conheça e não tenham preconceitos contra mim antes de começar.

       Mas não sei se vou conseguir.

       - Porque não?

       - As pessoas. As pessoas escorraçam você.

       - Quem? - perguntei, achando que ele se referia aos professores ou adultos monstruosos como a Sra. Simons, que quisera uma saia nova, ou talvez seu irmão Eyeball que andava com Ace, Billy, Charlie e os outros, ou talvez seus próprios pais.

Mas ele disse:

     - Teus amigos te escorraçam, Gordie. Sabia disso? - Apontou para Vern e Teddy, que estavam parados nos esperando. Riam de alguma coisa; na verdade, Vern estava forçando uma risada. Teus amigos te escorraçam. São como caras que estão se afogando e se agarram nas tuas per nas. Você não pode salvar eles. Só pode afundar com eles.

       - Andem logo, lesmas de merda! - gritou Vern, ainda rindo.

       - Já vamos! - gritou Chris, e antes que eu pudesse dizer alguma coisa, começou a correr. Corri também, mas alcançou-os antes de eu alcançá-lo.

       Andamos mais uma milha e então decidimos acampar para passar a noite. Ainda havia luz do dia, mas ninguém queria usá-la. Estávamos traumatizados com a cena do despejadouro e com o medo que tínhamos passado com o trem na ponte, mas havia outra coisa. Estávamos em Harlow agora, na floresta. Em algum lugar mais adiante havia um garoto morto, provavelmente desfigurado e coberto de moscas. Vermes também, a essa altura. Ninguém queria chegar muito perto dele com a noite se aproximando. Eu tinha lido, em algum lugar - num livro de Algernon Blackwood, acho que o fantasma de uma pessoa fica pairando sobre o seu corpo até que lhe façam um enterro cristão decente, e eu não queria nem pensar em acordar no meio da noite e me deparar com o fantasma desencarnado e reluzente de Ray Brower, gemendo e pairando por entre os pinheiros escuros e farfalhantes. Parando ali, achávamos que havia pelo menos 15 quilômetros de distância entre nós e ele, e claro que nós quatro sabíamos que não existiam fantasmas, mas 15 quilômetros pareciam uma boa distância, caso o que todos nós sabíamos estivesse errado.

         Vern, Chris e Teddy cataram lenha e acenderam uma pequena fogueira. Chris limpou uma área em volta da fogueira - a lenha estava bem seca, e não queria se arriscar. Enquanto faziam isso, apontei alguns espetos e fiz o que meu irmão Denny chamava de "baquetas pioneiras de tambor" - pedaços de hambúrguer enfiados em galhos verdes. Os três riram e experimentaram suas habilidades em trabalhos de madeira (que era quase nula; havia um grupo de escoteiros em Castle Rock, mas a maioria dos meninos que freqüentava o nosso terreno baldio achava que era uma organização formada basicamente por babacas), discutindo se era melhor cozinhar usando as labaredas ou o carvão (um ponto discutível; estávamos demasiado famintos para esperar a madeira se transformar em carvão), se musgo seco funcionaria como cavacos, o que fariam se os fósforos acabassem antes que o fogo pegasse. Teddy disse que conseguiria fazer fogo esfregando dois gravetos. Chris, com a voz esganiçada, disse que estava de saco cheio. Não tiveram que tentar; Vern conseguiu acender o pequeno monte de galhos e musgo seco com o segundo palito de fósforo. O ar estava parado e não havia vento para apaga-lo. Revezávamo-nos alimentando as frágeis chamas até começarem a ficar fortes com pedaços de madeira retorcidos tirados de uma velha armadinha a uns trinta metros floresta adentro.

           Quando as chamas começaram a baixar um pouco, enfiei os espetos com os hambúrgueres firmemente no chão num ângulo sobre o fogo. Sentamos em volta vendoos

tostarem e pingarem e finalmente começarem a escurecer. Nossos estômagos conversavam.

         Incapazes de esperar até que estivessem bem cozidos, cada um de nós pegou um espeto, colocou dentro de um pão e tirou o palito do centro. Estavam torrados por fora, crus por dentro, e absolutamente deliciosos. Engolimos e limpamos a gordura da boca com o braço nu. Chris abriu seu pacote e tirou uma caixa de Band-Aid (a pistola estava no fundo do saco, e como não tivesse contado a Vern e Teddy, achei que era um segredo a ser mantido entre nós). Abriu-a e deu a cada um Winston amassado. Acendemos os cigarros com os galhos em brasa e depois nos recostamos, donos do mundo, vendo a fumaça do cigarro sumir no suave crepúsculo. Nenhum de nós tragava porque poderíamos nos engasgar, o que seria motivo de um ou dois dias de gozação por parte dos outros. E era muito agradável apenas puxar e soltar a fumaça, cuspir na fogueira para ouvir o chiado (foi naquele verão que aprendi como se reconhece uma pessoa que está começando a fumar: se ela não está acostumada, cospe muito no começo). Sentimo-nos bem. Fumamos os Winstons até o filtro, depois os jogamos no fogo.

       - Nada como um cigarro depois do jantar - disse Teddy.

       - É, demais - concordou Vern.

       Os grilos haviam começado a zumbir naquela paisagem verde. Olhei para o pedaço de céu visível através da estrada de ferro e vi que o azul estava começando a ficar roxo.

Vendo aquele acampamento no crepúsculo me senti triste e calmo ao mesmo tempo, intrépido mas não realmente corajoso, confortavelmente solitário.

     Escolhemos um lugar plano sob um arbusto ao lado do barranco e esticamos nossos sacos de dormir. Então, durante uma hora mais ou menos alimentamos o fogo e conversamos, um tipo de conversa que você não consegue lembrar bem quando passa dos quinze anos e descobre as garotas. Falávamos sobre quem era o melhor corredor de obstáculos em Castle Rock, se o Boston conseguiria ficar fora do porão esse ano, e sobre o verão que passara. Teddy falou da época em que esteve em White's Beach, em Brunswick, e quase se afogou quando um menino bateu em sua cabeça ao mergulhar do barco. Discutimos um pouco sobre os méritos relativos dos professores que tínhamos tido. Concordamos que o Sr. Brooks era o maior babaca da Escola Primária de Castle Rock - ele quase chorava se você falasse duro com ele. Por outro lado, havia a Sra. Cote (pronunciava-se Cody) - era simplesmente a piranha mais vulgar que Deus já colocara sobre a face da terra. Vern disse que a ouvira bater num garoto com tanta força há dois anos atrás que ele quase ficara cego. Olhei para Chris, pensando se ele falaria alguma

coisa sobre a Sra. Simons, mas não disse absolutamente nada, e não viu que eu o olhara - olhava para Vern e balançava a cabeça contritamente ouvindo a história de Vern.

       Não falamos sobre Ray Brower quando escureceu, mas eu pensava nele. Há alguma coisa horrível e fascinante na maneira como escurece na floresta, sem a luz dos faróis, das ruas, das casas e do neon. A escuridão chega sem a voz das mães chamando os filhos para entrar, anunciando a hora. Se você está acostumado com a cidade, o escurecer na floresta parece mais um desastre natural que um fenômeno natural; cresce como o Rio Castle sobe na primavera.

       E enquanto eu pensava no corpo de Ray Brower sob essa luz - ou a falta dela - o que eu sentia não era desagradável nem tinha medo de que ele aparecesse de repente na nossa frente, um espírito verde e balbuciante com intenção de nos mandar de volta antes que perturbássemos sua paz, mas uma repentina e inesperada sensação de pena por ele estar tão sozinho e indefeso na escuridão que agora chegava desse lado da terra. Se alguma coisa quisesse comê-lo, poderia. Sua mãe não estava ali para impedir, nem seu pai, nem

Jesus Cristo e todos os santos. Estava morto e completamente sozinho, jogado para longe dos trilhos no pântano, e percebi que se não parasse de pensar naquilo ia chorar.

         Então contei uma história de Le Dio, inventada na hora e não muito boa, e quando acabou, como a maioria de minhas histórias de Le Dio, com um buldogue americano solitário cuspindo uma declaração agonizante de patriotismo e amor pela garota na volta para casa, sob o olhar do sargento do pelotão com uma expressão triste e sábia, não era a cara branca e amedrontada de algum soldado de primeira classe de Castle Rock que via à minha frente, mas o rosto de um garoto muito mais novo, morto, de olhos fechados, as feições contorcidas, um fio de sangue escorrendo pelo canto esquerdo da boca. E atrás dele, ao invés das lojas e igrejas destruídas nos cenários de Le Dio, eu via apenas a floresta escura e alinha do trem coberta de cinzas contra um céu estrelado, como um cemitério pré-histórico.

       Acordei no meio da noite, desorientado, imaginando porque estaria tão frio na minha cama e quem tinha deixado as janelas abertas. Denny, talvez. Estava sonhando com Denny, alguma coisa em relação a pegar jacaré no Harrison State Park. Mas aquilo tinha

acontecido há quatro anos atrás.

       Aquilo não era o meu quarto; era algum outro lugar. Alguém estava me abraçando como um urso, outra pessoa estava encostada em minhas costas, e uma terceira na penumbra estava encolhida a meu lado, a cabeça inclinada como se estivesse querendo ouvir alguma coisa.

       - Que diabo é isso? - perguntei com franco atordoamento.

       Um longo bocejo como resposta. Parecia Vern.

       Aquilo colocou as coisas em foco, e lembrei onde estava... mas o que estavam fazendo todos acordados no meio da noite? Ou eu só dormira alguns segundos? Não, não podia ser, pois uma fina tira de lua estava no meio do céu, que parecia pintado a tinta.

       - Não deixe ele me pegar! - murmurou Vern. - Juro que vou ser bonzinho, não vou fazer nada de errado, vou levantar a tampa quando fizer pipi, vou... vou...

     Com algum espanto percebi que estava ouvindo uma reza ou pelo menos o equivalente a uma reza de Vern Tessio.

       Sentei-me de uma vez, com medo.

     - Chris?

     - Cala a boca, Vern - disse Chris. Era ele que estava com a cabeça levantada e escutando. - Não é nada.

     - Ah, é sim - disse Teddy tenebroso. - É alguma coisa.

     - O que? - perguntei. Ainda estava com sono e desorientado, deslocado de minha casa no espaço e no tempo. Senti medo por estar por fora do que estava acontecendo – talvez atrasado demais para me defender como deveria.

     Então, como que respondendo à minha pergunta, um longo e oco grito ergueu-se languidamente da floresta - era o tipo de grito que se espera de uma mulher morrendo em extrema agonia e medo.

     - Ô meu Deus do céu! - disse Vern, a voz alta e chorosa. Deu-me novamente o abraço de urso com o qual me acordara, me deixando sem respiração e aumentando meu próprio medo.

       Soltei-o com esforço, mas voltou na mesma hora para o meu lado como um cachorrinho que não sabe para onde ir.

     - É o Ray Brower - sussurrou Teddy, rouco. - O espírito dele está vagando pela floresta.

     - Ô meu Deus! - gritou Vern, aparentemente sem medo daquela idéia. - Juro que não vou mais roubar livros velhos no Dahlie's Market! Prometo que não dou mais minhas cenouras para o cachorro! Eu... eu... eu...

       Parou ali, querendo dar tudo a Deus mas incapaz de pensar alguma coisa de bom no auge do medo.

     - Não vou fumar cigarro sem filtro! Não vou mais falar palavrão! Não vou botar a minha bazooka no prato de doações! Não vou...

       - Cala a boca, Vern - disse Chris, e por trás de sua autoridade usual pude ouvir um quê de medo. Fiquei imaginando se seus braços, costas e barriga estavam tão arrepiados quanto os meus, e se os pêlos atrás de sua nuca estavam querendo ficar em pé, como os meus.

A voz de Vern transtormou-se num sussurro enquanto continuava a expor as reformas que pretendia instituir se Deus o deixasse ao menos passar por aquela noite vivo.

     - É um pássaro, não é? - perguntei a Chris.

     - Não. Pelo menos acho que não. Acho que é um gato selvagem. Meu pai disse que eles gritam como se estivessem morrendo quando estão prontos para cruzar. Parece uma mulher, né?

     - É - disse eu. - Minha voz engasgou e duas pedras de gelo desceram pela minha garganta.

     - Mas nenhuma mulher consegue gritar tão alto assim disse Chris... e acrescentou indefeso: - Consegue, Gordie?

     - É o espírito dele - sussurrou Teddy novamente. Seus óculos refletiam o luar em raios fracos e de certa forma sonhadores. - Vou ver o que é.

       Acho que não estava falando sério, mas não nos arriscamos. Quando começou a levantar-se, Chris e eu o puxamos para baixo. Talvez tenhamos sido muito brutos com ele, mas nossos músculos haviam se transformado em cabos com o medo.

     - Me deixem levantar, filhos da mãe! - disse Teddy, lutando. - Se eu estou dizendo que vou procurar é porque vou procurar! Quero ver! Quero ver o fantasma! Quero ver se...

       O grito de lamúria selvagem surgiu no meio da noite novamente, cortando o ar como uma faca com lâmina de cristal, paralisando-nos com as mãos sobre Teddy - se ele fosse uma bandeira, nós teríamos ficado parecidos com aquele quadro dos marinheiros clamando Iwo Jima. O grito subia com incrível rapidez de oitava em oitava, atingindo finalmente um tom vítreo, penetrante. Ficou sustentado ali e então diminuiu novamente, desaparecendo com um registro grave impossível que zumbia como uma monstruosa abelha. A isso seguiu-se uma explosão parecendo uma louca gargalhada... e fez-se silêncio novamente.

       - Santo Cristo Jesus - sussurrou Teddy, e não falou mais em entrar na floresta para ver o que produzia aquele grito. Nós quatro nos juntamos e eu pensei em sair correndo. Duvido que tenha sido o único. Se estivéssemos acampados no jardim de Vern – onde nossos pais pensavam que estávamos - provavelmente teríamos saído correndo. Mas Castle Rock estava longe demais e a idéia de tentar atravessar correndo aquela ponte no escuro fez meu sangue congelar. Correr mais ainda para dentro de Harlow e mais perto do corpo de Ray Brower era igualmente impensável. Estávamos cercados. Se houvesse um caçador no meio da floresta - o que meu pai chamava de Aeasto - e quisesse nos pegar, provavelmente teria conseguido.

       Chris propôs que ficássemos de guarda e todos concordaram. Tiramos zerinho ou um.

Vern saiu primeiro. Eu por último. Vern sentou de pernas cruzadas perto do calor da fogueira enquanto nós deitamos novamente. Ficamos amontoados como carneiros.

       Tinha certeza que dormir seria impossível, mas dormi - um sono leve e inquieto que passava pelo inconsciente como um submarino com o periscópio para cima. Meus sonhos meio acordados foram povoados de gritos selvagens que podem ter sido reais ou simplesmente frutos da minha imaginação. Vi - ou achei que vi - alguma coisa branca esgueirar-se por entre as árvores como uma grotesca maca de ambulatório.

        Finalmente tive um sonho de verdade. Chris e eu estávamos nadando em White's Beach, uma saibreira em Brunswick que havia sido transformada num lago em miniatura quando os cavadores de saibro represaram água. Era onde Teddy tinha visto o garoto

bater a cabeça e quase se afogar.

       Em meu sonho estávamos numa boa, andando preguiçosamente ao longo da praia sob o sol forte de julho. De trás de nós, da bóia, vinham gritos, berros e gargalhadas de crianças que subiam e mergulhavam, subiam e eram empurradas. Ouvia os tambores de querosene vazios que sustentavam a bóia baterem uns contra os outros - um barulho diferente de sinos de igreja, solene e profundo. Na praia de areia e cascalho, corpos cheios de óleo virados de barriga para cima sobre esteiras, criancinhas com baldes na beira da água ou alegremente sentadas cobrindo os cabelos de areia com pás de plástico, adolescentes sorrindo em grupo, olhando as meninas andarem sem parar de um lado para o outro em pares, trios, nunca sozinhas, as partes secretas de seus corpos envolvidos em roupas de banho. As pessoas subiam a areia quente na ponta dos pés, pulando, até o bar. Voltavam com batatas fritas, cachorros-quentes, sorvetes.

       A Sra. Cote passou por nós num barco inflável de borracha. Estava deitada, com o uniforme que usava de setembro a junho na escola: saia e blusa cinza com uma grossa suéter embaixo da jaqueta, uma flor presa no busto quase inexistente, grossas meias de sustentação da cor de balas de menta. Seus sapatos pretos de velha de saltos altos balançavam dentro d'água, formando pequenos "vv". Seus cabelos eram pintados de azul, como os de minha mãe, e cheios de cachos que pareciam molas de relógio. Seus óculos refletiam brutalmente o sol.

       - Cuidado, meninos - disse ela. - Cuidado senão bato em vocês até ficarem cegos. Posso fazer isso; o conselho da escola me deu esse direito. Agora, Sr. Chambers, Mending Wall, de cor, por favor.

     - Eu tentei devolver o dinheiro - disse Chris. - A Sra. Simons concordou mas ficou com o dinheiro! Está entendendo? Ela pegou! Agora o que a senhora vai fazer? Bater nela até ela ficar cega?

     - Mending Wall, Sr. Chambers, por favor. De cor.

       Chris lançou-me um olhar desesperado, como que dizendo, Não disse que ia ser assim?, e começou a entrar na água. Começou: "Alguma coisa lá que não ama um muro, que manda o solo congelado debaixo dele..." E então sua cabeça afundou, sua boca encheu-se de água enquanto recitava.

Subiu de novo, gritando:

         - Me ajude, Gordie, me ajude!

       Então foi puxado para baixo de novo. Olhando para o fundo da água cristalina, via dois corpos nus segurando seus quadris. Um era Vern e o outro Teddy, e seus olhos abertos eram brancos e sem pupila, como os olhos de estátuas gregas. Seus pênis préadolescentes

flutuavam flácidos longe da barriga como algas brancas. A cabeça de Chris rompeu a água novamente. Tinha uma das mãos estendida para mim e seu choro era histérico como o de uma mulher e crescia, crescia na atmosfera quente e ensolarada de verão. Eu olhava assustado em direção à praia mas ninguém ouvia. O salva-vidas, seu corpo bronzeado e atlético sentado atraentemente no alto de sua torre de madeira em forma de cruz, simplesmente continuava sorrindo para a menina em baixo de maiô vermelho. Chris continuava a gritar. Já engasgado e fazendo bolhas, sendo puxado pelos corpos novamente. Quando o puxaram para o fundo vi seus olhos esbugalhados virados para mim implorando em agonia; vi suas mãos brancas tentarem alcançar a superfície ensolarada da água. Mas ao invés de mergulhar e tentar salvá-lo, nadei desesperadamente para a beira, ou pelo menos até onde a água não cobrisse a minha cabeça. Antes de chegar lá - antes mesmo de chegar perto - senti uma mão mole, apodrecida, implacável, segurar minha panturrilha e começar a puxar. Um grito formou-se em meu peito... mas antes que conseguisse soltá-lo, o sonho esvaiu-se para um facsímile da realidade. Era Teddy com a mão sobre a minha perna. Estava me sacudindo para me acordar. Era a minha vez.

       Ainda meio sonhando, perguntei a Teddy com voz grossa:

       - Você está vivo, Teddy?

       - Não. Estou morto e você é um crioulo - disse ele, na mesma hora. Aquilo espantou o resto do sonho. Sentei-me perto da fogueira e Teddy deitou.

       Os outros dormiram pesadamente o resto da noite. Eu cochilava e levantava, cochilava e levantava novamente. A noite não foi nada silenciosa; ouvi o triunfante ulular de uma coruja, o choro mínimo de algum animalzinho talvez prestes a ser comido, alguma coisa maior se esgueirando atrás das moitas. Abaixo de tudo isso, um tom melancólico, os grilos. Não houve mais ruídos. E cochilei e acordei, cochilei e acordei, e suponho que se tivesse sido descoberto com tal descuido em Le Dio, provavelmente teria sido condenado e executado.

       Acordei mais rápido de meu último cochilo e percebi que algo estava diferente. Levei alguns segundos para descobrir: embora alua tivesse sumido, podia ver minhas mãos sobre as pernas da calça jeans. Meu relógio marcava quinze para as cinco. Era quase de manhã.

       Levantei, ouvi minhas costas estalarem, afastei-me alguns passos dos corpos amontoados de meus amigos e fiz pipi num arbusto. Estava começando a me livrar dos pesadelos noturnos; podia senti-los indo embora. Era uma sensação boa.

       Remexi as cinzas dos trilhos e sentei num deles, preguiçosamente juntando cinzas entre meus pés, sem nenhuma pressa de acordar os outros. Naquele exato momento o dia estava gostoso demais para ser compartilhado.

       A manhã chegou depressa. O barulho dos grilos começou a diminuir e as sombras sob as árvores e arbustos evaporaram como poças d'água depois de uma chuva. O ar tinha aquela falta de gosto peculiar do último dia de calor numa série famosa de dias quentes. Os pássaros que provavelmente tinham passado a noite escondidos como nós começavam agora a piar cheios de importância. Uma cambaxirra pousou no topo da árvore de onde tínhamos tirado a madeira para o fogo, compôs as penas e voou.

       Não sei quanto tempo fiquei sentado no trilho, vendo a coloração arroxeada sumir silenciosamente do céu, da mesma forma como havia surgido na noite anterior. Bem, o

suficiente para o meu traseiro começar a reclamar. Ia levantar quando olhei para a direita e vi uma corça no meio dos trilhos a menos de dez metros de distância.

       Meu coração deu um pulo tão forte que acho que se tivesse colocado a mão na boca o teria tocado. Meu estômago e minha genitália encheram-se de quente excitação. Não me mexi. Se quisesse não teria conseguido. Seus olhos não eram castanhos, mas de um preto fosco, da cor do veludo que vem nos mostradores de jóias. Suas orelhas pequenas eram acetinadas. Olhou serenamente para mim com a cabeça ligeiramente abaixada, o que interpretei como curiosidade, já que estava vendo um garoto com os cabelos arrepiados da noite formando topetinhos, vestindo jeans com bainhas e camisa cáqui e remendos nos cotovelos e a gola virada para cima de acordo com a moda daquela época. O que eu estava vendo era uma e3pécie de presente, algo dado com um desprendimento comovente.

       Olhamos um para o outro por um longo tempo... acho que foi longo. Então ele virou e andou para o outro lado, o rabo curto balançando despreocupadamente. Achou grama e começou a roer. Não olhou mais para mim, e não precisava; eu estava paralisado.

       Então o trilho começou a vibrar debaixo de mim e em poucos segundos a corça levantou a cabeça e olhou para trás, em direção a Castle Rock. Ficou ali, o focinho preto mexendo de leve. Então foi-se em três lépidas galgadas, desaparecendo na floresta silenciosamente a não ser por um galho podre que estalou como um tiro de largada.

       Fiquei sentado ali, olhando pasmo o lugar onde ela estivera, até que o barulho real do trem veio rompendo a tranqüilidade. Pulei de volta para o lado onde os outros dormiam.

A passagem lenta e ensudercedora do trem acordou-os, bocejando e se coçando. Conversaram um pouco, divertidos e nervosos, sobre o "caso do fantasma que gritava", como disse Chris, mas não muito como você possa imaginar. A luz do dia era mais uma besteira do que algo interessante - quase encabulante. Melhor esquecer.

       Ia contar para eles sobre a corça, mas acabei não contando. Foi uma das coisas que guardei para mim. Nunca havia falado nem escrito sobre isso até este momento, hoje. E tenho que dizer que escrito, no papel, parece uma coisa sem significado, quase inconseqüente. Mas para mim foi a melhor parte do passeio, a mais limpa, e foi um momento em que retornei, impotentemente, aos problemas de minha vida – meu primeiro dia no Vietnã, quando um cara chegou na clareira onde estávamos com a mão no nariz, e quando tirou a mão não tinha nariz, porque tinha levado um tiro; a ocasião em que o médico nos disse que nosso filho mais novo poderia ser hidrocéfalo (ele apenas nasceu com a cabeça grande, graças a Deus); as longas e desesperadas semanas antes de minha mãe morrer. Me pegava voltando em pensamentos àquela manhã, o acetinado de suas orelhas, a pele branca do rabo. Mas oito milhões de chineses não dão a mínima, não é? As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar, pois as palavras as diminuem. É difícil fazer estranhos se importarem com as coisas boas de sua vida.

       Os trilhos agora dobravam para o sudeste e corriam por entre emaranhados de pinheiros e densa vegetação rasteira. De café, tarde, comemos amoras pretas de alguns arbustos, mas amoras nunca satisfazem; o estômago as consome em trinta minutos e já começa a roncar de novo. Voltamos para perto do trilho - eram quase oito horas - e começamos a andar. Nossas bocas estavam roxas e nossos torsos arranhados dos galhos dos arbustos. Vern dizia mal humorado que queria dois ovos fritos com bacon.

       Aquele foi o último dia de calor; e acho que foi o pior. Logo o céu começou a cobrir-se de nuvens e por volta de nove horas estava cinza-chumbo, dando calor só de olhar. O suor corria e escorria por nossas costas e peito, deixando rastros limpos na foligem e sujeira acumulada. Mosquitos e moscas voavam ao redor de nossas cabeças em nuvens cada vez maiores. Saber que tínhamos longos quilômetros pela frente não melhorava em nada as coisas. No entanto, o fascínio de tudo nos estimulava e nos fazia andar cada vez mais rápido do que seria suportável naquele calor. Estávamos loucos para ver o corpo daquele garoto - não consigo dizer de forma mais simples ou honesta. Mesmo se não nos fizesse mal ou se tirasse nosso sono com sonhos confusos, queríamos ver. Acho que passamos a acreditar que merecíamos vê-lo.

       Eram quase nove e meia quando Teddy e Chris encontraram água mais acima – gritaram para mim e Vern. Corremos até onde estavam. Chris ria, encantado.

       - Olhem! Foram os castores que fizeram! - Apontou.

       Era trabalho de castores, de fato. Uma larga vala corria sob os dormentes da estrada de ferro mais acima, e os castores haviam feito uma perfeita barragem fechando a saída com seus galhos e pedaços de pau cimentados com folhas, madeiras e lama seca. Os castores são bons trabalhadores, é verdade. Atrás da barragem havia se formado uma piscina natural, limpa e brilhante como um espelho ao sol. As casas dos castores espalhavam-se por vários lugares ao redor da água - pareciam iglus de madeira. Uma pequena cascata gotejava no fundo da piscina, e as árvores ao redor estavam cobertas até uma altura de um metro.

       - A estrada de ferro vai varrer isso logo, logo - disse Chris.

       - Por quê? - perguntou Vern.

       - Não podem ter uma piscina aqui - disse Chris. - Cortaria a preciosa estrada de ferro. É por isso que colocaram aquele cano ali para começar. Vão matar uns castores, espantam o resto e destrõem a barragem. Então isso vai voltar a ser um pântano, como provavelmente era antes.

       - Acho que é isso mesmo - disse Teddy.

       Chris deu de ombros.

       - Ninguém liga mesmo para os castores. Nem o lado sul e ocidental do Maine, isso com certeza.

       - Acha que é fundo o suficiente para nadar? - perguntou Vern, olhando gulosamente para a água.

       - Só tem uma maneira de descobrir - disse Teddy.

       - Quem vai ser o primeiro?

       - Eu! - disse Chris.

       Desceu correndo a margem tirando os tênis e a camisa amarrada na cintura com um safanão. Abaixou as calcas e a cueca com um único movimento dos polegares.

Equilibrou-se, primeiro numa perna e depois na outra, para tirar as meias. Então deu um mergulho raso. Subiu balançando a cabeça para tirar os cabelos dos olhos.

         - Está uma delícia! - gritou.

         - É fundo? - perguntou Teddy. Nunca aprendera a nadar.

         Chris ficou em pé e seus ombros romperam a superfície. Vi alguma coisa num deles - uma coisa cinza-escura. Achei que fosse lama e me despreocupei. Se tivesse olhado mais de perto teria evitado sérios pesadelos mais tarde.

         - Venham, seus frescos!

         Virou-se e saiu batendo os braços desajeitadamente pela piscina, mergulhou e voltou do mesmo jeito. A essa altura estávamos nos despindo. Vern foi em seguida, depois eu.

         Tocar na água foi fantástico - limpa e fria. Nadei até Chris, com a adorável sensação de não ter nada no corpo, apenas a água sedosa. Levantei-me e rimos um para o outro.

       - Que máximo! - dissemos na mesma hora.

       - É do caralho - disse ele, jogou água na minha cara e nadou para o outro lado.

       Ficamos brincando dentro d'água quase meia hora, até percebermos que o lago estava cheio de sanguessugas. Mergulhávamos, nadávamos por baixo d'água, dávamos caldos uns nos outros. Não percebemos nada. Então Vern mergulhou na parte mais rasa e plantou uma bananeira. Quando suas pernas emergiram, balançando, num triunfante "V", vi que estavam cobertas de blocos negro-acinzentados, como o que eu vira no ombro de Chris. Eram lesmas - das grandes.

         Chris ficou boquiaberto, e eu senti todo o meu sangue gelar. Teddy gritou, e ficou pálido. Nós três começamos a nos debater para alcançarmos a margem, o mais rápido possível. Agora sei mais sobre lesmas aquáticas do que naquela época, mas apesar de serem quase todas inofensivas, não consegui deixar de sentir um pavor quase insano até hoje. Elas têm um anestésico e um anti-coagulante na saliva, o que significa que a vítima nunca sente nada quando elas colam. Se você não as vir, elas continuam se alimentando até que seus corpos, inchados, horríveis, caem, saciados, ou até explodirem, literalmente.

         Pulamos na margem e Teddy teve uma crise histérica quando se olhou. Gritava enquanto ia arrancando as sanguessugas do corpo nu.

         Vern emergiu e olhou para nós, intrigado.

         - Pó, o que vocês estão...

         - Sanguessugas! - gritou Teddy, tirando duas das coxas trêmulas e jogando-as o mais longe possível. - Merdas de sanguessugas filhas da mãe! - explodiu sua voz, estridente na última expressão.

         - Oh, meu Deus, meu Deus - gritava Vern. Cruzou a piscina batendo os braços e saiu estabanado.

         Eu ainda estava gelado; o calor do dia desaparecera. Ficava dizendo a mim mesmo para manter a calma. Para não começar a gritar, para não ser um fresco. Tirei meia dúzia do braço e várias do peito.

         Chris virou-se de costas para mim.

         - Gordie, ainda tem? Tira se tiver, por favor, Gordie!

         Ainda tinha, cinco ou seis, descendo por suas costas como grotescos botões pretos. Puxei os corpos macios e desossados de sua pele.

         Esfreguei mais das minhas pernas e pedi a Chris para ver as minhas costas.

         Estava começando a relaxar um pouco - foi quando olhei para baixo e vi a maior de todas presa em meus testículos, seu corpo quatro vezes maior que o normal. Sua pele preto-acinzentada estava vermelho-arroxeada. Foi quando comecei a perder o controle. Não exteriormente, pelo menos não de maneira muito evidente, mas interiormente, onde importa.

         Passei as costas das mãos sobre seu corpo liso e pegajoso. Continuou agarrada. Tentei de novo e não consegui tocá-la. Virei para Chris, tentei falar, não consegui. Ao invés, apontei. Seu rosto, já cinzento, ficou mais pálido.

         - Não consigo tirar - disse por entre os lábios paralisados. - Você... você pode...

         Mas ele recuou, balançando a cabeça, a boca mexendo.

          - Não posso, Gordie - disse ele, incapaz de tirar os olhos. Sinto muito, mas não posso.

Não. Ai, não. - Virou-se, curvado com uma das mãos pressionando o diafragma como o mordomo de uma comédia musical, e ficou enjoado, de pé, no meio de arbustos de zimbro.

         Você tem que se controlar - pensava eu, olhando a sanguessuga que pendia de meu corpo como uma estranha barba. Seu corpo visivelmente inchava cada vez mais. Você tem que se controlar e tirá-la. Seja forte. É a última. A última.

         Estendi a mão novamente, arranquei-a e ela estourou entre meus dedos. Meu próprio sangue escorreu pela palma de minha mão até o pulso, num fluxo quente. Comecei a chorar.

         Ainda chorando, andei até minhas roupas e me vesti. Queria parar de chorar, mas não parecia capaz de fazer pararem as lágrimas. Então começaram os soluços, piorando a situação, Vern veio correndo, nu ainda.

         - Elas saíram, Gordie? Saíram? Saíram?

         Rodopiou na minha frente como um dançarino maluco num baile de carnaval.

         - Saíram? Hem? Hem? Saíram, Gordie?

         Seus olhos me percorriam, arregalados e brancos como os de um cavalo de pau de carrossel.

         Respondi que sim com a cabeça e continuei chorando. Parecia que a minha nova profissão seria chorar. Enfiei a camisa e abotoei até o pescoço. Vesti as meias e calcei os tênis. Aos pouquinhos as lágrimas foram diminuindo. Finalmente cessaram, e ficaram alguns soluços e gemidos, que depois pararam também.

         Chris veio andando em minha direção, limpando a boca com um punhado de folhas.

Seus olhos estavam assustados, silenciosos e arrependidos.

         Quando estávamos todos vestidos, ficamos parados nos olhando por um instante, e então começamos a subir a margem da estrada de ferro. Olhei mais uma vez a sanguessuga morta em cima de um dos arbustos pisoteados sobre os quais havíamos pulado, gritado e chorado. Tinha um aspecto menos intumescido... mas ainda sinistro.

         Quatorze anos depois editei meu primeiro romance e fiz minha primeira viagem a Nova York.

         - Serão três dias de comemorações - disse-me meu editor ao telefone - As pessoas que só sabem dizer besteiras serão barradas no ato. - Mas claro que foram três dias de pura besteira.

         Enquanto estava lá, queria fazer todas as coisas de quem não mora nas cidades grandes - assistir a um show no Radio City Music Hall, subir até o último andar do Empire State Building (dane-se o World Trade Center; o prédio que King Kong subiu em 1933 sempre será o maior do mundo para mim), visitar Times Square à noite. Keith, meu editor, parecia encantado em me ciceronear. A última coisa de turista que fizemos foi um passeio de barco até Staten Island, e encostado no parapeito por acaso olhei para baixo e vi uns vinte preservativos usados boiando suavemente avolumados. Foi um momento de recordações - talvez na verdade tenha sido uma viagem através do tempo. De qualquer maneira, por um segundo voltei literalmente ao passado, parando na metade daquela margem e olhando para trás para a sanguessuga: morta, menos inchada... mas ainda sinistra.

         Keith deve ter visto algo em meu rosto, pois disse:

         - Nada bonito, não é?

         Apenas balancei a cabeça, querendo lhe dizer que não se desculpasse, querendo lhe dizer que você não precisa ir a Nova Iorque e passear de barco para ver camisinhas usadas, querendo dizer: O único motivo pelo qual uma pessoa escreve é para entender o passado e preparar-se para futuras perdas; por isso todos os verbos dos romances são no passado, meu caro Keith, mesmo os que vendem milhões de cópias. As duas únicas manifestações artísticas úteis são a religião e os romances.

         Fiquei bastante bêbado naquela noite, como você deve ter imaginado.

         O que disse a ele foi: - Estava pensando em outra coisa, só isso. - As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar.

         Continuamos a caminhar seguindo os trilhos - não sei quanto mais - e eu estava começando a pensar: Ora, tudo bem, vou conseguir superar, já está tudo terminado, só um bando de sanguessugas, e daí? Ainda estava pensando sobre aquilo quando de repente um branco tomou conta de minha vista e eu caí.

       A queda deve ter sido forte, mas cair sobre os dormentes foi como mergulhar num colchão quente e macio de penas. Alguém me virou. O toque de mãos era indistinto e sem importância. Seus rostos, balões flutuantes me olhando de grande altura. Tinham a mesma aparência que o rosto do árbitro deve ter para o lutador que levou um golpe e está caído se recuperando. Suas palavras oscilavam pacificamente, sumindo e voltando.

       - ... ele?

       - ...tudo...

       - ...se você acha que o sol...

       - Gordie, você está...

       Então devo ter dito alguma coisa sem sentido, pois pareceram realmente preocupados.

       - É melhor levar ele, cara - disse Teddy, e então o branco tomou conta de tudo novamente.

       Quando passou, eu parecia estar bem. Chris estava agachado a meu lado dizendo:

     - Está me ouvindo, Gordie? Você está bem, cara?

     - Estou - disse eu, e sentei. Milhares de pontos pretos explodiram diante de meus olhos, e depois sumiram. Esperei para ver se voltavam, e então me levantei.

     - Você quase me matou de susto, Gordie - disse ele. - Quer um gole de água?

     - Quero.

     Ele me deu seu cantil de água até a metade e deixei três grandes goles escorrerem por minha garganta.

     - Por que você desmaiou, Gordie? - perguntou Vern, ansioso.

     - Caí na besteira de olhar para a tua cara - disse eu.

     - Eeee-eee-eee - cararejou Teddy. - Grande, Gordie! Essa foi ótima!

     - Você está bem mesmo? - insistiu Vern.

     - Estou. Claro. Foi... ruim por uns minutos. Pensar naquelas sanguessugas.

     Balançaram a cabeça sensatamente. Descansamos cinco minutos à sombra e continuamos a andar, eu e Vern de um lado dos trilhos e Chris e Teddy do outro. Achávamos que estávamos perto.

       Não estávamos tão perto como imaginávamos, e se tivéssemos nos dado o trabalho de olhar dois minutos o mapa da estrada, teríamos visto por quê. Sabíamos que o corpo de Ray Brower tinha que estar perto da Back Harlow Road, que acaba na margem do Rio Royal. Uma outra ponte leva os trilhos da GS&WM através do Royal. Então pensamos assim: Quando chegarmos perto do Royal estaremos perto da Back Harlow Road, onde Billy e Charlie estacionaram no dia em que viram o garoto. E como o Royal ficava a apenas dezesseis quilômetros do Rio Castle, imaginamos que seria moleza.

       Mas se fossem dezesseis quilômetros em linha reta, pois os trilhos não iam direto do Castle ao Royal. Ao contrário, faziam uma grande volta para evitar uma região montanhosa e friável chamada The Bluffs. De qualquer maneira teríamos visto aquela volta muito bem se tivéssemos olhado o mapa, e percebido que, ao invés de dezesseis, teríamos que andar vinte e cinco quilômetros.

         Chris começou a desconfiar quando passara de meio-dia e ainda nem avistáramos o Royal. Paramos para ele subir num grande pinheiro e dar uma olhada em volta. Desceu e nos deu um relatório bem simples: no mínimo às quatro horas da tarde alcançaríamos o Royal, e isso só se fôssemos rápido.

       - Que merda! - disse Teddy. - E o que vamos fazer agora?

       Olhamos os rostos cansados e suados uns dos outros. Estávamos com fome e sem paciência. A grande aventura transformara-se numa longa e estafante caminhada - sombria e algumas vezes assustadora. A essa altura nos perderíamos também para voltar para casa, e se Milo Pressman já não tivesse informado a polícia sopre nós, o maquinista do trem o teria feito. Pensamos em pegar carona de volta para Castle Rock, mas às quatro horas da tarde faltariam apenas três para escurecer, e ninguém dá carona para quatro garotos numa estrada secundária no campo ao escurecer.

       Tentei evocar a imagem tranqüila da minha corça mordendo a grama verde da manhã, mas até isso parecia desinteressante e ruim, o mesmo que um bicho empalhado como um troféu na estante de um caçador, os olhos com brilho falso.

       Finalmente Chris disse:

       - Ainda é mais perto continuar. Vamos.

       Virou-se e começou a andar seguindo os trilhos com os tênis sujos, a cabeça baixa, sua sombra como uma poça a seus pés. Após um ou dois minutos nós o seguimos em fila indiana.

       Nos anos que se passaram entre aquela época e hoje, ao escrever estas memórias, tenho pensado realmente pouco naqueles dois dias de setembro, pelo menos conscientemente. As associações que as memórias trazem à tona são tão desagradáveis como cadáveres boiando há uma semana no rio. Como conseqüência, nunca questionei realmente nossa decisão de seguir os trilho. Colocando de outra forma, pensei algumas vezes sobre o que decidimos fazer, mas nunca sobre como fizemos.

       Mas agora um cenário muito mais simples me vem à cabeça. Tenho certeza de que se a idéia tivesse surgido, teria sido contestada - seguir os trilhos seria muito mais legal, mais quente, como dizíamos naquela época. Mas se tivesse surgido e não tivesse sido contestada, nada do que aconteceu teria acontecido. Talvez Chris, Teddy e Vern até estivessem vivos hoje. Não, não morreram na floresta nem na estrada de ferro; ninguém morre neste conto a não ser algumas sanguessugas e Ray Brower, e se você quiser ser mesmo justo, ele estava morto antes do começo. Mas a verdade é que, dos quatro que tiraram cara ou coroa para ver quem ia ao Florida Market, apenas o que foi ainda está vivo. O velho marinheiro de trinta e quatro anos, com você, caro leitor, no papel de convidado (nesta hora você não devia olhar a foto da capa e ver se meus olhos o prendam no seu encanto?1. Se você sente uma certa sacudidela de minha parte você está certo - mas talvez eu tenha um motivo. Numa cidade em que nós quatro seríamos considerados jovens e imaturos demais para sermos Presidente, três de nós estão mortos. E se pequenos eventos realmente crescem com o tempo, sim, talvez se tivéssemos feito o mais simples e pego uma carona em Harlow, ainda estaríamos todos vivos hoje.

         Poderíamos ter pego uma carona até a Via 7 para a Shiloh Church, que ficava no cruzamento da auto-estrada com a Back Harlow Road (pelo menos até 1967, quando foi destruída por um incêndio atribuído a uma ponta de cigarro de um mendigo). Com sorte teríamos chegado ao local onde estava o corpo ao entardecer do dia anterior.

         Mas a idéia não teria resistido. Não teria sido derrubada com argumentos bem fundamentados numa retórica social de debate, mas com resmungos, caras feias, peidos e dedos em riste. A parte verbal da discussão teria sido composta por contribuições incisivas e brilhantes como "Vai se foder", "Idéia de merda" e aquele velho e infalível recurso, "Tua mãe tem algum filho vivo?"

       Velada - talvez fosse óbvia demais para ser dita - era a idéia de que aquilo era uma coisa importante. Não era sair jogando bombinhas nem tentar olhar pelo buraco da fechadura do banheiro de mulheres de Harrison State Park. Era algo comparável com a primeira transa, ou ir para o Exército, ou comprar a primeira garrafa de bebida -simplesmente entrar na loja, se você entende, escolher uma garrafa de bom scotch, mostrar ao vendedor sua identidade e carteira de motorista e sair com um sorriso no rosto e aquele saco marrom na não, membro de um clube com certos direitos e privilégios a mais que nossa velha casa na árvore com telhado de zinco.

       Existe um grande ritual para todos os eventos fundamentais, os ritos de passagem, o corredor mágico onde a mudança ocorre. Comprar preservativos. Ficar frente a frente com o ministro. Levantar a mão e prestar juramento. Ou, se quiser, descer o caminho dos trilhos para encontrar um amigo da mesma idade na metade do caminho, da mesma maneira que eu descia Pine Street para encontrar Chris quando vinha à minha casa, ou que Teddy descia até a metade de Gates Street para me encontrar quando eu ia à sua casa. Parecia certo agir assim, pois o rito de passagem é um corredor mágico e por isso nós fornecemos um caminho - é por onde você anda quando se casa, o percurso que você desce ao ser enterrado. Nosso corredor era aquele par de trilhos, e caminhamos entre eles, esperando, o que quer que aquilo significasse. Talvez não se pegue carona numa situação dessas. E talvez achássemos que fosse certo ter sido mais difícil do que esperávamos. Os ventos em torno de nossa carona transformou-a no que sempre pensamos desde o início: uma coisa séria.

         O que não sabíamos quando andamos por Bluffs era que Billy Tessio, Charles Hogan, Jack Mudgett, Norman "Fuzzy" Bracowicz, Vince Desjardins, o irmão mais velho de Chris, Eyeball e Ace Merrill estavam todos a caminho, para darem eles próprios uma olhada no morto - de uma maneira estranha Ray Brower tornara-se famoso, e nosso segredo transformou-se num teatro nômade. Estavam amontoados no Ford 52 conversível de Ace e no Studebaker 54 rosa de Vince, desde que começamos a última parte da viagem.

         Billy e Charlie haviam conseguido guardar o enorme segredo por apenas trinta e seis

horas. Então Charlie contou para Ace enquanto jogavam bilhar e Billy tinha contado para Jack Mudgett enquanto pescavam na Ponte Boom Road. Tanto Ace quanto Jack tinham jurado pela mãe que guardariam segredo, e foi assim que todos os membros da gangue ficaram sabendo ao meio-dia. Acho que você pode imaginar o que aqueles imbecis pensavam de suas mães.

         Reuniram-se todos no salão de bilhar e Fuzzy Bracowicz adiantou a teoria (que você já ouviu antes, caro leitor) de que poderiam tornar-se heróis - sem falar em personalidades imediatas do rádio e da TV - "descobrindo" o corpo. Tudo o que teriam que fazer, sustentou Fuzzy, era sair em dois carros com muitas varas de pescar na caçamba.

         Depois que achassem o corpo, a história ficaria perfeita. Estávamos pensando em tirar uns peixinhos do Rio Royal, delegado. Ha, ha, ha. Olhe o que achamos.

         Estavam subindo a toda velocidade a estrada de Castle Road para a área de Back Harlow na mesma hora em que finalmente começamos a nos aproximar.

         Começaram a se formar nuvens no céu por volta de duas horas, mas no começo nenhum de nós levou a sério. Não chovia desde os primeiros dias de julho, então por que haveria de chover agora? Mas continuaram a crescer ao sul, cada vez mais, nuvens de trovão roxas como edemas, e lentamente começaram a se deslocar em nossa direção. Olhei para elas atentamente, procurando aquela membrana embaixo que significa que já começou a chover a trinta quilômetros de distância, ou sessenta. Mas ainda não havia chuva, as nuvens só estavam começando a se formar. Vern estava com uma bolha no calcanhar, e paramos e descansamos enquanto ele colocava musgo na parte de trás do tênis esquerdo, tirado da casca de um velho carvalho.

       - Vai chover, Gordie? - perguntou Teddy.

       - Acho que sim.

       - É foda - disse ele, e suspirou. - Que foda difícil.

       Eu ri e ele piscou para mim.

         Recomeçamos a andar, agora um pouco mais devagar, por respeito ao pé machucado de Vern. E entre duas e três horas a qualidade da luz do dia começou a mudar, e tivemos certeza que a chuva se aproximava. Estava tão quente quanto antes, e ainda mais úmido, mas tínhamos certeza. E os pássaros também. Pareciam surgir do nada e cruzar o céu, tagarelando e gritando alto uns com os outros. E a luz. De uma claridade firme e causticante transformou-se numa luminosidade filtrada, quase perolada. Nossas sombras, que tinham começado a crescer novamente, também ficaram imprecisas e mal definidas. O sol começara a surgir e a sumir por entre a espessa camada de nuvens, e o céu a sudoeste adquirira um tom de cobre. Observamos os relâmpagos chegarem mais perto, fascinados por seu tamanho e ameaça muda. De vez em quando parecia que uma lâmpada enorme tinha se apagado dentro das nuvens, transformando sua cor roxa momentaneamente num cinza-claro. Vi um raio com o formato de um garfo dentado sair de dentro da que estava mais perto. Foi tão forte que deixou uma tatuagem azul em minhas retinas. Foi seguido de uma trovoada longa e ameaçadora.

         Reclamamos um pouco de sermos pegos pela chuva, mas só porque era inevitável - logicamente estávamos todos esperando ansiosamente por aquilo. Seria gelada e refrescante... e sem sanguessugas.

         Um pouco depois das três e meia vimos uma água corrente por entre as árvores.

         - É ele! - gritou Chris, exultante. - É o Royal!

         Começamos a andar mais rápido, com ânimo novo. A tempestade estava chegando perto. O ar começou a se agitar, e a temperatura pareceu cair alguns graus num espaço de segundos. Olhei para baixo e vi que minha sombra desaparecera completamente.

         Andávamos em pares novamente, cada um de um lado dos trilhos. Minha boca estava seca, pulsando com uma secura tensa. O sol mergulhou atrás de outra camada de nuvens e dessa vez não voltou. Por um momento as bordas da camada foram bordadas de ouro, como uma ilustração do Antigo Testamento da Bíblia, e então a barriga estufada da nuvem cor de vinho bloqueou todos os rastros de sol. O dia ficou nublado - as nuvens consumiam rapidamente o último azul do céu. Sentíamos o cheiro do rio tão claro como se fôssemos cavalos - talvez fosse o cheiro da chuva iminente. Havia um oceano acima de nós, preso por uma bolsa fina que romperia a qualquer momento e deixaria cair a enchente.

       Eu tentava olhar para o mato no chão, mas meus olhos eram atraídos continuamente para aquele céu turbulento e apressado; em suas cores profundas podia-se imaginar qualquer previsão: água, fogo, vento, granizo. A brisa quente tornou-se mais insistente, assoviando por entre os pinheiros. Um repentino raio estourou, aparentemente bem acima de nós, fazendo-me gritar e colocar as mãos nos olhos. Deus tinha tirado minha fotografia, um garotinho com a camisa amarrada na cintura, inchaços nos ombros nus e fuligem nas bochechas. Ouvi uma árvore cair a menos de sessenta metros. O estalo do trovão fez com que me encolhesse. Queria estar em casa lendo um bom livro num lugar seguro... como o celeiro de batatas.

        - Meu Deus! - exclamou Vern em voz alta e débil. - Ô meu Deus, olha lá!

       Olhei na direção que Vern apontava e vi um bólido azul e branco subindo pelo lado esquerdo da estrada de ferro GS&WM, estalando e assoviando para o mundo como um gato escaldado. Passou veloz por nós ao nos viramos para olhá-lo, mudos, pela primeira vez conscientes de que coisas daquele tipo podiam existir.

         A sete metros adiante de repente fez "pop!" e desapareceu, deixando atrás de si um cheiro denso de ozônio.

          - O que eu estou fazendo aqui, afinal? - murmurou Teddy.

           - É foda! - exclamou Chris, seu rosto virado ligeiramente para cima. - Vai ser uma foda como você nunca imaginou! - Mas eu estava com Teddy. Olhando para o céu, sentia uma sensação de tonteira e vertigem. Era como se estivesse olhando para um desfiladeiro de mármore profundo e misterioso. Outro raio caiu, fazendo com que nos encolhêssemos. Desta vez o cheiro de ozônio foi mais forte, mais presente O estouro do trovão em seguida veio sem nenhuma interrupção perceptível.

           Meus ouvidos ainda estavam zunindo quando Vern começou a gritar triunfante:

           - ALI, ELE ESTÁ ALI! BEM ALI! ESTOU VENDO ELE!

           Posso ver Vern agora, nesse minuto, se quiser - só preciso me recostar e fechar os olhos. Ele está lá, em pé ao lado do trilho esquerdo como um explorador na proa do navio, uma das mãos protegendo os olhos do clarão cinza do raio que acabou de cair, e a outra, esticada, apontando.

         Corremos para seu lado e olhamos. Eu estava pensando comigo mesmo: A imaginação de Vern deixou-o perturbado, só isso. As sanguessugas, o calor, essa tempestade agora... os olhos dele estão vendo miragens, só isso. Mas não era isso, embora por um segundo eu quisesse que fosse. Naquele segundo percebi que nunca queria ter visto um cadáver, nem mesmo um pedaço de madeira pisado.

         No lugar em que estávamos em pé, as chuvas adiantadas da primavera haviam destruído parte da margem, deixando um barranco irregular cheio de cascalhos de cerca de 12 metros. As equipes de manutenção da estrada de ferro ou ainda não tinham passado por lá em seus amarelos carros de conserto a diesel ou tinha acontecido há tão pouco tempo que ainda não fora notificado. No fundo do barranco havia um pântano com arbustos que cheirava mal. E apontando para fora de um espinheiro de uvas-domonte uma mão pálida e branca.

       Algum de nós respirou? Eu não.

       A brisa agora era um vento - cortante e desagradável, vindo até nós de nenhuma direção em particular, pulando e rodopiando, batendo em nossas peles suadas e poros abertos. Quase nem percebi. Acho que parte da minha mente esperava que Teddy gritasse Páraquedistas para o lado! e pensei que se ele fizesse isso iria enlouquecer. Teria sido melhor ver o corpo inteiro, de uma vez, mas não, só havia aquela mão esticada e imóvel, horrivelmente branca, os dedos inchados como a mão de um garoto afogado. Contounos a verdade sobre tudo. Explicou cada cemitério do mundo. A imagem daquela mão me ocorria cada vez que eu lia ou ouvia falar de uma atrocidade. Em algum lugar, preso àquela mão, estava o corpo de Ray Brower.

         Raios faiscavam e estouravam. Trovões explodiam após cada raio como se uma corrida de arrancada tivesse começado sobre nossas cabeças.

        - Meer... - disse Chris, não foi bem uma palavra de praguejamento não a versão caipira de merda dita com uma haste fina de capim no canto da boca quando o carro de boi quebra - ao contrário, foi uma sílaba longa e desafinada, sem sentido: um suspiro que por acaso passou pelas cordas vocais.

       Vern lambia os lábios compulsivamente, como se tivesse provado uma estranha e nova guloseima, pãezinhos de lingüiça tibetanos, escargots interestelares, alguma coisa tão estranha que excitava e revoltava ao mesmo tempo.

         Teddy apenas ficou parado olhando. O vento agitava seus cabelos anelados e oleosos, deixando as orelhas de fora e depois cobrindo-as. Seu rosto era um vazio. Posso dizer a você que vi algo ali, e talvez tenha visto, uma percepção tardia... mas não naquela hora.

         Formigas pretas andavam de um lado para outro na mão.

         Um murmúrio cada vez mais forte começou a crescer na mata dos dois lados dos trilhos, como se a floresta tivesse percebido que estávamos lá e comentasse isso. A chuva começara.

         Grandes pingos caíram em minha cabeça e braços. Atingiram a margem, tornando o solo escuro por um momento - depois a cor mudou de novo quando o chão seco e sedento absorveu a umidade.

         Aqueles pingos grandes caíram talvez durante cinco segundos e passaram. Olhei para Chris e ele piscou o olho ao me olhar de volta.

         Então a tempestade chegou de vez, como se um chuveiro tivesse sido ligado no céu. O murmúrio transformou-se num alto falatório. Era como se estivéssemos sendo repreendidos por nossa descoberta, e era assustador. Ninguém lhe fala sobre a falácia patética até que se entra na faculdade... e mesmo naquela época notei que só os completamente imbecis acreditavam que era falácia.

         Chris pulou sobre o lado do barranco, seus cabelos já ensopados e grudados na testa.

Segui-o. Vern e Teddy vieram em seguida, mas Chris e eu chegamos primeiro ao corpo de Ray Brower. Seu rosto estava virado para baixo. Chris olhou em meus olhos, seu rosto sério e duro - um rosto de adulto. Balancei a cabeça ligeiramente, como se ele tivesse falado alguma coisa.

           Achou que estava lá embaixo e relativamente intacto e não esmagado no meio dos trilhos porque tentava sair do caminho quando o trem o pegou, jogando-o de pernas para o ar. Caiu com a cabeça virada para os trilhos, os braços esticados sobre a cabeça como um mergulhador prestes a pular. Caíra nesse pedaço de terra lamacento que estava virando um pequeno pântano. Seus cabelos eram bem ruivos. A umidade do ar os enrolara um pouco nas pontas. Havia sangue neles, mas não muito, não uma quantidade brutal. As formigas eram mais brutais. Ele vestia uma camiseta toda verde-escura e calças jeans. Seus pés estavam descalços, e a alguns metros atrás dele, preso nos arbustos altos de uva-do-monte, vi um par de tênis de cano curto sujo. Por um momento fiquei intrigado - por que ele estava aqui e os tênis lá? Depois percebi, e foi como um soco na boca do estômago. Minha mulher, meus filhos, meus amigos - todos eles acham que ter uma imaginação como a minha deve ser ótimo; além de ganhar bem, posso fazer um cineminha interior quando vem a monotonia. Praticamente estão certos. Mas de vez em quando a situação vira e morde você com esses grandes dentes, dentes pontudos como os de canibais. Você vê coisas que não veria, coisas que o fazem ficar acordado até clarear ó dia. Vi uma dessas coisas nesse momento, com absoluta clareza e exatidão. Tinha sido arrancado dos tênis. O trem o arrancara dos tênis como arrancara a vida de seu corpo.

           Aquilo finalmente me fez cair na realidade. O menino estava morto. O menino não

estava doente, o menino não estava dormindo. O menino não ia mais levantar de manhã nem levar bronca por ter comido maçãs demais ou por ter pego uma planta venenosa ou usado caneta que apaga na prova de matemática. O menino estava morto, mortinho. O menino não ia mais sair com os amigos para passear na primavera, mochila nas costas, catar coisas que a neve deixava descobertas quando derretia. O menino não ia acordar às duas da manhã de primeiro de novembro desse ano, correr para o banheiro e vomitar o doce barato do Dia das Bruxas. O menino não ia puxar a trança de uma menina na sala de aula. O menino não ia dar nem receber um soco no nariz que fizesse sangrar. O menino era não pode, não, não vai, nunca, não deve, não deveria, não poderia. Era o lado negativo da pilha. O fusível queimado. A cesta de lixo da mesa da professora, que sempre cheira a lápis apontado e cascas de laranja do lanche. A casa mal-assombrada no campo de janelas quebradas, aviso de NÃO ULTRAPASSE nos campos, o sótão cheio de morcegos, o porão cheio de ratos. O menino estava morto, senhores, senhoras, jovens e senhoritas. Eu podia ficar o dia inteiro sem conseguir precisar a distância entre seus pés descalços no chão e os tênis sujos pendurados no arbusto. Eram mais de metros infinitos, zilhões de anos-luz. O menino estava desligado dos tênis sem nenhuma esperança de reconciliação. Estava morto.

         Viramos ele de rosto para cima sob a chuva incessante, os raios, os estouros contínuos de trovões.

         Havia formigas e insetos por todo o seu corpo e pescoço. Entravam e saíam rapidamente pela gola redonda de sua camiseta. Seus olhos estavam abertos, mas terrivelmente fora de sincronia um estava revirado e só se via um mínimo arco da íris; o outro estava para cima, olhando a chuva. Tinha uma mancha de sangue ressecado abaixo da boca e no queixo - do nariz, imaginei - e o lado direito de seu rosto estava arranhado e roxo.

Mesmo assim, pensei, não tinha uma aparência muito ruim. Uma vez eu dei de cara numa porta que meu irmão Dennis estava abrindo e fiquei com hematomas piores que os do menino, fora o nariz sangrando, e ainda pude comer de tudo duas vezes no jantar depois disso.

         Teddy e Vern ficaram atrás de nós, e se aquele olho virado para cirna tivesse alguma capacidade de visão, acho que teríamos olhado para Ray Brower como se estivéssemos segurando a alça de um caixão num filme de terror.

         Um besouro saiu de sua boca, passou pela bochecha imberbe, pisou num pedacinho de folha e foi embora.

         - Viram? - perguntou Teddy, com uma voz alta, estranha e desmaiada. - Aposto que ele está todo cheio de insetos! Aposto que a cabeça dele...

         - Cala a boca, Teddy - disse Chris, e Teddy caiou, parecendo aliviado.

         Um raio azul desenhou-se no céu, fazendo o único olho do menino iluminar-se. Quase se podia acreditar que ele estava feliz por ter sido encontrado, e encontrado por meninos de sua idade. Seu torso estava inchado e havia um ligeiro odor gasoso ao seu redor, corno o cheiro de peidos abafados.

         Virei-me, certo de que ia ficar enjoado, mas meu estômago estava seco, duro, parado.

De repente enfiei dois dedos na garganta, tentando vomitar, como se pudesse vomitar e me aliviar. Mas meu estômago só mexeu um pouco e parou novamente.

         O murmúrio da chuva e os trovões haviam abafado completamente o barulho dos carros que se aproximavam pela Back Harlow Road, que ficava a poucos metros desse terreno pantanoso. Eles também abafavam o barulho da vegetação amassada pelos carros onde estes estacionaram.

         E a primeira voz que ouvimos foi a de Ace Merrill, sobressaindo ao tumulto da chuva, dizendo:

         - Porra, o que vocês sabem sobre isso?

        Demos um pulo como se tivéssemos levado um susto pelas costas e Vern deu um grito. Depois admitiu que por um instante pensou que a voz vinha do menino morto.

         No final do caminho pantanoso, onde a floresta recomeçava, cobrindo o fim da estrada, Ace Merrill e Eyeball Chambers estavam parados, um pouco escondidos por uma cortina cinza de chuva. Ambos usavam uma jaqueta de náilon vermelho da escola, aquelas que os alunos podem comprar, as mesmas que eles dão de graça para os esportistas das universidades. Seus cabelos curtos estavam penteados para trás, bem rente à cabeça, e uma mistura de água de chuva e gomalina descia por seus rostos, como lágrimas artificiais.

         - Filho da mãe! - disse Eyeball. - É o meu irmão menor!

         Chris olhava fixamente para Eyeball boquiaberto. Sua camisa molhada, flácida e escura, ainda estava amarrada em volta de sua magra cintura. Sua mochila, manchada de verde mais escuro por causa da chuva, estava dependurada em seus ombros nus.

       - Vai embora, Rich - disse ele, com a voz trêmula. - Nós o achamos. Nós temos o direito.

       - Foda-se seu direito. Nós vamos notificar às autoridades.

       - Não vão, não - disse eu. De repente fiquei furioso com eles, aparecendo assim na última hora. Se tivéssemos pensado um pouco, teríamos imaginado que algo desse tipo aconteceria... mas no entanto uma coisa era certa: os meninos mais velhos, maiores, não iam levar a melhor - pegar o que queriam como que por direito divino, como se a fácil solução deles fosse a certa, a única. Tinham vindo de carro - acho que foi isso que me deixou com mais raiva. Tinham vindo de carro.

       - Somos quatro, Eyeball. Tenta.

       - Ah, vamos tentar, não se preocupe - disse Eyeball, e as árvores balançaram atrás dele e de Ace. Charlie Hogan e Billy, irmão de Vern, saíram do meio delas, xingando e enxugando os olhos. Tive a impressão que tinha levado um golpe de boxe na barriga. Foi mais forte quando Jack Mudgett, Fuzzy Bracowicz e Vince Desjardins saíram de trás de Charlie e Billy.

       - Aqui estamos nós - disse Ace, rindo. - Por isso...

       - VERN ! - gritou Billy Tessio, com aquela voz terrivelmente acusadora. Ele fechou as mãos. - Seu filho da mãe! Você estava embaixo da varanda! Seu bisbilhoteiro!

       Vern recuou.

     Charlie Hogan acrescentou positivamente lírico:

       - Seu bisbilhoteiro de uma figa, chupador de boceta que fode com o dedo, eu devia te arrancar o couro!

       - É mesmo? Então tenta! - esbravejou Teddy de repente. Seus olhos estavam loucamente acesos atrás das lentes molhadas. Vem, vem pegar ele! Vem, valentão!

       Billy e Charlie não precisaram de uma segunda chamada. Começaram a andar e Vern recuou novamente - sem dúvida vendo dois monstros se aproximando. Recuou... mas estava confiante. Estava com seus amigos, e nós já passáramos por muita coisa, e não tínhamos chegado ali em dois carros.

       Mas Ace deteve Billy e Charlie simplesmente encostando a mão em seus ombros.

       - Agora ouçam bem, meninos - disse Ace. Falava pacientemente como se não estivéssemos naquela chuvarada. - Nós somos mais que vocês. Somos maiores. Vamos dar só uma chance para vocês caírem fora. Não quero nem saber para onde. Simplesmente desapareçam.

       O irmão de Chris deu uma risadinha e Fuzzy bateu nas costas de Ace apreciando sua sabedoria. O rei dos disc-jóqueis.

       - Porque nós vamos levá-lo. - Ace sorriu gentil, e você podia imaginá-lo dando o mesmo sorriso antes de quebrar um taco de bilhar de algum punk mal-educado que tivesse cometido o terrível erro de esbarrar na mesa enquanto Ace preparava uma tacada. - Se vocês forem embora, nós vamos levar ele. Se ficarem, vamos arrebentar vocês e levar ele do mesmo jeito. Além do mais - acrescentou, tentando fazer justiça daquela sacanagem, - Charlie e Billy o encontraram, por isso o direito é deles.

         - Não encontraram! - retrucou Teddy, gritando. - Vern contou para a gente! São uns fodidos mentirosos! - Fez uma careta horrível imitando Charlie Hogan. - Era melhor não ter roubado aquele carro! Era melhor não ter ido na Back Harlow Road dar uma trepada! Ai, Billy, o que vamos fazer? Ai, Billy, acho que acabei de transformar minha cueca numa fábrica de geléia! Ai, Billy...

       - Ah, é? - disse Chris, partindo novamente para cima dele. Seu rosto estava contraído, com ódio e emburrado de vergonha. Garoto, não sei seu nome, mas se prepara porque da próxima vez que for tirar meleca vai tirar lá embaixo, do outro lado.

       Olhei atordoado para Ray Brower no chão. Ele olhava calmamente para cima com o único olho, abaixo de nós mas acima de tudo. Os trovões ainda continuavam incessantes, mas a chuva começara a diminuir.

       - O que você acha, Gordie? - perguntou Ace. Segurava Charlie levemente pelo braço como um bom treinador seguraria um cachorro bravo. - Você deve ter pelo menos um pouco do bom senso do seu irmão. Diga a esses meninos para irem embora. Vou deixar Charlie bater um pouco no "quatro-olho" e depois cada um vai tratar das suas coisas. O que você diz?

       Ele fez mal em mencionar Denny. Eu queria argumentar com ele, dizer o que Ace sabia muito bem que nós tínhamos todo o direito, já que Vern tinha ouvido Charlie e Billy dispensarem esse direito. Queria contar a ele que Vern e eu quase tínhamos sido atropelados por um trem na ponte sobre o Rio Castle. Sobre Milo Pressman e seu inofensivo - senão estúpido - cachorro, Chopper, o cão maravilha. Sobre as sanguessugas também. Acho que tinha vontade de dizer a ele: "Espera aí, Ace, tem que haver justiça". Mas ele teve que meter Denny no meio, e o que eu ouvi sair de minha boca, ao invés de uma sensata argumentação, foi minha própria pena de morte:

       - Vem me chupar, seu marginalzinho de merda.

       A boca de Ace formou um perfeito O de surpresa - a expressão foi tão inesperada que em outras circunstâncias teria se formado o maior tumulto. Todos - de ambos os lados do pântano - me olhavam fixamente, boquiabertos.

       Então Teddy gritou exultante:

         - Essa foi demais, Gordie! Demais mesmo!

       Fiquei mudo, sem conseguir acreditar. Foi como se um extra maluco tivesse aparecido no palco no momento crítico e declamado falas que não estavam nem na peça. Mandar um cara chupar era o pior xingamento, sem mencionar a mãe dele. De rabo de olho vi que Chris tirava a mochila das costas e remexia lá dentro freneticamente, mas não entendi - não naquela hora.

         - Muito bem - disse Ace, devagar. - Vamos em cima deles. Não machuquem ninguém, a não ser o Lachance. Vou quebrar os dois braços de merda dele.

         Fiquei gelado. Não fiz pipi nas calças como acontecera na ponte, mas acho que foi porque não tinha nada para botar para fora. Ele ia fazer aquilo mesmo, entende? Nos anos que se passaram desde aquela época mudei de opinião sobre muitas coisas, mas não sobre aquilo. Quando Ace disse que ia quebrar meus dois braços era porque ia fazer isso mesmo.

       Começaram a andar em nossa direção pela chuva fresca. Jackie Mudgett sacou um

canivete do bolso e puxou a lâmina. Quase um palmo de metal pulou, cinza-chumbo sob a penumbra do final da tarde. Vern e Teddy de repente se colocaram cada um a meu lado em posição de briga. Teddy fez aquilo com disposição, Vern com uma careta desesperada, contorcida.

       Os garotos grandes avançavam em fila, pisoteando a lama do pântano, agora uma poça enorme e cheia de lama por causa da chuva. O corpo de Ray Brower estendido a nossos pés parecia um barril cheio d'água. Preparei-me para brigar... e foi quando Chris disparou a pistola que pegara na cômoda do pai.

KA-BLAM!

         Meu Deus, que barulho espetacular! Charlie Hogan deu um pulo. Ace Merrill, que me olhava fixamente, virou-se e olhou para Chris. Sua boca formou aquele O novamente.

Eyeball ficou completamente estupefato.

         - Ei, Chris, isso é do papai - disse ele. - Você vai ver a surra que vai levar...

         - Isso não é nada em comparação com o que você vai levar disse Chris. Seu rosto estava terrivelmente pálido, e toda sua energia parecia ter sido sugada por cima, para os olhos.

       Estavam quase pulando.

       - Gordie estava certo, vocês não passam de um bando de babacas. Charlie e Billy não quiseram os direitos de merda, e todos vocês sabiam disso. Não teríamos vindo nos ferrar aqui se eles tivessem dito que viriam. Eles simplesmente foram para um lugar e contaram a história e deixaram Ace Merrill bolar o plano. - Sua voz elevou-se, e ele começou a gritar: - Mas vocês não vão levar ele, estão me ouvindo?

       - Agora escute aqui - disse Ace. - É melhor abaixar isso antes que você arranque seu próprio pé. Você não consegue atirar nem num pedaço de madeira. - Ele começou a avançar novamente, com aquele sorriso gentil no rosto. - Você não passa de um fedelho nanico mijão e vou te fazer engolir essa pistola.

       - Ace, se você não ficar parado vou atirar em você. Juro por Deus.

       - Você vai em cana - disse Ace, sem hesitar. Ainda ria. Os outros o olhavam apavorados e fascinados... do mesmo modo que Teddy, Vern e eu olhávamos para Chris. Ace Merrill era o cara mais invocado de toda a região e não achei que Chris pudesse enfrentá-lo. E a que levava isso? Ace não achava que um pirralho de doze anos fosse realmente atirar nele. Acho que estava errado; achei que Chris fosse atirar em Ace antes de deixá-lo tomar a pistola de seu pai de suas mãos. Naqueles poucos segundos achei que teríamos um péssimo problema, o pior que já vira. Problema de assassinato, talvez. E tudo por causa de quem tinha direitos sobre um garoto morto.

         Chris disse tranqüilamente, com muito pesar:

         - Onde você quer, Ace? Perna ou braço? Eu não escolho Você escolhe para mim.

         E Ace parou.

         Seu rosto murchou, e vi um medo repentino nele. Acho que foi o tom que Chris usou mais que suas palavras propriamente; verdadeiro desapontamento pela situação que ia de mal a pior. Se era um blefe, realmente foi o melhor que já vi. Os grandes estavam completamente convencidos; tinham uma expressão perplexa, como se alguém tivesse colocado fogo numa bombinha de pavio curto.

         Ace lentamente recobrou o autocontrole. Os músculos de seu rosto contraíram-se novamente, os lábios apertados, olhou para Chris como você olharia para um homem que acabou de lhe fazer uma séria proposta sobre um negócio - unir-se à sua firma, conceder-lhe uma linha de crédito, ou esculhambar com você. Foi uma expressão de curiosidade e espera, do tipo que faz você pensar que o medo passou - ou está bem guardado. Ace reconsiderara a fatalidade de não ter levado um tiro e convencera-se de que a situação não lhe era tão favorável como pensara. Mesmo assim ainda oferecia perigo - talvez mais do que antes. Aquela fora a demonstração mais crua de malabarismo político que já vira.       Nenhum dos dois estava blefando, ambos estavam envolvidos num negócio.

         - Está bem - disse Ace, mansamente, dirigindo-se a Chris. Mas eu sei como você vai

sair dessa, filho da puta.

       - Não sabe, não - disse Chris.

       - Seu babaca! - gritou Eyeball. - Você vai se dar mal por isso

       - Duvido - disse Chris.

       Com um grunhido de ódio, Eyeball avançou e Chris disparou uma bala na água a três metros dele. A água espirrou. Eyeball pulou para trás, xingando.

       - É, e agora? - perguntou Ace.

       - Agora vocês entrem no carro e se mandem para Castle Rock. Depois não quero nem saber. Mas não vão levar ele. - Tocou ligeiramente em Ray Brower com a ponta do tênis ensopado. - Entenderam?

       - Mas vamos te pegar - disse Ace. Estava começando a rir de novo. - Sabia?

       - Pode ser que sim, pode ser que não.

       - E vamos te pegar de jeito - disse Ace, rindo. - E te machucar. Não acredito que não saiba disso. Vamos mandar todos vocês para o hospital cheios de fraturas. Mesmo.

       - Ah, por que você não vai para casa comer a sua mãe? Ouvi dizer que ela adora o jeito que você faz.

       O sorriso de Ace congelou.

         - Vou te matar por causa disso. Ninguém insulta a minha mãe.

         - Ouvi dizer que a sua mãe trepa por grana - informou Chris, e quando Ace começou a ficar pálido, com a pele cadavericamente branca como a de Chris, acrescentou: - Pra falar a verdade, ouvi dizer que ela dá chupadas em troca de fichas para a vitrola automática. Ouvi dizer...

         A tempestade voltou violentamente, de uma vez. Só que dessa vez era granizo. Ao invés de murmúrios ou falatórios, a mata parecia viva com tambores na selva dos filmes de segunda categoria - o barulho era de enormes pedras de gelo batendo nos troncos das árvores. Pedras pontiagudas começaram a atingir meus ombros - era como se alguma força malévola e consciente as estivesse jogando. Pior, começaram a atingir o rosto de Ray Brower com um barulho horrível que nos fez lembrar dele de novo, de sua terrível e interminável paciência.

         Vern sucumbiu primeiro, com um grito de lamento. Pulou para a margem dos trilhos em passadas largas e desajeitadas. Teddy agüentou mais um minuto e saiu correndo atrás de Vern com as mãos na cabeça. Do lado deles, Vince Desjardins meteu-se novamente embaixo de uns arbustos e Fuzzy Bracowicz juntou-se a ele. Mas os outros ficaram parados, e Ace começou a rir de novo.

       - Fica aqui comigo, Gordie - disse Chris, em voz baixa e trêmula. - Fica aqui, cara.

       - Estou aqui.

       - Vai embora agora - disse Chris a Ace, e conseguiu, por um milagre, manter a voz firme. Seu tom era de quem dava instruções a um garoto idiota.

       - Vamos te pegar - disse Ace. - Não vamos esquecer isso, se está pensando. É uma grande ocasião, meu chapa.

       - Está bem assim. Você vai embora e faz o ganho outro dia.

       - Vamos te preparar uma armadilha, Chambers. Vamos...

       - Vaí embora! - gritou Chris, e levantou a arma. Ace recuou.

       Olhou para Chris mais um momento, balançou a cabeça e se virou.

       - Vamos - disse aos outros. Olhou para trás por cima do ombro para Chris mais uma vez. - A gente se esbarra por aí.

       Voltaram para o abrigo de árvores entre o pântano e a estrada. Chris e eu ficamos completamente parados apesar dos granizos que nos chicoteavam, deixavam nossa pele vermelha e se amontoavam ao nosso redor como neve. Ficamos parados ouvindo, e acima do louco barulho de calipso dos granizos batendo nos troncos das árvores ouvimos dois carros ligando o motor.

       - Fica aqui - disse Chris, e foi andando pelo caminho pantanoso.

       - Chris! - gritei, em pânico.

       - Tenho que ir. Fica aqui.

       Parecia que já tinha ido há muito tempo. Convenci-me de que ou Ace ou Eyeball tinham ficado escondidos e o tinham agarrado. Fiquei sozinho só com a companhia de Ray Brower e esperei alguém - qualquer um - voltar. Depois de um tempo, Chris voltou.

     - Conseguimos - disse ele. - Foram embora.

     - Tem certeza?

     - Tenho. Os dois carros. - Levantou os braços com a arma nas mãos e sacudiu-os num gesto de campeão. Depois baixou-os e riu para mim. Acho que foi o sorriso assustado mais triste que já vi. - "Vem me chupar o pau grosso" - quem te disse que você tem o pau grosso, Lachance?

     - O mais grosso dos quatro cantos do mundo - disse eu. Estava tremendo todo.

       Olhamos calorosamente um vara o outro por um segundo e depois, talvez constrangidos com o que víamos, baixamos a cabeça juntos. Um terrível calafrio de medo me percorreu e pelo barulho que os pés de Chris fizeram percebi que ele também tinha visto. Os olhos de Ray Brower estavam arregalados e brancos, petrificados e sem as pupilas, como os olhos de estátuas gregas. Logo percebemos o que acontecera, mas não nos amenizou o susto. As cavidades de seus olhos estavam cheias de granizo branco.

Começavam a derreter e a água escorria por suas faces como se estivesse chorando por sua própria condição grotesca - um prêmio surrado e miserável disputado por dois babacas provincianos. As roupas dele também estavam brancas de granizo. Parecia vestido com a própria mortalha.

       - Pó, Gordie, ei - disse Chris, tremendo. - Que coisa repugnante para ele.

       - Acho que ele não sabe.

       - Talvez aquilo que ouvimos fosse o espírito dele. Talvez ele soubesse que isso ia acontecer. Que merda de confusão. Estou sendo sincero.

       Uns galhos estalaram atrás de nós. Virei-me, certo que eles iam nos atacar, mas Chris fora contemplar o corpo, depois de lançar-lhe um olhar rápido e quase casual. Eram Vern e Teddy, os jeans ensopados e pretos colados às pernas, rindo como dois cachorros

que acabaram de chupar um osso.

         - O que vamos fazer, cara? - perguntou Chris, e senti um arrepio me percorrer. Talvez estivesse falando comigo, talvez estivesse... mas continuava olhando para o corpo. - Vamos levar ele, não vamos? - perguntou Teddy, desorientado. - Vamos ser heróis, não é? - Olhou de Chris para mim e de novo para Chris.

       Chris levantou os olhos como que acordando subitamente de um sonho. Seus lábios curvaram-se. Deu passadas largas até Teddy, colocou as duas mãos em seu peito e empurrou-o agressivamente para trás. Teddy perdeu o equilíbrio, rodou os braços procurando estabilidade e caiu sentado no chão encharcado fazendo a água espirrar. Olhou espantado para Chris, com os olhos arregalados piscando, como um rato de laboratório. Vern olhava desconfiado para Chris, com medo de uma loucura. Talvez não estivesse tão errado assim.

       - Você fica de bico calado - disse Chris a Teddy. - Vai para o inferno com esse negócio de pára-quedistas, abrir caminho para o lado. Seu frouxo nojento.

       - Foi o granizo! - gritou Teddy chorando, irado e envergonhado. - Não foram eles,

Chris! Tenho medo de tempestade! Bosta! O que é que eu posso fazer? - Começou a chorar novamente sentado na água.

       - E você? - perguntou Chris, virando-se para Vern. - Também tem medo de tempestade?

     Vern balançou a cabeça inexpressivamente, ainda assustado com a raiva de Chris.

       - Pó, cara, achei que todos fossem correr.

       - Então você deve ser vidente, porque você correu primeiro.

       Vern engoliu em seco e não disse nada.

      Chris encarou-o, os olhos sombrios e enfurecidos. Então virou-se para mim.

       - Vamos fazer uma maca para ele, Gordie.

       - Se você acha...

       - Claro! Como escoteiros. - Sua voz começou a elevar-se atingindo um tom estranho e esganiçado. - Como merda de escoteiros. Uma maca, com varas e panos. Como no manual. Certo, Gordie?

       - É. Se você quiser. Mas se aqueles caras...

       - Fodam-se aqueles caras! - gritou. - Vocês não passam de um bando de babacas! Vão à merda, idiotas!

      - Chris, eles podiam chamar os policiais.

       - Ele é nosso e nós vamos levá-lo!

       - Aqueles caras podiam falar qualquer coisa para nos humilhar - disse eu. Minhas palavras soaram fracas, estúpidas, doentes. - Dizer qualquer mentira. Sabe como certas pessoas trazem problemas para outras. Contando mentiras, cara. Como o negócio do dinheiro do lan...

       - ESTOU POUCO LIGANDO! - gritou e veio para cima de mim com os punhos cerrados. Mas um de seus pés tocou nas costelas de Ray Brower com um som surdo, fazendo o corpo rolar. Ele tropeçou e caiu estatelado, e eu esperei que levantasse e talvez me desse um soco na boca, mas ao invés disso, ficou deitado ali com a cabeça virada para os trilhos e os braços esticados sobre a cabeça como um mergulhador prestes a pular, exatamente na mesma posição que Ray Brower estava quando o encontramos. Olhei confuso para os pés de Chris para me certificar que ele ainda estava de tênis. Então começou a chorar e a soluçar, seu corpo tremendo na água enlameada fazendo-a respingar para os lados, dando socos no chão com as mãos fechadas e virando a cabeça de um lado para o outro. Teddy e Vern olharam para ele nervosos, pois ninguém jamais vira Chris Chambers chorar. Depois de alguns instantes, andei até a margem, subi e sentei num dos trilhos. Vern e Teddy me seguiram. Ficamos lá sentados, mudos, parecendo aqueles macacos das virtudes que se compra em lojas de souvenir barateiras e desarrumadas que sempre parecem à beira da falência.

       Vinte minutos se passaram até que Chris subiu a margem veio sentar-se ao nosso lado.

As nuvens haviam começado a dispersar-se. Raios de sol desciam por entre elas. Os arbustos pareciam ter ficado três vezes mais escuros nos últimos quarenta e cinco minutos. Estava todo coberto de lama de um lado. Seus cabelos, também enlameados, estavam arrepiados para cima. O único lugar limpo era ao redor dos olhos.

         - Você tem razão, Gordie - disse ele. - Ninguém tem direitos. Eles estão por toda parte, né?

         Assenti. Cinco minutos se passaram. Ninguém falava nada. E por acaso tive uma idéia - caso eles realmente chamassem a polícia. Desci a margem e fui até o lugar em que Chris estivera de pé. Ajoelhei-me e comecei a cavucar cuidadosamente a lama e a vegetação com os dedos.

         - O que você está fazendo? - perguntou Teddy, juntando-se a mim.

         - Está à esquerda, eu acho - disse Chris, e apontou.

         Olhei na direção e depois de alguns instantes encontrei as duas cápsulas do cartucho.

Brilhavam sob a fresca luz do sol. Entreguei-as a Chris. Balançou a cabeça e enfiou-as num bolso da calça jeans.

         - Agora vamos - disse Chris.

         - Ei, espera aí - Teddy gritou, realmente agoniado. - Eu quero levar ele.

         - Olha aqui, idiota - disse Chris. - Se levarmos ele podemos todos parar num reformatório. É o que Gordie falou. Aqueles caras podem inventar a história que quiserem. E se disserem que nós o matamos, hem? O que você acha?

         - Estou pouco ligando - disse Teddy, mal-humorado. Depois nos olhou com absurda esperança. - Além do mais, só vamos pegar uns meses. Como castigo. Quer dizer, só temos doze anos, não vão nos mandar para Shawshank.

       Chris disse tranqüilo:

       - Você não pode entrar para o exército se for fichado, Teddy.

       Eu tinha certeza de que aquilo não passava de uma mentira deslavada - mas de qualquer modo aquela não parecia a hora apropriada para dizer aquilo. Teddy ficou só olhando para Chris por um longo instante, sua boca tremia. Finalmente conseguiu desembuchar:

      - É verdade mesmo?

       - Pergunte a Gordie.

       Olhou para mim esperançoso.

       - Ele tem razão - disse eu, sentindo-me um merda. - Ele tem razão, Teddy. A primeira coisa que eles fazem quando você se alista é checar seus antecedentes criminais.

       - Meu Santo Deus!

       - Vamos nos mandar para aquela ponte - disse Chris. - Depois vamos sair do caminho dos trilhos e chegar em Castle Rock pelo outro lado. Se nos perguntarem onde estávamos, vamos dizer que fomos acamparem Brickyard Hill e nos perdemos.

         - Milo Pressman sabe muito bem - disse eu. - Aquele imbecil do Florida Market também.

Então vamos dizer que Milo nos assustou e resolvemos ir até Brickyard.

Concordei. Podia dar certo. Se Vern e Teddy se lembrassem de sustentar.

       - E se nossos pais se encontrarem? - perguntou Vern.

         - Você se preocupa com isso se quiser - disse Chris. - Meu pai ainda vai estar de porre.

         - Então vamos - disse Vern, olhando para as árvores entre nós e a Back Harlow Road.

Parecia estar esperando guardas com suas matilhas de pastores despontarem no meio das árvores a qualquer momento. - Vamos logo enquanto ainda está bom.

         Já estávamos de pé, prontos para partir. Os pássaros cantavam como loucos, felizes com a chuva, o sol, o brilho e os vermes e com tudo no mundo, pensei. Viramo-nos todos ao mesmo tempo, como que puxados por cordas, e olhamos de novo para Ray Brower.

       Continuava lá deitado, sozinho mais uma vez. Os braços dele tinham rolado quando o viramos, e agora parecia uma águia de asas abertas, como que reverenciando o sol. Na hora pareceu natural, tudo bem, mais uma cena de morte de um morto para uma platéia.Então vi os hematomas, o sangue duro no queixo e embaixo do nariz e o corpo começando a inchar. As moscas varejeiras tinham saído com o sol e começavam a cercar o corpo, zumbindo preguiçosas. Lembrei daquele cheiro gasoso, podre mas seco, feito puns abafados num lugar fechado. Era um garoto da nossa idade, estava morto, e rejeitei a idéia de que qualquer coisa ali pudesse ser natural; afastei-a com horror.

         - Muito bem - disse Chris, tentando ser duro, mas a voz saiu da garganta como pêlos secos de uma escova velha de roupa. - Já está mais do que na hora.

         Começávamos quase a correr de volta para onde tínhamos vindo. Não falávamos. Não sei os outros, mas eu estava entretido demais no meu pensamento para falar. Coisas me incomodavam no corpo de Ray Brower - incomodaram na época e incomodam agora.

       Um grande hematoma, o couro cabeludo esfolado, o nariz sangrando. Nada mais – pelo menos nada visível. Tem gente que sai de briga de bar em pior estado e vai direto beber. Mas o trem deve ter pego ele; por que outro motivo então os tênis estariam fora do pé daquele jeito? E como o maquinista não tinha visto? Não podia ser que o trem o tivesse batido e jogado longe, sem o matar? Achei que, pela combinação das circunstâncias, aquilo podia ter acontecido. O trem teria batido nele de lado com violência quando tentava sair da frente? Batido e jogado seu corpo, como num salto mortal de costas, naquele buraco. Deve ter ficado acordado tremendo no escuro durante horas, não só perdido, mas também desorientado, separado do mundo. Talvez tivesse morrido de medo. Um pássaro com as asas feridas uma vez morreu nas minhas mãos daquele mesmo jeito. Seu corpo tremeu e vibrou ligeiramente, ele abriu e fechou o bico e seus olhos escuros e brilhantes me olharam Então o tremor parou e o bico ficou meio aberto e os olhos tornaram-se opacos e indiferentes. Podia ter sido assim com Ray Brower. Podia ter morrido simplesmente porque tinha medo demais para continuar vivendo.

         Mas tinha outra coisa, que era a que mais me incomodava, eu acho. Ele tinha saído para colher uvas-do-monte. Parecia me lembrar de ter ouvido no noticiário que ele carregava um pote para colocá-las. Quando voltamos fui à biblioteca, procurei nos jornais só para ter certeza, e estava certo. Saíra para colher uvas-do-monte, e tinha um balde ou um pote - qualquer coisa assim. Mas não encontramos. Encontramos ele, e os tênis. Deve ter jogado fora em algum lugar entre Chamberlain e o caminho pantanoso onde morreu.

Talvez no início tenha começado a segurá-lo com mais força ainda, como se ele o ligasse à sua casa, à segurança. Mas quando o medo foi aumentando, e com a sensação de estar completamente sozinho sem chances de ser salvo por ninguém, a não ser por si mesmo, quando o pânico realmente se instalou, deve tê-lo jogado na floresta de um dos lados dos trilhos, sem nem perceber direito.

       Pensei em voltar e procurar - acha isso mórbido? Pensei em ir de carro até o final da Back Harlow Road na minha camioneta Ford quase nova e saltar, numa manhã ensolarada de verão, sozinho, minha mulher e meus filhos longe em algum lugar onde, se você aperta o interruptor, as luzes iluminam a escuridão. Pensei como seria. Tirar minha mochila lá de trás e deixá-la sobre o pára-choque traseiro enquanto tiro cuidadosamente a camisa e amarro-a na cintura. Passar repelente no peito e nos ombros e depois me enfiar na mata até o lugar pantanoso, o lugar onde o encontramos. Será que a grama cresceria amarelada ali, formando o desenho de seu corpo? Claro que não, não haveria sinais, mas mesmo assim você fica refletindo e percebe como é tênue a divisória entre suas roupas de homem racional - o escritor com sua jaqueta de veludo cotelê com couro nos cotovelos - e os alegres mitos da infância. Depois subir a margem, já coberta de mato, e seguir devagar os trilhos enferrujados com os dormentes podres, até Chamberlain.

       Fantasia idiota. Uma excursão para procurar uma vasilha de uvas-do-monte de vinte anos, que provavelmente foi jogada longe ou amassada por um trator que preparava um lote de meio acre de terra para uma casa com toda a extensão de terreno, ou tão coberta de mato que tornou-se invisível. Mas sinto com certeza que ainda está lá, em algum lugar ao longo da velha e tortuosa estrada de ferro da GS&WM, e às vezes o ímpeto de ir e olhar é quase frenético. Geralmente acontece de manhã cedo, quando minha mulher está no chuveiro e as crianças vendo Batman e Scooby-Doo no canal 38 de Boston, e sinto-me mais como o Gordon Lachance pré-adolescente que já pisou na terra, andando e falando e algumas vezes se arrastando como um réptil. Aquele garoto era eu, acho. E a idéia que tenho a seguir, me congelando como um. jato de água fria, é: de que garoto você está falando?

       Bebendo uma xícara de chá, vendo o sol entrar pelas janelas da cozinha, ouvindo o barulho da televisão numa ponta da casa e o chuveiro noutra, sentindo os olhos ardendo, sinal de que exagerei um pouco na cerveja na noite anterior, tinha certeza de que podia encontrá-la. Veria o metal claro cintilando no meio da ferrugem, o sol claro de verão refletindo-o em meus olhos. Desceria da margem, afastaria a - grama que crescera enrolada na alça e então... o quê? Ora, simplesmente revivê-la. Eu a reviraria várias vezes em minhas mãos, admirado com seu contato, maravilhado com a idéia de que a última pessoa a tocá-la há muito estava em sua cova. Imagine se tivesse um bilhete. Socorro, estou perdido. Claro que não teria - meninos não saem para colher uvas-do monte com lápis e papel - mas só imagine. Acho que o respeito que sentiria seria como um eclipse. Mesmo assim, acho que é principalmente a idéia de segurar o balde com minhas duas mãos - um símbolo da minha vida e da morte dele, uma prova de que sei que garoto era - qual de nós cinco. Segurá-lo. Lendo todos os anos em sua ferrugem e no esmaecimento de seu brilho. Sentindo-o, tentando entender os sóis que brilharam sobre ele, as chuvas que caíram em cima dele e as neves que o cobriram. E pensar onde eu estava quando cada coisa aconteceu com ele naquele lugar solitário, onde eu estava, o que estava fazendo, quem estava amando, como ia de vida, onde estava. Ia segurá-lo, lê-lo, senti-lo... e olhar meu próprio rosto onde quer que haja sobrado brilho. Dá pra entender?

           Chegamos de volta a Castle Rock pouco depois das cinco horas da manhã de domingo, na véspera do Dia do Trabalho. Tínhamos andado a noite inteira. Ninguém reclamou, embora todos estivessem com bolhas nos pés e com uma fome voraz. Minha cabeça latejava com uma dor lancinante, minhas pernas estavam doloridas e cansadas. Por duas vezes tivemos que pular da margem dos trilhos por causa dos trens. Um deles ia na nossa direção, mas veloz demais para que pudéssemos pegá-lo. Estava começando a clarear quando chegamos novamente, à ponte sobre o Castle. Chris olhou-a, olhou o rio, olhou para nós.

         - Dane-se Vou atravessar. Se um trem me pegar não vou precisar me preocupar com o babaca do Ace Merrill.

         Atravessamos - nos arrastamos, seria a melhor palavra. Nenhum trem apareceu. Quando chegamos ao despejadouro, pulamos a cerca (nem Milo nem Chopper, não a essa hora, e não numa manhã de domingo) e fomos direto até o poço. Vern foi o primeiro, depois cada vez um de nós colocava a cabeça sob o jato gelado, fazendo a água espirrar em nossos corpos, bebendo até não agüentar mais. Então tivemos que vestira camisa de novo, pois a manhã parecia gelada. Andamos - mancando - de volta para a cidade e paramos um pouco na calçada em frente ao terreno baldio. Olhamos para nossa casa na árvore para não precisarmos olhar uns para os outros.

       - Bem - disse Teddy, por fim - a gente se vê no colégio na quarta. Acho que vou dormir até lá.

       - Eu também - disse Vern. - Estou mortinho.

       Chris assoviara desafinado por entre os dentes e não falou nada.

       - Ei, pessoal - disse Teddy, sem jeito. - Nada de desânimo, está bem?

       - Não - disse Chris, e de repente seu rosto sério e cansado iluminou-se com um sorriso doce. - Conseguimos, não foi? Pegamos os idiotas.

       - É - disse Vern. - Você é o máximo. Agora Billy vai me pegar.

       - E daí? - disse Chris. - O Richie vai me pegar e o Ace provavelmente vai pegar o Gordie e alguém vai pegar o Teddy. Mas nós conseguimos.

       - É mesmo - disse Vern. Mas ainda parecia infeliz.

       Chris me olhou.

       - Conseguimos, não foi? - perguntou com suavidade. Valeu a pena, não valeu?

      - Claro que sim - disse eu.

       - Que droga - disse Teddy, com seu jeito seco de quem está perdendo o interesse. - Vocês parecem do programa Encontro com a Imprensa. Toquem aqui. Vou para casa ver se estou na lista dos Dez Mais Procurados da mamãe.

       Todos nós rimos, e Teddy nos lançou aquele seu olhar surpreso e apertamos sua mão.

       Então ele e Vern foram na direção deles e eu deveria ter ido na minha... mas hesitei.

       - Vou com você - ofereceu-se Chris.

       - Claro, está bem.

       Andamos mais de um quarteirão sem falar. Castle Rock estava impressionantemente quieta cedo pela manhã, e tive uma sensação quase sagrada de que o cansaço estava indo embora. Estávamos acordados e o mundo inteiro dormia, e quase esperei virar a esquina e ver minha corça parada no final da Carbine Street, onde os trilhos da GS&WM cruzam o terreno de descarga do moinho.

       Finalmente Chris falou:

       - Eles vão contar - disse ele.

       - Pode apostar que sim. Mas não hoje nem amanhã, se está preocupado com isso. Acho que vão demorar muito a contar. Talvez anos.

       Olhou para mim, surpreso.

       - Estão com medo, Chris. Principalmente Teddy, com medo de não ser aceito no Exército. Mas Vern também está. Vão perder o sono, e às vezes vão estar com aquilo na ponta da língua para contar a alguém, mas não acho que façam isso. Então... sabe o que vai acontecer? Parece maluquice, mas... acho que quase vão esquecer o que aconteceu.

       Ele balançava a cabeça devagar.

       - Não pensei assim. Você vê dentro das pessoas, Gordie.

       - Quem me dera, cara.

       - É, sim.

       Andamos outro quarteirão em silêncio.

         - Nunca vou sair desta cidade - disse Chris, e suspirou. Quando você voltar da faculdade nas férias de verão vai poder visitar Vern e Teddy e eu, no Sukey's depois do turno das sete às três. Se voce quiser. Só que provavelmente você nunca vai querer. - Deu uma risada esganiçada.

       - Pare de imaginar coisas - disse eu, tentando parecer mais frio do que me sentia – estava pensando na floresta, em Chris dizendo: E ta/vez eu o tenha entregue à Sra. Simons e dito a ela, e talvez o dinheiro estivesse lá e mesmo assim fui suspenso por três dias, porque o dinheiro nunca apareceu. E talvez na semana seguinte a Sra. Simons tenha aparecido no colégio com aquela saia novinha... O olhar. A expressão de seus olhos.

       - Nada de imaginar coisas, senhor - disse Chris.

       Esfreguei o indicador no polegar.

       - Este é o menor violino do mundo tocando "Meu Coração se Desmancha em Mijo Roxo por Você".

         - Ele era nosso - disse Chris, seus olhos escuros à luz da manhã.

         Tínhamos chegado à esquina da minha rua e ali paramos. Eram seis e quinze. Na cidade vimos o caminhão do Sunday Telegram parado em frente à loja do tio de Teddy. Um homem de jeans e camiseta jogou um pacote de jornais. Caiu de cabeça para baixo na

calçada com as histórias em quadrinhos aparecendo (sempre Dick Tracy e Belinda na primeira página). Então o caminhão seguiu, o motorista entregando o mundo exterior às outras cidadezinhas do caminho - Otisfield, Norway-South. Paris, Waterford, Stoneham.

         Queria dizer mais uma coisa a Chris e não sabia como.

         - Toca aqui, cara - disse ele, parecendo cansado.

         - Chris...

          - Toca aqui.

         Apertei-lhe a mão.

           - Te vejo depois.

           Ele riu - o mesmo sorriso largo e doce.

           - Não se eu te vir primeiro, otário.

           Seguiu, ainda rindo, movendo-se com leveza e graça, como se não estivesse com dores e bolhas como eu, como se não tivesse mordidas inflamadas de mosquitos, carrapatos e borrachudos como eu. Como se não tivesse uma preocupação na vida, como se estivesse indo para um lugar incrível, e não para sua casa de três cômodos (seu barraco; seria mais próximo da verdade) sem encanamento e janelas quebradas cobertas com plástico e um irmão que provavelmente o esperava na porta. Mesmo se tivesse sabido o que dizer, provavelmente não teria podido dizer. As palavras destroem as funções de amor, eu acho - é horrível para um escritor dizer isso, mas acredito que seja verdade. Se você diz a uma corça que não vai lhe fazer mal, ela vai embora abanando o rabo. A palavra é o mal. O amor não é o que esses poetas idiotas como McKuen querem que você pense que é. O amor tem dentes; morde; as feridas nunca cicatrizam. Nenhuma palavra, nenhuma combinação de palavras pode fechar essas mordidas de amor. É o inverso, isso é que é engraçado. Se essas feridas secam, as palavras morrem com elas. Mire-se em mim, fiz minha vida das palavras, e sei que é assim.

         A porta de trás estava trancada, então peguei a chave sobressalente embaixo do capacho e entrei. A cozinha estava vazia, silenciosa, suicidantemente limpa. Ouvi o zumbido das luzes fluorescentes em cima da pia quando apertei o interruptor. Havia literalmente anos que não ficava frente a frente com minha mãe; nem me lembrava mais da última vez que isso acontecera.

         Tirei a camisa e coloquei na cesta de plástico atrás da máquina de lavar. Peguei um pedaço de pano limpo embaixo da pia e passei no rosto, pescoço, axilas, barriga. Depois tirei as calças e cocei os testículos até começarem a doer. Parecia que não podia ficar bem limpo naquele lugar, embora a marca vermelha deixada pela sanguessuga estivesse rapidamente desaparecendo. Até hoje tenho uma pequena cicatriz em forma de lua crescente nesse lugar. Uma vez minha mulher perguntou sobre ela e eu disse uma mentira, antes mesmo de perceber que queria fazê-lo.

           Quando acabei de usar o pano, joguei-o fora. Estava nojento.

           Peguei uma dúzia de ovos e fiz seis mexidos. Quando ainda estavam meio moles, acrescentei um pouco de abacaxi amassado e meio copo de leite. Estava sentando para comer quando mamãe entrou, os cabelos grisalhos presos para trás num coque. Vestia um robe rosa desbotado e fumava um Camel.

         - Gordon, por onde você andou?

         - Acampando - disse eu, começando a comer. - Começamos no jardim de Vern e depois subimos o morro de Brickyard A mãe de Vern disse que ia telefonar para você. Ela telefonou?

         - Provavelmente falou com seu pai - disse ela, e passou por mim indo até a pia. Parecia um fantasma cor-de-rosa. As lâmpadas fluorescentes não lhe eram favoráveis ao rosto; faziam sua pele ficar quase amarela. Suspirou... quase soluçou. - Sinto mais a falta de Dennis pela manhã - disse ela. - Olho o quarto dele e está sempre vazio, Gordon. Sempre.

         - É, é uma droga - disse eu.

         - Sempre dormia com a janela aberta e os cobertores... Gordon? Disse alguma coisa?

         - Nada importante, mãe. e os cobertores puxados até o queixo - finalizou. Então ficou olhando pela janela, de costas para mim. Continuei a comer. Meu corpo todo tremia.

       A história realmente nunca foi comentada.

       Bem, não estou dizendo que o corpo de Ray Brower não tenha sido encontrado; foi.

Mas nem nossa turma nem a deles levou o mérito. No fim, Ace deve ter achado que uma chamada anônima era a saída mais segura, pois foi assim que a localização do corpo foi notificada. O que estava dizendo é que nossos pais nunca souberam o que fizemos no fim de semana do Dia do Trabalho.

       O pai de Chris continuava bebendo como Chris dissera. Sua mãe fora a Lewiston encontrar a irmã, como sempre fazia quando o Sr. Chamberiain estava de porre. Foi e deixou Eyeball tomando conta dos irmãos menores. Eyeball cumpriu a ordem saindo com Ace e os disc-jóqueis, deixando Sheldon, de nove anos, Emery, de cinco e Deborah, de dois, se afogarem ou nadarem sozinhos.

       A mãe de Teddy ficou preocupada na segunda noite e telefonou para a mãe de Vern. A mãe de Vern, que também não ia se dar ao trabalho, disse que ainda estávamos na barraca de Vern. Sabia porque tinha visto a luz acesa na noite anterior. A mãe de Teddy disse que realmente esperava que não estivéssemos fumando cigarros, e a mãe de Vern disse que parecia a luz de uma lanterna, e além de tudo tinha certeza que nenhum dos amigos de Vern e Billy fumava.

         Meu pai me fez algumas vagas perguntas, ficando preocupado com minhas respostas evasivas, disse que iríamos sair para pescar juntos qualquer hora, e isso foi tudo. Se os pais tivessem se encontrado na semana seguinte ou na outra, tudo teria se revelado... mas não se encontraram.

         Milo Pressman nunca falou nada também. Minha suposição é que pensou que seria nossa palavra contra a dele, e que íamos jurar que mandara Chopper me morder.

         Assim a história nunca veio a público - mas não termina aqui.

         Um dia perto do final do ano, quando voltava da escola para casa, um Ford preto 52 me fechou em cima da calçada em que eu estava andando. Não tinha dúvidas quanto ao carro. Pneus tipicamente de gângsters, de banda branca, rodas com o centro de metal removível, enormes pára-choques de cromo e de lucite com uma rosa encravada presa no volante. No porta-malas traseiro tinha pintados um diabo e um valete de um olho só. Embaixo, em letras góticas, as palavras CARTA SELVAGEM.

         As portas se abriram; Ace Merrill e Fuzzy Bracowicz saíram.

           - Marginalzinho barato, não é? - disse Ace, com seu sorriso gentil. - Minha mãe adora o jeito que eu faço, não é?

           - A gente vai te torturar, bonzinho - disse Fuzzy.

           Joguei meus livros no chão e saí correndo. Dei tudo de mim, mas eles me pegaram antes mesmo de chegar no fim do quarteirão. Ace pulou em cima de mim e eu caí de cara no chão. Bati com o queixo no cimento e não vi somente estrelas; vi constelações inteiras, nebulosas completas. Já estava chorando quando me levantaram - não tanto pela dor nos cotovelos e joelhos, esfolados e sangrando, nem mesmo de medo, mas por uma raiva enorme, impotente. Chris tinha razão. Ele devia ser nosso.

           Me virei e me debati e quase escapei. Então Fuzzy enfiou os joelhos nos meus testículos. A dor foi absurda, inacreditável, sem igual; ampliou a dor de uma tela normal antiga de televisão para um VistaVision. Comecei a gritar. Gritar parecia ser a melhor solução.

           Ace me atingiu duas vezes no rosto, dois murros violentos e tonteantes. O primeiro fez meu olho esquerdo fechar; levei quatro dias para ver alguma coisa por ele de novo. O segundo quebrou o meu nariz com o barulho que cereais torrados fazem dentro da cabeça quando você mastiga. Então a Sra. Chalmers apareceu na varanda com a bengala na mão, torta de artrite e um cigarro pendendo do canto da boca. Começou a gritar para eles:

         - Ei, ei meninos! Parem com isso! Polícia! Políííííícia!

         - Não deixa eu te ver por aí, babaca - disse Ace, rindo, e me largaram e se afastaram.

Sentei e me curvei com as mãos nos testículos machucados, certo que ia desistir e morrer. E estava chorando também. Mas quando Fuzzy começou a me rondar, a visão das pernas justas de sua calça jeans para dentro das botas de motoqueiro trouxe à tona toda a raiva. Segurei-o e mordi sua batata da perna por cima da calça. Mordi com toda a força que tinha. Fuzzy começou também a gemer. E começou a pular numa perna só e, inacreditavelmente, começou a me chamar de lutador covarde. Estava olhando ele pular quando Ace pisou na minha mão esquerda, quebrando os dois primeiros dedos. Ouvi quando quebraram. Não fizeram barulho de cereal torrado. Fizeram barulho de rosca salgada. Então Ace e Fuzzy voltaram para o Ford 52 de Ace, Ace saltitando com as mãos nos bolsos e Fuzzy mancando e me xingando por cima do ombro. Fiquei caído curvado na calçada, chorando. Tia Ewie Chalmers saiu de casa e veio andando, batendo a bengala no chão com raiva. Perguntou se eu precisava de um médico. Sentei e consegui parar a maior parte do choro. Eu disse que não.

         - Diabos - disse berrando - a tia Ewie era surda e falava tudo berrando. - Eu vi onde aquele cavalo acertou você. Meu filho, suas bolas vão inchar e ficar parecendo duas jarras.

           Levou-me para sua casa, me deu um pano molhado para o nariz - a essa altura já começava a parecer uma abóbora - e me serviu uma grande xícara de café com gosto de remédio que foi até calmante. Ficava berrando dizendo que devia chamar o médico e eu dizia que não. Finalmente desistiu e eu fui para casa. Caminhei lentamente. Minhas bolas ainda não estavam parecendo duas jarras, mas iam parecer.

         Minha mãe e meu pai me olharam e reclamaram na hora para falar a verdade, fiquei até surpreso por terem percebido alguma coisa. Quem eram os garotos? Será que eu saberia identificá-los? Essa foi do meu pai, que nunca perdia Cidade Nua e Os Intocáveis. Eu disse que achava que não saberia identificá-los. Disse que estava cansado. Na verdade, acho que estava em estado de choque - e mais que calmo com o café da tia Ewie, que devia ter pelo menos sessenta por cento de conhaque de qualidade superior. Disse que achava que deviam ser de outra cidade ou "do norte" uma expressão que todos sabiam querer dizer Lewiston-Aurburn.

           Levaram-me ao Dr. Clarkson na camioneta - o Dr. Clarkson, que está vivo até hoje, naquela época já podia muito bem estar sentado ao lado de Deus. Colocou meu nariz e meus dedos no lugar e deu a receita de um analgésico para minha mãe. Depois os fez sair da sala de exame sob algum pretexto e se aproximou de mim, arrastando os pés, a cabeça para frente como Boris Karloff se aproximando de Igor.

         - Quem fez isso, Gordon?

         - Não sei, Dr. Clar...

         - Você está mentindo.

         - Não, senhor.

         Suas bochechas amareladas começaram a tomar cor.

         - Por que está protegendo os cretinos que fizeram isso? Acha que vão respeitar você?

Vão rir e chamá-lo de idiota. Vão dizer: "Lá vai o idiota que a gente pegou outro dia.

Ha-ha-ha! Hu-hu-hu!

         - Não conhecia eles. É verdade.

         Vi que suas mãos coçavam para me sacudir, mas claro que não podia fazer aquilo.

Então me mandou para meus pais, balançando a cabeça branca e resmungando sobre os delinqüentes juvenis. Com certeza contaria tudo ao seu velho amigo Deus, de noite, entre charutos e copos de xerez.

         Não me importava que Ace, Fuzzy e aqueles outros babacas não me respeitassem e me achassem idiota ou qualquer coisa. Mas tinha que pensar em Chris. Seu irmão, Eyeball, tinha quebrado seu braço em dois lugares e o deixara com cara de lutador de boxe. Tiveram que reduzir a fratura do cotovelo com um pino de aço. A cera. McGinn, que morava mais embaixo na rua, viu Chris andar mancando com os dois ouvidos sangrando e lendo uma revista em quadrinhos. Levou-o para o Pronto-Socorro e disse ao médico que ele caíra na escada do porão escuro.

       - Certo - disse o médico, tão aborrecido com Chris quanto o Dr. Clarkson comigo, e foi telefonar para a polícia.

       Enquanto fazia isso de sua sala, Chris foi andando pelo hall devagar, segurando a tipóia temporária para que o braço não mexesse e os ossos quebrados não se esfarelassem, e usou uma moeda de cinco centavos para telefonar para a Sra. McGinn - depois me contou que foi a primeira chamada a cobrar que fez e estava morrendo de medo que ela não aceitasse pagar, mas aceitou.

       - Chris, você está bem? - perguntou.

       - Estou, obrigado - disse Chris.

       - Sinto muito não ter podido ficar com você, Chris, mas tinha tortas no...

       - Tudo bem, Sra. McGinn - disse Chris. - A senhora está vendo o Buick na frente da porta? - O Buick era o carro que a mãe de Chris dirigia. Tinha dez anos, e quando o motor esquentava tinha cheiro de fritura.

       - Está lá - disse ela, cautelosa. Melhor não se envolver muito com os Chambers.

Espelunca de brancos; casebre irlandês.

       - A senhor poderia ir lá dizer à mamãe para tirara lâmpada do bocal do sótão?

       - Chris, verdade, minhas tortas...

       - Diga a ela - disse Chris, implacável, - agora. A não ser que queira que meu irmão vá preso.

       Houve uma longa pausa e então a Sra. McGinn concordou. Não fez perguntas e Chris não mentiu. Os policiais realmente foram à casa dos Chambers, mas Richie Chambers não foi preso.

       Vern e Teddy também apanharam, mas não tanto quanto Chris e eu. Billy estava esperando Vern quando ele chegou em casa. Deu um pulo em cima dele, que caiu e ficou inconsciente e só recobrou os sentidos depois de quatro ou cinco tapas. Vern só ficou desacordado, mas Billy teve medo que ele morresse e parou. Três deles pegaram Teddy quando voltava do terreno baldio para casa certa tarde. Deram-lhe um soco e quebraram seus óculos. Resistiu, mas eles não iam lutar contra ele quando perceberam que os procurava como um cego.

         Encontramo-nos no colégio parecendo os últimos remanescentes de uma força coreana. Ninguém sabia ao certo o que tinha acontecido, mas todos viam que tínhamos tido um sério encontro com os caras mais velhos e que nos comportáramos como homens. Alguns boatos correram. Todos completamente disparatados.

         Quando os cascões caíram e os hematomas sumiram, Vern e Teddy se afastaram.

Haviam descoberto um novo grupo de meninos da mesma idade deles em quem podiam

mandar. Quase todos uns idiotas - babacas mesquinhos do quinto ano - mas Vern e Teddy levavam eles toda hora na casa da árvore, dando ordens, andando empertigados como generais nazistas.

         Chris e eu começamos a aparecer cada vez menos por lá, e após um tempo o lugar ficou sendo deles por desistência. Lembro de ter ido lá uma vez na primavera de 1961 e percebido que o lugar estava com cheiro de feno abafado. Nunca mais me lembro de ter

ido lá. Teddy e Vern aos poucos foram se tornando mais duas caras conhecidas nos corredores e nos intervalos das três e meia. Dizíamos "oi" a distância. Era tudo. Isso

acontece. Os amigos entram e saem da nossa vida como serventes de restaurante, já reparou? Mas quando penso naquele sonho, os corpos embaixo d'água puxando insistentemente minhas pernas, parece certo que tenha sido assim. Algumas pessoas afundam, é isso. Não é justo, mas acontece Algumas pessoas afundam.

       Vern Tessio morreu num incêndio num conjunto habitacional em Lewinston em 1966 - acho que no Brooklyn e no Bronx chamam esse tipo de apartamento de cortiço. O Corpo de Bombeiros disse que o fogo começou por volta de duas horas da manhã e quando clareou o dia só restavam cinzas do prédio. Tinha havido uma festa e muitos ficaram bêbados; Vern estava lá. Alguém dormiu com um cigarro aceso. O próprio Vern talvez, desligado sonhando com seus centavos. Identificaram ele e mais quatro pela arcada dentária.

         Teddy partiu num horrível desastre de carro. Acho que foi em 1971, talvez no começo de 1972. Quando eu era adolescente havia um ditado que dizia: "Se você sai sozinho é um herói. Se leva .alguém é um imbecil". Teddy, que desde que tivera idade para querer alguma coisa, só queria se alistar, foi recusado pela Aeronáutica. Qualquer um que visse seus óculos e o seu aparelho de surdez saberia que isso ia acontecer - menos ele. No primeiro ano do segundo grau foi suspenso três vezes porque chamou o Conselho de Supervisores de um saco de merda mentiroso. O diretor o via quase todo dia verificando o quadro de avisos sobre empregos na sua área. Ele disse a Teddy que talvez devesse pensar em outra carreira, e Teddy ficou furioso.

       Repetiu um ano por faltas constantes, atrasos e notas baixas... mas conseguiu se formar. Tinha um Chevrolet Bel Air antigo e costumava aparecer nos lugares em que Ace, Fuzzy e o resto apareciam antes dele: no salão de sinuca, no clube, na Sukey's Tavern, que acabou, e no Mellow Tíger, que ainda existe. As vezes arrumava trabalho no Departamento de Obras Públicas de Castle Rock, para tapar buracos com asfalto.

       O acidente aconteceu em Harlow. O Bel Air de Teddy estava cheio de amigos (dois deles daquela turma em que ele e Vern mandavam em 196O1 e fumavam maconha e bebiam. Bateram num hidrante que foi arrancado e o Chevrolet capotou seis vezes. Uma garota saiu clinicamente viva. Ficou seis meses no C.T.C.N., como dizem as enfermeiras do Hospital Central do Maine - Centro de Tratamento de Couves e Nabos. Então algum fantasma consternado desligou o aparelho respiratório. Teddy Duchamp recebeu o título póstumo de Imbecil do Ano.

         Chris começou a freqüentar os cursos de preparação para a faculdade no segundo ano do ginásio - ele e eu sabíamos muito bem que se esperasse mais tempo seria tarde demais, nunca pegaria. Todos o censuravam por isso; seus pais, que achavam que estava ficando metido a besta, seus amigos, a maioria dos quais o achava um fresco, o orientador, que não acreditava que ele fosse capaz e quase todos os professores, que não gostavam de seu jeito de surgir de repente na sala de aula com seu topete, sua jaqueta de couro e botas. Via-se que aquelas botas e a jaqueta cheia de zíperes os ofendia, num ambiente de aulas tão nobres quanto Álgebra, Latim e Ciências; aqueles trajes eram só para aulas elementares. Chris sentava-se entre os meninos e meninas bem vestidos e animados das famílias de classe média de Castle View e Brickyard Hill feito um monstro silencioso que a qualquer momento podia devorá-los, com um horrível barulho, com seus mocassins, gotinhas pequenas abotoadas até em cima e tudo.

           Por várias vezes quase desistiu naquele ano. Seu pai principalmente o pressionava, acusando-o de achar que era melhor que ele, acusando-o de querer "ir para a faculdade e me levar à falência". Uma vez quebrou uma garrafa de vinho na parte de trás da cabeça de Chris e ele foi parar outra vez no Pronto-Socorro, onde levou quatro pontos no couro cabeludo. Seus antigos amigos, a maioria dos quais estava se especializando em Fumo, o vaiava na rua. O orientador insistia para que freqüentasse pelo menos algumas aulas básicas para não ser eliminado na primeira fase. O pior de tudo era o seguinte: ele não estudara nada nos sete primeiros anos na escola pública e agora as conseqüências eram graves.

         Estudávamos juntos quase todas as noites, às vezes durante seis horas seguidas. Eu sempre saía dessas sessões exausto, e às vezes também assustado - assustado com sua incrível raiva ao constatar como as conseqüências tinham sido fatalmente graves. Antes mesmo de começar a entender Introdução à Álgebra, tinha que reapreender fração, já que ele, Teddy e Vern tinham passado o quinto ano todo jogando porrinha. Antes mesmo de começar a entender Pater noster qui est in caelis, teve que aprender o que eram substantivos, preposições e objetos. Dentro de sua gramática, em letras bem legíveis, estava escrito FODA-SE O GERÚNDIO . Suas idéias para redação eram boas e não eram mal organizadas, mas sua gramática era ruim e praticamente destruía a pontuação. Andava sempre com sua gramática e comprou uma outra numa livraria de Portland - foi seu primeiro livro de capa dura e virou uma espécie de Bíblia para ele.

         Mas no nosso primeiro ano do segundo grau ele foi aceito. Nenhum de nós se classificou entre os primeiros, mas eu fiquei em sétimo e Chris em décimo nono. Nós dois fomos aceitos para a Universidade de Maine, mas eu fiquei no campus de Orono e Chris no de Portland. Introdução ao Direito, já pensou? Mais latim.

         Nós dois namoramos no segundo grau mas nenhuma garota nos afastou. Parece que viramos bichas? Parecia para a maioria dos nossos antigos amigos, inclusive para Vern e Teddy. Mas era apenas uma questão de sobrevivência. Estávamos agarrados um ao outro embaixo d'água. Falo em relação a Chris, acho; meus motivos para agarrar-me a ele eram menos definidos. Sua vontade de sair de Castle Rock e afastar-se da rotina me pareciam minha principal função, e eu não podia deixá-lo afundar nem nadar sozinho. Acho que se tivesse afundado, parte de mim teria afundado com ele.

        Quase no final de 1971, Chris entrou numa lanchonete em Portland para comprar um sanduíche. Na sua frente dois homens começaram a discutir de quem era o lugar na fila.

Um deles puxou uma faca. Chris, que sempre fora o melhor entre nós para promover as pazes, entrou no meio deles e levou uma facada na garganta. O homem da faca tinha cumprido pena em quatro penitenciárias diferentes; tinha saído da Prisão Estadual de Shawshank na semana anterior. A morte de Chris foi quase instantânea.

       Li nos jornais - Chris estava no segundo ano da faculdade. Eu estava casado há um ano e meio e dava aulas de inglês para o segundo grau. Minha mulher estava grávida e eu tentava escrever um livro. Quando li a notícia - ESTUDANTE ESFAQUEADO EM RESTAURANTE DE PORTLAND - disse à minha mulher que ia tomar um milkshake.

Fui de carro até o campo, estacionei e chorei por ele. Acho que chorei quase meia hora. Não poderia ter feito aquilo na frente de minha mulher, de tanto que a amo. Teria sido frescura.

       Eu?

       Sou escritor hoje em dia, como disse. Muitos críticos acham que escrevo bobagens.

Quase sempre acho que têm razão... mas até hoje acho estranho escrever as palavras "Escritor Anônimo" no espaço reservado à profissão dos formulários que se tem que preencher nas compras a crédito e nos consultórios médicos. Minha história parece tanto um conto de fadas que é absurda.

       Vendi o livro, que foi transformado em filme, e o filme recebeu boas críticas e foi um sucesso absoluto. Isso tudo aconteceu quando eu tinha vinte e seis anos. O segundo livro também virou filme, como o terceiro. Eu disse - é absurdo. No entanto, minha mulher não parece se importar por eu ficar em casa e temos três filhos agora. Todos me parecem perfeitos, e estou quase sempre feliz.

       Mas como eu disse, escrever não é mais tão fácil nem divertido como costumava ser. O telefone toca a toda hora. As vezes tenho dores de cabeça terríveis e preciso deitar num quarto escuro até passarem. Os médicos dizem que não é enxaqueca; dizem que é estresse e me mandam relaxar. As vezes me preocupo comigo. Que hábito idiota esse... no entanto não consigo deixá-lo. E penso se realmente há sentido no que estou fazendo ou no que devo fazer por um mundo onde alguém pode ficar rico brincando de "faz de conta".

       Mas é engraçado como encontrei Ace novamente. Meus amigos estão mortos, mas Ace está vivo. Vi-o saindo do estacionamento do moinho depois do toque das três horas na última vez que levei meus filhos para verem meu pai.

       O Ford 52 era agora uma camioneta Ford 77. Um adesivo desbotado no pára-choque dizia REAGAN/BUSH 1980. Seus cabelos estavam curtos e tinha engordado. As feições argutas e belas que eu lembrava estavam enterradas numa avalanche de peles. Eu tinha deixado as crianças com meu pai enquanto ia comprar jornal. Eu estava em pé na esquina de Maine com Carbine e ele me olhou enquanto eu esperava para atravessar. Não houve sinal de reconhecimento no rosto desse homem de trinta e dois anos que quebrara meu nariz em outra dimensão de tempo.

       Vi que entrou com a camioneta Ford no estacionamento sujo ao lado do Mellow Tiger, coçou-se por cima da calça e entrou. Podia imaginar o tipo estrito do caipira ao abrir a porta, o cheiro meio azedo de bebida no barril, as saudações dos outros freqüentadores assíduos quando fechou a porta e instalou seu grande traseiro na mesma banqueta que provavelmente o sustentara pelo menos três horas por dia de sua vida - exceto aos domingos desde os vinte e um anos.

         Pensei: Então é isso que Ace é agora.

         Olhei para a esquerda e depois do moinho vi o Rio Castle, não tão largo mas um pouco mais limpo, ainda correndo sob a ponte entre Castle Rock e Harlow. A ponte mais acima foi demolida, mas o rio ainda existe. E eu também.

 

Para Peter e Susan Straub

Inverno No Clube

 

                                   O Método Respiratório

 

                                         1 O Clube

         Reconheço que me vesti um pouco mais depressa que o normal naquela noite em que nevava e ventava muito. Era 23 de dezembro de 1970, e imagino que outros membros do clube tenham feito o mesmo. Todos sabem como é difícil achar um táxi em Nova Iorque em noites de tempestade, por isso chamei um rádio-táxi. Telefonei às 5:30 h, pedindo um carro para as 8:00 - minha mulher ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada. As quinze para as oito estava sob a marquise do edifício na Rua 58 Leste, onde Ellen e eu morávamos desde 1946, e quando o táxi já estava atrasado cinco minutos comecei a andar de um lado para o outro impacientemente.

       O táxi chegou às 8:10h e entrei no carro, feliz demais por estar protegido do vento para demonstrar minha fúria contra o motorista, que certamente mereceria. Aquele vento, parte de uma frente fria que havia descido do Canadá na véspera, não era brincadeira.

Assoviava e gemia nas janelas do carro, por vezes abafando a valsa que tocava no rádio do motorista e sacudindo o grande Checker em suas molas. Muitas lojas estavam abertas, mas nas calçadas só restavam uns poucos fregueses de última hora. As pessoas que estavam do lado de fora não pareciam nada à vontade, ou melhor, suas expressões eram de sofrimento.

       O vento e a neve haviam sido intermitentes o dia todo, e agora nevava outra vez, começando com pequenos flocos e depois formando redemoinhos à nossa frente no meio da rua. Ao voltar para casa aquela noite, eu pensaria na associação de neve, de um táxi e da cidade de Nova Iorque com uma apreensão consideravelmente maior... mas obviamente eu ainda não sabia disso.

       Na esquina da Segunda Avenida com a Rua 41 um enorme sino de Natal de ouropel pairava como um fantasma.

       - Que noite horrível - disse o motorista. - Amanhã vão ter duas dúzias extras no necrotério. Picolés de bêbados. Mais alguns picolés de putas velhas.

       - Com certeza.

       O motorista pensou por um instante.

       - Bons ventos os levem - disse ele, finalmente. - Menos ônus para a previdência social, certo?

       - O seu espírito natalino - disse eu, - é formidável.

       O motorista refletiu:

     - O senhor é um desses liberais com coração de manteiga? perguntou ele, afinal.

       - Recuso-me a responder, porque minha resposta poderia me incriminar - disse eu.

O motorista bufou como quem diz "por que eu sempre apanho espertinhos"... mas ficou quieto.

       Ele me deixou na esquina da Segunda Avenida com a Rua 35, e andei metade do quarteirão até o clube, encurvado contra o vento que assoviava, segurando com a mão enluvada o chapéu na cabeça. Pouquíssimas vezes a força da vida pareceu ter sido atirada para o fundo do meu corpo, restando uma chama bruxuleante azul do tamanho da chama piloto de um fogão a gás. Aos setenta e três anos o homem sente frio mais rápida e profundamente. Este homem deveria estar em casa em frente à lareira... ou pelo menos em frente a um aquecedor elétrico. Aos setenta e três anos o sangue quente não é nem mesmo uma lembrança; está mais para um registro teórico.

       A ventania estava cessando, mas uma neve seca como areia ainda batia no meu rosto.

Fiquei satisfeito ao ver que os degraus do prédio n° 249 B haviam sido cobertos de areia - isto era obra de Stevens, é claro, - Stevens conhecia muito bem a alquimia básica da velhice: não a transformação do chumbo em ouro, e sim de ossos em vidro. Quando penso nessas coisas, acredito que Deus provavelmente pense de modo bem semelhante a Groucho Marx.

       Lá estava Stevens, segurando a porta aberta, e no instante seguinte eu estava lá dentro.

Passei pelo vestíbulo apainelado de mogno, pelas portas duplas parcialmente abertas e presas, e entrei na biblioteca, que era ao mesmo tempo sala de leitura e bar. Era uma sala escura em que brilhavam alguns focos de luz - as luzes de leitura. Uma luz mais intensa e distinta brilhava no soalho de carvalho parquetado, e eu podia ouvir os constantes estalos da madeira na imensa lareira. O calor se propagava por toda a sala - certamente não há nada mais acolhedor do que uma lareira acesa. Ouvi o barulho farfalhante de um jornal sendo dobrado com impaciência. Deveria ser Jahanssen com seu Wall Street Journal. Depois de dez anos era possível constatar sua presença simplesmente pela maneira que lia sobre suas ações. De uma maneira divertida e sossegada.

         Stevens ajudou-me a tirar o sobretudo, resmungando da noite horrível que fazia; a WCBS anunciava agora a previsão de muita neve até o amanhecer.

         Concordei que era sem dúvida uma noite horrível e olhei para trás outra vez para aquela enorme sala de pé-direito alto. Uma noite horrível, uma lareira exuberante... e uma história de fantasmas. Eu disse que aos setenta e três anos sangue quente era coisa do

passado? Talvez. Mas eu senti alguma coisa cálida em meu peito ao pensar em... algo que não fora causado pelo fogo ou pela nobre recepção de Stevens.

         Acho que foi porque era a vez de McCarron contar a história.

         Eu havia freqüentado o prédio de arenito pardo de número 249 B da Rua 35 durante dez anos - em intervalos que eram quase - mas não absolutamente - regulares. Na minha opinião, trata-se de um "clube de cavalheiros", esta surpreendente antigüidade pré-Gloria Steinem. Mas mesmo agora não tenho certeza se é isso mesmo, ou como veio a ser originalmente.

       Na noite em que Emlyn McCarron contou sua história - a história do Método Respiratório - talvez houvesse treze membros ao todo, embora apenas seis de nós tivéssemos saído naquela noite de vento e neve. Lembro de determinados anos em que houvera talvez apenas oito membros assíduos, e outros em que houvera pelo menos vinte, talvez mais.

       Imagino que Stevens deva saber como tudo aconteceu - tenho certeza de que Stevens esteve lá desde o início, por mais antigo que aquilo possa ser... e acredito que Stevens seja mais velho do que aparenta. Muito, muito mais-velho. Ele tem um ligeiro sotaque do Brooklin, mas apesar disso é tão irrepreensível e meticuloso quanto um mordomo inglês de terceira geração. Sua circunspecção faz parte de seu freqüente encanto exacerbado, e seu ligeiro sorriso é uma porta trancada e aferrolhada. Jamais vi qualquer arquivo do clube - se é que ele os tem. Jamais recebi um carnê de mensalidades - não há mensalidades. Jamais fui chamado pelo secretário do clube - não há secretário, e no n° 249 B da Rua 35 Leste não há telefones. Não há votação para a admissão de sócios. E o clube - se aquilo é um clube nunca teve um nome.

         A primeira vez que fui ao clube (é assim que vou me referir a ele) foi como convidado de George Waterhouse. Waterhouse chefiava o escritório de advocacia onde eu havia trabalhado desde 1951. Minha ascensão na firma - uma das três maiores de Nova Iorque - fora constante mas extremamente lenta; eu era um burro de carga... mas não tinha aptidão ou talento verdadeiros. Vi homens que haviam começado na mesma época que eu sendo promovidos a passos largos enquanto eu continuava em ritmo lento - e eu encarava isso sem nenhuma surpresa.

       Waterhouse e eu havíamos trocado sorrisos e amabilidades, comparecido ao jantar obrigatório que a firma oferecia todos os anos em outubro, e tido umas poucas reuniões até o outono de 196..., quando ele apareceu certo dia na minha sala no início de novembro.

       Isto, por si só, era um tanto fora do comum, e me deixou com maus presságios (demissão) contrabalançados por bons pensamentos (uma promoção inesperada). Era uma visita intrigante. Waterhouse encostou-se no alizar da porta, seu emblema do Phi Beta Kappa* reluzindo suavemente em seu colete, e falou sobre generalidades - nada do que ele disse pareceu ser substancial ou importante. Fiquei esperando que ele acabasse com os rodeios e fosse direto ao assunto: "A respeito desse mandado judicial de Casey", ou "Pediram-nos para investigar a nomeação do Salkowitz pelo prefeito..." Mas parecia que não havia processo algum. Ele olhou para o seu relógio, disse que tinha gostado da nossa conversa mas tinha que ir embora.

 

*Iniciais do lema grego philosophia biou kybernetes, filosofia a diretriz da vida. Sociedade honorária dos estudantes universitários de grande projeção nos EUA, fundada em 1776. (N. da T.)

 

         Eu ainda estava imóvel, perplexo, quando ele se virou e disse espontaneamente:

         - Há um lugar onde vou quase toda quinta-feira - uma espécie de clube. Velhos mascates em sua maioria, mas alguns deles são ótimas companhias. Eles têm uma excelente adega, caso você aprecie um bom drinque. Freqüentemente alguém conta uma boa história também. Por que não aparece uma noite dessas, David? É meu convidado.

         Gaguejei algo em resposta - até agora não sei bem o que foi. Eu estava perplexo com o convite. Pareceu-me um negócio não premeditado, mas havia premeditação em seus olhos azuis frios sob os tufos brancos de suas sobrancelhas. E se não me lembro exatamente o que respondi, foi porque de repente tive a certeza de que seu convite - vago e enigmático - era exatamente o assunto que eu esperava que ele tocasse diretamente.

       A reação de Ellen naquela noite foi de raiva e surpresa. Eu já trabalhava com Waterhouse, Carden Lawton, Frasier e Effingham havia uns quinze anos, e era óbvio que eu não poderia esperar subir muito além de uma posição intermediária que ocupava então; na opinião dela a firma havia arrumado uma substituição à altura de um relógio de ouro.

       - Velhos contando histórias de guerra e jogando pôquer disse ela. - Com uma noite dessas eles esperam que você se sinta feliz no escritório até te aposentarem, creio eu... ah, servi um Beck's duplo com gelo para você. - Ela me beijou com carinho. Suponho que tenha visto qualquer coisa no meu rosto - Deus sabe que ela sabe ler bem meus pensamentos depois desses anos todos que passamos juntos.

       Não aconteceu nada durante algumas semanas. Quando eu pensava no estranho convite de Waterhouse - certamente estranho, partindo de um sujeito a quem eu via menos de doze vezes por ano, e com quem me encontrava socialmente em apenas três festas por ano talvez, incluindo a festa da firma em outubro - imaginava que tivesse me enganado quanto à expressão de seus olhos, que realmente ele tivesse feito o convite espontaneamente e tivesse se esquecido. Ou se arrependido - ai! E então num fim de

tarde ele se aproximou de mim, um homem de quase setenta anos que ainda tinha os ombros largos e uma aparência atlética. Eu estava vestindo o sobretudo e tinha a pasta entre os pés. Ele disse:

       - Se você ainda quiser ir ao clube tomar um drinque, venha hoje à noite.

       - Eu...

       - Ótimo. - Ele colocou um pedaço de papel na minha mão. - Aqui está o endereço.

       Ele estava me esperando no pé da escada aquela noite, e Stevens abriu a porta para nós. O vinho era tão bom quanto Waterhouse havia prometido. Ele não fez qualquer menção de me "apresentar ao grupo" - tomei isso como esnobismo, mas depois mudei de opinião - mas dois ou três sujeitos vieram se apresentar a mim. Um deles foi Emlyn McCarron, já então beirando os setenta. Estendeu-me sua mão e cumprimentamo-nos

brevemente. Sua pele era seca, áspera, parecia couro; quase como a pele de tartaruga.

Perguntou-me se eu jogava bridge. Eu disse que não.

     - Que coisa boa - disse ele. - Essa droga de jogo já calou mais conversas inteligentes de depois do jantar do que qualquer outra coisa que posso imaginar. - E com estas palavras retirou-se para a penumbra da biblioteca, onde as estantes de livros pareciam subir até o infinito.

       Olhei em volta à procura de Waterhouse, mas ele havia desaparecido. Sentindo-me um pouco desanimado e nada à vontade, dirigi-me para perto da lareira. Esta era enorme, como acredito que já mencionei - parecia particularmente grande em Nova Iorque, onde o morador de um apartamento como eu não consegue imaginar uma lareira que dê para fazer algo mais do que tostar um pão ou fazer pipoca. A lareira no n° 249 B da Rua 35 Leste era grande o bastante para assar um boi inteiro. Não tinha consolo; em lugar disso havia um arco de pedras castanhas. No alto deste arco sobressaía uma pedra mais alta.

Estava na altura dos meus olhos, e embora a luz estivesse fraca dava para ler sem maiores problemas o que estava gravado na pedra: O IMPORTANTE É A HISTÓRIA, E NÃO O NARRADOR.

       - Aqui está, David - disse Waterhouse ao meu lado, e eu me sobressaltei. Ele não havia me abandonado, afinal de contas; apenas se enfiara em algum lugar desconhecido para pegar uns drinques. - O seu é uísque com soda, não é?

       - E. Obrigado, Sr. Waterhouse...

       - George - disse ele. - Aqui é apenas George.

       - George, então - disse eu, embora parecesse um pouco insensato chamá-lo pelo nome. - O que é que...

       - Saúde - disse ele.

       Bebemos.

       - Stevens é o encarregado do bar. Prepara ótimos drinques. Gosta de dizer que é uma arte menor, porém essencial.

       O uísque atenuou minha sensação de desorientação e embaraço (apenas atenuou, pois a sensação permaneceu - eu havia gasto perto de meia hora olhando para o meu armário sem saber o que vestir; finalmente decidi por slacks marrom-escuros e uma jaqueta de tweed que quase combinavam, na esperança de não me meter num grupo de homens vestidos a rigor ou da jeans e camisas xadrez... parecia que eu não me enganara muito quanto a isso afinal ). Um lugar e uma situação novos deixam-nos conscientes de todo ato formal, por mais insignificante que seja, e naquele momento, com um drinque na mão e depois do pequeno brinde de praxe, eu queria estar bem certo de que não tinha deixado passar quaisquer prazeres.

     - Vocês têm um livro de visitas que eu deva assinar? - perguntei. - Alguma coisa assim?

     Ele pareceu um pouco surpreso.

     - Não temos nada parecido - disse ele, - Pelo menos, não creio que tenhamos. - Olhou ao redor da sala escura e silenciosa. Johanssen farfalhou seu Wall Street Journal. Vi Stevens passar por uma porta nó fundo da sala, parecendo um fantasma com seu paletó

branco. George pôs seu copo numa mesinha e jogou um pedaço de madeira fresca no fogo. Fagulhas serpearam para dentro da garganta da chaminé.

     - O que quer dizer isso? - perguntei, apontando para a inscrição gravada na pedra. – Tem alguma idéia?

     Waterhouse leu com atenção, como se fosse a primeira vez. O IMPORTANTE É A HISTÓRIA, E NÃO O NARRADOR.

       - Acho que tenho uma idéia - disse ele. - Você poderá ter também, se voltar aqui outra vez. É, devo dizer que você poderá ter uma ou duas idéias. Mais cedo ou mais tarde.

       Divirta-se, David.

       Ele se afastou. E, embora possa parecer estranho, tendo que me virar sozinho em circunstâncias pouco comuns, foi realmente agradável. Eu sempre gostei de livros, e havia uma coleção interessante a ser examinada. Andei devagar ao longo das estantes, tentando ler as lombadas naquela luz fraca, retirando um ou outro aqui e ali, e parei para olhar de uma janela estreita a esquina da Segunda Avenida. Fiquei ali olhando pelo vidro emoldurado de gelo o sinal da esquina mudar de vermelho para verde, para amarelo e para vermelho novamente, e de repente senti uma estranha - mas muito agradável - sensação de paz dentro de mim. Ela não me invadiu, e sim entrou furtivamente. É, ouço vocês dizerem, faz sentido; ficar observando um sinal abrir e fechar faz qualquer um sentir paz interior.

       Está bem; não fez sentido algum. Posso garantir. Mas havia a sensação, de qualquer maneira. Isso me fez lembrar, pela primeira vez depois de anos, das noites de inverno na fazenda de Winsconsin onde cresci: deitado na cama num quarto frio no andar de cima observando o contraste entre o vento sibilante de janeiro do lado de fora, a neve caindo seca como areia ao longo de quilômetros de cercas já cobertas de neve e o calor que meu corpo produzia sob as duas colchas.

       Havia alguns livros de direito, mas eram estranhíssimos: Vinte casos de mutilação e suas conseqüências de acordo com a lei inglesa é um dos títulos de que me lembro. Processos envolvendo animais domésticos é outro. Abri este último, e realmente era um livro jurídico (da lei americana, desta vez) que descrevia litígios envolvendo animais domésticos - desde gatos de estimação que haviam herdado grandes somas de dinheiro até uma jaguatirica que arrebentara sua corrente e ferira gravemente um carteiro.

         Havia uma coleção de Dickens, outra de Defoe, e outra enorme de Trollope; e havia também uma coleção de romances - onze ao todo - escritos por um sujeito chamado Edward Gray Seville. A encadernação era em couro verde, e o nome da editora, gravada a ouro na lombada, era Stedham & Son. Eu nunca tinha ouvido falar de Seville ou de seus editores. A data do copirraite do primeiro volume - Estes eram os nossos irmãos - era 1911. A data do último, Inflatores, era 1935.

         Duas prateleiras abaixo da coleção dos romances de Seville havia um grande volume infólio com planos cuidadosamente detalhados para entusiastas de "construa você mesmo". Ao lado havia outro in-fólio que reproduzia cenas famosas de filmes clássicos. Cada fotografia ocupava uma página inteira e ao lado, na página oposta, havia poemas de versos livres sobre as cenas ou inspirados nelas. Não era uma idéia extraordinária, mas os poetas representados eram excepcionais - Robert Frost, Marianne Moore, William Carlos Williams, Wallace Stevens, Louis Zukofski e Erica Jong, para citar apenas alguns. Lá pela metade do livro encontrei um poema de Algernon Williams ao lado daquela famosa fotografia de Marilyn Monroe de pé sobre as grades de ventilação do metrô tentando abaixar a saia. O título do poema era "O soar do sino" e começava assim:

                                                      

                                                     O formato da saia

                                                       - diríamos assim -

                                                   é o formato de um sino

                                                     As pernas são o badalo

          

             E por aí vai. Não que fosse um poema horroroso, mas certamente não era um dos melhores de Williams e nem estava perto disso. Senti que podia sustentar esta opinião porque já havia lido muita coisa de Algernon Williams ao longo da vida. Mas não conseguia me lembrar deste poema sobre Marilyn Monroe (explico: o poema deixava isso claro mesmo sem a fotografia - no final Williams escreve: Minhas pernas badalam meu nome: Marilyn, ma belle). Estive procurando este poema desde então, mas não consegui encontrá-lo... o que não quer dizer nada, é claro. Poemas não são como romances ou pareceres legais; estão mais para folhas ao vento, e qualquer livro intitulado As obras completas de Fulano de Tal é certamente um embuste. Os poemas acabam perdidos debaixo de sofás - e este é um de seus encantos, e uma das razões por que duram. Mas...

           Certa hora Stevens se aproximou com o segundo copo de uísque (eu estava então acomodado numa cadeira com um livro de Ezra Pound). Estava tão bom quanto o primeiro. Enquanto eu bebericava, vi dois dos presentes, George Gregson e Harry Stein (Harry estava morto havia seis anos na noite em que Emlyn McCarron contou-nos a história do Método Respiratório), deixarem a sala por uma curiosa porta que não poderia ter mais de um metro de altura. Parecia a porta da toca do coelho em Alice no país das maravilhas, se é que houve tal porta. Deixaram-na aberta, e lago depois de sua estranha saída da biblioteca ouvi o barulho abafado de bolas de bilhar.

         Stevens passou por mim e perguntou se eu queria tomar mais um uísque. Recusei com grande lástima. Ele balançou a cabeça.

       - Como quiser, senhor.

       Não mudou de expressão, mas mesmo assim tive uma vaga sensação de que isto o tinha agradado de algum modo.

       Sobressaltei-me com risos algum tempo depois. Alguém havia jogado um pacotinho de pó químico na lareira que deixou o fogo momentaneamente colorido. Lembrei-me da minha infância outra vez... mas não de modo melancólico, sentimental, romântico- nostálgico. Sinto uma grande necessidade de deixar isso bem claro, Deus sabe por quê.

Lembrei-me de quando fazia exatamente isso quando era guri, mas era uma lembrança clara, agradável, sem saudades.

     Vi que a maioria dos outros homens havia arrumado cadeiras em semicírculo em volta da lareira. Stevens tinha trazido uma travessa cheia de salsichas quentes esplêndidas.

Harry Stein voltou pela portinhola, e apresentou-se rápida mas dedicadamente a mim.

Gregson ficou na sala de bilhar - praticando tacadas, pelo barulho.

Após um momento de hesitação, juntei-me aos outros. Contaram uma história – nada agradável. Foi Norman Stett quem a contou, e embora não seja meu propósito recontála, talvez vocês entendam o que quero dizer sobre sua qualidade se lhes disser que era sobre um homem que morreu afogado numa cabine telefônica.

       Quando Stett - que também já morreu - terminou, alguém disse:

         - Você devia ter guardado essa para o Natal, Norman.

         Houve risos, e eu obviamente não entendi por quê. Pelo menos, não naquela hora.

         Depois disso Waterhouse começou a falar, e em mil anos eu jamais sonharia com Waterhouse falando daquele jeito. Um homem formado em Yale, Phi Beta Kappa, cabelos grisalhos, de terno, chefe de um grande escritório de advocacia que era mais uma empresa - este Waterhouse contou uma história sobre uma professora que ficara presa numa privada. A privada ficava atrás da escola de sala única em que ela lecionava, e no dia em que ela ficou presa num dos dois buracos da privada aconteceu também de ser o dia em que a privada seria levada embora para a exposição "Como era a vida na Nova Inglaterra" no Prudential Center em Boston, como uma contribuição do condado de Anniston. A professora não dera um pio enquanto a privada estava sendo colocada e presa na caçamba de um caminhão; ela estava paralisada de vergonha e pavor, disse Waterhouse. E quando a porta da privada foi levada pelo vento da Rodovia 128 em Somerville na hora do rush...

       Mas botemos uma pedra sobre isso, e sobre quaisquer outras histórias que se seguiram; não são minhas histórias esta noite. Numa certa hora, Stevens trouxe uma garrafa de conhaque que estava mais do que simplesmente gostoso; seu gosto era extremamente delicado. A garrafa foi passada de mão em mão e Johanssen ergueu um brinde – o brinde, pode-se dizer assim: o importante é a história, e não o narrador.

       Brindamos a isso.

       Pouco tempo depois os homens começaram a ir embora. Não era tarde; não era meia noite ainda; mas eu já havia reparado que quando os cinqüenta vão dando lugar aos sessenta, tarde da noite começa a chegar cada vez mais cedo. Vi Waterhouse vestir o sobretudo que Stevens segurava para ele e julguei que deveria fazer o mesmo. Achei estranho que Waterhouse fosse embora sem dirigir mais do que uma palavra a mim (o que na verdade parecia que ele estava fazendo; se eu demorasse mais uns quarenta segundos para colocar o livro de Pound na prateleira, ele já teria ido embora), mas menos estranho que a maior parte dos acontecimentos daquela noite.

       Saí logo atrás dele, e Waterhouse olhou em volta como se estivesse surpreso em me ver - e quase como se ele tivesse sido despertado subitamente de um cochilo.

       - Vamos dividir um táxi? - perguntou, como se tivéssemos nos encontrado por acaso nessa rua deserta e varrida pelo vento.

       - Obrigado - disse eu. Agradeci por muito mais coisas além do seu oferecimento para dividir o táxi, e acredito que pelo meu tom de voz isso tenha ficado óbvio, mas ele balançou a cabeça como se aquilo fosse só o que eu queria dizer. Bem devagar vinha passando um táxi, com a luz que indica estar vazio acesa - sujeitos como George Waterhouse parecem ter sorte para encontrar táxis mesmo em noites nova-iorquinas de frio e nevasca quando você juraria ser impossível achar um em toda a ilha de Manhattan - e ele fez sinal.

       Lá dentro, seguro e aquecido, o taxímetro registrando nosso percurso em cliques ritmados, eu disse a ele o quanto tinha apreciado sua história. Não me lembrava de ter rido tanto ou tão espontaneamente desde os meus dezoito anos, disse a ele, o que não era bajulação mas apenas a pura verdade.

       - É? Muito gentil da sua parte.

       Gentil e frio, seu tom de voz. Afundei-me no banco, sentindo o sangue me corar a face.

Nem sempre é necessário ouvir um estrondo para saber que a porta foi fechada.

       Quando o táxi encostou no meio-fio em frente ao meu prédio, agradeci novamente, e desta vez ele se mostrou um pouquinho mais receptivo:

       - Foi bom você ter ido lá - disse ele. - Vá outra vez, se quiser. Não espere por um convite; não somos muito cerimoniosos no clube. As quintas-feiras é melhor para se ouvir histórias, mas o clube está aberto todas as noites.

     Então posso me considerar sócio?

       Esta pergunta estava na ponta da minha língua. Tinha intenção de fazê-la; parecia necessário fazê-la. Eu estava apenas matutando, repetindo-a na minha cabeça (no meu jeito maçante de advogado) para ver se a linguagem estava correta - talvez estivesse um pouco empolgado demais - quando Waterhouse disse ao motorista para seguir. No mesmo instante o táxi já ia em direção à Park Avenue. Fiquei parado na calçada por alguns segundos, o sobretudo me dando lambadas nas pernas, pensando: Ele sabia que eu ia fazer aquela pergunta - ele sabia, e intencionalmente mandou o motorista seguir antes que eu pudesse fazê-la. Então disse a mim mesmo que isso era totalmente absurdo - paranóico até. E era. Mas também era verdade. Eu podia zombar de tudo, mas a zombaria não modificou aquela certeza absoluta.

         Caminhei devagar para a portaria e entrei.

         Ellen estava sessenta por cento dormindo quando me sentei na cama para tirar os sapatos. Ela virou-se e emitiu um som gutural interrogativo. Eu disse a ela que voltasse a dormir.

         Ela emitiu aquele som outra vez. Agora mais inteligível.

         - Como foi?

         Por um momento hesitei, a camisa desabotoada pela metade. E pensei num lampejo de lucidez absoluta: Se contar a ela, jamais verei o outro lado daquela porta outra vez.

       - Tudo bem - disse eu. - Velhos contando histórias de guerra.

       - Bem que eu disse.

       - Mas não foi ruim. Talvez eu volte lá. Pode ser bom para mim com relação ao escritório.

       - O escritório - disse ela, num leve tom de troça. - Que velho ganancioso que você é, meu amor.

       - É preciso que seja um tipo desses para reconhecê-lo - disse eu, mas ela já havia

dormido outra vez. Tirei a roupa, tomei banho, enxuguei-me, vesti o pijama... e então, ao invés de ir para a cama (era pouco mais de uma hora), vesti o robe e tomei outra garrafa de Beck's. Fiquei sentado à mesa da cozinha bebendo devagar, olhando pela janela os paredões gelados da Madison Avenue, pensando. Minha cabeça zumbia um pouco devido ao álcool - inesperadamente uma grande quantidade para mim. Mas a sensação não era absolutamente desagradável, e não sentia a iminência de uma ressaca.

         O que passou pela minha cabeça quando Ellen me perguntou sobre a noitada foi tão ridículo quanto o que pensei sobre George Waterhouse depois que o táxi foi embora – o que poderia haver de errado em falar à minha mulher sobre uma noitada absolutamente inocente no clube entediante do meu chefe... e mesmo se houvesse algo de errado em contar para ela, quem saberia disso? Não, era tão ridículo e paranóico quanto as cismas anteriores... e, sabia lá no fundo do meu coração, era a mais pura verdade.

 

         Encontrei George Waterhouse no dia seguinte no vestíbulo entre a contadoria e a biblioteca. Encontrei-o? Melhor dizer, passei por ele. Cumprimentou-me com a cabeça e seguiu sem dizer palavra... como já fazia havia quatro anos.

         Tive dor de estômago o dia inteiro. Isto foi a única coisa a me convencer de que a minha noitada tinha sido real.

 

           Três semanas se passaram. Quatro... cinco. Não recebi outro convite de Waterhouse. De alguma maneira eu não tinha sido conveniente; não me encaixara. Ou pelo menos foi o que disse a mim mesmo. Fiquei desanimado e decepcionado. Imaginei que esse sentimento fosse perdendo aos poucos sua pungência, como acontece mais cedo ou mais tarde com qualquer decepção. Mas eu pensava naquela noite em seus momentos mais curiosos - os focos isolados de luz da biblioteca, tão suave e tranqüila e de algum modo civilizada; a história absurda e hilariante de Waterhouse sobre a professora presa na privada; o aroma agradável de couro nos corredores estreitos entre as estantes. Acima de tudo fiquei me lembrando da janela estreita em que fiquei a observar os cristais de gelo mudarem de verde para amarelo e para vermelho. Pensei na sensação de paz que havia sentido.

         Durante aquele período de cinco semanas fui à biblioteca e examinei quatro livros de poesias de Algernon Williams (eu tinha outros três, e já os tinha examinado); um deles tinha a pretensão de ser suas obras completas. Reconheci alguns dos velhos favoritos, mas não encontrei nenhum poema intitulado "O soar do sino" em nenhum dos livros.

         Nesta mesma ida à Biblioteca Pública de Nova Iorque, procurei no arquivo de fichas livros de ficção de um sujeito chamado Edward Gray Seville. O máximo que encontrei foi um livro de suspende escrito por uma tal de Ruth Seville.

         Vá outra vez, se quiser. Não espere por um convite.

         Mesmo assim eu estava esperando por um convite, é claro; minha mãe me ensinara há muitos anos atrás para não acreditar piamente quando as pessoas disserem animadas "apareça uma hora dessas" ou "a porta está sempre aberta". Eu não achava que precisasse de um cartão impresso, levado à minha casa por um criado de libré com uma bandeja dourada nas mãos, não quis dizer isso, mas eu queria alguma coisa, mesmo que fosse um comentário casual:

       - Apareça uma noite dessas, David. Espero que você não tenha se aborrecido lá.

       Esse tipo de coisa.

       Mas quando nem isso aconteceu, comecei a pensar mais seriamente em voltar assim mesmo - afinal de contas, às vezes as pessoas querem mesmo que você apareça a qualquer hora; julguei que, em determinados lugares, a porta sempre estava aberta; e que as mães nem sempre têm razão .

         ... Não espere por um convite...

       Em todo caso, foi assim que no dia 10 de dezembro daquele mesmo ano, me vi vestindo meu casaco tosco de tweed e a calça marrom-escura outra vez e procurando pela minha gravata vermelho-escura. Percebia mais as batidas do meu coração do que de costume naquela noite, lembro-me disso.

       - Então finalmente George Waterhouse quebrou o gelo e chamou você de volta? - perguntou Ellen. - De volta para o chiqueiro com aos outros porcos chauvinistas?

       - Isso mesmo - disse eu, pensando que deveria ser a primeira vez em pelo menos doze anos que mentia para ela... e então me lembrei que, depois do primeiro encontro, eu havia respondido à sua pergunta sobre como tinha sido como uma mentira. Velhos contando histórias de guerra, eu dissera.

       - É, talvez haja mesmo uma promoção ligada a isso - disse ela... embora sem muita esperança. Mas também sem muito rancor, verdade seja dita.

       - Coisas mais estranhas têm acontecido - disse eu, e dei-lhe um beijo de despedida.

       - Oink, oink - fez ela, quando eu saía pela porta.

       A viagem de táxi aquela noite pareceu bem longa. Fazia frio, o ar estava parado e o céu estrelado. O táxi era um Checker e me senti muito pequeno dentro dele, como uma criança vendo a cidade pela primeira vez. Era entusiasmo o que eu estava sentindo quando o táxi parou em frente ao prédio de arenito pardo - algo tão simples e ao mesmo tempo tão complexo quanto isso. Mas tal entusiasmo parece ser uma das boas coisas da vida que nos escapam quase imperceptivelmente, e a redescoberta quando se fica mais velho é sempre uma surpresa, como encontrar um ou dois cabelos pretos no pente anos depois de ter visto isso pela última vez.

         Paguei ao motorista, saltei e me dirigi aos degraus da porta. Enquanto subia, meu entusiasmo transformou-se em mera apreensão (uma sensação a que as pessoas idosas estão muito mais acostumadas). O que é que eu estava fazendo ali?

         A porta era de carvalho maciço com almofadas, e aos meus olhos parecia tão sólida quanto a porta de acesso a um castelo. Não havia compainha, aldrava ou câmera de circuito interno de TV colocada discretamente num canto escuro do beiral, e, é claro, Waterhouse não estava na porta para me fazer entrar. Parei ao pé da escada e olhei ao redor. A Rua 35 Leste de repente pareceu mais escura, mais fria, mais ameaçadora. Os prédios de arenito pardo estavam com uma aparência um tanto enigmática, como que escondendo mistérios que por bem não deveriam ser investigados. Suas janelas lembravam olhos.

       Em algum lugar, por trás de uma dessas janelas, pode haver um homem ou uma mulher planejando um assassinato, pensei. Senti um arrepio na espinha. Planejando... ou cometendo um assassinato.

       E então, de repente, a porta se abriu e Stevens apareceu. Senti um enorme alívio. Não tenho a imaginação excessivamente fértil, acho – pelo menos não em circunstâncias normais - mas esta última idéia que me ocorreu encerrava uma lúgubre clarividência profética. Se eu não tivesse olhado para os olhos de Stevens, teria começado a balbuciar coisas sem nexo. Os olhos dele não me reconheceram. Seus olhos não me reconheceram em absoluto.

       Então tive outra lúgubre clarividência profética; antevi o restante da minha noitada em todos os detalhes. Três horas num bar sossegado. Três uísques (talvez quatro) para ofuscar o constrangimento de ter feito a asneira de ir onde não era benquisto. A humilhação que o conselho de minha mãe pretendia evitar - a humilhação que sentimos quando nos excedemos.

       Antevi-me indo para casa um pouco alto, mas me sentindo não muito bem. Vi-me sentado dentro do táxi sem experimentar aquela sensação infantil de entusiasmo e expectativa. Ouvi-me dizendo a Ellen: Fica repetitivo depois de algum tempo...Waterhouse contou a mesma história sobre ter ganho a concorrência para o fornecimento de carne de primeira para o Terceiro Batalhão num jogo de pôquer... e eles jogam cartas a um dólar o ponto, você acredita?... Eu, voltar lá?... Talvez, mas duvido. E isso seria tudo. A não ser, creio, a minha própria humilhação.

       Antevi tudo isso olhando para os olhos inexpressivos de Stevens. Então seus olhos

tomaram expressão. Ele sorriu de leve e disse:

       - Sr. Adley! Entre. Deixe-me guardar seu casaco.

       Subi os degraus e Stevens fechou com firmeza a porta depois que entrei. Como uma porta pode parecer diferente quando se está protegido do lado de dentro! Ele pegou meu casaco e desapareceu. Fiquei parado no vestíbulo por alguns instantes, olhando meu reflexo no tremó, um homem de sessenta e três anos cujo rosto estava rapidamente se tornando emaciado demais para parecer um homem de meia-idade. Mas mesmo assim a imagem me agradou.

         Passei para a biblioteca sem ser notado.

         Johanssen estava lá, lendo seu Wall Street Journal. Sob outro foco de luz, Emlym McCarron estava debruçado sobre um tabuleiro de xadrez de frente para Peter Andrews.

McCarron tinha, e ainda tem, um ar cadavérico, o nariz afilado como uma lâmina; Andrews era enorme, ombros caídos e irascível. Uma farta barba avermelhada se espalhava sobre seu colete. Frente a frente sobre um tabuleiro com peças esculpidas em marfim e ébano, pareciam totens indígenas: a águia e o urso.

         Waterhouse estava lá, concentrado sobre o Times do dia. Ele olhou por sobre o jornal, cumprimentou-me com a cabeça sem demonstrar surpresa, e desapareceu atrás do jornal outra vez.

         Stevens me trouxe um uísque, sem que eu tivesse pedido.

         Enfiei-me por entre as estantes e encontrei novamente aquela coleção enigmática e atraente de livros. Comecei a ler as obras de Edward Gray Seville naquela noite. Comecei do início, com Estes eram os nossos irmãos. Desde então já li todos eles, e acredito que sejam onze dentre os melhores romances deste século.

         Quase no final da noite uma história foi contada - apenas uma- e Steven serviu conhaque. Quando a história acabou, as pessoas começaram a se levantar para ir embora. Stevens estava no vão da porta dupla que dava para o vestíbulo. Numa voz baixa e agradável, porém firme, ele disse:

         - Qual dos senhores irá contar a história no Natal?

       As pessoas pararam o que estavam fazendo e olharam ao redor. Ouviu-se um burburinho alegre e uma gargalhada.

       Stevens, sorrindo porém sério, bateu palmas duas vezes como uma professora primária tentando pôr ordem na sala.

         - Vamos, cavalheiros: quem vai contar a história?

         Peter Andrews, o dos ombros caídos e da barba avermelhada, pigarreou:

         - Eu tenho pensado sobre um negócio. Não sei se é assim mesmo; isto é, se...

         - Está ótimo - interrompeu Stevens, e houve mais risos. Bateram nas costas de Andrews com camaradagem. Correntes de ar invadiam o vestíbulo quando a porta era aberta para os homens saírem.

         Stevens estava lá, como que por encanto, segurando o casaco para mim.

         - Boa noite, Sr. Adley. É sempre um prazer tê-lo aqui.

         - Vocês se reúnem na noite de Natal? - perguntei, enquanto abotoava o casaco. Eu estava um pouco desapontado de perder a história de Andrews, mas já havíamos combinado ir para Schenectady passar o feriado com a irmã de Ellen.

         Stevens tentou parecer chocado e surpreso ao mesmo tempo.

         - De jeito nenhum - disse ele. - Os homens devem passar a noite de Natal junto a suas famílias. Pelo menos a noite de Natal. O senhor não concorda?

         - É claro que sim.

         - Sempre nos reunimos na quinta-feira antes do Natal. Para falar a verdade, é a única noite do ano em que quase sempre há uma grande afluência.

         Reparei que ele não usou a palavra membros - por acaso? ou mera omissão?

         - Muitas histórias já foram contadas no salão principal, Sr. Adley, histórias de todos os tipos, de cômicas a trágicas, de irônicas a românticas. Mas na quinta-feira antes do Natal é sempre uma história sobrenatural. Sempre foi assim, pelo menos desde que me lembro.

         Isso pelo menos esclarecia o comentário que eu tinha ouvido da primeira vez que estive lá, quando alguém disse a Norman Stett que ele deveria ter guardado sua história para o Natal. Outras perguntas passaram pela minha cabeça, mas percebi uma advertência nos olhos de Stevens. Não era uma advertência de que ele não responderia a minhas perguntas; era, isto sim, um aviso para que eu sequer fizesse perguntas.

         - Mais alguma coisa, Sr. Adley?

         Estávamos sozinhos no vestíbulo. Todos os outros já haviam ido embora. E de repente o vestíbulo me pareceu mais escuro, o rosto comprido de Stevens mais pálido, seus lábios mais vermelhos. Houve um estalo de madeira na lareira e a luz vermelha do fogo fez brilhar por um instante o chão encerado. Pensei ter ouvido, em alguma das salas ainda desconhecidas, um baque surdo. Não gostei nem um pouco do barulho. Nem um pouco.

         - Não - disse eu, com uma voz nada firme. - Acho que não.

       - Então, boa noite - disse Stevens, e eu saí. Ouvi a porta pesada se fechar atrás de mim.

Ouvi o barulho do trinco. Então saí andando em direção às luzes da Terceira Avenida, sem olhar para trás, de alguma forma com medo de olhar para trás, como se fosse ver um demônio apavorante seguindo meus passos, ou vislumbrar alguma coisa que não fosse para ser vista. Cheguei na esquina, vi um táxi vazio e fiz sinal.

       - Mais histórias de guerra? - perguntou Ellen naquela noite. Ela estava na cama com Philip Marlowe, o único amante que ela já teve.

       - Uma ou duas histórias de guerra - disse eu, pendurando meu sobretudo. – Fiquei sentado lendo um livro a maior parte do tempo.

       - Quando você não estava fazendo "oink".

       - É, tem razão. Quando eu não estava fazendo "oink".

       - Escute isso: "A primeira vez que vi Terry Lennox ele estava bêbado num Rolls-Royce prateado no pátio do The Dancers" Ellen leu. - 'Seu rosto era jovem, mas seus cabelos eram brancos como nuvens. Pelo olhar se via que estava completamente bêbado, mas fora isso parecia com qualquer rapaz bonito de smoking que gastara dinheiro demais numa espelunca que existe unicamente para este fim." Lindo, não é? É...

       - O longo adeus - disse eu, tirando os sapatos. - Você lê essa passagem para mim a cada três anos. Faz parte do seu ciclo de vida.

       Ela -, fez uma careta para mim.

       - ''Oink-oink".

       - Obrigado - eu disse.

       Ela voltou sua atenção para o livro. Fui até a cozinha pegar uma garrafa de Beck's. Quando voltei ela havia deixado O longo adeus aberto sobre a colcha e olhava atentamente para mim.

         - David, você vai entrar para esse clube?

         - Talvez... se me convidarem. - Senti-me pouco à vontade. Talvez lhe tivesse contado outra mentira. Se houvesse associados no n° 249 B da Rua 35 eu já era um deles.

         - Fico feliz com isso - disse ela. - Você precisava de um negócio desses há muito tempo. Não acredito que você tenha consciência disso mas é verdade. Eu tenho o Comitê de Amparo, a Comissão de Direitos da Mulher e a Sociedade Teatral. Mas você precisava de alguma coisa. Pessoas que fizessem companhia na velhice, eu acho.

       Sentei-me ao lado dela na cama e peguei O longo adeus. Era uma edição de brochura novinha em folha. Eu lembrava de ter comprado a edição original encadernada de presente de aniversário para ela, em 1953.

       - Estamos velhos? - perguntei a ela.

       - Desconfio que sim - disse ela, e sorriu com os olhos brilhando para mim.

       Deixei o livro de lado e toquei seu seio.

       - Velhos demais para isso?

       Ela puxou o lençol e cobriu-se com decoro feminino... e então, dando uma risadinha, chutou-o ao chão.

       - Vai me bater, papai? - disse Ellen.

       - "Oink-oink" - fiz, e começamos a rir.

       E chegou a quinta-feira antes do Natal. Era uma noite igual às outras, com exceção de dois detalhes que observei: havia mais pessoas lá, talvez umas dezoito; e havia uma intensa agitação indefinível no ar. Johanssen deu apenas uma rápida olhada em seu Wall Street Journal e juntou-se a McCarron, Hugh Beagleman e a mim. Sentamo-nos perto das janelas, falando disso e daquilo, e finalmente caímos numa conversa apaixonante – e muitas vezes engraçada - sobre automóveis anteriores à guerra.

       Havia, lembrei-me agora, um terceiro detalhe diferente: Stevens tinha preparado uma deliciosa gemada de rum. O gosto era suave, mas também picante de rum e temperos.

Estava na extraordinária poncheira Waterford que parecia uma escultura de gelo, e a zoada animada das conversas aumentava ainda mais à medida que a batida ia acabando.

         Olhei para a portinhola que dava para a sala de bilhar e fiquei pasmo ao ver Waterhouse e Norman Stett batendo figurinhas de beisebol sobre um autêntico chapéu de pele de castor. Davam gargalhadas homéricas.

         Grupos se formavam e se desmanchavam. Foi ficando tarde... e então, à hora que geralmente as pessoas começam a ir embora, vi Peter Andrews sentado à frente da lareira com um pacotinho do tamanho de um envelope de sementes numa das mãos. Jogou-o no fogo sem abri-lo, e no instante seguinte o fogo ficou com as cores do arco íris - e outras, eu juraria, que não existem no arco-íris para depois voltar para o amarelo. Arrastaram-se cadeiras pela sala. Por sobre o ombro de Andrews eu podia ver a pedra com a prédica gravada: O IMPORTANTE É A HISTÓRIA, E NÃO O NARRADOR.

         Stevens passou discretamente por entre as pessoas recolhendo os copos de batida e servindo pequenas doses de conhaque. Ouvi pessoas murmurarem "Feliz Natal" e "Próspero Ano-Novo, Stevens", e pela primeira vez, vi dinheiro trocar de mãos – uma nota de dez dólares foi oferecida aqui, uma nota que pareceu ser de cinqüenta ali, outra que vi claramente tratar-se de uma de cem de outra cadeira acolá.

         - Obrigado, Sr. McCarron... Sr. Johanssen... Sr. Beagleman... - Um sussurro cortês.

         Eu já morava em New York tempo bastante para saber que a época de Natal é um verdadeiro carnaval de gorjetas; um tanto para o açougueiro, o padeiro, o tintureiro - sem falar no porteiro, no contínuo, na faxineira que vem às terças e sextas. Jamais conheci alguém do mesmo nível que eu que não considerasse isso apenas como um mal necessário... mas naquela noite não senti qualquer má vontade. O dinheiro era dado de bom grado, até com avidez... e de repente, sem razão nenhuma (era assim que as lembranças pareciam vir quando se estava no clube), lembrei-me do menino perguntando a Scrooge numa manhã calma e fria de Natal em Londres: "O quê? O ganso que é do meu tamanho?" E Scrooge, quase louco de felicidade, dando risadas: "Um bom menino! Um excelente menino!"

           Tirei minha carteira do bolso. Atrás da fotografia de Ellen há sempre uma nota de cinqüenta dólares para alguma emergência. Quando Stevens me entregou o conhaque, coloquei a nota em sua mão sem nenhum remorso... embora eu não fosse um homem rico.

         - Feliz Natal, Stevens- disse eu.

         - Obrigado, e para o senhor também.

       Ele acabou de distribuir as taças de conhaque e de receber seus honorários e retirou-se.

Olhei ao meu redor certa hora, no meio da história de Peter Andrews, e o vi de pé ao lado da porta dupla, um vulto indistinto, imóvel e quieto.

       - Sou um advogado agora, como a maioria de vocês - disse Andrews, depois de ter dado um gole, limpado a garganta e dado outro gole. - Tive escritório na Park Avenue nos últimos vinte e dois anos. Mas antes disso eu era um assessor jurídico num escritório de advocacia que fazia trabalhos em Washington, D.C. Certa noite de julho me pediram para ficar até mais tarde a fim de pôr em ordem as intimações de um processo que não tem nada a ver com esta história. Mas então um sujeito entrou na sala - um sujeito que era naquela época um dos senadores mais conhecidos e que mais tarde quase foi presidente. Sua camisa estava toda manchada de sangue e seus olhos arregalados quase caindo das órbitas.

       - Preciso falar com Joe - disse ele. Joe era Joseph Woods, o chefe do escritório, um dos advogados mais influentes do setor privado em Washington, e amigo íntimo desse senador.

       - Ele já foi para casa há algumas horas - eu disse. Eu estava assustadíssimo, vocês imaginem - parecia que ele tinha acabado de sofrer um terrível acidente de carro, ou talvez tivesse se metido numa briga de faca. E olhar para o seu rosto - que eu já tinha visto em fotografias de jornais e no programa Encontro coma Imprensa - manchado de sangue, um lado do rosto se contraindo espasmodicamente e um olhar desvairado... tudo isso aumentou o meu terror.

       - Posso telefonar para ele se o senhor... - Eu já estava tateando a mesa à cata do telefone, aflito para passar aquela inesperada responsabilidade a outra pessoa. Atrás dele pude ver as pegadas de sangue que ele havia deixado no tapete.

       - Preciso falar com Joe agora - repetiu ele, como se não tivesse ouvido eu falar. – Tem uma coisa na mala do meu carro... uma coisa que eu encontrei na Praça Virgínia. Atirei nela e dei facadas, mas não consegui matá-la. Não é humana, e eu não consigo matá-la.

       Ele deu uma risadinha nervosa... e então começou a rir... e depois a gritar. Ele ainda estava gritando quando finalmente consegui falar com o Sr. Woods e dizer-lhe que viesse, pelo amor de Deus, o mais depressa possível...

         Não tenho intenção de contar a história de Peter Andrews. Para ser franco, não tenho certeza se teria coragem de contá-la. Basta dizer que era uma história tão aterrorizante que sonhei durante semanas com ela, e um dia Ellen olhou para mim à mesa do café e perguntou por que eu tinha gritado: "A cabeça dele! A cabeça ainda está falando debaixo da terra!" no meio da noite.

       - Deve ter sido um pesadelo - disse eu, - daqueles que a gente não consegue se lembrar depois.

       Mas meus olhos baixaram imediatamente para minha xícara de café, e acho que Ellen percebeu a mentira daquela vez.

 

       Num dia de agosto do ano seguinte, eu estava na biblioteca trabalhando quando murmuraram no meu ouvido. Era George Waterhouse. Perguntou se eu poderia subir até a sua sala. Quando cheguei lá, vi que Robert Carden também estava presente, assim como Henry Effingham. Por um momento tive certeza de que seria acusado de algum ato terrível de estupidez ou inépcia.

       Então Carden chegou perto de mim e disse:

       - George acha que já é tempo de você se tornar um sócio minoritário da nossa firma, David. Nós concordamos com ele.

       - Vai ser um pouco como ser o membro mais novo da câmara de comércio – disse Effingham com um sorriso, - mas é uma experiência por que você vai ter que passar, David. Mas com um pouco de sorte, faremos de você um sócio de igual hierarquia por volta do Natal.

       Não tive pesadelos aquela noite. Ellen e eu fomos jantar fora, bebemos bastante,fomos a um clube de jazz onde não íamos havia quase seis anos, e assistimos àquele maravilhoso negro de olhos azuis, Dexter Gordon, tocar seu sax até quase duas horas da manhã. Acordamos no dia seguinte com o estômago embrulhado e com dor de cabeça, ainda incapazes de acreditar totalmente no que tinha acontecido. Uma das coisas era que meu salário tivera um aumento de oito mil dólares anuais depois de termos perdido há muito tempo as esperanças de um aumento vertiginoso de renda.

       Naquele outono a firma me mandou para Copenhague por seis semanas, e quando voltei soube que John Hanrahan, um dos freqüentadores assíduos do clube, havia morrido de câncer. Fez-se uma coleta de dinheiro para sua esposa, que fora deixada em circunstâncias difíceis. Fui solicitado a somar o montante- que era todo em dinheiro – e a trocar por um cheque de administração. O total foi de mais de dez mil dólares. Entreguei o cheque a Stevens e presumo que ele o tenha enviado.

     O fato é que Arlene Hanrahan fazia parte da Sociedade Teatral de Ellen, e Ellen veio me contar algum tempo depois que Arlene havia recebido um cheque anônimo de dez mil e quatrocentos dólares. No canhoto do cheque havia uma mensagem breve e nada esclarecedora: Dos amigos de seu saudoso marido John.

       - Não é a coisa mais espantosa que você já viu? - perguntou- me Ellen.

       - Não - disse eu, - mas está entre as dez mais. Ainda temos morangos, Ellen?

       Os anos se passaram. Descobri um monte de quartos no andar de cima do clube – um escritório, um quarto onde às vezes convidados passavam a noite (embora pessoalmente, depois do baque surdo que tinha ouvido - ou imaginei ter ouvido -preferisse ir para um bom hotel), uma pequena mas bem equipada sala de ginástica e uma sauna com ducha. Havia também uma sala comprida e estreita da extensão do prédio que abrigava duas pistas de boliche.

       Durante esses anos reli os romances de Edward Gray Seville e descobri um poeta absolutamente fantástico - à altura de Ezra Pound e Wallace Stevens, talvez – chamado Norbert Rosen. Segundo a contracapa de um dos três volumes da estante, ele havia nascido em 1924 e fora morto em Anzio. Os três volumes de seus trabalhos tinham sido publicados por Stedham & Son, Nova Iorque e Boston.

       Lembro-me de ter voltado à Biblioteca Pública de Nova Iorque numa radiante tarde de primavera de algum desses anos (não posso precisar o ano) e pedido os Literary Market Place publicados num período de vinte anos. O LMP é uma publicação anual do tamanho de um catálogo de Páginas Amarelas de uma cidade grande, e imagino que a bibliotecária da sala de obras de referência estivesse irritadíssima comigo. Mas insisti, e examinei cada volume cuidadosamente. E apesar do LMP relacionar todos os editores, grandes e pequenos, dos Estados Unidos (além de agentes literários, compiladores e clubes de livros), não encontrei nenhuma referência a Stedham & Son. No ano seguinte - ou talvez dois anos depois conversando com um antiquário de livros, perguntei-lhe se conhecia o editor. Disse-me que nunca tinha ouvido falar.

         Pensei em perguntar a Stevens - vi aquele sinal de advertência em seu olhar – e esqueci o assunto.

      

         E durante esses anos todos houve histórias.

       Contos, como diz Stevens. Contos engraçados, contos de amor e de ódio, contos de suspense. E até umas poucas histórias de guerra, embora nenhuma fosse do tipo que Ellen imaginava quando sugeriu que eu entrasse para o clube.

         Lembro-me claramente da história de Gerard Tozeman - sobre uma base de operações americana atacada pela artilharia alemã quatro meses antes do fim da Primeira Guerra Mundial; todos foram mortos, menos o próprio Tozeman.

 

                               Inverno no Clube - Stephen King

       Lathrop Carruthers, o general americano que já na época era unanimemente considerado completamente louco (tinha sido o responsável por mais de dezoito mil baixas então - como se as vidas e os membros das pessoas não valessem um tostão), estava de pé à frente de um mapa das linhas de frente quando a bomba explodiu. Ele estava expondo outra operação de ataque naquele momento - uma operação que seria bem sucedida apenas na concepção de outros Carruthers: teria pleno êxito em fazer novas viúvas.

       E quando a poeira baixou, Gerard Tozeman, ofuscado e surdo, sangrando pelo nariz, ouvidos e pelos cantos dos olhos, com os testículos já inchados pela força da concussão, estava sobre o corpo de Carruthers procurando uma saída daquele matadouro que tinha sido o quartel-general minutos antes. Ele olhou para o corpo do general... e então começou a gritar e a rir. Ele próprio não podia ouvir, pois ficara surdo com uma explosão, mas seus gritos alertaram os médicos de que alguém ainda estava vivo naquela montanha de gravetos.

         Carruthers não havia sido mutilado pela explosão... pelo menos, disse Tozeman, não o que os soldados daquela guerra de tempos atrás consideravam ser mutilado – homens cujos braços haviam sido arrancados, homens sem pés, sem olhos; homens cujos pulmões haviam murchado por causa do gás. Não, disse ele, não era nada parecido. A mãe do sujeito o teria reconhecido imediatamente. Mas o mapa...

       ... o mapa diante do qual Carruthers estivera de pé com seu ponteiro de açougueiro quando a bomba explodiu...

       De alguma maneira o mapa fora projetado de encontro a seu rosto. Tozeman viu-se diante de uma máscara mortuária tatuada hedionda. Aqui estava o litoral pedregoso da Bretanha na saliência óssea da testa de Lathrop Carruthers. Aqui estava o Reno correndo como uma cicatriz azul no lado esquerdo de seu rosto. Aqui estavam uma das melhores regiões vinícolas do mundo subindo e descendo pelo seu queixo. Aqui estava o Saara desenhado em torno de seu pescoço como o laço do algoz... e impresso num globo ocular saliente estava a palavra VERSAILLES.

         Esta foi nossa história no Natal de 197...

         Lembro-me de muitas outras, mas não se encaixam aqui. Para falar a verdade, tampouco a de Tozeman... mas foi o primeiro "conto de Natal" que ouvi no clube e não pude me conter. E então, na quinta-feira depois do dia de Ação de Graças desse ano, quando Stevens bateu palmas pedindo atenção e perguntou quem nos daria o prazer de narrar um conto de Natal, Emlyn McCarron resmungou:

       - Acho que sei de uma que vale a pena contar. E para contar agora ou nunca; em breve Deus me fará calar para sempre.

       Durante os anos em que freqüentei o clube, nunca ouvira McCarron contar uma história. Talvez por esse motivo eu tenha chamado um táxi tão cedo e também, quando Stevens serviu a gemada com rum aos seis homens que haviam se aventurado a sair naquela noite de frio e vento, tenha me sentido tão excitado. Eu não era o único; vi que a maioria estava tanto quanto eu.

       McCarron, velho e encarquilhado, sentou-se na enorme cadeira junto à lareira com o pacotinho de pó em suas mãos ásperas. Jogou o pacotinho, e vimos as chamas mudarem de uma cor para outra rapidamente até voltarem para o amarelo. Stevens passou servindo conhaque, e entregamos a ele os honorários de Natal. Certa vez, durante esta cerimônia anual, ouvi o tilintar de moedas passando para as mãos de Stevens; em outra ocasião, vislumbrei à luz do fogo uma nota de mil dólares. Em ambas as ocasiões o tom de voz de Stevens tinha sido exatamente o mesmo: baixo, cortês e verdadeiro. Dez anos mais ou menos haviam se passado desde que vim ao clube pela primeira vez com George Waterhouse, e enquanto o mundo lá fora dera muitas voltas, nada havia mudado lá dentro, e Stevens não parecia ter envelhecido um só mês, nem mesmo um único dia.

       Ele retirou-se e desapareceu na penumbra, e por alguns instantes houve um silêncio tão absoluto que pudemos ouvir o baixo assovio da seiva da madeira fervendo na lareira.

Emlyn McCarron estava olhando o fogo e todos nós fizemos o mesmo. As chamas pareciam particularmente agitadas aquela noite. Senti-me quase que hipnotizado pelo fogo - como, suponho, os homens das cavernas que nos antecederam teriam ficado enquanto o vento assoviava e varria o. lado de fora de suas cavernas geladas.

         Por fim, ainda olhando para o fogo, um pouco curvado para poder apoiar os cotovelos

nas pernas, as mãos entrelaçadas entre os joelhos, McCarron começou a falar.

 

                                           O Método Respiratório

 

         Estou com quase oitenta anos, o que significa que nasci com o século. Durante toda a minha vida tive uma forte ligação com um prédio que fica quase em frente ao Madison Square Garden; este prédio, que parece um grande presídio cinza - alguma coisa tirada de             Um conto de duas cidades - é na verdade um hospital, como vocês sabem. É o Harriet White Memorial Hospital. A Harriet White que deu o nome ao hospital foi a primeira mulher do meu pai, e ela ganhou experiência em enfermagem quando ainda havia ovelhas no Sheep Meadow do Central Park. Há uma estátua dessa mulher sobre um pedestal no pátio em frente ao prédio, e se algum de vocês já a viu, pode ter-se perguntado como uma mulher com uma expressão tão severa e carrancuda pode ter tido uma profissão tão nobre. A inscrição ao pé da estátua em latim é menos animadora ainda: Não há bem-estar sem dor; a salvação virá através do sofrimento. Marcus Porcius, se me permitem... ou se não me permitem!

         Eu nasci dentro daquele prédio de pedra em 20 de março de 1900. Voltei lá como médico residente em 1926. Vinte e seis anos já não é mais idade de estar ingressando na medicina, mas eu havia feito uma residência mais prática na França, no final da Primeira Guerra Mundial, tentando recolocar entranhas para dentro de barrigas que haviam sido abertas com explosões, e negociando morfina no mercado negro, muitas vezes misturadas e às vezes perigosa.

       Como aconteceu com a geração de médicos depois da Segunda Guerra Mundial, éramos cirurgiões com uma ampla base prática, e os arquivos das principais escolas de medicina registram um número extraordinariamente pequeno de reprovações nos anos de 1919 a 1928. Éramos mais velhos, mais experientes, mais seguros. Seríamos também mais inteligentes? Não sei... mas certamente éramos mais cáusticos. Não havia essa besteira que se lê nos romances médicos de vomitar ou desmaiar ao se fazer a primeira autópsia. Não depois da batalha de Belleau Wood, quando ratazanas às vezes pariam ninhadas nas barrigas abertas dos soldados que apodreciam em terras de ninguém. Nossas crises de vômitos e desmaios haviam ficado para trás.

         O Harriet White Memorial Hospital também está muito ligado a mim com relação ao que aconteceu comigo nove anos depois da minha residência lá - e esta é a história que quero contar a vocês esta noite. Não é um conto apropriado para o Natal, diriam vocês

(embora a cena final tenha se passado na véspera do Natal), mas ainda assim, apesar de ser verdadeiramente chocante, me parece que expressa a força impressionante da nossa maldita espécie. Neste episódio pude constatar a maravilha que é a nossa força de vontade... e também seu terrível e tenebroso poder.

         O nascimento em si, cavalheiros, é para muitos uma coisa terrível; a moda agora é os pais assistirem ao nascimento de seus filhos, e se por um lado essa moda tem ajudado a fazer com que mu fitos homens sejam tomados por um sentimento de culpa que na minha opinião não merecem (um sentimento de culpa de que algumas mulheres fazem uso conscientemente e com uma crueldade quase presciente), por outro lado parece ser de um modo geral uma coisa saudável e benéfica. Não obstante, tenho visto homens saírem da sala de parto lívidos e trôpegos e desmaiarem como meninas, vencidos pelos gritos e pelo sangue. Lembro-me de um pai que resistiu bem... até começar a gritar histericamente quando seu filho perfeito e saudável saiu de dentro de sua mulher. Os olhos do bebê estavam abertos, pareciam olhar ao seu redor... e então fixaram-se em seu pai.

         O parto é uma coisa maravilhosa, cavalheiros, mas nunca achei que fosse bonito – nem puxando pela imaginação. Acho violento demais para ser bonito. O útero da mulher é como um motor. No momento da concepção o motor é acionado. No início funciona quase em marcha lenta... mas quando o ciclo criador se aproxima do clímax do parto, o motor acelera mais e mais e mais. O bulício da marcha lenta torna-se um zumbido contínuo, depois um rugido e finalmente um urro assustador. Uma vez acionado o motor, toda futura mãe percebe que sua vida está em xeque: ou ela vai parir o bebê e o motor irá parar novamente, ou o motor irá se sacudir e dar pancadas cada vez mais fortes e cada vez mais rápidas até explodir, matando-a de hemorragia e dor.

        Esta é a história de um parto, cavalheiros, na véspera do nascimento que celebramos há quase dois mil anos.

         Comecei a exercer a medicina em 1929 - um péssimo ano para se começar o que quer que fosse. Meu avô pôde me dar uma pequena quantia em dinheiro, e assim tive mais sorte que a maioria de meus colegas, mas mesmo assim a minha sobrevivência nos quatro anos seguintes foi assegurada em sua maior parte pelos meus próprios expedientes.

         Por volta de 1935 as coisas tinham melhorado um pouco. Eu já tinha uma clientela fixa e estava recebendo alguns pacientes externos do White Memorial. Em abril daquele ano atendi uma paciente nova, uma jovem a quem chamarei de Sandra Stansfield – este nome é nem parecido com seu verdadeiro nome. Era uma mulher jovem, branca, que disse ter vinte e oito anos. Depois de examiná-la, calculei que tivesse entre três e cinco anos menos. Ela era loura, magra e alta para a época - por volta de um metro e setenta. Era muito bonita, mas de um jeito tão austero que era quase proibitivo. Suas feições eram bem delineadas e harmônicas, seu olhar era inteligente... e a boca tão desafiadora quanto a boca de pedra de Harriet White na estátua em frente ao Madison Square Garden. O nome que ela escreveu na ficha não foi Sandra Stansfield, mas Jane Smith. Depois de examiná-la, concluí que estava grávida de dois meses mais ou menos. Ela nunca usava aliança.

       Após o exame preliminar - mas antes de chegarem os resultados do teste de gravidez - minha enfermeira, Ella Davidson, disse:

         - Aquela garota de ontem? Jane Smith? Se esse nome não é inventado eu não sei o que é um nome falso.

         Concordei. Ainda assim, pode-se dizer que senti admiração pela moça. Não tinha se comportado de modo infantil, corando na face e enchendo os olhos de lágrimas. Ela fora prática e objetiva. Até mesmo seu pseudônimo parecera ser mais uma questão de interesse pessoal do que propriamente de vergonha. Ela não procurou se comportar como uma heroína. O senhor quer um nome para botar na ficha, ela parecia dizer, porque alei assim o exige. Aqui está um nome, mas a confiar na ética profissional de um homem a quem não conheço, prefiro confiar em mim mesma. Se não se importa.

         Ella torceu o nariz e resmungou alguns comentários - "garotas moderninhas" e "atrevidas" - mas era uma noa mulher, e creio que só tenha dito essas coisas por mera formalidade. Sabia tão bem quanto eu que, fosse quem fosse minha nova paciente, não era nem de longe uma prostituta de olhar cruel e saltos altos. Não; "Jane Smith" era apenas uma jovem extremamente séria e decidida - se é que alguma dessas coisas pode ser expressa por um advérbio tão modesto como "apenas". Era uma situação desagradável (dizia-se "entrar numa enrascada", como vocês devem se lembrar; hoje em dia parece que muitas jovens se utilizam do aborto para se livrarem de uma enrascada, e a intenção dela era levar a gravidez adiante com o máximo de disposição e dignidade.

       Uma semana após sua primeira consulta ela voltou. O dia estava esplêndido - um dos primeiros dias de primavera. A temperatura estava amena, o céu azul claro e havia um aroma na brisa um aroma fresco e indefinível que parece ser um sinal da natureza de que está entrando em seu ciclo de criação outra vez. Era o tipo do dia em que a gente tem vontade de estar bem longe de qualquer responsabilidade, sentado ao lado de uma mulher encantadora em Coney Island, talvez, ou em Palisades na outra margem do Hudson com uma cesta de piquenique sobre uma toalha xadrez e a mulher em questão de chapelão branco e vestido sem mangas, tão linda quanto o dia.

       O vestido de "Jane Smith" tinha mangas, mas mesmo assim era quase tão lindo quanto o dia; um elegante vestido de linho branco com debrum marrom. Ela estava de escarpins marrons, luvas brancas e um chapeuzinho ligeiramente fora de moda - foi o primeiro indício de que ela estava longe de ser uma mulher rica.

       - A senhorita está grávida - disse eu. - Não acredito que tivesse dúvidas.

       Se ela tiver que chorar, pensei, será agora.

        - Não - disse ela, com uma aparência absolutamente tranqüila. Não havia qualquer sinal de lágrimas em seus olhos, assim como não havia qualquer nuvem no horizonte aquele dia. - Minha menstruação sempre foi certa.

       Houve um instante de pausa.

     - Quando é que vai nascer? - perguntou ela, num suspiro quase inaudível. Foi um suspiro que se dá antes de se curvar para pegar alguma coisa pesada.

       - Vai ser um bebê natalino - disse eu. - Dez de dezembro é o seu ponto de referência, mas pode ser duas semanas antes ou depois disso.

       - Está bem. - Ela hesitou um instante, e então foi em frente: - O senhor vai me assistir?

       Mesmo eu não sendo casada?

       - Vou - disse eu. - Mas com uma condição.

       Ela franziu o cenho, e naquele momento seu rosto ficou mais parecido do que nunca com o rosto de Harriet White. Ninguém poderia imaginar que o olhar contrariado de uma mulher de apenas vinte e três anos pudesse expressar tamanho receio. Ela estava pronta para ir embora, e o fato de ter que passar por todo esse constrangimento outra vez com outro médico não iria fazê-la desistir.

     - E qual seria essa condição? - perguntou ela, com uma polidez irrepreensível.

     Então fui eu que senti ímpetos de desviar meus olhos de seus olhos firmes cor de avelã, mas fiquei impassível.

     - Faço questão de saber seu nome verdadeiro. Podemos continuar assim, como quem trata de negócios, se a senhorita preferir, e a Sra. Davidson pode continuar a prescrever suas receitas em nome de Jane Smith. Mas se vamos continuar juntos nos próximos sete meses, eu gostaria de chamá-la pelo nome que usou a vida toda.

       Terminei este pequeno discurso ridiculamente severo e observei - a refletir sobre ele. Por alguma razão eu tinha certeza de que ela iria se levantar, desculpar-se por ter tomado o meu tempo e ir-se para não mais voltar. Eu ficaria decepcionado se isso acontecesse. Gostava dela. Mais do que isso, gostava da maneira franca com que ela estava lidando com um problema que faria com que noventa entre cem mulheres mentissem, apavoradas com o que está crescendo lá dentro e tão profundamente envergonhadas de sua situação que qualquer esforço no sentido de lutar contra isso se torna impossível.

       Creio que muitos jovens hoje em dia achariam essa situação cômica, vergonhosa e até difícil de acreditar. As pessoas se tornaram tão ávidas em demonstrar sua tolerância, que uma gestante sem aliança recebe o dobro de cuidados. Vocês se lembram de quando a situação era bem diferente - no tempo em que a honradez e a hipocrisia eram associadas para criar uma situação extremamente difícil para uma mulher que tivesse se metido numa "enrascada". Naquela época, uma gestante casada era uma mulher radiante, convicta de sua postura e orgulhosa de estar cumprindo a finalidade que considerava ser vontade de Deus. Uma gestante solteira era uma prostituta aos olhos do mundo e suscetível a considerar-se como tal. Usando uma expressão de Ella Davidson, elas eram "fáceis", e naquele mundo e naquela época a "facilidade" não era esquecida da noite para o dia. Essas mulheres iam-se embora para ter os filhos em sua cidade natal. Algumas tomavam remédios ou se jogavam de prédios. Outras procuravam açougueiros que praticavam aborto com mãos sujas, ou tentavam fazer o aborto sozinhas; desde que sou médico já vi quatro mulheres morrerem de hemorragia na minha frente em decorrência de úteros perfurados - em um dos casos a perfuração foi feita com um gargalo pontiagudo de garrafa amarrado ao cabo de um espanador de pó. Hoje em dia fica difícil acreditar que aconteciam coisas desse tipo, mas é verdade, cavalheiros. Essas coisas aconteciam. Era simplesmente a pior situação em que uma mulher sadia poderia se encontrar.

         - Está bem - disse ela, finalmente. - E justo. Meu nome é Sandra Stansfield. – Ela estendeu-me a mão. Um tanto perplexo, apertei sua mão. Fiquei satisfeito que Ella Davidson não tivesse me visto fazer isso. Não faria qualquer comentário, mas o café viria amargo por uma semana.

         Ela sorriu - ante minha expressão tola, imagino - e olhou para mim com sinceridade.

         - Espero que sejamos amigos, Dr. McCarron. Preciso de um amigo neste momento.

       Estou apavorada.

       - Eu entendo, e tentarei ser seu amigo, se puder, Srta. Stansfield. Posso ajudá-la em alguma coisa agora?

       Ela abriu a bolsa e tirou um bloquinho e uma caneta. Abriu o bloco, segurou a caneta e olhou para mim. Por um instante pensei horrorizado que ela ia me pedir o nome e o endereço de um aborteiro. Então ela disse:

       - Gostaria de saber o que é melhor para comer. Para o bebê, quero dizer.

       Dei uma risada. Ela me olhou um pouco espantada.

       - Me desculpe; é que a senhorita parece que está tratando de negócios.

       - Acho que sim - disse ela. meus negócios, não é, Dr. McCarron?

       - É. Claro que é. E tenho um livrete que dou a todas as minhas pacientes grávidas. Trata de dieta, peso, bebida, fumo e muitas outras coisas. Por favor, não ria quando o estiver lendo. Vou ficar magoado, pois fui eu que o escrevi.

         Eu o escrevi - embora fosse mais um folheto do que um livrete, e com o tempo veio a ser o meu livro, Guia prático de gravidez e parto. Eu tinha muito interesse em obstetrícia e ginecologia naquele tempo - e ainda tenho - embora só fosse uma área para se especializar se você tivesse uma boa clientela na zona residencial. E mesmo assim, poderia levar uns dez a quinze anos para ganhar uma boa experiência. Como comecei a clinicar numa idade já bem madura por causa da guerra, achava que não tinha tempo a perder. Eu me contentava com a perspectiva de que veria um grande número de gestantes felizes e traria ao mundo um grande número de bebês durante minha carreira. E foi isso mesmo; pelas minhas últimas contas tinha trazido ao mundo mais de dois mil bebês - o bastante para encher cinqüenta salas de aula.

       Eu me mantinha mais atualizado com as publicações sobre gravidez e parto do que com qualquer outra área clínica. E por serem minhas opiniões firmes e entusiásticas, preferi escrever meu próprio folheto do que adotar aquela mesmice caduca de que dispunham as jovens mães de então. Não vou falar sobre esse catálogo inteiro de mesmices - ficaríamos a noite toda aqui - mas vou citar duas delas.

       Às mulheres grávidas era recomendado que ficassem de pé o mínimo possível, e de maneira nenhuma podiam andar uma distância perfeitamente suportável sob o risco de correr perigo na hora do parto. Ora, parto é um negócio extremamente exaustivo, e tal

conselho seria o mesmo que dizer a um jogador de futebol nas vésperas de um grande jogo que descanse o máximo possível para não ficar cansado! Outro conselho brilhante, dado por muitos médicos bons, era que as gestantes cujo peso estivesse acima do recomendável começassem a fumar... a fumar! Os motivos estavam claramente expressos em um slogan da época: "Fume um cigarro ao invés de chupar uma bala." Quem pensa que quando entramos no século XX estávamos entrando também na era da ciência e do conhecimento médico não faz idéia de como a medicina às vezes Este bebê agora faz parte dos pode ser totalmente insensata. Talvez porque essas pessoas não têm nada a perder; seus cabelos vão ficar brancos do mesmo jeito.

         Dei meu livrete à Srta. Stansfield e ela examinou-o com atenção por uns cinco minutos talvez. Perguntei-lhe se permitiria que eu acendesse meu cachimbo e ela concordou absorta, sem tirar os olhos do livrete. Quando ela finalmente levantou os olhos, havia um pequeno sorriso em seus lábios.

       - O senhor é um radical, Dr. McCarron? - perguntou ela.

     - Por que pergunta isso? Porque aconselho às gestantes caminharem ao invés de pegarem um metrô cheio de fumaça e que anda aos trancos?

       - Vitaminas para o pré-natal, o que quer que sejam... natação recomendável... e exercícios respiratórios! Que tipo de exercícios respiratórios?

       - Isso é para mais tarde; e não, não sou radical. Longe disso. O problema é que estou cinco minutos atrasado para a minha próxima consulta.

       - Me desculpe! - Ela levantou-se rapidamente, enfiando o alentado livrete na bolsa.

       - Não precisa se desculpar.

       Ela vestiu o casaco olhando para mim com aqueles olhos de avelã.

       - Não - disse ela. - Não é radical. Suponho que seja uma pessoa bem... tranqüila. É essa a palavra?

       - Espero que sim - disse eu. - Gosto dessa palavra. Fale com a Sra. Davidson para lhe dar o horário de consultas. Quero ver a senhorita no início do mês que vem.

       - A Sra. Davidson não me aprova.

       - Ora, tenho certeza de que isso não é verdade.

       Mas nunca fui um mentiroso convincente, e o ambiente entre nós de repente esfriou.

       Não a acompanhei à porta da sala de consulta.

       - Srta. Stansfield?

       Ela virou-se com um olhar frio e interrogativo.

       - A senhorita pretende criar seu filho?

       Ela me estudou por um instante e depois sorriu - um sorriso misterioso que tenho certeza que só as mulheres grávidas conhecem.

     - É claro - disse ela, e saiu.

     Até o final daquele dia eu já havia atendido uns gêmeos com intoxicação por plantas venenosas, lancetado um furúnculo, retirado um pedaço de metal do olho de um soldador de chapas e encaminhado um dos meus pacientes mais antigos ao White Memorial para tratar do que com toda a certeza era um câncer. Já havia então me esquecido de Sandra Stansfield. Foi Ella Davidson quem me lembrou ao dizer:

     - Talvez ela não seja uma vagabundazinha afinal de contas.

       Tirei os olhos da ficha do meu último paciente. Estivera correndo os olhos nela, sentindo aquela revolta inútil que a maioria dos médicos sente quando sabem que estão de pés e mãos atados, e imaginando que eu deveria mandar fazer um carimbo para esse tipo de pasta - ao invés de CONTAS A RECEBER ou PAGAMENTOS EFETUADOS ou PACIENTES REMOVIDOS, seria simplesmente SENTENÇAS DE MORTE.

       Talvez com uma caveira e dois ossos cruzados, como nas garrafas de veneno.

       - Perdão, não ouvi.

       - A Srta. Jane Smith. Ela fez uma coisa bastante estranha depois da consulta hoje de manhã. - A expressão do rosto e o tom de voz da Sra. Davidson deixavam claro que este era o tipo de coisa estranha que ela louvava.

       - E o que foi?

       - Quando dei a ela o cartão de consultas, me pediu para calcular suas despesas. Todas as despesas. Inclusive o parto e as diárias do hospital.

      Aquilo era sem dúvida uma coisa estranha. Estávamos em 1935, lembrem-se, e a Srta.

Stansfield dava toda a impressão de ser uma mulher sozinha. Será que ela tinha uma boa situação, ou mesmo uma situação razoável? Eu duvidava muito. O vestido, os sapatos e as luvas eram elegantes, mas ela não usava jóias - nem mesmo jóias de fantasia. E havia

também o chapéu, definitivamente fora de moda.

       - E você calculou? - perguntei.

       A Sra. Davidson olhou para mim como se eu tivesse perdido o...

       - Se eu calculei? É claro que sim! E ela pagou tudo. Em dinheiro vivo.

       Esta última informação, que aparentemente mais surpreendera a Sra. Davidson (de modo bastante favorável, é claro), não me surpreendeu em absoluto. Uma das coisas que as Jane Smiths da vida não conseguem fazer é preencher cheques.

       - Tirou um envelope de banco da bolsa, abriu-o e contou o dinheiro em cima da minha mesa - continuou a Sra. Davidson. Então colocou a receita dentro do envelope, guardou-o na bolsa de novo e disse até logo. Nada mau em comparação àquelas chamadas pessoas "de bem" que temos que perseguir para que paguem as contas!

       Senti-me vexado por alguma razão. Não gostei da Srta. Stansfield ter feito aquilo, nem do fato da Sra. Davidson ter ficado alegre e satisfeita com as providências, e nem comigo mesmo, por alguma razão que não consegui e nem consigo agora explicar. Alguma coisa me fez sentir pequeno.

       - Mas ela não poderia pagar pelas diárias do hospital agora, poderia? - perguntei. Era um argumento ridiculamente insignificante, mas foi só o que consegui dizer naquele momento para expressar meu ressentimento e minha frustração. - Afinal de contas, ninguém sabe quanto tempo ela vai ter que ficar lá. Ou será que você agora está lendo a bola de cristal, Ella?

     - Eu disse a ela justamente isso, e ela me perguntou quanto tempo em média levava uma internação de um parto sem problemas. Disse a ela seis dias. Não é isso mesmo, Dr. McCarron?

     Tive que admitir que sim.

     - Ela disse que nesse caso pagaria por seis dias, e se a internação fosse mais longa ela pagaria a diferença, e se...

     - Se fosse mais curta, nós devolveríamos a diferença - completei aborrecido. Pensei: Essa mulher que se dane! - e depois ri. - Ela tem coragem. E que coragem!

       A Sra. Davidson permitiu-se sorrir... e se agora que estou caduco for tentado a acreditar que sei tudo o que há para se saber sobre um de meus colegas, tento me lembrar daquele sorriso: Até aquele dia eu teria apostado minha vida que eu jamais veria a Sra. Davidson, uma das mulheres mais "pudicas" que já conheci, sorrir ternamente ao se referir a uma menina que engravidou sem ser casada.

     - Coragem? Não sei, doutor. Mas ela sabe o que faz. Com toda a certeza.

       Um mês se passou, e a Srta. Stansfield compareceu pontualmente à consulta, surgindo daquela enorme e assombrosa massa de gente que era e é New York. Ela usava um vestido azul de verão com o qual pretendia exteriorizar uma sensação de originalidade, de exclusividade, apesar do fato de que era óbvio que tinha saído de um cabide com dezenas iguais a ele. Seus escarpins não combinavam com ele, eram os mesmos escarpins marrons que eu tinha visto da primeira vez.

       Examinei-a cuidadosamente e achei que tudo estava normal. Disse-lhe isso e ela ficou satisfeita.

       - Encontrei as vitaminas do pré-natal, Dr. McCarron.

       - É mesmo? Isso é ótimo.

       Seus olhos brilharam com malícia.

       - O farmacêutico me aconselhou a não torná-las.

       - Deus me livre dos boticários - disse eu, e ela riu com a mão sobre a boca - foi um gesto infantil que passou por cima de sua inibição. - Nunca vi um farmacêutico que não fosse um médico frustrado. E republicano. As vitaminas do pré-natal são novidade, por isso são encaradas com desconfiança. A senhorita seguiu o conselho dele?

       - Não, segui o seu. Meu médico é o senhor.

       - Obrigado.

       - Não há de quê. - Ela me olhou nos olhos, sem sorrir. Dr. McCarron, quando é que a barriga vai começar a aparecer?

       - Acho que até agosto não deve aparecer. Em setembro, se a senhorita usar roupas... largas.

       - Obrigada. - Ela pegou a bolsa mas não se levantou imediatamente para sair. Achei que ela queria falar... e não sabia nem por onde começar.

       - A senhorita trabalha, suponho.

       Ela fez que sim com a cabeça.

       - Sim, trabalho.

       - Posso saber onde? Se a senhorita não quiser...

     Ela riu - um riso ligeiro e sem graça, tão diferente de uma risada quanto o dia da noite.

     - Numa loja de departamentos. Onde mais uma mulher solteira trabalharia nesta cidade?

     Vendo perfumes a senhoras gordas que fazem rinsagem e permanente nos cabelos.

     - Até quando vai continuar lá?

     - Até que meu estado delicado se torne visível. Então suponho que eu seja convidada a ir embora, para não deixar as senhoras gordas aborrecidas. O choque de ser atendida por uma mulher grávida sem aliança pode fazer com que seus cabelos se estiquem outra vez.

     De repente seus olhos ficaram cheios d'água. Seus lábios começaram a tremer e eu procurei atabalhoadamente um lenço. Mas as lágrimas não correram - apenas e somente uma lágrima. Seus olhos se encheram por um momento e então se fecharam. Ela apertou os lábios... e depois relaxou. Simplesmente decidiu que não iria perder o controle de suas emoções... e não perdeu. Foi uma coisa extraordinária de ser observada.

     - Me desculpe - disse ela. - O senhor tem sido muito gentil comigo. Não vou retribuir sua gentiliza com o que seria um lugar comum.

     Ela se levantou para sair e eu me levantei também.

     - Não sou um mau ouvinte - disse eu, - e tenho tempo. Meu próximo cliente cancelou a consulta.

     - Não - disse ela. - Obrigada, mas não.

     - Está bem - disse eu. - Mas tem outra coisa.

     - O quê?

     - Não é meu costume fazer com que meus clientes - qualquer cliente - pague adiantado pelos serviços. Espero que a senhorita... isto é, se a senhorita quisesse... ou tivesse que...

     - E me calei desajeitadamente.

     - Moro em New York há quatro anos, Dr. McCarron, e sou econômica por natureza.

Depois de agosto - ou setembro - terei de viver com as minhas economias até poder voltar a trabalhar. Não é uma grande quantia, e às vezes, principalmente durante a noite, fico apreensiva.

       Ela me olhava com firmeza com aqueles maravilhosos olhos de avelã.

     - Achei melhor - mais seguro - pagar logo para ter o bebê. Antes de qualquer coisa.     Porque para mim o bebê está em primeiro lugar, e porque mais tarde a tentação de gastar esse dinheiro pode se tornar muito grande.

       - Está bem - disse eu. - Mas, por favor, lembre-se de que considero isso um pagamento adiantado. Se precisar do dinheiro, é só falar.

       - E despertar o mau gênio da Sra. Davidson outra vez? - O olhar maroto voltou aos seus olhos. - De jeito nenhum. Mas, doutor...

       - Você pretende trabalhar o máximo de tempo possível? Tanto quanto for possível?

       - Pretendo. Eu tenho que trabalhar. Porquê?

       - Acho que vou assustá-la um pouco antes que vá embora - disse eu.

       Seus olhos se arregalaram um pouco.

       - Não faca isso - disse ela. - Já estou bastante assustada.

       - É por isso mesmo. Sente-se um pouco, Srta. Stansfield. Mas ela continuou de pé, e eu acrescentei: - Por favor.

       Ela sentou-se. Relutante.

       - A senhorita está numa situação delicada e nada invejável disse a ela, sentado no canto da minha mesa. - Está levando tudo com uma dignidade excepcional.

         Ela começou a falar, mas levantei a mão para que esperasse.

         - Isso é bom. Eu lhe cumprimento por isso. Mas não gostaria de vê-la machucar seu bebê por causa de segurança financeira. Tive uma cliente que, apesar das minhas incansáveis advertências, continuou a se apertar dentro de uma cinta mês após mês, apertando-a cada vez mais. Era uma mulher vaidosa, ignorante e desagradável, e não acredito que ela quisesse mesmo o filho. Não concordo com muitas dessas teorias do subconsciente sobre as quais todo mundo discute hoje em dia em frente a tabuleiros de dominó chinês, mas se concordasse diria que ela, ou alguma parte dela, estava tentando matar o bebê.

       - E ela matou? - Sua expressão era de tranqüilidade.

       - Não, não matou. Mas o bebê nasceu retardado. É bem possível que fosse retardado de qualquer jeito, e não estou dizendo O contrário - sabemos muito pouco sobre as causas desse tipo de coisa. Mas ela pode ter causado isso.

       - Eu entendo - disse ela, em voz baixa. - O senhor não quer que eu... me aperte para poder trabalhar um mês ou seis semanas a mais. Confesso que cheguei a pensar nisso.

Portanto... obrigada pelo susto.

         Desta vez, acompanhei-a até a porta. Gostaria de ter perguntado a ela quanto - se muito ou pouco - havia deixado naquele envelope com as suas economias, e até quando aquela quantia iria dar. Era uma pergunta que ela não responderia; eu sabia disso muito bem. Por isso, apenas me despedi e fiz um comentário engraçado a respeito das vitaminas.

Ela foi embora. Durante o mês seguinte me pegava pensando nela em momento ociosos, e...

     Neste ponto, Johanssen interrompeu a história de McCarron. Os dois eram velhos amigos, e suponho que isso lhe desse o direito de fazer a pergunta que com certeza todos tínhamos na cabeça.

     - Você a amava, Emlyn? É sobre isso a história, esse negócio sobre os olhos e o sorriso dela e de como você "pensava nela em momentos ociosos?"

     Achei que McCarron pudesse ficar chateado com esta interrupção, mas não ficou.

       - Você tem o direito de perguntar isso - disse ele, e se calou, olhando para o fogo.

Parecia que ele estava prestes a cochilar. Então um pedaço de madeira seca estalou, fazendo com que pedacinhos de brasa subissem pela chaminé, e McCarron olhou à sua volta, primeiro para Johanssen e depois para todos nós.

     - Não. Eu não a amava. As coisas que falei sobre ela parecem coisas que um homem teria notado se estivesse se apaixonando seus olhos, seus vestidos, seu sorriso. – Ele acendeu o cachimbo com um isqueiro peculiar que levava sempre consigo, aspirando a chama até formar uma camada de brasa. Então fechou o isqueiro, colocou-o no bolso do casaco e soltou uma nuvem de fumaça que desceu devagar sobre sua cabeça como uma névoa aromática.

     - Eu a admirava. nada mais do que isso. E minha admiração aumentava a cada consulta.

Acho que alguns de vocês pensam que esta é uma história de amor interrompida pelas circunstâncias. Nada poderia estar mais longe da verdade. A história dela me foi contada aos poucos durante os seus meses seguintes, e quando vocês ouvirem-na, acho que concordarão que era uma história tão comum quanto ela disse que era. Tinha sido atraída pela cidade como milhares de outras garotas; tinha vindo de uma cidade pequena...

       ... em lowa ou Nebraska. Ou talvez fosse Minnesota - não me lembro mais. Ela tinha feito teatro na escola e no teatro comunitário da sua cidadezinha - com comentários favoráveis no hebdomadário local escritos por um crítico teatral formado em Inglês pelo Cow and Sileage Junior College - e veio para Nova Iorque tentar uma carreira de atriz.

       Ela era prática mesmo com relação a isso - tão prática quanto uma ambição teórica nos deixa ser. Veio para Nova Iorque, disse-me, porque não acreditava na tese despojada das revistas de cinema - que qualquer garota que fosse para Hollywood poderia se tornar uma estrela, que num dia podia estar tomando soda no Schwab's Drugstore e no dia seguinte estar contracenando com Gable ou MacMurray. Veio para Nova Iorque, disse ela, porque pensou que pudesse ser mais fácil começar aqui... e, acho eu, porque se interessava mais pelo teatro do que pelo cinema.

       Conseguiu um emprego numa das grandes lojas de departamentos e entrou num curso de teatro. Era inteligente e decidida, essa garota - tinha uma enorme força de vontade - mas era humana como qualquer pessoa. Era solitária também. Solitária no sentido que talvez apenas garotas solteiras recém-chegadas de cidadezinhas do meio-oeste compreendam. Nem sempre a nostalgia é um sentimento indefinido, melancólico e quase belo, embora seja assim que sempre a imaginamos. Pode ser uma lâmina bem afiada, não apenas uma doença em metáfora mas também de fato. Ela pode mudar o modo de uma pessoa encarar o mundo; as caras com as quais se cruza nas ruas parecem não apenas insignificantes, mas também medonhas... talvez até nefastas. A nostalgia é uma doença real a dor da planta arrancada.

         A Srta. Stansfield, por mais admirável que possa ter sido, por mais determinação que possa ter tido, não era imune a isso. E o que vem depois disso é tão banal que nem é preciso contar. Havia um rapaz na sua aula de teatro. Os dois saíram diversas vezes. Ela não o amava, mas precisava de um amigo. Quando ela descobriu que ele não era aquilo que ela pensava e que jamais seria, já haviam ocorrido dois incidentes. Incidentes sexuais. Ela descobriu que estava grávida. Contou a ele, que lhe disse que iria ajudá-la e "agir condignamente". Uma semana depois ele havia desaparecido de onde morava, sem deixar qualquer endereço. Foi então que ela me procurou.

       No seu quarto mês de gravidez, apresentei à Srta. Stansfield o Método Respiratório – o que hoje em dia é chamado de Método Lamaze. Naquele tempo, vocês sabem, Monsieur Lamaze ainda não era conhecido.

       Naquela época - já repeti essa expressão várias vezes, sei disso. Desculpem, mas não posso fazer nada - tudo o que já contei e ainda vou contar aconteceu assim porque foi "naquela época".

       Assim... "naquela época", há quarenta e cinco anos atrás, uma visita à sala de parto de qualquer grande hospital americano teria parecido mais uma visita a um hospício. Mulheres chorando desesperadamente, dizendo aos berros que preferiam morrer, que não agüentavam tanta dor, pedindo a Deus que perdoasse seus pecados, desfiando blasfêmias e impropérios que seus pais e maridos nunca imaginariam que elas soubessem. Tudo isso é bem aceitável, apesar do fato de que a maioria das mulheres de todo o mundo dão à luz quase que em silêncio absoluto, com exceção dos resmungos de esforço que associaríamos a qualquer trabalho físico pesado.

       Os médicos eram responsáveis por parte dessa histeria, sinto dizer isso. As histórias que as gestantes ouviam de amigas e parentes que já tinham passado por isso também contribuíam. Podem acreditar: se disserem a vocês que alguma experiência vai doer, ela

vai doer. Grande parte da dor está na cabeça, e quando uma mulher encasqueta a idéia de que o ato de dar à luz é terrivelmente doloroso - quando ela recebe esta informação da mãe, das irmãs, das amigas casadas, e do seu médico - ela já está mentalmente preparada para sentir uma enorme dor.

       Mesmo depois de apenas seis anos de prática, já tinha me acostumado a ver mulheres tentando lutar contra um problema duplo: não apenas o fato de estarem grávidas e terem que preparar tudo para o recém-nascido, mas também o fato de que - o que muitas consideravam como fato - tinham entrado no vale da sombra da morte. Na verdade, muitas tentavam deixar tudo na mais absoluta ordem, pois caso morressem seus maridos poderiam se virar sem elas.

       Agora não é hora nem lugar para uma aula de obstetrícia, mas vocês devem saber que durante muito tempo, até "aquela época", o parto era extremamente perigoso em países ocidentais. Uma revolução no procedimento médico, por volta de 1900, tornou o processo muito mais seguro, mas um número ridiculamente pequeno de médicos insistiam em contar esse tipo de coisa às futuras mães. Só Deus sabe por quê. Em vista disso, é de se admirar que a maioria das salas de parto parecesse uma enfermaria de hospício? Aqui estão essas pobres mulheres, sua hora finalmente tendo chegado, passando por uma experiência que, por causa do decoro quase vitoriano da época, lhes foi descrita da maneira mais obscura; aqui estão essas mulheres sentindo a máquina de fazer nascer funcionando a todo vapor. Elas são tomadas por um misto de medo e surpresa que transformam imediatamente numa dor insuportável, e a maioria pensa que logo morrerá como um cachorro.

       Enquanto eu lia a respeito de gravidez, descobri o princípio do parto silencioso e o objetivo do Método Respiratório. Gritar desperdiça uma energia que seria melhor aproveitada para expulsar o bebê, causa uma oxigenação excessiva do sangue que deixa o corpo em estado de emergência - descargas enormes de adrenalina, aumento do ritmo respiratório e cardíaco - o que é absolutamente desnecessário. O objetivo do Método Respiratório é fazer com que a mãe concentre sua atenção no trabalho de parto e lute contra a dor com os próprios recursos de seu corpo.

       Este método era largamente empregado na Índia e na África; nos Estados Unidos, pelos índios Shoshone, Kiowa e Micmac; os esquimós sempre se utilizaram dele; mas, como vocês devem imaginar, a maioria dos médicos ocidentais nunca se interessou muito por isso. Um colega meu - um sujeito inteligente - devolveu meu folheto de gravidez no outono de 1931 com um risco vermelho sobre toda a parte do Método Respiratório. Na margem ele escreveu que se estivesse interessado em "superstições de negros" 'iria à banca de jornal comprar um exemplar de Histórias Fantásticas!

       Bem, não retirei do folheto a parte que ele havia sugerido, mas eu já tinha tido êxitos e fracassos com o método - isso era o melhor que se poderia dizer. Houve mulheres que usaram-no com muito sucesso. Houve outras que davam a impressão de ter entendido perfeitamente a idéia em princípio mas que perdiam completamente a disciplina assim que as contrações se tornavam fortes e rápidas. Descobri que na maior parte desses casos toda a idéia tinha sido deturpada e destruída por amigas e parentes bem intencionadas que nunca tinham ouvido falar de uma coisa dessas, e portanto não poderiam acreditar que realmente funcionasse.

       O método baseava-se na idéia de que, embora não haja dois trabalhos de parto iguais em aspectos específicos, todos são bem parecidos em aspectos gerais. Existem quatro estágios: contrações, dilatação, expulsão e expulsão da placenta. As contrações são um endurecimento completo dos músculos abdominais e pélvicos, e a futura mãe começa a senti-las no sexto mês. Muitas mulheres grávidas pela primeira vez imaginam que vão sentir algo desagradável, como cólicas intestinais, mas me disseram que é muito menos

pungente - uma sensação física forte, que pode se transformar numa dor como de cãibra.

Uma mulher que fizesse uso do Método Respiratório começaria a respirar numa série de aspirações e expirações curtas e compassadas ao sentir o início de uma contração. A expiração seria um sopro, como Dizzy Gillespie soprando um trompete.

       Durante a dilatação, quando as contrações são mais dolorosas num intervalo de quinze minutos aproximadamente,. a aspiração e a expiração são longas - é assim que corredores de maratona respiram quando estão chegando ao fim da corrida. Quanto mais forte for a contração, mais longa será a respiração. No meu folheto, dei a esta etapa o nome de "cavalgando sobre as ondas".

       A etapa final dei o nome de "locomotiva", e os seguidores de Lamaze hoje em dia chamam de etapa "xu-xu" de respiração. A fase de expulsão é acompanhada de dores freqüentemente descritas como profundas e agudas, associadas a uma necessidade irresistível da mãe de fazer força... para expulsar o bebê. Este é o ponto, cavalheiros, em que aquela máquina maravilhosa e assustadora alcança seu clímax. O colo do útero está totalmente dilatado. O bebê já iniciou sua curta viagem pelo canal vaginal, e se olhássemos diretamente entre as pernas da mãe, poderíamos ver a fontanela do bebê pulsando a apenas alguns centímetros. A parturiente que se utiliza do Método Respiratório começa neste momento a fazer aspirações e expirações curtas e fortes pela boca meio fechada, sem encher os pulmões, sem oxigenar demais o sangue, mas quase ofegando de forma controlada. É o barulho que as crianças fazem quando imitam uma locomotiva a vapor.

       Tudo isso produz um efeito salutar no corpo - a taxa de oxigênio da mãe se mantém alta sem que seu organismo entre em estado de emergência, e ela própria se mantém informada e atenta, podendo fazer perguntas e receber instruções. Porém o mais importante eram os efeitos mentais do Método Respiratório. A parturiente sentia que estava participando ativamente do Nascimento do filho - que de alguma forma estava comandando o processo. Ela sentia que estava controlando a experiência... e controlando a dor.

       Vocês podem perceber que todo o processo dependia totalmente do estado psicológico da paciente. O Método Respiratório era extremamente vulnerável, extremamente delicado, e se ele fracassou muitas vezes comigo, a minha explicação é esta. aquilo de que um médico convence uma paciente, seus parentes podem convencê-la do contrário,horrorizados ao tomarem conhecimento de uma prática tão selvagem.

       Pelo menos sob esse aspecto a Srta. Stansfield era a paciente ideal. Não tinha parentes ou amigos para convencê-la a desacreditar no Método Respiratório (embora, para falar a verdade, eu deva acrescentar que duvido que alguém tivesse conseguido dissuadi-la de qualquer coisa depois de ela ter tomado uma decisão sobre o assunto) depois que ela passou a acreditar nele. E ela passou a acreditar nele.

       - É um pouco como auto-hipnose, não é? - ela perguntou, na primeira vez que falamos no assunto.

       Concordei, encantado.

       - Exatamente! Mas não vá pensar que é um truque, ou que vai deixá-la deprimida quando o negócio ficar difícil.

     - De jeito nenhum. Estou muito grata ao senhor. Vou praticar assiduamente, Dr. McCarron. - Ela era o tipo de mulher para a qual o Método Respiratório fora inventado, e quando ela me disse que iria praticá-lo, estava dizendo a pura verdade. Eu nunca tinha visto alguém aceitar uma idéia com tanto entusiasmo... mas, é claro, o Método Respiratório adaptava-se perfeitamente ao seu temperamento. Há milhões de homens e mulheres dóceis neste mundo, e algumas dessas pessoas são extraordinárias. Mas há outras cujas mãos anseiam por segurar as rédeas de suas próprias vidas, e a Srta. Stansfield era uma dessas.

       Quando digo que ela adotou totalmente Método Respiratório, estou falando sério... e acho que a história de seu último dia na loja de departamentos onde vendia perfumes e cosméticos é uma prova concreta.

       Ela perdeu finalmente seu lucrativo emprego no final de agosto. A Srta. Stansfield era uma jovem magra de boa condição física e este era, claro, seu primeiro filho. Qualquer médico diria que um tipo desses de mulher não se faz "notar" até o quinto ou sexto mês... e então, de repente, um dia fica tudo evidente.

       Ela veio para a consulta mensal no dia 1° de setembro, com um sorriso triste, e me disse ter descoberto outra utilidade para o Método Respiratório.

       - Qual é? - perguntei.

       - É melhor do que contar até dez quando se está morrendo de raiva de alguém – disse ela. Seus olhos de avelã estavam brilhando. - Embora olhem para você como se você fosse louco quando começa a bufar e soprar.

       Ela me contou a história sem demora. Fora trabalhar na segunda-feira anterior, como de costume, e eu só posso deduzir que a rápida e curiosa transformação de uma jovem esbelta em uma jovem grávida - e essa transformação pode acontecer do dia para a noite nos trópicos - tenha se dado no final de semana. Ou talvez sua supervisora tenha por fim se convencido de que suas suspeitas não eram mais apenas suspeitas.

       - Quero que vá à minha sala no intervalo - disse, friamente, a tal da Sra. Kelly. O relacionamento entre as duas já havia sido bastante cordial. A Sra. Kelly lhe mostrara fotografias de seus dois filhos, ambos no segundo grau, e as duas chegaram inclusive a trocar receitas. A Sra. Kelly sempre lhe perguntava se ela já tinha encontrado "um bom rapaz". Aquela gentileza e a cordialidade haviam desaparecido. E quando ela entrou na sala da Sra. Kelly, sabia o que esperava por ela, disse-me.

       - Você está numa enrascada - disse, laconicamente, aquela mulher antes gentil.

       - Eu sei - disse a Srta. Stansfield. - É assim que algumas pessoas chamam.

       O rosto da Sra. Kelly ficou da cor de um tijolo.

       - Não se faça de engraçadinha comigo, mocinha - disse ela. - Pelo tamanho da sua barriga você já deu provas da sua esperteza.

       Eu podia imaginar a cena enquanto ela me contava a história - a Srta. Stansfield, com seus olhos de avelã fixos na Sra. Kelly, absolutamente calma, sem querer baixar os olhos, ou chorar, ou mostrar-se envergonhada. Acredito que ela tivesse uma noção muito mais prática da enrascada em que se metera do que a sua supervisora, mãe de dois filhos crescidos e mulher de um sujeito honesto, que tinha uma barbearia e votava no Partido Republicano.

     - Quero dizer que você não se envergonha nem um pouco por ter me enganado desse jeito - exclamou a Sra. Kelly, com rancor.

     - Eu nunca enganei a senhora. Até hoje minha gravidez não tinha sido mencionada. - Ela olhou interrogativamente para a Sra. Kelly. - Como pode dizer que enganei a senhora?

     - Eu levei você na minha casa! - exclamou a Sra. Kelly. Convidei você para jantar...

com os meus filhos. - Ela olhava para a Srta. Stansfield com total repugnância.

       Foi então que a Srta. Stansfield começou a ficar indignada. Mais indignada do que nunca, me disse ela. Sabia muito bem que tipo de reação poderia esperar quando o segredo fosse descoberto, mas como todos vocês sabem, a diferença entre a teoria acadêmica e a aplicação prática pode às vezes ser enorme.

       Segurando firmemente uma mão na outra sobre o colo, a Srta. Stansfield disse:

       - Se a senhora está insinuando que eu fiz ou que faria qualquer tentativa de seduzir seus filhos, isso é a coisa mais suja, mais baixa que já ouvi na vida.

         A Sra. Kelly jogou a cabeça para trás como se tivesse levado um tapa na cara. A cor avermelhada desapareceu de seu rosto, ficando apenas duas manchinhas róseas nas bochechas. As duas mulheres entreolhavam-se duramente por sobre uma mesa coberta de amostras de perfume numa sala que cheirava ligeiramente a flores. Foram momentos, disse a Srta. Stansfield, que pareceram muito mais longos do que na verdade foram.

       Então a Sra. Kelly abriu com um puxão uma das gavetas e tirou um cheque amarelo-claro. Preso a ele havia um papelzinho cor-de-rosa de rescisão de contrato de trabalho. Com os dentes à mostra, parecendo morder cada palavra, ela disse:

       - Com centenas de moças decentes à procura de emprego nesta cidade, não acho que precisamos de uma vagabunda como você aqui, querida.

       Ela me disse que foi o termo "querida", dito de forma arrogante, que fez com que sua raiva se transformasse numa súbita calma. No instante seguinte o queixo da Sra. Kelly caiu e seus olhos se esbugalharam quando a Srta. Stansfield, com as mãos tão fortemente entrelaçadas quanto os elos de uma corrente de aço, tão apertadas que ficaram com equimoses (já estavam desaparecendo, mas ainda perfeitamente visíveis quando estive com ela no dia 19 de setembro), começou a fazer a "locomotiva" por entre os dentes.

       Talvez não fosse uma história engraçada, mas eu caí na gargalhada imaginando a cena e a Srta. Stansfield também. A Sra. Davidson veio dar uma olhada - para ver se não estávamos envoltos numa nuvem de gás hilariante - e depois saiu.

     - Era a única coisa que eu podia fazer - disse a Srta. Stansfield, ainda rindo e enxugando os olhos com um lenço. - Porque naquele momento me vi varrendo aqueles frascos de perfume todos, sem exceção - de cima da mesa para o chão, que era de cimento. Eu não

imaginei apenas, eu vi! V i os frascos se quebrarem no chão e encherem a sala com um fedor tão horrível de perfumes misturados que eles teriam que fazer uma fumigação, Eu ia fazer aquilo; nada iria me impedir. Então comecei afazer a "locomotiva" e tudo ficou bem. Pude pegar o cheque e o papelzinho cor-de-rosa, me levantar e sair. Não consegui agradecer a ela, é claro - eu ainda estava fazendo a "locomotiva".

       Rimos outra vez, e então ela ficou séria.

       - Agora que já passou, sinto até um pouco de pena dela - ou será que fica piegas dizer isso?

       - Absolutamente. Acho que é admirável ser capaz de sentir isso.

       - Posso lhe mostrar o que comprei com o dinheiro do aviso prévio, Dr. McCarron?

       - Claro, se quiser.

       Ela abriu a bolsa e tirou de dentro uma caixinha chata.

       - Comprei numa casa de penhores - disse ela. - Por dois dólares. E foi a única vez nesse pesadelo todo que me senti envergonhada e sórdida. Não é estranho?

       Ela abriu a caixa e colocou sobre a minha mesa para que eu pudesse ver. Não fiquei surpreso com o que vi. Era uma aliança de ouro.

       - Farei o que for necessário - disse ela. - Vou continuar no lugar que a Sra. Kelly teria sem dúvida chamado de "pensão familiar". A minha senhoria tem sido gentil e amável...

mas a Sra. Kelly também era gentil e amável. Acho que ela pode me pedir para sair a qualquer momento, e imagino que se eu disser qualquer coisa sobre meu saldo ou sobre o depósito para cobrir danos que fiz quando me mudei para lá, ela vai rir na minha cara.

       - Minha querida jovem, isso é totalmente ilegal. Existem tribunais e advogados para ajudá-la a responder tais...

       - Os tribunais são clubes masculinos - disse ela, com firmeza, - incapazes de se darem o trabalho de ajudar uma mulher na minha situação. Talvez eu conseguisse reaver meu dinheiro, talvez não. De qualquer maneira, a despesa e o aborrecimento dificilmente valeriam os quarenta e sete dólares. Não era minha intenção lhe contar isso. Ainda não aconteceu, e talvez não aconteça. Mas de qualquer modo, pretendo ser prática daqui para a frente.

       Ela levantou a cabeça, e seus olhos brilharam para os meus.

     - Tenho um lugar em vista no Village - só por garantia. Fica num terceiro andar, mas é limpo, e é cinco dólares a menos por mês do que onde estou agora. - Ela tirou a aliança da caixa. - Eu estava de aliança quando a senhoria me mostrou o quarto.

       Ela colocou a aliança no dedo anular da mão esquerda e fez uma careta que acredito que não tenha se dado conta.

     - Pronto. Agora sou a Sra. Stansfield. Meu marido era motorista de caminhão e morreu na estrada de Pittsburgh para Nova Iorque. Muito triste. Porém não sou mais uma prostituta de salto alto, e meu filho não é mais um bastardo.

     Ela olhou para mim, e havia lágrimas em seus olhos outra vez. Enquanto eu a olhava, uma lágrima correu por sua face.

     - Ora - disse eu, aflito, e alcancei sua mão do outro lado da mesa. Estava muito, muito fria. - Não fique assim.

       Ela virou sua mão - era a esquerda - na minha mão e olhou para a aliança. Sorriu, e aquele sorriso era amargo como fel e vinagre, cavalheiros. Outra lágrima escorreu - e só mais essa.

       - Quando eu ouvir os céticos dizerem que a era das mágicas e dos milagres terminou, Dr. McCarron, saberei que estão enganados, não é? Quando se pode comprar uma aliança numa casa de penhores por dois dólares e essa aliança elimina tanto a bastardia quanto a licenciosidade, que outro nome o senhor daria a isso que não fosse mágica?

Mágica barata.

     - Srta. Stansfield... Sandra, se eu puder... se você precisar de ajuda, se houver alguma coisa que eu possa fazer...

       Ela tirou sua mão das minhas - se eu tivesse pego sua mão direita em vez da esquerda, talvez ela não tivesse feito isso. Eu não a amava, já lhes disse, mas naquele momento eu poderia tê-la amado; eu estava a um passo de me apaixonar por ela.- Talvez se eu tivesse pego sua mão direita ao invés da que tinha a aliança, e se ela tivesse deixado que eu a segurasse um pouco mais, até que minha mão a esquentasse, talvez entã o eu tivesse me apaixonado.

       - O senhor é um homem bom e gentil, e tem feito muito por mim e pelo meu bebê... e o seu Método Respiratório é uma mágica bem melhor do que esta aliança horrorosa.

Afinal, o Método Respiratório evitou que eu fosse presa por destruição intencional, não é?

       Ela se foi logo depois, e fui até a janela para vê-la descer a rua em direção à Quinta Avenida. Meu Deus, como admirei-a naquele momentos Era tão esguia, tão jovem e a gravidez era evidente mas não demonstrava qualquer timidez ou falta de segurança. Ela não andava às pressas; seguia como se tivesse todo o direito ao seu lugar na calçada.

       Ela sumiu de vista e voltei para a minha mesa. Neste momento, meus olhos foram atraídos pela fotografia emoldurada que ficava na parede ao lado do meu diploma e senti um calafrio percorrer meu corpo. Minha pele - o corpo inteiro, até mesmo minha testa e o dorso das mãos - arrepiou-se toda. Um medo sufocante, o ma sor de toda a minha vida, cobriu-me como uma terrível mortalha, e senti falta de ar. Foi uma premonição, cavalheiros. Eu não discuto se esse tipo de coisa pode ou não acontecer; sei que pode, pois aconteceu comigo. Apenas uma vez, naquela tarde quente de setembro. Peço a Deus que não me aconteça mais isso.

       A fotografia tinha sido tirada por minha mãe no dia em que terminei a faculdade. Eu estava em frente ao White Memorial, com as mãos para trás, rindo com todos os dentes como um guri que tivesse acabado de ganhar ingressos para um dia inteiro num parque de diversões. A minha esquerda pode-se ver a estátua de Harriet White, e embora a fotografia corte-a pelas canetas, o pedestal e aquela inscrição estranhamente cruel – Não há bem-estar sem dor, a salvação virá através do sofrimento - estavam bem nítidos. Foi no pé da estátua da primeira mulher do meu pai, bem debaixo daquela inscrição, que Sandra Stansfield morreu menos de quatro meses depois num acidente estúpido assim que chegou ao hospital para ter o bebê.

       Ela mostrava-se um pouco preocupada naquele outono com a hipótese de eu não estar presente ao seu parto - que eu fosse passar as festas fora ou não estivesse disponível. Estava meio temerosa de dar à luz com outro médico que não desse ouvidos à sua vontade de usar o Método Respiratório e lhe aplicasse um gás anestésico ou uma anestesia raquiana.

Eu disse a ela que não se preocupasse. Não tinha motivos para me ausentar da cidade, não tinha parentes para visitar nos feriados. Minha mãe tinha morrido dois anos antes, e eu não tinha mais ninguém além de uma tia solteirona na Califórnia... e eu não gostava de viajar de trem, disse eu à Srta. Stansfield.

       - O senhor está sempre sozinho? - perguntou ela.

       - As vezes. Geralmente estou ocupado demais. Tome isto aqui. - Anotei meu telefone de casa num cartão e dei a ela. - Se o serviço de recados atender quando seu trabalho de parto começar, telefone para cá.

     - Não, eu não queria...

     - Quer usar o Método Respiratório ou quer ficar nas mãos de um médico que pense que você ficou louca e faça você respirar éter assim que começar a fazer a "locomotiva"?

     Ela deu um breve sorriso.

     - Está bem. Já me convenceu.

   Mas enquanto o outono avançava e os açougueiros da Terceira Avenida começaram a anunciar suas "carnes frescas e suculentas" a preços módicos, ficou claro que ela ainda não estava tranqüila. Tinha sido convidada a se mudar do lugar onde morava quando a conheci, e estava morando no Village. Mas isso, pelo menos, tinha sido muito bom para ela. Tinha até arranjado uma espécie de trabalho. Uma mulher cega com uma renda bem razoável a tinha contratado para fazer tarefas domésticas leves e ler para ela as obras de Gene Stratton e Pearl Buck. Morava no primeiro andar do prédio para onde a Srta. Stansfield se mudara. A Srta. Stansfield estava com aquela aparência viçosa que a maioria das mulheres saudáveis adquirem no último trimestre de gravidez. Mas havia uma sombra em seu rosto. Eu falava com ela e ela demorava a responder... e uma vez, quando não respondeu nada, tirei os olhos das anotações que estava fazendo e a vi olhando para a fotografia emoldurada ao lado do meu diploma com um olhar estranho e sonhador. Lembrei-me vivamente daquele calafrio... e a sua resposta, que não tinha nada a ver com a minha pergunta, não me deixou mais calmo.

     - Tenho uma sensação, Dr. McCarron, às vezes uma sensação bem forte, de que estou condenada.

     Que palavra boba e melodramática! E ainda assim, cavalheiros, a resposta que estava na

ponta da minha língua era essa: É verdade, eu também tenho essa sensação. Mordi a língua, é claro; um médico que disser esse tipo de coisa deve vender imediatamente seus instrumentos e livros e virar carpinteiro ou bombeiro.

     Eu lhe disse que ela não era a primeira grávida a sentir essas coisas, e não seria a última. Disse-lhe que essa sensação era sem dúvida tão comum que os médicos chamavam-na de Síndrome do Vale das Sombras. Acho que já falei nisso hoje.

     A Srta. Stansfield assentiu com seriedade, e me lembro como ela parecia jovem aquele dia e como parecia grande sua barriga.

     - Eu sei disso - disse ela. - Eu senti. Mas é bem diferente dessa outra sensação. Essa outra sensação é como... é como um vulto se agigantando. Não sei explicar melhor que isso. É bobagem, mas não consigo tirar da cabeça.

     - Deve tentar- disse eu. - Não é bom para o...

Mas ela não estava mais prestando atenção em mim. Estava olhando para a fotografia outra vez.

     - Quem é?

     - Emlyn McCarron - disse eu, tentando fazer uma brincadeira; pareceu bastante medíocre. - Antes da Guerra Civil, quando ele era bem jovem.

     - Não, eu reconheci o senhor, sem dúvida nenhuma - disse ela. - A mulher. Só se nota que é uma mulher pela barra da saia e pelo sapato. Quem é ela?

     - O nome dela é Harriet White - disse eu, e pensei: e será ela a primeira coisa que você verá quando for ter o bebê. O calafrio voltou - aquele calafrio desagradável, indescritível. Sua cara de pedra.

     - E o que é que está escrito na base da estátua? - perguntou ela, seu olhar ainda sonhador, quase hipnótico.

     - Não sei - menti. - Meu latim não dá para tanto.

       Naquela noite tive o pior pesadelo de toda a minha vida acordei aterrorizado, e se eu fosse casado, creio que teria matado minha pobre mulher de susto.

       No sonho eu abri a porta do meu consultório e encontrei Sandra Stansfield lá. Ela estava com os escarpins marrons, o elegante vestido de linho branco com debrum marrom e com o chapéu ligeiramente fora de moda. Mas o chapéu estava entre os seus seios, porque ela estava segurando sua cabeça nos braços. O vestido branco estava cheio de manchas de sangue. O sangue jorrava do seu pescoço e salpicava o teto.

       E então seus olhos se abriram - aqueles lindos olhos de avelã - e fitaram os meus.

       - Condenada - disse-me aquela cabeça falante. - Condenada. Estou condenada. Não hábem-estar sem dor. É uma mágica vulgar, mas é tudo que temos.

       Foi quando acordei aos gritos.

       A data provável do parto, 10 de dezembro, passou em branco. Examinei-a no dia 17 de dezembro e disse-lhe que, já que era quase certo que o bebê nascesse em 1935, eu não esperava que ele viesse ao mundo até depois do Natal. A Srta. Stansfield aceitou minha opinião de bom grado. Parecia haver se livrado da expressão sombria que tomara conta dela durante o outono. A Sra. Gibbs, a mulher cega que a contratara para ler em voz alta e fazer tarefas domésticas leves, estava impressionada com ela - impressionada a ponto de comentar com as amigas sobre a corajosa e jovem viúva que, apesar da sua recente viuvez e da situação delicada em que se encontrava, encarava o futuro com muita determinação e ânimo. Várias amigas da senhora cega manifestaram interesse em contratá-la após o nascimento do bebê.

       - Eu também vou precisar delas - disse-me. - Para cuidar do bebê. Mas só até eu me recuperar a achar um emprego fixo. As vezes penso que o pior disso tudo - de tudo o que aconteceu - é que mudou o modo de eu ver as pessoas. As vezes penso comigo:

"Como é que você consegue dormir, sabendo que enganou aquela velhinha simpática?"

e então digo: "Se ela soubesse, mostraria o caminho da rua para você, como qualquer outra pessoa." De qualquer maneira é uma mentira, e às vezes sinto um peso na consciência.

         Antes de ir-se embora aquele dia, tirou da bolsa um pequeno embrulho de papel colorido e empurrou-o timidamente sobre a mesa para mim.

       - Feliz Natal, Dr. McCarron.

       - Você não devia se preocupar - disse eu, abrindo uma gaveta e tirando outro embrulho.

       - Mas já que eu também...

       Ela me olhou surpresa por alguns instantes... e começamos a rir. Ela havia me dado um prendedor de gravata prateado com um caduceu. Eu tinha comprado para ela um álbum para guardar as fotografias do bebê. Eu ainda tenho o prendedor de gravata; como vocês podem ver, estou usando-o esta noite. O que aconteceu com o álbum, não posso dizer.

       Levei-a até a porta, e quando nos aproximamos, ela virou-se para mim, pôs as mãos nos meus ombros, ficou na ponta dos pés e me deu um beijo na boca. Seus lábios estava frios e rijos. Não foi um beijo apaixonado, cavalheiros, mas também não foi um beijo que se espera receber de uma irmã ou uma tia.

     - Obrigada mais uma vez, Dr. McCarron - disse ela, um pouco ofegante. Estava com as faces coradas e seus olhos de avelã brilhavam intensamente. - Obrigada por tudo.

     Eu ri - um pouco sem jeito.

     - Você fala como se não fôssemos nos ver mais, Sandra. Acredito que esta tenha sido a segunda e última vez que a chamei pelo nome.

     - Nós nos veremos - disse ela. - Não tenho a menor dúvida.

     E ela estava certa - embora nenhum de nós pudesse prever as terríveis circunstâncias do nosso último encontro.

     Sandra Stansfield entrou em trabalho de parto na véspera de Natal, logo depois das seis da tarde. Aquela hora, a neve que vinha caindo o dia todo tinha virado granizo. E quando a Srta. Stansfield já estava na fase de dilatação, umas duas horas depois, as ruas estavam cobertas por uma perigosa camada de gelo.

     A Sra. Gibbs, a mulher cega, tinha um espaçoso e amplo apartamento térreo, e às 18:30h a Srta. Stansfield desceu cuidadosamente as escadas, bateu à sua porta, entrou e pediu para telefonar a fim de chamar um táxi.

     - É o bebê, querida? - perguntou a Sra. Gibbs, aparentando nervosismo.

     - É. O trabalho de parto começou há pouco, mas não posso confiar no tempo. O táxi vai levar um bom tempo para chegar.

     Ela deu esse telefonema e depois ligou para mim. Aquela hora, 18:40h, o intervalo das contrações era de 25 minutos. Ela me disse que tinha começado a tomar as providências cedo por causa do mau tempo.

     - Não quero ter meu filho no banco de trás de um táxi disse ela. Parecia extraordinariamente calma.

     O táxi se atrasou e o trabalho de parto da Srta. Stansfield estava indo mais rápido do que eu teria previsto - mas como eu já disse, não há dois trabalhos de parto iguais. O motorista, vendo que sua passageira estava prestes a dar à luz, ajudou-a a descer os degraus escorregadios, recomendando-lhe insistentemente "tome cuidado, dona". A Srta. Stansfield apenas balançava a cabeça afirmativamente, preocupada com a respiração profunda quando vinha uma nova contração. O granizo batia nas luminárias dos postes e na capota dos carros; derretia em grandes gotas sobre o letreiro luminoso na capota do táxi. A Sra. Gibbs me contou depois que o jovem motorista estava mais nervoso do que ela, "pobre Sandra querida", e provavelmente isso tenha contribuído para o acidente.

       Outro motivo quase certo foi o Método Respiratório.

       O motorista seguia seu caminho pelas ruas escorregadias, passando devagar pelos limpa-trilhos e avançando com cuidado nos cruzamentos, aproximando-se lentamente do hospital. Ele não se machucou seriamente no acidente, e conversei com ele no hospital. Disse-me que o barulho da forte respiração que vinha do banco de trás deixara-o nervoso; ficava olhando o tempo todo pelo retrovisor para ver se ela estava "morrendo ou coisa parecida". Disse que teria ficado menos nervoso se ela tivesse dado alguns gritos saudáveis, como costuma fazer uma mulher em trabalho de parto. Perguntou a ela uma ou duas vezes se estava se sentindo bem e ela apenas fez que sim com a cabeça, continuando a "cavalgar as ondas" em largas inspirações e expirações.

       A dois ou três quarteirões do hospital ele deve ter sentido o início do estágio final.

Havia se passado uma hora desde que ela entrara no táxi - o trânsito estava congestionado - mas ainda assim foi um trabalho de parto extraordinariamente rápido para uma primípara. O motorista notou a mudança no modo dela respirar.

       - Ela começou a arfar como um cachorro num dia de verão, doutor - me disse ele. Ela

tinha começado a fazer a "locomotiva".

       Quase no mesmo instante o motorista viu uma brecha no meio do trânsito e se aproveitou. Agora o caminho até o White Memorial estava livre. Faltavam menos de três quarteirões.

       - Já dava para ver a estátua daquela mulherzinha - disse ele. Na ânsia de se livrar da grávida ofegante, pisou fundo no acelerador outra vez e o carro lançou-se para frente, com as rodas deslizando sobre o gelo com pouca ou nenhuma tração.

     Fui a pé para o hospital, e a minha chegada só coincidiu com a do táxi porque não calculara o quanto tinham piorado as condições do trânsito. Eu acreditava que fosse encontrá-la lá em cima, internada, com todos os papéis assinados, toda preparada, em adiantado trabalho de parto. Estava subindo a escadaria quando vi dois pares de faróis aproximarem-se um do outro refletidos no chão coberto de gelo que ainda não tinha levado uma camada de carvão. Eu me virei a tempo de ver o que aconteceu.

     Uma ambulância estava saindo da rampa da ala de emergência na hora em que o táxi da Srta. Stansfield chegava ao hospital. O táxi vinha depressa demais para poder parar. O motorista se assustou e pisou forte no freio ao invés de bombeá-lo. O táxi deslizou e começou a virar de lado. A luz intermitente da capota da ambulância emitia raios e manchas cor de sangue sobre a cena, e um desses raios iluminou rapidamente o rosto de Sandra Stansfield. O que vi naquela fração de segundo foi o rosto que tinha visto em meu pesadelo, o mesmo rosto ensangüentado de olhos arregalados que vira em sua cabeça decepada.

     Gritei por ela, desci os degraus, escorreguei e caí estatelado. Bati com o cotovelo no chão com muita força, mas não larguei minha maleta preta. Vi o resto do que aconteceu de onde estava, com a cabeça levantada e o cotovelo doendo.

       A ambulância freou e também se pôs a derrapar. A traseira bateu na base da estátua. As portas traseiras se abriram. Uma maca, graças a Deus vazia, foi expelida, quebrando-se toda rua abaixo com as rodas para cima. Uma jovem que estava na calçada gritou, e tentou correr quando os dois veículos se chocaram. Seus pés resvalaram após duas passadas e ela caiu de barriga. A bolsa voou de sua mão e bateu com força no chão gelado.

       O táxi continuava a derrapar, agora de marcha à ré, e pude ver nitidamente o motorista. Ele girava o volante furiosamente, como uma criança num carrinho de parque de diversões. A ambulância ricocheteou numa quina da estátua de Harriet White... e bateu de lado no táxi. Este rodopiou uma vez e chocou-se com toda a força na base da estátua. O letreiro luminoso amarelo, onde piscava a palavra OCUPADO, explodiu como uma bomba. O lado esquerdo do táxi amassou como papel. Um instante depois vi que não fora apenas o lado esquerdo; o táxi tinha batido numa quina do pedestal com tanta força que quebrou-se ao meio. Cacos de vidro se espalharam pelo gelo como diamantes. E a minha paciente foi atirada para fora pela janela traseira direita do carro destroçado como uma boneca de pano.

         Quando dei por mim, estava de pé novamente. Desci correndo os degraus gelados, escorreguei de novo, segurei no corrimão e continuei. Eu só estava preocupado com a Srta. Stansfield estirada à sombra daquela hedionda estátua de Harriet White, a uns seis

metros de onde a ambulância jazia de lado, com as luzes ainda riscando a noite de vermelho. Havia alguma coisa muito estranha com aquele vulto, mas honestamente não acredito que eu soubesse o que era até que meu pé chutou algo tão pesado que quase me

derrubou outra vez. A coisa que chutei saiu rolando - como a bolsa da jovem, deslizou mais do que rolou. Saiu rolando, e só quando vi cabelo caindo - empapado de sangue, mas mesmo assim via-se que era louro, salpicado de cacos de vidro - que percebi o que era aquilo. A Srta. Stansfield tinha sido decapitada no acidente. Aquilo que eu tinha chutado em direção à sarjeta gelada era a cabeça dela.

       Completamente atordoado, aproximei-me do seu corpo e virei-o. Acho que tentei gritar ao fazer isso, assim que olhei. Se tentei, não consegui; não consegui emitir um som sequer. A mulher ainda respirava, cavalheiros. Seu peito subia e descia numa respiração

curta. Havia pedaços de gelo sobre seu casaco aberto e seu vestido empapado de sangue.

E eu podia ouvir um som alto e sibilante. Aumentava e diminuía como uma chaleira prestes a ferver. Era o ar sendo sugado para dentro de sua traquéia decepada e depois expelido; silvos breves de ar através das cordas vocais expostas que não tinham mais uma boca para dar forma aos sons.

     Eu quis correr mas não tive forças; caí de joelhos ao seu lado sobre o gelo, com uma das mãos sobre a boca. Percebi que escorria sangue da parte de baixo do seu vestido... e que alguma coisa se mexia. De repente tive certeza de que ainda havia uma chance de salvar o bebê.

     Acho que quando levantei seu vestido até a cintura comecei a rir. Acredito que estivesse louco. Seu corpo ainda estava quente. Lembro-me bem disso. Lembro-me de como arquejava com sua respiração. Um dos enfermeiros da ambulância se aproximou, cambaleando qual um bêbado, com uma das mãos espalmada de um lado da cabeça. Escorria sangue dos seus dedos.

       Eu ainda estava rindo e tateando. Constatei com os dedos que o colo do seu útero estava totalmente dilatado.

       O enfermeiro olhou fixamente para o corpo acéfalo de Sandra com os olhos arregalados. Não sei se percebeu que o corpo ainda respirava. Talvez tenha pensado que fosse simplesmente um reflexo nervoso - uma espécie de reflexo final. Se achou que fosse isso, não poderia ter muita experiência. As galinhas podem, por algum tempo, continuar a andar depois de serem degoladas, mas as pessoas só têm um ou dois espasmos... se tanto.

     - Pare de olhar para ela e traga um cobertor - disse eu, rispidamente.

     Ele saiu andando, mas não em direção à ambulância. Estava indo mais ou menos em direção à Times Square. Simplesmente saiu andando pela noite gelada. Não tenho idéia do que aconteceu com ele. Virei-me novamente para a mulher morta que de alguma maneira não estava morta, hesitei por um instante, e então tirei meu sobretudo. Levantei seus quadris para colocá-lo debaixo dela. Ainda ouvia aquela respiração sibilante enquanto seu corpo acéfalo fazia a "locomotiva". As vezes ainda consigo escutar, cavalheiros. Nos meus sonhos.

       Quero que entendam que tudo isso aconteceu num espaço de tempo muito curto - pareceu mais longo para mim, mas só porque minha percepção estava extremamente aguçada. Do hospital começavam a sair pessoas para ver o que estava acontecendo, e atrás de mim uma mulher deu um grito estridente ao ver a cabeça decepada na sarjeta.

       Abri minha maleta preta e dei graças a Deus por não tê-la perdido na queda, e retirei um bisturi pequeno. Abri o bisturi, cortei sua roupa de baixo e tirei-a. Neste momento, o motorista da ambulância se aproximou - chegou a uns cinco metros e se deteve paralisado. Olhei para ele, ainda pensando no cobertor. Vi que não poderia contar com ele; estava olhando fixo para o corpo arquejante, os olhos tão arregalados que parecia que iam pular das órbitas e ficar pendurados nos nervos óticos como dois ioiôs. Então caiu de joelhos e ergueu as mãos postas. Queria rezar, tenho certeza disso. O enfermeiro pode não ter se dado conta de que estivera presenciando uma impossibilidade, mas este sujeito sim. A seguir caiu desmaiado.

       Eu tinha colocado fórceps na minha maleta aquela noite; não sei por quê. Havia três anos que eu não usava isso, desde que vira um médico, que não direi o nome, enfiar esse troço infernal no crânio de um recém-nascido. O bebê teve morte instantânea. O corpo da criança foi "extraviado" e na certidão de óbito escreveram natimorto.

       Mas por alguma razão eu tinha trazido o meu naquela noite.

       O corpo da Srta. Stamfield esticou-se, a barriga se contraiu e ficou dura como pedra. E o bebê coroou. Vi sua cabeça apenas por um momento, ensangüentada, coberta por uma membrana e pulsando. Pulsando. Estava vivo, afinal. Sem dúvida nenhuma.

       Sua barriga amoleceu outra vez. A cabeça do bebê voltou para dentro. E uma voz atrás de mim disse:

       - O que posso fazer, doutor?

       Era uma enfermeira de meia-idade, o tipo de mulher que em geral é a espinha dorsal da nossa profissão. Ela estava tão branca quanto leite, e embora sua expressão fosse de terror e de medo supersticioso ao ver aquele corpo que respirava misteriosamente, não estava paralisada pelo choque que a tornaria uma ajudante difícil e perigosa.

       - Pode me arrumar um cobertor, enfermeira? - disse eu, secamente. - Ainda temos uma chance, eu acho.

       Atrás dela, vi pelo menos umas vinte e cinco pessoas do hospital na escada, sem quererem se aproximar. O que será que elas conseguiam ver? Não sei ao certo. Tudo o que sei é que me evitaram durante alguns dias (e algumas para sempre), e ninguém, inclusive essa enfermeira, jamais tocou no assunto comigo.

       Ela então virou-se e seguiu em direção ao hospital.

       - Enfermeira! - gritei. - Não há tempo. Pegue um na ambulância. O bebê vai nascer agora.

       Ela foi para o outro lado, escorregando sobre a neve semi-derretida com seu sapato de sola de crepe. Voltei-me para a Srta. Stansfield.

       Ao invés de diminuir, a respiração tinha começado a aumentar de ritmo... e então seu corpo ficou rígido e contraído outra vez. O bebê coroou novamente. Eu esperava que fosse entrar de novo, mas isso não aconteceu; simplesmente continuou a sair. Não seria necessário usar o fórceps, afinal. O bebê escorregou para as minhas mãos. Vi a neve caindo sobre seu corpo nu e ensangüentado - era um menino, sem dúvida. Vi o vapor subindo de seu corpo enquanto a noite gélida e negra consumia o calor do corpo de sua mãe. Seus punhos cobertos de sangue se agitaram debilmente; soltou um choro fraco.

     - Enfermeira! - gritei. - Mexa-se, sua vagabunda!

     Creio que usei uma linguagem imperdoável, mas de repente foi como se eu estivesse na França e em poucos instantes fosse começar a ouvir as bombas caírem fazendo aquele barulho cruel; as metralhadoras começariam a espocar; os alemães começariam a surgir da escuridão, correndo, gritando e morrendo na lama e na fumaça. Mágica vulgar, pensei, vendo os corpos se contorcerem, darem uma volta e caírem. Mas você tem razão, Sandra, é tudo o que temos. Foi quando cheguei mais próximo da loucura, cavalheiros.

     - ENFERMEIRA, PELO AMOR DE DEUS!

     O bebê chorou outra vez - quase não dava para ouvir! - e então não chorou mais. O vapor que seu corpo quente provocava tinha diminuído bastante. Coloquei minha boca em seu rosto, cheirando a sangue e a placenta. Soprei em sua boca e ouvi o sussurro espasmódico da sua respiração voltar. A enfermeira se aproximou com o cobertor nos braços. Estendi minha mão para pegá-lo.

     Ela fez que ia me entregar o cobertor, mas logo puxou-o de volta.

     - Doutor, e se... e se for um monstro? Alguma espécie de monstro?

     - Me dá esse cobertor - disse eu. - Me dá isso já, sargento, antes que eu dê um pontapé na sua bunda.

     - Pronto, doutor - disse ela, absolutamente calma (devemos louvar as mulheres, companheiros, que com freqüência entendem sem tentar), e me entregou o cobertor.

     Embrulhei o bebê e entreguei-o a ela.

     - Se deixar cair, vai engolir o seu boné.

     - Sim, doutor.

     - É uma mágica vulgar de merda, sargento, mas é tudo o que Deus nos deu.

     - Sim, doutor.

     Observei-a seguir quase correndo com o bebê para o hospital, e vi a multidão na escada abrir caminho para ela passar. Fiquei de pé e me afastei um pouco do corpo. A respiração, como a do bebê, parava e voltava... parava... voltava de novo... parava...

       Dei uns passos para trás. Alguma coisa bateu no meu pé. Era a cabeça dela. E obedecendo alguma ordem externa, ajoelhei-me e virei a cabeça para cima. Os olhos estavam abertos - aqueles olhos penetrantes de avelã que sempre foram cheios de vida e determinação. Ainda estavam cheios de determinação. Ela estava me vendo, cavalheiros.

       Seus dentes estavam cerrados, os lábios levemente entreabertos. Ouvi o ar entrar e sair rapidamente daqueles lábios e entre os dentes enquanto ela fazia a "locomotiva". Seus olhos se mexeram. Viraram ligeiramente para a esquerda para me verem melhor. Seus lábios se abriram. Disseram três palavras: Obrigada, Dr. McCarron. E eu ouvi essas palavras, cavalheiro, mas não de sua boca. O som vinha de uns seis metros de distância. Das suas cordas vocais. E porque sua língua, seus lábios e seus dentes, aquilo que dá forma aos sons, estavam ali, as palavras saíram em modulações amorfas de som. Mas foram nove modulações, nove sons distintos, assim com há nove sílabas nessa frase, Obrigada, Dr. McCarron.

       - Não há de quê, Srta. Stansfield - disse eu. - É um menino.

       Seus lábios se abriram outra vez, e de trás de mim ouvi um som fraco e fantasmagórico: meninooo...

       Seus olhos perderam o brilho e a determinação. Pareciam olhar para alguma coisa atrás de mim, talvez naquele céu negro pontilhado de gelo. Então se fecharam. Ela começou a fazer a "locomtiva" outra vez... e de repente parou. O que quer que acontecera havia agora terminado. A enfermeira tinha presenciado alguma coisa, o motorista da ambulância também, antes de desmaiar, e alguns dos circunstantes talvez tivessem percebido alguma coisa. Mas agora estava tudo acabado, completamente acabado. Havia apenas sinais de um horrível acidente lá fora... e um bebê lá dentro.

       Olhei para a estátua de Harriet White e lá estava ela, com seu olhar impiedoso em direção do jardim do outro lado da rua, como se nada de extraordinário tivesse acontecido, com se tal determinação não significasse nada num mundo tão frio e insensível quanto este... ou pior ainda, que fosse talvez a única coisa que não significasse nada, a única coisa que não fizesse a menor diferença.

       Pelo que me lembro, ajoelhei-me na neve molhada diante de sua cabeça decepada e comecei a chorar. Pelo que me lembro, eu ainda estava chorando quando um interno e duas enfermeiras me ajudaram a ficar de pé e me levaram para dentro.

 

         O cachimbo de McCarron tinha se apagado.

         Ele reacendeu-o com seu isqueiro; nós estávamos em silêncio, com a respiração presa.

         Lá fora o vento uivava e gemia. Ele fechou o isqueiro e levantou os olhos. Pareceu um pouco surpreso ao ver que ainda estávamos lá.

       - Isso é tudo - disse ele. - É o fim! O que estão esperando? Carruagens de fogo? - disse, bufando; depois pareceu refletir por um instante. - Paguei seu enterro do meu próprio bolso. Ela não tinha mais ninguém. - Ele sorriu de leve. - Bem... havia Ella Davidson, minha enfermeira. Insistiu em dividir vinte e cinco dólares, que ela mal tinha para dar.

Mas quando Ella punha alguma coisa na cabeça... - Ele deu de ombros, e depois riu um pouco.

      - Tem certeza absoluta de que não foi um reflexo? - perguntei de repente. - Tem certeza absoluta...

       - Absoluta - respondeu McCarron, imperturbável. - A primeira contração, talvez. Mas o resto do seu trabalho de parto não foi uma questão de segundos e sim de minutos. E às vezes acho que ela poderia ter continuado por mais tempo, se tivesse sido necessário. Graças a Deus não foi.

       - E o bebê? - perguntou Johanssen.

       McCarron deu uma baforada no cachimbo.

       - Foi adotado - disse ele. - E vocês sabem que, mesmo naquela época, os documentos de adoção eram cercados com o máximo de sigilo.

       - Está certo, mas e o bebê? - insistiu Johanssen, e McCarron riu contrariado.

       - Você não deixa escapar nada, não é? - perguntou a Johanssen.

       Johanssen balançou a cabeça.

       - Algumas pessoas aprendem às custas de sua dor. E o bebê?

       - Bom, se você acompanhou a história com tanto interesse, talvez também entenda que eu também tivesse um certo interesse em saber o destino dessa criança. Eu me mantive informado, e ainda me mantenho. Havia um casal jovem - cujo sobrenome não era Harrison, mas era bem parecido. Moravam no Maine. Não podiam ter filhos. Adotaram a criança e lhe deram o nome de... que tal John? John serve, não é, companheiros?

       Ele deu uma baforada no cachimbo, mas este tinha se apagado novamente. Percebi que Stevens se movimentava atrás de mim, e eu sabia que nossos sobretudos estariam à nossa espera em algum lugar. Logo estaríamos dentro deles... e de volta às nossas vidas.

Como disse McCarron, basta de histórias por este ano.

       - A criança que ajudei a nascer naquela noite hoje é chefe do Departamento de Língua Inglesa de uma das duas ou três faculdades particulares mais respeitadas do país – disse McCarron. - Ainda não completou quarenta e cinco anos. E jovem. Ainda é cedo para ele, mas chegará o dia em que será o diretor daquela faculdade. Não duvido nem um pouco. É elegante, inteligente e encantador.

       - Certa vez, sob um pretexto qualquer, jantei com ele no clube fechado da universidade.

Éramos quatro naquela norte. Falei pouco, por isso pude observá-lo. Ele tem a determinação de sua mãe, companheiros... e seus olhos de avelã.

 

                                                   O Clube

           Stevens nos acompanhou até a porta como sempre, entregando casacões, desejando o melhor dos Natais e agradecendo nossa generosidade. Deixei para sair por último, e Stevens não se mostrou surpreso quando eu disse:

         - Eu gostaria de fazer uma pergunta, se não se importa.

         Ele sorriu de leve.

         - Acho que deve fazê-la - disse ele. - O Natal é uma ótima ocasião para perguntas.

         Em algum lugar do corredor à nossa esquerda - um corredor pelo qual eu jamais passara - um relógio de carrilhão tiquetaqueava alto, o som do tempo passando. Eu sentia o cheiro de couro velho e madeira encerada e, bem mais fraco que esses dois, o cheiro da loção após barba de Stevens.

         - Mas devo adverti-lo - acrescentou Stevens, na hora em que o vento soprou forte lá fora - que é melhor não perguntar demais se quiser continuar a vir aqui.

         - Já houve gente barrada por querer saber demais? - Barrada não era exatamente o termo que eu queria, mas foi o melhor que encontrei.

        - Não - disse Stevens, com a voz baixa e educada de sempre. - As pessoas simplesmente preferem se afastar.

         Encarei-o de volta, sentindo um frio na espinha - foi como se uma enorme mão invisível e gelada tivesse encostado nas minhas costas. Lembrei-me daquele barulho surdo que veio do andar de cima certa noite e tive vontade de saber (como já tivera outras vezes)

quantos cômodos havia realmente lá.

       - Se ainda quer perguntar alguma coisa, Sr. Adley, talvez fosse melhor perguntar logo.

Já é tarde...

       - E você ainda vai enfrentar um longo percurso de trem, não é? - perguntei, mas Stevens permaneceu impassível. - Está bem disse eu. - Existem livros nessa biblioteca que não consigo encontrar em lugar nenhum - nem na Biblioteca Pública de Nova Iorque, nem nos catálogos dos antiquários de livros a quem perguntei, tampouco no Livros Impressos. A mesa de bilhar da saleta é da marca Nord. Como eu nunca tivesse ouvido

falar nessa marca, telefonei para a Comissão Internacional de Marcas e Patentes.

Existem duas marcas Nord registradas - uma que fabrica esquis de cross-country, e a outra, acessórios de madeira para cozinha. A vitrola automática do salão é da marca Seafront. A C.I.M.P. tem registrada a marca Seeburg, mas não tem Seafront.

       - Qual é a sua pergunta, Sr. Adley?

       Seu tom de voz era suave como sempre, mas havia em seu olhar qualquer coisa assustadora... não; para falar a verdade, não era só em seu olhar; o medo que senti estava ao meu redor. O tique-taque monótono que vinha do corredor à esquerda não era mais do pêndulo de um carrilhão; eram os passos de um algoz acompanhando o condenado ao cadafalso. Os aromas de couro e cera tornaram-se acres e ameaçadores, e quando o vento deu outra rajada, tive a certeza de que a porta da frente se abriria com força, descortinando não a Rua 35, e sim uma paisagem irreal com silhuetas pungentes de árvores retorcidas num horizonte estéril sob o qual dois sóis se punham, deixando um clarão vermelho horrendo.

       Ele sabia o que eu queria perguntar; pude ver em seus olhos cinzentos.

       De onde vêm todas essas coisas?, eu queria saber. Ora, sei muito bem de onde você

vem, Stevens; esse sotaque não é da Dimensão X, é do Brooklyn. Mas para onde você vai? De onde vêm esse olhar e essa expressão atemporais? E, Stevens ...

         ... onde estamos NESTE EXATO MOMENTO?

       Mas ele estava esperando pela minha pergunta.

       Abri a boca. E a pergunta que saiu foi:

       - Existem muito mais cômodos lá em cima?

       - Existem sim, senhor - disse ele, sem deixar de me encarar. - Muitos mesmo. Dá para uma pessoa se perder. Na verdade, algumas pessoas já se perderam. Às vezes tenho a impressão que eles se estendem por quilômetros. Cômodos e corredores.

       - Com entradas e saídas?

      Suas sobrancelhas se ergueram ligeiramente.

       - Mas, claro. Com entradas e saídas.

       Ele esperou, mas eu já perguntara o bastante, pensei - tinha chegado à beira de alguma coisa que talvez me levasse à loucura.

       - Obrigado, Stevens.

     - Não há de quê, Sr. Adley.

       Estendeu-me meu casacão e me enfiei nele.

       - Haverá mais histórias?

       - Aqui há sempre mais histórias, Sr. Adley.

       Essa noite já faz algum tempo, e minha memória não melhorou desde então (quando um homem chega à minha idade é muito mais provável que ocorra justamente o contrário), mas me lembro claramente do arrepio de medo que percorreu meu corpo quando Stevens abriu a porta de carvalho - a certeza crua de que eu veria aquela paisagem estranha desmembrada e infernal à luz cor de sangue dos dois sóis, que após se porem trariam uma escuridão atroz durante uma hora, ou dez horas, ou dez mil anos. Não consigo explicar, mas garanto que esse mundo existe - tenho tanta certeza disso quanto Emlyn McCarron tinha de que a cabeça decepada de Sandra Stansfield ainda respirava.

         Pensei naquele segundo interminável que a porta se abriria e Stevens me empurraria para dentro daquele mundo e eu ouviria então aquela porta bater atrás de mim... para sempre.

         Ao invés disso, vi a Rua 35 e um radio-táxi encostado no meio-fio, soltando fumaça

pelo cano de descarga. Senti um alívio extremo, quase desfalecente.

       - Sempre há mais histórias - repetiu Stevens. - Boa noite, Sr. Adley.

       Sempre mais histórias.

         De fato houve. E, quem sabe, conto outra qualquer dia desses. 

 

                                                                  Stephen King

 

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