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QUEDA DE GIGANTES - P.3 / Ken Follett
QUEDA DE GIGANTES - P.3 / Ken Follett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

QUEDA DE GIGANTES

Terceira Parte

 

Abril de 1917

Em um dia ameno no início da primavera, Walter estava passeando com Monika von der Helbard pelo jardim da casa dos pais dela em Berlim. A casa era imponente e o jardim grande, com um pavilhão de tênis, um gramado de críquete, uma pista de equitação para exercitar os cavalos e um parquinho infantil com balanços e um escorrega. Walter se lembrou de ter visitado o lugar quando criança e ficado com a impressão de que era o paraíso. O jardim, no entanto, não era mais idílico. Todos os cavalos, com exceção dos mais idosos, tinham sido despachados para o Exército. Galinhas arranhavam as lajotas da varanda ampla. A mãe de Monika engordava um porco no pavilhão de tênis. Cabras pastavam no gramado de críquete e, segundo boatos, a própria Gräfin as ordenhava.

Contudo, as velhas árvores estavam recuperando suas folhas, o sol brilhava e Walter caminhava, relaxado, só de colete e camisa, com o paletó jogado por sobre o ombro – estado de nudez parcial que teria desagradado à sua mãe, que, no entanto, se encontrava dentro da casa, fofocando com a Gräfin. Sua irmã, Greta, começara o passeio junto com Walter e Monika, mas arranjara uma desculpa qualquer para deixá-los sozinhos – outra coisa que sua mãe teria reprovado, pelo menos em teoria.

Monika tinha um cachorro chamado Pierre. Era um gracioso poodle de pernas compridas, com uma farta pelagem encaracolada cor de ferrugem e olhos castanho-claros, e Walter não pôde deixar de pensar que o animal se parecia um pouco com a dona, por mais linda que ela fosse.

Walter gostava da forma como Monika tratava o cachorro. Ela não o acariciava, nem lhe dava restos de comida ou falava com ele em um tom de voz infantil como faziam algumas garotas. Simplesmente deixava que o animal caminhasse ao seu lado, jogando de vez em quando uma bola de tênis velha para ele pegar.

– E os russos, que decepção! – comentou ela.

Walter aquiesceu. O governo do príncipe Lvov havia anunciado que o país continuaria na guerra. A frente oriental alemã não seria liberada, de modo que não haveria reforços para a França. O conflito continuaria a se arrastar.

– Nossa única esperança agora é que o governo de Lvov caia e a facção pacifista assuma o poder – disse ele.

– E isso é provável?

– Difícil dizer. Os revolucionários continuam exigindo pão, paz e terra. O governo prometeu uma eleição democrática para uma assembleia constituinte... mas quem irá vencer? – Ele apanhou um graveto do chão e lançou-o para Pierre. O cachorro disparou para pegá-lo e o trouxe de volta todo orgulhoso. Walter se abaixou para fazer carinho na sua cabeça e, quando se ergueu, Monika estava muito perto dele.

– Eu gosto de você, Walter – disse, encarando-o firme com seus olhos cor de âmbar. – Tenho a impressão de que nunca ficaríamos sem assunto.

Ele, além de sentir o mesmo, sabia que, se tentasse beijá-la naquele instante, ela deixaria.

Afastou-se um passo.

– Eu também gosto de você – disse. – E do seu cachorro. – Para mostrar que suas palavras eram casuais, soltou uma risada.

Mesmo assim, pôde ver que Monika ficou magoada. Ela mordeu o lábio e deu-lhe as costas. Havia sido o mais ousada que uma moça bem-educada poderia ser – e ele a rejeitara.

Os dois seguiram andando. Depois de um longo silêncio, Monika disse:

– Fico me perguntando qual é o seu segredo.

Meu Deus, pensou Walter, como ela é perspicaz!

– Eu não tenho segredos – mentiu ele. – Você tem?

– Nenhum que valha a pena contar. – Ela ergueu a mão para tirar alguma coisa presa ao ombro dele. – Uma abelha – falou.

– Está cedo demais no ano para abelhas.

– Quem sabe o verão não vai chegar mais cedo.

– Não está fazendo tanto calor assim.

Ela fingiu sentir um calafrio.

– Tem razão, está esfriando. Será que você poderia buscar um xale para mim? Se for até a cozinha e pedir a uma das criadas, ela encontrará um para lhe dar.

– É claro. – Não estava frio, mas um cavalheiro jamais se recusava a cumprir um pedido como aquele, por mais caprichoso que fosse. Era óbvio que ela queria passar um tempo sozinha. Ele voltou andando até a casa. Tinha que resistir ao seu assédio, mas sentia muito por magoá-la. Afinal, os dois de fato combinavam – suas mães tinham razão – e estava claro que Monika não conseguia entender por que ele insistia em rejeitá-la.

Walter entrou na casa e desceu pela escada dos fundos até o subsolo, onde encontrou uma criada idosa usando um vestido preto e uma touca rendada. Ela saiu em busca de um xale.

Walter ficou esperando no hall. A casa era decorada no moderno estilo Jugendstil, que havia substituído o floreado rococó que os pais de Walter adoravam por cômodos bem iluminados, de cores suaves. O hall margeado de colunas era todo feito de mármore cinza, e o chão, revestido com um tapete cor de cogumelo.

Parecia-lhe que Maud estava a um milhão de quilômetros dali, em outro planeta. E, de certa forma, estava mesmo, pois o mundo anterior à guerra jamais voltaria. Havia quase três anos que não via sua mulher ou tinha notícias suas – e talvez nunca mais tornasse a vê-la. Embora ela não tivesse lhe saído da cabeça – ele jamais se esqueceria da paixão que haviam vivido juntos –, Walter constatava, para sua agonia, que já não era capaz de recordar detalhes dos momentos que viveram juntos: que roupa ela usava, onde eles estavam quando haviam se beijado ou ficado de mãos dadas, ou o que haviam comido e bebido, e quais eram os assuntos de suas conversas em todas aquelas festas londrinas, tão parecidas entre si. Às vezes lhe passava pela cabeça que, de certa forma, a guerra os divorciara. Porém afastou esse pensamento: era de uma deslealdade vergonhosa.

A criada lhe trouxe um xale de caxemira amarelo. Ele voltou até Monika e encontrou-a sentada em um toco de árvore, com Pierre aos seus pés. Walter lhe entregou o xale, que ela colocou em volta dos ombros. A cor lhe caía bem, fazendo seus olhos cintilarem e deixando sua pele radiante.

Monika ostentava uma expressão estranha e entregou-lhe sua carteira.

– Ela deve ter caído do seu paletó – falou.

– Ah, obrigado. – Ele a guardou de volta no bolso interno do paletó, que ainda trazia pendurado no ombro.

– Vamos voltar para dentro de casa – disse ela.

– Como quiser.

O humor dela havia mudado. Talvez tivesse simplesmente resolvido desistir dele. Ou será que acontecera alguma outra coisa?

Ele foi invadido por um pensamento assustador. Teria sua carteira realmente caído do bolso? Ou será que ela a havia pegado, qual um batedor de carteiras, ao enxotar aquela improvável abelha do ombro?

– Monika – disse ele, parando e virando-se para encará-la. – Você mexeu na minha carteira?

– Você disse que não tinha segredos – respondeu ela, ficando toda vermelha.

Ela devia ter visto o recorte de jornal que ele guardava ali: Lady Maud Fitzherbert sempre vestida na última moda.

– Que falta de educação a sua – disse ele com irritação. Estava zangado, sobretudo consigo mesmo. Não deveria andar com aquela foto incriminatória. Se Monika podia concluir seu significado, outras pessoas também poderiam. Ele então cairia em desgraça e seria afastado do Exército. Talvez fosse acusado de traição e preso, ou até fuzilado.

Havia sido um tolo. Mas sabia que jamais conseguiria jogar fora aquela imagem. Era tudo o que lhe restava de Maud.

Monika tocou seu braço.

– Eu nunca fiz uma coisa dessas na vida e estou envergonhada. Mas você precisa entender meu desespero. Ah, Walter, seria tão fácil eu me apaixonar por você, e percebo que você também poderia me amar. Vejo isso nos seus olhos, na forma como sorri quando me vê. Mas você nunca disse nada! – Seus olhos estavam cheios de lágrimas. – Eu estava ficando louca.

– Sinto muito por isso. – Ele já não conseguia permanecer indignado. Ela havia rompido com todas as regras de etiqueta e aberto o coração para ele. Walter se sentiu muito triste por ela, triste por eles dois.

– Eu simplesmente precisava entender por que você vive me rejeitando. Agora entendo, é claro. Ela é linda. Até se parece um pouco comigo. – Monika enxugou as lágrimas. – Mas conheceu você antes de mim, só isso. – Ela o fitou com aqueles penetrantes olhos cor de âmbar. – Imagino que estejam noivos.

Walter não podia mentir para uma pessoa que estava sendo tão sincera com ele. Não soube o que responder.

Ela adivinhou o motivo de sua hesitação.

– Ai, meu Deus! – exclamou. – Vocês são casados, não são?

Aquilo era um desastre.

– Se as pessoas descobrirem, estarei em sérios apuros.

– Eu sei.

– Posso confiar em você para guardar meu segredo?

– E você ainda pergunta? – disse ela. – Você é o melhor homem que já conheci. Eu não faria nada para prejudicá-lo. Jamais direi uma só palavra.

– Obrigado. Sei que vai manter sua promessa.

Ela desviou o olhar, lutando para conter as lágrimas.

– Vamos entrar.

No hall, ela disse:

– Vá andando. Preciso lavar o rosto.

– Está bem.

– Eu espero... – A voz dela se transformou em um soluço. – Espero que ela saiba a sorte que tem – sussurrou. Então virou as costas e desapareceu no cômodo ao lado.

Walter vestiu o paletó e se recompôs, subindo em seguida a escadaria de mármore. A sala de estar era decorada no mesmo estilo discreto, com madeira clara e cortinas verde-água. Os pais de Monika tinham um gosto melhor do que os seus, concluiu.

Sua mãe olhou para ele e percebeu na mesma hora que havia algo de errado.

– Onde está Monika? – perguntou com rispidez.

Ele ergueu uma sobrancelha para a mãe. Não era do seu feitio fazer uma pergunta cuja resposta poderia ser “Foi ao banheiro”. Era óbvio que estava tensa. Em voz baixa, ele respondeu:

– Ela já está voltando.

– Veja só isso – falou seu pai, brandindo uma folha de papel. – O gabinete de Zimmermann acabou de mandar este documento para minha avaliação. Esses tais revolucionários russos querem atravessar a Alemanha. Que audácia! – Ele havia bebido uma ou outra taça de schnapps e estava um pouco exaltado.

– De que revolucionários o senhor está falando, pai? – indagou Walter com educação. Não ligava para a resposta, mas ficou grato por ter um assunto para conversar.

– Os de Zurique! Martov, Lênin e o restante deles. Agora que o czar foi deposto, teoricamente a liberdade de expressão foi instaurada na Rússia, então eles querem voltar para casa. Mas não podem chegar até lá!

Konrad von der Helbard, pai de Monika, disse em tom pensativo:

– Imagino que não. Não há como ir da Suíça à Rússia sem passar pela Alemanha... Qualquer outro caminho por terra os obrigaria a passar pelas linhas de combate. Mas ainda há navios a vapor fazendo a rota entre a Inglaterra e a Suécia pelo mar do Norte, não?

– Sim, mas eles não iriam se arriscar a passar pela Grã-Bretanha – disse Walter. – Os britânicos prenderam Trótski e Bukharin. E passar pela França ou pela Itália seria ainda pior.

– Então eles estão presos! – exclamou Otto, triunfante.

– O que o senhor vai aconselhar o ministro Zimmermann a fazer, pai?

– A recusar, claro. Não queremos essa ralé contaminando nosso povo. Sabe-se lá que tipo de problema esses demônios seriam capazes de provocar na Alemanha.

– Lênin e Martov – disse Walter, intrigado. – Martov é menchevique, porém Lênin é bolchevique. – O serviço de inteligência alemão tinha bastante interesse nos revolucionários russos.

– Bolcheviques, mencheviques, socialistas, revolucionários: é tudo a mesma coisa – disse Otto.

– Não é, não – discordou Walter. – Os bolcheviques são os mais radicais.

– Outro motivo para mantê-los fora do nosso país! – falou a mãe de Monika com energia.

Walter ignorou o comentário.

– E mais importante ainda: os bolcheviques que vivem fora da Rússia tendem a ser mais extremistas do que os que permaneceram no país. Os bolcheviques de Petrogrado apoiam o governo provisório do príncipe Lvov, mas seus camaradas de Zurique, não.

Sua irmã Greta interveio:

– Como você sabe uma coisa dessas?

Walter sabia por ter lido relatórios de inteligência de espiões alemães na Suíça, que interceptavam a correspondência dos revolucionários. Mas respondeu:

– Lênin fez um discurso em Zurique alguns dias atrás repudiando o governo provisório.

Otto grunhiu com desdém, porém Konrad von der Helbard se inclinou para a frente na cadeira:

– O que você está pensando, meu rapaz?

– Que, se nós nos recusarmos a deixar os revolucionários passarem pela Alemanha, estaremos protegendo a Rússia das ideias subversivas deles.

Sua mãe pareceu confusa.

– Explique, por favor.

– Estou sugerindo que deveríamos ajudar esses homens perigosos a voltarem para casa. Uma vez lá, eles tentarão minar o governo russo, prejudicando sua capacidade de continuar na guerra, ou então vão tomar o poder e selar a paz. Seja como for, a Alemanha sai ganhando.

Houve um breve silêncio enquanto todos refletiam a respeito. Então Otto deu uma risada sonora e bateu palmas.

– Este é o meu filho! – exclamou. – Ele puxou um pouco ao seu velho pai, afinal!

Meu grande amor,

Zurique é uma cidade fria à beira de um lago, escreveu Walter, mas o sol ilumina o espelho d’água, as colinas verdejantes em volta e os Alpes ao longe. As ruas formam uma trama quadriculada, sem curvas: os suíços são ainda mais ordeiros do que os alemães! Queria que você estivesse aqui, meu amor, como queria que estivesse comigo aonde quer que eu fosse!!!

Os pontos de exclamação eram para dar ao censor do correio a impressão de que a carta fora escrita por uma garota com a emoção à flor da pele. Embora Walter estivesse na Suíça, um país neutro, continuava tomando cuidado para que o texto não identificasse o remetente ou o destinatário.

Fico me perguntando se você tem passado pelo constrangimento de sofrer assédio por parte de pretendentes. Com sua beleza e charme, duvido que não. Eu, é claro, não possuo nenhum dos dois, mas mesmo assim tenho despertado interesse. Minha mãe escolheu um partido para mim, uma pessoa amiga de minha irmã – alguém de que gosto e que conheço desde sempre. Foi bem difícil durante algum tempo e, infelizmente, acho que essa pessoa acabou descobrindo que eu tenho uma amizade que impossibilita o matrimônio. Apesar disso, acredito que nosso segredo esteja protegido.

Caso um censor se desse ao trabalho de ler a carta até ali, concluiria que se tratava de uma lésbica escrevendo à amante. Qualquer um na Inglaterra que lesse a carta chegaria à mesma conclusão. Isso, no entanto, não tinha muita importância: sem dúvida, Maud, por ser feminista e aparentemente solteira aos 26 anos, já era suspeita de tendências homossexuais.

Dentro de poucos dias estarei em Estocolmo, outra cidade fria à beira d'água, e você poderá me mandar uma carta para o Grand Hotel de lá.

Assim como a Suíça, a Suécia era um país neutro, com serviço postal para a Inglaterra.

Eu adoraria receber notícias suas!!!

Até lá, meu maravilhoso amor, lembre-se de quem a ama...

Waltraud

Os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha na sexta-feira, 6 de abril de 1917.

Walter já esperava por isso, porém não deixou de ficar abalado. Os Estados Unidos eram um país rico, vigoroso e democrático: ele não conseguia imaginar um inimigo pior. A única esperança agora era que a Rússia entrasse em colapso, o que daria à Alemanha uma chance de vencer no front ocidental antes de os americanos terem tempo de reunir suas forças.

Três dias depois, 32 revolucionários russos exilados se reuniram no Hotel Zähringerhof, em Zurique: homens, mulheres e uma criança – um menino de quatro anos chamado Robert. De lá, seguiram a pé até o arco barroco da estação ferroviária para tomarem um trem a caminho de casa.

Walter temera que eles fossem desistir da viagem. Martov, o líder menchevique, havia se recusado a partir sem a permissão do governo provisório em Petrogrado – uma atitude estranhamente respeitosa para um revolucionário. A permissão foi negada, mas Lênin e os bolcheviques decidiram voltar mesmo assim. Walter quis se certificar de que não haveria nenhum percalço na viagem, de modo que acompanhou o grupo até a estação à margem do rio e embarcou junto no trem.

Esta é a arma secreta da Alemanha, pensou Walter: 32 arruaceiros descontentes que querem derrubar o governo russo. Que Deus nos ajude.

Vladimir Ilitch Uliánov, conhecido como Lênin, tinha 46 anos. Era um homem baixo e atarracado, vestido com esmero, porém sem elegância, ocupado demais para perder tempo com estilo. Era ruivo, mas, como ficara calvo cedo, ostentava uma careca lustrosa com apenas uma sobra de franja na frente e tinha o bigode e o cavanhaque cuidadosamente aparados, entre o ruivo e o grisalho. À primeira vista, Walter o achara sem graça, desprovido de charme ou beleza.

Walter estava se fazendo passar por um funcionário do Ministério das Relações Exteriores encarregado de tomar todas as providências práticas para a viagem dos bolcheviques pela Alemanha. Lênin o examinara com um olhar duro e desconfiado, claramente adivinhando que ele era, na verdade, algum tipo de agente do serviço de inteligência.

Eles viajaram até a comuna de Schaffhausen, na fronteira, onde foram transferidos para um trem alemão. Como tinham morado na região germanófona da Suíça, todos falavam um pouco de alemão. Lênin dominava bem o idioma. Walter descobriu que ele era um linguista notável: fluente em francês, com um inglês razoável e capaz de ler Aristóteles em grego antigo. Para Lênin, relaxar significava passar uma ou duas horas debruçado sobre um dicionário de língua estrangeira.

Em Gottmadingen, voltaram a trocar de trem, desta vez embarcando em um vagão isolado, preparado especialmente para eles, como se portassem alguma doença contagiosa. Três das quatro portas do vagão estavam lacradas. A quarta ficava junto ao compartimento onde Walter dormia. Isso servia para tranquilizar as autoridades alemãs, que estavam excessivamente aflitas, mas na verdade não era necessário: os russos não tinham a menor vontade de fugir – queriam voltar para casa.

Lênin e sua mulher Nadya tinham um compartimento exclusivo, mas os demais viajavam amontoados, quatro por compartimento. Isso é que é igualdade, pensou Walter com cinismo.

Enquanto o trem cruzava a Alemanha de sul a norte, Walter começou a sentir a força de caráter escondida sob o exterior insosso de Lênin. Este não demonstrava interesse por comida, bebida, conforto ou bens materiais. Todo o seu dia era ocupado pela política. Vivia discutindo temas políticos, escrevendo sobre política ou então pensando no assunto e tomando notas. Walter observou que, em qualquer discussão, Lênin parecia saber mais do que seus camaradas e dava a impressão de ter pensado no assunto mais e melhor do que eles – a menos que a questão em pauta não tivesse nada a ver com a Rússia ou com política: nesse caso, ele se mostrava bastante desinformado.

Lênin era um verdadeiro desmancha-prazeres. Na primeira noite, Karl Radek, um rapaz de óculos, estava contando piadas no compartimento ao lado:

– Um homem foi preso por dizer: “Nicolau é um imbecil.” Ele disse ao policial: “Eu estava falando de outro Nicolau, não de nosso amado czar.” Então o policial disse: “Seu mentiroso! Se você disse imbecil, é obvio que estava se referindo ao czar!”

Todos os companheiros de Radek caíram na gargalhada. Lênin saiu de seu compartimento com uma expressão irada e mandou que calassem a boca.

Lênin também não gostava que fumassem perto dele. Ele próprio havia parado, por insistência da mãe, já fazia 30 anos. Por respeito ao líder, as pessoas fumavam no banheiro ou nos fundos do vagão. Como havia apenas um banheiro para 32 pessoas, isso gerava filas e desentendimentos. Lênin dedicou seu considerável intelecto à solução desse problema. Cortou pedaços de papel e distribuiu para todos dois tipos de bilhetes: alguns para o uso normal do banheiro e outros, em número menor, para fumar. Isso reduziu a fila e acabou com as brigas. Walter achou graça. Deu certo e todos ficaram felizes, mas não houve debate ou qualquer tentativa de uma decisão coletiva. Naquele grupo, Lênin era um ditador bondoso. Se ele algum dia ganhasse poder de verdade, será que administraria o Império Russo da mesma forma?

Mas Lênin conquistaria mesmo o poder? Se isso não acontecesse, Walter estava perdendo seu tempo.

Ele só conseguia pensar em uma forma de melhorar as chances de Lênin – e decidiu tomar providências nesse sentido.

Desceu do trem em Berlim, dizendo que voltaria para acompanhar os russos no último trecho da viagem.

– Não demore – falou um deles. – Vamos partir de novo daqui a uma hora.

– Vou ser rápido – respondeu Walter. O trem partiria quando Walter mandasse, mas os russos não sabiam disso.

O vagão estava parado em um desvio da estação Potsdamer e ele levou somente alguns minutos para ir a pé de lá até o Ministério das Relações Exteriores, no número 76 da Wilhelmstrasse, no coração da Berlim antiga. A espaçosa sala de seu pai continha uma escrivaninha pesada de mogno, um retrato do Kaiser e um armário com portas de vidro que abrigava sua coleção de objetos em cerâmica, incluindo a fruteira do século XVIII que havia comprado em sua última viagem a Londres. Como Walter esperava, Otto estava sentado diante da escrivaninha.

– Não há dúvida quanto às crenças de Lênin – disse ao pai enquanto os dois tomavam café. – Ele diz que o povo se livrou do símbolo da opressão, o czar, mas sem mudar a sociedade russa. Os trabalhadores não conseguiram assumir o controle: a classe média continua mandando em tudo. Além disso, por algum motivo, Lênin nutre um ódio pessoal por Kerenski.

– Mas será que ele é capaz de derrubar o governo provisório?

Walter abriu os braços em um gesto de impotência.

– Ele é muito inteligente, determinado, é um líder nato e não faz outra coisa a não ser trabalhar. Porém os bolcheviques são apenas mais um pequeno partido político entre uma dúzia ou mais que disputam o poder. Não há como saber quem sairá vitorioso.

– Então todo esse esforço pode ter sido em vão.

– A não ser que nós façamos alguma coisa para ajudar os bolcheviques a vencerem.

– Como por exemplo?

Walter respirou fundo.

– Dar dinheiro a eles.

– O quê? – Otto ficou indignado. – Dar dinheiro a revolucionários socialistas? O governo alemão?

– Sugiro um valor inicial de 100 mil rublos – falou Walter com tranquilidade. – De preferência em moedas de ouro de 10 rublos, se possível.

– O Kaiser jamais concordaria com isso.

– Ele precisa saber? Zimmermann tem autoridade para aprovar isso sozinho.

– Ele nunca faria uma coisa dessas.

– Tem certeza?

Otto passou um bom tempo encarando Walter em silêncio, refletindo.

Por fim, falou:

– Vou perguntar a ele.

Após três dias a bordo do trem, os russos saíram da Alemanha. Em Sassnitz, no litoral, compraram bilhetes para o navio de passageiros Queen Victoria, no qual atravessariam o mar Báltico até o extremo sul da Suécia. Walter os acompanhou. A travessia foi árdua e todos ficaram enjoados, com exceção de Lênin, Radek e Zinoviev, que permaneceram no convés entretidos em uma discussão política acalorada e nem pareceram reparar no mar revolto.

Eles pegaram um trem noturno até Estocolmo, onde o burgomestre socialista lhes serviu um desjejum de boas-vindas. Walter se registrou no Grand Hotel, esperando encontrar uma carta de Maud à sua espera. Não havia correspondência alguma.

Ficou tão decepcionado que teve vontade de se jogar nas águas frias da baía. Aquela tinha sido sua única chance de se comunicar com a mulher em quase três anos e algo tinha dado errado. Será que ela ao menos havia recebido sua carta?

Fantasias sombrias o atormentavam. Será que ela ainda o amava? Ou será que o esquecera? Quem sabe não havia um novo homem em sua vida? Ele não sabia o que pensar.

Radek e os bem-vestidos socialistas suecos levaram Lênin, um tanto contra a sua vontade, até a seção de roupas masculinas da loja de departamentos PUB. As botas de montanha com travas na sola que o russo calçava desapareceram. Ele ganhou um sobretudo com gola de veludo e um chapéu novo. Agora, disse Radek, ele finalmente estava vestido como alguém capaz de liderar seu povo.

Ao cair da noite, os russos foram à estação embarcar em outro trem, desta vez rumo à Finlândia. Walter se separaria do grupo ali, mas o acompanhou até a estação. Antes de o trem partir, teve um momento a sós com Lênin.

Os dois foram se sentar em um compartimento iluminado por uma fraca lâmpada elétrica, cuja luz se refletia na careca de Lênin. Walter estava tenso. Precisava fazer tudo certo. Sabia que não adiantaria implorar ou suplicar a Lênin. E aquele homem sem dúvida não poderia ser intimidado. Somente uma lógica fria seria capaz de convencê-lo.

Walter estava com um discurso pronto.

– O governo alemão está ajudando o senhor a voltar para casa – disse ele. – Mas sabe que não estamos fazendo isso por caridade.

Lênin o interrompeu em um alemão fluente.

– Vocês acham que isso vai prejudicar a Rússia! – vociferou ele.

Walter não o contradisse.

– Mesmo assim, o senhor aceitou a nossa ajuda.

– Pelo bem da revolução! Ela é o único parâmetro que nos permite separar o certo do errado.

– Achei mesmo que o senhor fosse dizer isso. – Walter estava carregando uma mala pesada, que pousou no chão do vagão do trem com um baque. – No fundo falso desta mala, estão 100 mil rublos em notas e moedas.

– O quê? – Geralmente, Lênin se mostrava imperturbável, mas desta vez pareceu surpreso. – Para quê?

– Para o senhor.

Lênin ficou ofendido.

– Um suborno? – perguntou ele, indignado.

– De forma alguma – respondeu Walter. – Não temos por que suborná-lo. Seus objetivos são os mesmos que os nossos. O senhor clama pela derrubada do governo provisório e pelo fim da guerra.

– Para que o dinheiro, então?

– Propaganda. Para ajudá-lo a divulgar sua mensagem. Ela é a mesma que nós gostaríamos de transmitir. Uma mensagem de paz entre a Alemanha e a Rússia.

– Para que vocês possam ganhar sua guerra capitalista e imperialista contra a França!

– Como eu já disse, nós não estamos ajudando o senhor por caridade. Nem o senhor esperaria isso de nós. É apenas uma questão de pragmatismo político. Por ora, seus interesses coincidem com os nossos.

Lênin fez a mesma expressão de quando Radek insistira em comprar roupas novas para ele: a ideia lhe causava ojeriza, mas ele não podia negar que fizesse sentido.

– A cada mês vamos lhe dar uma quantia equivalente – disse Walter –, contanto, é claro, que o senhor continue a fazer uma campanha eficaz pela paz.

Houve um longo silêncio.

– O senhor disse que o sucesso da revolução é o único parâmetro que permite separar o certo do errado. Se for mesmo verdade, deveria aceitar o dinheiro.

Lá fora, na plataforma, um apito soou.

Walter se pôs de pé.

– Preciso ir embora agora. Adeus, e boa sorte.

Lênin ficou olhando para a mala no chão, sem dizer nada.

Walter saiu do compartimento e desceu do trem.

Então se virou e lançou um olhar para a janela do compartimento de Lênin. Quase esperava ver a janela se abrir e a mala ser atirada para fora.

Ouviu-se outro apito acompanhado por uma buzina. Os vagões estremeceram e começaram a se mover e o trem saiu lentamente da estação, levando a bordo Lênin, os outros exilados russos e a mala de dinheiro.

Walter tirou um lenço do bolso do peito do sobretudo e enxugou a testa. Apesar do frio, estava suando.

Walter foi andando da estação até o Grand Hotel pelo litoral. Estava escuro e um vento frio soprava do Báltico, vindo do leste. Ele deveria estar comemorando: havia acabado de subornar Lênin! Contudo, a sensação que tinha era de anticlímax. E estava mais deprimido do que deveria com o silêncio de Maud. Havia uma dúzia de razões possíveis para ela não lhe ter escrito. Ele não deveria supor o pior. Mas havia chegado muito perto de se apaixonar por Monika, então por que não poderia ter acontecido algo parecido com Maud? Não conseguia deixar de pensar que ela deveria tê-lo esquecido.

Resolveu que iria se embebedar naquela noite.

Na recepção do hotel, recebeu um recado datilografado: “Por favor, vá até a suíte 201, onde uma pessoa o aguarda com uma mensagem.” Imaginou que fosse um funcionário do Ministério das Relações Exteriores. Talvez eles tivessem mudado de ideia quanto a apoiar Lênin. Se fosse o caso, haviam chegado tarde demais.

Ele subiu a escada e bateu à porta do quarto 201. Lá de dentro, uma voz abafada perguntou em alemão:

– Quem é?

– Walter von Ulrich.

– Pode entrar, a porta está aberta.

Ele entrou e fechou a porta. A suíte estava iluminada por velas.

– Alguém tem uma mensagem para mim? – indagou ele, tentando enxergar na penumbra. Um vulto se levantou de uma cadeira. Era uma mulher e estava de costas para ele, mas algo nela fez seu coração saltar no peito. Ela se virou de frente.

Era Maud.

O queixo de Walter caiu e ele ficou petrificado.

– Olá, Walter – disse ela.

Então, perdendo o autocontrole, ela atirou-se em seus braços.

O cheiro conhecido de Maud encheu suas narinas. Ele beijou-lhe os cabelos e acariciou-lhe as costas. Não conseguia falar, com medo de chorar. Apertou o corpo dela contra o seu, mal acreditando que aquela mulher era de fato ela, que a estava abraçando e tocando, algo que havia desejado com tanta sofreguidão durante quase três anos. Ela ergueu o rosto para o seu, com os olhos marejados, e ele a encarou, embriagando-se com o que via. Maud estava ao mesmo tempo igual e diferente: mais magra, com marcas de expressão finíssimas sob os olhos que antes não existiam, porém com o mesmo olhar inteligente e penetrante que ele conhecia tão bem.

– “Ele fitava meu rosto com tanto ardor que parecia querer sorvê-lo” – disse ela em inglês.

Ele sorriu.

– Nós não somos Hamlet e Ofélia, então, por favor, não vá entrar para um convento.

– Meu Deus, como senti sua falta!

– E eu a sua. Estava esperando uma carta... mas você aqui! Como conseguiu?

– Eu disse ao serviço de imigração que planejava entrevistar políticos escandinavos sobre o voto feminino. Depois, encontrei o ministro do Interior em uma festa e dei uma palavrinha com ele.

– E como fez para vir?

– Os vapores de passageiros ainda estão circulando.

– Mas é muito perigoso... nossos submarinos estão afundando todas as embarcações.

– Eu sei. Mas corri o risco. Estava desesperada. – Ela recomeçou a chorar.

– Venha se sentar. – Mantendo o braço ao redor de sua cintura, ele a conduziu pelo quarto até o sofá.

– Não – disse ela quando estavam prestes a se acomodar. – Nós esperamos demais antes da guerra. – Ela o tomou pela mão, fazendo-o atravessar a porta interna que dava para o quarto de dormir. A lenha estalava na lareira. – Não vamos perder mais tempo. Venha para a cama.

Grigori e Konstantin faziam parte de uma delegação do soviete de Petrogrado destacada para receber Lênin na Estação Finlândia tarde da noite, na segunda-feira 16 de abril.

A maioria deles nunca tinha visto Lênin, que, com exceção de uns poucos meses, passara os últimos 17 anos no exílio. Grigori tinha 11 anos quando Lênin deixou a Rússia. Não obstante, conhecia sua reputação – e, ao que tudo indicava, o mesmo valia para outros milhares de pessoas que se reuniram na estação para recebê-lo. Grigori se perguntava por que havia tanta gente. Talvez, assim como ele, aquelas pessoas estivessem insatisfeitas com o governo provisório, desconfiadas de seus ministros de classe média e irritadas com o fato de a guerra não ter chegado ao fim.

A Estação Finlândia ficava no distrito de Vyborg, perto das fábricas têxteis e do quartel do Primeiro Regimento de Metralhadoras. Uma multidão ocupava a praça. Grigori não esperava que fosse haver traição, mas, por via das dúvidas, havia mandado Isaak trazer dois pelotões e vários blindados. O telhado da estação era equipado com um canhão de luz e alguém o fazia correr pela massa de pessoas que aguardava no escuro.

O interior da estação estava lotado de operários e soldados, todos portando bandeiras vermelhas e cartazes. Uma banda militar tocava. Às vinte para a meia-noite, duas unidades de marinheiros entraram em formação na plataforma para servir de guarda de honra. A delegação do soviete aguardava na sala de espera grandiosa, outrora reservada para o czar e a família real, porém Grigori saiu para a plataforma e se juntou à multidão.

Por volta da meia-noite, Konstantin apontou em direção aos trilhos e Grigori, acompanhando seu dedo, viu ao longe os faróis de um trem. Um burburinho de expectativa se ergueu da multidão que aguardava. O trem entrou na estação soltando fumaça e parou com um chiado. Trazia o número 293 pintado na frente.

Em poucos instantes, um homem baixo e atarracado desceu do trem usando um jaquetão de lã e um chapéu de feltro. Grigori pensou que aquele não podia ser Lênin – ele certamente não estaria usando as roupas da classe dominante. Uma jovem se adiantou para lhe entregar um buquê de flores, que ele aceitou franzindo as sobrancelhas de forma antipática. Era Lênin mesmo.

Atrás dele vinha Lev Kamenev, que fora enviado pelo Comitê Central Bolchevique para encontrar Lênin na fronteira, caso houvesse algum problema – embora, no fim das contas, ele tivesse entrado no país sem dificuldades. Kamenev indicou com um gesto que deveriam seguir para a sala de espera real.

Com certa grosseria, Lênin deu as costas a Kamenev e dirigiu-se aos marinheiros.

– Camaradas! – gritou. – Vocês foram enganados! Fizeram uma revolução, mas os frutos dela foram roubados pelos traidores do governo provisório!

Kamenev empalideceu. A política de quase toda a esquerda era apoiar o governo provisório, pelo menos temporariamente.

Grigori, no entanto, ficou maravilhado. Não acreditava na democracia burguesa. O parlamento autorizado pelo czar em 1905 não passara de um truque, destituído de seu poder quando as perturbações terminaram e todos voltaram ao trabalho. O atual governo estava rumando pelo mesmo caminho.

E agora, finalmente, alguém tinha coragem de dizer isso.

Grigori e Konstantin seguiram Lênin e Kamenev até a sala de espera. A multidão foi atrás deles se espremendo até o recinto ficar abarrotado. O presidente do soviete de Petrogrado, Nikolai Chkeidze, careca e com cara de rato, deu um passo à frente. Depois de apertar a mão de Lênin, disse:

– Em nome do soviete de Petrogrado e da revolução, saudamos sua chegada à Rússia. Mas...

Grigori arqueou as sobrancelhas para Konstantin. Aquele “mas” parecia inadequadamente precoce para a ocasião. Konstantin encolheu os ombros ossudos.

– Mas nós acreditamos que a principal tarefa da democracia revolucionária agora é defender nossa revolução contra qualquer ataque... – Chkeidze fez uma pausa, concluindo em seguida de forma enfática: – … seja ele interno ou externo.

– Ele não está fazendo um discurso de boas-vindas, está dando um aviso – murmurou Konstantin.

– Acreditamos que, para tanto, é preciso que haja união entre todos os partidários da revolução, e não desunião. Esperamos que o senhor concorde conosco e também busque esses objetivos.

Parte da delegação aplaudiu educadamente.

Lênin se deteve antes de responder. Olhou para os rostos à sua volta e para o teto decorado de forma luxuosa. Então, em um gesto que pareceu ter a intenção de insultar, deu as costas a Chkeidze e dirigiu-se à multidão:

– Camaradas, soldados, marinheiros e operários! – disse ele, fazendo questão de excluir os parlamentares de classe média. – Eu os saúdo como a vanguarda do exército proletário mundial. Hoje, ou talvez amanhã, todo o imperialismo europeu poderá ruir. A revolução que vocês fizeram inaugurou um novo tempo. Vida longa à revolução socialista mundial!

Todos vibraram. Grigori ficou espantado. Eles haviam acabado de conseguir fazer uma revolução em Petrogrado cujos resultados ainda eram incertos. Como poderiam pensar em uma revolução mundial? Apesar disso, a ideia o entusiasmava. Lênin tinha razão: todos deveriam se voltar contra os líderes que tinham enviado tantos homens para a morte naquela guerra mundial sem sentido.

Lênin se afastou da delegação com passos firmes e saiu para a praça.

Um rugido se ergueu da multidão que o aguardava. Os soldados de Isaak suspenderam Lênin até o teto reforçado de um blindado. O canhão de luz o iluminava. Ele tirou o chapéu.

Sua voz era ríspida e monocórdia, mas suas palavras, eletrizantes.

– O governo provisório traiu a revolução! – bradou ele.

Todos vibraram. Grigori ficou surpreso: até então, não sabia quantas pessoas pensavam como ele.

– Esta guerra é uma guerra imperialista predatória. Não queremos participar dessa vergonhosa carnificina imperialista. Com a derrubada do capital, podemos selar uma paz democrática!

Isso provocou um rugido ainda mais alto.

– Não queremos as mentiras ou as farsas de um parlamento burguês! A única forma de governo possível é um soviete de delegados dos trabalhadores. Todos os bancos devem ser tomados e submetidos ao controle do soviete. Todas as terras particulares devem ser confiscadas. E todos os oficiais do Exército devem ser eleitos pelo povo!

Era exatamente assim que Grigori pensava, e ele vibrou e brandiu as mãos junto com quase todo o restante da multidão.

– Vida longa à revolução!

O povo foi à loucura.

Lênin desceu de cima do blindado e entrou nele. O veículo começou a se afastar muito lentamente. A multidão o cercou e passou a segui-lo, agitando bandeiras vermelhas. A banda militar uniu-se à procissão, tocando uma marcha.

– Esse é o homem! – exclamou Grigori.

– É isso aí – concordou Konstantin.

E eles seguiram o cortejo.

 

Maio e junho de 1917

A boate Monte Carlo, em Buffalo, tinha um aspecto horrível à luz do dia, porém Lev Peshkov gostava dela mesmo assim. A marcenaria era toda arranhada, a pintura lascada, os estofados manchados e o carpete vivia repleto de guimbas de cigarro; mas Lev considerava a boate um paraíso. Ao entrar, beijou a moça da chapelaria, deu um charuto ao leão de chácara e disse ao barman, que erguia um engradado, para tomar cuidado.

O emprego de gerente de boate lhe caía como uma luva. Sua principal responsabilidade era garantir que ninguém roubasse nada. Como ele próprio era um ladrão, sabia o que fazer. Fora isso, precisava apenas garantir que houvesse bebida suficiente atrás do balcão e uma banda decente no palco. Além do salário, recebia cigarros de graça e todo o álcool que conseguisse beber sem cair. Estava sempre vestido com trajes de gala, o que o fazia se sentir um príncipe. Josef Vyalov deixava que ele cuidasse sozinho da boate. Contanto que o dinheiro continuasse a entrar, seu sogro não tinha interesse algum no estabelecimento – exceto o de aparecer de vez em quando com seus cupinchas para assistir ao espetáculo.

Lev só tinha um problema: sua mulher.

Olga não era mais a mesma. Durante algumas semanas, no verão de 1915, ela havia se mostrado louca por sexo, sempre ávida pelo seu corpo. Mas agora ele sabia que isso tinha sido uma exceção. Desde que haviam se casado, tudo o que ele fazia a desagradava. Ela queria que Lev tomasse banho todos os dias, escovasse os dentes e parasse de peidar. Não gostava de dançar nem de beber e pedia-lhe para não fumar. Nunca ia à boate. Os dois dormiam em camas separadas. Olga dizia que ele não passava de um pé de chinelo.

– Eu sou mesmo um pé de chinelo – devolveu ele um dia. – É por isso que era chofer. – Mas ela continuou insatisfeita.

Então ele havia contratado Marga.

Seu caso antigo estava no palco naquele instante, ensaiando um número novo com a banda, enquanto duas negras de lenço na cabeça limpavam as mesas e varriam o chão. Marga usava um vestido justo e batom vermelho. Lev havia lhe dado um emprego de dançarina sem nem ao menos saber se ela era boa. Marga, no entanto, se revelara não apenas talentosa, mas uma estrela. Agora, cantava uma música sugestiva, sobre uma mulher que espera a noite inteira por seu homem.

 

Apesar da minha frustração

A expectativa

Apimenta nossa relação

Sempre que ele volta

 

Lev sabia exatamente do que ela estava falando.

Ficou observando Marga até ela terminar de cantar. Ela desceu do palco e lhe deu um beijo na face. Ele pegou duas garrafas de cerveja e a acompanhou até o camarim.

– Ótimo número – disse ao entrar.

– Obrigada. – Marga levou a garrafa à boca e a virou. Lev ficou olhando seus lábios vermelhos tocarem a boca da garrafa. Ela deu um gole generoso. Então o pegou olhando para ela, engoliu e abriu um sorriso. – Isso faz você lembrar alguma coisa?

– Pode apostar que sim. – Ele a abraçou e correu as mãos por seu corpo. Em poucos minutos, Marga se ajoelhou, desabotoou sua calça e o abocanhou. Era boa nisso, a melhor que ele já conhecera. Ou realmente gostava do que estava fazendo, ou então era a melhor atriz dos Estados Unidos. Ele fechou os olhos e suspirou de prazer.

A porta se abriu e Josef Vyalov entrou no camarim.

– Então é verdade! – disse ele, furioso.

Dois de seus capangas, Ilya e Theo, entraram atrás dele.

Lev ficou apavorado. Às pressas, tentou abotoar a calça e se desculpar ao mesmo tempo.

Marga se levantou e limpou a boca com a mão.

– Vocês estão no meu camarim! – protestou.

– E você na minha boate – retrucou Vyalov. – Mas não por muito tempo. Está demitida. – Ele se virou para Lev: – Enquanto você for casado com a minha filha, está proibido de trepar com suas subalternas!

– Ele não estava trepando comigo, Vyalov, ou você não percebeu? – falou Marga com insolência.

Vyalov lhe deu um soco na boca. Ela gritou e caiu para trás com o lábio sangrando.

– Você foi demitida – disse ele. – Dê o fora daqui.

Ela pegou a bolsa e foi embora.

Vyalov olhou para Lev.

– Seu babaca! – xingou. – Já não fiz o suficiente por você?

– Desculpe, Pa – disse Lev. Tinha verdadeiro pavor do sogro. Vyalov era capaz de tudo: quem o desagradasse poderia ser chicoteado, torturado, aleijado ou assassinado. Ele não tinha dó nem temia a lei. Nesse sentido, era tão poderoso quanto o czar.

– E também não venha me dizer que é a primeira vez – disse Vyalov. – Eu tenho escutado esses boatos desde que pus você como gerente aqui.

Lev ficou calado. Os boatos eram verdadeiros. Houvera outras garotas, embora não desde que Marga tinha sido contratada.

– Vou transferir você – disse Vyalov.

– Como assim?

– Vou tirar você da boate. Tem garotas demais nesta porra de lugar.

Lev ficou arrasado. Ele adorava a Monte Carlo.

– Mas o que eu vou fazer?

– Tenho uma fundição na altura do porto. Lá não trabalha mulher nenhuma. O gerente adoeceu e está no hospital. Você pode ficar de olho na fábrica para mim.

– Uma fundição? – Lev não podia acreditar naquilo. – Eu?

– Você trabalhou na Metalúrgica Putilov.

– Mas na estrebaria!

– E também numa mina de carvão.

– Na estrebaria.

– Então você conhece o ambiente.

– Conheço e detesto!

– E eu por acaso perguntei se você gostava? Deus do céu, acabei de flagrar você com as calças arriadas. Pense na sorte que teve de não acabar pior.

Lev calou a boca.

– Vá lá para fora e entre na porcaria do carro – mandou Vyalov.

Lev saiu do camarim e atravessou a boate, com Vyalov em seu encalço. Mal conseguia acreditar que estava indo embora para sempre. O barman e a moça da chapelaria ficaram olhando para ele, pressentindo que havia algo errado.

– Ivan, hoje à noite você é quem manda – disse Vyalov ao barman.

– Sim, chefe.

O Packard Twin Six de Vyalov aguardava junto ao meio-fio. O novo motorista, um rapaz de Kiev, estava parado ao lado do carro, todo orgulhoso. O leão de chácara se adiantou para abrir a porta de trás para Lev. Pelo menos ainda viajo no banco de trás, pensou.

Para se consolar, recordou a si mesmo que estava vivendo como um nobre russo, se não melhor. Ele e Olga ocupavam a ala do quarto das crianças no casarão de Vyalov. Os americanos ricos não tinham tantos criados quanto os russos, mas as suas casas eram mais limpas e cuidadas do que os palácios de Petrogrado. Tinham banheiros modernos, geladeiras e aspiradores de pó, além de calefação central. A comida era boa. Vyalov não compartilhava o amor pelo champanhe da aristocracia russa, mas sempre havia uísque sobre o aparador. E Lev tinha seis ternos.

Sempre que se sentia oprimido pelos maus-tratos do sogro, ele se lembrava dos velhos tempos em Petrogrado: do quartinho que dividia com Grigori, da vodca barata, do pão preto duro e do ensopado de rabanete. Lembrava-se de que, na época, pensava que seria um luxo andar de bonde em vez de ir a pé para todos os lugares. Enquanto esticava as pernas no banco de trás da limusine de Vyalov, olhou para as meias de seda e para os sapatos pretos lustrosos que calçava, dizendo a si mesmo para se sentir grato.

Vyalov entrou depois dele e os dois foram de carro até a beira do lago. A fundição de Vyalov era uma versão menor da Metalúrgica Putilov: os mesmos prédios decrépitos com janelas quebradas, as mesmas chaminés altas cuspindo fumaça negra, os mesmos operários maltrapilhos de rosto sujo. Lev sentiu um aperto no coração.

– A fábrica se chama Metalúrgica de Buffalo, mas só fabrica um produto – disse Vyalov. – Ventiladores. – O carro passou pelo portão estreito. – Antes da guerra, ela estava perdendo dinheiro. Eu a comprei e diminuí o salário dos funcionários para mantê-la funcionando. De uns tempos para cá, os negócios me­lhoraram. Temos uma longa lista de encomendas para hélices de avião e navios e ventoinhas para motores de blindados. Os operários agora querem um aumento, mas eu preciso recuperar um pouco do que gastei antes de começar a distribuir dinheiro.

A ideia de trabalhar ali apavorava Lev, porém o medo que sentia de Vyalov era mais forte – e não queria fracassar. Decidiu que não seria ele a conceder um aumento aos operários.

Vyalov lhe mostrou a fábrica. Lev desejou não estar usando seu smoking. Por dentro, no entanto, o lugar não se parecia com a Metalúrgica Putilov. Era bem mais limpo. Não havia crianças correndo de um lado para outro. Tirando as fornalhas, tudo o mais era movido a eletricidade. Enquanto os russos precisavam de 12 homens puxando uma corda para erguer a caldeira de uma locomotiva a vapor, ali a imensa hélice propulsora de um navio era içada por um guindaste elétrico.

Vyalov apontou para um homem calvo usando camisa de colarinho e gravata por baixo do macacão.

– Aquele ali é o nosso inimigo – falou. – Brian Hall, secretário do núcleo local do sindicato.

Lev avaliou Hall. O homem estava ajustando uma prensa pesada, girando uma porca com o auxílio de uma chave de boca de cabo longo. Ele tinha um ar briguento e, quando levantou os olhos e viu Lev e Vyalov, lançou-lhes um olhar desafiador, como se estivesse tentado a perguntar se eles estavam ali para criar algum problema.

Vyalov ergueu a voz acima do barulho de um esmeril:

– Hall, venha cá!

O homem não se apressou, guardando a chave de boca dentro de uma caixa de ferramentas e limpando as mãos em um trapo antes de se aproximar.

– Este é seu novo chefe, Lev Peshkov – disse Vyalov.

– Como vai? – disse Hall para Lev antes de se virar para Vyalov. – Peter Fisher levou um corte feio no rosto de uma lasca de aço que escapou da máquina hoje de manhã. Teve que ser levado para o hospital.

– Sinto muito por isso – disse Vyalov. – A metalurgia é uma indústria perigosa, mas ninguém é obrigado a trabalhar aqui.

– A lasca quase acertou o olho dele – falou Hall, indignado. – Nós deveríamos usar óculos de proteção.

– Desde que comprei a fábrica, ninguém ficou cego.

Hall logo se irritou:

– E temos que esperar alguém ficar cego para começar a usar os óculos?

– De que outro jeito eu vou saber que vocês precisam deles?

– Um homem não deixa de pôr uma tranca na porta de casa porque nunca foi roubado.

– Mas quem paga pela tranca é ele.

Hall meneou a cabeça como se não esperasse nada melhor e, com um ar cansado de quem sabe das coisas, voltou para junto de sua máquina.

– Eles vivem pedindo alguma coisa – disse Vyalov a Lev.

Lev concluiu que Vyalov queria que ele fosse duro com os operários. Bem, isso ele sabia fazer. Era assim que eram administradas todas as fábricas de Petrogrado.

Os dois saíram da metalúrgica e subiram de carro a Avenida Delaware. Lev supôs que estivessem indo para casa jantar. Jamais passaria pela cabeça de Vyalov perguntar se Lev estava de acordo. Seu sogro tomava decisões por todo mundo.

Em casa, Lev tirou os sapatos, que estavam sujos de andar na fundição, calçou um par de chinelos bordados que Olga lhe dera de presente no Natal e em seguida foi até o quarto do bebê. Lena, mãe de Olga, estava lá com Daisy.

– Olhe, Daisy, é o seu papai! – disse ela.

A filha de Lev já estava com um ano e dois meses e aprendendo a andar. Cambaleou pelo quarto em direção ao pai, sorrindo, então caiu e pôs-se a chorar. Ele a pegou do chão e deu-lhe um beijo. Nunca tivera o menor interesse em bebês ou crianças antes, mas Daisy conquistara seu coração. Quando ela estava irritada, sem querer dormir, e ninguém mais conseguia acalmá-la, Lev a ninava, murmurando palavras carinhosas e cantando trechos de canções folclóricas russas, até seus olhos se fecharem, seu corpinho relaxar e ela adormecer no seu colo.

– Ela é igualzinha ao pai bonitão! – disse Lena.

Para Lev, Daisy era igual a qualquer bebê, mas ele não contradizia a sogra. Lena o adorava. Flertava com ele, tocava-o com frequência e beijava-o sempre que tinha oportunidade. Estava apaixonada por Lev, embora sem dúvida pensasse que não estava fazendo nada além de demonstrar um afeto familiar normal.

Do outro lado do quarto, estava uma jovem russa chamada Polina. Ela era a babá, mas não tinha muito o que fazer: Olga e Lena passavam a maior parte do tempo cuidando de Daisy. Lev entregou a criança a Polina. Quando o fez, a babá o encarou nos olhos. Tinha uma beleza russa clássica, com cabelos louros e maçãs do rosto protuberantes. Lev se perguntou por um instante se poderia ter um caso com ela e se safar. Polina tinha seu próprio quartinho. Será que ele conseguiria entrar lá sem ninguém perceber? Talvez valesse a pena o risco: havia notado o desejo no olhar dela.

Então Olga entrou no quarto, fazendo-o se sentir culpado.

– Que surpresa! – disse ao vê-lo ali. – Não esperava que fosse voltar para casa antes das três da manhã.

– Seu pai me transferiu – disse Lev com amargura. – Agora sou gerente da fundição.

– Mas por quê? Achei que estivesse indo bem na boate.

– Não faço ideia – mentiu Lev.

– Talvez seja por causa do alistamento obrigatório – disse Olga. O presidente Wilson havia declarado guerra à Alemanha e estava prestes a dar início ao recenseamento militar. – A fundição vai ser classificada como indústria essencial à guerra. Papai quer manter você fora do Exército.

Lev ficara sabendo por meio dos jornais que o alistamento seria administrado por juntas de recrutamento locais. Vyalov certamente tinha pelo menos um amigo na junta capaz de dar um “jeitinho” para ele. Era assim que aquela cidade funcionava. Mas Lev não corrigiu Olga. Ele precisava de um álibi que não envolvesse Marga – e ela acabara de inventar um.

– Claro – disse ele. – Imagino que deva ser isso.

– Papá – falou Daisy.

– Que menina esperta! – disse Polina.

– Tenho certeza de que você fará um ótimo trabalho administrando a fábrica – comentou Lena.

Lev lhe exibiu seu melhor e mais modesto sorriso americano.

– Vou fazer o melhor que puder – disse.

Gus Dewar sentia que sua missão europeia para o presidente havia sido um fracasso.

– Fracasso? – disse Woodrow Wilson. – De jeito nenhum! Você conseguiu que a Alemanha fizesse uma proposta de paz. Não é culpa sua que os britânicos e franceses tenham mandado os alemães às favas. Você pode levar um cavalo até o bebedouro, mas não pode obrigá-lo a beber. – Mesmo assim, a verdade era que Gus não havia conseguido fazer os dois lados se reunirem nem sequer para conversas preliminares.

Isso o deixava ainda mais ávido por ter sucesso na próxima tarefa importante que Wilson lhe confiasse.

– A Metalúrgica de Buffalo foi fechada por causa de uma greve – disse o presidente. – Estamos com navios, aviões e veículos militares empacados nas linhas de montagem à espera das hélices e ventoinhas que ela fabrica. Você é de Buffalo: vá até lá e faça-os voltar ao trabalho.

Em sua primeira noite de volta à cidade natal, Gus foi jantar na casa de Chuck Dixon, seu antigo rival pelo afeto de Olga Vyalov. Chuck e sua nova esposa, Doris, moravam em uma mansão vitoriana na Avenida Elmwood, paralela à Delaware, e Chuck pegava o trem da Belt Line todos os dias de manhã para ir trabalhar no banco do pai.

Doris era uma moça bonita, um pouco parecida com Olga, e, ao observar os recém-casados, Gus ficou imaginando se de fato apreciaria essa rotina doméstica. Já havia sonhado em acordar diariamente ao lado de Olga, mas isso fazia dois anos e, agora que o encanto que ela exercia havia se exaurido, achava que talvez preferisse seu apartamento de solteiro na Rua 16, em Washington.

Quando todos já estavam sentados diante de seus bifes com purê de batatas, Doris perguntou:

– O que aconteceu com a promessa do presidente Wilson de nos manter fora da guerra?

– Ninguém pode dizer que ele não tentou – respondeu Gus com a voz tranquila. – Ele vem fazendo campanha pela paz há três anos. Os adversários simplesmente não quiseram escutar.

– Isso não significa que temos que entrar na briga.

– Querida, os alemães estão afundando navios americanos! – disse Chuck, impaciente.

– Então mandem os navios americanos ficarem fora da zona de guerra! – Doris parecia zangada e Gus imaginou não ser a primeira vez que os dois tinham aquela discussão. Com certeza a raiva dela vinha do medo de Chuck ser obrigado a se alistar.

Para Gus, essas questões tinham nuances demais, por isso ele evitava fazer declarações arrebatadas do que era certo ou errado. Com delicadeza, disse:

– Tudo bem, isso é uma alternativa, que inclusive foi cogitada pelo presidente. Mas ela significa aceitar que a Alemanha tem o poder de nos dizer aonde os navios americanos podem ou não podem ir.

– Nós não podemos ser intimidados dessa forma, nem pela Alemanha, nem por qualquer outro país! – disse Chuck com indignação.

Doris não arredou pé.

– Se for para salvar vidas, por que não?

– A maioria dos americanos parece pensar como Chuck – disse Gus.

– Isso não significa que eles estejam certos.

– Wilson acredita que um presidente deve lidar com a opinião pública da mesma forma que um navio lida com o vento: usando-a a seu favor, mas nunca indo contra ela por completo.

– Então por que o alistamento obrigatório? Isso transforma os homens americanos em escravos.

– Você não acha que é justo sermos todos igualmente responsáveis por lutar pelo nosso país? – Gus atalhou novamente.

– Nós temos um exército profissional. Composto por homens que pelo menos se alistaram voluntariamente.

– O nosso exército tem 130 mil homens – argumentou Gus. – Nesta guerra, isso não é nada. Vamos precisar de no mínimo um milhão de soldados.

– Muito mais homens para morrer – disse Doris.

– Uma coisa eu garanto: nós lá no banco estamos contentes – falou Chuck. – Emprestamos muito dinheiro para empresas norte-americanas fornecedoras dos Aliados. Se os alemães ganharem a guerra, e os britânicos e franceses não puderem pagar o que devem, vamos entrar pelo cano.

Doris assumiu uma expressão pensativa.

– Eu não sabia disso.

Chuck afagou a mão da mulher.

– Não se preocupe, querida. Isso não vai acontecer. Os Aliados vão ganhar, ainda mais com a nossa ajuda.

– Existe outro motivo para lutarmos – disse Gus. – Quando a guerra terminar, os Estados Unidos poderão participar do acordo de paz em pé de igualdade com os demais países. Talvez não pareça grande coisa, mas o sonho de Wilson é criar uma liga das nações para solucionar futuros conflitos sem termos que matar uns aos outros. – Ele olhou para Doris. – Imagino que você seja a favor disso.

– Com certeza.

Chuck mudou de assunto.

– O que trouxe você para casa, Gus? Fora o desejo de explicar a nós, reles mortais, as decisões do presidente.

Ele lhes contou sobre a greve. Falou em tom casual, como se estivesse batendo papo em um coquetel, mas na verdade estava preocupado. A Metalúrgica de Buffalo era crucial para o esforço de guerra, e ele não sabia ao certo como faria os operários voltarem ao trabalho. Wilson havia solucionado uma greve nacional dos ferroviários logo antes da reeleição e parecia achar que intervir em dispu­tas industriais era parte natural da vida política. Gus, por sua vez, considerava isso uma responsabilidade pesada.

– Você sabe quem é o dono dessa fábrica, não sabe? – perguntou Chuck.

Gus havia verificado.

– Vyalov.

– E sabe quem a administra para ele?

– Não.

– Seu novo genro, Lev Peshkov.

– Ah – disse Gus. – Isso eu não sabia.

Lev estava furioso por causa da greve. O sindicato vinha tentando se aproveitar de sua inexperiência. Ele tinha certeza de que Brian Hall e os operários o consideravam um fraco. Estava decidido a provar que eles estavam enganados.

A princípio, tentara se mostrar razoável.

– O Sr. V precisa recuperar um pouco do dinheiro que perdeu durante os anos difíceis – havia dito a Hall.

– E os operários precisam recuperar um pouco do que eles perderam com a redução salarial! – retrucara o outro.

– Não é a mesma coisa.

– Não, não é – concordara Hall. – Vocês são ricos e eles são pobres. É pior para eles. – A esperteza do sindicalista era irritante.

Lev estava louco para voltar a cair nas graças do sogro. Deixar um homem como Josef Vyalov muito tempo insatisfeito era perigoso. O problema era que Lev tinha um único trunfo – seu charme –, que não funcionava com Vyalov.

Mas o sogro estava do lado dele quanto à fundição.

– Às vezes é preciso deixar que eles façam greve – dissera ele. – O que não se pode é ceder. Você tem que aguentar firme. Eles vão ficando mais sensatos à medida que começam a passar fome. – Mas o genro sabia como Vyalov era capaz de mudar de ideia rápido.

Para apressar o fracasso da greve, Lev tinha seu próprio plano. Ele usaria o poder da imprensa.

Graças ao sogro, que havia garantido sua admissão, Lev era sócio do Iate Clube de Buffalo. A maioria dos principais empresários da cidade também frequentava o local, incluindo Peter Hoyle, editor do Buffalo Advertiser. Certa tarde, Lev abordou Hoyle na sede do clube, no início da Avenida Porter.

O Advertiser era um jornal conservador que vivia defendendo a estabilidade e punha a culpa de todos os problemas nos estrangeiros, nos negros e nos agitadores socialistas. Hoyle, homem imponente de bigode preto, era amigo de Vyalov.

– Olá, jovem Peshkov – disse ele. Tinha uma voz alta e ríspida, como se estivesse acostumado a gritar para ser ouvido acima do barulho das rotativas. – Fiquei sabendo que o presidente mandou o filho de Cam Dewar vir para cá resolver a sua greve.

– É o que parece, mas ele ainda não me procurou.

– Eu conheço o rapaz. É um ingênuo. Você não tem muito com que se preocupar.

Lev achava o mesmo. Em 1914, quando Petrogrado ainda se chamava São Petersburgo, havia tirado um dólar de Gus Dewar, e fazia um ano que tinha roubado a noiva dele com a mesma facilidade.

– Eu queria conversar com o senhor sobre a greve – disse ele, sentando-se na poltrona de couro, de frente para Hoyle.

– O Advertiser já tachou os grevistas de socialistas e revolucionários antiamericanos – disse Hoyle. – O que mais podemos fazer?

– Chamá-los de agentes inimigos – disse Lev. – Eles estão atravancando a produção dos veículos de que os nossos rapazes vão precisar quando chegarem à Europa... mas os operários estão dispensados do serviço militar!

– É um ângulo de ataque possível – disse Hoyle, franzindo as sobrancelhas. – Mas ainda não sabemos como vai funcionar o alistamento.

– Com certeza as indústrias de guerra vão ficar de fora.

– É verdade.

– E, mesmo assim, eles estão exigindo mais dinheiro. Muitas pessoas aceitariam um salário menor em troca de um emprego que as mantivesse fora da guerra.

Hoyle sacou um bloco de anotações do bolso do paletó e começou a escrever.

– Aceitariam um salário menor por um emprego que dispensasse do alistamento – murmurou ele.

– Talvez o senhor até se pergunte: de que lado eles estão?

– Parece uma boa manchete.

Lev ficou surpreso e satisfeito. Tinha sido moleza.

Hoyle ergueu os olhos do bloco.

– Imagino que o Sr. V saiba que nós estamos tendo esta conversa, não?

Lev não previra essa pergunta. Para disfarçar a perplexidade, sorriu. Se dissesse que não, Hoyle desistiria de tudo na hora.

– Sim, é claro – mentiu. – Na verdade, a ideia foi dele.

Vyalov pediu a Gus que o encontrasse no Iate Clube. Brian Hall propôs uma reunião no escritório do sindicato em Buffalo. Os dois lados queriam se encontrar no próprio terreno, para se sentirem confiantes e no comando da situação. Assim, Gus reservou uma sala de conferências no Hotel Statler.

Lev Peshkov havia atacado os grevistas afirmando que eles queriam fugir do alistamento, e o Advertiser publicara suas palavras na primeira página, sob o título DE QUE LADO ELES ESTÃO? Gus ficara consternado ao ler o jornal: esse tipo de comentário agressivo servia apenas para agravar o problema. Porém o tiro de Lev saíra pela culatra. Os jornais daquela manhã divulgaram uma onda de protestos de trabalhadores em outras indústrias de guerra, indignados com a sugestão de que deveriam receber salários baixos devido à sua condição privilegiada e furiosos por serem acusados de fugir do alistamento. A trapalhada de Lev animou Gus, mas ele sabia que seu verdadeiro inimigo era Vyalov – e isso o deixava nervoso.

Gus levou todos os jornais consigo para o Statler e os dispôs sobre uma mesa de canto na sala de reunião. Deixou em posição de destaque um diário popular com a manchete E VOCÊ, LEV, VAI SE ALISTAR?

Gus havia pedido a Brian Hall para chegar ao hotel 15 minutos antes de Vyalov. O líder sindical não se atrasou. O assessor do presidente reparou que ele vestia um terno elegante e um chapéu de feltro cinza. Era uma boa tática. Mesmo que você representasse os trabalhadores, aparentar inferioridade era um erro. Hall, ao seu modo, parecia tão importante quanto Vyalov.

O sindicalista viu os jornais e sorriu.

– O jovem Lev cometeu um erro – falou, satisfeito. – Arranjou um monte de sarna para se coçar.

– Manipular a imprensa é um jogo perigoso – disse Gus. Ele foi direto ao assunto: – Você está pedindo um aumento de um dólar por dia.

– São só 10 centavos a mais do que meus operários estavam ganhando quando Vyalov comprou a fábrica e...

– Esqueça isso – interrompeu Gus, demonstrando mais coragem do que de fato sentia. – Se eu conseguir 50 centavos, você aceita?

Hall pareceu indeciso.

– Eu teria que consultar os operários...

– Não – falou Gus. – Preciso que decida agora. – Rezou para seu nervosismo não estar transparecendo.

Hall foi evasivo.

– Vyalov concordou com isso?

– Deixe que eu me preocupo com Vyalov. Cinquenta centavos, é pegar ou largar. – Gus resistiu ao impulso de enxugar a testa.

Hall fitou Gus com um olhar demorado, perscrutador. Gus desconfiava que, por trás daquela aparência de brigão, havia um cérebro astuto. Por fim, Hall falou:

– Vamos aceitar... por enquanto.

– Obrigado. – Gus conseguiu não soltar o ar dos pulmões em um grande suspiro de alívio. – Aceita um café?

– Com prazer.

Gus virou-lhe as costas, grato pela chance de esconder o rosto, e tocou a sineta para chamar um garçom.

Josef Vyalov e Lev Peshkov entraram na sala. Gus não apertou a mão de nenhum dos dois.

– Sentem-se – falou, lacônico.

O olhar de Vyalov recaiu sobre os jornais em cima da mesa lateral, e uma expressão de raiva cruzou seu rosto. Gus imaginou que Lev já estivesse encrencado por conta daquelas manchetes.

Tentou não encarar Lev. Aquele era o motorista que havia seduzido sua noiva – mas ele não podia permitir que isso turvasse seu raciocínio. A vontade de Gus era lhe dar um soco na cara. Contudo, se aquela reunião saísse conforme o planejado, o resultado seria mais humilhante para Lev do que um soco – e muito mais satisfatório para ele próprio.

Um garçom apareceu e Gus disse:

– Café para meus convidados, por favor, e um prato de sanduíches de presunto. – Fez questão de não perguntar o que os outros queriam. Tinha visto Woodrow Wilson agir assim com aqueles que desejava intimidar.

Sentou-se e abriu uma pasta. Dentro dela, havia uma folha de papel em branco. Ele fingiu lê-la.

Lev se sentou e disse:

– Então o presidente mandou você vir até aqui para negociar com a gente, Gus?

Só então Gus se permitiu olhar para Lev. Passou um bom tempo encarando-o sem dizer nada. Um rapaz bonito, pensou ele, mas indigno de confiança e fraco. Quando Lev começou a parecer constrangido, Gus finalmente falou:

– Porra, você está maluco?

Lev ficou tão chocado que chegou a arrastar a cadeira para trás, como se estivesse com medo de apanhar.

– Mas o que...

Gus endureceu a voz.

– Os Estados Unidos estão em guerra – disse ele. – O presidente não vai negociar com você. – Olhou para Brian Hall. – Nem com você – falou, embora tivesse feito um acordo com Hall apenas 10 minutos atrás. Por fim, olhou para Vyalov. – E nem mesmo com você – concluiu.

Vyalov o encarou de volta com o olhar firme. Ao contrário do genro, não se deixou intimidar. No entanto, já não exibia a expressão de deboche com a qual havia iniciado a reunião. Após uma longa pausa, perguntou:

– Então o que você veio fazer aqui?

– Estou aqui para lhes dizer o que vai acontecer – falou Gus, sem alterar o tom de voz. – E, depois que eu tiver acabado, vocês vão aceitar.

– Essa é boa! – disse Lev.

– Cala a boca, Lev – disse Vyalov. – Prossiga, Dewar.

– Vocês vão propor aos operários um aumento de 50 centavos por dia – disse Gus. Virou-se para Hall: – E você vai aceitar a proposta.

Hall manteve a expressão impassível e falou:

– Ah, é?

– E quero seus homens de volta ao trabalho ao meio-dia de hoje.

– E posso saber por que nós deveríamos fazer que o você está dizendo? – perguntou Vyalov.

– Por causa da alternativa.

– Que seria...?

– O presidente despachar um batalhão do Exército até a fundição para assumir o controle, ocupá-la, liberar todas as mercadorias prontas para os clientes e continuar a operá-la com engenheiros militares. Depois da guerra, talvez ele até devolva a fábrica. – Ele se virou para Hall. – E, nesse caso, pode ser que seus homens também recuperem os empregos. – Gus desejou ter pedido a autorização de Woodrow Wilson antes de dizer isso, mas agora era tarde demais.

– Ele tem o direito de fazer isso? – quis saber Lev, estupefato.

– Em tempos de guerra, sim – respondeu Gus.

– Isso é o que você diz – falou Vyalov com ceticismo.

– Então recorram à Justiça contra nós – disse Gus. – Acham mesmo que existe algum juiz nos Estados Unidos que vá ficar do lado de vocês... e dos inimigos do nosso país? – Ele se recostou na cadeira e os fitou com uma arrogância que não sentia. Aquilo iria mesmo funcionar? Será que acreditariam nele? Ou será que iriam desmascarar seu blefe, rir na sua cara e ir embora dali?

Fez-se um longo silêncio. A expressão de Hall era inescrutável. Vyalov estava pensativo. Lev parecia enjoado.

Por fim, Vyalov se voltou para Hall:

– Você está disposto a aceitar 50 centavos?

– Estou – limitou-se a dizer Hall.

Vyalov tornou a olhar para Gus.

– Nesse caso, nós também aceitamos.

– Obrigado, cavalheiros. – Gus fechou a pasta, tentando conter o tremor das próprias mãos. – Vou avisar o presidente.

O sábado foi de sol e calor. Lev disse a Olga que precisavam dele na fábrica e então foi à casa de Marga. Ela morava em um quartinho no bairro de Lovejoy. Os dois se abraçaram, mas, quando Lev começou a desabotoar sua blusa, ela falou:

– Vamos ao Humboldt Park.

– Prefiro trepar.

– Depois. Leve-me ao parque e, quando voltarmos, eu lhe mostro uma coisa especial. Uma coisa que nunca fizemos antes.

A garganta de Lev ficou seca.

– Por que eu preciso esperar?

– O dia está tão lindo.

– E se alguém nos vir?

– Vai ter um milhão de pessoas no parque.

– Mesmo assim...

– Está com medo do seu sogro, não é?

– Até parece – respondeu Lev. – Escute, sou o pai da neta dele. O que ele vai fazer? Me dar um tiro?

– Vou trocar de vestido.

– Eu espero no carro. Se você tirar a roupa na minha frente, posso acabar perdendo o controle.

Lev dirigia um Cadillac cupê novo, com capacidade para três passageiros. Podia não ser o carro mais bacana da cidade, mas era um bom começo. Sentou-se ao volante e acendeu um cigarro. É claro que tinha, sim, medo de Vyalov. Porém, ele havia passado a vida inteira correndo riscos. Afinal de contas, não era Grigori. E tudo tinha dado bastante certo até ali, pensou ele, sentado no carro, com um terno de verão azul, prestes a levar uma garota bonita ao parque. A vida era boa.

Antes de ele terminar o cigarro, Marga saiu do prédio e entrou no carro ao seu lado. Usava um vestido sem mangas ousado e tinha os cabelos enrolados por cima das orelhas, na última moda.

Ele dirigiu até o Humboldt Park, no região leste da cidade. Os dois se sentaram em um banco de ripas de madeira para aproveitar o sol e ver as crianças brincarem junto ao lago. Lev não conseguia parar de tocar os braços nus de Marga. Adorava os olhares invejosos que recebia dos outros homens. Ela é a garota mais bonita do parque, pensou, e está comigo. Quer melhor do que isso?

– Sinto muito pela sua boca – disse ele. O lábio inferior de Marga ainda estava inchado por causa do soco de Vyalov. O resultado era bem sensual.

– Não foi culpa sua – disse ela. – Seu sogro é um calhorda.

– É verdade.

– A Hot Spot me ofereceu um emprego na hora. Vou começar assim que puder voltar a cantar.

– Ainda dói?

Ela arriscou alguns compassos.

 

Eu brinco com meus cabelos

Jogo um pouco de baralho

Enquanto sozinha espero

A chegada de um milionário

 

Tocou a própria boca de leve.

– Sim – respondeu.

Lev se inclinou para mais perto dela.

– Deixe-me dar um beijinho para sarar. – Ela ergueu o rosto em direção ao seu e ele a beijou delicadamente, quase sem tocar-lhe os lábios.

– Não precisa ser com tanto cuidado – disse ela.

Ele abriu um sorriso.

– Certo, e que tal assim? – Tornou a beijá-la e, desta vez, deixou a ponta da língua acariciar a parte interna de seus lábios.

Um minuto depois, ela disse:

– Desse jeito também não tem problema. E deu uma risadinha.

– Já que é assim... – Então ele pôs a língua inteira dentro da boca de Marga. Ela retribuiu com entusiasmo, como sempre fazia. Suas línguas se encontraram e ela levou a mão à nuca de Lev para lhe acariciar o pescoço. Ele ouviu alguém dizer “Que pouca-vergonha!” e se perguntou se os transeuntes podiam ver sua ereção.

– Estamos chocando o povo desta cidade – disse ele, sorrindo para Marga. Ergueu a cabeça para ver se havia alguém olhando e se deparou com sua mulher, Olga.

Ela encarava os dois, perplexa, e sua boca formava um O mudo.

Ao lado dela estava seu sogro, vestindo terno, colete e chapéu de palha. Carregava Daisy no colo. A filha de Lev usava uma touca branca para proteger seu rosto do sol. A babá, Polina, vinha logo atrás.

– Lev! – exclamou Olga. – Mas o que... Quem é essa mulher?

Lev achou que talvez pudesse ter se safado daquela situação na base da conversa, mas apenas se Vyalov não estivesse ali.

Levantou-se do banco.

– Olga... eu não sei o que dizer.

– Não diga porcaria nenhuma – falou Vyalov com rispidez.

Olga começou a chorar.

Vyalov entregou Daisy para a babá.

– Leve minha neta para o carro agora mesmo.

– Sim, Sr. Vyalov.

Vyalov agarrou o braço de Olga e a afastou dali.

– Vá com Polina, meu bem.

Olga cobriu os olhos com as mãos para esconder as lágrimas e saiu atrás da babá.

– Seu merda! – gritou Vyalov a Lev.

Lev cerrou os punhos. Se o sogro lhe batesse, iria revidar. Vyalov podia ser forte como um touro, mas era 20 anos mais velho. Lev era mais alto e havia aprendido a brigar nos bairros pobres de Petrogrado. Não iria levar uma surra.

Vyalov leu seus pensamentos.

– Não vou sair no braço com você – disse ele. – Já passamos desse ponto.

Então o que vai fazer?, quis perguntar Lev. Porém manteve a boca fechada.

Vyalov olhou para Marga.

– Eu deveria ter batido em você com mais força.

Marga pegou a bolsa, abriu-a, pôs a mão lá dentro e assim ficou.

– Se chegar perto de mim mais um centímetro, eu juro que lhe dou um tiro na barriga, seu camponês russo com cara de porco.

Lev não pôde deixar de admirar a empáfia dela. Poucos tinham coragem de ameaçar Josef Vyalov.

A expressão de Vyalov ficou sombria de raiva, mas ele deu as costas para Marga e falou com Lev.

– Sabe o que vai ser de você?

Que diabo o aguardava desta vez?

Lev ficou calado.

– Você vai entrar para a droga do Exército – disse Vyalov.

Lev gelou.

– O senhor está brincando.

– Qual foi a última vez que você me ouviu falar alguma coisa de brincadeira?

– Eu não vou entrar para o Exército. Como o senhor pretende me obrigar?

– Ou você se alista como voluntário, ou então vai ser convocado.

– Não pode fazer isso! – exclamou Marga.

– Pode, sim – disse Lev, arrasado. – Ele consegue armar qualquer coisa nesta cidade.

– E quer saber de uma coisa? – disse Vyalov. – Você pode até ser meu genro, mas, por Deus, espero que morra na guerra.

Em uma tarde no final de junho, Chuck e Doris Dixon deram uma festa em seu jardim. Gus foi com os pais. Todos os homens estavam de terno, mas as mulheres usavam trajes de verão e chapéus extravagantes, de modo que os convidados formavam um grupo colorido. Havia sanduíches e cerveja, limonada e bolo. Um palhaço distribuía guloseimas e um professor primário de bermuda organizava brincadeiras com as crianças: corrida do saco, do ovo na colher, de três pernas.

Doris quis conversar de novo com Gus sobre a guerra.

– Há boatos sobre um motim no Exército francês – disse ela.

Gus sabia que a verdade era mais grave do que os boatos: 54 divisões francesas haviam se amotinado e 20 mil homens, desertado.

– Imagino que seja por isso que eles mudaram sua tática de ofensiva para defensiva – respondeu, mantendo-se neutro.

– Parece que os oficiais franceses tratam mal seus soldados. – Doris adorava as más notícias sobre a guerra, pois elas corroboravam sua oposição. – E a ofensiva Nivelle tem sido um desastre.

– A chegada das tropas americanas vai levantar o moral deles. – Os primeiros norte-americanos haviam embarcado em navios a caminho da França.

– Mas até agora nós mandamos apenas um contingente simbólico. Espero que isso queira dizer que só vamos desempenhar um papel pequeno no conflito.

– Não, não é isso. Precisamos recrutar, treinar e armar pelo menos um milhão de homens. Não podemos fazer isso de uma hora para outra. Mas no ano que vem mandaremos centenas de milhares de soldados.

Doris olhou por cima do ombro de Gus e falou:

– Deus me livre, lá vem um dos nossos novos recrutas.

Virando-se para trás, Gus viu a família Vyalov: Josef e Lena acompanhados de Olga, Lev e uma menininha. Lev usava uma farda. Estava muito elegante, porém trazia uma expressão emburrada no belo rosto.

Gus ficou constrangido, mas seu pai, encarnando a persona de senador, apertou a mão de Josef cordialmente e disse algo que o fez rir. Sua mãe se dirigiu a Lena com simpatia e cobriu o bebê de mimos. Gus percebeu que seus pais haviam previsto aquele encontro e decidido agir como se tivessem esquecido que o filho e Olga já haviam sido noivos.

Ele cruzou olhares com Olga e meneou a cabeça com educação. Ela corou.

Lev demonstrou a impertinência de sempre.

– Então, Gus, o presidente está contente com você por ter solucionado a greve?

Os outros ouviram a pergunta e se calaram, aguardando a resposta.

– Ele está contente com você por ter sido sensato – respondeu diplomaticamente. – Estou vendo que entrou para o Exército.

– Fui voluntário – disse Lev. – Estou treinando para ser oficial.

– E o que está achando?

De repente, Gus se deu conta de que ele e Lev estavam cercados por uma plateia: os Vyalov, os Dewar e os Dixon. Os dois homens não tinham sido vistos juntos em público desde a anulação do noivado. Todos estavam curiosos.

– Vou me acostumar com o Exército – respondeu Lev. – E você?

– Eu?

– Vai ser voluntário? Afinal de contas, você e seu presidente nos puseram na guerra.

Gus não respondeu nada, mas sentiu vergonha. Lev tinha razão.

– Quer dizer, você também pode esperar para ver se vai ser ou não convocado – disse Lev, pondo sal na ferida. – Nunca se sabe, talvez tenha sorte. De qualquer forma, se voltar para Washington, imagino que o presidente possa lhe conseguir uma dispensa. – Ele riu.

Gus sacudiu a cabeça.

– Não – falou ele. – Andei pensando no assunto. Você tem razão, eu faço parte do governo que instituiu o alistamento. Não posso me eximir.

Viu o pai assentir com a cabeça, como se já estivesse esperando por isso, porém sua mãe disse:

– Mas, Gus, você trabalha para o presidente! Existe maneira melhor de ajudar no esforço de guerra?

– Acho que daria impressão de covardia – disse Lev.

– Exatamente – falou Gus. – Portanto, não vou voltar para Washington. Por ora, essa parte da minha vida terminou.

Ele ouviu a mãe exclamar:

– Não, Gus!

– Já falei com o general Clarence, da Divisão de Buffalo – disse ele. – Vou entrar para o Exército Nacional.

Sua mãe começou a chorar.

 

Meados de junho de 1917

Ethel nunca havia pensado nos direitos da mulher antes de se ver na biblioteca de Tŷ Gwyn, solteira e grávida, ouvindo Solman, aquele advogado repugnante, lhe explicar como a vida funcionava. Iria passar seus melhores anos se esfalfando para alimentar e cuidar do filho de Fitz, enquanto o pai não tinha a menor obrigação de ajudar no que quer que fosse. A injustiça disso lhe dera vontade de matar Solman.

Sua raiva tinha aumentado ainda mais enquanto procurava trabalho em Londres. Os únicos empregos que conseguia eram aqueles que os homens não queriam e, mesmo assim, por metade do salário que eles ganhavam, ou menos.

No entanto, fora durante os anos de convivência com as mulheres valentes, trabalhadoras e miseráveis do East End londrino que seu feminismo inflamado havia se tornado duro feito concreto. Os homens gostavam de inventar um conto de fadas no qual havia uma divisão de trabalho na família: enquanto o homem saía para ganhar dinheiro, a mulher cuidava da casa e das crianças. A realidade não era bem assim. A maioria das mulheres que Ethel conhecia trabalhava 12 horas por dia, além de cuidar da casa e das crianças. Malnutridas, sobrecarregadas, morando em barracos e vestindo trapos, elas ainda assim entoavam canções, riam e amavam seus filhos. Para Ethel, uma única mulher dessas tinha mais direito de votar do que 10 homens juntos.

Ela vinha defendendo isso há tanto tempo que teve uma sensação muito estranha quando o voto feminino se tornou uma possibilidade concreta, em meados de 1917. Quando pequena, costumava perguntar “Como vai ser lá no céu?”, mas ninguém nunca lhe dera uma resposta plausível.

O Parlamento concordou em debater o assunto em junho.

– Isso é resultado do meio-termo em relação a duas questões – disse ela a Bernie com entusiasmo ao ler a reportagem no Times. – A comissão parlamentar, que Asquith convocou para se esquivar do problema, estava desesperada para evitar uma briga.

Bernie estava dando o café da manhã a Lloyd: torrada mergulhada em chá doce.

– Imagino que o governo esteja com medo de que as mulheres voltem a se acorrentar aos trilhos – disse ele.

Ethel assentiu.

– E, se os políticos se meterem nesse tipo de polêmica, as pessoas começarão a dizer que não estão concentrados em vencer a guerra. Então a comissão recomendou que o direito de voto fosse concedido apenas a mulheres com mais de 30 anos que tenham casa própria ou paguem um aluguel acima de cinco libras por ano, ou então que sejam casadas com um homem nessas condições. O que significa que sou nova demais.

– Essa foi a primeira questão – disse Bernie. – E a outra?

– Segundo Maud, o gabinete ficou dividido. – O Gabinete de Guerra era formado por quatro homens e pelo primeiro-ministro, Lloyd George. – Curzon, é claro, está contra nós. – O conde Curzon, líder da Câmara dos Lordes, tinha orgulho de sua misoginia. Ele presidia a Liga de Oposição ao Voto Feminino. – Milner também. Mas temos o apoio de Henderson. – Arthur Henderson era o líder do Partido Trabalhista, cujos parlamentares apoiavam as mulheres, embora não se pudesse dizer o mesmo de muitos membros do partido. – Bonar Law está do nosso lado, mas sem muito entusiasmo.

– Dois a favor, dois contra, e Lloyd George, como sempre, querendo agradar todo mundo.

– A segunda é que o voto será livre. – Isso significava que o governo não obrigaria seus partidários a votarem contra ou a favor.

– Então, aconteça o que acontecer, não será culpa do governo.

– Ninguém nunca disse que Lloyd George era ingênuo – falou Ethel.

– Mas ele deu uma chance a vocês.

– E não passa de uma chance mesmo. Temos muita campanha a fazer.

– Acho que você vai notar uma mudança de postura – disse Bernie, otimista. – O governo está desesperado para que as mulheres entrem na indústria e substituam todos os homens mandados para a França, então tem feito muita propaganda sobre como elas são ótimas motoristas de ônibus e operárias de fábricas de munição. Isso torna mais difícil dizer que as mulheres são inferiores.

– Espero que você tenha razão – disse Ethel com fervor.

Fazia quatro meses que eles estavam casados, e Ethel não havia se arrependido. Bernie era inteligente, interessante e gentil. Os dois acreditavam nas mesmas coisas e trabalhavam juntos para conquistá-las. Bernie provavelmente seria o candidato trabalhista de Aldgate nas próximas eleições gerais, seja lá quando elas fossem realizadas – como tantas outras coisas, o pleito teria que aguardar o fim da guerra. Bernie daria um bom parlamentar, trabalhador e sagaz como era. Porém Ethel não sabia se os trabalhistas conseguiriam ganhar em Aldgate. O parlamentar que os representava no momento era um liberal, mas muitas coisas haviam mudado desde a última eleição, em 1910. Mesmo que a cláusula sobre o sufrágio feminino não fosse aprovada, as outras propostas da comissão parlamentar dariam o direito de voto a muitos outros membros da classe trabalhadora.

Bernie era um bom homem, mas Ethel, para sua vergonha, às vezes ainda se lembrava, com nostalgia, de Fitz – que não era inteligente, nem interessante, nem gentil e cujas crenças eram opostas às suas. Quando pensava nessas coisas, sentia-se rebaixada ao mesmo nível de homens que eram obcecados por dançarinas de cancã. Enquanto esses indivíduos se excitavam com meias, anáguas e calcinhas de babado, Ethel ficava fascinada com as mãos macias, o sotaque carregado e o cheiro limpo e levemente perfumado de Fitz.

Mas ela agora era Eth Leckwith. Todo mundo falava em Eth e Bernie como se os dois fossem feitos um para o outro.

Ela calçou os sapatos em Lloyd e o levou até a casa da babá, indo a pé em seguida até a redação do The Soldier’s Wife. O tempo estava bom e ela se sentia esperançosa. Nós podemos mudar o mundo, pensou. Não é fácil, mas é possível. O jornal de Maud iria angariar apoio para o projeto de lei entre as mulheres da classe trabalhadora e garantir que todo mundo ficasse de olho nos parlamentares durante a votação.

Maud já se encontrava na redação pouco espaçosa, tendo chegado cedo, sem dúvida por causa das notícias. Estava sentada diante de uma velha mesa manchada, usando um vestido de verão lilás e um chapéu que parecia um casquete, com uma pena exageradamente comprida espetada no topo. A maioria de suas roupas datava de antes da guerra, mas, mesmo assim, ela se vestia com elegância. Parecia refinada demais para aquele lugar, como um cavalo de corrida em um curral.

– Precisamos publicar uma edição extra – falou, rabiscando em um bloquinho. – Estou escrevendo a primeira página.

Ethel sentiu uma onda de entusiasmo. Era disso que gostava: de ação. Sentou-se à mesa, de frente para ela, e disse:

– Vou garantir que as outras páginas fiquem prontas. Que tal uma coluna sobre como os leitores podem ajudar?

– Boa ideia. Venham à nossa assembleia, convençam o parlamentar em que votaram, escrevam uma carta para um jornal, esse tipo de coisa.

– Vou fazer um rascunho. – Ela pegou um lápis e tirou um bloco de uma gaveta.

– Temos que mobilizar as mulheres contra esse projeto de lei – disse Maud.

Ethel ficou petrificada com o lápis na mão.

– O quê? – perguntou ela. – Você disse contra?

– É claro. O governo vai fingir dar o voto às mulheres, mas continuará privando a maioria de nós desse direito.

Ethel olhou para o outro lado da mesa e viu a manchete que Maud havia escrito: VOTEM CONTRA ESTA TRAPAÇA!

– Espere um pouco. – Ela não considerava aquilo uma trapaça. – Isso pode não ser tudo o que queremos, mas é melhor do que nada.

Maud a encarou com raiva.

– É pior do que nada. Esse projeto de lei só finge tornar as mulheres iguais.

Maud estava sendo teórica demais. É claro que, em princípio, era errado discriminar as mulheres mais jovens. Porém isso não tinha importância no momento. Era uma questão de pragmatismo político.

– Veja bem, às vezes as reformas precisam acontecer aos poucos – disse Ethel. – O voto foi estendido aos homens de forma bastante gradual. Até hoje, só cerca de metade deles pode votar...

Maud a interrompeu com autoritarismo:

– Você já pensou em quem são as mulheres excluídas?

Esse era um dos defeitos de Maud: ela às vezes parecia arrogante. Ethel tentou não se ofender. Mantendo a calma, respondeu:

– Bom, eu sou uma delas.

Maud não abrandou o tom:

– A maioria das operárias das fábricas de munição, que são parte fundamental do esforço de guerra, seria jovem demais para votar. O mesmo vale para grande parte das enfermeiras que arriscaram a vida para cuidar de soldados feridos na França. Se morarem em quartos de pensão, as viúvas de guerra não poderão votar, apesar de todo o seu sacrifício. Será que você não enxerga que o objetivo desse projeto de lei é transformar as mulheres em minoria?

– Então você quer fazer campanha contra o projeto?

– Mas é claro!

– Isso é loucura. – Ethel estava surpresa e angustiada por estar discordando tão violentamente de alguém que era sua amiga e companheira de luta há tanto tempo. – Desculpe, mas não entendo como podemos pedir aos parlamentares que votem contra uma coisa que estamos exigindo há décadas.

– Não é isso que estamos fazendo! – A raiva de Maud aumentou. – Nossa campanha é pela igualdade, e isso não é igualdade. Se cairmos nessa armadilha, vamos passar mais uma geração à margem da vida política!

– Não se trata de cair em uma armadilha – disse Ethel, irritada. – Eu não estou sendo enganada. Entendo o que quer dizer... e você nem está sendo muito sutil. Mas seu juízo está errado.

– Ah, é mesmo? – indagou Maud com dureza. De repente, Ethel viu quanto ela se parecia com Fitz: ambos defendiam pontos de vista opostos com o mesmo tipo de obstinação.

– Pense só na propaganda que a oposição vai fazer! – disse Ethel. – “Nós sempre avisamos que as mulheres não sabem o que querem”, dirão eles. “É por isso que elas não podem votar.” Vamos ser motivo de chacota mais uma vez.

– Nossa propaganda precisa ser melhor que a deles – falou Maud com desenvoltura. – Só temos que explicar a situação para todos com muita clareza.

Ethel sacudiu a cabeça.

– Você está enganada. Esse tipo de coisa mexe demais com a emoção das pessoas. Há anos combatemos a legislação que impede as mulheres de votar. Essa é a barreira. Quando ela cair, outras concessões passarão a ser vistas como meros detalhes técnicos. Vai ser relativamente fácil diminuir a idade de voto e atenuar outras restrições. Você precisa entender isso.

– Não, não entendo – respondeu Maud friamente. Não gostava que lhe dissessem que ela precisava entender alguma coisa. – Esse projeto de lei é um passo para trás. Qualquer um que o defenda é um traidor.

Ethel ficou encarando Maud. Estava magoada.

– Você não pode acreditar numa coisa dessas! – falou.

– Por favor, não venha me dizer no que posso ou não acreditar.

– Há dois anos que estamos trabalhando e militando nisso juntas – falou Ethel, com os olhos cheios de lágrimas. – Você acha mesmo que, se eu discordo de você, é porque sou desleal à causa do sufrágio feminino?

Maud foi implacável:

– Com toda a certeza.

– Então está bem – disse Ethel e, sem saber o que mais poderia fazer, saiu da redação.

Fitz encomendou seis ternos novos a seu alfaiate. Todos os antigos estavam folgados em seu corpo magro, o que lhe dava um aspecto envelhecido. Ele vestiu suas roupas de gala novas: fraque preto, colete branco e colarinho de bico com gravata borboleta branca. Olhou-se no espelho de pé do quarto de vestir e pensou: agora sim.

Desceu para a sala de estar. Dentro de casa, conseguia andar sem bengala. Maud lhe serviu uma taça de vinho Madeira.

– Como está se sentindo? – perguntou tia Herm.

– Os médicos dizem que a perna está melhorando, mas é um processo lento. – Fitz tinha voltado às trincheiras no começo do ano, mas o frio e a umidade haviam se mostrado insuportáveis, de modo que estava de volta à lista de convalescentes e trabalhando no serviço de inteligência.

– Sei que você preferiria estar lá – disse Maud –, mas não estamos tristes por ter escapado dos combates da primavera.

Fitz aquiesceu. A ofensiva Nivelle tinha sido um fracasso, que causara a demissão do general francês Nivelle. Os soldados franceses estavam se amotinando: defendiam suas trincheiras, mas se negavam a cumprir as ordens de avançar. Até ali, aquele havia sido mais um ano ruim para os Aliados.

Maud, no entanto, estava errada ao pensar que Fitz preferiria estar no front. O trabalho que ele estava fazendo na Sala 40 talvez fosse mais importante ainda do que os combates na França. Muitos haviam temido que os submarinos alemães fossem estrangular as linhas de abastecimento britânicas. Contudo, a Sala 40 conseguia localizar os submarinos e alertar os navios. Essa informação, aliada à tática de despachar os navios em comboios escoltados por destróieres, tornava os submarinos bem menos eficazes. Embora poucos soubessem a respeito dessa estratégia, ela era um sucesso.

O perigo agora era a Rússia. Com o czar deposto, qualquer coisa poderia acontecer. Até o momento, os moderados haviam se mantido no controle, mas será que isso iria durar? Não eram apenas a família de Bea e a herança de Boy que corriam perigo. Se os extremistas assumissem o governo russo, poderiam selar a paz, o que liberaria centenas de milhares de soldados alemães para combater na França.

– Pelo menos não perdemos a Rússia – disse Fitz.

– Ainda – retrucou Maud. – Todo mundo sabe que os alemães estão torcendo por um triunfo bolchevique.

Enquanto ela falava, a princesa Bea entrou na sala, usando um vestido decotado de seda prateada e um conjunto de joias de diamantes. Fitz e Bea iriam a um jantar seguido de um baile: estavam em plena temporada londrina. Bea ouviu o comentário de Maud e disse:

– Não subestimem a família real russa. Ainda pode haver uma contrarrevolução. Afinal de contas, o que o povo russo ganhou? Os operários seguem passando fome e os soldados continuam a morrer, enquanto os alemães não param de avançar.

Grout entrou trazendo uma garrafa de champanhe. Abriu-a sem fazer barulho e serviu uma taça para Bea. Como sempre, ela tomou um só gole e pousou a taça.

– O príncipe Lvov anunciou que as mulheres poderão votar na eleição da Assembleia Constituinte – falou Maud.

– Isso se a eleição acontecer – disse Fitz. – O governo provisório está fa­zendo vários pronunciamentos, mas será que alguém lhe dá ouvidos? Até onde consigo entender, cada vilarejo nomeou seu próprio soviete e está se autogerindo.

– Imaginem só! – exclamou Bea. – Aqueles camponeses supersticiosos, analfabetos, fingindo governar alguma coisa!

– É um perigo – disse Fitz com irritação. – As pessoas não fazem ideia da facilidade com que eles podem descambar para a anarquia e a barbárie. – Esse assunto o tirava do sério.

– Que ironia vai ser se a Rússia se tornar mais democrática do que a Grã-Bretanha – falou Maud.

– O Parlamento está prestes a debater o voto feminino – disse Fitz.

– Somente para mulheres com mais de 30 anos que tenham casa própria ou alugada, ou que sejam casadas com um homem nessas condições.

– Mesmo assim, você deve estar contente com o progresso que conseguiu. Li um artigo a respeito em uma revista, assinado pela sua camarada Ethel. – Ao abrir a New Statesman na sala de estar de seu clube, Fitz levara um susto ao se deparar com as palavras de sua ex-governanta. Ficou incomodado ao pensar que talvez não conseguisse escrever um artigo tão claro e articulado. – Ela diz que as mulheres deveriam aceitar isso sob o argumento de que é melhor um pássaro na mão do que dois voando.

– Infelizmente eu discordo – disse Maud, gélida. – Não vou esperar até os 30 anos para ser considerada um membro da raça humana.

– Vocês duas brigaram?

– Nós concordamos em nos separar.

Fitz notou que Maud estava furiosa. Para acalmar os ânimos, virou-se para lady Hermia:

– Se o Parlamento britânico conceder o direito de voto às mulheres, tia, em quem a senhora vai votar?

– Não tenho certeza se vou às urnas – respondeu tia Herm. – Não é uma coisa um pouco vulgar?

Maud pareceu contrariada, mas Fitz sorriu.

– Se as senhoras de boa família pensarem assim, as únicas a votar serão as mulheres da classe trabalhadora, que vão eleger os socialistas – disse ele.

– Oh, céus! – falou Herm. – Então talvez seja melhor eu votar.

– A senhora apoiaria Lloyd George?

– Um advogado galês? Nem pensar.

– Ou, quem sabe, Bonar Law, o líder conservador.

– Imagino que sim.

– Mas ele é canadense.

– Deus me livre!

– É esse o problema de se ter um império. A ralé do mundo inteiro acha que faz parte dele.

A babá entrou com Boy. Ele já estava com dois anos e meio e era um menino rechonchudo, com os mesmos cabelos louros e grossos da mãe. Correu até Bea, que o pôs sentado no colo.

– Eu comi mingau e a babá deixou cair o açúcar! – disse ele, soltando uma risada. Esse tinha sido o grande acontecimento do dia no quarto das crianças.

Estar com o filho trazia o melhor de Bea à tona, pensou Fitz. Sua expressão se suavizava e ela ficava afetuosa, afagando e beijando o menino. Dali a um minuto, este se contorceu para descer do colo dela e andou até Fitz com passos trôpegos.

– Como vai o meu soldadinho? – perguntou Fitz. – Vai crescer para atirar nos alemães?

– Pou! Pou! – disse Boy. E Fitz viu que o nariz do menino estava escorrendo.

– Jones, ele está resfriado? – perguntou com rispidez.

A babá fez cara de assustada. Era uma moça de Aberowen, mas tinha feito treinamento profissional.

– Não, meu amo, tenho certeza que não... estamos em junho!

– Existem resfriados de verão.

– Ele passou o dia todo muito bem. É só um pouco de ranho.

– Só pode ser. – Fitz tirou um lenço de linho do bolso interno do fraque e limpou o nariz de Boy. – Ele tem brincado com crianças do povo?

– Não, senhor, de forma alguma.

– E no parque?

– Nas partes que frequentamos, só há crianças de boa família. Fico muito atenta a isso.

– Espero que fique mesmo. Este menino é herdeiro do título dos Fitzherbert e pode vir a ser um príncipe russo também. – Fitz pôs Boy no chão e o menino voltou correndo em direção à babá.

Grout tornou a aparecer trazendo um envelope sobre uma bandeja de prata.

– Telegrama, meu amo – informou o mordomo. – Para a princesa.

Fitz indicou com um gesto que Grout deveria entregar a correspondência à sua mulher. Bea fechou o rosto, aflita – em tempos de guerra, telegramas eram motivo de nervosismo para todos. Com um rasgão, ela abriu a mensagem e, ao examinar a folha de papel, soltou um grito desesperado.

– O que houve? – perguntou Fitz, sobressaltado.

– Meu irmão!

– Ele está vivo?

– Sim... mas foi ferido. – Ela desatou a chorar. – Tiveram que amputar o braço dele, mas Andrei está se recuperando. Ah, meu pobre irmão!

Fitz pegou o telegrama e o leu. A única informação a mais era que o príncipe Andrei tinha sido levado para sua casa de campo em Bulovnir, na província de Tambov, a sudeste de Moscou. Esperava que Andrei estivesse de fato se restabelecendo. Muitos homens morriam de ferimentos infeccionados – e a amputação nem sempre impedia a gangrena de se alastrar.

– Querida, eu sinto muitíssimo – disse Fitz. Maud e Herm, cada uma de um lado de Bea, tentavam reconfortá-la. – Aqui diz que receberemos uma carta em seguida, mas só Deus sabe quanto tempo levará para chegar até aqui.

– Eu preciso saber como ele está! – disse Bea aos soluços.

– Vou pedir ao embaixador britânico para averiguar o fato com cautela. – Mesmo naquela época democrática, um conde ainda tinha seus privilégios.

– Venha, Bea, vamos subir até seu quarto – disse Maud.

Bea aquiesceu e se levantou.

– É melhor eu ir ao jantar de lorde Silverman... – disse Fitz. – Bonar Law vai estar presente. – Fitz tinha pretensões de ser ministro de um governo conservador um dia, então aproveitava qualquer oportunidade de conversar com o líder do partido. – Mas não vou ao baile e voltarei direto para casa.

Bea assentiu novamente e se deixou ser conduzida até o andar de cima.

Grout entrou e disse:

– O carro está pronto, meu amo.

Durante o curto trajeto até a Belgrave Square, Fitz ficou remoendo aquela notícia. O príncipe Andrei nunca tinha sido um bom administrador das terras da família. Provavelmente usaria sua deficiência como desculpa para cuidar ainda menos dos negócios. Seu patrimônio iria decair mais ainda. Mas o que Fitz poderia fazer ali, em Londres, a quase 2.500 quilômetros de distância? Sentia-se frustrado e aflito. A Rússia estava a um passo da anarquia – e era a displicência de nobres como Andrei que proporcionava aos revolucionários sua oportunidade.

Quando ele chegou à casa dos Silverman, Bonar Law já estava lá – assim como Perceval Jones, presidente da Celtic Minerals e representante de Aberowen no Parlamento. Jones era naturalmente presunçoso, mas, naquela noite, estava quase explodindo de orgulho por se encontrar em companhia tão distinta. Com as mãos nos bolsos, conversava com lorde Silverman deixando à mostra a imensa corrente de ouro de seu relógio atravessada no colete largo.

Fitz não deveria ter ficado tão surpreso. Aquele era um jantar político – e o prestígio de Jones no Partido Conservador estava aumentando. Sem dúvida, ele também esperava um cargo no governo quando e se Bonar Law se tornasse primeiro-ministro. Ainda assim, aquilo era um pouco como dar de cara com seu mordomo-chefe em um baile de gala – e Fitz teve a sensação inquietante de que o bolchevismo talvez estivesse chegando a Londres, não por meio da revolução, mas furtivamente.

À mesa, Jones chocou Fitz ao se dizer a favor do voto feminino.

– Meu Deus do céu, por quê? – quis saber o conde.

– Nós fizemos uma pesquisa com os presidentes e representantes dos distritos eleitorais – respondeu Jones, ao que Fitz viu Bonar Law aquiescer. – Para cada um contra o projeto de lei, há dois a favor.

– Conservadores? – perguntou Fitz, incrédulo.

– Sim, milorde.

– Mas por quê?

– A lei só dará o direito de voto às mulheres com mais de 30 anos que tenham algum imóvel ou vivam de aluguel, ou que sejam casadas com um homem que se enquadre nesse perfil. Isso exclui a maioria das operárias, pois elas costumam ser mais jovens. E todas aquelas intelectuais insuportáveis são solteironas que moram de favor na casa dos outros.

Fitz ficou pasmo. Sempre havia considerado o sufrágio feminino uma questão de princípios. Porém empresários cheios de si como Jones não davam a menor impor­tância para princípios. Fitz nunca havia pensado nas consequências eleitorais.

– Continuo sem entender...

– As novas eleitoras serão, em sua maioria, mulheres maduras, de classe média, mães de família. – Com um gesto vulgar, Jones cutucou um dos lados do nariz. – Lorde Fitzherbert, elas formam o grupo mais conservador do país. Essa lei vai dar ao nosso partido seis milhões de novos votos.

– Então o senhor vai defender o voto feminino?

– Nós temos que fazer isso! Precisamos dessas mulheres conservadoras. Na próxima eleição, teremos três milhões de novos eleitores homens da classe trabalhadora, muitos recém-saídos do Exército e quase todos contra nós. Mas as nossas mulheres serão mais numerosas.

– Mas e quanto aos nossos princípios, homem? – protestou Fitz, embora sentisse que aquela fosse uma batalha perdida.

– Princípios? – repetiu Jones. – Estamos falando de pragmatismo político. – Ele deu um sorriso condescendente que enfureceu Fitz. – Mas o senhor sempre foi um idealista, milorde, se me permite o comentário.

– Somos todos idealistas – falou lorde Silverman, botando panos quentes no conflito como um bom anfitrião. – É por isso que estamos na política. Pessoas sem ideais não se preocupam com essas coisas. Mas não podemos nos esquivar da realidade das eleições e da opinião pública.

Fitz não queria ser taxado de sonhador, como se não tivesse senso prático, então se apressou a dizer:

– É claro que não. Mesmo assim, a questão do lugar da mulher na sociedade afeta o próprio conceito de vida familiar, algo que eu imaginava ser importante para os conservadores.

– A questão continua em aberto – disse Bonar Law. – Os parlamentares terão voto livre e agirão de acordo com suas respectivas consciências.

Fitz assentiu com submissão e Silverman passou a falar sobre o motim no Exército francês.

Durante o resto do jantar, o conde permaneceu calado. Achava preocupante que aquele projeto de lei tivesse o apoio tanto de Ethel Leckwith quanto de Perceval Jones. Havia um grande risco de ele ser aprovado. Fitz achava que os conservadores deveriam defender valores tradicionais, sem se deixarem influenciar por questões eleitoreiras de curto prazo. No entanto, embora tivesse percebido claramente que Bonar Law não pensava assim, não teve coragem de dizer que discordava dele. Estava com vergonha de si mesmo por não ter sido totalmente honesto, uma sensação que detestava.

Foi embora da casa de lorde Silverman logo depois de Bonar Law. Voltou para casa e foi direto para o andar de cima. Despiu o fraque, vestiu um roupão de seda e seguiu para o quarto de Bea.

Encontrou a mulher sentada na cama, tomando uma xícara de chá. Pôde ver que Bea havia chorado, mas ela passara um pouco de pó de arroz no rosto e vestira uma camisola florida e um casaquinho de tricô cor-de-rosa com mangas bufantes. Perguntou a ela como estava se sentindo.

– Estou arrasada – respondeu Bea. – Andrei é o único parente que me resta.

– Eu sei. – Os pais dela eram falecidos e a princesa não tinha nenhum outro parente próximo. – É preocupante... mas ele provavelmente vai ficar bem.

Ela pousou a xícara e o pires.

– Andei pensando bastante, Fitz.

Vindo de Bea, esse não era um comentário usual.

– Por favor, me dê sua mão – disse ela.

Ele tomou a mão esquerda de Bea nas suas. Ela estava bonita e, apesar do assunto triste, Fitz teve um frêmito de desejo. Pôde sentir os anéis que ela usava: uma aliança de noivado de brilhante e uma aliança de casamento de ouro. Teve um impulso de levar a mão da mulher à boca e morder a parte carnuda na base de seu polegar.

– Quero que você me leve à Rússia – falou Bea.

Ele ficou tão espantado que largou sua mão.

– O quê?

– Não recuse ainda... pense um pouco – pediu ela. – Você vai dizer que é perigoso, e eu sei que é. Mesmo assim, há centenas de britânicos na Rússia neste exato momento: diplomatas, empresários, oficiais do Exército e soldados em nossas missões militares no país, jornalistas e outros.

– E Boy?

– Detesto me separar do nosso filho, mas Jones é ótima babá, Hermia o adora e não tenho dúvidas de que Maud agirá com sensatez caso aconteça algo de ruim.

– Nós precisaríamos de vistos...

– Você poderia acionar seus contatos. Ora, você acabou de jantar com pelo menos um membro do gabinete.

Ela estava certa.

– O Ministério das Relações Exteriores provavelmente me pediria para escrever um relatório sobre a viagem... ainda mais se visitarmos a zona rural, onde nossos diplomatas quase nunca se aventuram.

Ela tornou a segurar a mão do marido.

– Meu único parente vivo está gravemente ferido, talvez à beira da morte. Preciso vê-lo. Por favor, Fitz. Eu lhe imploro.

A verdade era que Fitz não estava tão relutante quanto ela supunha. A experiência nas trincheiras havia modificado sua percepção do perigo. Afinal de contas, a maioria das pessoas sobrevivia a uma barragem de artilharia. Uma viagem à Rússia, embora arriscada, não era nada comparada a isso. Ainda assim, ele hesitava.

– Entendo seu desejo – disse ele. – Deixe eu me informar melhor.

Ela tomou isso como um sim.

– Ah, obrigada! – falou.

– Não me agradeça ainda. Deixe-me descobrir se é possível.

– Está bem – respondeu Bea, mas ele pôde ver que a mulher já estava prevendo o resultado.

Ele se levantou e falou enquanto se dirigia à porta:

– Preciso me preparar para dormir.

– Depois que vestir seu pijama... volte, por favor. Quero que você me abrace.

Fitz sorriu.

– Claro – respondeu.

No dia em que o Parlamento iria deliberar sobre o voto feminino, Ethel organizou uma assembleia em um salão nas proximidades do Palácio de Westminster.

Ela agora era funcionária do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria Têxtil, que ficara mais do que satisfeito em fisgar uma ativista tão famosa. Sua principal tarefa era recrutar membros do sexo feminino nas fábricas exploradoras do East End, porém o sindicato acreditava em lutar por seus membros não apenas no local de trabalho, mas também na arena da política nacional.

O fim de sua relação com Maud a deixava triste. Talvez sempre tivesse havido algo um tanto artificial na amizade entre a irmã de um conde e sua ex-governanta, mas Ethel tinha nutrido esperanças de que elas pudessem superar a diferença de classes. No entanto, no fundo de seu coração, Maud acreditava – sem nem mesmo ter consciência disso – que havia nascido para mandar e Ethel para obedecer.

Ethel esperava que a votação no Parlamento ocorresse antes do final da assembleia, para ela poder anunciar o resultado, porém o debate se alongou e a reunião precisava terminar às dez. Ethel e Bernie foram aguardar a notícia em um pub na Avenida Whitehall frequentado por parlamentares trabalhistas.

Já passava das onze e o pub estava fechando quando dois parlamentares entraram apressados. Um deles viu Ethel.

– Nós ganhamos! – gritou ele. – Quer dizer, vocês ganharam. As mulheres.

Ela mal conseguiu acreditar.

– Eles aprovaram a cláusula?

– Por ampla maioria... 387 votos contra 57!

– Nós ganhamos! – Ethel beijou Bernie. – Ganhamos!

– Meus parabéns – disse ele. – Saboreie a vitória. Você merece.

Eles não puderam comemorar com um drinque. Os novos regulamentos em vigor durante a guerra obrigavam os pubs a parar de servir bebidas em um horário determinado. Teoricamente, isso contribuía para aumentar a produtividade da classe trabalhadora. Ethel e Bernie saíram para pegar um ônibus até em casa.

Enquanto aguardavam no ponto, Ethel estava eufórica.

– Nem acredito. Depois de tantos anos, as mulheres podem votar!

Um passante a ouviu: um homem alto, vestido com trajes de gala, que andava com o auxílio de uma bengala.

Ela reconheceu Fitz.

– Não tenha tanta certeza disso – disse ele. – Nós vamos derrotar vocês na Câmara dos Lordes.

 

De junho a setembro de 1917

Walter von Ulrich saiu da trincheira e, arriscando a própria vida, começou a atravessar a terra de ninguém.

Grama nova e flores silvestres brotavam das crateras das bombas. Era um fim de tarde ameno de verão em uma região que já pertencera à Polônia, depois à Rússia e agora estava parcialmente ocupada pelas tropas alemãs. Walter vestia um casaco sem insígnias por cima de um uniforme de cabo. Para melhorar o disfarce, havia sujado o rosto e as mãos. Usava uma boina branca, como uma bandeira de paz, e carregava nos ombros uma caixa de papelão.

Disse a si mesmo que não havia motivo para medo.

Era possível ver, com alguma dificuldade, as posições russas à luz do crepúsculo. Fazia muitas semanas que não havia troca de tiros, e Walter achava que sua aproximação fosse despertar mais curiosidade do que desconfiança.

Se estivesse errado, era um homem morto.

Os russos estavam preparando uma ofensiva. Aviões de reconhecimento e batedores alemães haviam identificado novas tropas sendo conduzidas para as linhas de frente e carregamentos de munição sendo recebidos. Isso tinha sido confirmado por soldados russos famintos que haviam cruzado a fronteira e se rendido na esperança de conseguir uma refeição de seus captores alemães.

Os indícios da ofensiva iminente tinham sido uma grande decepção para Walter. Ele vinha torcendo para que o novo governo russo fosse incapaz de se manter na guerra. Em Petrogrado, Lênin e os bolcheviques bradavam pela paz, publicando uma enxurrada de jornais e panfletos – pagos com dinheiro alemão.

O povo russo não queria a guerra. O pronunciamento feito por Pavel Miliukov – o moderado de monóculo que era ministro das Relações Exteriores –, no qual dizia que a Rússia ainda buscava uma “vitória decisiva”, havia levado trabalhadores e soldados enfurecidos às ruas outra vez. O jovem e teatral ministro da Guerra, Kerenski, responsável pela nova ofensiva que estava por vir, havia reinstituído a punição por açoitamento no Exército e devolvido a autoridade aos oficiais. Mas será que os soldados russos iriam lutar? Era isso que os alemães precisavam saber – e Walter estava arriscando a vida para descobrir.

Os sinais eram conflitantes. Em algumas partes do front, soldados russos haviam hasteado bandeiras brancas e declarado uma trégua unilateral. Outros setores pareciam tranquilos e disciplinados. Foi um desses que Walter decidiu visitar.

Ele finalmente havia saído de Berlim. Era bem provável que Monika von der Helbard tivesse dito aos pais, sem rodeios, que não haveria casamento nenhum. De toda forma, Walter estava outra vez na frente de batalha, reunindo informações de inteligência.

Passou a caixa que carregava para o outro ombro. Já podia ver meia dúzia de cabeças despontando do parapeito de uma das trincheiras. Todas usavam boinas – os soldados russos não tinham capacetes. Os homens ficaram olhando para ele, mas ainda sem apontarem as armas.

Walter era fatalista em relação à morte. Achava que poderia morrer feliz depois da noite maravilhosa passada com Maud em Estocolmo. Mas é óbvio que preferia continuar vivo. Queria dividir um lar com Maud e ter filhos. E esperava fazê-lo em uma Alemanha próspera e democrática. Isso, no entanto, significava vencer a guerra, o que por sua vez implicava arriscar a própria vida, de modo que ele não tinha escolha.

Ainda assim, sentiu um frio na barriga ao entrar na linha de tiro dos fuzis. Não custava nada para um soldado apontar a arma e puxar o gatilho... Afinal de contas, era para isso que estavam ali.

Walter estava sem fuzil, e esperava que os soldados houvessem percebido. Tinha uma Luger 9mm presa ao cinto nas costas, mas eles não podiam vê-la. Enxergavam apenas a caixa que ele carregava. Torceu para que parecesse inofensiva.

A cada passo que dava sem morrer, sentia-se grato porém consciente de que, um a um, eles o levavam mais para perto do perigo. Agora posso morrer a qualquer segundo, filosofou. Perguntou-se se um homem chegava a escutar o tiro que o matava. O que Walter mais temia era ser ferido e sangrar lentamente até a morte, ou então sucumbir a uma infecção qualquer em um hospital de campanha imundo.

Já podia ver o rosto dos russos e notou que eles pareciam achar graça daquilo, além de estarem surpresos e admirados. Procurou, aflito, por sinais de medo: era esse o maior perigo. Um soldado assustado era capaz de atirar só para romper a tensão.

Por fim, restavam apenas dez metros a percorrer, depois nove, depois oito... Então ele chegou à beira da trincheira.

– Olá, camaradas – falou em russo, pousando a caixa no chão.

Estendeu a mão para o soldado mais próximo. Automaticamente, o homem fez o mesmo e o ajudou a pular para dentro da trincheira. Um pequeno grupo se reuniu à sua volta.

– Vim fazer uma pergunta a vocês – disse ele.

A maioria dos russos instruídos falava um pouco de alemão, porém os soldados eram camponeses, e poucos compreendiam qualquer idioma além do seu. Quando criança, Walter aprendera russo como parte da preparação, imposta com rigidez pelo pai, para uma carreira no Exército e no Ministério das Relações Exteriores. Nunca havia praticado muito a língua, mas achava que seria capaz de recordar o suficiente para aquela missão.

– Primeiro, uma bebida – falou. – Trouxe a caixa para dentro da trincheira, rasgou a tampa e retirou uma garrafa de schnapps. Sacou a rolha, deu um gole, enxugou a boca e passou a garrafa para o soldado mais próximo, um cabo alto de 18 ou 19 anos. O homem sorriu, bebeu e passou a garrafa adiante.

Walter examinou discretamente seus arredores. A trincheira era mal construída. As paredes, inclinadas, não estavam sustentadas por vigas de madeira. O chão irregular não era coberto por tábuas, de modo que, mesmo sendo verão, estava enlameado. A trincheira nem mesmo seguia uma linha reta – embora isso provavelmente fosse bom, uma vez que não havia recessos para reduzir o impacto de um ataque de artilharia. Um cheiro asqueroso pairava no ar: obviamente, os homens nem sempre se davam ao trabalho de ir até a latrina. Qual era o problema com aqueles russos? Tudo o que faziam era descuidado, caótico e mal-acabado.

Enquanto a garrafa circulava, um sargento apareceu.

– O que está acontecendo aqui, Feodor Igorovich? – perguntou, dirigindo-se ao cabo alto. – Por que vocês estão conversando com a porra de um alemão?

Feodor era jovem, mas um bigode farto e recurvado lhe cobria as faces. Por algum motivo, usava uma boina de marinheiro de viés sobre a cabeça. Parecia tão seguro de si que beirava a arrogância:

– Tome um trago, sargento Gavrik.

O sargento bebeu no gargalo como os outros, mas não se mostrou tão descontraído quanto seus homens. Lançou um olhar desconfiado para Walter.

– Que merda é essa? O que você está fazendo aqui?

Walter havia ensaiado o que dizer.

– Em nome dos trabalhadores, soldados e camponeses alemães, vim perguntar por que vocês estão nos combatendo.

Após alguns instantes de silêncio perplexo, Feodor respondeu:

– Por que vocês estão nos combatendo?

Walter já tinha sua resposta pronta:

– Não temos escolha. Nosso país ainda é governado pelo Kaiser. Ainda não fizemos nossa revolução. Mas vocês já. O czar foi deposto e a Rússia agora é governada pelo povo. Então eu vim perguntar ao povo: por que vocês estão nos combatendo?

Feodor olhou para Gavrik e disse:

– É exatamente o que nós vivemos nos perguntando!

Gavrik deu de ombros. Walter supôs que ele fosse um tradicionalista que estivesse escondendo as próprias opiniões.

Vários outros soldados avançaram pela trincheira para se juntar ao grupo. Walter abriu mais uma garrafa. Correu os olhos pela roda de homens magros, maltrapilhos e sujos que se embriagavam rapidamente.

– O que os russos querem?

Vários homens responderam.

– Terra.

– Paz.

– Liberdade.

– Mais bebida!

Walter tirou uma terceira garrafa da caixa. Aqueles homens precisavam mesmo era de sabonete, boa comida e botas novas, pensou.

– Quero voltar para meu vilarejo – disse Feodor. – Eles estão dividindo as terras do príncipe e preciso garantir que minha família receba a sua parte.

– Vocês apoiam algum partido político? – perguntou Walter.

– Os bolcheviques! – respondeu um soldado. Os outros vibraram, concordando.

Walter ficou satisfeito.

– E são membros do partido?

Todos fizeram que não com a cabeça.

– Eu apoiava os socialistas revolucionários – disse Feodor –, mas eles nos decepcionaram. – Os demais assentiram. – Kerenski trouxe de volta os açoitamentos – acrescentou ele.

– E ordenou uma ofensiva de verão – disse Walter. Podia ver, bem na sua frente, uma pilha de caixas de munição, mas não as mencionou, com medo de lembrar aos russos da possibilidade evidente de ser um espião. – Os nossos aviões viram – acrescentou.

– Por que nós precisamos atacar? – perguntou Feodor a Gavrik. – Poderíamos muito bem selar a paz aqui e agora! – Ouviu-se um murmúrio de aprovação.

– Então o que vocês farão se receberem a ordem de avançar? – quis saber Walter.

– Seria preciso reunir o comitê de soldados para discutir a questão – respondeu Feodor.

– Não fale merda – disse Gavrik. – Os comitês de soldados estão proibidos de debater sobre as ordens.

Houve um burburinho descontente e alguém na beira da roda falou baixinho:

– Isso é o que veremos, camarada sargento.

O grupo não parava de aumentar. Talvez os russos conseguissem sentir o cheiro da bebida de longe. Walter distribuiu mais duas garrafas. Para explicar a situação aos recém-chegados, falou:

– O povo alemão quer a paz tanto quanto vocês. Se não nos atacarem, não vamos atacá-los.

– Um brinde a isso! – exclamou um dos recém-chegados, provocando vivas esparsos.

Walter temia que o barulho pudesse chamar a atenção de algum oficial e se perguntou como iria fazer para os russos falarem em voz baixa apesar do schnapps – mas já era tarde demais. Uma voz alta e autoritária perguntou:

– O que está acontecendo aqui? O que vocês estão aprontando? – O monte de gente se abriu para dar passagem a um homem grande, com uma farda de major. O oficial olhou para Walter e perguntou:

– Posso saber quem é você?

Walter ficou preocupado. O oficial sem dúvida tinha o dever de capturá-lo. O serviço de inteligência alemão sabia como os russos tratavam seus prisioneiros de guerra. Ser capturado por eles era uma sentença de morte lenta por fome e frio.

Ele forçou um sorriso e estendeu a última garrafa fechada.

– Aceite uma bebida, major.

O oficial o ignorou e virou-se para Gavrik.

– O que você acha que está fazendo?

Gavrik não se deixou intimidar:

– Os homens não jantaram hoje, major, então como eu poderia obrigá-los a recusar uma bebida?

– Você deveria ter capturado o alemão!

– Agora que tomamos a bebida dele, não podemos capturá-lo – disse Feodor, já arrastando a voz. – Não seria justo! – concluiu, para vibração dos demais.

O major se dirigiu a Walter:

– Você é um espião, e eu deveria explodir a sua cabeça. – Levou a mão à arma que trazia no cinto.

Os soldados deram gritos de protesto. O major continuou com uma expressão raivosa, porém não disse mais nada. Claramente não queria entrar em conflito com os soldados.

– É melhor eu ir andando – disse-lhes Walter. – Seu major está me parecendo um pouco hostil. Além do mais, temos um bordel logo atrás da nossa linha de combate, e sei que tem uma loura peituda lá que talvez esteja se sentindo um pouco sozinha...

Todos riram e deram vivas. Era uma meia verdade: o bordel de fato existia, mas Walter nunca o visitara.

– Lembrem-se – disse ele –: nós não vamos lutar se vocês não lutarem!

Ele escalou a trincheira para sair. Esse era o momento mais perigoso. Pôs-se de pé, deu alguns passos, virou-se, acenou e continuou andando. Os homens já haviam matado a curiosidade e não havia sobrado nenhum schnapps. Talvez lhes desse na telha cumprir seu dever e atirar no inimigo. Walter tinha a sensação de estar com um alvo desenhado nas costas de seu casaco.

A noite caía. Ele logo estaria fora de vista. Poucos metros o separavam da segurança. Precisou reunir toda sua força de vontade para não começar a correr – pois achava que isso poderia levar alguém a lhe dar um tiro. Cerrando os dentes, continuou andando no mesmo ritmo em meio à profusão de bombas não detonadas.

Olhou para trás. Já não divisava mais a trincheira. Isso significava que eles não conseguiam vê-lo. Estava seguro.

Começou a respirar com mais tranquilidade e seguiu em frente. O risco valera a pena. Ele havia descoberto muitas coisas. Embora aquela seção não tivesse hasteado nenhuma bandeira branca, os russos estavam em péssimas condições para lutar. Os soldados se sentiam obviamente descontentes e não escondiam o desejo de se rebelar, enquanto os oficiais mantinham a disciplina por um fio. O sargento tomara cuidado para não irritar seus homens e o major não se atrevera a capturar Walter. Com esse estado de espírito, era impossível que as tropas demonstrassem garra no campo de batalha.

Walter distinguiu a linha alemã. Gritou o próprio nome e uma senha combinada anteriormente. Pulou para dentro da trincheira. Um tenente bateu continência para ele.

– Incursão proveitosa, senhor?

– Sim, obrigado – respondeu Walter. – Muito proveitosa.

Katerina estava deitada na cama do antigo quarto de Grigori, usando apenas uma combinação fina. A janela estava aberta, deixando entrar o ar morno do mês de julho e o rugido dos trens que passavam a poucos passos dali. Ela estava grávida de seis meses.

Grigori correu um dedo pelo contorno de seu corpo, começando no ombro, passando por um seio intumescido, descendo de volta até as costelas, subindo pela suave protuberância de sua barriga e descendo pela coxa. Antes de Katerina, nunca havia experimentado aquele tipo de alegria serena. Quando jovem, suas relações com as mulheres tinham sido breves. Para ele, ficar deitado junto a uma mulher depois do sexo, tocando seu corpo com delicadeza e carinho, mas sem pressa ou desejo, era algo novo e emocionante. Talvez esse fosse o significado do casamento, pensou.

– Você fica ainda mais linda grávida – falou baixinho para não acordar Vlad.

Há dois anos e meio que vinha servindo de pai para o garoto de Lev, mas agora iria ter seu próprio filho. Gostaria de dar ao bebê o mesmo nome de Lênin, mas eles já tinham um Vladimir. A gravidez de Katerina havia tornado Grigori um linha-dura em termos de política. Ele tinha que pensar em que tipo de país o neném iria crescer e queria que seu filho fosse livre. (Por algum motivo, imaginava que seria um menino.) Era preciso garantir que a Rússia fosse governada pelo povo, não por um czar, nem por um parlamento de classe média, nem por uma coalizão de empresários e generais que traria de volta os antigos costumes sob novos disfarces.

Na verdade, não gostava de Lênin. Este vivia em um estado permanente de ira. Estava sempre gritando com os outros. Quem quer que discordasse dele era um porco, um desgraçado, um imbecil. No entanto, trabalhava com mais afinco do que qualquer outra pessoa, refletia demoradamente sobre tudo e sempre tomava as decisões certas. No passado, todas as “revoluções” russas tinham levado apenas a hesitação. Grigori sabia que Lênin não deixaria isso acontecer.

O governo provisório também sabia – e havia indícios de que pretendia atacar Lênin. A imprensa de direita o acusara de ser um espião alemão, o que era ridículo. Contudo, era verdade que Lênin tinha uma fonte secreta de financiamento. Por ser bolchevique desde antes da guerra, Grigori fazia parte do núcleo do partido, portanto sabia que o dinheiro vinha da Alemanha. Caso esse segredo vazasse, poderia alimentar as suspeitas.

Ele estava pegando no sono quando ouviu passos no corredor, seguidos por uma batida forte e insistente na porta. Enquanto vestia a calça, gritou:

– O que foi? – Vlad acordou e começou a chorar.

– Grigori Sergeivich? – perguntou uma voz de homem.

– Sou eu. – Grigori abriu a porta e se deparou com Isaak. – O que houve?

– Eles emitiram mandados de prisão para Lênin, Zinoviev e Kamenev.

Grigori gelou.

– Precisamos avisá-los!

– Estou com um carro do Exército esperando lá fora.

– Vou calçar as botas.

Isaak foi embora. Katerina pegou Vlad no colo para acalmá-lo. Grigori se vestiu às pressas, deu um beijo nos dois e desceu correndo a escada.

Pulou para dentro do carro ao lado de Isaak e disse:

– Lênin é o mais importante. – O governo tinha razão em escolhê-lo como alvo. Zinoviev e Kamenev eram grandes revolucionários, porém Lênin era o motor que impulsionava o movimento. – Temos que avisá-lo primeiro. Vá até a casa da irmã dele. O mais rápido possível.

Isaak partiu a toda.

Enquanto o carro fazia uma curva cantando pneus, Grigori se segurou firme. Quando o veículo se endireitou, ele perguntou:

– Como você descobriu?

– Um bolchevique do Ministério da Justiça me disse.

– Quando os mandados foram assinados?

– Hoje de manhã.

– Espero que cheguemos a tempo. – Grigori estava morrendo de medo que Lênin já tivesse sido detido. Ninguém mais possuía uma determinação tão inabalável quanto a sua. Ele podia ser truculento, mas havia transformado os bolcheviques no partido mais importante de todos. Sem ele, a revolução poderia se atolar novamente em incertezas e concessões.

Isaak seguiu até a Rua Shirokaya e parou em frente a um prédio residencial de classe média. Grigori saltou do carro, entrou correndo no edifício e bateu à porta do apartamento dos Yelizarov. Anna, irmã mais velha de Lênin, veio abrir. Era uma mulher de seus 50 anos, com os cabelos grisalhos repartidos no meio. Grigori já a havia encontrado antes: ela trabalhava no Pravda.

– Ele está aqui? – indagou Grigori.

– Está. Por quê? O que aconteceu?

Grigori sentiu uma onda de alívio. Não havia chegado tarde demais. Entrou no apartamento.

– Eles vão prendê-lo.

Anna fechou a porta com violência.

– Volodya! – chamou, usando o apelido do nome de batismo de Lênin. – Venha cá, rápido!

Lênin apareceu, vestindo, como sempre, um terno escuro puído, camisa de colarinho e gravata. Grigori explicou em poucas palavras a situação.

– Vou embora agora mesmo – disse Lênin.

– Não quer pelo menos jogar algumas coisas na mala...? – perguntou Anna.

– É arriscado demais. Mande tudo depois. Eu lhe aviso onde estou. – Ele olhou para Grigori. – Obrigado pelo aviso, Grigori Sergeivich. Você tem um carro?

– Tenho.

Sem dizer mais nada, Lênin saiu para o corredor.

Grigori o seguiu até a rua e apressou-se para abrir a porta do carro.

– Eles também emitiram mandados para Zinoviev e Kamenev – disse Grigori enquanto Lênin entrava.

– Volte para o apartamento e telefone para eles – ordenou Lênin. – Mark tem telefone e sabe onde eles estão. – Ele bateu a porta. Inclinando-se para a frente, disse alguma coisa para Isaak que Grigori não escutou. Isaak saiu com o carro.

Lênin era assim o tempo todo. Ladrava ordens para todos, e as pessoas lhe obedeciam porque ele sempre demonstrava sensatez.

Grigori sentiu um grande peso sendo erguido de seus ombros. Olhou de um lado para outro da rua. Um grupo de homens saiu de um prédio na calçada oposta. Alguns usavam ternos, outros uniformes de oficiais do Exército. Grigori ficou chocado ao reconhecer Mikhail Pinsky. Em teoria, a polícia secreta havia sido abolida, mas, pelo jeito, homens como Pinsky continuavam a trabalhar no Exército.

Aqueles homens provavelmente estavam à procura de Lênin – e haviam acabado de perdê-lo por terem entrado no prédio errado.

Grigori voltou correndo para dentro do edifício. A porta do apartamento dos Yelizarov continuava aberta. Lá dentro estavam Anna; seu marido, Mark; Gora, enteado de Anna; e a empregada da família, uma jovem camponesa chamada Anyushka – todos parecendo chocados. Grigori fechou a porta às suas costas.

– Ele foi levado embora em segurança – disse Grigori. – Mas a polícia está lá fora. Preciso ligar para Zinoviev e Kamenev agora mesmo.

– O telefone está logo ali, na mesa de canto – disse Mark.

Grigori hesitou.

– Como funciona? – Nunca tinha usado um telefone.

– Ah, perdão – disse Mark. Ele empunhou o aparelho, levando uma das peças ao ouvido e segurando a outra junto à boca. – Também é novidade para nós, mas usamos tanto que nem estranhamos mais. – Com impaciência, pressionou várias vezes o gancho que encimava a base do telefone. – Sim, telefonista, por favor – falou, dando um número em seguida.

Alguém bateu forte na porta.

Grigori levou o dedo aos lábios, mandando os outros ficarem calados.

Anna levou Anyushka e o menino para os fundos do apartamento.

Mark falava depressa ao telefone. Grigori ficou parado em frente à porta de entrada. Uma voz disse:

– Abram ou vamos arrombar esta porta! Temos um mandado!

Grigori gritou de volta:

– Só um instante, estou vestindo minha calça! – A polícia sempre aparecia no prédio em que Grigori morava, então ele conhecia todas as desculpas possíveis para fazê-la esperar.

Mark voltou a pressionar o gancho do telefone e pediu outra ligação.

– Quem é? Quem está batendo? – gritou Grigori.

– Polícia! Abram imediatamente!

– Estou indo, preciso trancar o cachorro na cozinha.

– Andem logo com isso!

Grigori ouviu Mark dizer:

– Avise a ele para se esconder. A polícia está na porta da minha casa. – Ele pôs o receptor do telefone no gancho e meneou a cabeça para Grigori, que abriu a porta e recuou para dar passagem.

Pinsky entrou no apartamento.

– Onde está Lênin? – perguntou.

Vários oficiais do Exército entraram atrás dele.

– Não tem ninguém aqui com esse nome – respondeu Grigori.

Pinsky o encarou.

– O que você está fazendo aqui? – perguntou. – Sempre soube que era um encrenqueiro.

Mark deu um passo à frente e pediu, sem alterar a voz:

– Posso ver o mandado, por favor?

Relutante, Pinsky lhe entregou um pedaço de papel.

Mark analisou o papel por alguns instantes, então disse:

– Alta traição? Isso é ridículo!

– Lênin é um agente alemão – disse Pinsky, apertando os olhos para encarar Mark. – Você é o cunhado dele, não é?

Mark lhe devolveu o mandado.

– O homem que os senhores procuram não está aqui – disse.

Pinsky, ao notar que Mark estava dizendo a verdade, assumiu uma expressão irritada.

– E quer me dizer por que não? – perguntou. – Ele mora aqui!

– Lênin não se encontra – repetiu Mark.

O rosto de Pinsky ficou vermelho.

– Alguém veio avisá-lo? – Ele agarrou Grigori pela lapela da sua farda. – O que você está fazendo aqui?

– Eu sou delegado do soviete de Petrogrado pelo Primeiro Regimento de Metralhadoras e, a menos que você queira que o regimento faça uma visita ao seu quartel-general, é melhor tirar essas mãos gordas do meu uniforme.

Pinsky o soltou.

– Vamos dar uma olhada mesmo assim – falou.

Ao lado da mesa do telefone havia uma estante. Pinsky apanhou uma dúzia de livros, atirando-os no chão. Acenou para os oficiais entrarem no apartamento.

– Ponham tudo abaixo – ordenou.

Walter foi até um vilarejo dentro do território conquistado dos russos e deu a um camponês, que ficou espantado e radiante, uma moeda de ouro em troca de suas roupas: um casaco imundo de pele de carneiro, um agasalho de algodão, uma calça folgada de tecido áspero e sapatos feitos de tiras de casca de faia entrelaçadas. Felizmente, Walter não teve que comprar sua roupa de baixo, pois o homem estava sem.

Ele cortou os cabelos com uma tesoura de cozinha e parou de se barbear.

Em uma pequena cidade-mercado, comprou um saco de cebolas. No fundo do saco, debaixo das cebolas, pôs uma bolsa de couro contendo 10 mil rublos em moedas e notas.

Certa noite, sujou as mãos e o rosto de terra e, usando as roupas do camponês e carregando o saco de cebolas, atravessou a terra de ninguém, passou pela linha de frente russa e caminhou até a estação de trem mais próxima, onde comprou uma passagem de terceira classe.

Adotou uma atitude agressiva, rosnando para todos os que tentavam falar com ele, como se temesse que fossem querer lhe roubar as cebolas, o que prova­velmente era verdade. Carregava uma faca grande, enferrujada, porém afiada, presa ao cinto a olhos vistos – além de um revólver Nagant, confiscado de um oficial russo capturado, escondido debaixo do casaco malcheiroso. Nas duas ocasiões em que um policial lhe dirigiu a palavra, deu um sorriso imbecil e ofereceu-lhe uma cebola, suborno tão desprezível que ambos os policiais soltaram um grunhido de repulsa e se afastaram. Caso algum deles houvesse insistido em revistar o saco, Walter estava disposto a matá-lo, mas não foi necessário. Comprava passagens para trajetos curtos, descendo a cada três ou quatro paradas, pois nenhum camponês viajaria centenas de quilômetros só para vender suas cebolas.

Estava tenso, sempre alerta. Seu disfarce era frágil. Qualquer pessoa que conversasse com ele durante mais de alguns segundos saberia que não era de fato russo. A penalidade para o que estava fazendo era a morte.

No início teve medo, mas ele acabou passando e, no segundo dia, já estava entediado. Não tinha nada com que ocupar a mente. Não podia ler, é óbvio: na verdade, precisava tomar cuidado para não consultar os horários afixados nas estações ou ficar olhando demais para os anúncios, pois a maioria dos camponeses era analfabeta. Enquanto uma série de trens lentos chacoalhava pelas intermináveis florestas russas, Walter embarcou em uma fantasia complexa sobre o apartamento em que ele e Maud iriam morar depois da guerra. Ele teria uma decoração moderna, feita de madeira clara e cores neutras, como a da casa dos Von der Helbard, em vez da atmosfera pesada e escura da residência de seus pais. Tudo seria fácil de limpar e conservar, sobretudo na cozinha e na lavanderia, de modo a poderem ter menos criados. Teriam um piano bom de verdade, um Steinway de cauda, pois ambos gostavam de tocar. Comprariam um ou dois quadros modernos chamativos, talvez de expressionistas austríacos, para chocarem a velha geração e passarem a imagem de um casal progressista. O quarto de dormir seria claro e arejado, e nele poderiam ficar deitados nus sobre uma cama macia, beijando-se, conversando e fazendo amor.

E assim ele viajou até Petrogrado.

O plano, intermediado por um socialista revolucionário da embaixada sueca, era que um enviado dos bolcheviques estaria esperando todos os dias em Petrogrado, durante uma hora, para pegar o dinheiro com Walter na estação Varsóvia, às seis da tarde. Walter chegou ao meio-dia e aproveitou a oportunidade para andar pela cidade, no intuito de avaliar a capacidade do povo russo de seguir combatendo.

Ficou chocado com o que viu.

Assim que saiu da estação, foi cercado por prostitutos e prostitutas de todas as idades, inclusive crianças. Atravessou a ponte sobre um canal e seguiu alguns quilômetros para o norte até o centro da cidade. A maioria das lojas estava fechada, muitas com tábuas pregadas nas fachadas, outras simplesmente abandonadas, com o vidro estilhaçado das vitrines a cintilar na calçada. Viu muitos bêbados e duas brigas. De vez em quando, um automóvel ou uma carruagem puxada a cavalo passava depressa, com os passageiros escondidos atrás de cortinas fechadas, fazendo os pedestres se espalharem. Quase todos estavam magros, maltrapilhos e descalços. A situação era bem pior do que em Berlim.

Ele viu muitos soldados, sozinhos e em grupos, a maioria demonstrando indisciplina: marchando fora de ritmo ou vadiando em seus postos, com as fardas desabotoadas, batendo papo com civis e, aparentemente, fazendo o que bem entendiam. Walter confirmou a impressão que tivera ao visitar a linha de frente russa: aqueles homens não estavam com disposição para lutar.

Isso tudo eram ótimas notícias, pensou ele.

Ninguém o abordou e ele foi ignorado pela polícia. Era apenas mais uma silhueta esfarrapada cuidando da própria vida em uma cidade à beira da ruína.

Animadíssimo, voltou para a estação às seis da tarde e logo identificou seu contato, um sargento que carregava um fuzil com um cachecol vermelho amarrado no cano. Antes de se apresentar, Walter analisou o homem. Era uma figura imponente, não muito alto, mas espadaúdo e corpulento. Faltava-lhe a orelha direita, um dos dentes da frente e o anular da mão esquerda. Ele aguardava com a paciência de um soldado veterano, porém seus olhos azuis atentos não deixavam escapar muita coisa. Embora Walter pretendesse observá-lo às escondidas, o soldado notou seu olhar, meneou a cabeça, deu meia-volta e se afastou. Compreendendo a deixa evidente, Walter o seguiu. Os dois entraram em um lugar espaçoso, cheio de mesas e cadeiras.

– Sargento Grigori Peshkov? – indagou Walter.

Grigori assentiu:

– Eu sei quem é o senhor. Sente-se.

Walter olhou ao redor. Um samovar chiava em um canto e uma velha de xale vendia peixes defumados e em conserva. Quinze ou 20 pessoas ocupavam as mesas. Ninguém olhou duas vezes para o soldado nem para o camponês que obviamente estava ali para tentar vender seu saco de cebolas. Um rapaz de jaqueta azul que parecia operário entrou logo depois deles. Walter o encarou nos olhos por um instante e observou enquanto ele se sentava, acendia um cigarro e abria o Pravda.

– Posso comer alguma coisa? – perguntou Walter. – Estou faminto, mas acho que os preços aqui são um pouco salgados para um camponês.

Grigori foi buscar uma porção de pão preto com arenque e duas xícaras de chá com açúcar. Walter começou a comer. Depois de um minuto a observá-lo, Grigori riu.

– Estou admirado que tenha conseguido se fazer passar por camponês – disse ele. – Eu saberia que o senhor é burguês.

– Como?

– Suas mãos estão sujas, mas o senhor come em pequenos bocados e limpa a boca com um trapo como se fosse um guardanapo de linho. Um camponês de verdade enfia a comida goela abaixo e faz barulho para tomar o chá.

A arrogância do sargento irritou Walter. Afinal de contas, pensou ele, eu sobrevivi três dias dentro de um maldito trem. Queria ver você tentar isso na Alemanha. Estava na hora de lembrar a Peshkov que ele precisava fazer jus ao dinheiro.

– Conte-me sobre a situação dos bolcheviques – pediu.

– Ela é perigosamente boa – respondeu Grigori. – Nos últimos meses, milhares de russos entraram para o partido. Leon Trótski finalmente anunciou que nos apoia. O senhor deveria ouvir o que ele diz. Ele costuma lotar o Cirque Moderne quase todas as noites. – Walter pôde ver que Grigori idolatrava Trótski. Até mesmo os alemães sabiam que sua retórica era fascinante. Ele era uma conquista e tanto para os bolcheviques. – Em fevereiro passado, tínhamos 10 mil membros. Hoje, temos 200 mil – concluiu Grigori com orgulho.

– Isso é ótimo, mas vocês podem mudar as coisas? – quis saber Walter.

– Temos grandes chances de vencer a eleição para a Assembleia Constituinte.

– Quando será o pleito?

– Ele vem sendo adiado há tempos...

– Por quê?

Grigori deu um suspiro.

– Primeiro, o governo provisório convocou um conselho de representantes que, depois de dois meses, finalmente concordou em formar um segundo conselho, com 60 membros, para redigir a lei eleitoral...

– Por quê? Qual o motivo de um processo tão complicado?

Grigori pareceu furioso.

– Eles dizem que querem uma eleição totalmente inquestionável, mas o verdadeiro motivo é que os partidos conservadores estão fazendo corpo mole, pois sabem que vão perder.

Aquele homem era apenas um sargento, pensou Walter, mas sua análise parecia bastante sofisticada.

– E quando vai ser a eleição, afinal?

– Em setembro.

– E por que o senhor acha que os bolcheviques vão ganhar?

– Ainda somos o único grupo comprometido de verdade com a paz. E todos sabem disso, graças aos jornais e panfletos que publicamos.

– Então por que disse que a situação é “perigosamente” boa?

– Porque isso nos torna o alvo principal do governo. Foi emitida uma ordem de prisão para Lênin. Ele teve que entrar para a clandestinidade. Mas continua na liderança do partido.

Walter também acreditava nisso. Se Lênin fora capaz de manter o controle dos bolcheviques durante o exílio, em Zurique, sem dúvidas conseguiria fazê-lo de um esconderijo na Rússia.

Walter havia efetuado a entrega e reunido a informação de que precisava. Tinha cumprido sua missão. Foi tomado por uma sensação de alívio. Agora, tudo o que precisava fazer era voltar para casa.

Com o pé, empurrou o saco que continha os 10 mil rublos até Grigori.

Acabou de tomar seu chá e se levantou.

– Aproveite suas cebolas – disse, encaminhando-se para a porta.

Com o canto do olho, viu o homem de jaqueta azul dobrar seu exemplar do Pravda e se levantar.

Walter comprou uma passagem para Luga e embarcou no trem. Entrou em um compartimento de terceira classe. Espremeu-se para passar por um grupo de soldados que fumava e bebia vodca, por uma família de judeus com todos os seus pertences embolados em trouxas presas com barbante e por alguns camponeses com caixotes vazios que provavelmente tinham vendido seus frangos. No fundo do vagão, parou e olhou para trás.

O sujeito de jaqueta azul entrou no vagão.

Walter passou alguns segundos observando o homem abrir caminho entre os passageiros, acotovelando as pessoas sem cerimônia para passar. Somente um policial faria uma coisa dessas.

Walter saltou do trem e saiu da estação apressado. Recordando o passeio de reconhecimento que fizera à tarde, seguiu a passos rápidos em direção ao canal. No verão, as noites eram curtas, de modo que ainda havia bastante luz. Ele esperava ter conseguido despistar seu perseguidor, porém, ao olhar por cima do ombro, viu que o homem ainda estava atrás dele. O mais provável era que estivesse seguindo Peshkov antes e houvesse decidido investigar seu amigo camponês vendedor de cebolas.

O homem apertou o passo.

Caso fosse capturado, Walter seria fuzilado como espião. Não tinha escolha quanto ao que fazer em seguida.

Encontrava-se em um bairro de classe baixa. Petrogrado inteira aparentava pobreza, mas aquele distrito em especial era cheio dos hotéis baratos e bares sujos que proliferavam em volta das estações de trem de todo o mundo. Walter começou a correr, mas o homem de jaqueta azul também se apressou para não perdê-lo de vista.

Walter chegou a uma olaria à beira do canal. A construção era cercada por um muro alto e tinha um portão gradeado de ferro, porém ao lado dela havia um armazém abandonado em um terreno sem cerca. Walter saiu da rua, atravessou correndo o terreno do armazém e escalou o muro para entrar na olaria.

Tinha de haver um vigia em algum lugar, mas Walter não viu ninguém. Procurou um esconderijo. Era uma pena ainda estar tão claro. A olaria tinha seu próprio cais, com um pequeno píer de madeira. Estava cercado por pilhas de tijolos da altura de um homem, mas ele precisava ver sem ser visto. Aproximou-se de uma pilha parcialmente desfeita – alguns dos tijolos deviam ter sido vendidos – e se apressou a reorganizar alguns outros, de modo a poder se esconder atrás deles e espiar por uma fresta. Tirou o Nagant do cinto e puxou o cão do revólver.

Instantes depois, pôde ver o sujeito de jaqueta azul escalar o muro.

Era um homem de estatura mediana, magro, com um bigodinho. Parecia assustado: havia percebido que já não estava apenas seguindo um suspeito. Estava envolvido em uma caçada humana – e não sabia se era o caçador ou a caça.

Seu perseguidor sacou uma arma.

Walter apontou o revólver por entre a fresta nos tijolos, mirando no homem, mas não estava próximo o suficiente para ter certeza de que acertaria o alvo.

O sujeito se deteve por alguns instantes, olhando em volta, obviamente indeciso quanto ao que fazer. Então se virou e começou a andar, hesitante, em direção à água.

Walter foi atrás dele. Havia invertido o jogo.

O homem foi passando por entre as pilhas de tijolos, examinando a área. Walter o imitou, abaixando-se atrás dos tijolos sempre que o homem parava, chegando cada vez mais perto. Não queria um tiroteio demorado, que pudesse atrair a atenção de outros policiais. Precisava abater seu inimigo com um ou dois tiros e fugir depressa.

Quando o homem chegou à extremidade do terreno que dava para a água, os dois estavam a menos de 10 metros de distância. O homem olhou de um lado para o outro do canal, como se Walter pudesse ter saído remando em um barco.

Walter saiu do seu esconderijo e mirou bem no meio das costas do homem.

Quando o sujeito virou as costas para a água, deu de cara com Walter.

Então soltou um grito.

Foi um som agudo e feminino de espanto e terror. Walter soube, naquele mesmo instante, que se lembraria do grito pelo resto da vida.

Ele apertou o gatilho, o revólver disparou e o grito foi interrompido de chofre.

Um tiro bastou. O agente da polícia secreta desabou no chão, sem vida.

Walter se agachou junto ao corpo. Os olhos do homem fitavam o céu, vidrados. Não havia pulso nem respiração.

Arrastou o corpo até a beira do canal. Colocou tijolos nos bolsos da calça e da jaqueta para lastrear o cadáver. Então o empurrou por cima do parapeito baixo e deixou-o cair na água.

O corpo submergiu. Walter virou as costas e foi embora.

Quando a contrarrevolução começou, Grigori estava em uma reunião do soviete de Petrogrado.

Ficou preocupado, mas não surpreso. À medida que a popularidade dos bolcheviques aumentava, a oposição ficava cada vez mais violenta. O partido estava se saindo bem nas eleições locais, ganhando o controle de um soviete de província atrás do outro, além de angariar 30% dos votos para o conselho municipal de Petrogrado. Em resposta a isso, o governo – agora liderado por Kerenski – prendera Trótski e adiara mais uma vez a tão esperada eleição nacional para a Assembleia Constituinte. Os bolcheviques vinham dizendo desde o começo que o governo provisório jamais organizaria um pleito nacional – e esse novo adiamento só fez aumentar a credibilidade do partido.

Foi então que o Exército entrou em cena.

O general Kornilov era um cossaco de cabeça raspada que tinha um coração de leão e um cérebro de ovelha, segundo o famoso comentário do general Alexeev. No dia 9 de setembro, Kornilov ordenou às suas tropas que marchassem sobre Petrogrado.

O soviete reagiu depressa. Os delegados resolveram instituir imediatamente o Comitê de Reação à Contrarrevolução.

Um comitê era inútil, pensou Grigori com impaciência. Pôs-se de pé, reprimindo sua raiva e seu medo. Como delegado do Primeiro Regimento de Metralhadoras, era ouvido com respeito, sobretudo em questões militares.

– Um comitê desses não faz sentido se os seus membros forem apenas pronunciar discursos – disse ele, exaltado. – Se as informações que acabamos de receber forem verdadeiras, parte das tropas de Kornilov não deve estar muito longe dos limites de Petrogrado. Só a força poderá detê-los. – Ele estava sempre vestido com o uniforme de sargento e portava seu fuzil e um revólver. – O comitê não vai servir para nada a menos que mobilize os operários e soldados de Petrogrado contra o motim do Exército.

Grigori sabia que apenas o Partido Bolchevique era capaz de mobilizar o povo. E todos os outros delegados também sabiam disso, fosse qual fosse sua lealdade partidária. No fim das contas, ficou resolvido que o comitê seria composto por três mencheviques, três socialistas revolucionários e três bolcheviques, incluindo Grigori – no entanto, todos sabiam que os bolcheviques eram os únicos a fazer diferença.

Assim que houve consenso quanto a isso, o recém-formado comitê deixou a sala de reunião. Fazia seis meses que Grigori estava na política, e ele já havia aprendido a manipular o sistema. Assim, ignorou a composição formal do comitê e convidou uma dúzia de pessoas úteis a se juntar a eles, dentre as quais Konstantin, da Metalúrgica Putilov, e Isaak, do Primeiro Regimento de Metralhadoras.

O soviete havia sido transferido do Palácio Tauride para o Instituto Smolny, uma antiga escola para meninas, e o comitê tornou a se reunir em uma sala de aula, cercado de bordados emoldurados e aquarelas infantis.

– Os senhores têm uma proposta para abrir o debate? – indagou o presidente da sessão.

Aquilo era perda de tempo, mas Grigori já era delegado há tempo suficiente para saber como contornar a situação. Adiantou-se na mesma hora para assumir o controle da assembleia e fazer o comitê se concentrar em ações em vez de palavras.

– Sim, camarada presidente, se me permite – disse ele. – Proponho cinco coisas que precisamos fazer. – Uma lista numerada era sempre uma boa ideia: fazia as pessoas sentirem que precisavam escutar até o final. – Primeiro: mobilizar os soldados de Petrogrado contra o motim do general Kornilov. Como podemos fazer isso? Sugiro que o cabo Isaak Ivanovich faça uma lista dos principais quartéis com os nomes de líderes revolucionários de confiança em cada um deles. Assim que identificarmos nossos aliados, devemos enviar uma mensagem instruindo-os a acatarem as ordens deste comitê e se prepararem para repelir os amotinados. Se Isaak começar agora, em poucos minutos pode trazer a lista e a mensagem para a aprovação deste comitê.

Grigori fez uma breve pausa para permitir que os outros meneassem a cabeça e, tomando isso como uma aprovação, prosseguiu:

– Obrigado. Vá em frente, camarada Isaak. Em segundo lugar, precisamos mandar uma mensagem para Kronstadt. – A base naval de Kronstadt, uma ilha a pouco mais de 30 quilômetros da costa, era conhecida pelo tratamento brutal dispensado aos marinheiros, sobretudo aos jovens recrutas. Há seis meses que os marinheiros haviam se rebelado contra seus algozes, torturando e matando muitos de seus oficiais. A base era agora um reduto de radicais. – Os marinheiros devem se armar, vir até Petrogrado e ficar às nossas ordens. – Grigori apontou para um delegado bolchevique que sabia ser próximo dos marinheiros. – Camarada Gleb, você assumiria essa tarefa, com a aprovação do comitê?

Gleb aquiesceu.

– Se me permitem, posso fazer uma minuta da carta para o nosso presidente assinar e então levá-la eu mesmo até Kronstadt – disse ele.

– Por favor, faça isso.

Os membros do comitê começaram a parecer um pouco atordoados. As coisas estavam indo mais depressa do que o normal. Os únicos que não estavam surpresos eram os bolcheviques.

– Em terceiro lugar, precisamos organizar os operários em unidades defensivas e armá-los. Podemos conseguir as armas nos arsenais do Exército e nas fábricas de armamentos. A maioria dos trabalhadores vai precisar de um treinamento básico de tiro e disciplina militar. Sugiro que essa tarefa seja efetuada em conjunto pelos sindicatos e pela Guarda Vermelha. – A Guarda Vermelha era o braço armado dos soldados e operários revolucionários. Nem todos eram bolcheviques, porém costumavam obedecer às ordens dos comitês do partido. – Proponho que o camarada Konstantin, delegado da Metalúrgica Putilov, fique encarregado disso. Ele saberá qual é o principal sindicato de cada uma das grandes fábricas.

Grigori sabia que estava transformando a população de Petrogrado em um exército revolucionário – e os demais bolcheviques do comitê também –, mas será que o restante dos delegados estava entendendo seu plano? No final de todo aquele processo, supondo que a contrarrevolução fosse derrotada, seria muito difícil para os moderados desarmar a força que haviam criado e restaurar a autoridade do governo provisório. Caso conseguissem enxergar tão mais adiante assim, talvez tentassem abrandar ou reverter as propostas de Grigori. Por ora, no entanto, estavam concentrados em impedir um golpe militar. Como sempre, somente os bolcheviques tinham uma estratégia.

– Sim, ótima ideia, vou fazer uma lista – disse Konstantin. Ele daria prioridade aos líderes sindicais bolcheviques, é claro, mas, de toda forma, ultimamente eles eram os mais eficazes.

– Em quarto lugar – continuou Grigori –, o Sindicato dos Ferroviários precisa fazer o possível para impedir o avanço do exército de Kornilov. – Os bolcheviques haviam trabalhado duro para assumir o controle desse sindicato, e agora tinham pelo menos um partidário em cada galpão ferroviário. Os sindicalistas bolcheviques sempre se ofereciam para servir de tesoureiros, secretários ou presidentes. – Embora algumas tropas estejam vindo para cá pelas estradas, a maioria dos homens e dos mantimentos terá que chegar de trem. O sindicato pode garantir que eles se atrasem e obrigá-los a fazer longos desvios. Camarada Viktor, o comitê pode contar com você para essa missão?

Viktor, um delegado dos ferroviários, fez que sim com a cabeça.

– Vou criar um comitê especial dentro do sindicato para organizar a perturbação do avanço dos amotinados.

– Por último, precisamos incentivar outras cidades a estabelecer comitês como o nosso – disse Grigori. – A revolução precisa ser defendida em toda parte. Será que outros membros deste comitê poderiam sugerir com que cidades devemos nos comunicar?

Era uma distração proposital, porém todos morderam a isca. Satisfeitos por terem algo para fazer, os integrantes começaram a gritar nomes de cidades que deveriam criar Comitês de Reação. Isso garantiu que, em vez de esmiuçarem as propostas mais importantes de Grigori, eles as deixassem passar sem contestação – ninguém sequer pensou nas consequências a longo prazo de se armar a população.

Isaak e Gleb rascunharam suas cartas e obtiveram a assinatura do presidente da sessão sem maiores discussões. Konstantin elaborou a lista dos líderes operários e começou a despachar recados para eles. Viktor partiu para organizar os ferroviários.

O comitê passou a discutir os termos de uma mensagem às cidades vizinhas. Grigori se retirou discretamente. Havia conseguido o que queria. A defesa de Petrogrado, e da revolução, estava bem encaminhada. E os bolcheviques estavam no comando dela.

O que precisava agora era obter informações confiáveis sobre o paradeiro do exército contrarrevolucionário. Haveria mesmo tropas se aproximando dos subúrbios ao sul de Petrogrado? Caso houvesse, talvez fosse preciso detê-las com mais rapidez do que o Comitê de Reação seria capaz de fazer.

Atravessando a ponte, ele percorreu o curto trajeto que separava o Instituto Smolny de seu quartel. Uma vez lá, encontrou o regimento já se preparando para combater os amotinados de Kornilov. Reuniu um blindado, um motorista e três soldados revolucionários de confiança e pôs-se a cruzar a cidade na direção sul.

A tarde de outono já escurecia à medida que o grupo zanzava pelos subúrbios do sul, à procura do exército invasor. Após um par de horas infrutíferas, Grigori decidiu que, muito provavelmente, as informações sobre o avanço de Kornilov tinham sido exageradas. De qualquer maneira, era bem capaz de ele não encontrar nada além de um destacamento avançado. Ainda assim, era importante verificar, de modo que insistiu na busca.

Acabaram encontrando uma brigada de infantaria montando acampamento em uma escola.

Grigori cogitou voltar ao quartel e trazer o Primeiro Regimento de Metra­lha­doras até ali para atacá-los. Contudo, pensou que talvez houvesse uma saída melhor. Era arriscado, mas, caso funcionasse, evitaria bastante derramamento de sangue.

Ele iria tentar vencer na base da conversa.

O grupo passou por uma sentinela apática e entrou no pátio da escola. Grigori desceu do blindado. Como precaução, desdobrou a baioneta na ponta do fuzil, colocando-a em posição de ataque. Em seguida, pendurou a arma no ombro. Sentindo-se vulnerável, forçou-se a aparentar tranquilidade.

Vários soldados se aproximaram. Um coronel perguntou:

– O que está fazendo aqui, sargento?

Grigori o ignorou e dirigiu-se a um cabo.

– Camarada, preciso falar com o líder do seu comitê de soldados – disse.

– Esta brigada não tem comitês de soldados, camarada – respondeu o coronel. – Volte para o seu blindado e suma daqui.

O cabo, no entanto, se manifestou de pronto em tom desafiador, embora parecesse nervoso:

– Eu era o líder do comitê do meu pelotão, sargento... antes de os comitês serem proibidos, é claro.

O semblante do coronel se fechou de raiva.

Aquilo era a revolução em miniatura, percebeu Grigori. Quem sairia ganhando – o coronel ou o cabo?

Outros soldados chegaram mais perto para escutar.

– Então me diga uma coisa – pediu Grigori ao cabo –, por que vocês estão atacando a revolução?

– Não, não – respondeu o cabo. – Nós estamos aqui para defendê-la.

– Alguém andou mentindo para vocês. – Grigori se virou e levantou a voz para se dirigir aos homens em volta. – O primeiro-ministro, camarada Kerenski, destituiu o general Kornilov, mas Kornilov se recusa a abandonar o cargo, por isso mandou vocês atacarem Petrogrado.

Um murmúrio de reprovação percorreu o grupo.

O coronel parecia constrangido: ele sabia que Grigori tinha razão.

– Chega dessas mentiras! – disparou. – Saia daqui agora, sargento, ou eu vou lhe dar um tiro.

– Nem toque nessa arma, coronel – disse Grigori. – Seus homens têm o direito de saber a verdade. – Ele olhou para o grupo que aumentava. – Estou certo?

– Sim! – disseram vários homens.

– Eu não aprovo tudo o que Kerenski fez – disse Grigori. – Ele reinstaurou a pena de morte e os açoitamentos. Mas é o nosso líder revolucionário, enquanto o general Kornilov quer destruir a revolução.

– Mentira! – exclamou o coronel com irritação. – Será que vocês não entendem? Este sargento é um bolchevique. Todo mundo sabe que eles foram comprados pelos alemães!

– Como vamos saber em quem acreditar? – perguntou o cabo. – O senhor diz uma coisa, sargento, mas o coronel diz outra.

– Então não acreditem em nenhum de nós dois – disse Grigori. – Descubram por si mesmos. – Ele ergueu a voz para garantir que todos pudessem ouvi-lo: – Não precisam ficar escondidos nesta escola. É só irem até a fábrica mais próxima e perguntarem a qualquer operário. Conversem com os soldados que virem nas ruas. Logo descobrirão a verdade.

O cabo assentiu.

– Boa ideia.

– Vocês não vão fazer nada disso – disse o coronel, furioso. – Ordeno que todos permaneçam na escola.

Que baita erro, pensou Grigori.

– Seu coronel não quer que vocês descubram por si mesmos – falou ele. – Isso não mostra que ele deve estar mentindo?

O coronel levou a mão à pistola e disse:

– Sargento, essas são as palavras de um amotinado.

Os homens encaravam o coronel e Grigori. O momento era crítico, e Grigori estava mais perto da morte do que nunca.

De repente, o sargento percebeu que estava em desvantagem. Havia ficado tão envolvido na discussão que se esquecera de planejar o que fazer quando ela chegasse ao fim. Trazia o fuzil pendurado no ombro, mas a trava de segurança estava acionada. Precisaria de vários segundos para tirar a arma do ombro, girar a alavanca difícil de manejar que destravava o mecanismo de segurança e erguer o fuzil até uma posição de tiro. O coronel conseguiria sacar a pistola e atirar bem mais depressa. Sentindo uma onda de medo, Grigori teve que reprimir um impulso de virar as costas e sair correndo.

– Amotinado? – indagou ele, ganhando tempo e tentando não deixar o medo enfraquecer o tom decidido da própria voz. – Quando um general destituído marcha sobre a capital, mas seus soldados se recusam a atacar o governo legítimo, quem é o amotinado? Eu digo que é o general. E os oficiais que tentam executar suas ordens traiçoeiras.

O coronel sacou a pistola.

– Fora daqui, sargento. – Ele se virou para os outros. – Homens, entrem na escola e reúnam-se no hall de entrada. Lembrem-se: insubordinação é crime no Exército, e a pena de morte foi reinstaurada. Vou atirar em quem desobedecer a esta ordem.

Ele apontou a arma para o cabo.

Grigori notou que os soldados estavam prestes a obedecer àquele oficial autoritário, confiante e armado. Desesperado, viu que só lhe restava uma saída. Ele teria que matar o coronel.

Encontrou uma maneira de fazer isso. Teria de agir muito depressa, mas achou que podia conseguir.

Se estivesse errado, iria morrer.

Ele tirou o fuzil do ombro esquerdo e, passando-o sem demora para a mão direita, deu uma estocada para a frente com toda a sua força, lançando-o contra o flanco do coronel. A ponta afiada da baioneta comprida rasgou a fazenda do uniforme e Grigori sentiu quando ela se afundou na barriga macia. O coronel deu um grito de dor, mas não caiu. Apesar do ferimento, virou-se, descrevendo um arco com a mão que segurava a arma, e puxou o gatilho.

O tiro não acertou em nada.

Grigori empurrou o fuzil, forçando a baioneta para dentro e para cima, buscando atingir o coração. O rosto do coronel se contorceu de agonia e sua boca se abriu, mas sem produzir som algum, e ele desabou no chão ainda agarrando a pistola.

Grigori puxou a baioneta de volta com violência.

A pistola do coronel caiu de sua mão.

Todos ficaram olhando para o coronel, que agonizava silenciosamente sobre a grama seca do pátio. Grigori desarmou a trava de segurança de seu fuzil, mirou no coração do oficial e disparou duas vezes à queima-roupa. O homem ficou inerte.

– Como o senhor disse, coronel – falou ele. – É a pena de morte.

Fitz e Bea pegaram um trem em Moscou, acompanhados apenas pela criada russa de Bea, Nina, e pelo criado de Fitz, Jenkins, um ex-campeão de boxe que havia sido rejeitado pelo Exército por não conseguir enxergar mais de 10 metros à frente do nariz.

Eles desembarcaram em Bulovnir, a pequena estação que dava acesso às terras do príncipe Andrei. Os especialistas contratados por Fitz tinham sugerido que Andrei construísse ali uma pequena comunidade, com uma madeireira, depósitos de cereais e um moinho. Contudo, nada disso tinha sido feito, de modo que os camponeses ainda transportavam seus produtos usando cavalos e carroças por mais de 30 quilômetros até a antiga cidade-mercado.

Andrei mandara uma carruagem aberta para recebê-los, com um condutor carrancudo que ficou apenas observando Jenkins erguer os baús até a traseira do veículo. Enquanto seguiam por uma estrada de terra que cortava as plantações, Fitz recordou sua visita anterior, quando ainda era recém-casado com a princesa e os aldeões haviam se postado à beira da estrada para aplaudi-los. A atmosfera agora era diferente. Os agricultores que trabalhavam nos campos mal erguiam os olhos quando a carruagem passava, enquanto nos vilarejos e aldeias os moradores faziam questão de lhes dar as costas.

Esse tipo de coisa deixava Fitz irritado e de mau humor, mas seu ânimo melhorou ao ver as pedras da velha casa, gastas pelo tempo, serem tingidas de amarelo-claro pelo sol baixo da tarde. Um pequeno grupo de criados, vestido de forma impecável, surgiu pela porta da frente como patos na hora da ração e se alvoroçou em volta da carruagem, abrindo portas e carregando a bagagem. Georgi, caseiro de Andrei, beijou a mão de Fitz e disse, em inglês, palavras obviamente decoradas:

– Bem-vindo de volta ao seu lar na Rússia, conde Fitzherbert.

As casas russas costumavam ser grandiosas porém malcuidadas, e Bulovnir não era exceção. O saguão de pé-direito duplo precisava de pintura, o lustre inestimável estava coberto de poeira e um cachorro havia urinado no piso de mármore. O príncipe Andrei e a princesa Valeriya aguardavam sob um enorme retrato do avô de Bea, que os encarava lá de cima com as sobrancelhas franzidas e olhar severo.

Bea correu para abraçar Andrei.

Valeriya tinha uma beleza clássica, com traços simétricos e cabelos escuros presos em um penteado bem arrumado. Apertou a mão de Fitz e disse em francês:

– Obrigada por terem vindo. Estamos muito felizes em vê-los.

Quando Bea largou Andrei, enxugando as lágrimas, Fitz estendeu a mão para o cunhado apertar. Andrei estendeu sua mão esquerda: a manga direita de seu paletó pendia vazia. Ele estava pálido e magro – como se sofresse de uma doença debilitante – e, embora tivesse apenas 33 anos, sua barba preta ostentava alguns fios grisalhos.

– Vocês não imaginam como fico aliviado em vê-los – disse ele.

– Está havendo algum problema? – quis saber Fitz. Eles falavam francês, idioma que os quatro dominavam.

– Venha até a biblioteca. Valeriya vai levar Bea até o andar de cima.

Eles se separaram das mulheres e adentraram um cômodo empoeirado cheio de livros encadernados em couro que não pareciam ser lidos com frequência.

– Pedi um chá. Infelizmente, não temos xerez.

– Chá está ótimo. – Fitz se acomodou em uma cadeira. Sua perna ferida doía por conta da longa viagem. – O que está acontecendo?

– Você está armado?

– Sim, na verdade estou. Trouxe meu revólver de serviço na bagagem. – Fitz tinha um Webley Mark V que havia recebido do Exército em 1914.

– Por favor, mantenha-o ao alcance da mão. Eu ando com o meu o tempo todo. – Andrei abriu o paletó, revelando um cinto e um coldre.

– É melhor me dizer por quê.

– Os camponeses criaram um comitê da terra. Alguns socialistas revolucionários vieram falar com eles e colocaram ideias idiotas em suas cabeças. Eles alegam ter o direito de confiscar todas as terras que eu não esteja cultivando para dividi-las entre si.

– Você já não passou por isso antes?

– Sim, na época do meu avô. Nós enforcamos três camponeses e achamos que o problema estivesse resolvido. Mas essas ideias perniciosas ficaram adormecidas e tornaram a brotar há pouco tempo.

– O que você fez desta vez?

– Passei um sermão neles, lhes mostrei que perdi o braço para defendê-los dos alemães e eles se acalmaram... até alguns dias atrás, quando meia dúzia de homens da região voltou do Exército. Eles disseram que foram dispensados, mas eu tenho certeza de que são desertores. Infelizmente, é impossível verificar.

Fitz aquiesceu. A ofensiva Kerenski tinha sido um fracasso e os alemães e austríacos haviam contra-atacado. Isso deixara os russos em frangalhos – e os alemães agora estavam a caminho de Petrogrado. Milhares de soldados russos tinham abandonado o campo de batalha para voltar às suas aldeias.

– Eles trouxeram seus fuzis, além de pistolas que devem ter roubado de oficiais ou tomado de prisioneiros alemães. Seja como for, estão fortemente armados e cheios de ideias subversivas. Um cabo, Feodor Igorovich, parece ser o líder do grupo. Ele disse a Georgi não entender por que eu ainda estava reivindicando a posse de qualquer uma de minhas terras, quanto mais as improdutivas.

– Não entendo o que acontece com os homens no Exército – disse Fitz, exaspe­rado. – Seria de esperar que a experiência lhes ensinasse o valor da autoridade e da disciplina, mas parece acontecer justamente o contrário.

– Temo que as coisas tenham chegado a um estado crítico esta manhã – prosseguiu Andrei. – O irmão mais novo do cabo Feodor, Ivan Igorovich, pôs seu gado para pastar no meu pasto. Georgi descobriu e nós dois fomos reclamar com Ivan. Começamos a tocar seu gado para fora da propriedade. Ele tentou fechar o portão para nos impedir. Eu estava com uma espingarda e lhe dei uma coronhada na cabeça. A maioria desses malditos camponeses tem a cabeça mais dura do que balas de canhão, mas esse era diferente e o pobre coitado caiu e morreu. Os socialistas estão usando isso como pretexto para exaltar os ânimos de todo mundo.

Por educação, Fitz escondeu a própria repulsa. Ele reprovava o costume russo de bater nos inferiores, e não ficava surpreso quando isso conduzia àquele tipo de agitação.

– Você avisou alguém?

– Mandei um recado para a cidade, relatando a morte e solicitando um destacamento de policiais ou soldados para manter a ordem, mas meu mensageiro ainda não voltou.

– Então, por enquanto, estamos sozinhos.

– Sim. Infelizmente, se as coisas piorarem, creio que precisaremos mandar as senhoras embora.

Fitz ficou arrasado. Aquilo era muito pior do que ele previra. Poderiam acabar todos mortos. Aquela viagem tinha sido um erro terrível. Ele precisava levar Bea embora dali quanto antes.

Levantou-se da cadeira. Ciente de que os ingleses costumavam se gabar com estrangeiros de sua frieza em situações de crise, falou:

– É melhor eu ir me trocar para o jantar.

Andrei o conduziu até seu quarto, no andar de cima. Jenkins havia tirado das malas suas roupas para a noite e as passara a ferro. Fitz começou a se despir. Sentia-se um perfeito idiota. Havia posto a si mesmo e à mulher em risco. A impressão que conseguira ter da situação na Rússia era útil, mas o relatório que escreveria não compensava o risco que havia corrido. Ele se deixara convencer pela mulher, o que era sempre um erro. Decidiu que iriam tomar o primeiro trem de volta na manhã seguinte.

Seu revólver estava sobre a penteadeira, junto com as abotoaduras. Ele o testou para ver se estava funcionado, abrindo-o em seguida para carregá-lo com balas Webley calibre .455. Não havia onde colocá-lo em uma casaca. Acabou enfiando a arma no bolso da calça, onde formou uma saliência horrorosa.

Chamou Jenkins para que o criado guardasse suas roupas de viagem e foi até o quarto de Bea. Encontrou-a em pé diante do espelho, apenas de roupa de baixo, experimentando um colar. Ela lhe pareceu mais voluptuosa do que de costume, com os seios e os quadris um pouco mais cheios, e Fitz se perguntou se ela não estaria grávida. Havia sentido um enjoo repentino naquela manhã em Moscou, recordou ele, no carro a caminho da estação de trem. Ele se lembrou da primeira gravidez dela – e isso o levou de volta a uma época que agora considerava perfeita, quando tinha Ethel e Bea e não havia guerra.

Estava prestes a dizer à mulher que eles precisavam partir no dia seguinte quando olhou pela janela e se deteve.

O quarto ficava na parte da frente da casa e dava vista para o terreno da propriedade e para as plantações que se estendiam até a aldeia mais próxima. O que chamara a atenção de Fitz tinha sido uma aglomeração de pessoas. Com um pressentimento terrível, foi até a janela e examinou a área.

Viu cerca de 100 camponeses aproximando-se da casa pelo terreno. Embora ainda fosse dia, muitos carregavam tochas acesas. Alguns, notou Fitz, empunhavam fuzis.

– Puta que pariu – falou.

Bea ficou chocada.

– Fitz! Por acaso esqueceu que eu estou aqui?

– Olhe só para isso – disse ele.

Bea arquejou de espanto.

– Ah, não!

– Jenkins! Jenkins! Você está aí? – gritou Fitz. Abriu a porta de comunicação e viu o criado, com uma expressão amedrontada, pendurando seu terno de viagem em um cabide. – Nós estamos correndo um grande perigo – disse ele. – Precisamos sair daqui em cinco minutos. Vá correndo até a estrebaria, atrele os cavalos a uma carruagem e traga-a até a porta da cozinha o mais rápido que puder.

Jenkins deixou o terno cair no chão e saiu correndo.

Fitz virou-se para Bea:

– Vista um casaco, qualquer um, escolha um par de sapatos confortáveis, depois desça pela escada dos fundos até a cozinha e me espere lá.

Para lhe fazer justiça, ela não ficou histérica: simplesmente fez o que ele mandou.

Fitz saiu do quarto e, mancando o mais rápido que pôde, foi até o quarto de Andrei. Não encontrou o cunhado nem Valeriya.

Desceu até o térreo. Georgi e alguns dos criados homens estavam reunidos no saguão, parecendo assustados. Fitz também estava com medo, mas torceu para que isso não fosse evidente.

Encontrou o príncipe e a princesa na sala de estar. Havia uma garrafa de champanhe aberta no gelo e duas taças haviam sido servidas, mas nenhum dos dois bebia. Andrei estava parado diante da lareira e Valeriya olhava pela janela para a multidão que se aproximava. Os camponeses já estavam quase na porta da casa. Alguns traziam armas de fogo; a maioria portava facas, marretas e foices.

– Georgi vai tentar acalmá-los – disse Andrei. – Se isso não der certo, eu mesmo vou ter que falar com eles.

– Pelo amor de Deus, Andrei – exclamou Fitz. – Já não é mais hora de conversar. Nós precisamos ir embora.

Antes que Andrei pudesse responder, eles ouviram vozes exaltadas no saguão.

Fitz foi até a porta e abriu uma fresta. Viu Georgi discutindo com um jovem camponês alto, cujo bigode farto se estendia pelas faces. Feodor Igorovich, imaginou ele. Os dois estavam cercados por homens e um punhado de mulheres. Algumas pessoas seguravam tochas acesas. Outras se empurravam para entrar pela porta da frente. Era difícil entender o sotaque regional, porém uma frase era gritada repetidas vezes:

– Nós vamos falar com o príncipe!

Andrei também ouviu e passou por Fitz para adentrar o saguão.

– Não... – disse Fitz, mas já era tarde demais.

A turba vaiou e xingou quando Andrei apareceu em trajes de gala. Erguendo a voz, ele disse:

– Se vocês forem todos embora ordeiramente agora mesmo, talvez não fiquem tão encrencados assim.

Feodor gritou de volta:

– Quem está encrencado é você! Você matou meu irmão!

Fitz ouviu Valeriya dizer em voz baixa:

– Meu lugar é ao lado do meu marido. – Antes que Fitz pudesse detê-la, ela também já havia saído para o saguão.

– Eu não queria que Ivan morresse – disse Andrei –, mas ele estaria vivo agora se não tivesse desobedecido à lei e desafiado seu príncipe!

Com um movimento súbito e veloz, Feodor girou o fuzil ao contrário e golpeou Andrei no rosto com a coronha.

Andrei cambaleou para trás, levando uma das mãos à face.

Os camponeses vibraram.

– Foi isso que você fez com Ivan! – gritou Feodor.

Fitz levou a mão ao revólver.

Feodor ergueu o fuzil acima da cabeça. Durante um segundo que pareceu congelado no tempo, o comprido Mosin-Nagant pairou no ar como o machado de um carrasco. Ele então baixou o fuzil, desferindo um golpe violento contra o topo da cabeça de Andrei. Ouviu-se um estalo medonho, e ele caiu.

Valeriya soltou um grito.

Fitz, parado na soleira com a porta entreaberta, desarmou com o polegar a trava do lado esquerdo do cano de seu revólver e mirou em Feodor – mas os camponeses se amontoaram ao redor de seu alvo. Começaram a chutar e espancar Andrei, que jazia desmaiado no chão. Valeriya tentou chegar ao marido para ajudá-lo, porém não conseguiu vencer a multidão.

Um camponês golpeou o retrato do avô carrancudo de Bea com uma foice, rasgando a tela. Um dos homens deu um tiro de espingarda no lustre, espatifando-o em mil pedaços tilintantes. Cortinas se incendiaram de repente: alguém provavelmente ateara fogo nelas com uma tocha.

Fitz já estivera no campo de batalha e aprendera que o heroísmo deveria ser equilibrado com um calculismo frio. Sabia que, sozinho, jamais conseguiria salvar Andrei daquela turba. Mas talvez conseguisse resgatar Valeriya.

Guardou a arma no bolso.

Adentrou o saguão. Todas as atenções estavam voltadas para o príncipe caído de costas no chão. Valeriya estava à beira do grupo, esmurrando inutilmente os ombros dos camponeses à sua frente. Agarrando-a pela cintura, Fitz a ergueu nos braços e carregou-a dali, recuando de volta até a sala de estar. O peso fez sua perna ruim doer como se estivesse em chamas, mas ele cerrou os dentes.

– Me solte! – gritou ela. – Preciso ajudar Andrei!

– Nós não podemos ajudar Andrei! – disse ele. Então mudou a cunhada de posição e jogou seu corpo sobre o ombro, aliviando a pressão na perna. Ao fazer isso, uma bala passou tão perto de Fitz que ele chegou a senti-la cortar o ar. Olhou para trás e viu um soldado uniformizado, todo sorridente, apontando uma pistola para os dois.

Ouviu um segundo tiro e sentiu um impacto. Por um instante, pensou que tivesse sido atingido, porém não sentiu dor, e correu até a porta de comunicação que conduzia à sala de jantar.

Ouviu o soldado gritar:

– Ela está fugindo!

Fitz irrompeu pela porta no instante em que outra bala acertava o batente. Soldados comuns não recebiam treinamento para atirar com pistolas, e às vezes não se davam conta de quanto elas eram menos precisas do que fuzis. Correndo de forma claudicante, ele passou pela mesa posta com esmero, toda prata e cristais, pronta para o jantar de quatro ricos aristocratas. Ouviu que várias pessoas vinham no seu encalço. No final da sala, uma porta conduzia à área da cozinha. Ele entrou por um corredor estreito e foi dar no cômodo seguinte. Uma cozinheira e várias ajudantes haviam parado de trabalhar e estavam imóveis, seus rostos aterrorizados.

Os homens que perseguiam Fitz estavam perto demais. Assim que conseguissem mirar com precisão, ele iria morrer. Precisava fazer alguma coisa para detê-los.

Pôs Valeriya no chão. Ela cambaleou e Fitz viu sangue em seu vestido. Ela havia sido baleada, mas estava viva e consciente. Ele a sentou em uma cadeira e então se virou para o corredor. O soldado sorridente corria em sua direção, disparando a esmo, seguido por vários outros homens que avançavam em fila indiana pelo espaço apertado. Atrás deles, nas salas de jantar e de estar, Fitz viu labaredas.

Ele sacou sua Webley. Era uma arma de ação dupla, portanto não precisava ser rearmada. Depois de passar todo o peso do corpo para sua perna boa, mirou cuidadosamente no ventre do soldado que corria para cima dele. Apertou o gatilho, a arma disparou e o homem caiu no chão de pedra à sua frente. Fitz ouviu as mulheres darem gritos de terror na cozinha.

Disparou imediatamente no homem seguinte, que também caiu. Atirou uma terceira vez em outro homem, com o mesmo resultado. O quarto homem recuou, agachado, em direção à sala de estar.

Fitz bateu a porta da cozinha. Seus perseguidores agora iriam hesitar, tentando encontrar uma maneira de verificar se ele estava à sua espera – e isso talvez lhe desse justamente o tempo de que precisava.

Pegou Valeriya, que parecia estar perdendo os sentidos, no colo. Apesar de nunca ter entrado na cozinha daquela casa, avançou em direção aos fundos. Outro corredor o conduziu através de despensas e lavanderias. Por fim, abriu uma porta que conduzia ao lado de fora.

Ao sair, ofegante, sentindo uma dor infernal na perna ruim, viu a carruagem à espera, com Jenkins sentado no lugar do condutor e Bea lá dentro junto de Nina, que soluçava descontroladamente. Um estribeiro com ar assustado segurava os cavalos.

Ele jogou de qualquer jeito uma Valeriya inconsciente dentro da carruagem, então subiu atrás dela e gritou para Jenkins:

– Vamos! Vamos!

Jenkins açoitou os cavalos, o estribeiro pulou para sair do caminho e a carruagem partiu.

– Você está bem? – perguntou Fitz a Bea.

– Não, mas estou viva e ilesa. E você...?

– Não fui ferido. Mas temo pela vida do seu irmão. – Na realidade, tinha quase certeza de que Andrei estava morto àquela altura, mas não queria dizer isso a ela.

Bea olhou para Valeriya.

– O que aconteceu?

– Acho que ela levou um tiro. – Fitz a observou com mais atenção. O rosto de Valeriya estava branco e imóvel. – Meu Deus do céu!– falou.

– Ela está morta, não está? – indagou Bea.

– Você precisa ser forte.

– Eu serei. – Bea segurou a mão sem vida de sua cunhada. – Pobre Valeriya.

A carruagem seguiu em disparada pela estradinha que cortava a propriedade e passou pela pequena casa em que a mãe de Bea havia morado depois da morte do marido. Fitz olhou para a casa grande. Um pequeno grupo de camponeses frustrados estava parado à porta da cozinha. Um deles mirava um fuzil, e Fitz empurrou a cabeça de Bea para baixo e se abaixou.

Quando tornou a olhar, eles já estavam fora do alcance da arma. Camponeses e empregados saíam da casa por todas as portas. Uma luz estranha iluminava as janelas, e Fitz percebeu que a propriedade estava pegando fogo. Enquanto observava, a fumaça começou a brotar da porta da frente e uma labareda de cor laranja escapou por uma janela aberta, incendiando a trepadeira que subia pela parede externa.

A carruagem então alcançou um promontório e começou a sacolejar colina abaixo, fazendo a velha casa sumir de vista.

 

Outubro e novembro de 1917

– O almirante Von Holtzendorff nos prometeu que os britânicos morreriam de fome em cinco meses – disse Walter com raiva. – Isso foi nove meses atrás.

– Ele cometeu um erro – disse-lhe seu pai.

Walter se conteve para não responder com sarcasmo.

Os dois estavam na sala de Otto no Ministério das Relações Exteriores em Berlim. Otto estava sentado em uma cadeira de madeira esculpida atrás de uma grande escrivaninha. Da parede atrás dele, pendia um retrato do Kaiser Guilherme I, avô do atual monarca, no dia em que havia sido proclamado imperador germânico na Galeria dos Espelhos de Versalhes.

Walter estava furioso com as desculpas esfarrapadas do pai.

– O almirante deu sua palavra de oficial de que nenhum americano poria os pés na Europa – disse. – Segundo o nosso serviço de inteligência, 14 mil deles desembarcaram na França no mês de junho. É isso que dá confiar na palavra de um oficial!

Otto se sentiu atingido pelo que o filho disse.

– Ele fez o que achava melhor para o seu país! – falou, irado. – O que mais um homem pode fazer?

Walter ergueu a voz:

– O senhor ainda me pergunta? Ele pode evitar fazer promessas falsas. Quando não tiver certeza, pode se abster de dizer que tem. Pode falar a verdade, ou então manter a porcaria da boca fechada.

– Von Holtzendorff deu o melhor conselho que pôde.

A debilidade desses argumentos tirava Walter do sério.

– Esse tipo de humildade teria vindo a calhar antes do acontecido. Mas não houve humildade alguma. O senhor estava lá, no Castelo Pless, e sabe o que aconteceu. Von Holtzendorff deu a sua palavra. Ele iludiu o Kaiser. Fez os americanos entrarem na guerra contra nós. Nenhum homem poderia ter prestado um serviço pior ao seu monarca!

– Imagino que você queira que ele renuncie. Mas, nesse caso, quem iria assumir seu lugar?

– Renunciar? – Walter estava explodindo de raiva. – Eu quero que ele ponha o cano do revólver na boca e puxe o gatilho.

Otto fechou a cara.

– Isso é uma coisa terrível de se dizer.

– A morte dele seria uma pequena retribuição por todos aqueles que morreram devido à sua tolice arrogante.

– Vocês jovens não têm nenhum bom senso.

– Como se atreve a me falar sobre bom senso? O senhor e sua geração fizeram a Alemanha entrar em uma guerra que nos deixou em frangalhos e que matou milhões de pessoas. Uma guerra que, depois de três anos, ainda não vencemos.

Otto desviou os olhos. Não podia negar que a Alemanha ainda não havia ganhado a guerra. Os dois adversários viviam um impasse na França. A guerra submarina irrestrita não tinha conseguido cortar o abastecimento dos Aliados. Enquanto isso, o bloqueio naval britânico matava o povo alemão de fome aos poucos.

– Temos que aguardar para ver o que acontece em Petrogrado – disse Otto. – Se a Rússia sair da guerra, o equilíbrio vai mudar.

– Exato – disse Walter. – Tudo agora depende dos bolcheviques.

No início de outubro, Grigori e Katerina foram à casa da parteira.

Grigori agora passava quase todas as noites no apartamento de um quarto perto da Metalúrgica Putilov. Os dois já não faziam amor – era desconfortável demais para ela. Sua barriga estava imensa – a pele esticada feito o couro de uma bola de futebol e o umbigo protuberante, em vez de voltado para dentro. Grigori nunca tinha convivido intimamente com uma mulher grávida, e achava a experiência ao mesmo tempo assustadora e emocionante. Sabia que aquilo tudo era normal, mas, mesmo assim, a ideia de que a cabeça de um bebê distenderia cruelmente o canal estreito que ele tanto amava lhe dava calafrios.

Eles se encaminharam para a casa da parteira Magda, mulher de Konstantin. Vladimir ia sentado nos ombros de Grigori. O menino estava com quase três anos, porém Grigori ainda o carregava sem esforço. Sua personalidade já começava a se desenhar: ao seu modo infantil, ele era inteligente e sério, mais parecido com Grigori do que com seu charmoso e rebelde pai biológico, Lev. Um bebê era como uma revolução, pensou Grigori: você poderia até começar uma, mas era impossível controlar o que seria dela.

A contrarrevolução do general Kornilov tinha sido esmagada antes mesmo de começar. O Sindicato dos Ferroviários garantira que a maioria de suas tropas ficasse presa em desvios nas estradas de ferro, a quilômetros de Petrogrado. Aqueles que conseguiam chegar perto da cidade eram recebidos por bolcheviques, que frustravam seus planos simplesmente dizendo-lhes a verdade, como Grigori havia feito no pátio da escola. Os soldados então se voltavam contra os oficiais que faziam parte da conspiração e os executavam. O próprio Kornilov foi detido e encarcerado.

Grigori ficou conhecido como o homem que fez o exército de Kornilov recuar. Protestou que isso era um exagero, mas a modéstia só fez aumentar seu prestígio. Ele foi eleito para o Comitê Central do Partido Bolchevique.

Trótski saiu da prisão. Os bolcheviques conquistaram 51% dos votos nas eleições municipais de Moscou. O número de membros do partido alcançou 350 mil.

Grigori estava tomado pela sensação inebriante de que qualquer coisa poderia acontecer, incluindo um desastre total. A revolução poderia ser derrotada a qualquer momento. Era isso que ele temia, pois, nesse caso, seu filho cresceria em uma Rússia tão ruim quanto antes. Grigori pensou nos marcos de sua própria infância: o enforcamento do pai, a morte da mãe em frente ao Palácio de Inverno, o padre que baixou a calça do pequeno Lev, o trabalho massacrante na Metalúrgica Putilov. Queria uma vida diferente para o filho.

– Lênin está convocando um levante armado – disse ele a Katerina enquanto caminhavam até a casa de Magda. O líder bolchevique estava escondido fora da cidade, porém enviava um fluxo constante de cartas furiosas incitando o partido a agir.

– Eu acho que ele tem razão – disse Katerina. – Todos estão fartos de governos que falam em democracia mas não fazem nada quanto ao preço do pão.

Como de hábito, Katerina dava voz ao pensamento da maioria dos operários de Petrogrado.

Magda já os aguardava e havia preparado um chá.

– Sinto muito por não ter açúcar – falou. – Há semanas que não consigo arranjar nenhum.

– Mal posso esperar para essa criança nascer – disse Katerina. – Estou tão cansada de carregar todo este peso...

Magda apalpou a barriga de Katerina e disse que ela estava a cerca de duas semanas de dar à luz.

– O parto de Vladimir foi horrível – disse Katerina. – Eu não tinha nenhum amigo, e a parteira era uma vaca siberiana carrancuda chamada Kseniya.

– Eu conheço Kseniya – disse Magda. – Ela é competente, mas um pouco dura.

– Eu que o diga!

Konstantin estava de saída para o Instituto Smolny. Embora o soviete não se reunisse todos os dias, havia assembleias constantes de comitês e grupos especiais. Àquela altura, o governo provisório de Kerenski estava tão fraco que a autoridade do soviete aumentava espontaneamente.

– Ouvi dizer que Lênin voltou à cidade – disse Konstantin a Grigori.

– Sim, ontem à noite.

– Onde ele está hospedado?

– É segredo. A polícia ainda está querendo prendê-lo.

– O que o fez voltar?

– Vamos descobrir amanhã. Ele convocou uma reunião do Comitê Central.

Konstantin saiu para pegar um bonde até o centro da cidade. Grigori acompanhou Katerina até em casa. Quando estava prestes a voltar ao quartel, ela disse:

– Eu me sinto melhor sabendo que Magda vai estar ao meu lado.

– Que bom! – Grigori ainda tinha a sensação de que um parto era mais perigoso do que um levante armado.

– E você também estará comigo – acrescentou ela.

– Não no mesmo quarto – respondeu Grigori com nervosismo.

– Não, é claro que não. Mas vai estar logo atrás da porta, andando de um lado para outro, e isso vai me deixar segura.

– Que bom!

– Você vai estar lá, não vai?

– Vou – respondeu ele. – Aconteça o que acontecer, eu vou estar lá.

Dali a uma hora, quando chegou ao quartel, Grigori o encontrou em polvorosa. No pátio de desfiles, oficiais tentavam carregar vagões com armas e munição, mas sem muito sucesso: todos os comitês de batalhão estavam reunidos ou se preparando para se reunir.

– Kerenski fez o que temíamos! – disse Isaak, agitado. – Está tentando nos mandar para o front.

Grigori sentiu um frio na barriga.

– Mandar quem para o front?

– Toda a guarnição de Petrogrado! As ordens acabam de chegar. Querem que troquemos de lugar com os soldados da linha de frente.

– E que motivo eles deram?

– Dizem que é por causa do avanço alemão. – Os alemães haviam conquistado as ilhas do golfo de Riga e estavam marchando em direção a Petrogrado.

– Que mentira! – disse Grigori, irado. – Isso é uma tentativa de minar o soviete. – E das mais inteligentes, percebeu ele ao refletir sobre a questão. Se os soldados de Petrogrado fossem substituídos por outros que estivessem voltando da frente de batalha, seria preciso dias, talvez semanas de organização para formar novos comitês de soldados e eleger novos delegados para o soviete. Pior ainda: os recém-chegados não teriam a experiência dos últimos seis meses de batalhas políticas, o que significava que elas precisariam ser travadas outra vez. – O que os soldados estão dizendo?

– Eles estão furiosos. Querem que Kerenski negocie a paz, não que os mande para a morte.

– Eles vão se recusar a sair de Petrogrado?

– Não sei. Vai ser útil se tiverem o apoio do soviete.

– Vou cuidar disso.

Grigori selecionou um blindado e dois guarda-costas e atravessou a ponte Liteiny até o Instituto Smolny. Aquilo parecia um revés, pensou, mas talvez pudesse virar uma oportunidade. Até o momento, nem todos os soldados apoiavam os bolcheviques, entretanto, a tentativa de Kerenski de mandá-los para o front talvez pudesse servir de incentivo para os reticentes. Quanto mais pensava no assunto, mais lhe parecia que Kerenski poderia estar cometendo seu maior erro.

O Smolny era um prédio imponente, onde antes funcionava uma escola para filhas de aristocratas. Duas metralhadoras do regimento de Grigori protegiam a entrada. Guardas Vermelhos tentavam verificar a identidade de todos os visitantes – mas Grigori percebeu, com apreensão, que o número de pessoas que entravam e saíam era tão grande que o controle estava longe de ser rigoroso.

No pátio, deparou-se com uma cena de atividade frenética. Blindados, motocicletas, caminhões e carros zanzavam sem parar, competindo por espaço. Uma ampla escadaria conduzia à fileira de arcadas e à colunata clássica. Em uma sala do primeiro andar, Grigori encontrou o comitê executivo do soviete em plena sessão.

Os mencheviques conclamavam os soldados dos quartéis a se prepararem para ser transferidos para o front. Como sempre, pensou Grigori com repulsa, os mencheviques estavam se rendendo sem luta. Ele foi tomado pelo pânico de que a revolução estivesse lhe escapando das mãos.

Foi se juntar aos demais bolcheviques do comitê para conceber uma decisão mais combativa.

– A única forma de defender Petrogrado contra os alemães é mobilizar os operários – disse Trótski.

– Como fizemos durante o putsch de Kornilov – falou Grigori com entusiasmo. – Precisamos de outro Comitê de Reação para se encarregar da defesa da cidade.

Trótski redigiu uma minuta, levantando-se em seguida para fazer a moção.

Os mencheviques ficaram indignados.

– Isso seria criar um segundo centro de comando militar além do quartel-general do Exército! – disse Mark Broido. – Nenhum homem pode servir a dois senhores.

Para desgosto de Grigori, a maior parte dos membros do comitê concordou com esse argumento. A proposta menchevique foi aprovada e Trótski se viu derrotado. Grigori deixou a reunião em desespero. Será que a lealdade dos soldados ao soviete resistiria àquela desfeita?

Na mesma tarde, os bolcheviques se encontraram na Sala 36 e decidiram que não podiam aceitar a decisão do comitê. Eles concordaram em tornar a apresentar sua moção à noite, na assembleia que reuniria todo o soviete.

Da segunda vez, os bolcheviques venceram.

Grigori ficou aliviado. O soviete decidira apoiar os soldados e instituir um comando militar alternativo.

Haviam dado um grande passo rumo à tomada do poder.

No dia seguinte, cheios de otimismo, Grigori e outros líderes bolcheviques saíram discretamente do Instituto Smolny, sozinhos ou em duplas, tomando cuidado para não chamar a atenção da polícia secreta. De lá, seguiram até o apartamento espaçoso de uma camarada, Galina Flakserman, para a assembleia do Comitê Central.

Grigori estava nervoso com a reunião e chegou cedo. Deu a volta no quarteirão, à procura de transeuntes que pudessem ser espiões da polícia, mas não viu ninguém suspeito. Dentro do prédio, inspecionou as diferentes saídas – eram três – e determinou qual seria a rota de fuga mais rápida.

Os bolcheviques se acomodaram ao redor de uma grande mesa de jantar, muitos usando os sobretudos de couro que vinham se tornando uma espécie de uniforme do grupo. Lênin não havia chegado, de modo que começaram sem ele. A ausência do líder preocupou Grigori – talvez ele houvesse sido preso –, mas Lênin chegou às 10 horas, disfarçado com uma peruca que ficava escorregando de sua cabeça e quase o deixava com cara de idiota.

Contudo, a resolução que ele propôs não tinha nada de risível: Lênin convocou um levante armado, liderado pelos bolcheviques, para derrubar o governo provisório e assumir o poder.

Grigori ficou extasiado. É claro que todos queriam um levante armado, porém a maioria dos revolucionários dizia que ainda era cedo. Finalmente, o mais poderoso deles estava dizendo é agora.

Lênin falou durante uma hora. Como sempre, mostrou-se exaltado, batendo na mesa, gritando e insultando os que discordassem dele. Seu estilo o prejudicava – a vontade que se tinha era de votar contra alguém tão grosseiro. Mas, apesar disso, ele era persuasivo. Tinha um amplo conhecimento, seu instinto político era infalível e poucos conseguiam não se abalar pelos golpes implacáveis de sua argumentação lógica.

Desde o início, Grigori ficou do lado de Lênin. O mais importante era conquistar o poder e pôr fim àquela hesitação, pensou. Todos os outros problemas poderiam ser solucionados mais tarde. Mas será que os outros iriam concordar?

Zinoviev discursou contra. Normalmente um homem bonito, ele também havia mudado de aparência para enganar a polícia. Tinha deixado a barba crescer e cortado a cabeleira preta e encaracolada. Segundo ele, a estratégia de Lênin era arriscada demais. Ele temia que o levante servisse de pretexto para um golpe militar da direita. Queria que o Partido Bolchevique se concentrasse em vencer as eleições para a Assembleia Constituinte.

Essa argumentação tímida enfureceu Lênin.

– O governo provisório nunca vai organizar uma eleição nacional! – disse ele. – Qualquer um que pense o contrário é um tolo, um ingênuo.

Trótski e Stálin apoiaram o levante, mas o primeiro irritou Lênin ao dizer que deveriam esperar o Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, marcado para começar dali a 10 dias.

Grigori achou que era uma boa ideia – Trótski sempre demonstrava sensatez –, mas Lênin o surpreendeu ao vociferar:

– Não!

– Nós provavelmente conseguiremos a maioria entre os delegados... – falou Trótski.

– Se o congresso formar um governo, ele está fadado a ser de coalizão! – disse Lênin, enfurecido. – Somente os bolcheviques de centro serão aceitos nele. Quem poderia desejar isso, a não ser um traidor contrarrevolucionário?

O insulto fez Trótski corar, mas ele ficou calado.

Grigori percebeu que Lênin tinha razão. Como sempre, ele estava pensando mais à frente do que todos os demais. Em uma coalizão, a primeira exigência dos mencheviques seria que o primeiro-ministro fosse um moderado – e provavelmente se contentariam com qualquer um, menos Lênin.

De repente Grigori se deu conta – ao mesmo tempo que o restante do comitê, imaginou ele – de que a única forma de Lênin se tornar primeiro-ministro era por meio de um golpe.

A discussão exaltada se estendeu madrugada adentro. No fim das contas, o levante armado foi aprovado por 10 votos a 2.

Lênin, no entanto, não conseguiu tudo o que queria. Ainda não havia data marcada para o golpe.

Depois da reunião, Galina trouxe um samovar e serviu queijo, linguiça e pão aos revolucionários esfomeados.

Quando era criança, nas terras do príncipe Andrei, Grigori certa vez assistira ao auge da caçada de um cervo. Os cachorros haviam encurralado um macho logo nos arredores do vilarejo e todos tinham ido ver. Quando Grigori chegou, o animal estava morrendo e os cães já devoravam avidamente os intestinos que se esparramavam de seu ventre aberto, enquanto os caçadores a cavalo comemoravam tomando conhaque. No entanto, o pobre cervo ainda esboçou uma última tentativa de reação. Ele brandiu sua enorme galhada, empalando um dos cães e ferindo outro. Por um instante, chegou a parecer capaz de se levantar, mas então desabou de volta sobre o solo manchado de sangue e fechou os olhos.

Para Grigori, o primeiro-ministro Kerenski, líder do governo provisório, era igual ao cervo. Todos sabiam que ele estava derrotado – menos o próprio.

À medida que o frio intenso do inverno russo se fechava ao redor de Petrogrado como um punho, a crise chegou ao ápice.

O Comitê de Reação, logo rebatizado de Comitê Revolucionário Militar, era dominado pela personalidade carismática de Trótski. Ele não era um homem bonito – com seu narigão, sua testa grande e seus olhos esbugalhados que encaravam o mundo por trás de lentes sem armação –, mas era charmoso e persuasivo. Enquanto Lênin gritava e intimidava, Trótski argumentava e seduzia. Grigori desconfiava que ele fosse tão irredutível quanto Lênin, mas que sabia disfarçar melhor.

Em 5 de novembro, uma segunda-feira, dois dias antes do início do Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, Grigori foi a uma assembleia geral de soldados na Fortaleza de Pedro e Paulo, convocada pelo Comitê Revolucionário Militar. A assembleia começou ao meio-dia e se estendeu por toda a tarde, com centenas de soldados travando debates políticos na praça em frente à fortaleza, enquanto seus oficiais bufavam, impotentes. Então Trótski chegou, ao som de aplausos ensurdecedores. Os soldados o escutaram e, em seguida, votaram a favor de obedecer ao comitê em vez de ao governo – ou seja, a Trótski, e não a Kerenski.

Enquanto se afastava da praça, Grigori ponderou que o governo jamais iria tolerar que uma das mais importantes unidades militares do país declarasse lealdade a terceiros. Os canhões da fortaleza ficavam do outro lado do rio, bem em frente ao Palácio de Inverno, quartel-general do governo provisório. Agora, pensou ele, Kerenski sem dúvida iria reconhecer a derrota e renunciar.

No dia seguinte, Trótski anunciou precauções contra um golpe contrarrevolucionário por parte do Exército. Ordenou à Guarda Vermelha e aos soldados leais ao soviete que ocupassem as pontes, as estações de trem e as delegacias de polícia, além das agências de correio, de telégrafo, a central telefônica e o banco estatal.

Grigori estava ao lado de Trótski, transformando a enxurrada de comandos daquele grande homem em instruções detalhadas para unidades militares específicas e despachando as ordens cidade afora por mensageiros a cavalo, de bicicleta ou de carro. Achava que as “precauções” de Trótski se assemelhavam muito a um golpe.

Para seu espanto e alegria, houve pouca resistência.

Um espião no Palácio Marinsky informou que o primeiro-ministro Kerenski havia solicitado um voto de confiança ao pré-parlamento – o órgão que havia fracassado de maneira tão canhestra na tarefa de criar a Assembleia Constituinte. O pré-parlamento recusou. Ninguém deu muita importância ao fato. Kerenski já fazia parte do passado: era apenas mais um incapaz que havia tentado governar a Rússia e falhado. Ele voltou ao Palácio de Inverno, onde seu governo impotente seguiu fingindo governar.

Lênin estava escondido no apartamento de outra camarada, Margarita Fofanova. O Comitê Central lhe dera ordens para não sair pela cidade, com medo de que fosse preso. Grigori era um dos poucos a saber onde ele estava. Às oito da noite, Margarita chegou ao Instituto Smolny com um recado de Lênin ordenando aos bolcheviques que iniciassem uma insurreição armada imediatamente. Trótski esbravejou:

– E o que ele acha que nós estamos fazendo?

Grigori, no entanto, achou que Lênin tinha razão. Apesar de tudo, os bolcheviques ainda não haviam conquistado plenamente o poder. Assim que o Congresso dos Sovietes se reunisse, ele teria autoridade total – e, nesse caso, mesmo que os bolcheviques fossem a maioria, o resultado seria mais um governo de coalizão baseado em compromissos.

O congresso estava marcado para começar no dia seguinte, às duas da tarde. Apenas Lênin parecia compreender a urgência da situação, pensou Grigori com uma sensação de desespero. Ele precisava estar ali, no centro dos acontecimentos.

Grigori decidiu ir buscá-lo.

A noite estava gelada, com um vento que soprava do norte e parecia varar sem dificuldade o sobretudo de couro que Grigori usava por cima do uniforme de sargento. O centro da cidade parecia surpreendentemente calmo: pessoas de classe média bem-vestidas saíam dos teatros e se encaminhavam a pé para restaurantes iluminados, enquanto pedintes os importunavam querendo esmola e prostitutas sorriam nas esquinas. Grigori meneou a cabeça para um camarada que vendia um panfleto assinado por Lênin intitulado “Será que os bolcheviques vão conseguir se manter no poder?”. Grigori não comprou um exemplar. Já conhecia a resposta para essa pergunta.

O apartamento de Margarita ficava na extremidade norte do distrito de Vyborg. Grigori não podia ir até lá de carro, pois tinha medo de chamar atenção para o esconderijo de Lênin. Caminhou até a Estação Finlândia e lá pegou um bonde. A viagem foi longa, e ele passou a maior parte do tempo imaginando se Lênin iria se recusar a acompanhá-lo.

Contudo, para seu grande alívio, Lênin quase não precisou ser convencido.

– Sem o senhor, acredito que os outros camaradas não darão o último passo decisivo – disse Grigori, e isso bastou para persuadi-lo.

Para que Margarita não pensasse que ele havia sido preso, o líder deixou um recado sobre a mesa da cozinha. O texto dizia: “Fui para onde você não queria que eu fosse. Adeus, Ilitch.” Os membros do partido o chamavam de Ilitch, seu segundo nome de batismo.

Grigori verificou a pistola enquanto Lênin vestia uma peruca, uma boina de operário e um sobretudo surrado. Os dois então partiram.

O sargento se manteve alerta, com medo de que topassem com um destacamento da polícia ou uma patrulha do Exército e Lênin fosse reconhecido. Decidiu que não permitiria que Lênin fosse capturado – se necessário, atiraria sem hesitação.

Eles eram os únicos passageiros do bonde. Lênin perguntou à condutora o que ela achava dos últimos desdobramentos políticos.

Enquanto saíam da Estação Finlândia, ouviram o barulho de cascos de cavalos e se esconderam, mas era apenas um grupo de cadetes legalistas procurando encrenca.

À meia-noite, Grigori, sentindo-se triunfante, chegou com Lênin ao Instituto Smolny.

O líder foi imediatamente até a Sala 36 e convocou uma reunião do Comitê Central Bolchevique. Trótski relatou que a Guarda Vermelha agora controlava muitos dos pontos estratégicos da cidade. Para Lênin, no entanto, isso não bastava. Por motivos simbólicos, afirmou ele, as tropas revolucionárias precisavam capturar o Palácio de Inverno e prender os ministros do governo provisório. Esse seria o ato que convenceria o povo de que o poder havia passado, de forma definitiva e irrevogável, para as mãos dos revolucionários.

Grigori soube que ele tinha razão.

E todos os outros também.

Trótski começou a planejar a tomada do Palácio de Inverno.

Naquela noite, Grigori não voltou para junto de Katerina.

Não podia haver erros.

Grigori sabia que o último ato da revolução tinha de ser decisivo. Certificou-se de que as ordens estivessem claras e chegassem a seu destino na hora certa.

O plano não era complicado, mas ele estava aflito, achando que o cronograma de Trótski era otimista demais. O grosso da força de ataque seria formado por marinheiros revolucionários. A maioria deles viria de trem e navio de Helsingfors, capital da região finlandesa. Eles tinham partido às três da manhã. Outros marinheiros viriam de Kronstadt, base naval que ficava em uma ilha a pouco mais de 30 quilômetros da costa.

O ataque estava marcado para começar ao meio-dia.

Como uma operação de guerra, ele iria iniciar com uma barragem de artilharia: os canhões da Fortaleza de Pedro e Paulo disparariam em direção ao outro lado do rio para demolir os muros do palácio. Então os soldados e marinheiros ocupariam o prédio. Segundo Trótski, tudo estaria terminado às duas da tarde, hora marcada para o início do Congresso dos Sovietes.

Lênin queria se levantar durante a abertura para anunciar que os bolcheviques já haviam conquistado o poder. Essa era a única forma de evitar mais um governo indeciso, incompetente e baseado em compromissos – a única forma de garantir que Lênin ficasse no comando.

Grigori temia que as coisas não corressem tão depressa quanto Trótski esperava.

A segurança do Palácio de Inverno era falha, de modo que, ao raiar do dia, Grigori conseguiu infiltrar Isaak para uma missão de reconhecimento. Ele voltou relatando haver no prédio cerca de 300 soldados legalistas. Caso estivessem bem organizados e lutassem com coragem, seria uma batalha cruenta.

Isaak também descobriu que Kerenski tinha abandonado a cidade. Como a Guarda Vermelha estava no controle das estações, ele não havia conseguido fugir de trem e acabara partindo em um carro confiscado.

– Como um homem que não consegue pegar um trem na própria capital pode ser primeiro-ministro? – indagou Isaak.

– De toda forma, ele se foi – respondeu Grigori com satisfação. – E duvido que volte algum dia.

No entanto, Grigori ficou pessimista quando deu meio-dia e nenhum dos marinheiros tinha aparecido.

Ele atravessou a ponte até a Fortaleza de Pedro e Paulo para verificar se os canhões estavam prontos. Para seu horror, descobriu que se tratavam de peças de museu: eram meramente ornamentais, não podiam ser disparados. Mandou então Isaak sair em busca de peças de artilharia que funcionassem.

Correu de volta até o Smolny para avisar Trótski de que seu plano estava atrasado. O guarda na porta lhe disse:

– Alguém veio aqui atrás de você, camarada. Era algo sobre uma parteira.

– Não posso cuidar disso agora – respondeu ele.

As coisas estavam acontecendo muito depressa. Grigori foi informado de que a Guarda Vermelha havia tomado o Palácio Marinsky e dispersado o pré-parlamento sem derramamento de sangue. Os bolcheviques que estavam encarcerados haviam sido soltos. Trótski ordenara a todos os soldados fora de Petrogrado que ficassem onde estavam – e eles estavam lhe obedecendo em vez de a seus oficiais. Lênin redigia um manifesto que começava assim: “Aos cidadãos da Rússia: o governo provisório foi derrubado!”

– Mas o ataque ainda não começou – disse Grigori a Trótski, angustiado. – Não vejo como poderia começar antes das três.

– Não se preocupe – disse Trótski. – Podemos atrasar a abertura do congresso.

Grigori voltou para a praça em frente ao Palácio de Inverno. Às duas da tarde, finalmente, viu o navio lança-minas Amur adentrar o Neva com mil marinheiros da base de Kronstadt no convés. Os operários de Petrogrado coalharam as margens do rio para saudar sua chegada.

Se Kerenski tivesse posto algumas minas no canal estreito, teria mantido os marinheiros fora da cidade e derrotado a revolução. Porém não havia mina alguma, de modo que os marinheiros começaram a desembarcar com suas japonas de lã e fuzis nas mãos. Grigori se preparou para posicioná-los ao redor do Palácio de Inverno.

No entanto, para sua grande irritação, o plano continuava prejudicado por contratempos. Isaak encontrou um canhão e, com muito esforço, conseguiu arrastá-lo até a posição correta, mas então descobriu que não havia balas para ele. Enquanto isso, os soldados legalistas erguiam barricadas dentro do palácio.

Louco de tanta frustração, Grigori voltou para o Smolny.

Uma sessão extraordinária do soviete de Petrogrado estava prestes a começar. O espaçoso saguão da escola para meninas, pintado de um branco virginal, estava lotado de centenas de delegados. Grigori subiu no palanque e sentou-se ao lado de Trótski, que estava prestes a abrir a sessão.

– O ataque foi adiado devido a uma série de problemas – falou.

Trótski recebeu a má notícia tranquilamente. Lênin teria ficado possesso.

– Quando vocês podem tomar o palácio? – perguntou ele.

– Para ser realista, às seis da tarde.

Trótski meneou a cabeça com calma, levantando-se para se dirigir ao soviete reunido.

– Em nome do Comitê Revolucionário Militar, eu declaro que o governo provisório não existe mais! – clamou.

Ouviu-se um estrondo de vivas e gritos. Espero que eu consiga transformar essa mentira em realidade, pensou Grigori.

Quando o barulho diminuiu, Trótski listou as conquistas da Guarda Vermelha: a captura, durante a noite, de estações de trem e outros pontos estratégicos, e a dispersão do pré-parlamento. Ele também anunciou que vários ministros do governo tinham sido presos.

– O Palácio de Inverno não foi tomado, mas seu destino será decidido a qualquer momento! – Os homens tornaram a vibrar.

– Vocês estão se antecipando à vontade do Congresso dos Sovietes! – gritou um dissidente.

Esse era um argumento democrático moderado, do tipo que o próprio Grigori teria defendido antigamente, antes de se tornar um realista.

A resposta de Trótski foi tão rápida que ele já deveria estar esperando a crítica.

– Os operários e soldados já se anteciparam à vontade do Congresso ao se rebelarem – retrucou.

De repente, um rumor atravessou o salão. As pessoas começaram a se levantar. Grigori olhou em direção à porta, perguntando-se qual o motivo daquilo. Então viu Lênin entrar. Os delegados começaram a ovacioná-lo. Quando Lênin subiu ao palanque, o barulho se tornou ensurdecedor. Ele e Trótski ficaram lado a lado, sorridentes, e se curvavam para agradecer à multidão, que aplaudia de pé o golpe que ainda não havia ocorrido.

Grigori, incapaz de suportar a tensão entre a vitória que estava sendo proclamada no salão e a realidade da desordem e dos atrasos do lado de fora, foi embora dali.

Os marinheiros ainda não haviam chegado de Helsingfors e os canhões da fortaleza ainda não estavam prontos para disparar. Ao anoitecer, uma chuva fina passou a cair. Em pé à beira da praça, com o Palácio de Inverno à sua frente e o quartel-general do Estado-Maior às suas costas, Grigori viu um grupo de cadetes sair do prédio. Os distintivos de seus uniformes informavam que pertenciam à Escola de Artilharia Mikhailovsky, e eles estavam indo embora, levando consigo quatro peças de artilharia pesada. Grigori os deixou passar.

Às sete da noite, ordenou que uma força de soldados e marinheiros entrasse no quartel-general do Estado-Maior e assumisse o controle. Estes não encontraram oposição.

Às oito, os 200 cossacos que vigiavam o palácio decidiram voltar para seu quartel e Grigori os deixou passar pelo cordão de segurança. Percebeu que aqueles atrasos irritantes talvez não fossem uma tragédia completa: conforme o tempo passava, as forças que teria de enfrentar estavam diminuindo.

Logo antes das dez, Isaak informou que os canhões da Fortaleza de Pedro e Paulo finalmente estavam prontos. Grigori ordenou que fosse disparado um tiro de festim, seguido de uma pausa. Conforme já esperava, isso fez mais soldados fugirem do palácio.

Seria tão fácil assim?

Um alarme soou a bordo do Amur. Ao tentar descobrir o motivo, Grigori olhou rio abaixo e viu as luzes de uma embarcação que se aproximava. Sentiu o coração gelar. Teria Kerenski conseguido enviar tropas leais para salvar seu governo no último segundo? Mas, logo em seguida, uma vibração irrompeu no convés do Amur e Grigori descobriu que os recém-chegados eram os marinheiros de Helsingfors.

Assim que o navio foi ancorado com segurança, ele enfim deu a ordem para o início do bombardeio.

Ouviu-se um estrondo de artilharia. Algumas bombas explodiram no ar, iluminando as embarcações no rio e o palácio sitiado. Grigori viu uma janela de canto no terceiro andar ser atingida e imaginou se haveria alguém lá dentro. Para seu assombro, os bondes iluminados continuavam a cruzar normalmente a ponte Troitsky e a ponte do Palácio ali perto.

Aquilo, é claro, não se parecia em nada com o campo de batalha. No front, centenas de peças de artilharia disparavam ao mesmo tempo, milhares até; ali, eram apenas quatro. Os intervalos entre os disparos eram longos, e era espantoso ver quantos deles se perdiam, caindo antes do alvo e afundando no rio sem causar dano algum.

Grigori mandou cessar o bombardeio e enviou pequenos grupos de soldados para dentro do palácio em missão de reconhecimento. Ao voltarem, estes informaram que os poucos guardas restantes não estavam oferecendo nenhuma resistência.

Pouco depois da meia-noite, Grigori comandou a entrada de um contingente maior de soldados no palácio. Seguindo uma estratégia preestabelecida, eles se espalharam pelo prédio, correndo ao longo dos corredores escuros imponentes, neutralizando os opositores e procurando ministros do governo. O palácio parecia um quartel caótico: havia colchões de soldados espalhados sobre o piso de tacos dos salões nobres ricamente decorados e lixo por toda parte – guimbas de cigarro, cascas de pão e garrafas vazias com rótulos franceses, que os guardas tinham provavelmente roubado da adega suntuosa do czar.

Grigori ouviu alguns tiros esparsos, mas não havia muito combate ali. Ele não encontrou nenhum ministro no térreo. Ocorreu-lhe que eles poderiam ter conseguido fugir e teve um momento de pânico. Não queria ser obrigado a relatar a Trótski e Lênin que os membros do governo de Kerenski tinham lhe escapado por entre os dedos.

Acompanhado por Isaak e por dois outros homens, ele subiu correndo uma ampla escadaria para verificar o andar seguinte. Juntos, arrombaram as portas duplas que davam para uma sala de reunião e ali encontraram o que restava do governo provisório: um punhado de homens de terno e gravata amedrontados, sentados diante de uma mesa e em poltronas espalhadas pela sala, com os olhos esbugalhados de apreensão.

Um deles conseguiu reunir um vestígio de autoridade.

– O governo provisório está aqui... O que vocês querem? – perguntou ele.

Grigori reconheceu Alexander Konovalov, o magnata da indústria têxtil que era vice do primeiro-ministro Kerenski.

– Vocês estão todos presos – respondeu Grigori. Foi um bom momento, e ele o saboreou.

Então voltou-se para Isaak:

– Anote os nomes deles. – Reconheceu todos os presentes. – Konovalov, Maliantovich, Nikitin, Tereschenko... – Assim que a lista ficou pronta, acrescentou: – Leve-os até a Fortaleza de Pedro e Paulo e ponha-os em celas. Eu vou até o Smolny dar a boa notícia a Trótski e Lênin.

Ele saiu do palácio. Ao atravessar a praça, deteve-se por alguns instantes, recordando a mãe. Ela havia morrido 12 anos antes naquele mesmo local, fuzilada pelos guardas do czar. Grigori se virou e olhou para o imenso palácio, com suas fileiras de colunas brancas e o luar se refletindo nas centenas de janelas. Em um acesso de raiva, brandiu o punho em direção ao prédio.

– Esse é o castigo, seus demônios! – vociferou. – Esse é o castigo por terem matado minha mãe.

Ele aguardou até recuperar a calma. Não sei nem com quem estou falando, pensou. Pulou para dentro de seu blindado ocre, que o esperava ao lado de uma barricada demolida.

– Para o Smolny – disse para o soldado ao volante.

Durante o curto trajeto, começou a se sentir eufórico. Agora nós realmente conseguimos, disse a si mesmo. Somos os vencedores. O povo derrotou seus algozes.

Subiu correndo os degraus do Smolny e entrou no salão. O lugar estava abarrotado e o Congresso dos Sovietes já estava acontecendo. Trótski não conseguira atrasá-lo por muito tempo. Essa era uma péssima notícia. Seria típico dos mencheviques e dos outros revolucionários covardes exigir um lugar no novo governo, por mais que não tivessem feito nada para derrubar o antigo.

Uma bruma de fumaça de tabaco pairava ao redor dos lustres. Os membros do comitê executivo estavam sentados no palanque. Grigori, que conhecia quase todos, analisou a composição do grupo. Observou que os bolcheviques ocupavam 14 das 25 cadeiras. Isso significava que o partido tinha o maior número de delegados. Contudo, ficou horrorizado ao ver que o grupo era presidido por Kamenev – bolchevique moderado que havia votado contra o levante armado! Como Lênin alertara, o congresso estava se preparando para outro acordo fraco, repleto de concessões.

Grigori correu os olhos pelos delegados presentes no salão e viu Lênin na primeira fila. Aproximou-se e disse ao homem na cadeira ao lado:

– Preciso falar com Ilitch... deixe-me sentar no seu lugar. – O homem pareceu contrariado, mas depois de um instante se levantou.

Grigori cochichou no ouvido de Lênin.

– Nós tomamos o Palácio de Inverno – disse. Citou então os nomes dos ministros que haviam sido detidos.

– Tarde demais – respondeu Lênin, desolado.

Era o que Grigori temia.

– O que está havendo aqui?

Lênin ficou vermelho de raiva.

– Martov fez a moção. – Julius Martov era um velho inimigo de Lênin. Ele sempre quisera que o Partido Operário Social-Democrata Russo fosse como o Partido Trabalhista da Grã-Bretanha e lutasse pelos direitos dos trabalhadores pela via democrática. E tinha sido sua disputa com Lênin quanto a essa questão que cindira o partido, nos idos de 1903, em suas duas facções atuais: os bolcheviques de Lênin e os mencheviques de Martov. – Ele defendeu o fim do combate nas ruas seguido por negociações para um governo democrático.

– Negociações? – perguntou Grigori, incrédulo. – Mas nós tomamos o poder!

– Nós apoiamos a proposta – disse Lênin em tom monocórdio.

Grigori ficou pasmo.

– Por quê?

– Se tivéssemos votado contra, teríamos perdido. Dos 670 delegados, 300 são nossos. Somos o maior partido por uma boa margem, mas não temos a maioria absoluta.

Grigori quase chorou. O golpe chegara tarde demais. Haveria uma nova coalizão, cuja composição seria ditada por acordos e concessões, e o governo continuaria a hesitar enquanto os russos passavam fome dentro do país e morriam no front.

– Mesmo assim, eles estão nos atacando – acrescentou Lênin.

Grigori prestou atenção no orador da vez, um homem que ele não conhecia.

– Este congresso foi convocado para debater sobre o novo governo, mas o que estamos vendo? – dizia o orador com raiva. – Uma tomada irresponsável do poder já ocorreu, sem que fosse ouvida a vontade do congresso! Precisamos salvar a revolução dessa empreitada insensata.

Houve uma enxurrada de protestos dos delegados bolcheviques. Grigori ouviu Lênin exclamar:

– Porco! Miserável! Traidor!

Kamenev pediu ordem.

O discurso seguinte, no entanto, também se mostrou fortemente hostil para com os bolcheviques e seu golpe e foi seguido por outros no mesmo tom. O menchevique Lev Khinchuk defendeu negociações com o governo provisório, e a indignação que isso causou entre os delegados foi tão violenta que por alguns minutos ele não pôde continuar. Por fim, gritando para se fazer ouvir acima do barulho, ele falou:

– Nós estamos abandonando este congresso! – E então se retirou.

Grigori percebeu que a tática deles seria dizer que, com a sua retirada, o congresso perdera a autoridade.

– Desertores! – bradou alguém, e o grito foi repetido por todo o salão.

Grigori ficou consternado. Haviam esperado tanto por aquele congresso... Seus delegados representavam a vontade do povo russo. Mas ele estava se desintegrando.

Ele olhou para Lênin. Para seu espanto, os olhos do líder brilhavam de contentamento.

– Que maravilha – comentou ele. – Estamos salvos! Jamais imaginei que eles fossem cometer um erro desses.

Aquelas palavras não faziam sentido para Grigori. Teria Lênin perdido a razão?

O orador seguinte foi Mikhail Gendelman, um proeminente socialista revolucionário.

– Levando em conta a tomada de poder pelos bolcheviques – disse ele –, responsabilizando-os por essa atitude inconsequente e criminosa e considerando impossível colaborar com eles, a facção dos socialistas revolucionários está abandonando o congresso! – E, com essas palavras, também se retirou, seguido por todos os seus correligionários. O grupo foi alvo de xingamentos, vaias e assobios por parte dos delegados remanescentes.

Grigori ficou arrasado. Como seu triunfo podia ter degringolado, tão depressa, em tamanha desordem?

Lênin, contudo, parecia ainda mais satisfeito.

Uma série de delegados dos soldados se pronunciou a favor do golpe bolchevique, e Grigori começou a se animar, mas continuava sem entender o júbilo de Lênin. Ilitch passara a rabiscar algo em um bloco de anotações. À medida que os discursos se sucediam, corrigia e reescrevia suas palavras. Por fim, entregou duas folhas de papel a Grigori.

– Isto deve ser proposto ao congresso para aprovação imediata – disse ele.

Era uma declaração longa, cheia da retórica habitual de Lênin, porém os olhos de Grigori foram logo atraídos para a frase crucial: “O congresso decide, por meio desta, assumir o controle do governo.”

Era o que Grigori queria.

– Quem deve ler? Trótski? – perguntou.

– Não, Trótski não. – Lênin correu os olhos pelos homens e pela única mulher sobre o palanque. – Lunacharsky – falou.

Lênin achava que Trótski já havia conquistado glória suficiente, supôs Grigori.

Levou a declaração até Lunacharsky, que acenou para o presidente do congresso. Poucos minutos depois, Kamenev convocou Lunacharsky, que se levantou para ler as palavras de Lênin.

Cada frase foi recebida por um rugido de aprovação.

O presidente convocou uma votação.

E então, por fim, Grigori começou a entender por que Lênin estava feliz. Sem a presença dos mencheviques e dos socialistas revolucionários, os bolcheviques possuíam a maioria esmagadora. Eles poderiam fazer o que quisessem. Não havia razão para concessões.

Os delegados votaram. Apenas dois foram contra a proposta.

Os bolcheviques haviam conquistado o poder – e agora tinham legitimidade.

O presidente encerrou a sessão. Eram cinco da manhã de quinta-feira, dia 8 de novembro. A Revolução Russa obtivera a vitória. E o poder estava nas mãos dos bolcheviques.

Grigori saiu do salão atrás de Josef Stálin, o revolucionário da Geórgia, e de outro homem. O companheiro de Stálin usava um sobretudo de couro e um cinturão de balas, como muitos dos bolcheviques, mas alguma coisa nele disparou um alarme na memória de Grigori. Quando o homem se virou para dizer alguma coisa a Stálin, ele o reconheceu, e um frêmito de choque e horror atravessou seu corpo.

Era Mikhail Pinsky.

Ele havia se juntado à revolução.

Grigori estava exausto. Há dois dias que não dormia. Andara tão ocupado que mal tinha visto os dias passarem. Nunca havia viajado em um veículo tão desconfortável quanto o blindado, mas mesmo assim adormeceu dentro dele a caminho de casa. Quando Isaak o acordou, viu que estavam em frente ao seu prédio. Perguntou-se quanto Katerina saberia sobre o ocorrido. Torceu para ela não ter escutado muita coisa, pois assim teria o prazer de lhe contar sobre o triunfo da revolução.

Ele entrou no edifício e subiu a escada, cambaleante. Havia luz debaixo da porta.

– Sou eu – disse, adentrando o quarto.

Katerina estava sentada na cama com um bebê minúsculo no colo.

Grigori foi tomado pela felicidade.

– O bebê nasceu! – exclamou. – Como ele é lindo...

– É uma menina.

– Uma menina!

– Você prometeu que estaria aqui – disse Katerina em tom acusador.

– Mas eu não sabia! – Ele olhou para a criança. – Ela tem cabelos pretos, como eu. Como vamos chamá-la?

– Eu mandei um recado.

Grigori se lembrou do guarda lhe dizendo que alguém estava à sua procura. Era algo sobre uma parteira, dissera o homem.

– Oh, meu Deus – falou Grigori. – Eu estava tão ocupado...

– Magda estava fazendo outro parto – disse Katerina. – O meu teve que ser com Kseniya.

Grigori ficou preocupado.

– Você sofreu?

– É claro que sofri – disparou Katerina.

– Eu sinto muito. Mas escute! Houve uma revolução! Uma revolução de verdade, desta vez... nós assumimos o poder! Os bolcheviques vão formar um governo. – Ele se curvou para beijá-la.

– Foi o que eu imaginei – disse ela, e virou o rosto para o outro lado.

 

Março de 1918

Walter estava em pé no telhado de uma pequena igreja medieval no vilarejo de Villefranche-sur-Oise, não muito longe de Saint-Quentin. Durante algum tempo, aquela havia sido uma zona de descanso e recreação da retaguarda alemã, e, tirando o melhor proveito possível da situação, os habitantes franceses tinham vendido ali omeletes e vinho – quando conseguiam obtê-los – aos conquistadores. “Malheur la guerre”, diziam. “Pour nous, pour vous, pour tout le monde.” “A guerra é uma tragédia – para nós, para vocês, para todo mundo.” Desde então, pequenos avanços das forças aliadas tinham enxotado os moradores dali, posto abaixo metade das construções e deixado o vilarejo mais próximo do front: agora, era uma zona de agrupamento.

Lá embaixo, na rua estreita que cortava o centro do vilarejo, soldados alemães marchavam em linhas de quatro. Já fazia horas que estavam passando, milhares deles. Tinham um aspecto cansado, porém feliz, muito embora devessem saber que estavam se encaminhando para o front. Eles haviam sido transferidos da frente oriental para lá. Para quem esteve na Polônia em fevereiro, a França em março era um progresso, pensou Walter, seja lá o que os esperasse ali.

Ver aquilo encheu seu coração de alegria. Aqueles homens tinham sido liberados pelo armistício entre a Alemanha e a Rússia. Há poucos dias, os negociadores haviam assinado um tratado de paz em Brest-Litovsk. A Rússia estava definitivamente fora da guerra. Ao apoiar Lênin e os bolcheviques, Walter ajudara a tornar isso realidade – e agora assistia ao resultado triunfal.

Neste momento, o Exército alemão tinha 192 divisões na França, em comparação com as 129 de um ano atrás, e a maior parte das novas unidades tinha sido transferida do front oriental. Pela primeira vez, eles tinham mais homens naquela região do que os Aliados, que, segundo os serviços de inteligência alemães, contavam com 173 divisões. Ao longo dos últimos três anos e meio, o povo alemão tinha sido informado diversas vezes que seu país estava à beira da vitória. Desta vez, Walter achava que isso era verdade.

Ele não compartilhava a opinião do pai de que os alemães eram um tipo superior de ser humano, mas, por outro lado, compreendia que, se a Alemanha dominasse a Europa, não seria uma coisa ruim. Os franceses tinham muitos talentos brilhantes – na culinária, na pintura, na moda, na vinicultura –, mas eram péssimos governantes. Os funcionários públicos franceses se consideravam uma espécie de aristocracia e não viam problema algum em deixar os cidadãos esperando horas e horas. Uma dose de eficiência alemã lhes faria muitíssimo bem. O mesmo valia para os desorganizados italianos. A Europa Oriental seria a maior beneficiada. O velho Império Russo ainda estava na Idade Média, com camponeses maltrapilhos morrendo de fome em barracos e mulheres sendo açoitadas por adultério. A Alemanha lhes daria ordem, justiça e métodos agrícolas modernos. Haviam acabado de inaugurar sua primeira linha aérea regular. Os aviões iam e voltavam entre Viena e Kiev como trens. Depois que a Alemanha ganhasse a guerra, haveria toda uma rede de voos pela Europa. E Walter e Maud poderiam criar seus filhos em um mundo pacífico e ordenado.

No entanto, esse momento vantajoso no campo de batalha não iria durar muito. Os americanos haviam começado a chegar em maior número. Eles tinham precisado de quase um ano para formar seu exército, mas agora a França contava com 300 mil soldados norte-americanos – e mais deles desembarcavam a cada dia. A Alemanha precisava vencer imediatamente, conquistar a França e repelir os Aliados em direção ao mar, antes que os reforços americanos fizessem a balança pender para o lado deles.

O ataque iminente tinha sido batizado de Kaiserschlacht, ou batalha do Imperador. De uma forma ou de outra, seria a última ofensiva da Alemanha.

Walter tinha sido enviado novamente para o front. Agora, a Alemanha precisava que todos os seus homens lutassem, principalmente porque muitos oficiais tinham morrido. Ele havia recebido o comando de um Sturmbataillon – uma tropa de assalto –, e feito um treinamento para aprender as táticas mais recentes junto com seus homens. Alguns destes eram veteranos empedernidos, outros, meninos e velhos recrutados por desespero. Durante o treinamento, Walter passara a gostar deles, mas precisava tomar cuidado para não se apegar demais a homens que talvez fosse obrigado a mandar para a morte.

Gottfried von Kessel, o antigo rival de Walter da embaixada alemã em Londres, havia feito o mesmo curso. Apesar dos problemas de vista, Gottfried era tenente no batalhão de Walter. A guerra pouco havia adiantado para abrandar sua atitude arrogante de sabe-tudo.

Walter examinou a zona rural à sua volta com seu binóculo militar. O dia estava claro e frio, de modo que ele conseguia ver muito bem. Ao sul, o largo rio Oise atravessava lentamente uma área pantanosa. Ao norte, viam-se campos férteis salpicados de aldeias, casas de fazenda, pontes, pomares e pequenos bosques. Quase dois quilômetros a oeste, ficava a rede de trincheiras alemãs e, logo depois, o campo de batalha. Ali, a mesma paisagem agrícola tinha sido devastada pela guerra. Campos de trigo estéreis cheios de crateras lembravam a Lua; todos os vilarejos estavam reduzidos a montes de pedras; os pomares explodidos e as pontes derrubadas. Se ele focasse o binóculo com cuidado, poderia ver os cadáveres de homens e cavalos em decomposição e as carcaças de blindados carbonizados.

Do outro lado dessa terra devastada, estavam os britânicos.

Um ronco forte fez Walter olhar para o leste. Nunca havia visto o veículo que se aproximava, embora já tivesse ouvido falar dele. Tratava-se de uma peça de artilharia móvel, com um cano e um mecanismo de disparo gigantescos, montados sobre um chassi com motor próprio de 100 cavalos de potência. O veículo vinha seguido de perto por um caminhão de carga pesada, provavelmente trazendo projéteis igualmente gigantescos. Uma segunda e uma terceira peça de artilharia vieram logo em seguida. As equipes que viajavam em cima desses blindados acenavam com as boinas ao passar, como se estivessem em uma parada da vitória.

Walter se sentiu confiante. Uma vez iniciada a ofensiva, aquelas peças de artilharia poderiam ser reposicionadas com rapidez. Elas dariam uma cobertura muito melhor ao avanço da infantaria.

Walter tinha ouvido dizer que armas ainda maiores do que aquelas estavam bombardeando Paris de uma distância de aproximadamente 100 quilômetros. Parecia quase impossível.

Na esteira dos blindados, veio um Mercedes 37/95 Double Phaeton que lhe pareceu muito familiar. O carro saiu da estrada e estacionou na praça em frente à igreja. O pai de Walter desceu lá de dentro.

O que Otto estaria fazendo ali?

Walter atravessou o portal baixo que conduzia à torre e desceu às pressas a estreita escada em caracol até o térreo. A nave da igreja abandonada havia sido transformada em dormitório. Ele passou por entre os sacos de dormir e caixotes virados que serviam de mesa e cadeira aos homens.

Do lado de fora, o cemitério da igreja estava repleto de pontes de trincheira: plataformas de madeira pré-fabricadas que permitiriam às peças de artilharia e aos caminhões de abastecimento que viriam no rasto das tropas de assalto atravessarem as trincheiras britânicas capturadas. As tábuas estavam empilhadas em meio às lápides para não ficarem tão visíveis do céu.

O fluxo de homens e veículos que cruzava o vilarejo de leste a oeste já havia praticamente cessado. Algo estava acontecendo.

Otto estava fardado e o cumprimentou de maneira formal, prestando continência. Walter pôde ver que o pai mal se continha de entusiasmo.

– Uma visita especial está chegando! – disse ele na mesma hora.

Estava explicado.

– Quem é?

– Você vai ver.

Walter imaginou que fosse o general Ludendorff, atual comandante supremo em exercício.

– O que ele quer fazer?

– Falar com os soldados, é claro. Por favor, reúna os homens em frente à igreja.

– Daqui a quanto tempo?

– Ele está vindo logo atrás de mim.

– Certo. – Walter correu os olhos pela praça. – Sargento Schwab, venha cá! Cabo Grunwald também! E vocês, homens, venham! – Ele despachou mensageiros até a igreja, o refeitório que havia sido montado em um grande celeiro e o acampamento na colina ao norte. – Quero todos em frente à igreja, adequadamente vestidos, daqui a 15 minutos. Rápido! – Os soldados saíram correndo.

Walter percorreu o vilarejo a passos rápidos para informar aos oficiais, ordenando aos homens que fossem para a praça e ficassem de olho na estrada que vinha do leste. Encontrou seu superior, o general de divisão Schwarzkopf, em uma antiga leiteria na periferia do vilarejo, terminando um café da manhã tardio composto de pão e sardinhas em lata.

Em 15 minutos, dois mil homens foram reunidos e, 10 minutos depois, estavam todos apresentáveis, com os uniformes abotoados e as boinas bem arrumadas na cabeça. Walter foi buscar um caminhão de reboque e o parou com a traseira virada para os homens. Improvisou degraus até a caçamba do veículo usando caixotes de munição.

Otto tirou do Mercedes um pedaço de tapete vermelho e o estendeu no chão, conduzindo aos degraus.

Walter fez o cabo Grunwald – um homem alto, de mãos e pés grandes – sair da formação e o mandou ficar de guarda no telhado da igreja, com seu binóculo e um apito.

Eles então se puseram a aguardar.

Meia hora se passou, depois uma hora. Os homens foram ficando impacientes, as linhas se tornaram disformes e começou a haver bate-papo.

Dali a mais uma hora, Grunwald tocou seu apito.

– Preparem-se! – vociferou Otto. – Ele está chegando!

Uma cacofonia de ordens gritadas se fez ouvir. Os homens assumiram rapidamente posição de sentido. Uma caravana entrou na praça.

A porta de um veículo blindado se abriu e um homem vestido de general saltou. No entanto, não era Ludendorff, com sua cabeça calva e pontuda. O visitante especial se movia de forma estranha, mantendo a mão esquerda no bolso do dólmã como se estivesse com o braço ferido.

Depois de alguns instantes, Walter percebeu que se tratava do próprio Kaiser.

O general de divisão Schwarzkopf se aproximou e prestou continência.

Quando os homens perceberam quem era o visitante, o burburinho resultante logo se transformou em uma vibração generalizada. No início, o general de divisão pareceu irritado com aquela indisciplina, porém o Kaiser abriu um sorriso magnânimo que fez Schwarzkopf se recompor sem demora, assumindo um ar de aprovação.

O monarca subiu os degraus, ficou em pé na caçamba do caminhão e agradeceu pela recepção calorosa. Quando o barulho finalmente cessou, ele começou a falar:

– Alemães! – disse. – Chegou a hora da vitória!

Todos tornaram a vibrar e, desta vez, Walter fez o mesmo.

À uma da manhã de quinta-feira, 21 de março, a brigada já estava organizada em posição de avançar, pronta para o ataque. Walter e os outros oficiais de seu batalhão estavam sentados em um abrigo na trincheira da linha de frente. Para aliviar a tensão da espera, eles conversavam.

Gottfried von Kessel explicava a estratégia de Ludendorff.

– Essa ofensiva rumo ao oeste vai criar uma brecha entre britânicos e franceses – disse ele, com a mesma autoconfiança ignorante que costumava exibir quando os dois trabalhavam juntos na embaixada alemã de Londres. – E depois nós vamos dar uma guinada para o norte, obrigando o flanco direito dos britânicos a mudar de curso para imprensá-los contra o canal da Mancha.

– Não, não – disse o tenente Von Braun, um homem mais velho. – A coisa mais inteligente a fazer, depois de rompermos a linha de frente do inimigo, é avançarmos todo o caminho até a costa atlântica. Imaginem só: uma linha alemã cortando a França ao meio e separando o exército francês de seus aliados.

– Mas, nesse caso, nós teríamos inimigos ao norte e ao sul! – protestou Von Kessel.

Um terceiro homem, o capitão Kellerman, entrou na conversa.

– Ludendorff vai dar uma guinada para o sul – previu ele. – Nós precisamos conquistar Paris. Isso é tudo o que importa.

– Paris é apenas simbólica! – disse Von Kessel com desdém.

Aquilo tudo não passava de especulação – ninguém sabia ao certo. Walter estava tenso demais para ficar escutando conversas inúteis, de modo que saiu do abrigo. Na trincheira, os homens estavam sentados no chão, imóveis e calmos. As horas que precediam uma batalha eram um momento de reflexão e preces. No jantar da véspera, a sopa de cevada havia sido incrementada com carne, um raro agrado. O moral estava alto – todos sentiam que o fim da guerra era iminente.

A madrugada estava clara e estrelada. A cozinha de campanha distribuía o desjejum: pão preto e um café ralo com gosto de nabo. A chuva que caíra mais cedo tinha estiado e quase não havia mais vento. Isso significava que eles poderiam disparar bombas de gás venenoso. Ambos os lados usavam gás, porém Walter tinha ouvido dizer que, desta vez, os alemães experimentariam uma nova mistura: o mortífero fosgênio aliado ao gás lacrimogêneo. Este último não era letal, mas conseguia penetrar as máscaras de gás padrão do Exército britânico. A teoria era que a irritação causada pelo gás lacrimogêneo faria os soldados inimigos tirarem as máscaras para esfregar os olhos, e eles então inalariam o fosgênio e morreriam.

As grandes peças de artilharia estavam posicionadas ao longo de toda a borda do lado alemão da terra de ninguém. Walter nunca vira tanto armamento reunido. As equipes empilhavam munição. Atrás delas, uma segunda linha de peças de artilharia estava pronta para avançar, com os cavalos já atrelados – elas formariam a segunda onda da barragem.

Às 4h30, o silêncio tomou conta do front. As cozinhas de campanha desapareceram; as equipes de artilharia sentaram-se no chão, aguardando; os oficiais se levantaram dentro das trincheiras, olhando ao longo da terra de ninguém, até a escuridão onde dormia o inimigo. Até mesmo os cavalos silenciaram. Esta é a nossa última chance de vitória, pensou Walter. Perguntou-se se deveria rezar.

Às 4h40, a fumaça branca de um sinalizador subiu em direção ao céu, seu brilho apagando as estrelas cintilantes. Logo em seguida, a grande peça de artilharia ao lado de Walter disparou, produzindo um clarão de labaredas e um estrondo tão forte que ele cambaleou para trás como se tivesse sido empurrado. Mas aquilo não foi nada. Em segundos, toda a artilharia começou a disparar. O barulho era muito mais alto do que o de uma tempestade. Os clarões iluminavam os rostos dos artilheiros enquanto eles manejavam os projéteis pesados e a cordite usada como carga propulsora. O ar ficou carregado de gás e fumaça, e Walter tentou respirar apenas pelo nariz. O impacto fazia o chão sob seus pés tremer.

Walter logo começou a ver explosões e chamas do lado britânico, à medida que as bombas alemãs atingiam depósitos de munição e tanques de gasolina. Ele conhecia a sensação de estar sob o fogo de artilharia pesada e sentiu pena do inimigo. Torceu para Fitz não estar lá.

As peças de artilharia ficaram tão quentes que queimariam a pele de qualquer um tolo o suficiente para tocá-las. O calor deformava os canos de tal forma que chegava a prejudicar a mira, de modo que as equipes precisavam usar sacos molhados para esfriá-los. Os soldados de Walter se ofereceram para trazer baldes de água de crateras próximas para manter os sacos úmidos. A infantaria sempre se mostrava disposta a ajudar os artilheiros antes de um ataque: cada soldado inimigo morto pela barragem era um homem a menos para atirar nas forças terrestres quando elas avançassem.

A luz do dia trouxe consigo névoa. Junto às armas, a ignição das cargas propulsoras consumia o vapor, mas ao longe não era possível enxergar nada. Walter ficou preocupado. Os artilheiros teriam de mirar “pelo mapa”. Felizmente, eles possuíam diagramas detalhados e precisos das posições britânicas, que apenas um ano antes tinham sido posições alemãs. Mas a possibilidade de corrigir a mira por meio da observação era insubstituível. Aquilo era um mau começo.

A névoa se misturou à fumaça das armas. Walter amarrou um lenço por sobre o nariz e a boca. Os britânicos não estavam disparando de volta, pelo menos não naquele trecho. Isso encorajou Walter. Talvez a artilharia inimiga já tivesse sido destruída. O único alemão morto perto de Walter era um operador de morteiro cuja boca de fogo havia explodido, provavelmente porque o projétil fora detonado dentro do cano. Uma equipe de padioleiros levou embora o cadáver, enquanto uma equipe médica fazia curativos nos ferimentos dos soldados próximos atingidos por estilhaços.

Às nove da manhã, Walter posicionou os homens em suas respectivas posições de largada: as tropas de assalto deitadas no chão atrás da artilharia e a infantaria regular em pé nas trincheiras. Atrás deles, concentravam-se a segunda onda de artilharia, as equipes médicas, os operadores dos telefones de campanha, os reabastecedores de munição e os mensageiros.

A tropa de assalto usava o moderno capacete arredondado de aço, apelidado de “balde de carvão”. Eles haviam sido os primeiros a abandonar o antigo Pickelhaube pontudo. Estavam armados com carabinas Mauser K98. Seu cano curto a tornava pouco precisa para tiros de longa distância, mas ela era mais fácil de manejar em combates corpo a corpo nas trincheiras do que os fuzis mais compridos. Cada homem carregava uma sacola atravessada no peito com uma dúzia de granadas de mão. Como elas tinham um cabo de madeira, os soldados britânicos as chamavam de “espremedores de batatas”, em referência ao utensílio de cozinha usado por suas mulheres. Aparentemente, toda cozinha britânica tinha o seu. Walter descobrira isso ao interrogar prisioneiros de guerra: nunca havia entrado em uma cozinha britânica.

Ele pôs a máscara de gás e fez sinal para os homens o imitarem, de modo a não serem afetados pelos próprios gases venenosos quando chegassem ao outro lado. Então, às nove e meia, se levantou. Pendurou o fuzil nas costas e segurou uma granada em cada mão, conforme deveria fazer qualquer soldado de assalto prestes a avançar. Como ninguém conseguia escutar nada, ele não podia gritar ordens, então simplesmente gesticulou com o braço e começou a correr.

Seus homens o seguiram rumo à terra de ninguém.

O solo estava firme e seco: há semanas que não chovia forte. Isso era bom para os agressores, pois tornava mais fácil mobilizar homens e veículos.

Eles avançavam abaixados. A artilharia alemã disparava por cima de suas cabeças. Os homens de Walter sabiam estar correndo perigo de ser atingidos pelo fogo amigo que aterrissasse antes do alvo, sobretudo no meio da névoa, uma vez que os observadores das equipes de artilharia não podiam corrigir a mira do atirador. Mas o risco valia a pena. Daquela forma, eles poderiam chegar tão perto da trincheira inimiga que, quando o bombardeio terminasse, os britânicos não teriam tempo de assumir suas posições e montar seus ninhos de metralhadora antes de serem atacados pelas tropas de assalto.

Enquanto corriam pela terra de ninguém, Walter torceu para que o arame farpado do lado inimigo houvesse sido destruído pela artilharia. Caso contrário, seus homens perderiam tempo cortando-o.

Houve uma explosão à sua direita e ele ouviu um grito. Logo em seguida, um brilho no solo chamou sua atenção e ele divisou o fio de uma mina. Ele e seus homens estavam no meio de um campo minado que não havia sido detectado. Walter foi invadido por uma onda de pânico ao perceber que seu próximo passo poderia fazê-lo voar pelos ares. Então, recuperou o controle.

– Cuidado! Vejam onde pisam! – gritou, mas suas palavras se perderam em meio ao estrondo da artilharia. Seus homens continuaram a correr: os feridos, como sempre, teriam de ser deixados para trás para aguardar as equipes médicas.

Instantes depois, às 9h40, a artilharia cessou fogo.

Ludendorff tinha abandonado a velha tática de vários dias de bombardeio antes de um ataque: isso dava ao inimigo tempo demais para convocar reservas. Estimava-se que cinco horas bastassem para confundir e desmoralizar o inimigo, sem que ele pudesse ter tempo para se reorganizar.

Em teoria, pensou Walter.

Ele se empertigou e passou a correr mais depressa. Estava com a respiração ofegante porém regular, e quase não suava – apesar de alerta, estava calmo. Agora faltavam segundos para o contato com o inimigo.

Chegou ao arame farpado britânico. Este não havia sido destruído, mas havia brechas pelas quais pôde conduzir seus homens.

Os comandantes de companhias e pelotões ordenaram aos soldados que tornassem a se espalhar. As ordens eram dadas com gestos, em vez de palavras: talvez já estivessem perto o suficiente para ser ouvidos.

A névoa agora estava a favor deles, pois os escondia dos inimigos, pensou Walter com um leve arrepio de euforia. Naquele ponto, já era de se esperar que estivessem vivendo o inferno de ser alvejados pelas metralhadoras. Mas os britânicos não podiam vê-los.

Ele chegou a um trecho em que o solo fora completamente revirado por bombas alemãs. A princípio, tudo o que conseguiu distinguir foram crateras e montes de terra. Então viu um pedaço de trincheira e percebeu ter chegado à linha de frente britânica. A trincheira, no entanto, havia sido destruída: a artilharia fizera um bom trabalho.

Será que havia alguém lá dentro? Nenhum tiro tinha sido disparado. Ainda assim, era melhor ter certeza. Walter retirou o pino de uma granada e a jogou dentro da trincheira por precaução. Depois que ela explodiu, olhou por cima do parapeito. Vários homens estavam caídos no chão, nenhum deles se movendo. Quem não tivesse sido morto antes pela artilharia havia sido liquidado pela granada.

Até agora você teve sorte, pensou Walter. Não espere que ela dure.

Ele correu ao longo da linha inimiga para verificar como o restante de seu batalhão estava se saindo. Viu meia dúzia de soldados britânicos se rendendo, com as mãos erguidas tocando os capacetes abaulados de aço, as armas largadas no chão. Se comparados aos seus captores alemães, eles pareciam bem alimentados.

O tenente Von Braun apontava seu fuzil para os prisioneiros, porém Walter não queria que seus oficiais perdessem tempo lidando com presos. Tirou a máscara de gás: os britânicos estavam sem as suas.

– Sigam em frente! – gritou ele em inglês. – Por ali, por ali. – Ele apontou para as linhas alemãs. Os britânicos fizeram o que Walter mandou, ansiosos por sair dali e salvar suas vidas. – Deixe-os ir – gritou para Von Braun. – O escalão da retaguarda vai cuidar deles. Vocês precisam continuar avançando. – Era para isso que servia uma tropa de assalto.

Ele voltou a correr. Por várias centenas de metros, se deparou com as mesmas cenas: trincheiras destruídas, baixas inimigas, nenhuma resistência de fato. Então escutou tiros de metralhadora. Logo em seguida, topou com um pelotão que havia se abrigado dentro de crateras de bomba. Deitou-se ao lado do sargento, um bávaro chamado Schwab.

– Não estamos conseguindo identificar o ninho – informou-lhe o sargento. – Estamos atirando na direção do barulho.

Schwab não havia compreendido a tática. As tropas de assalto deveriam evitar os focos de resistência inimigos e seguir adiante, deixando que eles fossem neutralizados pela infantaria que viria em seguida.

– Continuem a avançar! – ordenou-lhe Walter. – Contornem a metralhadora. – Quando houve um intervalo entre os tiros, ele se levantou e gesticulou para os homens. – Vamos! Levantem-se, levantem-se! – Os soldados obedeceram. Ele os conduziu para longe da metralhadora e os fez atravessar uma trincheira vazia.

Topou novamente com Gottfried. O tenente carregava uma lata de biscoitos que ia enfiando na boca enquanto corria.

– Incrível! – gritou ele. – Você tem que provar a comida dos britânicos!

Walter derrubou a lata da sua mão.

– Seu idiota, você está aqui para lutar, não para comer – berrou. – Ande logo.

Ele foi surpreendido por alguma coisa que passou correndo por cima do seu pé. Então viu um coelho desaparecer em meio à névoa. A artilharia certamente havia destruído suas tocas.

Verificou a bússola para se certificar de que continuava na direção norte. Não sabia se as trincheiras que estava encontrando eram de comunicação ou de abastecimento, de modo que a disposição delas não lhe dizia muita coisa.

Sabia que os britânicos, seguindo o exemplo alemão, tinham aberto várias linhas de trincheiras. Depois de passar pela primeira, esperava encontrar a qualquer momento uma trincheira bem defendida que eles chamavam de Linha Vermelha, e então – caso conseguisse passar por ela – uma terceira, cerca de dois quilômetros mais a oeste, chamada de Linha Marrom.

Dali para a frente, não havia nada senão terreno aberto até a costa ocidental.

Bombas explodiram na névoa à sua frente. Não era possível que fossem os britânicos. Eles estariam disparando contra as próprias defesas. Aquilo só podia ser a segunda barragem de artilharia alemã. Walter e seus homens estavam correndo o risco de ultrapassar sua própria artilharia. Ele se virou. Felizmente, a maioria da tropa estava atrás dele. Ergueu os braços.

– Abriguem-se! – gritou. – Espalhem a notícia!

Os soldados, que já haviam chegado à mesma conclusão que ele, mal precisaram do aviso. Recuaram alguns metros correndo e pularam para dentro das trincheiras vazias.

Walter estava exultante. Tudo estava correndo maravilhosamente bem.

No chão da trincheira havia três soldados britânicos caídos. Dois estavam imóveis e o terceiro grunhia. Onde estariam os outros? Talvez tivessem fugido. Ou então aquele era um esquadrão suicida, deixado para trás no intuito de proteger uma posição indefensável, para que seus companheiros em retirada tivessem mais chances de escapar.

Um dos britânicos mortos era um homem excepcionalmente alto, de mãos e pés grandes. Na mesma hora, Grunwald tirou as botas do cadáver.

– São do meu tamanho! – falou para Walter, como se quisesse se justificar. Este não teve coragem de impedi-lo: as botas de Grunwald estavam cheias de furos.

Ele se sentou para recuperar o fôlego. Ao repassar aquela primeira fase da ofensiva em sua cabeça, não conseguia pensar em como ela poderia ter dado mais certo.

Uma hora depois, a artilharia alemã tornou a suspender o fogo. Walter reuniu seus homens e seguiu em frente.

Quando estava no meio da subida de uma longa encosta, ouviu vozes. Ergueu uma das mãos para deter os homens mais próximos dele. Logo à frente, alguém falou em inglês:

– Não consigo ver porra nenhuma.

Algo naquele sotaque lhe pareceu familiar. Seria australiano? Parecia mais indiano.

Com o mesmo sotaque, uma segunda voz disse:

– Se eles não conseguem vê-lo, também não podem atirar em você!

Subitamente, Walter foi transportado de volta a 1914 e à grande casa de campo de Fitz no País de Gales. Era assim que os criados de lá falavam. Os homens à sua frente, naquele campo francês devastado, eram galeses.

Lá nas alturas, o céu pareceu clarear um pouco.

O sargento Billy Williams tentou enxergar por entre a névoa. Felizmente, o bombardeio havia terminado, mas isso só significava que os alemães estavam chegando. O que ele deveria fazer?

Não tinha recebido ordens. Seu pelotão ocupava um reduto, um posto defensivo localizado em uma encosta, um pouco recuado em relação à linha de frente. Em condições climáticas normais, aquela posição oferecia uma vista ampla para um declive longo e gradual, estendendo-se até uma pilha de destroços, provavelmente as antigas instalações de uma fazenda. Uma trincheira os conectava a outros redutos, àquela altura invisíveis. Normalmente, as ordens vinham da retaguarda, mas, naquele dia, nenhuma havia chegado. O telefone estava mudo; a linha provavelmente cortada pela barragem.

Na trincheira, os homens estavam em pé ou sentados. Tinham saído do abrigo após o fim do bombardeio. De vez em quando, no meio da manhã, a cozinha de campanha mandava para a trincheira um carrinho com um grande vaso de chá quente, mas desta vez não havia nem sinal da bebida. E eles já haviam comido suas rações de emergência no café da manhã.

O pelotão estava armado com uma metralhadora leve Lewis, de modelo norte-americano. A arma estava montada sobre a parede dos fundos da trincheira, logo acima do abrigo. Era operada por George Barrow, de 19 anos – o rapaz do reformatório –, um bom soldado, tão ignorante que achava que o último invasor da Inglaterra se chamava Normando, o Conquistador. George fumava um cachimbo sentado atrás da metralhadora, protegido das balas perdidas por sua culatra de aço.

Os soldados também dispunham de um morteiro Stokes, armamento útil que disparava um projétil de 7,5 centímetros de diâmetro em um raio de até 730 metros. O cabo Johnny Ponti, que perdera o irmão Joey na batalha do Somme, tinha desenvolvido uma eficiência mortífera com esse tipo de arma.

Billy subiu até a metralhadora e postou-se ao lado de George, mas não conseguiu ver um palmo à frente do nariz.

– Billy, os outros países têm impérios como o nosso? – perguntou-lhe George.

– Têm – respondeu Billy. – Os franceses são donos da maior parte do norte da África, e há também as Índias Orientais Holandesas, o sudoeste da África que pertence aos alemães...

– Ah – falou George, um pouco decepcionado. – Eu já tinha ouvido falar nesses lugares, mas não achei que pudesse ser verdade.

– Por que não?

– Bem, que direito eles têm de governar outros povos?

– E que direito nós temos de governar a Nigéria, a Jamaica e a Índia?

– Nós temos direito porque somos britânicos – Billy aquiesceu.

George Barrow, que obviamente nunca tinha visto um atlas na vida, sentia-se superior a Descartes, Rembrandt e Beethoven. E muita gente pensava como ele. Todos haviam sido submetidos a anos de propaganda na escola, onde ouviam falar de todas as vitórias militares da Grã-Bretanha, mas de nenhuma derrota. Ensinavam-lhes sobre a democracia em Londres, e não sobre a tirania no Cairo. Nas aulas sobre o funcionamento do sistema judiciário britânico, ninguém mencionava as punições por açoitamento na Austrália, a fome na Irlanda ou os massacres na Índia. Eles aprendiam que católicos queimavam protestantes na fogueira, e ficavam chocados quando porventura descobriam que os protestantes faziam o mesmo com os católicos à menor oportunidade. Poucos haviam tido um pai como o Da de Billy para lhes dizer que o mundo pintado por seus professores na escola era uma fantasia.

Mas, naquele dia, Billy não estava com tempo para colocar juízo na cabeça de George. Tinha mais com que se preocupar.

O céu clareou um pouco e Billy achou que talvez a névoa estivesse se dissipando; então, de repente, ela desapareceu por completo.

– Puta merda! – exclamou George. Uma fração de segundo depois, Billy viu o que o chocara. A menos de 500 metros de distância, subindo a encosta na sua direção, havia várias centenas de soldados alemães.

Billy pulou para dentro da trincheira. Vários homens tinham avistado o inimigo ao mesmo tempo, e suas exclamações de surpresa alertaram os outros. Billy espiou por uma fresta na placa de aço montada no parapeito. Os alemães demoraram mais a reagir, provavelmente porque os britânicos estavam menos visíveis em suas trincheiras. Um ou outro parou onde estava, porém a maioria continuou a correr.

Um minuto depois, ouviram-se disparos de fuzil vindos de ambos os lados da trincheira. Alguns alemães caíram. Os demais se jogaram no chão, buscando abrigo em crateras de bomba e atrás de alguns arbustos mirrados. Acima da cabeça de Billy, a metralhadora Lewis abriu fogo com um barulho que parecia o alarido de uma torcida de futebol. No minuto seguinte, os alemães começaram a revidar os tiros. Billy observou, com alívio, que eles não pareciam dispor de metralhadoras nem de morteiros de trincheira. Ele ouviu um de seus homens soltar um grito: talvez um alemão de olhar aguçado tivesse visto alguém espiando com imprudência por cima do parapeito da trincheira; ou então, o que era mais provável, um atirador de sorte tinha acertado uma desafortunada cabeça britânica.

Tommy Griffiths surgiu ao lado de Billy.

– Dai Powell foi atingido – falou ele.

– É grave?

– Ele está morto. Tiro na cabeça.

– Ah, droga – disse Billy. A Sra. Powell fazia tricô como ninguém e costumava mandar suéteres para o filho na França. Para quem ela iria tricotar agora?

– Peguei a coleção que ele guardava no bolso da farda – disse Tommy. Dai possuía um maço de cartões-postais pornográficos comprados de um francês. As imagens mostravam garotas roliças com tufos generosos de pelos pubianos. A maioria dos homens do batalhão já havia pegado aqueles postais emprestados em algum momento.

– Pra quê? – indagou Billy, distraído, enquanto vigiava o inimigo.

– Não quero que eles acabem parando em Aberowen.

– Ah, sim.

– O que faço com eles?

– Porra, Tommy, será que você pode me perguntar depois? Tenho algumas centenas de alemães desgraçados com que me preocupar agora.

– Desculpe, Bill.

Quantos alemães haveria lá fora? Era difícil estimar o número de homens em um campo de batalha, mas Billy pensou ter identificado pelo menos 200 inimigos, sendo que, provavelmente, havia mais deles fora do seu campo de visão. Imaginou que estivesse enfrentando um batalhão. Seu pelotão de 40 soldados estava em uma desvantagem numérica desesperadora.

O que ele deveria fazer?

Há mais de 24 horas que não via nenhum oficial. Ele tinha a maior patente do grupo. Estava no comando. Precisava de um plano.

Já havia superado a raiva que sentia da incompetência de seus superiores. Era tudo parte do sistema de classes que ele fora criado para desprezar. Porém, nas raras ocasiões em que ficava incumbido do comando, não conseguia tirar prazer nenhum disso. Pelo contrário: sentia o peso da responsabilidade e temia tomar decisões erradas que provocassem a morte de seus companheiros.

Se os alemães lançassem um ataque frontal, seu pelotão seria dizimado. Contudo, o inimigo não sabia quanto ele estava vulnerável. Será que Billy conseguiria dar a impressão de ter mais homens do que de fato possuía?

Passou-lhe pela cabeça bater em retirada. Mas soldados não deviam fugir no instante em que fossem atacados. Aquela era uma posição defensiva, e ele tinha a obrigação de tentar mantê-la.

Iria ficar ali e lutar, ao menos por ora.

Assim que tomou essa decisão, viu-se tomando outras em seguida.

– Dispare outra rajada neles, George! – gritou Billy. Quando a metralhadora Lewis abriu fogo, ele saiu correndo pela trincheira. – Mantenham fogo cerrado, rapazes – falou. – Vamos fazer com que eles pensem que estamos às centenas aqui.

Ele viu o corpo de Dai Powell caído no chão, com o sangue já escurecendo ao redor do rombo em sua cabeça. Dai estava usando um dos suéteres tricotados pela mãe debaixo do uniforme. Era horrível, marrom, mas provavelmente o mantivera aquecido.

– Descanse em paz, garoto – murmurou Billy.

Mais adiante na trincheira, encontrou Johnny Ponti.

– Johnny, meu chapa, comece a lançar seus Stokes – falou. – Coloque esses desgraçados para pular.

– Certo – disse Johnny. Ele abriu o suporte de duas pernas do morteiro no chão da trincheira. – A que distância? Uns 450 metros?

O parceiro de Johnny era um rapaz de rosto redondo chamado Hewitt Seboso. Este subiu no degrau de tiro para olhar e gritou de volta:

– Isso, entre 450 e 550 metros. – Billy também deu uma espiada, porém Seboso e Johnny já haviam trabalhado juntos antes, de modo que deixou a decisão a cargo deles.

– Dois anéis, então, a 45 graus – falou Johnny. Os morteiros autopropulsionados podiam receber cargas propulsoras extras, em forma de anel, para aumentar seu alcance.

Johnny pulou no degrau de tiro para dar outra olhada nos alemães, então ajustou a mira. Os outros soldados ao redor dele recuaram. Johnny largou um morteiro dentro do cano. Quando o projétil atingiu o fundo, um percussor acendeu o explosivo de propulsão e ele foi disparado.

O morteiro aterrissou perto demais e explodiu a alguma distância dos soldados inimigos mais próximos.

– Uns 50 metros à frente e um pouco mais à direita – gritou Seboso.

Johnny reajustou a mira e disparou outra vez. O segundo morteiro foi parar dentro de uma cratera de bomba onde alguns alemães estavam se escondendo.

– É isso aí! – gritou Seboso.

Billy não conseguiu ver se algum inimigo tinha sido atingido, mas os tiros os estavam obrigando a manter a cabeça baixa.

– Disparem mais uma dúzia desses! – ordenou.

Chegou por trás de Robin Mortimer, o oficial destituído, que estava sobre o degrau de tiro atirando em ritmo constante. Quando parou para recarregar o fuzil, Mortimer cruzou olhares com Billy.

– Vá buscar mais munição, galesinho – disse ele. Como sempre, falou em tom rabugento, por mais que quisesse ajudar. – Você não vai querer que todo mundo fique sem ao mesmo tempo.

Billy assentiu com a cabeça.

– Boa ideia, obrigado. – O estoque de munição ficava pouco menos de 100 metros atrás, em uma trincheira de comunicação. Ele escolheu dois recrutas que mal sabiam atirar. – Jenkins, Narigudo, tragam mais munição, rápido. – Os dois rapazes saíram correndo.

Billy deu mais uma espiada pela fresta do parapeito. Ao fazer isso, viu um dos alemães se levantar. Billy imaginou que aquele deveria ser o comandante, prestes a ordenar um ataque. Seu coração se encolheu no peito. Eles provavelmente tinham se dado conta de que estavam enfrentando no máximo algumas dúzias de homens e percebido que seria fácil sobrepujá-los.

Mas Billy estava enganado. O oficial gesticulou em direção à retaguarda e então saiu correndo encosta abaixo. Seus homens o seguiram. O pelotão de Billy vibrou, disparando loucamente contra os homens em fuga, abatendo mais alguns antes de eles saírem do alcance de suas armas.

Os alemães chegaram às ruínas da fazenda e se esconderam em meio aos destroços.

Billy não pôde deixar de sorrir. Havia acabado de repelir uma força dez vezes mais numerosa que a sua! Eu deveria ser general, isso sim, pensou.

– Cessar fogo! – gritou. – Eles estão fora de alcance.

Jenkins e Narigudo reapareceram com caixas de munição.

– Continuem trazendo, rapazes – disse Billy. – Talvez eles voltem.

Porém, quando voltou a olhar, ele viu que os alemães tinham outro plano. Haviam se dividido em dois grupos e estavam se afastando das ruínas para ambos os lados. Enquanto Billy os observava, eles começaram a circundar sua posição, mantendo-se fora da linha de tiro.

– Ah, cacete! – disse ele. Os alemães estavam se preparando para se infiltrar entre a sua posição e os redutos vizinhos, para então atacá-los pelos dois flancos. Ou talvez apenas passassem ao largo deles, deixando que as forças da retaguarda os eliminassem.

De toda forma, aquela posição iria cair nas mãos do inimigo.

– George, desça a metralhadora – disse Billy. – E você, Johnny, desmonte o morteiro. Todos vocês, catem suas coisas. Nós vamos recuar.

Todos levaram aos ombros fuzis e mochilas, seguiram às pressas para a trincheira de comunicação mais próxima e começaram a correr.

Billy vasculhou o abrigo para ter certeza de que não havia ninguém ali. Puxou o pino de uma granada e a jogou lá dentro, para que o inimigo não ficasse com nenhum suprimento deixado para trás.

Então bateu em retirada atrás de seus homens.

Ao cair da tarde, Walter e seu batalhão já haviam tomado uma das linhas de retaguarda das trincheiras britânicas.

Apesar de cansado, sentia-se triunfante. O batalhão tinha enfrentado algumas escaramuças violentas, mas nenhuma batalha demorada. Graças à névoa, a tática das tropas de assalto havia funcionado melhor ainda do que o esperado. Eles haviam aniquilado uma oposição fraca, contornado focos de resistência e ganhado bastante terreno.

Walter encontrou um abrigo e entrou nele. Vários de seus homens o acompanharam. O lugar tinha uma atmosfera caseira, como se os britânicos estivessem morando ali há alguns meses: havia fotografias de revistas pregadas nas paredes, uma máquina de escrever em cima de uma caixa virada, talheres e louça dentro de velhas formas de bolo e até mesmo um cobertor estendido como uma toalha de mesa sobre uma pilha de caixotes. Walter imaginou que aquele havia sido o quartel-general de algum batalhão.

Seus homens não tardaram a encontrar a comida. Havia bolachas, geleia, queijo e presunto. Não pôde evitar que eles comessem, mas os proibiu de abrir qualquer uma das garrafas de uísque. Os soldados arrombaram um armário trancado e encontraram um pote de café. Um deles acendeu uma pequena fogueira do lado de fora e preparou um bule. Ofereceu a Walter uma xícara adoçada com leite condensado em lata. Estava delicioso.

– Eu li no jornal que os britânicos estavam com pouca comida, como nós – disse o sargento Schwab. Ele ergueu a lata de geleia que estava comendo com uma colher. – Pouca uma ova!

Walter vinha se perguntando quanto tempo os homens levariam para entender isso. Há muito ele suspeitava que as autoridades alemãs exageravam os efeitos da guerra submarina no abastecimento dos Aliados. Agora sabia a verdade – e os soldados também. A Grã-Bretanha estava em regime de racionamento, mas os britânicos não pareciam estar morrendo de fome. Os alemães, sim.

Ele encontrou um mapa abandonado de forma displicente pelas forças que haviam batido em retirada. Ao compará-lo com o que tinha, percebeu não estar muito longe do canal Crozat. Isso significava que, em um dia, os alemães haviam recuperado todo o território conquistado a tão duras penas pelos Aliados durante os cinco meses da batalha do Somme, dois anos antes.

A vitória estava realmente ao alcance dos alemães.

Walter sentou-se diante da máquina de escrever britânica e começou a redigir seu relatório.

 

Final de março e abril de 1918

Fitz organizou uma festa em Tŷ Gwyn no fim de semana da Páscoa. Possuía motivos ocultos para tanto. Os homens que convidou eram tão violentamente contrários ao novo regime da Rússia quanto ele.

Seu convidado de honra era Winston Churchill.

Winston era membro do Partido Liberal, portanto era de se esperar que pudesse simpatizar com os revolucionários. Porém também era neto de um duque e tinha tendência ao autoritarismo. Durante muito tempo, Fitz o considerara um traidor da sua classe, mas agora estava inclinado a perdoá-lo, tamanha a intensidade de seu ódio pelos bolcheviques.

Winston chegou na Sexta-Feira Santa. Fitz mandou o Rolls-Royce buscá-lo na estação de Aberowen. Ele entrou na sala de estar com seu passo saltitante – um homem baixo, de aparência frágil, cabelos ruivos e tez rosada. Tinha as botas molhadas de chuva. Usava um terno bem cortado de tweed amarelo-claro e uma gravata borboleta do mesmo azul de seus olhos. Tinha 43 anos, mas ainda havia algo de juvenil em sua forma de menear a cabeça para os conhecidos e apertar a mão dos convidados a quem ainda não tinha sido apresentado.

Depois de correr os olhos pelos lambris entalhados, pelo papel de parede estampado, pela lareira de pedra esculpida e pelos móveis de carvalho escuro, ele comentou:

– Fitz, a sua casa é decorada como o Palácio de Westminster!

Ele tinha motivos para estar entusiasmado. Havia voltado ao governo. Lloyd George o nomeara ministro das Munições. Muitos se perguntavam por que o primeiro-ministro teria trazido de volta um colega tão encrenqueiro e imprevisível, e o consenso era que ele preferia ter Churchill no seu time, atirando para fora.

– Seus mineradores apoiam os bolcheviques – falou Winston, com um misto de jocosidade e repulsa, enquanto se sentava e esticava as botas molhadas na direção da lareira acesa. – Metade das casas por que passei tinha bandeiras vermelhas hasteadas.

– Eles não têm a menor ideia do que estão comemorando – disse Fitz com desdém. Por trás da fachada de desprezo, estava muito aflito.

Winston aceitou uma xícara de chá de Maud e pegou um muffin amanteigado de um prato que um lacaio oferecia.

– Fiquei sabendo que você sofreu uma perda pessoal.

– Os camponeses mataram meu cunhado, o príncipe Andrei, e a mulher dele.

– Sinto muito.

– Bea e eu por acaso estávamos lá na ocasião e escapamos por um triz.

– Foi o que ouvi dizer!

– Os camponeses ocuparam as terras dele, uma propriedade muito grande, que por direito é a herança do meu filho, e o novo regime endossou esse roubo.

– Temo que sim. A primeira medida de Lênin foi aprovar o Decreto sobre a Terra.

– Justiça seja feita – disse Maud –, Lênin também anunciou uma jornada de trabalho de oito horas para os operários e educação universal e gratuita para seus filhos.

Fitz ficou irritado com o comentário. Maud não tinha o menor tato. Aquela não era a hora de defender Lênin.

Winston, no entanto, lhe respondeu à altura.

– E também um Decreto sobre a Imprensa que proíbe os jornais de se oporem ao governo – disparou ele de volta. – É isso que eles chamam de liberdade socialista.

– O direito hereditário do meu filho não é o único motivo da minha preocupação, nem sequer o principal – disse Fitz. – Se os bolcheviques conseguirem sair impunes depois do que fizeram na Rússia, onde vai ser a próxima revolução? Os mineradores do País de Gales já acham que o carvão subterrâneo na realidade não pertence ao dono das terras na superfície. Em qualquer sábado à noite, é possível ouvir “Bandeira Vermelha” sendo cantada em metade dos pubs galeses.

– O regime bolchevique deveria ser estrangulado no berço – disse Winston. Ele assumiu um ar pensativo. – Estrangulado no berço – repetiu, satisfeito com a expressão.

Fitz controlou sua impaciência. Às vezes, Winston imaginava ter elaborado um plano de ação política, quando tudo o que havia feito era cunhar uma frase de efeito.

– Mas nós não estamos fazendo nada! – disse Fitz, exasperado.

O gongo soou para avisar aos presentes que era hora de trocar de roupa para o jantar. Fitz não insistiu no assunto: tinha o fim de semana inteiro para dizer o que pensava.

A caminho de seu quarto de vestir, ocorreu-lhe que, estranhamente, Boy não tinha sido levado para a sala de estar na hora do chá. Antes de ir se trocar, ele desceu um corredor comprido até a ala das crianças.

Boy já estava com três anos e três meses, e não era mais um bebê, nem uma criança pequena, mas um menino que já andava e falava e que tinha os mesmos olhos azuis e os mesmos cachos louros de Bea. Seu filho estava sentado junto à lareira, enrolado em um cobertor, enquanto a bela e jovem babá Jones lia uma história para ele. O herdeiro legítimo de milhares de hectares de terras agrícolas na Rússia estava chupando o dedo. Ele não se levantou e correu em direção a Fitz como teria feito normalmente.

– O que houve com ele? – indagou este.

– Ele está com dor de barriga, meu amo.

Fitz achava que a babá Jones lembrava um pouco Ethel Williams, embora fosse menos inteligente.

– Tente ser mais precisa – disse Fitz com impaciência. – Qual o problema com a barriga dele?

– Ele está com diarreia.

– Como ele foi pegar uma porcaria dessas?

– Não sei. O toalete do trem não era muito limpo...

Isso tornava Fitz culpado, pois fora ele quem arrastara a família até o País de Gales para aquele fim de semana. Ele se conteve para não xingar.

– Você chamou um médico?

– O Dr. Mortimer está a caminho.

Fitz disse a si mesmo para não ficar tão preocupado. As crianças viviam pegando infecções bobas. Quantas vezes ele próprio tivera dor de barriga quando pequeno? No entanto, as crianças às vezes morriam de gastroenterite.

Ele se ajoelhou em frente ao sofá, ficando cara a cara com o filho.

– Como vai meu soldadinho?

Boy respondeu com uma voz letárgica:

– Estou com piriri.

Ele devia ter aprendido aquela expressão vulgar com a criadagem – de fato, havia um quê de sotaque galês na forma como ele a pronunciou. Porém, Fitz decidiu não dar importância ao fato no momento.

– O médico já vai chegar – disse ao filho. – Ele vai acabar com o dodói.

– Eu não quero tomar banho.

– Quem sabe você não pode ficar sem banho hoje? – Fitz se levantou. – Mande me chamar quando o médico estiver aqui – falou ele para a babá. – Quero conversar eu mesmo com ele.

– Sim, meu amo.

Ele deixou a ala das crianças e foi até o quarto de vestir. Seu criado havia separado as roupas do jantar, com os fechos de diamante já presos ao peito da camisa e abotoaduras do mesmo estilo nos punhos, um lenço de linho limpo no bolso do paletó e uma meia de seda dentro de cada sapato de couro envernizado.

Antes de mudar de roupa, foi até o quarto de Bea.

Sua mulher estava grávida de oito meses.

Ele não a vira naquela fase quando ela estava esperando Boy. Tinha partido para a França em agosto de 1914, quando a princesa estava apenas no quarto ou quinto mês, e só voltara depois de Boy nascer. Nunca havia testemunhado aquela dilatação espetacular, tampouco podido admirar a espantosa capacidade do corpo humano de mudar e se distender.

Bea estava sentada à penteadeira, mas não se olhava no espelho. Em vez disso, estava recostada, com as pernas afastadas e as mãos apoiadas na barriga. Tinha os olhos fechados e o rosto pálido.

– Não consigo encontrar uma posição confortável – reclamou. – Em pé, sentada, deitada: sinto dor de qualquer jeito.

– É melhor você ir até a ala das crianças dar uma olhada em Boy.

– Eu vou, assim que conseguir reunir forças! – falou ela com rispidez. – Nunca deveria ter vindo para o campo. É ridículo eu receber convidados neste estado.

Fitz sabia que ela estava certa.

– Mas nós precisamos do apoio desses homens se quisermos fazer alguma coisa a respeito dos bolcheviques.

– Boy ainda está mal da barriga?

– Sim. O médico está a caminho.

– Quando ele chegar, mande-o vir me examinar. Embora eu duvide que um médico da roça vá saber grande coisa.

– Vou avisar aos criados. Imagino que você não vá descer para jantar?

– Como eu poderia descer, me sentindo deste jeito?

– Foi só uma pergunta. Maud pode se sentar à cabeceira.

Fitz voltou para o seu quarto de vestir. Alguns homens haviam deixado de lado os fraques com gravata branca e passado a usar paletós de smoking e gravatas pretas no jantar, dando a guerra como desculpa. Fitz não entendia o que uma coisa tinha a ver com a outra. Por que a guerra deveria obrigar as pessoas a se vestirem informalmente?

Ele colocou seu traje de gala e desceu a escada.

Depois do jantar, enquanto o café era servido na sala de estar, Winston comentou, em tom de provocação:

– Então, lady Maud, vocês mulheres conseguiram finalmente o direito de voto.

– Algumas de nós, sim – respondeu ela.

Fitz sabia que ela estava decepcionada com o fato de a nova lei beneficiar apenas mulheres com mais de 30 anos que fossem proprietárias ou inquilinas de um imóvel, ou então casadas com um homem nessas condições. Ele, por sua vez, estava irritado que a lei tivesse sido sequer aprovada.

Churchill continuou a provocá-la:

– A senhorita deveria agradecer ao nosso lorde Curzon aqui, que surpreendeu a todos ao se abster de votar quando o projeto tramitou pela Câmara dos Lordes.

O conde Curzon era um homem de rara inteligência, cujo ar rígido de superioridade era exacerbado por um colete de metal que usava por conta de um problema nas costas. Havia uma rima a seu respeito:

Sou George Nathaniel Curzon, homem de renome

E não há ninguém que por mim não se impressione

Curzon tinha sido vice-rei da Índia e agora era líder da Câmara dos Lordes, além de um dos cinco membros do Gabinete de Guerra. Era também presidente da Liga de Oposição ao Voto Feminino, de modo que a sua abstenção tinha causado espanto no mundo político e representado uma grande decepção para os adversários da causa, entre os quais Fitz.

– A lei já havia sido aprovada pela Câmara dos Comuns – disse Curzon. – Eu senti que não poderíamos ir contra os parlamentares eleitos.

Isso era algo que ainda aborrecia Fitz.

– Mas os Lordes existem justamente para analisar detidamente as decisões dos Comuns e conter seus excessos. Esse, sem dúvida, era um caso exemplar disso!

– Se nós tivéssemos barrado a lei, acredito que os Comuns teriam se sentido afrontados e nos obrigariam a votá-la de novo.

Fitz deu de ombros.

– Não seria a primeira vez que teríamos esse tipo de disputa.

– Mas, infelizmente, o Comitê Bryce está reunido.

– Ah! – Fitz não havia pensado nisso. O Comitê Bryce cogitava reformar a Câmara dos Lordes. – Então foi por isso?

– Eles apresentarão seu relatório em breve. Até lá, não podemos nos dar ao luxo de uma disputa aberta com os Comuns.

– Não. – Com grande relutância, Fitz foi obrigado a concordar. Se os Lordes tentassem desafiar de forma contundente os Comuns, Bryce poderia recomendar que os poderes da câmara alta do Parlamento fossem restringidos. – Nós poderíamos ter perdido toda a nossa influência. E de modo permanente.

– Foi justamente o raciocínio que me levou a me abster.

A política às vezes deprimia Fitz.

O mordomo Peel serviu uma xícara de café a Curzon e murmurou para Fitz:

– O Dr. Mortimer está no escritório pequeno aguardando o senhor, meu amo.

Fitz estava preocupado com a dor de barriga de Boy e ficou satisfeito com a interrupção.

– É melhor eu ir falar com ele – disse. Pediu licença e saiu da sala.

Aquele escritório era mobiliado com peças que não se encaixariam em nenhum outro cômodo da casa: uma desconfortável cadeira esculpida em estilo gótico, uma paisagem da Escócia de que ninguém gostava e a cabeça de um tigre que o pai de Fitz havia caçado na Índia.

Mortimer era um médico competente da região que ostentava um ar de confiança um tanto excessivo, como se pensasse que sua profissão o colocava de certa forma no mesmo nível de um conde. Ainda assim, era educado o suficiente.

– Boa noite, milorde – falou. – Seu filho está com uma infecção gástrica branda, que provavelmente não terá nenhuma consequência.

– Provavelmente?

– Estou usando a palavra de propósito. – Mortimer falava com um sotaque galês que havia sido atenuado pela educação formal. – Nós cientistas sempre trabalhamos com probabilidades, nunca com certezas. Costumo dizer aos seus mineradores que eles descem para a mina todas as manhãs sabendo que provavelmente não haverá nenhuma explosão.

– Hum... – O diagnóstico não chegava a tranquilizar Fitz. – O senhor esteve com a princesa?

– Sim, estive. O mal de que ela sofre tampouco é grave. Na verdade, ela não sofre de mal nenhum: está apenas dando à luz.

Fitz pulou da cadeira.

– O quê?

– Ela achou que estivesse no oitavo mês de gravidez, mas errou nos cálculos. Na verdade, está grávida de nove meses e, com sorte, daqui a poucas horas não estará mais.

– Quem está com ela?

– Ela está rodeada por suas criadas. Mandei chamar uma parteira competente e eu próprio posso auxiliar no parto, se o senhor desejar.

– É tudo culpa minha – disse Fitz, amargurado. – Eu não deveria ter insistido para que ela saísse de Londres.

– Bebês perfeitamente saudáveis nascem fora de Londres todos os dias.

Fitz teve a sensação de que o médico estava zombando dele, mas decidiu ignorar aquilo.

– E se algo sair errado?

– Conheço a reputação do seu médico londrino, o professor Rathbone. Ele é um profissional de grande renome, sem dúvida, mas creio poder afirmar com segurança que eu já trouxe mais bebês ao mundo do que ele.

– Bebês de mineradores.

– De fato, a grande maioria, mas na hora do nascimento não parece haver diferença alguma entre eles e os pequenos aristocratas.

Mortimer estava mesmo zombando de Fitz.

– Não estou gostando do seu atrevimento – reagiu ele.

O médico não se deixou intimidar.

– Nem eu do seu – retrucou. – O senhor já deixou bem claro, sem um pingo de cortesia, que me considera inadequado para cuidar da sua família. Ficarei feliz em ir embora. – Ele recolheu sua maleta.

Fitz deu um suspiro. Aquela era uma briga tola. Ele estava com raiva dos bolcheviques, não daquele galês de classe média cheio de não me toques.

– Ora, homem, não seja bobo.

– É o que estou tentando fazer. – Mortimer começou a sair do escritório.

– O senhor não deveria pôr os interesses dos pacientes em primeiro lugar?

O médico se deteve junto à porta.

– Meu Deus, Fitzherbert, a sua empáfia é inacreditável.

Poucas pessoas já haviam falado assim com Fitz. No entanto, ele engoliu a réplica mordaz que lhe veio à mente. Poderia levar horas para encontrar outro médico. Bea jamais o perdoaria se ele deixasse Mortimer ir embora com os brios feridos.

– Vou esquecer que o senhor disse isso – falou Fitz. – Na verdade, se o senhor preferir, vou esquecer todo esse nosso diálogo.

– Imagino que isso seja o mais próximo de um pedido de desculpas que conseguirei do senhor.

Era verdade, mas Fitz ficou calado.

– Vou tornar a subir – disse o médico.

A princesa Bea não deu à luz discretamente. Seus gritos puderam ser ouvidos em toda a ala principal da casa, onde ficava o seu quarto. Maud assumiu o piano e pôs-se a tocar ragtime bem alto para entreter os convidados e abafar o barulho – mas todas as músicas daquele ritmo eram parecidas entre si e, em 20 minutos, ela desistiu. Alguns dos convidados se recolheram, porém, à meia-noite, a maioria dos homens foi se reunir na sala de bilhar. Peel serviu conhaque.

Fitz presenteou Winston com um charuto cubano El Rey del Mundo. Enquanto seu convidado o acendia, ele falou:

– O governo precisa fazer alguma coisa em relação aos bolcheviques.

Winston deu uma olhada rápida pela sala, como se quisesse confirmar que todos os presentes eram de total confiança. Então se recostou na cadeira e disse:

– A situação é a seguinte: a Esquadra Setentrional Britânica já está em águas russas, na costa de Murmansk. Em teoria, a tarefa dela é garantir que os navios russos na região não caiam nas mãos dos alemães. Nós também temos uma pequena missão em Arkhangelsk. Estou fazendo pressão para que soldados desembarquem em Murmansk. A longo prazo, eles poderiam formar o núcleo de uma força contrarrevolucionária no norte da Rússia.

– Não é suficiente – disse Fitz na mesma hora.

– Concordo. Por mim, nós mandaríamos tropas para Baku, no mar Cáspio, para garantir que os imensos poços de petróleo de lá não sejam tomados pelos alemães, ou até mesmo pelos turcos, e para o mar Negro, onde já existe um embrião de resistência antibolchevique na Ucrânia. Por fim, na Sibéria, temos milhares de toneladas de mantimentos em Vladivostok, cujo valor talvez chegue a um bilhão de libras. Esses suprimentos destinavam-se a abastecer a Rússia quando o país era nosso aliado. Temos o direito de enviar tropas até lá para proteger nossos bens.

Oscilando entre o ceticismo e a esperança, Fitz perguntou:

– Lloyd George vai fazer alguma dessas coisas?

– Publicamente, não – respondeu Winston. – O problema são essas bandeiras vermelhas hasteadas nas casas dos mineradores. Existe em nosso país uma grande onda de solidariedade ao povo russo e à sua revolução. E, por mais que eu deteste Lênin e seus asseclas, entendo por quê. Com todo o respeito à família da princesa Bea... – ele ergueu os olhos para o teto enquanto outro grito começava a vir do andar de cima – … não se pode negar que a classe dominante da Rússia demorou a reagir ao descontentamento de seu povo.

Winston era uma mistura curiosa, pensou Fitz: aristocrata e homem do povo; administrador brilhante porém incapaz de resistir ao impulso de se intrometer no trabalho alheio; um sedutor que, no entanto, desagradava à maioria de seus colegas políticos.

– Os revolucionários russos são ladrões e assassinos – disse Fitz.

– Sem dúvida. Mas precisamos aceitar o fato de que nem todo mundo os vê dessa forma. Portanto, nosso primeiro-ministro não pode se opor abertamente à revolução.

– Opor-se à revolução apenas em pensamento não adianta muito – disse Fitz, sem paciência.

– Até certo ponto, é possível agir sem que ele fique oficialmente sabendo.

– Entendo. – Fitz não tinha certeza se isso significava grande coisa.

Maud entrou na sala. Os homens se levantaram, um pouco surpresos. Em uma casa de campo, as mulheres não costumavam por os pés na sala de bilhar. Maud ignorava as regras que não lhe convinham. Ela se aproximou de Fitz e lhe deu um beijo na face.

– Parabéns, meu caro Fitz – falou. – Você ganhou outro filho homem.

Os homens comemoraram e aplaudiram, cercando Fitz para lhe dar tapinhas nas costas e apertar sua mão.

– Como está minha mulher? – perguntou ele a Maud.

– Exausta, mas orgulhosa.

– Graças a Deus.

– O Dr. Mortimer já foi, mas a parteira disse que você pode ir ver o bebê.

Fitz encaminhou-se até a porta.

– Eu o acompanho até lá em cima – disse Winston.

Enquanto eles saíam da sala, Fitz ouviu Maud dizer:

– Por favor, Peel, sirva-me um conhaque.

Em voz baixa, Winston se dirigiu ao conde:

– Você já foi à Rússia, naturalmente, e sabe falar a língua.

Fitz se perguntou aonde o outro queria chegar.

– Um pouco – respondeu. – Nada do que me gabar, mas consigo me fazer entender.

– Você já topou com um sujeito chamado Mansfield Smith-Cumming?

– Para falar a verdade, já. Ele dirige... – Fitz hesitou em mencionar o Escritório do Serviço Secreto em voz alta. – Ele dirige um departamento especial. Já escrevi um ou outro relatório para ele.

– Ah, ótimo. Quando estiver de volta à cidade, talvez você queira ir dar uma palavrinha com ele.

Isso, sim, era interessante.

– Quando ele quiser, é claro – disse Fitz, tentando não se mostrar ansioso.

– Vou pedir a ele para entrar em contato. Talvez ele tenha outra missão para você.

Os dois haviam chegado à porta dos aposentos de Bea. Lá de dentro, vinha o choro inconfundível de um recém-nascido. Fitz sentiu-se envergonhado ao perceber seus olhos se encherem de lágrimas.

– É melhor eu entrar – falou. – Boa noite.

– Parabéns, e boa noite para você também.

O menino foi batizado de Andrew Alexander Murray Fitzherbert. Era um tiquinho de gente, com um chumaço de cabelos negros como os de Fitz. Eles o levaram até Londres de Rolls-Royce, enrolado em várias mantas. Mais dois carros os seguiam, para o caso de o primeiro enguiçar. Pararam para tomar café da manhã em Chepstow, almoçaram em Oxford e chegaram à casa de Mayfair a tempo para o jantar.

Alguns dias depois, em uma tarde amena de abril, Fitz estava andando pela margem do Tâmisa, olhando para as águas turvas do rio, a caminho de um encontro com Mansfield Smith-Cumming.

O Serviço Secreto havia ficado grande demais para o antigo endereço na região de Victoria. O homem conhecido como “C” havia transferido sua organização em franca expansão para um luxuoso prédio vitoriano chamado Whitehall Court, à beira do rio, com vista para o Big Ben. Um elevador privativo levou Fitz até o último andar, onde o chefe da agência de espionagem ocupava dois apartamentos interligados por um passadiço no telhado.

– Faz muitos anos que estamos de olho em Lênin – disse C. – Se não conseguirmos depô-lo, ele vai ser um dos piores tiranos que o mundo já conheceu.

– Concordo com o senhor. – Fitz estava aliviado por C pensar o mesmo que ele sobre os bolcheviques. – Mas o que podemos fazer?

– Vamos falar sobre o que o senhor poderia fazer. – C tirou da escrivaninha um compasso de aço, do tipo usado para medir distâncias em mapas. Como quem não quisesse nada, enfiou a ponta do instrumento na perna esquerda.

Fitz conseguiu reprimir o grito de susto que lhe subiu à garganta. Aquilo era um teste, é claro. Ele recordou que C usava uma perna artificial de madeira por conta de um acidente de carro. Deu um sorriso.

– Belo truque – falou. – Quase caí nele.

C largou o compasso e o encarou firme através do monóculo.

– Um líder cossaco na Sibéria derrubou o regime bolchevique local – disse ele. – Preciso saber se vale a pena apoiá-lo.

Fitz ficou espantado.

– Às claras?

– É claro que não. Mas eu tenho recursos secretos. Se conseguirmos manter um núcleo contrarrevolucionário no leste da Rússia, isso pode compensar um gasto de, digamos, 10 mil libras por mês.

– Qual é o nome dele?

– Capitão Semenov, 28 anos. Ele está em Manchuli, que fica bem ao lado da Ferrovia Oriental Chinesa, perto da interseção com o Expresso Transiberiano.

– Então esse capitão Semenov controla uma via férrea e poderia controlar outra.

– Exato. E ele odeia os bolcheviques.

– De modo que precisamos saber mais sobre ele.

– É aí que o senhor entra.

Fitz ficou encantado com a chance de ajudar a derrubar Lênin. Ocorreram-lhe várias perguntas: como encontraria Semenov? Estavam falando de um cossaco, e estes eram conhecidos por atirar primeiro e fazer perguntas depois. Será que Semenov iria falar com Fitz ou matá-lo? É claro que o capitão afirmaria ser capaz de derrotar os bolcheviques, mas Fitz conseguiria avaliar se isso era verdade? Haveria algum jeito de garantir que ele não desperdiçasse o dinheiro britânico?

No entanto, a pergunta que fez foi:

– Eu sou o homem certo para essa missão? Não me entenda mal, mas sou uma personalidade conhecida, e mesmo na Rússia estou longe de ser um anônimo...

– Para ser franco, não temos muitas alternativas. Precisamos de alguém dos escalões mais elevados, para o caso de haver negociação com Semenov. E não existem muitos homens de total confiança que falem russo. Acredite em mim, o senhor é a melhor opção disponível.

– Entendo.

– Vai ser perigoso, é claro.

Fitz se lembrou da multidão de camponeses espancando Andrei até a morte. Poderia ter sido ele em seu lugar. Conteve um arrepio de medo.

– Compreendo o perigo – disse com voz firme.

– Então me diga: o senhor aceita ir até Vladivostok?

– É claro que sim – respondeu Fitz.

 

De maio a setembro de 1918

Gus Dewar não se adaptou com facilidade à vida militar. Era um homem alto, desengonçado, e achava difícil marchar, prestar continência e bater com os pés no chão à moda do Exército. Quanto aos exercícios físicos, não praticava nenhum desde os tempos da escola. Seus amigos, que conheciam sua predileção por flores sobre a mesa do jantar e lençóis de linho na cama, haviam pensado que o Exército seria um choque terrível para ele. Chuck Dixon, que foi seu companheiro de treinamento de oficiais, comentou:

– Gus, em casa você não prepara nem o seu próprio banho.

Mas Gus sobreviveu. Aos 11 anos, tinha sido mandado para um internato, de modo que não era novidade para ele ser importunado por valentões e receber ordens de superiores estúpidos. Foi alvo de alguma zombaria por causa de suas origens abastadas e de seus modos impecáveis, porém suportou tudo com paciência.

Nos exercícios mais vigorosos, comentou Chuck com surpresa, a silhueta comprida de Gus revelou uma espécie de graça antes exibida apenas nas quadras de tênis.

– Você parece uma girafa – disse Chuck –, mas também corre como se fosse uma. – Graças a sua grande envergadura, Gus também se saiu bem no boxe, embora o sargento que o treinava tivesse lhe dito, com pesar, que lhe faltava o instinto assassino necessário.

Infelizmente, no entanto, ele se mostrou um péssimo atirador.

Gus queria se sair bem no Exército, em parte por saber que todos achavam que ele não iria conseguir. Precisava provar a eles, e talvez a si mesmo, que não era um molenga. Contudo, esse não era o único motivo. Ele acreditava naquilo por que estava lutando.

O presidente Wilson pronunciara um discurso diante da Câmara dos Repre­sentantes e do Senado que havia ecoado mundo afora como um clarim. Ele havia clamado por nada menos que uma nova ordem mundial.

“É preciso formar uma associação geral de nações com regras específicas, no intuito de proporcionar garantias mútuas de independência política e integridade territorial a todos os países, sejam eles grandes ou pequenos.”

Uma liga das nações era o sonho de Wilson, Gus e muitos outros – inclusive, de forma um tanto surpreendente, de Sir Edward Grey, que tivera a ideia quando ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha.

Wilson havia estabelecido um programa com 14 proposições. Abordara a redução dos arsenais militares; o direito dos povos das colônias a participarem das decisões sobre o próprio futuro; e a liberdade dos países dos Bálcãs, da Polônia e dos povos subordinados ao Império Otomano. O discurso ficara conhecido como os 14 Pontos de Wilson. Gus invejava os homens que haviam ajudado o presidente a escrevê-lo. Antigamente, ele próprio teria participado do processo.

“Um princípio evidente permeia todo o programa”, dissera Wilson. “Trata-se do princípio de justiça para todos os povos e nacionalidades, e de seu direito de conviver uns com os outros segundo os mesmos termos de liberdade e segurança, sejam eles fortes ou fracos.” Os olhos de Gus tinham se enchido de lágrimas ao ler essas palavras. “Esse é o único princípio que deve reger a conduta do povo dos Estados Unidos da América”, afirmara o presidente.

Poderiam mesmo as nações solucionar suas desavenças sem guerra? Parado­xalmente, isso era algo por que valia a pena lutar.

Gus, Chuck e seu batalhão de metralhadoras zarparam de Hoboken, Nova Jersey, a bordo do Corinna, antigo cruzeiro de luxo convertido em navio de trans­porte militar. A viagem levou duas semanas. Como segundos-tenentes, eles dividiam uma cabine no convés superior. Embora no passado tivessem competido pelo amor de Olga Vyalov, haviam se tornado amigos.

O navio fazia parte de um comboio escoltado pela Marinha, e a travessia transcorreu sem percalços, a não ser pelo fato de vários homens terem morrido de gripe espanhola, uma nova doença que vinha assolando o mundo. A comida era ruim: os homens brincavam, dizendo que os alemães haviam desistido da guerra submarina e agora estavam tentando alcançar a vitória envenenando-os.

O Corinna aguardou um dia e meio na costa de Brest, no extremo noroeste da França. Os soldados então desembarcaram em um cais abarrotado de homens, veículos e provisões, dominado por gritos de ordens e pelo ronco de motores. Oficiais impacientes e estivadores suados zanzavam de um lado para outro. Gus cometeu o erro de perguntar a um sargento no cais qual era o motivo do atraso.

– Atraso, senhor? – indagou o sargento, conseguindo fazer a palavra “senhor” soar como um insulto. – Ontem mesmo nós desembarcamos cinco mil homens, junto com seus carros, armas, barracas e cozinhas de campanha, e os transferimos para seus respectivos trens e transportes rodoviários. Hoje vamos desembarcar outros cinco mil, e amanhã a mesma quantidade. Não há atraso nenhum, senhor. Estamos indo rápido pra caralho.

Chuck sorriu para Gus e murmurou:

– Agora você já sabe.

Os estivadores eram soldados negros. Sempre que soldados negros e brancos precisavam dividir o mesmo teto, havia problemas, em geral causados por recrutas brancos do interior do sul dos Estados Unidos; então o Exército tinha desistido de tentar. Em vez de misturar as raças no front, destacara os regimentos formados por negros para executar trabalhos braçais na retaguarda. Gus sabia que os soldados de cor reclamavam muito disso: eles queriam lutar pelo seu país como todos os outros.

A maior parte do regimento saiu de Brest de trem. Não foram acomodados em vagões de passageiros, e sim amontoados em carros que geralmente transportavam animais. Gus fez os homens rirem ao traduzir a placa na lateral de um dos vagões: “40 homens ou 8 cavalos”. O batalhão de metralhadoras, no entanto, tinha seus próprios veículos, de modo que Gus e Chuck seguiram de carro até seu acampamento ao sul de Paris.

Nos Estados Unidos, o treinamento para a guerra de trincheiras havia sido realizado com fuzis de madeira, mas agora eles portavam armas e munição de verdade. Como eram oficiais, Gus e Chuck tinham recebido uma pistola semiautomática Colt M1911 cada, carregadas com pentes de sete tiros. Antes de sair de seu país tinham se livrado de seus chapéus de pele e vestido os práticos casquetes, com suas típicas dobras na frente e atrás. Tinham também capacetes de aço no mesmo formato arredondado daqueles usados pelos britânicos.

Ali, instrutores franceses com fardas azuis lhes ensinavam a lutar em conjunto com a artilharia pesada, habilidade que o Exército norte-americano até então não havia precisado desenvolver. Como falava francês, Gus foi inevitavelmente destacado para servir de intermediário entre os dois Exércitos. As relações entre franceses e norte-americanos eram boas, embora os franceses reclamassem que o preço do conhaque havia subido assim que os soldados americanos tinham pisado em seu país.

O sucesso da ofensiva alemã havia continuado ao longo do mês de abril. Ludendorff avançara tão depressa em Flandres que, segundo o general Haig, os britânicos estavam acuados contra a parede – expressão que repercutiu pelas tropas norte-americanas como uma onda de choque.

Gus não estava com pressa nenhuma de combater, porém Chuck começou a ficar impaciente no campo de treinamento. Por que eles estavam ali, perguntava ele, encenando batalhas de mentira, quando deveriam estar lutando de verdade? A seção mais próxima do front alemão era na cidade de Reims, a terra do champanhe, que ficava a nordeste de Paris; mas o superior de Gus, coronel Wagner, disse-lhe que os serviços de inteligência dos Aliados tinham certeza de que não haveria nenhuma ofensiva alemã naquele setor.

A inteligência aliada, no entanto, se enganou redondamente quanto a essa previsão.

Walter estava exultante. As baixas eram numerosas, porém a estratégia de Ludendorff estava dando certo. Os alemães vinham atacando os pontos fracos do inimigo, movendo-se depressa e deixando focos de resistência para trás para serem eliminados depois. Apesar de algumas manobras defensivas inteligentes por parte do general Foch, novo comandante supremo das forças aliadas, os alemães ganhavam terreno mais depressa do que nunca desde 1914.

O maior problema era o fato de o avanço ser retardado sempre que os soldados alemães se deparavam com estoques de comida. Eles simplesmente paravam para comer, e Walter constatou que era impossível fazê-los prosseguir antes de estarem satisfeitos. Era estranhíssimo ver os soldados sentados no chão, chupando ovos crus, entupindo-se de bolo e presunto ao mesmo tempo, ou bebendo garrafas de vinho pelo gargalo enquanto bombas caiam à sua volta e balas zuniam por cima de suas cabeças. Ele sabia que outros oficiais vinham tendo o mesmo problema. Alguns tentavam ameaçar os homens com pistolas, mas nem mesmo isso os convencia a abandonar a comida e seguir em frente.

Tirando isso, a ofensiva de primavera era um triunfo. Depois de quatro anos de guerra, Walter e seus homens estavam exaustos, porém o mesmo valia para os soldados franceses e britânicos com os quais se deparavam.

Depois das batalhas do Somme e de Flandres, o terceiro ataque de Ludendorff em 1918 estava programado para ocorrer no setor entre Reims e Soissons. Ali, os Aliados ocupavam uma serra conhecida como Chemin des Dames, o Caminho das Damas – assim batizada porque a estrada que a cruzava havia sido construída para as filhas de Luís XV poderem visitar uma amiga.

A última etapa da mobilização alemã ocorreu em 26 de maio, um domingo ensolarado e fresco por conta de uma brisa que vinha do nordeste. Mais uma vez, Walter sentiu orgulho ao ver as colunas de soldados alemães marchando rumo à linha de frente, os milhares de armas sendo levados até suas posições sob o fogo cerrado da artilharia francesa e as linhas telefônicas sendo instaladas entre os abrigos dos comandantes e as posições das baterias.

A tática de Ludendorff continuava a mesma. Às duas da madrugada daquela noite, milhares de peças de artilharia abririam fogo, disparando gás, bombas de metralha e explosivos em direção às linhas francesas, no ponto mais alto da serra. Walter notou com satisfação que a intensidade dos disparos franceses diminuiu na mesma hora, prova de que as armas alemãs estavam acertando o alvo. A barragem foi de curta duração, conforme rezava a nova filosofia de combate, e às 5h40 a artilharia cessou fogo.

Então as tropas de assalto avançaram.

Os alemães estavam atacando encosta acima, mas, apesar disso, encontraram pouca resistência, e – para surpresa e deleite de Walter – conseguiram chegar à estrada no alto da serra em menos de uma hora. Já era dia claro, de modo que ele pôde ver os franceses em retirada descendo por toda a encosta oposta.

As tropas de assalto avançavam a uma velocidade regular, mantendo o mesmo ritmo da barragem de artilharia, mas ainda assim chegaram antes do meio-dia ao rio Aisne, no fundo do vale. Alguns agricultores tinham destruído suas segadeiras mecânicas e queimado as colheitas precoces em seus celeiros, porém, como a maioria tinha ido embora às pressas, havia recompensas valiosas para as equipes responsáveis pelo confisco, que vinham logo atrás dos soldados alemães. Para espanto de Walter, os franceses nem sequer haviam explodido as pontes sobre o Aisne enquanto recuavam. Isso sugeria que estavam em pânico.

Os 500 homens de Walter seguiram até a próxima serra durante a tarde, acampando na margem oposta do rio Vesle. Tinham avançado praticamente 20 quilômetros em apenas um dia.

No dia seguinte, fizeram uma pausa para aguardar reforços, mas, no terceiro, tornaram a avançar. No quarto, quinta-feira, 30 de maio, depois de ganharem incríveis 48 quilômetros desde a segunda-feira, chegaram à margem norte do rio Marne.

Aquele era o local, recordou Walter com apreensão, em que o avanço alemão tinha sido interrompido em 1914.

Ele jurou que isso não aconteceria novamente.

No dia 30 de maio, quando a Terceira Divisão recebeu ordens para ajudar na defesa do rio Marne, Gus estava com a Força Expedicionária Norte-Americana no campo de treinamento de Châteauvillain, ao sul de Paris. A maior parte da divisão começou a ser embarcada nos trens, embora a castigada malha ferroviária francesa provavelmente fosse levar dias para transportá-la. Gus, Chuck e as metralhadoras, no entanto, partiram na mesma hora pela estrada.

Gus estava animado e temeroso. Aquilo não era como uma luta de boxe, em que havia um juiz para fazer valer as regras e interromper o combate caso ele ficasse perigoso. Como ele reagiria quando alguém de fato disparasse uma arma na sua direção? Será que viraria as costas e sairia correndo? O que o impediria de fazer isso? Ele geralmente tomava a decisão mais lógica.

Os carros eram tão pouco confiáveis quanto os trens, e vários deles enguiçaram ou ficaram sem gasolina. Além disso, eles foram atrasados pelos civis que vinham na direção oposta, fugindo da batalha, alguns conduzindo rebanhos de vacas, outros empurrando seus pertences em carroças e carrinhos de mão.

Dezessete metralhadoras chegaram à pequena e arborizada cidade de Château-Thierry, 80 quilômetros a leste de Paris, às 18 horas da sexta-feira. Era uma bela cidadezinha iluminada pelo sol de fim de tarde. Ela era cortada pelo Marne, com duas pontes ligando a periferia sul ao centro da cidade, mais ao norte. Os franceses ocupavam ambas as margens, porém a vanguarda das forças alemãs já havia alcançado o limite norte da cidade.

O batalhão de Gus recebeu ordens para montar seus armamentos ao longo da margem sul, em uma posição elevada, para que pudessem controlar as pontes. Cada equipe estava munida com uma metralhadora pesada Hotchkiss M1914 montada em um tripé sólido e alimentada por cinturões de cartuchos metálicos articulados, com capacidade para 250 tiros. Elas também tinham fuzis lança-granadas, que disparavam projéteis a um ângulo de 45 graus, apoiados em suportes de dois pés, e alguns morteiros de trincheira na mesma linha dos Stokes britânicos.

Enquanto o sol se punha, Gus e Chuck supervisionavam o posicionamento de seus pelotões entre as duas pontes. Nenhum treinamento os havia preparado para tomar aquele tipo de decisão: contavam apenas com o bom senso. Gus escolheu um prédio de três andares cujo térreo era ocupado por um café fechado. Arrombou a porta dos fundos para entrar e subiu a escada. Uma das janelas do sótão dava vista para o outro lado do rio e para uma rua na outra margem que seguia na direção norte. Ele ordenou que uma das equipes de metralhadora pesada se posicionasse ali. Esperava que o sargento fosse lhe dizer que era uma ideia imbecil, porém o homem aquiesceu e pôs mãos à obra.

Gus posicionou mais três metralhadoras em pontos semelhantes.

Enquanto procurava abrigos adequados para morteiros, deparou-se com uma garagem de barcos feita de tijolos na margem do rio, mas não sabia ao certo se ela ficava no seu setor ou no de Chuck, de modo que saiu à procura do amigo para confirmar. Encontrou-o à beira do rio, uns 100 metros mais à frente, perto da ponte ao leste, observando o outro lado com um binóculo. Andou dois passos nessa direção e então escutou um baque terrível.

Ele se virou na direção do barulho e, no segundo seguinte, vários outros estrondos ensurdecedores ressoaram. Ele se deu conta de que a artilharia alemã havia aberto fogo quando um projétil explodiu dentro do rio, jogando água pelos ares.

Tornou a olhar para o lugar em que Chuck estava, bem a tempo de ver o amigo desaparecer em meio a uma explosão de terra.

– Meu Deus do céu! – exclamou, disparando naquela direção.

Bombas e morteiros explodiam ao longo de toda a margem sul. Os homens se jogavam no chão. Gus chegou ao local em que tinha visto Chuck pela última vez e olhou em volta, desnorteado. Tudo o que restara eram pilhas de terra e pedra. Então notou um braço despontando dos escombros. Moveu uma pedra e descobriu, para seu horror, que o membro não estava mais preso a um corpo.

Seria o braço de Chuck? Tinha de haver uma forma de saber, mas Gus estava chocado demais para atinar qual seria ela. Usou a ponta da bota para afastar um pouco de terra solta, mas não adiantou. Então se ajoelhou e começou a cavar com as mãos. Viu uma gola marrom-clara com um disco de metal no qual se podia ler “US” e gemeu:

– Ai, meu Deus. – Rapidamente, desenterrou o rosto de Chuck. Não havia nenhum movimento, respiração ou pulso.

Tentou se lembrar do que deveria fazer em seguida. A quem deveria comunicar a morte? Algo tinha que ser feito com o corpo, mas o quê? Em uma situação normal, o certo seria chamar um agente funerário.

Ao erguer os olhos, viu que um sargento e dois cabos o encaravam. Um morteiro explodiu na rua às suas costas e os três abaixaram a cabeça por reflexo, voltando a olhar para ele em seguida. Estavam aguardando ordens suas.

Levantou-se abruptamente, relembrando parte do que havia aprendido no trei­namento. Não cabia a ele cuidar dos companheiros mortos ou feridos. Ele estava vivo e inteiro, e seu dever era lutar. Foi tomado por um ódio irracional dos alemães que tinham matado Chuck. Desgraçados, pensou, eu vou dar o troco. Recordou o que estava fazendo antes: posicionando as armas. Era o que deveria continuar a fazer. Também precisaria assumir o comando do pelotão de Chuck.

Ele apontou para o sargento encarregado dos morteiros.

– Esqueçam a garagem de barcos, ela está exposta demais – falou. Apontou para o outro lado da rua, na direção de um beco estreito entre uma vinícola e um estábulo de aluguel. – Armem três morteiros ali naquele beco.

– Sim, senhor. – O sargento se afastou apressado.

Gus olhou para a rua à sua frente.

– Está vendo aquele telhado plano, cabo? Monte uma metralhadora lá em cima.

– Tenente, me perdoe, mas aquilo ali é uma oficina de automóveis, pode haver um tanque de gasolina lá dentro.

– Caramba, você tem razão. Bem observado, cabo. Na torre daquela igreja, então. Só vai haver hinários debaixo dela.

– Sim, senhor, muito melhor. Obrigado, senhor.

– Os outros, venham comigo. Vamos procurar abrigo enquanto eu penso onde colocar o restante das armas.

Ele os conduziu até o outro lado da rua e ao longo de um caminho estreito, como uma viela, que margeava os fundos das construções. Uma bomba aterrissou no quintal de uma loja de produtos agrícolas e fez chover sobre Gus nuvens de fertilizante em pó, como um lembrete de que não estavam fora de alcance.

Seguiu depressa pela viela, tentando sempre que possível se proteger do bombardeio atrás de alguma parede, bradando ordens para seus suboficiais e posicionando as metralhadoras nas estruturas mais altas e de aspecto mais sólido e os morteiros nos jardins entre as casas. De vez em quando, seus subordinados faziam sugestões ou discordavam dele. Ele os ouvia e então tomava decisões rápidas.

Em pouco tempo a noite caiu, o que dificultou o trabalho. Os alemães dispararam uma chuva de artilharia sobre a cidade, a maioria dos disparos atingindo em cheio a posição norte-americana na margem sul. Vários prédios foram destruídos, deixando a rua à beira do rio parecida com uma boca cheia de dentes podres. Logo nas primeiras horas, as bombas destruíram três das metralhadoras de Gus.

Já era meia-noite quando ele conseguiu voltar para o quartel-general do batalhão, localizado em uma fábrica de máquinas de costura algumas ruas mais ao sul. O coronel Wagner, acompanhado do oficial que era seu equivalente no Exército francês, examinava um mapa em grande escala da cidade. Gus informou que todas as suas armas e as de Chuck estavam posicionadas.

– Bom trabalho, Dewar – elogiou o coronel. – O senhor está bem?

– É claro que estou, senhor – respondeu Gus, intrigado e ligeiramente ofendido, achando que seu coronel talvez achasse que ele não tinha fibra suficiente para aquele trabalho.

– É que o senhor está coberto de sangue.

– Ah, é? – Gus baixou os olhos e viu que de fato havia bastante sangue coagulado na frente de seu uniforme. – De onde será que ele veio?

– Do seu rosto, parece. O senhor está com um corte feio nele.

Gus levou a mão à bochecha, fazendo uma careta quando seus dedos tocaram a ferida.

– Nem sei quando isso aconteceu – falou.

– Vá até o posto médico e peça para limparem o ferimento.

– Não é nada de mais, coronel. Eu prefiro...

– Faça o que estou mandando, tenente. Isso pode ficar sério se infeccionar. – O coronel abriu um leve sorriso. – Não quero perdê-lo. O senhor parece ter as qualidades de um oficial útil.

Às quatro horas da manhã seguinte, os alemães iniciaram um bombardeio de gás. Walter e suas tropas de assalto se aproximaram do limite norte da cidade ao raiar do dia, imaginando que a resistência dos franceses fosse ser tão fraca quanto nos dois meses anteriores.

Eles teriam preferido contornar Château-Thierry, mas era impossível. A ferrovia até Paris cruzava a cidade, que possuía duas pontes importantes do ponto de vista estratégico. Era preciso conquistá-la.

Fazendas e lavouras deram lugar a chalés e chácaras, que por sua vez deram lugar a ruas asfaltadas e jardins. Quando Walter se aproximou da primeira das casas de dois andares, uma rajada de metralhadora emergiu de uma das janelas do andar de cima, crivando de buracos a rua diante de seus pés como gotas de chuva em um lago. Ele se jogou por cima de uma cerca baixa, caiu sobre uma horta e saiu rolando até conseguir se abrigar atrás de uma macieira. Seus homens se espalharam da mesma forma, menos dois, que caíram no meio da rua. Um deles ficou imóvel, enquanto o outro gemia de dor.

Walter olhou para trás e viu o sargento Schwab.

– Pegue seis homens, encontre a porta dos fundos daquela casa e destrua aquele ninho de metralhadora – ordenou ele. Localizou seus tenentes. – Von Kessel, siga um quarteirão mais para oeste e entre na cidade por lá. Von Braun, venha na direção leste comigo.

Ele evitou as ruas principais e seguiu por becos e quintais dos fundos, porém havia fuzileiros e metralhadores a cada dez casas. Alguma coisa havia acontecido para reavivar o espírito de luta dos franceses, percebeu Walter com apreensão.

Durante toda a manhã, os soldados da tropa de assalto lutaram de casa em casa, sofrendo pesadas baixas. Não deveria ser essa a estratégia deles, dar o sangue para conquistar cada metro. Aqueles homens eram treinados para seguir o caminho de menor resistência, se infiltrando por trás das linhas inimigas e interrompendo as comunicações, de modo que as forças da vanguarda perdessem o moral e a liderança e se rendessem sem demora à infantaria que viria em seguida. Agora, no entanto, essa tática havia fracassado e os soldados estavam enfrentando a duras penas, no mano a mano, um inimigo que parecia ter recuperado o fôlego.

Ainda assim, eles avançaram, e ao meio-dia Walter viu-se de pé sobre as ruínas do castelo medieval que dava seu nome à cidade. O castelo ficava no alto de um morro, e a prefeitura ficava ao pé da elevação. A partir dela, a rua principal seguia em linha reta por uns 250 metros até uma ponte de dois arcos que atravessava o rio Marne. A leste, cerca de 450 metros rio acima, ficava a única outra forma de transpor as águas do Marne, uma ponte ferroviária.

Isso tudo ele pôde ver a olho nu. Sacou o binóculo e focalizou as posições inimigas na margem sul. Descuidados, os homens não faziam questão de se esconder, sinal de que eram novatos na guerra: veteranos não se exibiam desse jeito. Ele observou que eram jovens, cheios de energia, bem nutridos e bem-vestidos. Consternado, viu que seus uniformes não eram azuis, mas sim marrom-claros.

Aqueles soldados eram americanos.

Durante a tarde, os franceses recuaram para a margem norte do rio, de modo que Gus pôde disparar suas peças de artilharia, lançando morteiros e tiros de metralhadora por sobre as cabeças dos franceses contra os alemães que se aproximavam. Os armamentos americanos dispararam uma enxurrada de munição ao longo das avenidas retas que atravessavam Château-Thierry de norte a sul, transformando-as em corredores da morte. Mesmo assim, ele podia ver os alemães avançarem, sem medo, de um banco até um café, de um beco até a soleira de uma loja, subjugando os franceses por pura superioridade numérica.

À medida que a tarde se transformava em uma noite sangrenta, Gus olhou por uma janela alta e viu os restos esfrangalhados da força francesa recuarem, com seus uniformes azuis, na direção da ponte oeste. Eles ainda tentaram resistir na extremidade norte da ponte, mantendo a posição enquanto o sol vermelho se punha atrás das colinas a oeste. Então, quando a noite caiu, recuaram para o outro lado.

Um pequeno grupo de alemães percebeu o que estava acontecendo e quis persegui-los. Gus os viu correr para a ponte, quase invisíveis sob o crepúsculo, formas cinzentas se movendo contra uma paisagem cinzenta. Foi então que a ponte explodiu. Ele se deu conta de que os franceses haviam preparado a detonação com antecedência. Corpos saíram voando pelos ares e o arco norte desabou, transformando-se em uma pilha de entulho no rio.

Então o silêncio caiu.

No quartel-general, Gus se deitou sobre uma esteira e dormiu um pouco; era a primeira vez que o fazia em quase 48 horas. Foi acordado pela barragem matutina alemã. Com cara de sono, saiu correndo da fábrica de máquinas de costura em direção à margem do rio. Sob a luz perolada da manhã de junho, viu que os alemães haviam ocupado toda a margem norte e bombardeavam as posições norte-americanas na margem sul a uma distância terrivelmente curta.

Ele tomou medidas para substituir as equipes que haviam passado a noite em claro por soldados um pouco mais descansados. Então começou a ir de posição em posição, mantendo-se sempre atrás das construções que margeavam o rio. Sugeriu aos homens maneiras de ganharem mais proteção, transferindo a arma para uma janela menor, usando chapas de metal corrugado para proteger as equipes dos destroços, ou empilhando escombros dos dois lados da arma. Contudo, a melhor forma de seus homens se defenderem era tornar impossível a vida dos artilheiros inimigos.

– Façam esses desgraçados se arrependerem de ter nascido – disse Gus.

Os homens obedeceram de bom grado. A Hotchkiss disparava 450 tiros por minutos e tinha um alcance de pouco mais de 3,5 quilômetros, de modo que alcançava com muita eficiência a outra margem do rio. Os morteiros Stokes já não eram tão úteis: sua trajetória em arco era feita para a guerra de trincheiras, onde disparos em linha reta eram inócuos. Os fuzis lança-granadas, no entanto, tinham um grande poder de destruição a curta distância.

Os dois lados se atacavam como boxeadores sem luvas lutando dentro de um ringue fechado. O barulho de tanta munição sendo disparada ao mesmo tempo era constantemente ensurdecedor. Prédios ruíam, os feridos gritavam de agonia, padioleiros sujos de sangue iam e vinham correndo entre a margem do rio e o posto médico e batedores traziam mais munição e jarras de café quente para os soldados cansados que manejavam as armas.

Com o passar das horas, Gus notou, sem grande interesse, que não estava assustado. Não pensava muito no assunto – havia coisas demais a fazer. Por um breve instante, no meio do dia, quando estava na cantina da fábrica de máquinas de costura, tomando goles generosos de café com leite cheio de açúcar em vez de almoçar, espantou-se ao pensar na pessoa estranha em que havia se transformado. Seria mesmo Gus Dewar que estava correndo de um prédio a outro sob uma barragem de artilharia, gritando para seus homens fazerem o inimigo se arrepender de ter nascido? Aquele mesmo homem tivera medo de perder a coragem, dar meia-volta e abandonar o campo de batalha. Quando chegou a hora, no entanto, mal havia pensado na própria segurança, preocupado como estava com o risco que seus homens corriam. Como essa mudança tinha acontecido? Então um cabo chegou para lhe dizer que seu esquadrão havia perdido a chave de boca usada para trocar os canos superaquecidos das metralhadoras Hotchkiss, de modo que ele engoliu o resto do café e foi correndo cuidar do problema.

Ao fim da tarde, teve um momento de tristeza. No lusco-fusco, espiou por acaso pela janela estilhaçada de uma cozinha e viu o lugar à beira do rio em que Chuck Dixon tinha morrido. Já não se sentia abalado com a forma como Chuck havia desaparecido em meio a uma explosão de terra: presenciara muito mais morte e destruição nos últimos três dias. O que lhe ocorreu naquele instante, causando-lhe um tipo diferente de choque, era que um dia precisaria contar esse acontecimento terrível aos pais de Chuck, Albert e Emmeline, donos de um banco em Buffalo, e à sua jovem esposa, Doris, tão avessa à entrada dos Estados Unidos na guerra – sem dúvida por temer justamente o que havia ocorrido. O que Gus diria a eles? “Chuck lutou com bravura”? Chuck nem mesmo tinha lutado: ele morrera no primeiro minuto de sua primeira batalha, sem disparar um único tiro. Teria feito pouca diferença se houvesse sido um covarde – o resultado teria sido o mesmo. Sua vida fora simplesmente desperdiçada.

Enquanto Gus olhava para aquele local, imerso em pensamentos, seu olhar foi atraído por um movimento na ponte ferroviária.

O coração subiu-lhe à boca. Homens adentravam a ponte, vindos do outro lado. À meia-luz, era quase impossível distinguir seus uniformes cinzentos. Eles corriam de forma desengonçada pelos trilhos, tropeçando nos dormentes e no cascalho. Seus capacetes eram arredondados e eles carregavam os fuzis a tiracolo. Eram alemães.

Gus correu até o ninho de metralhadora mais próximo, atrás do muro de um jardim. A equipe não havia reparado na força de assalto. Gus cutucou o ombro do atirador.

– Atire na ponte! – gritou. – Olhe ali, alemães! – O atirador girou o cano da metralhadora na direção do novo alvo.

Gus apontou para um soldado qualquer.

– Vá correndo até o quartel-general e avise que há uma incursão inimiga na ponte leste – gritou. – Rápido, rápido!

Ele identificou um sargento.

– Certifique-se de que todos estejam atirando na ponte – falou. – Ande!

Rumou para oeste. Não era possível mover depressa as metralhadoras pesadas – com o tripé, uma Hotchkiss pesava 40 quilos –, porém ele ordenou que todos os soldados com fuzis lança-granadas e todas as equipes de morteiros assumissem novas posições de onde pudessem defender a ponte.

Os alemães começaram a ser massacrados, mas, empedernidos, não paravam de avançar. Pelo binóculo, Gus viu um homem alto com uma farda de major que lhe pareceu familiar. Ficou imaginando se não seria alguém que tivesse conhecido antes da guerra. Enquanto ele olhava, o major foi atingido e caiu no chão.

Os alemães vinham apoiados por uma barragem atemorizante, disparada pela própria artilharia. Era como se cada arma na margem norte estivesse apontada para a extremidade sul da ponte ferroviária, onde estavam reunidos os ameri­canos. Gus via seus homens caírem um após outro, mas substituía cada atirador morto ou ferido por um novo soldado, de modo que o tiroteio prosseguia quase sem interrupção.

Os alemães pararam de correr e começaram a assumir posições fixas, aproveitando a tênue proteção proporcionada pelos companheiros mortos. Os mais corajosos continuaram a avançar, mas, como não havia onde se esconder, eles foram rapidamente abatidos.

A noite caiu, mas isso não fez diferença: o tiroteio prosseguiu em intensidade máxima de ambos os lados. Os inimigos se transformaram em vultos indistintos, iluminados pelos clarões dos disparos e pelas explosões das bombas. Gus trocou algumas das metralhadoras pesadas de posição, quase certo de que aquela incursão não era um ardil para que o inimigo pudesse atravessar o rio despercebido em algum outro ponto.

O combate atingiu um impasse e, por fim, os alemães começaram a recuar.

Ao ver que havia equipes de padioleiros na ponte, Gus ordenou que seus homens cessassem fogo.

Em reação a isso, a artilharia alemã se calou.

– Deus todo-poderoso – falou Gus para ninguém em especial. – Acho que nós os afugentamos.

Uma bala americana havia quebrado a tíbia de Walter. Deitado sobre os trilhos, ele sentia uma dor terrível, mas sofria ainda mais ao ver os soldados alemães recuando e ouvir as armas pararem de atirar. Nesse instante, teve certeza de que havia fracassado.

Gritou quando o suspenderam para colocá-lo em uma padiola. Ouvir os gritos dos feridos era ruim para o moral dos homens, mas ele não pôde evitar. Os padioleiros o transportaram aos trancos e barrancos pela ferrovia, atravessando a cidade até o posto médico, onde alguém lhe administrou morfina e ele perdeu os sentidos.

Acordou com a perna em uma tala. Começou a perguntar a todos os que passavam por seu catre sobre o andamento da batalha, mas não conseguiu detalhes até Gottfried von Kessel aparecer. Olhando para o seu ferimento com uma satisfação maliciosa, Gottfried lhe disse que o Exército alemão desistira de atravessar o rio Marne em Château-Thierry. Talvez tentassem em outro lugar.

No dia seguinte, logo antes de ser colocado em um trem de volta para casa, Walter ficou sabendo que o grosso da Terceira Divisão do Exército norte-americano tinha chegado e assumido posições ao longo de toda a margem sul do Marne.

Um companheiro ferido lhe contou sobre uma batalha sangrenta em um bosque perto de uma cidade chamada Bois de Belleau. Ambos os lados haviam sofrido um grande número de baixas, mas os americanos tinham vencido.

De volta a Berlim, os jornais continuavam a divulgar vitórias alemãs, porém as linhas nos mapas não estavam se aproximando de Paris, e Walter chegou à amarga conclusão de que a ofensiva de primavera havia fracassado. Os americanos tinham chegado cedo demais.

Ele teve alta do hospital e foi convalescer em seu antigo quarto na casa dos pais.

No dia 8 de agosto, um ataque aliado em Amiens usou quase 500 dos novos “tanques”. Esses veículos blindados viviam às voltas com inúmeros problemas, mas podiam ser impossíveis de deter, de modo que os britânicos conquistaram 13 quilômetros em um único dia.

Treze quilômetros não eram muita coisa, mas Walter desconfiava que a maré houvesse virado, e podia ver no rosto do pai que o velho pensava o mesmo. Ninguém mais em Berlim falava em ganhar a guerra.

Certa noite, no final de setembro, Otto chegou em casa com uma expressão funesta no rosto. Não lhe restava mais nada de sua exuberância habitual. Walter chegou a se perguntar se o pai iria chorar.

– O Kaiser voltou para Berlim – disse Otto.

Walter sabia que o Kaiser Guilherme estava no quartel-general do Exército localizado na cidade termal de Spa, nas colinas da Bélgica.

– E por que motivo?

A voz de Otto se transformou quase em um sussurro, como se ele não suportasse dar a notícia em um tom de voz normal:

– Ludendorff quer um armistício.

 

Outubro de 1918

Maud foi almoçar no Ritz com seu amigo lorde Remarc, subsecretário do Departamento de Guerra. Johnny estava usando um colete novo, lilás. Enquanto os dois saboreavam um pot-au-feu, ela lhe perguntou:

– A guerra vai mesmo terminar?

– Todo mundo acha que sim – respondeu Johnny. – Os alemães tiveram 700 mil baixas este ano. Eles não podem continuar.

Maud se perguntou com tristeza se Walter seria um desses 700 mil homens. Sabia que ele talvez estivesse morto – e esse pensamento parecia uma pedra de gelo no lugar de seu coração. Ela não tinha notícias dele desde a segunda e idílica lua de mel dos dois em Estocolmo. Imaginava que o trabalho de Walter não o fizesse mais viajar para países neutros de onde pudesse lhe escrever. A verdade terrível era que ele prova­velmente havia retornado à frente de batalha para a última e decisiva ofensiva alemã.

Esses pensamentos eram mórbidos, porém realistas. Muitas mulheres tinham perdido os homens que amavam: maridos, irmãos, filhos, namorados. Todas haviam passado quatro anos convivendo diariamente com esse tipo de tragédia. Já não era mais possível ser pessimista demais. O luto era a norma.

Ela afastou seu prato fundo.

– Existe algum outro motivo para termos esperança de que haja paz?

– Sim. A Alemanha agora tem um novo chanceler, que escreveu para o presidente Wilson sugerindo um armistício baseado nos famosos 14 Pontos do presidente americano.

– Isso é promissor! Wilson concordou?

– Não. Ele disse que primeiro a Alemanha tem que se retirar de todos os territórios conquistados.

– E o que nosso governo acha disso?

– Lloyd George está uma fera. Os alemães estão tratando os Estados Unidos como o membro principal da aliança, e o presidente Wilson age como se os dois países pudessem selar a paz sem nos consultar.

– E isso tem alguma importância?

– Infelizmente, sim. Nosso governo não está necessariamente de acordo com os 14 Pontos de Wilson.

Maud aquiesceu.

– Imagino que sejamos contra o quinto ponto, segundo o qual os povos das colônias deveriam ter voz em seus próprios governos.

– Exato. O que dizer da Rodésia, de Barbados, da Índia? Não se pode esperar que nós peçamos permissão aos nativos antes de civilizá-los. Os americanos são liberais além da conta. E também somos terminantemente contra o segundo ponto: liberdade nos mares em tempos de guerra e de paz. O poder da Grã-Bretanha depende da Marinha. Não teríamos conseguido fazer a Alemanha passar fome até capitular se não tivéssemos sido capazes de bloquear seu comércio marítimo.

– E o que os franceses acham disso tudo?

Johnny sorriu.

– Segundo Clemenceau, Wilson está tentando superar Deus. “O próprio Senhor se contentou com dez mandamentos”, disse ele.

– Tenho a impressão de que a maior parte dos britânicos médios na verdade gostam de Wilson e de seus pontos.

Johnny fez que sim com a cabeça.

– E os líderes europeus não têm como mandar o presidente americano parar de negociar a paz.

Maud queria tanto acreditar naquilo que estava ficando assustada. Disse a si mesma para não ficar feliz ainda. A decepção poderia ser grande demais.

Um garçom lhes serviu um linguado Waleska e lançou um olhar encantado para o colete de Johnny.

Maud abordou sua outra preocupação:

– Tem tido notícias de Fitz? – A missão de seu irmão na Sibéria era secreta, mas Fitz havia se confidenciado com ela, e Johnny a mantinha informada.

– O tal líder cossaco se revelou uma decepção. Fitz fez um pacto com ele, e nós o financiamos por algum tempo, mas o sujeito na verdade não passava de um tirano. Fitz vai continuar lá, tentando convencer os russos a derrubar os bolcheviques. Enquanto isso, Lênin transferiu seu governo de Petrogrado para Moscou, onde se sente mais protegido de uma eventual invasão.

– Mesmo que os bolcheviques sejam depostos, um novo regime voltaria a lutar contra a Alemanha?

– Você quer uma resposta realista? Não. – Johnny tomou um gole de Chablis. – Porém várias figuras muito poderosas do governo britânico têm um ódio mortal dos bolcheviques.

– Por quê?

– O regime de Lênin é brutal.

– O do czar também era, mas Winston Churchill nunca planejou derrubá-lo.

– No fundo, eles temem que, se o bolchevismo der certo por lá, acabe chegando aqui em seguida.

– Bem, se der certo, por que não?

Johnny encolheu os ombros.

– Você não pode esperar que pessoas como o seu irmão pensem assim.

– É verdade – concordou Maud. – Me pergunto como ele está passando...

– Nós estamos na Rússia! – disse Billy Williams quando o navio atracou e ele ouviu as vozes dos estivadores. – Porra, o que estamos fazendo na Rússia?

– Como podemos estar na Rússia? – perguntou Tommy Griffiths. – Ela fica para o leste. Faz semanas que estamos navegando rumo ao oeste.

– Nós demos meia-volta ao mundo e chegamos pelo outro lado.

Tommy não ficou convencido. Ele se debruçou na amurada e olhou para fora.

– As pessoas parecem meio chinesas – disse.

– Mas estão falando russo. Parecem aquele cavalariço, Peshkov, o que roubou os irmãos Ponti nas cartas e depois fugiu.

Tommy apurou os ouvidos.

– É, tem razão. Que coisa mais estranha.

– Isto aqui deve ser a Sibéria – disse Billy. – Está explicado este frio do cacete.

Alguns minutos depois, eles descobriram que estavam em Vladivostok.

Quase ninguém prestou atenção nos Aberowen Pals enquanto eles marchavam pela cidade. Já havia milhares de soldados uniformizados ali. A maioria era japonesa, mas havia também tropas americanas, tchecas e de outras nacionalidades. A cidade portuária era movimentada, com bondes passando por amplos bulevares, hotéis modernos, teatros e centenas de lojas. Parecia Cardiff, pensou Billy, só que mais fria.

Quando chegaram ao quartel, encontraram um batalhão de londrinos idosos que havia sido transferido de Hong Kong. Fazia sentido, pensou Billy, mandar velhos caquéticos para aquele fim de mundo. Os Pals, no entanto, embora desgastados pelas baixas, tinham um núcleo de veteranos experientes. Quem teria mexido os pauzinhos para tirá-los da França e mandá-los para o outro lado do mundo?

Ele não tardou a descobrir. Depois do jantar, o brigadeiro, homem de aparência tranquila, obviamente próximo da aposentadoria, avisou-lhes que o coronel conde Fitzherbert viria falar com eles.

O capitão Gwyn Evans, o famoso dono das lojas de departamentos, trouxe um caixote de madeira que antes continha latas de banha e Fitz subiu nele – não sem alguma dificuldade devido à perna machucada. Billy o observou sem a menor compaixão. Reservava o sentimento para Cotoco Pugh e para muitos outros mi­neiros aleijados que haviam se ferido extraindo o carvão do conde. Fitz era presunçoso, arrogante e um explorador desumano de homens e mulheres do povo. Era uma pena que os alemães não tivessem acertado seu coração em vez da perna.

– Nossa missão é dividida em quatro partes – começou Fitz, erguendo a voz para se dirigir aos 600 homens reunidos. – Em primeiro lugar, estamos aqui para proteger nossos bens. Ao sair do porto e passar pelos trilhos auxiliares da ferrovia, talvez vocês tenham reparado em um imenso depósito de suprimentos vigiado por soldados. Esse terreno de quatro hectares contém 600 mil toneladas de munição e outros equipamentos militares enviados para cá pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos quando os russos eram nossos aliados. Agora que os bolcheviques assinaram a paz com a Alemanha, não queremos que balas pagas pelo nosso povo caiam nas mãos deles.

– Isso não faz sentido – disse Billy, alto o suficiente para Tommy e os demais à sua volta conseguirem escutar. – Em vez de nos trazer até aqui, por que eles não transportaram os suprimentos de volta?

Irritado, Fitz lançou um olhar na direção da voz, mas prosseguiu:

– Em segundo lugar, há muitos nacionalistas tchecos neste país, alguns prisioneiros de guerra e outros que trabalhavam aqui antes do conflito. Eles formaram a chamada Legião Tcheca e estão tentando pegar um navio de Vladivostok para se juntar às nossas forças na França. Esses homens estão sendo intimidados pelos bolcheviques, e nosso trabalho é ajudá-los a sair daqui. Os líderes comunitários cossacos da região vão nos ajudar a fazer isso.

– Líderes comunitários cossacos? – indagou Billy. – Quem ele está tentando enganar? Esses desgraçados são uns bandidos.

Fitz tornou a ouvir o burburinho de protesto. Desta vez, o capitão Evans pareceu irritado e atravessou o refeitório para ficar mais perto de Billy e seu grupo.

– Aqui na Sibéria, existem 800 mil prisioneiros de guerra austríacos e alemães que foram libertados desde a assinatura do tratado de paz. Precisamos impedir que esses homens voltem aos campos de batalha na Europa. Por fim, suspeitamos que os alemães estejam de olho nos poços de petróleo de Baku, no sul da Rússia. Não podemos permitir que eles cheguem a essas reservas.

– Tenho a sensação de que Baku fica bem longe daqui – falou Billy.

Em tom amigável, o brigadeiro disse:

– Algum de vocês tem perguntas?

Fitz o fuzilou com o olhar, mas já era tarde demais.

– Eu não li nada sobre isso nos jornais – disse Billy.

– Como muitas missões militares, esta é secreta – respondeu Fitz –, e vocês não poderão dizer onde estão nas cartas que escreverem para casa.

– Nós estamos em guerra contra a Rússia, senhor?

– Não, não estamos. – Fitz fez questão de desviar os olhos de Billy. Talvez se lembrasse de como ele havia levado a melhor na assembleia sobre as negociações de paz no Salão do Evangelho do Calvário. – Alguém mais tem perguntas, fora o sargento Williams?

– Nós estamos tentando derrubar o governo bolchevique? – insistiu Billy.

Um murmúrio de irritação repercutiu entre os soldados, muitos dos quais eram simpatizantes da revolução.

– Não existe governo bolchevique – respondeu Fitz, cada vez mais enraivecido. – O regime de Moscou não foi reconhecido por Sua Majestade, o rei.

– A nossa missão foi autorizada pelo Parlamento?

O brigadeiro parecia aflito – não estava esperando esse tipo de pergunta –, e o capitão Evans disse:

– Já chega, sargento. Dê aos outros uma chance de falar.

Fitz, no entanto, não teve a presença de espírito de calar a boca. Não pareceu lhe ocorrer que a capacidade de argumentação de Billy, herdada de um pai inconformista e radical, poderia ser superior à sua.

– As missões militares são autorizadas pelo Departamento de Guerra, não pelo Parlamento – argumentou ele.

– Então esta missão foi ocultada de nossos representantes eleitos! – exclamou Billy, indignado.

– Devagar com o andor, meu chapa – murmurou Tommy com nervosismo.

– Por necessidade – respondeu Fitz.

Billy ignorou o conselho de Tommy; já estava furioso demais. Levantou-se e perguntou, com voz alta e distinta:

– Senhor, o que estamos fazendo é legal?

Quando Fitz enrubesceu, Billy notou que havia acertado na mosca.

– É claro que sim... – começou Fitz.

– Se a nossa missão não foi aprovada pelo povo britânico nem pelo povo russo – interrompeu Billy –, como pode ser legal?

– Sente-se, sargento – disse o capitão Evans. – Isto aqui não é uma reunião do seu maldito Partido Trabalhista. Mais uma palavra e vai receber uma punição.

Satisfeito, Billy se sentou. Já tinha dito tudo o que queria.

– Nós fomos convidados a vir até aqui pelo Governo Provisório de toda a Rússia, cujo braço executivo é formado por um diretório de cinco membros sediado em Omsk, no extremo oeste da Sibéria – disse Fitz. – E é para lá que vocês estão indo agora – concluiu.

A noite caía. Lev Peshkov, trêmulo, aguardava em um depósito de carga em Vladivostok, nos confins da linha transiberiana. Usava um sobretudo militar por cima do uniforme de tenente, mas jamais estivera em um lugar tão frio quanto a Sibéria.

Estar na Rússia o deixava furioso. Quatro anos antes, tivera a sorte de escapar dali e mais sorte ainda de se casar com a filha de uma família norte-americana rica. E agora estava de volta – tudo por causa de uma garota. Qual o problema comigo?, perguntou a si mesmo. Por que nunca estou satisfeito?

Um portão se abriu e uma carroça puxada a mula saiu do depósito. Lev pulou para o assento ao lado do soldado britânico que guiava o veículo.

– E aí, Sid? – falou Lev.

– Tudo certo – respondeu ele.

Sid era um homem magro de cerca de 40 anos, que tinha o rosto prematuramente enrugado e que estava sempre com um cigarro na boca. Era do East End londrino, portanto, falava com um sotaque bem diferente do de Gales do Sul ou do norte do estado de Nova York. No início, Lev tivera dificuldade para entender o que ele dizia.

– Trouxe o uísque?

– Não, só latas de chocolate em pó.

Lev se virou para trás, inclinou-se em direção à caçamba e ergueu uma das pontas da lona que a cobria. Tinha quase certeza de que Sid estava brincando. Viu uma caixa de papelão na qual se lia “Chocolate e Cacau Fry’s”.

– Chocolate não faz muito sucesso entre os cossacos – falou.

– Olhe mais embaixo.

Lev afastou a caixa e viu outro rótulo “Teacher’s Highland Cream – A Perfeição em Uísque Escocês”.

– Quantas caixas? – perguntou.

– Doze.

Tornou a cobrir a caixa.

– Melhor do que chocolate em pó.

Ele guiou Sid para fora do centro da cidade. Olhava para trás com frequência para ver se alguém os seguia e ficou apreensivo ao ver um oficial superior do Exército americano, mas ninguém lhes perguntou nada. Vladivostok estava lotada de refugiados que haviam escapado do regime bolchevique, e a maioria tinha trazido muito dinheiro. Gastavam como se não houvesse amanhã – e, para muitos deles, provavelmente não havia mesmo. Dessa forma, as lojas iam de vento em popa e as ruas estavam cheias de carroças daquele tipo transportando mercadorias. Como na Rússia faltava de tudo, muito do que se vendia era contrabandeado da China ou, como o uísque de Sid, roubado dos militares.

Lev viu uma mulher com uma garotinha e pensou em Daisy. Sentia saudades da filha. Àquela altura, ela já sabia andar e falar e investigava o mundo. Tinha um biquinho que derretia o coração de todos, até mesmo o de Josef Vyalov. Fazia seis meses que Lev não a via. Agora com dois anos e meio, ela devia ter mudado bastante desde que Lev fora embora.

Ele também sentia saudades de Marga. Era com ela que sonhava, com seu corpo nu se enroscando no seu na cama. Ela tinha sido a causa dos seus problemas com o sogro e o motivo que o fizera parar na Sibéria, mas, mesmo assim, ele ansiava por revê-la.

– Sid, você tem algum vício? – quis saber Lev. Sentia que precisava de uma amizade mais próxima com o taciturno Sid: parceiros no crime precisavam confiar um no outro.

– Não – respondeu Sid. – Só em dinheiro.

– Seu amor pelo dinheiro costuma levar você a correr riscos?

– Tirando roubar, não.

– E roubar lhe causa algum problema?

– Nada grave. Fui preso uma vez, mas só por seis meses.

– Meu fraco são as mulheres.

– É mesmo?

Lev já estava habituado ao costume britânico de fazer a pergunta depois que a resposta já tivesse sido dada.

– É – disse ele. – Não consigo resistir a elas. Quando entro em uma boate, preciso estar de braços dados com uma garota bonita.

– Sério?

– Sério. É mais forte que eu.

A carroça entrou em uma zona portuária cheia de ruas de terra batida e estalagens para marinheiros – lugares sem nome ou endereço. Sid parecia nervoso.

– Você está armado, certo? – perguntou Lev.

– Só tenho isto aqui. – Ele afastou o sobretudo para revelar uma pistola enorme, com um cano de 30 centímetros, enfiada na cintura da calça.

Lev nunca tinha visto uma arma daquelas.

– Que porra é essa?

– Uma Webley-Mars. A pistola mais potente do mundo. Coisa rara.

– Você nem precisa puxar o gatilho... é só brandir a arma no ar que as pessoas morrem de medo.

Naquela região, ninguém era pago para retirar a neve das ruas, de modo que a carroça ou seguia o rastro dos veículos anteriores, ou então derrapava no gelo dos caminhos menos utilizados. Estar na Rússia lhe trazia o irmão à memória. Ele não havia se esquecido da promessa de mandar para Grigori o valor de uma passagem para os Estados Unidos. Estava fazendo um bom dinheiro com a venda de suprimentos militares roubados para os cossacos. Com a venda daquele dia, teria o bastante para a passagem de Grigori.

Lev já havia feito muitas coisas erradas durante sua curta vida, mas, se pudesse se reconciliar com o irmão, se sentiria melhor em relação a si mesmo.

A carroça entrou em um beco e dobrou para trás de um prédio baixo. Lev abriu uma caixa de papelão e sacou uma garrafa de uísque lá de dentro.

– Fique aqui vigiando a carga – disse a Sid. – Senão quando voltarmos não vai ter sobrado nada.

– Não se preocupe – respondeu Sid, mas ele parecia apreensivo.

Lev enfiou a mão debaixo do sobretudo para tocar a pistola semiautomática Colt .45 que trazia na cintura, então entrou pela porta dos fundos.

O lugar era a versão siberiana de uma taberna. Um espaço pequeno com algumas cadeiras e uma única mesa. Não havia balcão, mas uma porta aberta deixava entrever uma cozinha suja com uma prateleira cheia de garrafas e um barril. Três homens estavam sentados junto a uma lareira acesa, vestidos com casacos de pele esfarrapados. Lev reconheceu o do meio, um homem que sabia se chamar Sotnik. Este usava uma calça folgada enfiada dentro de botas de montaria. Tinha as maçãs do rosto protuberantes e olhos puxados, além de ostentar um bigode extravagante e costeletas. O clima deixara sua pele vermelha e cheia de vincos. Ele poderia ter qualquer idade entre 25 e 55 anos.

Lev apertou as mãos de todos os presentes. Sacou a rolha da garrafa, e um dos homens – provavelmente o dono do bar – trouxe quatro copos, um de cada tipo. Lev serviu doses generosas, e todos beberam.

– Este é o melhor uísque do mundo – falou ele em russo. – Vem de um país frio, como a Sibéria, onde a água das nascentes de montanha é pura neve derretida. Pena que seja tão caro.

A expressão de Sotnik era inescrutável.

– Quanto?

Lev não iria deixá-lo regatear novamente.

– O preço que você aceitou ontem – respondeu. – Em rublos de ouro, ou nada feito.

– Quantas garrafas?

– Cento e quarenta e quatro.

– Onde elas estão?

– Aqui perto.

– Você deveria tomar cuidado. Este bairro está cheio de ladrões.

Isso poderia ser tanto um aviso quanto uma ameaça: Lev imaginou que a ambiguidade fosse proposital.

– Eu sei disso – falou Lev. – Sou um deles.

Sotnik olhou para seus dois companheiros e então, depois de uma pausa, riu. Os outros o imitaram.

Lev serviu uma segunda rodada.

– Não se preocupem – disse. – Seu uísque está seguro... atrás do cano de uma arma. – Ele também estava sendo ambíguo. Aquilo poderia ser tanto uma garantia quanto um alerta.

– Ótimo – disse Sotnik.

Lev bebeu seu uísque e então olhou para o relógio.

– Uma patrulha da polícia militar vai passar por este bairro daqui a pouco – mentiu. – Tenho que ir.

– Mais uma dose – falou Sotnik.

Lev se levantou.

– Você quer o uísque? – Deixou transparecer sua irritação. – Eu posso muito bem vendê-lo para outra pessoa. – Era verdade. Vender álcool não era difícil.

– Vou ficar com ele.

– Ponha o dinheiro na mesa.

Sotnik pegou um alforje do chão e começou a separar moedas de cinco rublos. O preço combinado era de 60 rublos por cada dúzia de garrafas. Lentamente, Sotnik foi fazendo pilhas de 12 moedas cada, até obter 12 pilhas. Lev achou que, na verdade, ele não sabia contar até 144.

Depois de terminar, Sotnik olhou para Lev, que aquiesceu. Sotnik, então, guardou as moedas de volta no alforje.

Os dois saíram do bar, Sotnik com o alforje na mão. A noite havia caído, mas a lua estava no céu, de modo que eles podiam enxergar bem. Em inglês, Lev disse para Sid:

– Não desça da carroça. Fique alerta. – Em uma transação ilegal, aquele era sempre o momento mais perigoso: a oportunidade que o comprador tinha de pegar a mercadoria e ficar com o dinheiro. Lev não queria arriscar de forma alguma o dinheiro da passagem de Grigori.

Ele tirou a lona que cobria a caçamba, afastando em seguida as três caixas de chocolate em pó para revelar o uísque. Suspendeu uma das caixas e a largou no chão, aos pés de Sotnik.

O outro cossaco foi até a caçamba e fez menção de pegar outra caixa.

– Não – disse Lev. Ele olhou para Sotnik. – O alforje.

Fez-se uma longa pausa.

Sentado no lugar do condutor, Sid afastou o sobretudo para revelar sua arma.

Sotnik entregou o alforje a Lev.

Lev olhou para dentro dele, mas decidiu não recontar o dinheiro. Teria percebido se Sotnik houvesse retirado algumas moedas às escondidas. Ele entregou o alforje a Sid e pôs-se a ajudar os outros a descarregar a carroça.

Então tornou a apertar a mão de todos e estava prestes a subir na carroça quando Sotnik o deteve.

– Olhe aqui – disse ele, apontando para uma caixa já aberta. – Está faltando uma garrafa.

A garrafa em questão estava na mesa da taberna, e Sotnik sabia disso. Por que estava tentando comprar uma briga àquela altura? A situação era perigosa.

Em inglês, ele pediu a Sid:

– Me passe uma moeda de ouro.

Sid abriu o alforje e entregou-lhe uma moeda.

Lev a equilibrou sobre o punho fechado e então a lançou para cima, fazendo-a girar no ar. O luar se refletiu na moeda. Quando, por reflexo, Sotnik estendeu a mão para pegá-la, Lev saltou para o assento da carroça.

Sid estalou o chicote.

– Fiquem com Deus – gritou Lev enquanto a carroça começava a se mover. – E me avisem quando precisarem de mais uísque.

Quando a mula saiu trotando de trás do prédio e dobrou a esquina, ganhando a rua, a respiração de Lev se acalmou.

– Quanto conseguimos? – perguntou Sid.

– O que pedimos. Trezentos e sessenta rublos cada um. Menos cinco. Eu cubro aquela moeda que nós perdemos. Você tem uma bolsa?

Sid sacou uma bolsa de couro grande. Lev pôs 72 moedas lá dentro.

Depois de se despedir de Sid, saltou da carroça perto do alojamento dos oficiais americanos. Quando estava a caminho de seu quarto, foi abordado pelo capitão Hammond.

– Peshkov! Onde o senhor estava?

Lev desejou não estar carregando 355 rublos dentro de um alforje de cossaco.

– Fazendo um pouco de turismo, senhor.

– Está escuro!

– Foi por isso que voltei.

– Eu estava à sua procura. O coronel quer lhe falar.

– Agora mesmo, senhor. – Lev tomou a direção de seu quarto para guardar o alforje, mas Hammond disse:

– A sala do coronel fica para o outro lado.

– Sim, senhor. – Lev deu meia-volta.

O coronel Markham não gostava de Lev. Markham era um militar de carreira, não um recruta de tempos de guerra. Sentia que Lev não tinha o mesmo compromisso que ele com a excelência do Exército norte-americano. E estava certo – 110% certo, como o próprio coronel teria dito.

Lev cogitou largar o alforje no chão do lado de fora da sala do coronel, mas era dinheiro demais para deixar em qualquer lugar.

– Quer me dizer onde o senhor estava? – perguntou Markham assim que ele entrou.

– Dando uma volta pela cidade, coronel.

– Vou mudá-lo de função. Nossos aliados britânicos precisam de intérpretes e me pediram para emprestar o senhor a eles.

Aquilo parecia um trabalho mais fácil.

– Sim, coronel.

– O senhor vai acompanhá-los até Omsk.

Isso já não parecia tão fácil. Omsk ficava a quase 6.500 quilômetros de distância, no coração bárbaro da Rússia.

– Para que, senhor?

– Eles é que vão lhe dizer.

Lev não queria ir. Omsk ficava longe demais de casa.

– O senhor está me pedindo para ir como voluntário?

O coronel hesitou e Lev percebeu que a missão era voluntária – isto é, na medida do possível, em se tratando do Exército.

– O senhor está recusando a missão? – perguntou Markham em tom de ameaça.

– Apenas se ela for voluntária, senhor, é claro.

– Deixe-me lhe explicar a situação, tenente – disse o coronel. – Se o senhor se oferecer para a missão, não vou mandar que abra essa bolsa para me mostrar o que tem aí dentro.

Lev soltou um palavrão entre os dentes. Não havia nada que pudesse fazer. O coronel era esperto demais. E a passagem de Grigori para os Estados Unidos estava dentro daquele alforje.

Omsk, pensou ele. Que inferno.

– Será um prazer, senhor – falou.

Ethel subiu até o apartamento de Mildred no andar de cima da casa. Encontrou o lugar limpo, mas desarrumado, com brinquedos no chão, um cigarro aceso dentro de um cinzeiro e uma calcinha secando em frente à lareira.

– Você poderia cuidar de Lloyd hoje à noite? – pediu. Ela e Bernie iriam a uma reunião do Partido Trabalhista. Lloyd já estava com quase quatro anos e, portanto, era bem capaz de sair da cama e ir dar uma volta sozinho se ninguém o vigiasse.

– Claro – respondeu Mildred. Geralmente, quando uma não podia cuidar dos filhos à noite, a outra servia de babá. – Recebi uma carta de Billy – disse ela.

– Ele está bem?

– Está. Mas não acho que esteja na França. Ele não diz nada sobre as trincheiras.

– Então ele deve estar no Oriente Médio. Fico imaginado se já viu Jerusalém. – A cidade sagrada havia sido tomada pelas forças britânicas no final do ano anterior. – Nosso Da ficaria feliz com isso.

– Tem um recado para você. Ele diz que vai lhe escrever depois, mas me pediu para falar... – Ela enfiou a mão no bolso do avental. – É melhor eu ler de uma vez: “Escute, eu estou sem saber aqui quem governa na verdade a Rússia.” Achei bem estranho, para falar a verdade.

– O recado está em código – disse Ethel. – Você tem que ler de três em três palavras. O recado é Estou aqui na Rússia. O que ele está fazendo lá?

– Eu não sabia que nosso Exército estava na Rússia.

– Nem eu. Ele menciona alguma canção, ou o título de algum livro?

– Sim... como você sabe?

– É outro código.

– Ele me pede para lembrar você de uma canção que costumavam cantar, chamada “I’m with Freddie in the Zoo”. Nunca ouvi falar dela.

– Nem eu. São as iniciais. “Freddie in the Zoo” quer dizer... Fitz.

Bernie entrou usando uma gravata vermelha.

– Ele está ferrado no sono – falou, referindo-se a Lloyd.

– Mildred recebeu uma carta de Billy – disse Ethel. – Parece que ele está na Rússia com o conde Fitzherbert.

– Rá! – exclamou Bernie. – Estava me perguntando quanto tempo eles iriam levar para fazer isso.

– Fazer o quê?

– Mandar soldados para lutarem contra os bolcheviques. Eu sabia que isso estava por vir.

– Nós estamos em guerra com o novo governo russo?

– Não oficialmente, é claro. – Bernie olhou para o relógio. – Temos que ir. – Ele detestava chegar atrasado.

No ônibus, Ethel falou:

– Nós não podemos estar extraoficialmente em guerra. Ou estamos ou não estamos.

– Churchill e a corja dele sabem que o povo britânico não vai apoiar uma guerra contra os bolcheviques, então estão tentando mantê-la em segredo.

– Estou desapontada com Lênin... – disse Ethel, pensativa.

– Ele está fazendo o que é preciso! – interrompeu Bernie. Ele era um defensor fervoroso dos bolcheviques.

Ethel insistiu:

– Lênin corre o perigo de se tornar um tirano tão grande quanto o czar...

– Isso é ridículo!

– … mas, mesmo assim, ele deve ter a chance de mostrar o que pode fazer pela Rússia.

– Bom, pelo menos nesse ponto nós concordamos.

– Mas não sei muito bem o que podemos fazer a respeito.

– Precisamos de mais informação.

– Billy vai me escrever em breve. Ele dará os detalhes.

Ethel estava indignada com essa guerra secreta do governo – se é que era esse mesmo o caso –, mas também se preocupava com Billy. Seu irmão não ficaria de bico fechado. Se achasse que o Exército estava agindo mal, diria isso às claras e talvez enfrentasse problemas.

O Salão do Evangelho do Calvário estava lotado: a popularidade do Partido Trabalhista tinha aumentado durante a guerra. Isso se devia, em parte, ao fato de que o líder trabalhista, Arthur Henderson, fizera parte do Gabinete de Guerra de Lloyd George. Henderson havia começado a trabalhar em uma fábrica de locomotivas aos 12 anos, e seu desempenho como ministro tinha destruído o argumento conservador de que os operários não eram confiáveis o bastante para ter cargos no governo.

Ethel e Bernie foram se sentar ao lado de Jock Reid, um escocês de rosto vermelho, natural de Glasgow, que era o melhor amigo de Bernie quando este era solteiro. O Dr. Greenward presidia a assembleia. O principal item em pauta eram as próximas eleições gerais. Segundo os boatos, Lloyd George iria convocar um pleito nacional assim que a guerra terminasse. Aldgate precisava de um candidato trabalhista – e Bernie era o mais cotado.

Sua candidatura foi proposta e apoiada. Alguém sugeriu o Dr. Greenward como alternativa, porém o médico respondeu que achava melhor se ater à medicina.

Então Jayne McCulley se levantou. Ela era afiliada ao partido desde que Ethel e Maud haviam protestado contra o cancelamento de seu auxílio-separação e Maud havia sido carregada para a cadeia por um policial. Jayne disse:

– Eu li no jornal que as mulheres podem concorrer nas próximas eleições, e proponho que Ethel Williams seja nossa candidata.

Houve um instante de silêncio atônito e, em seguida, todos tentaram falar ao mesmo tempo.

Ethel ficou pasma. Nunca havia pensado naquilo. Desde que conhecera Bernie, ele sonhava ser o representante de Aldgate no Parlamento. Ela havia aceitado isso. Além do mais, as mulheres nunca tinham podido se candidatar. Duvidava que fosse possível mesmo agora. Seu primeiro impulso foi recusar imediatamente.

Jayne, no entanto, não havia terminado. Era uma jovem bonita, mas a meiguice de sua aparência era enganosa: ela podia ser muito veemente.

– Eu respeito Bernie, ele é bom em organizar as coisas, fazer reuniões – disse ela. – Mas Aldgate tem um representante liberal no Parlamento muito benquisto e provavelmente difícil de derrotar. Nós precisamos de um candidato capaz de conquistar esse assento para o Partido Trabalhista, alguém que possa dizer ao cidadãos do East End: “Sigam-me rumo à vitória!”, e ser obedecido. Nós precisamos de Ethel.

Todas as mulheres vibraram, bem como alguns dos homens, embora outros tenham resmungado, contrariados. Ethel percebeu que, caso se candidatasse, teria bastante apoio.

E Jayne estava certa: era bem capaz de Bernie ser o homem mais inteligente dali, mas não era um líder inspirador. Ele poderia explicar como ocorriam as revoluções e por que as empresas iam à falência, mas Ethel conseguiria influenciar as pessoas a embarcarem em uma cruzada.

Jock Reid se levantou.

– Camarada presidente, acredito que a legislação não permita que mulheres se candidatem.

– Eu posso esclarecer essa questão – disse o Dr. Greenward. – A lei que foi aprovada no início deste ano, concedendo o direito de voto às mulheres com mais de 30 anos, não previa a candidatura de mulheres às eleições. Mas o governo já reconheceu que isso é uma anomalia e a minuta de outro projeto de lei já foi redigida.

– Mas a lei tal como ela é hoje proíbe a eleição de mulheres – insistiu Jock –, então nós não podemos indicar uma. – Ethel abriu um sorriso irônico: não era curioso que os mesmos homens que clamavam por uma revolução mundial insistissem em seguir a lei ao pé da letra?

– Claramente, o objetivo é que o projeto de lei do Parlamento que qualifica as mulheres a se candidatarem seja aprovada antes das próximas eleições gerais – disse o Dr. Greenward –, de modo que não me parece haver problema algum que este núcleo indique uma mulher.

– Mas Ethel tem menos de 30 anos.

– Aparentemente, esse novo projeto de lei se aplica a mulheres acima dos 21 anos.

– Aparentemente? – repetiu Jock. – Como podemos indicar um candidato sem conhecer as regras?

– Talvez devêssemos adiar a indicação até a nova legislação ser aprovada – sugeriu o Dr. Greenward.

Bernie sussurrou algo no ouvido de Jock, que então falou:

– Vamos perguntar a Ethel se ela está disposta a se candidatar. Caso contrário, não há motivo para adiar a decisão.

Bernie se virou para Ethel com um sorriso confiante.

– Muito bem – disse o Dr. Greenward. – Ethel, se fosse indicada, você aceitaria?

Todos olharam para ela.

Ethel hesitou.

Aquele era o sonho de Bernie, e ele era seu marido. Mas qual deles seria a melhor escolha para o Partido Trabalhista?

Conforme os segundos foram passando, uma expressão de incredulidade tomou conta do rosto de Bernie. Havia esperado que ela fosse recusar a indicação na mesma hora.

Isso a deixou mais decidida.

– Eu... eu nunca tinha pensado no assunto – disse ela. – E, hã, como disse o presidente, essa possibilidade legal ainda nem existe. Então é uma pergunta difícil de responder. Acho que Bernie seria um bom candidato... mas, ao mesmo tempo, gostaria de um tempo para pensar. Então talvez devêssemos aceitar a sugestão do presidente e adiar a indicação.

Ela se virou para Bernie.

Ele parecia capaz de matá-la.

 

11 de novembro de 1918

O telefone da casa de Fitz em Mayfair tocou às duas da manhã.

Maud ainda estava acordada, sentada na sala de estar à luz de uma vela, com os quadros dos antepassados mortos a observá-la das paredes, as cortinas fechadas como sudários e os móveis à sua volta quase invisíveis, como animais noturnos em uma campina. Ela mal havia dormido nos últimos dias. Um pressentimento supersticioso lhe dizia que Walter seria morto antes de a guerra acabar.

Ela estava sozinha, segurando nas mãos uma xícara de chá frio, fitando as brasas da lareira, perguntando-se onde ele poderia estar e o que estaria fazendo. Será que estava dormindo em uma trincheira úmida qualquer, ou se preparando para o combate do dia seguinte? Ou será que já estava morto? Ela poderia já ser viúva, depois de ter passado apenas duas noites com o marido em quatro anos de casamento. A única coisa que sabia ao certo era que ele não era prisioneiro de guerra. Johnny Remarc havia verificado todas as listas de oficiais capturados para ela. Johnny não conhecia seu segredo: achava que Maud só estivesse preocupada porque Walter era um bom amigo de Fitz antes da guerra.

A campainha do telefone a espantou. A princípio, achou que o telefonema pudesse ser sobre Walter, mas isso não faria o menor sentido. A notícia sobre a prisão de um amigo poderia esperar até de manhã. Então devia ser Fitz, pensou ela, angustiada: teria ele sido ferido na Sibéria?

Foi correndo em direção ao hall, mas Grout chegou primeiro. Ela percebeu, sentindo uma onda de culpa, que havia se esquecido de liberar os empregados para que fossem dormir.

– Vou perguntar se lady Maud está em casa, meu amo – disse Grout para o aparelho. Ele cobriu o fone com a mão antes de se dirigir a Maud. – Lorde Remarc ligando do Departamento de Guerra, senhora.

Maud pegou o fone da mão de Grout e perguntou:

– É Fitz? Ele foi ferido?

– Não, não – respondeu Johnny. – Calma. A notícia é boa. Os alemães aceitaram os termos do armistício.

– Ai, Johnny, graças a Deus!

– Estão todos reunidos na floresta de Compiègne, ao norte de Paris, em dois trens parados em um desvio da ferrovia. Os alemães acabaram de entrar no vagão-restaurante do trem francês. Estão prontos para assinar.

– Mas ainda não assinaram?

– Não, ainda não. Estão discutindo sobre os termos exatos.

– Johnny, você pode me ligar de novo quando eles assinarem? Não vou dormir hoje.

– Posso, sim. Até logo.

Maud devolveu o fone ao mordomo.

– Talvez a guerra termine hoje à noite, Grout.

– Fico muito feliz em saber, senhorita.

– Mas você deveria ir para a cama.

– Com a sua permissão, senhorita, eu gostaria de ficar acordado até lorde Remarc ligar novamente.

– É claro.

– Mais um pouco de chá, senhorita?

Os Aberowen Pals chegaram a Omsk de manhã bem cedo.

Billy se lembraria para sempre de cada detalhe da viagem de quase 6.500 quilômetros desde Vladivostok pela ferrovia transiberiana. Levara 23 dias, mesmo com um sargento armado a postos dentro da locomotiva para garantir que o condutor e o foguista mantivessem a velocidade no máximo. Billy sentiu frio durante todo o trajeto: o fogareiro no centro do vagão mal conseguia aquecer as manhãs da Sibéria. Todos sobreviviam à base de pão preto e carne enlatada. Para Billy, no entanto, cada novo dia era uma revelação.

Ele não sabia haver no mundo lugares tão lindos quanto o lago Baikal. De um extremo a outro, esse lago era maior do que o País de Gales inteiro, disse-lhes o capitão Evans. Do trem que passava depressa, eles viram o sol se erguer por sobre a água calma e azul, iluminando os cumes das montanhas de quilômetros de altura do outro lado e dourando a neve que cobria os picos.

Por toda a vida, guardaria com carinho a lembrança de uma interminável caravana de camelos seguindo ao lado da ferrovia, dos animais lotados de carga a cruzar, com dificuldade e paciência, o solo coberto de neve, ignorando o século XX que chispava por eles em meio a ruídos de ferro e ao chiado do vapor. Estou longe pra cacete de Aberowen, pensou ele nesse instante.

Contudo, o incidente mais memorável de todos foi a visita que eles fizeram a uma escola de ensino secundário em Chita. O trem passou dois dias parado no local enquanto o coronel Fitzherbert se reunia com o líder da região, um chefe cossaco chamado Semenov. Billy se juntou a um grupo de visitantes norte-americanos que foi fazer uma excursão. O diretor da escola, que falava inglês, explicou que, até o ano anterior, eles só lecionavam para os filhos da classe média abastada e que os judeus eram expulsos mesmo quando podiam pagar a mensalidade. Atualmente, por ordem dos bolcheviques, a educação era gratuita para todos. O efeito disso era evidente. As salas de aula estavam abarrotadas de crianças maltrapilhas, que aprendiam a ler, escrever e contar e estudavam até ciências e artes. Independentemente do que Lênin tivesse ou não feito – e era difícil distinguir a verdade da propaganda conservadora –, ele pelo menos levava a sério a educação das crianças russas, pensou Billy.

Lev Peshkov estava no mesmo trem que ele. Havia cumprimentado Billy de forma calorosa, sem demonstrar um pingo de vergonha, como se tivesse esquecido que fora enxotado de Aberowen como trapaceiro e ladrão. Lev tinha conseguido ir para os Estados Unidos e se casar com uma garota rica. Agora era tenente e servia de intérprete para os Pals.

Os moradores de Omsk ovacionaram o batalhão enquanto eles marchavam da estação ferroviária até o quartel. Billy viu vários oficiais russos nas ruas, usando elegantes uniformes antiquados, mas que, aparentemente, estavam ali apenas como civis. Havia também muitos soldados canadenses na cidade.

Assim que o batalhão foi dispensado, Billy e Tommy foram dar um passeio pela cidade. Não havia muito para ver: uma catedral, uma mesquita, uma fortaleza feita de tijolos e um rio cheio de embarcações de carga e de passageiros. Eles ficaram surpresos ao ver muitos moradores usando uma ou outra peça de uniformes militares britânicos: uma mulher que vendia peixe frito em uma barraca vestida com uma túnica cáqui; um entregador que empurrava um carrinho de mão com uma calça de sarja grossa do Exército; um estudante alto, carregando uma mochila, caminhando pela rua com um par de botas britânicas novo em folha.

– Onde eles conseguiram essas roupas? – indagou Billy.

– Somos nós que fornecemos os uniformes ao Exército russo daqui, mas Peshkov me disse que os oficiais costumam vendê-los no mercado negro – explicou Tommy.

– É nisso que dá apoiar o lado errado – comentou Billy.

A Associação Cristã de Moços do Canadá tinha montado uma cantina na região. Vários soldados do batalhão já estavam lá: parecia ser o único lugar para se ir. Billy e Tommy se serviram de chá quente e de grandes fatias de torta de maçã.

– Esta cidade é o quartel-general do governo reacionário antibolchevique – disse Billy. – Eu li no New York Times. – Os jornais norte-americanos, disponíveis quando estavam em Vladivostok, eram mais honestos do que os britânicos.

Lev Peshkov entrou na cantina. Estava acompanhado por uma linda jovem russa vestindo um sobretudo barato. Todos o encararam. Como ele conseguia ser tão rápido?

Lev parecia animado:

– Ei, rapazes, vocês já ouviram os boatos?

Lev devia sempre ouvir os boatos em primeira mão, pensou Billy.

– Já, ficamos sabendo que você é bicha – disse Tommy.

Todos riram.

– Do que você está falando? – quis saber Billy.

– Eles assinaram um armistício. – Lev fez uma pausa. – Ainda não entenderam? A guerra acabou!

– Não para nós – falou Billy.

O pelotão do capitão Dewar estava atacando um vilarejo chamado Aux Deux Eglises, a leste do rio Meuse. Gus tinha ouvido um boato de que haveria um cessar-fogo às onze da manhã, mas seu comandante ordenara o ataque, de modo que ele o estava executando. Havia avançado suas metralhadoras pesadas até a beira de um bosque e os soldados estavam atirando nas construções do outro lado de uma extensa campina, dando ao inimigo tempo de sobra para recuar.

Infelizmente, os alemães não estavam aproveitando a oportunidade. Tinham posicionado morteiros e metralhadoras leves nos currais e pomares e revidavam com vigor. Uma das metralhadoras em especial, que disparava do telhado de um celeiro, estava conseguindo imobilizar metade do pelotão de Gus.

Este se dirigiu ao cabo Kerry, o melhor atirador do grupo:

– Você conseguiria lançar uma granada no telhado daquele celeiro?

Kerry, um rapaz sardento de 19 anos, respondeu:

– Se eu conseguisse chegar um pouco mais perto.

– É justamente esse o problema.

Kerry examinou o terreno.

– Tem uma pequena elevação antes da metade da campina – falou. – Dali eu conseguiria.

– É arriscado – disse Gus. – Você quer ser um herói? – Ele olhou para o relógio de pulso. – Se os boatos forem verdade, a guerra pode terminar daqui a cinco minutos.

Kerry deu um sorriso.

– Posso tentar, capitão.

Gus hesitou, relutando em deixar Kerry arriscar a vida. Mas aquilo ali era o Exército, eles ainda estavam lutando e ordens eram ordens.

– Tudo bem – disse ele. – Quando quiser.

Ele tinha esperanças de que Kerry fosse embromar, mas o rapaz levou o fuzil ao ombro na mesma hora e pegou uma caixa de granadas.

– Atenção todos! – gritou Gus. – Deem o máximo de cobertura possível a Kerry.

Todas as metralhadoras dispararam ao mesmo tempo e Kerry começou a correr.

O inimigo o viu na mesma hora e abriu fogo. O jovem cabo correu em zigue-zague pela campina como uma lebre perseguida por cães. Morteiros alemães explodiram à sua volta, mas, por milagre, não o atingiram.

A “pequena elevação” de Kerry ficava a quase 300 metros de distância.

Ele quase a alcançou.

O atirador inimigo mirou sua metralhadora com precisão em Kerry e disparou uma longa rajada. Em um piscar de olhos, o cabo foi atingido por uma dúzia de balas. Ergueu os braços, deixou cair as granadas e desabou no chão, o impulso fazendo-o voar até aterrissar a alguns passos do seu destino. Ficou totalmente imóvel, e Gus achou que, antes mesmo de atingir o solo, ele já estava morto.

As armas do inimigo se calaram. Após alguns segundos, os americanos também pararam de atirar. Gus pensou ouvir um barulho de comemoração ao longe. Todos os homens à sua volta se calaram para escutar. O lado alemão também estava comemorando.

Soldados alemães começaram a aparecer, saindo de seus abrigos no vilarejo distante.

Gus ouviu um barulho de motor. Uma motocicleta americana modelo Indian emergiu do bosque, pilotada por um sargento e com um major na garupa.

– Cessar fogo! – berrava o major. O motociclista o conduzia pela linha de combate, de posição em posição. – Cessar fogo! – tornou a gritar o major. – Cessar fogo!

O pelotão de Gus começou a vibrar. Os homens tiraram os capacetes e os jogaram para cima. Alguns dançaram, outros apertaram as mãos dos companheiros. Gus ouviu uma cantoria.

Porém não conseguia desgrudar os olhos do cabo Kerry.

Atravessou a campina devagar e ajoelhou-se ao lado do corpo. Já tinha visto muitos cadáveres, e não teve dúvidas de que Kerry estava morto. Perguntou-se qual seria o nome de batismo do garoto. Virou o corpo de frente. O peito de Kerry estava todo crivado de pequenos buracos de bala. Gus fechou os olhos do garoto e se levantou.

– Que Deus me perdoe – disse.

Por acaso, tanto Ethel quanto Bernie não tinham ido trabalhar naquele dia. Bernie estava acamado, com gripe, e a babá que cuidava de Lloyd também estava doente, de modo que Ethel ficara em casa para cuidar do marido e do filho.

Estava muito deprimida. Eles haviam brigado feio sobre qual dos dois deveria se candidatar ao Parlamento. Não fora apenas o pior bate-boca de sua vida de casados, como também o único. Desde então, os dois mal haviam se falado.

Ethel sabia que tinha razão, mas, mesmo assim, sentia culpa. Poderia muito bem ser uma parlamentar melhor do que Bernie – e, de toda forma, quem deveria decidir eram seus companheiros de partido, não eles próprios. Bernie vinha planejando aquilo há anos, mas isso não significava que o cargo fosse seu por direito. Embora Ethel nunca tivesse pensado no assunto, agora estava ansiosa para concorrer. As mulheres haviam conquistado o direito ao voto, mas ainda havia muito a fazer. Em primeiro lugar, era preciso reduzir o limite de idade para torná-lo igual ao dos homens, e também melhorar as condições de trabalho e os salários das mulheres. Na maioria das áreas, mesmo quando faziam exatamente o mesmo trabalho, elas ganhavam menos do que os homens. Por que não podiam receber o mesmo?

Mas ela gostava de Bernie e, quando viu a mágoa no rosto do marido, quis desistir de tudo na mesma hora.

– Eu esperava ser prejudicado pelos meus inimigos – dissera-lhe ele certa noite. – Pelos conservadores, pelos liberais em cima do muro, pelos imperialistas capitalistas, pela burguesia. Esperava até a oposição de um ou outro invejoso em meu próprio partido. Mas em uma pessoa eu tinha certeza de que podia confiar. E foi justamente ela quem me sabotou. – Quando se lembrava dessas palavras, Ethel sentia uma pontada no peito.

Ela levou uma xícara de chá para o marido às onze horas. O quarto do casal, embora modesto, era confortável, com cortinas de algodão baratas, uma escrivaninha e uma fotografia de Keir Hardie na parede. Bernie largou o romance que estava lendo, The Ragged Trousered Philanthropists, o livro de cabeceira de todos os socialistas.

– O que você vai fazer hoje à noite? – perguntou ele com frieza. A reunião do Partido Trabalhista estava marcada para mais tarde. – Já decidiu?

Ela já havia decidido. Poderia ter lhe dado a resposta dois dias antes, mas não conseguira reunir coragem para articular as palavras. Agora que ele havia feito a pergunta, iria respondê-la.

– Que vença o melhor candidato – falou em tom desafiador.

Ele pareceu magoado.

– Não entendo como você pode fazer isso comigo e ainda assim dizer que me ama.

Ethel achava injusto da parte dele usar um argumento como aquele. Por que ela não poderia dizer o mesmo? Isso, no entanto, não vinha ao caso.

– Não devemos pensar em nós mesmos, mas sim no partido.

– E o nosso casamento?

– Eu não vou abrir mão da candidatura por você só porque sou sua mulher.

– Você me traiu.

– Mas vou abrir mão dela mesmo assim – disse ela.

– O quê?

– Eu disse que vou abrir mão da candidatura.

Alívio se espalhou pelo rosto de Bernie.

– Mas não porque sou sua mulher – continuou ela. – Nem porque você é o melhor candidato.

Ele assumiu uma expressão intrigada.

– Então, por quê?

Ethel deu um suspiro.

– Estou grávida.

– Não acredito!

– Pois é. Justo na hora em que uma mulher pode entrar para o Parlamento, eu fico grávida.

Bernie sorriu.

– Bem, então tudo deu certo no final das contas!

– Sabia que você iria pensar assim – disse Ethel. Naquele instante, ficou ressentida com Bernie, com o bebê que carregava no ventre e com todo o resto de sua vida. Então se deu conta de que um sino de igreja estava tocando. Olhou para o relógio sobre o console da lareira. Eram onze e cinco. Por que estariam tocando o sino àquela hora de uma manhã de segunda-feira? Foi quando escutou outro sino. Franziu o cenho e se encaminhou para a janela. Não viu nada de estranho na rua, mas outros sinos começaram a badalar. A oeste, no céu sobre o centro de Londres, viu a fumaça vermelha de um sinalizador.

Voltou-se para Bernie.

– Parece que todas as igrejas de Londres estão tocando seus sinos.

– Alguma coisa aconteceu – disse ele. – Aposto que é o fim da guerra. Eles devem estar tocando pela paz!

– Bem – disse Ethel com amargura –, pelo raio da minha gravidez é que não é.

As esperanças de Fitz de derrubar Lênin e sua corja estavam concentradas no Governo Provisório de toda a Rússia, que ficava baseado em Omsk. E Fitz não estava sozinho: homens poderosos da maioria das principais nações do mundo esperavam que aquela cidade fosse o estopim da contrarrevolução.

A sede do diretório de cinco membros era um trem parado nos arredores da cidade. Fitz sabia que uma série de vagões blindados protegidos por soldados de elite abrigava o que restara do tesouro imperial: um estoque de ouro no valor de muitos milhões de rublos. O czar estava morto, assassinado pelos bolcheviques, mas seu dinheiro estava ali para dar poder e autoridade à oposição ao novo regime.

Fitz sentia ter dado uma forte contribuição pessoal ao diretório. O grupo de homens influentes que reunira em Tŷ Gwyn em abril daquele ano formava uma discreta rede dentro da política britânica e havia conseguido incentivar o apoio clandestino, porém significativo, da Grã-Bretanha à resistência russa. Estava certo de que isso, por sua vez, tinha conquistado o apoio de outras nações, ou pelo menos desencorajado qualquer ajuda por parte delas ao regime leninista. Os estrangeiros, no entanto, não podiam fazer tudo: cabia aos próprios russos se rebelarem.

Até onde o diretório conseguiria chegar? Embora o grupo fosse antibolchevique, seu presidente era um socialista revolucionário, Nikolai D. Avkentsiev, que Fitz fazia questão de ignorar. Os socialistas revolucionários eram quase tão ruins quanto o bando de Lênin. As esperanças de Fitz repousavam sobre a direita e os militares. Somente eles teriam capacidade de reinstaurar a monarquia e a propriedade privada. Ele foi encontrar o general Boldyrev, comandante supremo do exército siberiano do diretório.

Os vagões ocupados pelo governo estavam mobiliados com um luxo czarista decadente: assentos de veludo puídos, marchetaria lascada, cúpulas de abajur manchadas e criados idosos vestidos com as sobras encardidas dos uniformes enfeitados da antiga corte de São Petersburgo, com seus trançados e contas. Em um dos vagões, uma jovem de batom usando um vestido de seda fumava um cigarro.

Fitz ficou desanimado. Queria voltar aos velhos tempos, mas aquele ambiente parecia retrógrado demais até para seu gosto. Pensou com raiva na gozação sarcástica do sargento Williams. “O que estamos fazendo é legal?” Fitz sabia que a resposta a essa pergunta era questionável. Já era hora de ele calar a boca de Williams de uma vez por todas, pensou, irado. Aquele rapaz era praticamente um bolchevique.

O general Boldyrev era um homem grande, de aspecto desengonçado.

– Nós mobilizamos 200 mil homens – disse ele a Fitz com orgulho. – O senhor tem condições de equipá-los?

– Impressionante – respondeu Fitz, mas conteve um suspiro. Aquele era justamente o tipo de raciocínio que havia feito o Exército russo de seis milhões de soldados ser derrotado por forças alemãs e austríacas muito menos numerosas. Boldyrev chegava até a usar as dragonas ridículas típicas do antigo regime – grandes placas redondas e franjadas que o faziam parecer o personagem de uma ópera cômica de Gilbert e Sullivan. Com seu russo capenga, Fitz prosseguiu:

– Se eu fosse o senhor, mandaria metade dos convocados de volta para casa.

Boldyrev pareceu atônito:

– Por quê?

– Podemos equipar, no máximo, 100 mil homens. E eles precisam ser treinados. É melhor termos um exército pequeno e disciplinado do que uma turba imensa que vai recuar ou se render à primeira oportunidade.

– Idealmente, sim.

– Os suprimentos que nós lhes dermos devem ser entregues primeiro aos homens da linha de frente, não aos da retaguarda.

– Claro. Muito sensato.

Fitz estava com a sensação desalentadora de que Boldyrev estava concordando com ele sem de fato lhe dar ouvidos. De qualquer forma, tinha que prosseguir.

– Muito do que estamos oferecendo vem sendo desviado, como posso concluir pelo número de civis nas ruas usando peças de uniformes militares britânicos.

– Sim, é verdade.

– Recomendo enfaticamente que todos os oficiais que não estiverem em condições de servir tenham seus uniformes confiscados e sejam instruídos a voltar para casa. – O exército contrarrevolucionário era infestado de amadores e diletantes já idosos que se metiam nas decisões, porém mantinham distância do combate.

– Hum...

– E sugiro que o senhor dê mais poderes ao almirante Kolchak como ministro da Guerra. – O Ministério das Relações Exteriores britânico considerava Kolchak o mais promissor dos membros do diretório.

– Muito bem, muito bem.

– O senhor está disposto a fazer tudo isso? – perguntou Fitz, desesperado para obter algum tipo de compromisso.

– Com certeza.

– Quando?

– Tudo a seu tempo, coronel Fitzherbert, tudo a seu tempo.

Fitz se encheu de desgosto. Ainda bem que homens como Churchill e Curzon não podiam ver como as forças mobilizadas contra o bolchevismo eram pífias, refletiu com pessimismo. Mas quem sabe, com o incentivo dos britânicos, elas não evoluíssem? Fosse como fosse, ele precisava fazer o melhor possível com os recursos à sua disposição.

Ouviu-se uma batida na porta e o capitão Murray, seu ajudante de ordens, entrou trazendo um telegrama.

– Perdoe-me pela interrupção, coronel – disse ele, ofegante. – Mas tenho certeza de que o senhor vai querer saber esta notícia quanto antes.

No meio do dia, Mildred desceu ao térreo e disse a Ethel:

– Vamos para o oeste. – Ela estava se referindo ao West End londrino. – Todo mundo está indo para lá – continuou. – Eu mandei as meninas para casa. – Ela agora empregava duas jovens costureiras para ajudá-la em sua oficina de arremate de chapéus. – O East End inteiro está fechando mais cedo. É o fim da guerra!

Ethel estava animada para ir. O fato de ter cedido à vontade de Bernie não tinha melhorado muito o clima em casa. Ele havia se alegrado, mas ela se tornara mais amargurada. Sair de casa lhe faria bem.

– Eu teria que levar Lloyd – falou.

– Tudo bem, eu levo Enid e Lil. Eles vão se lembrar disso a vida toda: o dia em que ganhamos a guerra.

Ethel preparou um sanduíche de queijo para o almoço de Bernie, vestiu Lloyd com roupas quentes e então eles saíram. Conseguiram pegar um ônibus, mas ele não tardou a ficar lotado, com homens e meninos pendurados do lado de fora. Todas as casas pareciam ter hasteado uma bandeira, não apenas da Grã-Bretanha, mas também do País de Gales, da França e dos Estados Unidos. As pessoas abraçavam desconhecidos, dançavam pelas ruas, se beijavam. Chovia, mas ninguém ligava para isso.

Ethel pensou em todos os rapazes que já não corriam mais perigo, então começou a se esquecer dos próprios problemas e a compartilhar a alegria do momento.

Depois de passarem pelos teatros e entrarem na região em que ficavam os órgãos do governo, o tráfego praticamente parou. A Trafalgar Square era uma massa ondulante de pessoas comemorando. Já não havia como o ônibus avançar, de modo que Ethel e Mildred saltaram com as crianças. Atravessaram a Avenida Whitehall até a Downing Street. Não conseguiram se aproximar da sede do governo, no número 10, por conta da multidão que queria ver o primeiro-ministro Lloyd George, o homem que havia ganhado a guerra. Entraram no St. James’s Park, que estava repleto de casais enlaçados em meio aos arbustos. Do outro lado do parque, milhares de pessoas estavam paradas diante do Palácio de Buckingham. Elas entoavam a canção patriótica “Keep the Home Fires Burning” e, quando terminaram de cantá-la, emendaram o hino de louvor a Deus “Now Thank We All Our God”. Ethel viu que uma moça magra com um terninho de tweed conduzia o coro de vozes em pé em cima de um caminhão, e pensou que uma garota jamais teria se atrevido a fazer uma coisa daquelas antes da guerra.

O grupo atravessou a rua em direção ao Green Park, esperando conseguir chegar mais perto do palácio. Um rapaz sorriu para Mildred e, quando ela sorriu de volta, abraçou-a e tascou-lhe um beijo. Ela retribuiu com entusiasmo.

– Parece que você gostou do beijo – comentou Ethel, com um pouco de inveja, quando o rapaz se afastou.

– E gostei mesmo – respondeu Mildred. – Teria lhe dado uma chupada se ele tivesse me pedido.

– Não vou contar isso a Billy – disse Ethel com uma risada.

– Billy não é bobo, ele me conhece.

As duas contornaram a multidão com as crianças e chegaram à rua chamada Constitution Hill. Ali havia menos gente, mas elas estavam na lateral do Palácio de Buckingham, de modo que não conseguiriam ver o rei caso ele decidisse sair para a sacada. Ethel estava se perguntando para onde ir em seguida quando uma tropa da polícia montada veio descendo a rua, fazendo as pessoas se afastarem às pressas.

Atrás dos policiais vinha uma carruagem aberta puxada a cavalos e, dentro dela, sorrindo e acenando, estavam o rei e a rainha. Ethel os reconheceu na hora, lembrando-se muito bem de quando os dois haviam visitado Aberowen quase cinco anos atrás. Mal pôde acreditar na própria sorte quando a carruagem começou a vir lentamente em sua direção. Notou que a barba do rei agora estava grisalha: ainda era preta quando ele estivera em Tŷ Gwyn. O monarca parecia exausto, porém feliz. Ao seu lado, a rainha segurava uma sombrinha para proteger o chapéu da chuva. Seus famosos seios pareciam ainda mais fartos do que antes.

– Olhe, Lloyd! – disse Ethel. – É o rei!

A carruagem passou a poucos centímetros de Ethel e Mildred.

– Oi, rei! – falou Lloyd bem alto.

O monarca ouviu e deu um sorriso.

– Oi, rapazinho – respondeu; e então a carruagem passou.

Sentado no vagão-restaurante do trem blindado, Grigori olhou para o outro lado da mesa. O homem sentado à sua frente era presidente do Conselho de Guerra Revolucionário e comissário do povo para assuntos militares e navais. Isso significava que ele comandava o Exército Vermelho. Seu nome era Lev Davidovitch Bronstein, mas, como muitos dos principais revolucionários, ele havia adotado um pseudônimo e era conhecido como Leon Trótski. Completara 39 anos há poucos dias, e o destino da Rússia estava em suas mãos.

A revolução já contava um ano, e Grigori nunca estivera tão preocupado em relação a ela. A tomada do Palácio de Inverno, que havia lhe parecido um desfecho, na verdade fora apenas o início da luta. As nações mais poderosas do mundo eram hostis aos bolcheviques. O armistício assinado naquele dia significava que, agora, essas mesmas nações poderiam concentrar todas as suas forças em destruir a revolução. E somente o Exército Vermelho era capaz de detê-las.

Muitos soldados não gostavam de Trótski por acharem que ele não passava de um aristocrata judeu. Na Rússia, era impossível ser as duas coisas, mas soldados não primavam pela lógica. Trótski não era aristocrata, embora seu pai tivesse sido um próspero agricultor e houvesse lhe proporcionado uma boa instrução. Sua arrogância, no entanto, depunha contra ele, que ainda caíra na asneira de viajar acompanhado de seu próprio chef de cozinha e de vestir seus subordinados com botas novas e botões de ouro. Parecia mais velho do que de fato era. Sua cabeleira encaracolada ainda era preta, mas seu rosto passara a exibir rugas de preocupação.

No Exército, ele havia conseguido fazer verdadeiros milagres.

O Exército Vermelho, que tinha derrubado o governo provisório, acabou se mostrando menos eficaz no campo de batalha. Seus homens bebiam muito e eram indisciplinados. Tomar decisões táticas por meio de votações em assembleias de soldados tinha se revelado uma forma ruim de lutar, pior ainda do que receber ordens de aristocratas diletantes. Os Vermelhos tinham perdido batalhas importantes para os contrarrevolucionários, que começavam a se autointitular Exército Branco.

Apesar dos fortes protestos, Trótski reinstituíra o alistamento obrigatório. Havia convocado vários ex-oficiais czaristas, que batizara de “especialistas”, e lhes devolvera seus antigos postos. Também havia trazido de volta a pena de morte para os desertores. Grigori não gostava dessas medidas, mas entendia que eram necessárias. Qualquer coisa era melhor do que a contrarrevolução.

O que mantinha o Exército coeso era um núcleo formado por membros do Partido Bolchevique. Estes tinham sido cuidadosamente espalhados por todas as unidades, de modo a maximizar seu impacto. Alguns eram soldados comuns; outros ocupavam postos de comando; e outros ainda, como Grigori, eram comissários políticos que trabalhavam em conjunto com os comandantes militares e faziam relatórios para o Comitê Central Bolchevique em Moscou. Eles mantinham o moral elevado, lembrando aos soldados que estavam lutando pela causa mais nobre da história da humanidade. Quando o Exército era obrigado a ser implacável e cruel, como nas vezes em que confiscavam cereais e cavalos de famílias camponesas paupérrimas, os bolcheviques explicavam aos soldados por que essas medidas eram necessárias para o bem maior. Além disso, relatavam burburinhos de descontentamento assim que eles surgiam, de modo a abafá-los antes que se espalhassem.

Mas será que isso bastaria?

Grigori e Trótski estavam curvados sobre um mapa. Trótski apontava para a região transcaucasiana, situada entre a Rússia e a Pérsia.

– Os turcos ainda controlam o mar Cáspio, com alguma ajuda dos alemães – disse ele.

– O que é uma ameaça aos poços de petróleo – murmurou Grigori.

– Denikin é forte na Ucrânia. – Milhares de aristocratas, oficiais e burgueses fugidos da revolução tinham ido parar em Novocherkassk, onde haviam formado uma força contrarrevolucionária liderada pelo general Denikin.

– O chamado Exército Voluntário – disse Grigori.

– Exatamente. – Trótski moveu o dedo para o norte da Rússia. – Os britânicos têm uma esquadra naval em Murmansk. Em Arkhangelsk, há três batalhões da infan­taria norte-americana. Acrescente-se a isso reforços de quase todos os demais países: Canadá, China, Polônia, Itália, Sérvia... talvez fosse mais rápido listar as nações que não mandaram soldados para o norte congelado do nosso país.

– E ainda temos a Sibéria.

Trótski aquiesceu.

– Os japoneses e americanos têm forças em Vladivostok. Os tchecos controlam a maior parte da ferrovia transiberiana. Há britânicos e canadenses em Omsk, apoiando o suposto Governo Provisório de toda a Rússia.

Grigori já sabia de quase tudo aquilo, porém nunca havia analisado a situação como um todo.

– Ora, mas nós estamos cercados! – exclamou.

– Exatamente. E, agora que as potências imperial-capitalistas selaram a paz, terão milhões de soldados disponíveis.

Grigori tentou encontrar uma luz no fim do túnel.

– Por outro lado, nos últimos seis meses nós aumentamos o Exército Vermelho de 300 mil para um milhão de homens.

– Eu sei. – O lembrete não animou Trótski. – Mas não é o suficiente.

A Alemanha estava em plena revolução – e, aos olhos de Walter, ela guardava uma semelhança terrível com a Revolução Russa do ano anterior.

Tudo começou com um motim. Os oficiais da Marinha ordenaram à frota em Kiel que zarpasse e atacasse os britânicos em uma missão suicida, porém, como os marinheiros sabiam que um armistício estava sendo negociado, eles se recusa­ram. Walter chamara a atenção do pai para o fato de que esses oficiais estavam contrariando a vontade do Kaiser, o que os qualificava como amotinados, e eram os marinheiros quem estavam sendo leais ao regime. Esse argumento deixou Otto apoplético de tanta raiva.

Quando o governo tentou reprimir os marinheiros, um conselho de operários e soldados nos moldes dos sovietes russos assumiu o controle de Kiel. Dois dias depois, Hamburgo, Bremen e Cuxhaven também já eram controladas por sovietes. Na antevéspera, o Kaiser havia abdicado.

Walter estava temeroso. Queria uma democracia, não uma revolução. Contudo, no dia da abdicação, milhares de operários berlinenses haviam saído em passeata, agitando bandeiras vermelhas, e o líder de extrema esquerda Karl Liebknecht declarara a Alemanha uma república socialista livre. Walter não sabia como aquilo iria terminar.

O armistício foi um dos piores momentos. Ele sempre acreditara que a guerra era um erro terrível, mas estar certo não lhe trazia satisfação alguma. Sua pátria havia sido derrotada e humilhada, e seus conterrâneos passavam fome. Sentado na sala de estar da casa dos pais em Berlim, folheando um jornal, Walter estava tão deprimido que nem conseguia tocar piano. O papel de parede tinha desbotado e as molduras dos quadros acumulavam poeira. O velho piso de madeira estava cheio de tacos soltos, mas não havia quem o consertasse.

Walter só podia torcer para que o mundo aprendesse uma lição. Os 14 Pontos do presidente Wilson eram um raio de luz que talvez pudesse prenunciar o nascer do sol. Será que os gigantes entre as nações conseguiriam encontrar uma forma de resolver suas desavenças de forma pacífica?

Ele estava furioso com um artigo publicado em um jornal de direita.

– Esse jornalista idiota está dizendo que o Exército alemão nunca foi derrotado – falou quando seu pai entrou na sala. – Segundo ele, nós fomos traídos pelos judeus e pelos socialistas do nosso próprio país. Precisamos dar um basta nesse tipo de bobagem.

Irado, Otto assumiu um tom desafiador.

– E por que deveríamos fazer isso? – perguntou ele.

– Porque sabemos que não é verdade.

– Pois eu acho que nós fomos traídos pelos judeus e pelos socialistas.

– O quê? – perguntou Walter, incrédulo. – Não foram os judeus nem os socialistas que nos derrotaram duas vezes no rio Marne. Nós perdemos a guerra!

– Nós fomos enfraquecidos pela falta de suprimentos.

– Que foi causada pelo bloqueio britânico. A quem devemos culpar pela entrada dos americanos no conflito? Não foram os judeus nem os socialistas que exigiram uma guerra submarina irrestrita e afundaram navios com passageiros americanos.

– Foram os socialistas que aceitaram os termos ultrajantes do armistício aliado.

Walter quase perdeu a razão de tanta raiva.

– O senhor sabe muito bem que foi Ludendorff quem pediu o armistício. O chanceler Ebert só foi nomeado anteontem. Como o senhor pode colocar a culpa nele?

– Se o Exército ainda estivesse no comando, nós jamais teríamos assinado o documento de hoje.

– Mas vocês não estão no comando, porque perderam a guerra. Vocês disseram ao Kaiser que conseguiriam ganhá-la e, por causa disso, ele perdeu a coroa. Como vamos aprender com nossos erros se vocês deixarem o povo alemão acreditar em mentiras como essas?

– Se o povo achar que fomos derrotados, vai ficar desmoralizado.

– O povo deveria ficar desmoralizado! Os líderes europeus agiram de forma perversa e tola, e o resultado foi que 10 milhões de homens morreram. Ao menos permita que os alemães entendam isso, para que eles nunca mais deixem acontecer novamente!

– Não – respondeu seu pai.

 

De novembro a dezembro de 1918

No dia seguinte ao armistício, Ethel acordou cedo. Tremendo de frio na cozinha de piso de pedra, esperando a chaleira ferver no fogão antiquado, ela tomou a decisão de ser feliz. Havia vários motivos para tanto. Não só a guerra acabara como ela estava esperando outro filho. Tinha um marido fiel que a adorava. As coisas não haviam saído exatamente conforme seus planos, mas ela não deixaria que isso a entristecesse. Decidiu pintar sua cozinha com um tom vivo de amarelo. Cores fortes estavam na moda.

Mas antes precisava tentar consertar seu casamento. Bernie tinha se apaziguado com a sua desistência, porém ela continuava amargurada, o que por sua vez mantinha o ambiente pesado dentro de casa. Ethel sentia raiva, mas não queria que a briga durasse para sempre. Ficou imaginando se conseguiria fazer as pazes com ele.

Levou duas xícaras de chá até o quarto e voltou para a cama. Lloyd ainda dormia em seu berço no canto.

– Como está se sentindo? – perguntou enquanto Bernie se sentava e punha os óculos.

– Melhor, acho.

– Passe mais um dia na cama, para garantir que a gripe vá embora de vez.

– Acho que vou fazer isso. – Seu tom estava neutro, nem carinhoso, nem hostil.

Ela bebericou o chá quente.

– O que você prefere: menino ou menina?

Bernie ficou calado, e a princípio Ethel achou que ele estivesse se recusando a responder de birra, mas na verdade estava só pensando por alguns instantes, como geralmente fazia antes de responder a uma pergunta. Por fim, falou:

– Bem, nós já temos um menino, então acho que seria bom ter um de cada.

Ela sentiu uma onda de afeto por ele. Bernie sempre falava como se Lloyd fosse seu filho.

– Temos que garantir que este seja um bom país para eles crescerem – disse ela. – Um país onde possam ter uma boa instrução, um emprego e uma casa decente para criar os próprios filhos. E sem mais nenhuma guerra.

– Lloyd George vai convocar uma eleição de emergência.

– Você acha?

– Ele é o homem que ganhou a guerra. Vai querer ser reeleito antes de a euforia passar.

– Acho que o Partido Trabalhista ainda vai se sair bem.

– Nós temos chance em lugares como Aldgate, pelo menos.

Ethel hesitou.

– Você gostaria que eu administrasse a sua campanha?

Bernie pareceu indeciso.

– Eu pedi a Jock Reid para ser meu assessor.

– Jock pode cuidar da papelada jurídica e das finanças – falou Ethel. – Eu organizo os comícios, essas coisas. Sou muito melhor do que ele nisso. – De repente, ela teve a sensação de que aquela conversa era sobre seu casamento, não apenas sobre a campanha.

– Tem certeza de que quer fazer isso?

– Tenho. Jock só iria mandar você fazer discursos. Você vai precisar fazer isso, é claro, mas não é seu ponto forte. Você lida melhor com grupos pequenos, conversando com as pessoas enquanto toma uma xícara de chá. Eu posso colocá-lo para ir a fábricas e armazéns, onde você poderá conversar informalmente com os operários.

– Você tem razão, sem dúvida – disse Bernie.

Ela terminou de beber o chá e pôs a xícara e o pires no chão ao lado da cama.

– Quer dizer que você está se sentindo melhor?

– Estou.

Ela pegou a xícara e o pires dele, colocou-os no chão e então tirou a camisola pela cabeça. Seus seios já não eram mais tão empinados quanto antes da gravidez de Lloyd, mas ainda eram firmes e redondos.

– Melhor quanto? – perguntou.

Ele encarou seu corpo nu.

– Bastante.

Os dois não faziam amor desde a noite em que Jayne McCulley havia proposto a candidatura de Ethel. Ela sentia muita falta. Segurou os dois seios com as mãos. O ar frio do quarto deixava seus mamilos tesos.

– Sabe o que é isto aqui?

– Se não me engano, são os seus seios.

– Há quem os chame de peitos.

– Eu os chamo de lindos. – A voz dele havia ficado um pouco rouca.

– Você quer brincar com eles?

– O dia inteiro.

– Isso eu já não sei – disse ela. – Mas comece assim mesmo para nós vermos o que acontece.

– Está bem.

Ethel suspirou, feliz. Os homens eram tão simples.

Uma hora depois, ela saiu para o trabalho, deixando Lloyd com Bernie. Não havia muita gente na rua: aquela manhã, Londres estava de ressaca. Ela chegou ao escritório do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria Têxtil e sentou-se diante de sua mesa. Enquanto pensava no dia de trabalho que tinha pela frente, deu-se conta de que a paz criaria novos problemas para o setor industrial. Milhões de homens liberados do Exército estariam à procura de emprego e iriam querer expulsar as mulheres que vinham ocupando seus postos havia quatro anos. Essas mulheres, no entanto, precisavam de seus salários. Nem todas tinham um homem prestes a voltar da França: muitos de seus maridos estavam enterrados lá. Elas precisavam do sindicato, e de Ethel.

Quando chegasse a eleição, o sindicato naturalmente apoiaria o Partido Trabalhista. Ethel passou a maior parte do dia planejando reuniões.

Os jornais vespertinos trouxeram notícias surpreendentes sobre a eleição. Lloyd George decidira manter o governo de coalizão mesmo em tempos de paz. Não faria campanha como líder dos liberais, mas sim como chefe da coalizão. Naquela mesma manhã, havia discursado para 200 parlamentares liberais na sede do governo e conquistara o apoio deles. Ao mesmo tempo, Bonar Law havia convencido os parlamentares conservadores a apoiarem a ideia.

Ethel ficou pasma. Se fosse assim, em quem as pessoas deveriam votar?

Ao chegar em casa, encontrou Bernie furioso.

– Isso não é um pleito, é uma droga de uma coroação – disse ele. – Rei David Lloyd George. Que traidor. Ele teve a chance de criar um governo de esquerda radical, e o que fez? Continuou do lado de seus amiguinhos conservadores! É um vira-casaca, isso sim.

– Não vamos desistir ainda – disse Ethel.

Dois dias mais tarde, o Partido Trabalhista se retirou da coalizão e anunciou que faria campanha contra Lloyd George. Quatro parlamentares trabalhistas que eram ministros do governo se recusaram a renunciar e foram prontamente expulsos do partido. A eleição foi marcada para o dia 14 de dezembro. Para que houvesse tempo de os votos dos soldados serem trazidos da França e contados, os resultados só seriam divulgados depois do Natal.

Ethel começou a montar o cronograma de campanha de Bernie.

No dia seguinte ao armistício, Maud escreveu para Walter no papel timbrado do irmão e depositou a carta na caixa de correio vermelha da esquina.

Não fazia ideia de quanto tempo o serviço levaria para se normalizar, mas, quando isso acontecesse, queria que seu envelope estivesse no alto da pilha. Redigiu seu texto com cuidado, para o caso de a censura continuar em vigor: não se referiu ao casamento, mas disse apenas torcer para que os dois pudessem retomar seu antigo relacionamento agora que seus países haviam selado a paz. Talvez a carta fosse arriscada assim mesmo. Mas ela estava desesperada para descobrir se Walter estava vivo e, caso estivesse, para vê-lo.

Temia que os Aliados vitoriosos fossem querer punir o povo alemão, porém o discurso de Lloyd George dirigido aos parlamentares liberais naquele dia tinha sido tranquilizador. Segundo os jornais vespertinos, ele dizia que a paz com a Alemanha precisava ser imparcial e justa. “Não podemos permitir que nenhum sentimento de vingança, nenhum impulso de ganância, nenhum tipo de cobiça passe por cima dos princípios fundamentais da justiça.” O governo resistiria com determinação ao que ele chamou de “um conceito de vingança e mesquinhez reles, sórdido e ordinário”. Isso a alegrou. De toda forma, a vida dos alemães já seria dura o bastante dali para a frente.

Contudo, no dia seguinte, ficou horrorizada ao abrir o Daily Mail durante o café da manhã. O título da matéria principal era OS HUNOS DEVEM PAGAR. O jornal defendia o envio de ajuda alimentícia aos alemães – só porque “se a Alemanha morrer de fome, não vai poder pagar o que deve”. O Kaiser, prosseguia o texto, deveria ser julgado por crimes de guerra. O jornal também atiçava as chamas da vingança ao publicar, no alto de sua coluna de cartas, uma crítica virulenta da viscondessa Templetown intitulada FORA HUNOS.

– Por quanto tempo precisaremos continuar odiando uns aos outros? – perguntou Maud a tia Herm. – Um ano? Dez? Para sempre?

Maud, no entanto, não deveria ter ficado surpresa. O Mail havia fomentado uma campanha de ódio contra os 30 mil alemães que viviam na Grã-Bretanha no início da guerra – grande parte deles residentes de longa data, que consideravam o país o seu lar. Consequentemente, famílias haviam sido separadas e milhares de pessoas inofensivas tinham passado anos em campos de concentração britânicos. Era uma burrice, mas as pessoas precisavam de alguém para odiar e os jornais estavam sempre prontos para suprir essa demanda.

Maud conhecia o dono do Mail, lorde Northcliffe. Como todos os figurões da imprensa, ele realmente acreditava nos disparates que publicava. Seu talento era dar voz aos preconceitos mais tacanhos e ignorantes de seus leitores como se estes fizessem sentido, de modo que o vergonhoso parecesse louvável. Era por isso que as pessoas compravam o jornal.

Ela sabia também que, recentemente, Lloyd George havia desdenhado Northcliffe. O arrogante magnata da imprensa havia proposto que ele próprio fizesse parte da delegação britânica na conferência de paz que estava por vir – e ficara ofendido quando o primeiro-ministro recusara seu nome.

Maud estava preocupada. Na política, às vezes era preciso fazer as vontades de pessoas desprezíveis, mas Lloyd George parecia ter se esquecido disso. Ela se perguntou, aflita, qual seria o impacto da propaganda maliciosa do Mail sobre a eleição.

Poucos dias depois, descobriu.

Ela foi a uma assembleia eleitoral em uma sala municipal no East End londrino. Eth Leckwith estava na plateia e seu marido, Bernie, no palanque. Embora as duas tivessem sido amigas e colegas de luta durante anos, Maud não havia feito as pazes com Ethel. Na verdade, ela ainda tremia de raiva quando se lembrava de como Ethel e outros haviam incentivado o Parlamento a aprovar a lei que deixava as mulheres em desvantagem em relação aos homens nas eleições. Mesmo assim, sentia falta da animação e do sorriso fácil da antiga amiga.

Durante as apresentações, a plateia se mostrou indócil. Por mais que algumas mulheres já pudessem votar, os homens ainda eram maioria. Maud supôs que grande parte das mulheres ainda não tivesse se acostumado à ideia de que precisava se interessar por debates políticos. No entanto, também achava que elas ficariam intimidadas com o tom das reuniões políticas, em que os homens subiam em um palanque para fazer discursos fervorosos enquanto a plateia aplaudia ou vaiava.

Bernie foi o primeiro a falar. Maud viu na mesma hora que ele não era um grande orador. Falou sobre o novo estatuto do Partido Trabalhista, em especial sobre a quarta cláusula, que exigia o controle estatal sobre os meios de produção. Maud achou isso interessante, pois traçava uma divisão clara entre os trabalhistas e os liberais defensores da indústria – mas logo percebeu que estava em minoria. O homem sentado ao seu lado foi ficando cada vez mais irrequieto e, por fim, gritou:

– Vocês vão enxotar os alemães do nosso país?

Bernie ficou sem ação. Depois de balbuciar por alguns instantes, ele disse:

– Eu faria qualquer coisa que beneficiasse o trabalhador. – Maud se perguntou como ficavam as trabalhadoras, e imaginou que Ethel estivesse pensando a mesma coisa. – Mas não creio que medidas contra os alemães na Grã-Bretanha sejam prioridade.

A resposta não foi muito bem recebida e, na verdade, provocou uma ou outra vaia.

– Mas, voltando a assuntos mais importantes...

Do outro lado da sala, alguém gritou:

– E quanto ao Kaiser?

Bernie cometeu o erro de responder ao ouvinte inoportuno com uma pergunta.

– O que tem o Kaiser? – retorquiu. – Ele abdicou.

– Ele deve ou não ser julgado?

– Será que vocês não entendem que um julgamento significa que ele poderá se defender? – perguntou Bernie, exasperado. – Querem mesmo dar ao imperador da Alemanha a possibilidade de proclamar sua inocência ao mundo?

Era um argumento convincente, pensou Maud, mas não era o que a plateia queria ouvir. As vaias ficaram mais fortes e ouviram-se gritos de “Enforquem o Kaiser!”.

Os eleitores britânicos ficavam agressivos se você os atiçasse, pensou Maud, pelo menos os homens. Poucas mulheres iriam querer participar de reuniões como aquela.

– Se nós enforcássemos nossos inimigos derrotados, não passaríamos de bárbaros – disse Bernie.

O homem ao lado de Maud gritou novamente:

– Vocês vão fazer o huno pagar?

Isso gerou a reação mais forte de todas. Várias pessoas exclamaram: “Façam o huno pagar!”

– Sim, mas com sensatez – começou Bernie, porém não conseguiu ir além disso.

– Façam o huno pagar! – O clamor se generalizou e, em poucos instantes, todos entoavam em uníssono: – Façam o huno pagar! Façam o huno pagar!

Maud se levantou da cadeira e foi embora.

Woodrow Wilson foi o primeiro presidente norte-americano a sair do país durante o mandato.

Em 4 de dezembro, ele zarpou de Nova York. Nove dias depois, Gus estava à sua espera no cais de Brest, na extremidade ocidental da península bretã, na França. Ao meio-dia, a névoa se dissipou e o sol saiu pela primeira vez em dias. Na baía, navios de guerra franceses, britânicos e norte-americanos formavam uma guarda de honra, pelo meio da qual o presidente passou a bordo do navio de transporte de tropas da Marinha americana George Washington. Houve uma salva de tiros em sua homenagem e uma banda tocou o hino dos Estados Unidos.

Para Gus, foi um momento solene. Wilson tinha ido até ali para garantir que nunca mais houvesse uma guerra como a que acabara há pouco. Os 14 Pontos de Wilson e sua Liga das Nações pretendiam mudar para sempre a forma como os países solucionavam seus conflitos. Era uma ambição incomensurável. Em toda a história da civilização, nenhum político jamais havia almejado tanto. Se Wilson tivesse sucesso, o mundo seria outro.

Às três da tarde, a primeira-dama Edith Wilson desceu a prancha de desembarque de braços dados com o general Pershing, seguidos pelo presidente, que usava uma cartola.

A cidade de Brest recebeu Wilson como um herói conquistador. Vive Wilson, diziam os cartazes, Défenseur du Droit des Peuples. Viva Wilson, Defensor dos Direitos dos Povos. Todos os prédios ostentavam a bandeira norte-americana hasteada. Multidões ocupavam as calçadas, sendo que muitas das mulheres usavam o tradicional toucado bretão, com seu arranjo alto e rendado. Gaitas de foles ressoavam por toda parte. Dessas, Gus não fazia a menor questão.

O ministro das Relações Exteriores francês fez um discurso de boas-vindas. Gus se juntou ao grupo dos jornalistas americanos. Reparou em uma mulher baixinha com um grande chapéu de pele. Quando ela virou a cabeça, viu que seu rosto bonito era maculado por um olho permanentemente fechado. Encantado, abriu um sorriso: era Rosa Hellman. Estava louco para saber a opinião dela sobre a conferência de paz.

Após os discursos, toda a comitiva presidencial embarcou no trem noturno para a viagem de quase 650 quilômetros até Paris. O presidente apertou a mão de Gus e disse:

– Fico feliz por tê-lo de volta à nossa equipe, Gus.

Wilson queria estar acompanhado por colaboradores conhecidos para a Conferência de Paz de Paris. Seu principal conselheiro seria o coronel House, o texano pálido com o qual vinha se consultando extraoficialmente sobre questões de política externa há anos. Gus seria o mais jovem do grupo.

Wilson parecia cansado, e ele e Edith se recolheram à sua cabine. Gus estava preocupado. Ouvira boatos de que o presidente andava mal de saúde. Em 1906, um vaso havia estourado atrás do seu olho esquerdo, causando uma cegueira temporária; os médicos diagnosticaram pressão alta e o aconselharam a se aposentar. Wilson, é claro, ignorara solenemente o conselho e acabara sendo eleito presidente – mas, ultimamente, vinha tendo dores de cabeça que talvez fossem um novo sintoma do velho problema de pressão. A conferência de paz seria árdua: Gus torcia para que Wilson aguentasse firme.

Rosa também estava no trem. Gus sentou-se em frente a ela no estofado brocado do vagão-restaurante.

– Estava me perguntando se o veria aqui – disse ela. Parecia feliz por tê-lo encontrado.

– O Exército me liberou – disse Gus, que ainda usava seu uniforme de capitão.

– Lá nos Estados Unidos, Wilson foi duramente criticado pela escolha de seus colaboradores. O que não inclui você, é claro...

– Sou peixe pequeno.

– Mas alguns disseram que ele não deveria ter trazido a mulher.

Gus deu de ombros. Aquilo parecia irrelevante. Depois da experiência do campo de batalha, seria difícil levar a sério algumas das preocupações que as pessoas tinham em tempos de paz.

– E, o que é mais importante, ele não trouxe nenhum republicano.

– Ele quer aliados na equipe, não inimigos – falou Gus, indignado.

– Ele precisa de aliados nos Estados Unidos também – disse Rosa. – Já perdeu o Congresso.

Ela estava certa, e Gus se lembrou de como Rosa era inteligente. As eleições para a Câmara dos Representantes e o Senado realizadas no meio de seu mandato haviam sido desastrosas para Wilson. Os republicanos tinham ganhado o controle das duas casas.

– Como isso aconteceu? – quis saber ele. – Fiquei totalmente fora do ar nesse período.

– O povo está farto de racionamentos e preços altos e o final da guerra não chegou a tempo de ajudar. Além disso, os liberais odeiam a Lei de Espionagem. Ela permitiu a Wilson prender qualquer um que discordasse da guerra. E ele não teve o menor pudor de usá-la: Eugene Debs foi condenado a 10 anos. – Debs era o candidato socialista à eleição presidencial. Rosa então concluiu em um tom raivoso: – Você não pode jogar seus opositores na cadeia e, ao mesmo tempo, fingir acreditar na liberdade.

Gus se lembrou de quanto gostava do duelo de espadas que era debater um assunto com Rosa.

– Na guerra, a liberdade às vezes precisa ser comprometida – disse ele.

– Obviamente, os eleitores americanos não pensam assim. E tem mais uma coisa: Wilson instaurou a segregação nos departamentos do governo.

Gus não sabia se os negros algum dia poderiam ser alçados ao mesmo nível dos brancos, porém, como a maioria dos norte-americanos liberais, achava que a melhor forma de descobrir era lhes dar oportunidades melhores e ver o que acontecia. Wilson e sua mulher, no entanto, eram sulistas – e não compartilhavam essa opinião.

– Edith não quis levar sua criada para Londres por medo de que a moça ficasse mal-acostumada – disse Gus. – Segundo ela, os britânicos são educados demais com os negros.

– Woodrow Wilson não é mais o queridinho da esquerda nos Estados Unidos – concluiu Rosa. – O que significa que ele vai precisar de apoio republicano para sua Liga das Nações.

– Imagino que Henry Cabot Lodge esteja se sentindo esnobado. – Lodge era um republicano de direita.

– Você sabe como são os políticos – disse Rosa. – Parecem garotinhas de tão melindrosos, só que são mais vingativos. Lodge é presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Wilson deveria tê-lo trazido a Paris.

– Mas Lodge é contra a própria ideia de uma Liga das Nações! – protestou Gus.

– Saber escutar pessoas inteligentes que discordam das suas opiniões é um talento raro, mas que um presidente deveria ter. E trazer Lodge para cá iria neutralizá-lo. Como membro da equipe, ele não poderia voltar para casa e lutar contra o que tivesse sido decidido em Paris.

Novamente, Rosa tinha razão, supôs Gus. No entanto, o idealista Wilson acreditava que a força do que era certo poderia superar qualquer obstáculo. Ele subestimava a necessidade de bajular, convencer e seduzir.

Em homenagem ao presidente, a comida estava boa. Foi servido um linguado fresco do Atlântico ao molho de manteiga. Desde antes da guerra que Gus não comia tão bem. Achou divertido ver como Rosa devorava seu prato. Onde uma mulher pequena como ela conseguia guardar tanta comida?

Após a refeição, serviram-lhes um café forte em xícaras bem pequenas. Gus percebeu que não queria se retirar para sua cabine e deixar Rosa. Estava interessado demais em conversar com ela.

– Seja como for, Wilson estará em uma posição muito favorável em Paris – disse ele.

Rosa aparentou ceticismo:

– Como assim?

– Bem, em primeiro lugar, nós ganhamos a guerra para os Aliados.

Ela aquiesceu:

– “Em Château-Thierry, nós salvamos o mundo”, disse Wilson.

– Chuck Dixon e eu lutamos nessa batalha.

– Foi lá que ele morreu?

– Atingido em cheio por uma bomba. Foi a primeira baixa que eu presenciei. Infelizmente, não foi a última.

– Fico muito sentida, sobretudo pela mulher dele. Conheço Doris há anos, nós tivemos a mesma professora de piano.

– Mas não sei se nós salvamos o mundo – prosseguiu Gus. – Houve muito mais franceses, britânicos e russos mortos do que americanos. Mas nós desequilibramos a balança. Isso deve servir de alguma coisa.

Ela sacudiu a cabeça, agitando os cachos escuros.

– Discordo. Com a guerra terminada, os europeus não precisam mais de nós.

– Aparentemente, homens como Lloyd George pensam que o poderio militar norte-americano não pode ser ignorado.

– Então ele está enganado – disse Rosa. Gus ficou surpreso e intrigado ao ouvir uma mulher falar sobre um assunto daqueles com tamanha convicção. – Imagine que os franceses e britânicos simplesmente se recusem a apoiar Wilson – disse ela. – Ele por acaso usaria o Exército para impor suas ideias? Não. E, mesmo que quisesse fazer isso, um Congresso republicano não permitiria.

– Nós temos poder econômico e financeiro.

– Com certeza os Aliados nos devem muito dinheiro, mas não sei bem quanto poder de barganha isso nos dá. Existe um ditado que diz: se você deve 100 dólares, está na palma da mão do banco; mas, se deve um milhão, é o banco que está na palma da sua mão.

Gus estava começando a ver que a tarefa de Wilson talvez fosse mais difícil do que ele previra.

– Está bem, mas e quanto à opinião pública? Você viu como Wilson foi recebido em Brest. A Europa em massa está confiando nele para criar um mundo pacífico.

– Esse é seu maior trunfo. As pessoas estão fartas de carnificina. “Nunca mais”, é o grito delas. Só espero que Wilson consiga lhes dar o que querem.

Os dois voltaram para suas cabines e se despediram. Gus passou um bom tempo acordado, pensando em Rosa e em suas palavras. Ela era de fato a mulher mais inteligente que havia conhecido na vida. E era linda, também. Por algum motivo, era fácil se esquecer do seu olho. A princípio, parecia uma deformidade terrível, mas, depois de algum tempo, Gus parou de reparar nele.

Contudo, Rosa havia se mostrado pessimista em relação à conferência. E tudo o que ela dizia era verdade. Gus agora via que Wilson tinha uma batalha pela frente. Estava exultante por ser parte daquela equipe e decidido a fazer tudo ao seu alcance para transformar os sonhos do presidente em realidade.

Durante a madrugada, ele olhou pela janela do trem que seguia para o leste, atravessando a França. Ao cruzarem uma cidade, Gus ficou surpreso ao ver uma multidão nas plataformas da estação e na estrada paralela à ferrovia assistindo à passagem deles. Estava escuro, mas a luz das lamparinas deixava as pessoas claramente visíveis. Eram milhares: homens, mulheres e crianças. Ninguém aplaudia, o silêncio era quase total. Viu que homens e meninos tiraram os chapéus – um gesto de respeito que o comoveu de tal forma que ele quase chorou. Aquelas pessoas haviam esperado metade da noite para ver o trem que transportava a esperança do mundo.

 

Dezembro de 1918 a fevereiro de 1919

Os votos foram contados três dias depois do Natal. Eth e Bernie Leckwith estavam na prefeitura de Aldgate para ouvir os resultados. Bernie sobre o palanque com seu melhor terno, Eth na plateia.

Bernie perdeu.

Ele se manteve impassível, mas Ethel chorou. Para Bernie, era o fim de um sonho. Talvez tivesse sido um sonho bobo, porém isso não diminuía sua tristeza, e ela ficou desolada pelo marido.

O candidato liberal tinha apoiado a coalizão de Lloyd George, de modo que não houvera candidato conservador. Consequentemente, os votos dos conservadores migraram para os liberais e os trabalhadores ficaram impotentes diante dessa combinação.

Bernie parabenizou o adversário vitorioso e desceu do palanque. Os outros membros do Partido Trabalhista tinham uma garrafa de uísque e queriam afogar as mágoas, mas Bernie e Ethel foram para casa.

– Eu não fui feito para isso, Eth – disse Bernie enquanto ela fervia água para um chocolate quente.

– Você fez um bom trabalho – respondeu ela. – Aquele desgraçado do Lloyd George nos passou a perna.

Porém Bernie sacudiu a cabeça.

– Eu não sou um líder – disse ele. – Sou um pensador, um planejador. Já tentei muitas vezes conversar com as pessoas como você faz, deixá-las entusiasmadas pela nossa causa, mas nunca consegui. As pessoas amam você só de ouvir a sua voz. Essa é a diferença.

Ethel sabia que ele tinha razão.

Na manhã seguinte, os jornais mostraram que o resultado de Aldgate havia sido espelhado por todo o país. A coalizão conquistara 525 dos 707 assentos, uma das maiorias mais significativas da história do Parlamento. O povo havia votado no homem que vencera a guerra.

Ethel estava muito decepcionada. Os velhos continuavam a governar o país. Naquele momento, os políticos que haviam causado milhões de mortes estavam comemorando como se tivessem feito algo maravilhoso. Mas o que eles tinham conseguido? Dor, fome, destruição. Dez milhões de homens e rapazes haviam morrido em vão.

A única centelha de esperança era que o Partido Trabalhista havia ganhado mais destaque. De 42 assentos parlamentares, eles tinham passado para 60.

Os maiores prejudicados foram os liberais anti-Lloyd George. Eles haviam conquistado apenas 30 distritos eleitorais, sendo que o próprio Asquith perdera sua cadeira no Parlamento.

– Isso pode ser o fim do Partido Liberal – disse Bernie enquanto passava banha no pão para o almoço. – Eles decepcionaram as pessoas, e a oposição agora é o Partido Trabalhista. Esse talvez seja o nosso único consolo.

Pouco antes de saírem para o trabalho, o correio chegou. Ethel deu uma olhada na correspondência enquanto Bernie amarrava os cadarços dos sapatos de Lloyd. Havia uma carta de Billy escrita em código. Ela se sentou à mesa da cozinha para decodificá-la.

Sublinhou as palavras-chave com um lápis, anotando-as em um bloquinho. À medida que decifrava a mensagem, foi ficando cada vez mais fascinada.

– Você sabe que Billy está na Rússia – disse ela a Bernie.

– Sei.

– Bom, segundo ele, nosso Exército está lá para lutar contra os bolcheviques. O Exército americano também está lá.

– Isso não me espanta.

– Sim, mas escute, Bern – disse ela. – Nós sabemos que o Exército Branco não tem condições de derrotar os bolcheviques. Mas e se os exércitos estrangeiros entrarem na dança? Tudo pode acontecer!

Bernie assumiu uma expressão pensativa.

– Eles podem reinstaurar a monarquia.

– O povo deste país não vai aceitar isso.

– O povo deste país não sabe o que está acontecendo.

– Então é melhor nós avisarmos – disse Ethel. – Vou escrever um artigo.

– Quem vai publicar?

– Veremos. Talvez o Daily Herald. – O Herald era um jornal de esquerda. – Você pode levar Lloyd até a casa da babá?

– Posso, claro.

Depois de pensar por um minuto, Ethel escreveu no topo de uma folha de papel:

DEIXEM A RÚSSIA EM PAZ!

 

Andar por Paris levou Maud às lágrimas. Pilhas de escombros se acumulavam ao longo dos amplos bulevares, nos locais atingidos pelas bombas alemãs. Os prédios majestosos exibiam janelas remendadas com tábuas, trazendo-lhe a lembrança dolorosa de que seu belo irmão agora tinha o olho deformado. As fileiras de árvores das alamedas estavam falhadas, pois, aqui e ali, castanheiros ou plátanos muito antigos haviam sido sacrificados em troca de madeira. Metade das mulheres vestia preto em sinal de luto e, nas esquinas, soldados aleijados pediam esmola.

Ela também chorava por Walter. Não recebera nenhuma resposta à sua carta. Informara-se sobre ir à Alemanha, mas era impossível. Já havia sido difícil conseguir permissão para ir a Paris. Chegara a nutrir esperanças de que Walter talvez fosse até lá com a delegação alemã, mas não havia delegação alemã alguma: os países derrotados não tinham sido convidados para a conferência de paz. Os Aliados vitoriosos pretendiam discutir um acordo entre si e depois apresentar aos perdedores um tratado para assinar.

Enquanto isso, faltava carvão e fazia muito frio em todos os hotéis. Maud ocupa­va uma suíte no Majestic, onde estava baseada a delegação britânica. Para se protegerem contra espiões franceses, os britânicos haviam substituído todos os funcionários por seu próprio pessoal. Consequentemente, a comida era difícil de engolir: mingau no café da manhã, legumes cozidos demais e café ruim.

Vestindo um casaco de peles de antes da guerra, Maud foi encontrar Johnny Remarc no Fouquet’s, um restaurante nos Champs-Elysées.

– Obrigada por possibilitar minha vinda a Paris – disse ela.

– Faço qualquer coisa por você, Maud. Mas por que estava querendo tanto vir para cá?

Ela não iria dizer a verdade, muito menos a alguém que adorava fofocar.

– Para fazer compras – respondeu. – Faz quatro anos que não compro um vestido novo.

– Ah, não me venha com essa conversa – disse ele. – Não há quase nada para comprar aqui, e o pouco que há custa uma fortuna. Mil e quinhentos francos por um vestido! Nem Fitz deixaria uma coisa dessas. Acho que você deve ter um amante francês.

– Quem me dera. – Ela mudou de assunto. – Encontrei o carro de Fitz. Você sabe onde posso conseguir gasolina?

– Vou ver o que posso fazer.

Eles pediram o almoço.

– Você acha que nós vamos mesmo fazer os alemães pagarem bilhões de indenização? – perguntou Maud.

– Eles não estão em condições de se opor – respondeu Johnny. – Depois da guerra franco-prussiana, obrigaram a França a pagar cinco bilhões de francos, e os franceses quitaram a dívida em três anos. E em março do ano passado, no Tratado de Brest-Litovsk, a Alemanha fez os bolcheviques se comprometerem a pagar seis bilhões de marcos, embora esse valor não vá mais ser pago, por motivos óbvios. Seja como for, a virtuosa indignação da Alemanha soa hipócrita.

Maud detestava quando as pessoas falavam com rispidez sobre os alemães. Era como se, pelo simples fato de eles terem perdido, fossem animais. Caso nós fôssemos os perdedores, teve vontade de dizer, seríamos forçados a dizer que a guerra era nossa culpa e pagar por tudo?

– Mas nós estamos pedindo muito mais. Vinte e quatro bilhões de libras, no total, enquanto os franceses estão exigindo quase o dobro.

– É difícil argumentar com os franceses – disse Johnny. – Eles nos devem 600 milhões de libras, e mais ainda aos americanos; mas, se nós lhes negarmos o direito à indenização alemã, vão dizer que não podem nos pagar.

– E os alemães podem pagar o que estamos pedindo?

– Não. Segundo meu amigo Pozzo Keynes, eles podem pagar cerca de um décimo, ou seja, dois bilhões de libras, mas isso pode arruinar o país.

– Você está se referindo a John Maynard Keynes, o economista de Cambridge?

– Isso. Nós o chamamos de Pozzo.

– Eu não sabia que ele era um dos seus... amigos.

Johnny sorriu.

– Ah, sim, minha querida, você nem imagina.

Maud sentiu uma inveja momentânea da alegre devassidão de Johnny. Havia se esmerado em reprimir a própria necessidade de amor físico. Fazia quase dois anos que não era tocada por um homem. Ela se sentia uma freira velha, enrugada e ressequida.

– Mas que carinha triste! – Johnny não deixava passar muita coisa. – Espero que você não esteja apaixonada por Pozzo.

Ela riu, voltando em seguida a falar de política:

– Se nós sabemos que os alemães não podem pagar, por que Lloyd George está insistindo?

– Eu lhe fiz essa pergunta pessoalmente. Nós nos conhecemos bem desde que ele era ministro das Munições. Segundo ele, todos os participante do conflito vão acabar simplesmente pagando suas dívidas e ninguém vai embolsar indenização nenhuma.

– Então por que esse teatro todo?

– Porque, no fim das contas, quem vai pagar pela guerra são os contribuintes de cada país, mas qualquer político que lhes dissesse isso nunca mais ganharia uma eleição.

Gus compareceu às reuniões diárias da Comissão da Liga das Nações. O grupo tinha a função de redigir a minuta do acordo que daria origem à liga. O próprio Woodrow Wilson presidia a comissão, e estava com pressa.

Wilson havia dominado completamente o primeiro mês da conferência. Rechaçara as pretensões francesas de priorizar as indenizações devidas pela Alemanha e deixar a liga em segundo plano, insistindo para que esta estivesse incluída em qualquer tratado assinado por ele.

A Comissão da Liga se reuniu no luxuoso Hôtel Crillon, na Place de la Concorde. Os elevadores hidráulicos eram antigos e lentos, e às vezes ficavam parados entre dois andares enquanto a pressão da água aumentava. Gus achava aqueles elevadores bem parecidos com os diplomatas europeus, que gostavam mesmo era de uma discussão demorada e só tomavam uma decisão quando forçados. Riu por dentro ao ver que tanto os diplomatas quanto os elevadores deixavam o presidente norte-americano irritadiço e resmungando de impaciência.

Os 19 membros da comissão se acomodaram ao redor de uma grande mesa coberta por uma toalha vermelha. Todos contavam com seus respectivos intérpretes, sentados às suas costas e murmurando em seus ouvidos, e com assessores que se espalhavam pela sala, com pastas e cadernos nas mãos. Gus notou que os europeus ficaram impressionados com a capacidade de seu chefe de fazer a pauta avançar. Algumas pessoas tinham dito que a redação do pacto levaria meses, ou até anos; enquanto outros diziam que as nações jamais chegariam a um acordo. Contudo, para felicidade de Gus, em 10 dias eles estavam prestes a concluir a minuta.

Wilson precisava voltar aos Estados Unidos no dia 14 de fevereiro. Não tardaria a retornar à Europa, porém estava determinado a levar uma primeira versão do acordo para casa.

Infelizmente, na tarde anterior à sua partida, os franceses criaram um grande empecilho. Eles propuseram que a Liga das Nações tivesse o seu próprio exército.

Desesperado, Wilson revirou os olhos.

– Impossível – grunhiu.

Gus sabia por quê. O Congresso jamais autorizaria que soldados norte-americanos fossem controlados por outra entidade.

O representante francês, o ex-primeiro-ministro Léon Bourgeois, argumentou que a liga seria ignorada se não tivesse o poder de impor suas decisões.

Gus compartilhava a frustração de Wilson. Havia outras formas de a liga pressionar as nações recalcitrantes: diplomacia, sanções econômicas e, em último caso, um exército ad hoc, que seria usado para uma missão específica e desmantelado assim que ela fosse concluída.

Bourgeois, no entanto, disse que nada disso teria protegido a França da Alemanha. Os franceses não conseguiam se concentrar em mais nada. Talvez fosse até compreensível, pensou Gus, mas não era assim que criariam uma nova ordem mundial.

Lorde Robert Cecil, que havia redigido boa parte da minuta, ergueu um dedo ossudo para falar. Wilson fez que sim com a cabeça: gostava de Cecil, que era um grande defensor da liga. Porém nem todos concordavam: Clemenceau, o primeiro-ministro francês, dizia que, quando Cecil sorria, ficava parecido com um dragão chinês.

– Perdoem-me se pareço indelicado – disse Cecil. – Mas a delegação francesa está dizendo que, como a liga talvez não venha a ser tão forte quanto o esperado, ela vai rejeitá-la em sua totalidade. Permitam-me ressaltar com muita franqueza que, nesse caso, quase certamente haverá uma aliança bilateral entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos que não ofereceria nada à França.

Gus se esforçou para não sorrir. Tomem essa, pensou.

Parecendo chocado, Bourgeois retirou sua emenda.

Do outro lado da mesa, Wilson lançou um olhar grato para Cecil.

O representante japonês, barão Makino, pediu a palavra. Wilson assentiu e olhou para o relógio.

Makino citou a cláusula do acordo, já aprovada, que garantia a liberdade religiosa. Ele desejava acrescentar uma emenda no sentido de que todos os membros da liga tratariam com equanimidade os cidadãos dos outros países, sem discriminação racial.

O semblante de Wilson congelou.

Mesmo traduzido, o discurso de Makino foi eloquente. Homens de raças diferentes haviam combatido lado a lado na guerra, assinalou ele.

– Um elo comum de solidariedade e gratidão foi criado. – A liga seria uma grande família de nações. Não era óbvio que elas deveriam se tratar como iguais?

Isso deixou Gus preocupado, mas não surpreso. Já fazia uma ou duas semanas que os japoneses vinham falando nisso. O assunto havia causado temor entre os australianos e os californianos, que desejavam manter os japoneses longe de seus territórios. Wilson, por sua vez, que não pensava por um instante sequer que os negros norte-americanos eram seus iguais, ficara desconcertado. Contudo, foi entre os britânicos que a proposta gerou mais aflição. Afinal, eles governavam de forma não democrática centenas de milhões de pessoas de raças diferentes – e não queriam que elas se considerassem tão boas quanto seus dominadores brancos.

Mais uma vez, foi Cecil quem falou.

– Infelizmente, essa é uma questão muito controversa – disse ele, fazendo Gus quase acreditar no seu pesar. – A mera sugestão de que fosse discutida bastou para criar discórdia.

Um burburinho de aprovação percorreu a mesa.

– Em vez de adiarmos a aprovação de um acordo preliminar – prosseguiu Cecil –, talvez devêssemos adiar a discussão da, bem, da discriminação racial para outra ocasião.

O primeiro-ministro grego disse:

– A questão da liberdade religiosa como um todo também é um assunto delicado. Talvez fosse melhor que a deixássemos de lado por enquanto.

– Até hoje, o meu governo nunca assinou um tratado que não levasse Deus em conta! – disse o representante português.

– Talvez seja hora de todos corrermos esse risco – falou Cecil, que era muito religioso.

Ouviram-se algumas risadinhas discretas, ao que Wilson, claramente aliviado, concluiu:

– Se estamos de acordo em relação a isso, vamos seguir em frente.

No dia seguinte, Wilson compareceu ao Ministério das Relações Exteriores francês, no Quai d’Orsay, e leu a minuta do acordo diante de uma sessão plenária da Conferência de Paz de Paris na célebre Sala dos Relógios, sob os imensos lustres que pareciam estalactites de uma caverna polar. Naquela noite, embarcou de volta para casa. O dia seguinte era um sábado e à noite Gus saiu para dançar.

Ao cair da noite, Paris era uma festa. A comida ainda era escassa, mas parecia haver bastante bebida. Os rapazes deixavam abertas as portas de seus quartos de hotel, para que enfermeiras da Cruz Vermelha pudessem entrar sempre que precisassem de companhia. A moralidade convencional parecia ter sido temporariamente suspensa. Ninguém tentava esconder seus casos amorosos. Homens efeminados haviam parado de fingir virilidade. O Larue se tornou um restaurante de lésbicas. Dizia-se que a falta de carvão era um mito inventado pelos franceses para que todos se aquecessem à noite indo para a cama com os amigos.

Tudo era caro, mas Gus tinha dinheiro. Tinha outras vantagens também: co­nhecia Paris e sabia falar francês. Foi às corridas de cavalos em Saint-Cloud, assistiu à ópera La Bohème e a um musical audacioso chamado Phi Phi. Como era próximo do presidente, recebia convites para todas as festas.

Ele se pegou passando cada vez mais tempo na companhia de Rosa Hellman. Em suas conversas, precisava tomar o cuidado de lhe dizer apenas coisas que gostaria de ler no jornal, mas o hábito de ser discreto já lhe era automático. Gostava de Rosa, mas era só isso. Ela estava sempre disposta a sair com ele, mas que repórter recusaria o convite de um assessor da presidência? Gus nunca podia segurar sua mão, ou tentar lhe dar um beijo de boa-noite, por medo de que ela pensasse que estava tirando vantagem de sua posição, uma vez que ela não poderia se dar ao luxo de ofendê-lo.

Ele a encontrou no Ritz para tomar um coquetel.

– O que são coquetéis? – quis saber ela.

– Bebidas fortes disfarçadas para ficarem mais apresentáveis. Estão na moda, eu juro.

Rosa também estava na moda. Tinha os cabelos curtos. Seu chapéu tipo cloche, em forma de sino, cobria-lhe as orelhas como o capacete de aço de um soldado alemão. Curvas e espartilhos haviam saído de moda, e seu vestido drapeado descia reto dos ombros até um cós surpreendentemente baixo. Paradoxal­mente, ao ocultar suas formas, o vestido fazia Gus imaginar seu corpo sob o tecido. Ela usava batom e pó de arroz, algo que as europeias ainda consideravam ousado.

Os dois tomaram um martíni cada e então saíram. Atraíram muitos olhares ao cruzarem juntos o comprido saguão do Ritz: o homem alto e magro, de cabeça grande, e sua companheira miúda e caolha – ele de fraque, ela com seu vestido de seda azul-prata. Os dois pegaram um táxi até o Majestic, onde todos os sábados os britânicos organizavam um baile muito popular.

O salão estava lotado. Jovens assessores das delegações, jornalistas do mundo inteiro e soldados liberados das trincheiras dançavam jazz com enfermeiras e datilógrafas. Rosa ensinou Gus a dançar o foxtrote, depois trocou de par e dançou com um homem atraente de olhos escuros que fazia parte da delegação grega.

Enciumado, Gus pôs-se a zanzar pelo salão, conversando com conhecidos até topar com lady Maud Fitzherbert, que usava um vestido roxo e sapatos de bico pontudo.

– Olá! – falou, surpreso.

Ela pareceu feliz em vê-lo.

– O senhor parece bem.

– Tive sorte. Continuo inteiro.

Ela tocou a cicatriz em sua face.

– Quase inteiro.

– Foi só um arranhão. Vamos dançar?

Ele a tomou nos braços. Ela estava magra: Gus pôde sentir seus ossos através do vestido. Começaram a dançar uma valsa acelerada.

– Como está Fitz? – perguntou Gus.

– Bem, eu acho. Ele está na Rússia. Eu provavelmente não deveria dizer isso, mas não é segredo para mais ninguém.

– Vi que os jornais britânicos estão dizendo “Deixem a Rússia em paz”.

– Essa campanha está sendo conduzida por uma mulher que o senhor conheceu em Tŷ Gwyn, Ethel Williams, que agora se chama Eth Leckwith.

– Não me lembro dela.

– Ela era a governanta.

– Minha nossa!

– Ela está virando uma força importante na política britânica.

– Como o mundo mudou.

Maud o puxou para mais perto e baixou a voz:

– O senhor não teria notícias de Walter, teria?

Gus se lembrou do oficial de aspecto familiar que vira ser abatido em Château-Thierry, mas não poderia afirmar de forma alguma que tinha sido Walter, então respondeu:

– Nenhuma, sinto muito. Deve ser difícil para a senhorita.

– Nenhuma informação sai da Alemanha e ninguém tem permissão para entrar no país!

– Infelizmente, acho que a senhorita terá que esperar a assinatura do tratado de paz.

– E quando isso vai acontecer?

Gus não sabia.

– O acordo preliminar da liga está quase pronto, mas eles ainda estão longe de um consenso quanto ao valor que a Alemanha deve pagar em indenizações.

– Isso é uma tolice – disse Maud com amargura. – Nós precisamos que os alemães sejam prósperos, para que as fábricas britânicas possam lhes vender carros, fogões e aspiradores de pó. Se destruirmos a economia deles, a Alemanha vai virar bolchevique.

– O povo quer vingança.

– O senhor se lembra de 1914? Walter não queria a guerra. A maioria dos alemães também não. Mas o país não era uma democracia. O Kaiser foi instigado pelos generais. E, depois que a Rússia se mobilizou, eles não tiveram mais escolha.

– É claro que eu me lembro. Mas as pessoas em geral, não.

A dança terminou. Rosa Hellman apareceu e Gus apresentou as duas. Elas conversaram um pouco, porém Rosa se mostrou estranhamente antipática, de modo que Maud se afastou.

– Aquele vestido custou uma fortuna – disse Rosa em tom rabugento. – É um Jeanne Lanvin.

Gus ficou perplexo.

– Você não gostou de Maud?

– Está na cara que você gosta.

– Como assim?

– Vocês dois estavam dançando bem juntinhos.

Rosa não sabia sobre Walter. Mesmo assim, Gus não gostou de ser falsamente acusado de flertar.

– Ela queria falar sobre um assunto bastante confidencial – disse ele, com um quê de indignação.

– Aposto que sim.

– Não estou entendendo este seu comportamento – disse Gus. – Você mesma foi dançar com aquele grego seboso.

– Ele é muito bonito, e não é nada seboso. E por que eu não deveria dançar com outros homens? Afinal, você não está apaixonado por mim nem nada.

Gus a encarou.

– Oh! – disse ele. – Oh, céus... – De repente, sentiu-se confuso e indeciso.

– O que foi agora?

– Acabo de me dar conta de uma coisa... eu acho.

– Vai me dizer o que é ou não?

– Acho que sou obrigado – respondeu ele, com a voz trêmula. Fez uma pausa.

Ela ficou esperando.

– Bem, e então? – perguntou, impaciente.

– Eu estou apaixonado por você.

Ela o encarou de volta em silêncio. Depois de um longo intervalo, disse:

– Está falando sério?

Embora tivesse sido pego de surpresa pela ideia, ele não tinha a menor dúvida.

– Estou. Eu te amo, Rosa.

Ela abriu um leve sorriso.

– Quem diria...

– Imagino que esteja apaixonado por você há muito tempo sem saber.

Ela aquiesceu, como se as suas suspeitas houvessem sido conformadas. A banda começou a tocar uma música lenta. Ela chegou mais perto.

Gus a tomou nos braços automaticamente, mas estava agitado demais para dançar direito.

– Acho que não vou conseguir...

– Não se preocupe. – Rosa sabia o que ele estava pensando. – É só fingir.

Ele arriscou alguns passos. Sua mente era um verdadeiro turbilhão. Ela não dissera nada sobre os próprios sentimentos. Por outro lado, não tinha se afastado. Será que haveria alguma chance de ela corresponder ao seu amor? Era evidente que gostava dele, mas isso não era a mesma coisa. Estaria ela perguntando a si mesma, naquele exato momento, o que sentia? Ou apenas tentando encontrar palavras gentis para rejeitá-lo?

Quando ela ergueu os olhos para fitá-lo, ele pensou que estivesse prestes a lhe dar a resposta, mas então Rosa disse:

– Por favor, Gus, me leve embora daqui.

– Claro.

Ela pegou seu casaco. O porteiro do Majestic chamou um táxi Renault vermelho.

– Para o Maxim’s – disse Gus. O trajeto era curto, e eles o fizeram em silêncio. Ele estava louco para saber o que Rosa estava pensando, mas não a apressou. Ela logo teria que lhe dizer.

O restaurante estava lotado, e as poucas mesas vagas, reservadas para os clientes que chegariam mais tarde. O chefe dos garçons se disse désolé. Gus sacou a carteira, tirou uma nota de 100 francos e disse:

– Uma mesa tranquila em um canto. – Um cartão com a palavra Réservée foi levado embora e os dois se sentaram.

Optaram por um jantar leve e Gus pediu uma garrafa de champanhe.

– Você está tão mudado – disse Rosa.

Ele ficou surpreso.

– Eu não acho.

– Lá em Buffalo, não passava de um rapaz tímido. Acho que ficava acanhado até comigo. Mas agora anda por Paris como se a cidade fosse sua.

– Nossa, assim eu fico parecendo arrogante.

– Arrogante não, apenas seguro de si. Afinal de contas, você trabalhou para um presidente e lutou em uma guerra. Essas coisas fazem diferença.

A comida chegou, mas nenhum dos dois comeu muito. Gus estava tenso demais. O que ela estaria pensando? Será que o amava ou não? Já deveria saber àquela altura. Ele pousou o garfo e a faca, porém, em vez de lhe fazer a pergunta que tinha em mente, disse:

– Você sempre me pareceu bem confiante.

Ela riu.

– Não é incrível?

– Por quê?

– Acho que fui confiante até os sete anos de idade, mais ou menos. Depois... bem, você sabe como são as meninas no colégio. Todas querem ser amigas das mais bonitas. Eu tinha que brincar com as gordas, as feias e as que usavam roupas de segunda mão. Foi assim até a adolescência. Até mesmo trabalhar para o Buffalo Anarchist foi, de certa forma, uma atitude de quem se sentia excluída. Mas, quando me tornei editora, comecei a recuperar minha autoestima. – Ela tomou um gole de champanhe. – Você ajudou.

– Eu? – Gus estava surpreso.

– Foi o seu jeito de falar comigo, como se eu fosse a pessoa mais inteligente e mais interessante de Buffalo.

– O que provavelmente era verdade.

– Sem contar Olga Vyalov.

– Ah. – Gus corou. Lembrar-se da paixão por Olga fazia com ele se sentisse um tolo, mas não queria dizer isso, pois seria desmerecê-la, o que era indigno de um cavalheiro.

Depois de terminarem o café e pedirem a conta, Gus ainda não sabia o que Rosa sentia por ele.

No táxi, segurou-lhe a mão e levou-a aos lábios.

– Oh, Gus, eu gosto muito de você – disse ela. Ele não soube como interpretar suas palavras. Mas o rosto dela estava virado para cima na direção do seu, quase como se esperasse alguma coisa. Ela queria mesmo que ele...? Gus tomou coragem e a beijou na boca.

Quando, por um instante que pareceu congelado no tempo, ela não reagiu, Gus se perguntou se havia feito a coisa errada. Então ela deu um suspiro de satisfação e abriu os lábios.

Ah, pensou ele, feliz, então está tudo bem.

Ele a tomou nos braços e os dois foram se beijando até o hotel dela. Foi uma viagem curta demais. De repente, um porteiro estava abrindo a porta do táxi.

– Limpe a boca – disse Rosa ao sair. Gus sacou um lenço e esfregou-o apressadamente no rosto. O linho branco voltou todo manchado de batom. Ele o dobrou com cuidado, guardando-o de volta no bolso.

Acompanhou-a até a porta.

– Posso vê-la amanhã? – perguntou.

– Que horas?

– Cedo.

Ela riu.

– Você não sabe fingir, não é, Gus? Adoro isso em você.

Aquilo era bom. Adoro isso em você não era a mesma coisa que Eu te amo, mas era melhor do que nada.

– Então está combinado – disse ele.

– O que vamos fazer?

– É domingo. – Ele disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça. – Poderíamos ir à igreja.

– Está bem.

– Deixe-me levá-la à Notre-Dame.

– Você é católico? – indagou ela, surpresa.

– Não, frequento a Igreja Episcopal, mas não pratico muito. E você?

– A mesma coisa.

– Não tem problema, podemos sentar nos fundos da igreja. Vou descobrir a que horas é a missa e telefono para você no hotel.

Ela estendeu a mão e eles se cumprimentaram como amigos.

– Obrigada por uma ótima noite – disse ela em tom formal.

– O prazer foi todo meu. Boa noite.

– Boa noite – respondeu ela, antes de se virar e desaparecer no saguão do hotel.

 

De março a abril de 1919

Quando a neve derreteu e a terra russa dura como ferro se transformou em uma lama fértil e molhada, os Brancos fizeram um esforço descomunal para livrar seu país da maldição do bolchevismo. A força de 100 mil homens do almirante Kolchak, equipada de maneira capenga com uniformes e armamentos britânicos, saiu da Sibéria e atacou os Vermelhos em uma frente de batalha que se estendia de norte a sul por mais de mil quilômetros.

Fitz seguiu alguns quilômetros atrás do Exército Branco. Sob seu comando estavam os Aberowen Pals, além de alguns canadenses e um punhado de intérpretes. Seu trabalho era dar apoio a Kolchak, supervisionando as comunicações, o serviço de inteligência e o abastecimento.

Fitz estava muito esperançoso. Talvez enfrentassem dificuldades, mas era inconcebível permitir que Lênin e Trótski roubassem a Rússia.

No início de março, ele estava na cidade de Ufa, do lado europeu dos montes Urais, lendo uma pilha de jornais britânicos da semana anterior. Algumas notícias de Londres eram boas, outras más. Fitz adorou saber que Lloyd George havia nomeado Winston Churchill ministro da Guerra. De todos os políticos do alto escalão, Winston era o defensor mais fervoroso da intervenção na Rússia. Porém, alguns dos jornais estavam tomando o partido contrário. Fitz não ficou surpreso com o Daily Herald ou a New Statesman que, em sua opinião, já eram publicações mais ou menos bolcheviques. Mas até mesmo o conservador Daily Express exibia a seguinte manchete: SAIAM DA RÚSSIA.

Infelizmente, os jornais também conheciam detalhes exatos sobre o que estava acontecendo. Sabiam inclusive que os britânicos haviam ajudado Kolchak a dar o golpe que abolira o diretório e o tornara governante supremo. Onde estariam conseguindo essas informações? Ele ergueu os olhos do jornal. Estava aquartelado na Escola Superior de Comércio da cidade, e seu ajudante de ordens estava sentado à mesa em frente.

– Murray – disse Fitz –, da próxima vez em que houver cartas dos homens para mandar para casa, traga-as primeiro para mim.

Isso era uma irregularidade, e Murray pareceu hesitar.

– Como, senhor?

Fitz achou melhor explicar:

– Desconfio que informações estejam vazando daqui. Os censores devem estar dormindo no ponto.

– Talvez eles achem que podem relaxar, agora que a guerra na Europa terminou.

– Certamente. Seja como for, quero ver se o furo está na nossa parte do cano.

A última página do jornal trazia uma fotografia da mulher que comandava a campanha “Deixem a Rússia em paz”, e Fitz ficou chocado ao reconhecer Ethel. A ex-governanta de Tŷ Gwyn era agora, segundo o Express, secretária-geral do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria Têxtil.

Fitz já havia ido para a cama com muitas mulheres desde então – a mais recente delas era uma russa loura de cair o queixo em Omsk, amante entediada de um general czarista gordo e beberrão que era preguiçoso demais para comê-la ele mesmo. Ethel, no entanto, não lhe saía da memória. Ele se perguntava como seria seu filho. O conde provavelmente tinha meia dúzia de filhos bastardos espalhados pelo mundo, mas o de Ethel era o único de quem tinha certeza de ser o pai.

E era ela quem estava incitando os protestos contra a intervenção na Rússia. Agora Fitz sabia de onde estava vindo a informação. O maldito irmão dela era sargento dos Aberowen Pals. Ele sempre fora um encrenqueiro, e Fitz não tinha dúvidas de que era a fonte de Ethel. Bem, pensou, vou pegá-lo em flagrante, e as consequências vão ser amargas.

Nas semanas seguintes, os Brancos avançaram depressa, pressionando os perplexos Vermelhos, que pensavam que o governo siberiano era uma força moribunda. Se as tropas de Kolchak conseguissem se juntar a seus aliados em Arkhangelsk, ao norte, e ao Exército Voluntário de Denikin, ao sul, formariam uma força semicircular, uma cimitarra que descreveria uma curva de mais de 1.500 quilômetros a leste e avançaria de forma irresistível rumo a Moscou.

Então, no final de abril, os Vermelhos contra-atacaram.

A essa altura, Fitz já estava em Buguruslan, cidade terrivelmente empobrecida em uma área florestal cerca de 150 quilômetros a leste do rio Volga. As poucas igrejas de pedra e prédios municipais dilapidados despontavam por sobre os telhados de casas de madeira baixas, como ervas daninhas brotando de uma pilha de lixo. Fitz estava sentado em uma sala ampla da prefeitura, acompanhado pela unidade de inteligência, analisando relatórios de interrogatórios de prisioneiros. Não sabia haver nada de errado até olhar pela janela e ver os soldados maltrapilhos do exército de Kolchak cruzarem a cidade pela rua principal na direção errada. Mandou um intérprete americano chamado Lev Peshkov perguntar aos homens por que estavam recuando.

Peshkov voltou com uma história lamentável. Os Vermelhos tinham vindo do sul e lançado um ataque vigoroso, investindo contra o flanco esquerdo disperso do exército de Kolchak. Para evitar que sua força fosse cortada ao meio, o comandante dos Brancos na região, general Belov, ordenara a retirada para reorganizar as tropas.

Poucos minutos depois, um desertor dos Vermelhos foi trazido para ser interrogado. Ele havia sido coronel durante o reinado do czar. O que tinha a dizer deixou Fitz consternado. Os Vermelhos tinham sido surpreendidos pela ofensiva de Kolchak, disse ele, mas logo se reorganizaram e renovaram seus suprimentos. Trótski declarara que o Exército Vermelho devia partir para a ofensiva no leste.

– Trótski acha que, se os Vermelhos fraquejarem, os Aliados reconhecerão Kolchak como governante supremo; e que, quando isso acontecer, eles vão inundar a Sibéria de soldados e provisões.

Era exatamente por isso que Fitz estava torcendo. Com seu russo de sotaque carregado, ele perguntou:

– Mas, então, o que Trótski fez?

O desertor respondeu rápido, e Fitz só entendeu o que ele falou depois de escutar a tradução de Peshkov.

– Ele recorreu a levas especiais de recrutas do Partido Bolchevique e aos sindicatos. A resposta foi incrível. Vinte e duas províncias enviaram destacamentos. O Comitê Provincial de Novgorod mobilizou metade de seus membros!

Fitz tentou imaginar Kolchak obtendo uma reação como aquela de seus partidários. Isso nunca iria acontecer.

Ele voltou ao alojamento para empacotar suas coisas. Foi quase lento demais: os Pals foram embora pouco antes da chegada dos Vermelhos, e um punhado de homens ficou para trás. Quando a noite caiu, o exército ocidental de Kolchak já estava em franca retirada e Fitz embarcado em um trem de volta para os montes Urais.

Dois dias depois, encontrava-se novamente na Escola Superior de Comércio em Ufa.

Nesse meio-tempo, o humor de Fitz ficou sombrio. Ele estava amargurado de raiva. Fazia cinco anos que estava em guerra e sabia reconhecer o momento em que a maré virava – conhecia os sinais. A guerra civil russa estava praticamente terminada.

Os Brancos eram simplesmente fracos demais. Os revolucionários iriam vencer. Nada poderia virar o jogo a não ser uma invasão aliada – o que era impossível. Churchill já estava encrencado demais com o pouco que estava fazendo. Billy Williams e Ethel estavam garantindo que os reforços necessários jamais fossem enviados.

Murray lhe trouxe uma sacola de correspondência.

– O senhor disse que queria ver as cartas dos homens para casa, coronel – disse ele, com um quê de reprovação na voz.

Fitz ignorou os escrúpulos de Murray e abriu a sacola. Procurou por alguma correspondência do sargento Williams. Ao menos uma pessoa poderia ser punida por aquela catástrofe.

Encontrou o que buscava. A carta do sargento Williams estava endereçada a E. Williams, nome de solteira de sua irmã: ele, sem dúvida, temia que o nome de casada de Ethel pudesse chamar atenção para sua carta traiçoeira.

Fitz leu a carta. A caligrafia de Billy era grande e segura. À primeira vista, o texto parecia inocente, ainda que um pouco esquisito. Fitz, no entanto, havia trabalhado na Sala 40 e sabia reconhecer um código. Preparou-se para quebrar aquele.

– Mudando de assunto, coronel – disse Murray –, o senhor viu Peshkov, o intérprete americano, nestes dois últimos dias?

– Não – respondeu Fitz. – O que houve com ele?

– Parece que nós o perdemos, senhor.

Trótski estava exausto, mas não desanimado. As rugas de preocupação que lhe cobriam o rosto não diminuíam o brilho de esperança em seus olhos. Com admiração, Grigori pensou que aquele homem era movido por uma crença inabalável no que estava fazendo. Desconfiava que todos eles fossem assim; Lênin e Stálin também. Os três tinham certeza de que sabiam o que devia ser feito, fosse qual fosse o problema, desde reforma agrária até táticas militares.

O mesmo não acontecia com Grigori. Junto de Trótski, tentou bolar a melhor reação ao avanço dos Brancos, porém nunca se sentia seguro de que haviam tomado a decisão certa antes de os resultados ficarem claros. Talvez fosse por isso que Trótski era famoso mundo afora, enquanto Grigori não passava de mais um comissário.

Como em muitas outras ocasiões, Grigori estava no trem particular de Trótski, com um mapa da Rússia sobre a mesa.

– Mal precisamos nos preocupar com os contrarrevolucionários do norte – disse o líder.

Grigori concordou.

– Segundo nosso serviço de inteligência, os soldados e marinheiros britânicos estão se amotinando nessa região.

– E eles já perderam todas as esperanças de alcançar Kolchak e se juntar a ele. As tropas de Kolchak estão voltando o mais rápido possível para a Sibéria. Nós poderíamos persegui-los pelos Urais, mas acho que temos assuntos mais importantes para resolver em outros lugares.

– No oeste?

– Sim, a situação lá não está nada boa. Os Brancos estão sendo auxiliados por nacionalistas reacionários na Letônia, na Lituânia e na Estônia. Kolchak nomeou Yudenich comandante supremo de lá, e ele tem o apoio de uma flotilha da Marinha britânica que está mantendo a nossa frota presa em Kronstadt. Mas eu estou mais preocupado ainda com o sul.

– O general Denikin.

– Ele tem cerca de 150 mil homens, apoiados por tropas francesas e italianas e mantidos pelos britânicos. Nós achamos que ele está planejando arremeter contra Moscou.

– Se me permite um comentário, creio que a chave para derrotá-los seja política, não militar.

Trótski pareceu intrigado.

– Prossiga.

– Denikin faz inimigos por onde quer que passe. Os cossacos sob o seu comando roubam todo mundo. Sempre que ocupa uma cidade, reúne todos os judeus e simplesmente os fuzila. Se as minas de carvão não conseguem cumprir as metas de produção, ele mata um em cada dez mineradores. E, como não poderia deixar de ser, executa todos os desertores de seu exército.

– Nós também – respondeu Trótski. – E matamos os aldeões que escondem desertores.

– E os camponeses que se recusam a entregar seus cereais. – Grigori tivera que endurecer seu coração para aceitar essa necessidade brutal. – Mas eu conheço os camponeses, afinal meu pai era um deles. O que mais lhes importa é a terra. Muitas dessas pessoas ganharam terrenos consideráveis com a revolução e querem mantê-los aconteça o que acontecer.

– E daí?

– Kolchak anunciou que a reforma agrária deveria ter por base o princípio da propriedade privada.

– O que significa que os camponeses teriam que devolver as plantações que tomaram da aristocracia.

– E todo mundo sabe disso. Eu gostaria de mandar imprimir esse pronunciamento dele e de pregá-lo na porta de todas as igrejas. Independentemente do que os nossos soldados façam, os camponeses vão nos preferir aos Brancos.

– Vá em frente – disse Trótski.

– Mais uma coisa. Declare uma anistia para os desertores. Por sete dias, qualquer um que voltar para o Exército não será punido – sugeriu Grigori.

– Outra medida política.

– Duvido que isso vá incentivar mais deserções, pois será apenas por uma semana, mas pode nos trazer de volta alguns homens... sobretudo quando eles descobrirem que os Brancos querem tomar suas terras.

– Pode tentar – disse Trótski.

Um ajudante entrou e prestou continência.

– Trago um relatório estranho, camarada Peshkov, e achei que o senhor iria querer ouvi-lo.

– Diga.

– É sobre um dos prisioneiros que capturamos em Buguruslan. Ele estava com o exército de Kolchak, mas usava um uniforme americano.

– Os Brancos têm soldados do mundo todo. Os imperialistas capitalistas naturalmente apoiam a contrarrevolução.

– A questão não é essa, senhor.

– Qual o problema?

– Senhor, ele está dizendo que é seu irmão.

A plataforma era comprida e a névoa da manhã estava cerrada, de modo que Grigori não conseguia ver a outra ponta do trem. Aquilo só podia ser algum tipo de erro, pensou, uma confusão de nomes ou uma tradução equivocada. Tentou se preparar para uma decepção, mas não conseguiu: seu coração batia acelerado e seus nervos pareciam latejar. Há quase cinco anos que não via o irmão. Pensara muitas vezes que Lev deveria estar morto. E essa ainda podia ser a terrível verdade.

Foi andando a passos lentos, tentando enxergar em meio à bruma. Se aquele homem fosse mesmo Lev, era óbvio que estaria diferente. Nos últimos cinco anos, Grigori perdera um dente da frente e uma orelha quase inteira, sendo que provavelmente também mudara de outras formas que nem sequer percebia. Em que aspectos Lev teria mudado?

Dali a alguns instantes, duas silhuetas emergiram da neblina branca: um soldado russo usando um uniforme maltrapilho e sapatos de fabricação caseira e, ao seu lado, um homem que parecia americano. Seria Lev? O homem tinha os cabelos curtos, ao estilo americano, e não usava bigode. Tinha o rosto redondo dos soldados bem alimentados dos Estados Unidos, com ombros parrudos debaixo do elegante uniforme novo. Era uma farda de oficial, notou Grigori, cada vez mais incrédulo. Teria seu irmão se tornado um oficial americano?

O prisioneiro o encarava de volta e, quando Grigori chegou mais perto, viu que aquele era de fato seu irmão. Lev estava mesmo diferente – e não apenas por causa de sua aparência geral de elegante prosperidade. Era também sua postura, a expressão em seu rosto e, acima de tudo, seu olhar. Tinha perdido a arrogância juvenil e adquirido um ar de cautela. Na verdade, havia virado um adulto.

Quando os dois se aproximaram o suficiente para poderem se tocar, Grigori pensou em todas as formas como Lev o decepcionara, e uma enxurrada de recriminações lhe veio aos lábios. No entanto, não deu voz a nenhuma delas e, em vez disso, abriu os braços e enlaçou o irmão. Os dois se beijaram no rosto, deram-se tapinhas nas costas e tornaram a se abraçar. Grigori então percebeu que estava chorando.

Depois de algum tempo, ele conduziu Lev até o trem e o levou para o vagão que usava como escritório. Grigori mandou seu ajudante trazer um chá. Os irmãos se sentaram em duas poltronas desbotadas.

– Você está no Exército? – perguntou Grigori, incrédulo.

– O alistamento é obrigatório nos Estados Unidos.

Fazia sentido. Lev nunca teria se alistado voluntariamente.

– E é oficial!

– Você também – disse Lev.

Grigori fez que não com a cabeça.

– Nós abolimos as patentes no Exército Vermelho. Sou um comissário militar.

– Mas ainda há homens que pedem chá e outros que vão buscar – disse Lev enquanto o ajudante entrava com as xícaras. – Ma ficaria orgulhosa, não?

– A ponto de explodir. Mas por que você nunca me escreveu? Pensei que tivesse morrido!

– Ah, droga, eu sinto muito – falou Lev. – Fiquei me sentindo tão mal por ter ficado com a sua passagem que queria escrever com a notícia de que poderia lhe mandar o dinheiro para outra. Então fiquei adiando a carta até juntar mais dinheiro.

Era uma desculpa esfarrapada, porém típica de Lev. Ele preferia não ir a uma festa se não tivesse um paletó elegante para vestir, e se recusava a entrar em um bar se não tivesse dinheiro para pagar uma rodada de bebidas.

Grigori recordou mais uma traição:

– Você não me disse que Katerina estava grávida quando foi embora.

– Grávida!? Eu não sabia.

– Sabia, sim. Inclusive disse a ela para não me contar.

– Ah. Devo ter me esquecido. – Desmascarado, Lev ficou com cara de tacho, mas não tardou a se recompor, inventando sua própria acusação para contra-atacar. – Aquele navio em que você me colocou não foi para Nova York! Ele nos largou em um fim de mundo chamado Cardiff. Tive que trabalhar meses para juntar dinheiro para outra passagem.

Grigori chegou até a se sentir culpado por alguns instantes, mas então se lembrou de como Lev havia implorado pela passagem.

– Talvez eu não devesse ter ajudado você a fugir da polícia – disse ele em tom ríspido.

– Você fez o melhor que pôde por mim, acho – falou Lev com relutância. Então deu o sorriso caloroso que sempre fazia Grigori perdoá-lo. – Como sempre – acrescentou. – Desde que Ma morreu.

Grigori sentiu um nó na garganta.

– Mesmo assim – falou, concentrando-se para manter a voz firme –, nós deveríamos fazer a família Vyalov pagar por ter nos enganado.

– Eu consegui minha vingança – disse Lev. – Tem um Josef Vyalov em Buffalo. Eu comi a filha dele e ela engravidou. Daí ele teve que me deixar casar com ela.

– Meu Deus! Agora você faz parte da família Vyalov?

– Ele se arrependeu, foi por isso que me fez ser convocado. Está torcendo para eu morrer em combate.

– Nossa, você continua indo aonde seu pau manda?

Lev deu de ombros.

– Acho que sim.

Grigori também tinha algumas revelações para fazer, e isso o deixava nervoso. Começou dizendo com cautela:

– Katerina teve um menino, seu filho. Ela o batizou de Vladimir.

Lev pareceu contente:

– É mesmo? Eu tenho um filho homem!

Grigori não teve coragem de dizer que Vladimir desconhecia a existência de Lev e chamava Grigori de “papai”. Em vez disso, falou:

– Eu cuidei bem dele.

– Eu sabia que iria cuidar.

Grigori sentiu uma conhecida pontada de indignação diante da maneira como Lev supunha que os outros iriam assumir as responsabilidades que ele largava pelo caminho.

– Lev – prosseguiu ele –, eu me casei com Katerina. – Ele aguardou a reação indignada do irmão.

Lev, no entanto, manteve a calma.

– Eu sabia que você faria isso também.

Grigori ficou espantado.

– O quê?

Lev aquiesceu.

– Você era louco por ela, e ela precisava de um homem responsável, confiável, para criar o filho. Estava escrito.

– Mas eu sofri horrores! – disse Grigori. Toda aquela agonia tinha sido em vão? – Fui torturado pela ideia de que estava sendo desleal com você.

– Ora, que nada. Eu a deixei em maus lençóis. Boa sorte para vocês dois.

Grigori estava furioso com a forma casual como Lev reagia àquilo tudo.

– Você alguma vez se preocupou conosco? – perguntou ele, incisivo.

– Você me conhece, Grishka.

É claro que Lev não havia se preocupado com eles.

– Você mal pensou em nós.

– É claro que pensei em vocês. Pare de bancar o santo. Você a desejava e se conteve durante algum tempo, anos talvez, mas no fim das contas acabou trepando com ela.

Era a verdade nua e crua. Lev tinha um jeito irritante de rebaixar todo mundo ao seu nível.

– Tem razão – disse Grigori. – De toda forma, nós agora temos uma filha também, Anna. Ela tem um ano e meio.

– Dois adultos e duas crianças. Não tem importância. Eu tenho o suficiente.

– Do que você está falando?

– Tenho ganhado um bom dinheiro vendendo uísque dos depósitos militares britânicos para os cossacos por moedas de ouro. Já acumulei uma pequena fortuna. – Lev enfiou a mão debaixo da camisa do uniforme, soltou uma fivela e retirou um cinturão cheio de dinheiro. – Aqui tem o suficiente para custear a ida de todos vocês para os Estados Unidos! – Ele entregou o cinturão a Grigori.

Aquilo deixou Grigori espantado e comovido. No fim das contas, Lev não esquecera a família. Tinha economizado o valor da passagem. É claro que o dinheiro só poderia ser entregue com extravagância – era o jeito de Lev. Mas ele havia cumprido a promessa.

Pena que fosse tudo em vão.

– Obrigado – disse Grigori. – Estou orgulhoso por você ter honrado seu compromisso. Mas, obviamente, já não há necessidade. Eu posso soltar você e ajudá-lo a retomar sua vida russa normal. – Ele lhe devolveu o cinturão com o dinheiro.

Lev apanhou o cinturão, segurando-o nas mãos e olhando para ele.

– Do que você está falando?

Grigori viu que Lev parecia magoado e entendeu que ele ficara sentido com aquela recusa. No entanto, Grigori tinha uma preocupação mais grave em mente. O que aconteceria quando Lev e Katerina se reencontrassem? Será que ela tornaria a se apaixonar pelo mais atraente dos dois irmãos? O coração de Grigori gelava ante a possibilidade de perdê-la, depois de tudo por que os dois haviam passado juntos.

– Nós moramos em Moscou agora – disse ele. – Temos um apartamento no Kremlin, Katerina, Vladimir, Anna e eu. Não seria problema algum arrumar um apartamento para você...

– Espere um instante – disse Lev, com uma expressão de incredulidade no rosto. – Você acha que eu quero voltar para a Rússia?

– Você já voltou – disse Grigori.

– Mas não para ficar!

– Não é possível que queira voltar para os Estados Unidos.

– É claro que eu quero! E você deveria vir comigo.

– Mas não há necessidade! A Rússia já não é como antes. O czar está morto!

– Eu gosto dos Estados Unidos – disse Lev. – Vocês também vão gostar, todos vocês, especialmente Katerina.

– Mas nós estamos fazendo história aqui neste país! Inventamos uma nova forma de governo, o soviete. Isto aqui é a nova Rússia, o novo mundo. Você não está entendendo!

– Quem não entende é você – disse Lev. – Nos Estados Unidos tenho meu próprio carro, comida que não acaba mais, toda a bebida que quiser, todos os cigarros que conseguir fumar. Tenho cinco ternos!

– De que adianta ter cinco ternos? – indagou Grigori, decepcionado. – É como ter cinco camas. Você só consegue usar uma de cada vez!

– Eu penso diferente.

O que tornava aquela conversa tão irritante era o fato de Lev obviamente pensar que quem estava equivocado era Grigori. Ele não sabia mais o que dizer para mudar a cabeça do irmão.

– É isso mesmo que você quer? Cigarros, roupas, um carro?

– É isso que todo mundo quer. É melhor vocês bolcheviques se lembrarem disso.

Grigori não iria aceitar lições de política de Lev.

– Os russos querem pão, paz e terra.

– Seja como for, eu tenho uma filha nos Estados Unidos. O nome dela é Daisy. Ela tem três anos.

Grigori fechou o rosto, desconfiado.

– Sei o que você está pensando – disse Lev –, que não dei a mínima para o filho de Katerina... Qual é mesmo o nome dele?

– Vladimir.

– Se não me importei com ele, por que me importaria com Daisy? Mas não é a mesma coisa. Nunca conheci Vladimir. Quando fui embora de Petrogrado, ele ainda nem era gente. Mas eu amo Daisy e, pode acreditar, ela me ama.

Pelo menos isso Grigori conseguia entender. Ficou feliz ao ver que Lev tinha um coração bom o suficiente para se apegar à filha. E, por mais que a preferência de Lev pelos Estados Unidos o deixasse estupefato, no seu íntimo ele ficaria imensamente aliviado se o irmão não ficasse na Rússia. Pois, com certeza, ele iria querer conhecer Vladimir e, nesse caso, quanto tempo o menino demoraria para descobrir que Lev era seu verdadeiro pai? E, se Katerina decidisse trocar Grigori por Lev e levar Vladimir junto, o que aconteceria com Anna? Grigori iria perdê-la também? Para ele, pensou, cheio de culpa, era muito melhor que Lev voltasse para os Estados Unidos sozinho. – Eu acho que você está fazendo a escolha errada, mas não vou forçá-lo – disse ele.

Lev abriu um sorriso.

– Está com medo de eu pegar Katerina de volta, não é? Conheço você bem demais, irmão.

Grigori fez uma careta.

– Estou – falou. – Com medo de que você pegue Katerina de volta, depois a jogue fora de novo e eu tenha que juntar os cacos pela segunda vez. Também conheço você.

– Mas você vai me ajudar a voltar para os Estados Unidos.

– Não. – Grigori não pôde deixar de sentir um frêmito de satisfação ao ver a expressão de medo que atravessou o semblante de Lev. Porém não quis prolongar sua agonia. – Vou ajudá-lo a voltar para o Exército Branco. Eles que levem você para os Estados Unidos.

– Como faremos isso?

– Nós vamos de carro até a linha de frente e depois vamos ultrapassá-la um pouco. Então eu o deixarei na terra de ninguém. Depois disso, você se vira sozinho.

– Eu posso levar um tiro.

– Eu também. Estamos em guerra.

– Acho que vou ter que correr esse risco.

– Você vai ficar bem, Lev – disse Grigori. – Sempre fica.

Billy Williams foi escoltado do presídio municipal de Ufa pelas ruas empoeiradas da cidade até a Escola Superior de Comércio, que servia de quartel provisório ao Exército britânico.

A corte marcial se reuniu em uma sala de aula. Fitz estava sentado atrás da mesa do professor, ladeado por seu ajudante de ordens, o capitão Murray. O capitão Gwyn Evans estava presente com um caderno de anotações e um lápis na mão.

Billy estava sujo, com a barba por fazer e havia dormido mal em meio aos bêbados e prostitutas da cidade. Fitz, como sempre, usava uma farda impecavelmente bem passada. Billy sabia que estava muito encrencado. O veredicto já estava decidido: as provas eram claras. Ele havia revelado segredos militares em cartas codificadas para a irmã. Contudo, estava determinado a não deixar transparecer seu medo. Enfrentaria aquilo da melhor forma possível.

– Esta é uma corte marcial geral de campanha – começou Fitz –, autorizada quando o acusado está prestando serviço ou no estrangeiro e não é possível instituir uma corte marcial geral segundo as normas habituais. São necessários apenas três oficiais para servir de juízes, ou dois, se não houver um terceiro disponível. A corte pode julgar soldados de qualquer patente que tenham cometido qualquer tipo de ofensa e tem o poder de decretar a pena de morte.

A única chance de Billy era influenciar a sentença. As punições possíveis incluíam pena de prisão, trabalhos forçados ou a morte. Fitz sem dúvida gostaria de pôr Billy diante de um pelotão de fuzilamento, ou pelo menos de fazê-lo passar vários anos na cadeia. O objetivo de Billy era despertar em Murray e Evans dúvidas suficientes quanto à parcialidade daquele julgamento para fazê-los optar por uma pena de prisão curta.

Ele perguntou:

– Onde está meu advogado?

– Não é possível lhe proporcionar auxílio jurídico – respondeu Fitz.

– Tem certeza disso, senhor?

– Fale apenas quando lhe dirigirem a palavra, sargento.

– Que fique registrado nos autos que eu não pude recorrer a um advogado – disse Billy. Ele encarou Gwyn Evans, o único que segurava um caderno de anotações. Quando Evans não tomou nenhuma atitude, Billy tornou a falar: – Ou será que os autos deste julgamento vão ser uma mentira? – Ele enfatizou bastante a palavra mentira, sabendo que ela ofenderia Fitz. Dizer sempre a verdade fazia parte do código de conduta do cavalheiro inglês.

Fitz aquiesceu para Evans, que fez uma anotação.

Um a zero para mim, pensou Billy, animando-se um pouco.

– William Williams – disse Fitz –, o senhor é acusado de ter violado a parte um do regulamento do Exército. A acusação é que o senhor, de forma consciente e enquanto prestava serviço, agiu deliberadamente no intuito de pôr em risco o sucesso das forças de Sua Majestade. A pena para tanto é a morte, ou alguma punição mais branda que o tribunal venha a estabelecer.

A insistência em enfatizar a pena de morte fez Billy ter calafrios, porém ele manteve o rosto impassível.

– O que o senhor se declara? Culpado ou inocente?

Billy respirou fundo. Falou com uma voz distinta, imprimindo o máximo de desprezo possível em sua voz.

– Como o senhor se atreve, é o que eu declaro – respondeu. – Como o senhor se atreve a fingir ser um juiz imparcial? Como se atreve a agir como se a nossa presença na Rússia fosse uma operação legítima? E como se atreve a acusar de traição um homem que lutou ao seu lado por três anos? É isso que eu declaro.

– Billy, meu rapaz, não seja insolente – disse Gwyn Evans. – Você só vai piorar a sua situação.

Billy, que não iria deixar Evans se fingir de bonzinho, disse:

– E o meu conselho ao senhor é sair daqui agora mesmo e se desvincular deste julgamento fajuto. Quando essa notícia vazar, e podem acreditar que ela vai sair na primeira página do Daily Mirror, vão descobrir que a desonra recairá não sobre mim, mas sobre os senhores. – Ele olhou para Murray. – Todos os que tiverem participado desta farsa vão cair em desgraça.

Evans pareceu ficar preocupado. Evidentemente, não tinha pensado que aquilo pudesse vir a público.

– Já chega! – disse Fitz em voz alta, enfurecido.

Ótimo, pensou Billy; já consegui deixá-lo irritado.

– Passemos às provas – continuou Fitz. – Capitão Murray, tenha a bondade.

Murray abriu uma pasta e retirou dela uma folha de papel. Billy reconheceu a própria caligrafia. Conforme já esperava, era uma carta sua para Ethel.

Murray lhe mostrou a correspondência e perguntou:

– O senhor escreveu esta carta?

– Como ela chegou ao seu conhecimento, capitão Murray? – rebateu Billy.

– Responda à pergunta! – vociferou Fitz.

– O senhor estudou em Eton, não foi, capitão? – disse Billy. – Um cavalheiro nunca leria a correspondência alheia, ou pelo menos é o que se diz. No meu entender, apenas o censor oficial tem o direito de examinar as correspondências dos soldados. Então imagino que essa carta tenha chegado às suas mãos por intermédio do censor. – Ele fez uma pausa. Como havia imaginado, Murray relutou em responder. Ele prosseguiu: – Ou a carta foi obtida por meios ilegais?

– O senhor escreveu esta carta? – repetiu Murray.

– Se ela tiver sido obtida por meios ilegais, não pode ser usada em um julgamento. Acho que é isso que um advogado diria. Mas não há nenhum advogado aqui. E é por isso que este julgamento é fajuto.

– O senhor escreveu esta carta?

– Responderei a essa pergunta depois que o senhor me explicar como ela chegou às suas mãos.

– O senhor sabe que pode ser punido por desacato – disse Fitz.

Já estou sob o risco de pena de morte, pensou Billy, que burrice de Fitz achar que pode me ameaçar! Mas o que disse foi:

– Estou assinalando a irregularidade deste julgamento e a ilegalidade da acusação para me defender. O senhor vai proibir isso... capitão?

Murray desistiu.

– O remetente no envelope indica o endereço e o nome do sargento Billy Williams. Se o réu deseja alegar que não escreveu a carta, deve dizer isso agora.

Billy ficou calado.

– A carta é uma mensagem em código – continuou Murray. – Para decodificá-la é preciso considerar apenas uma palavra a cada três, bem como as iniciais em maiúscula de títulos de canções e filmes. – Murray entregou a carta a Evans. – Uma vez decodificada, ela diz o seguinte...

A mensagem de Billy descrevia a incompetência do regime de Kolchak, dizendo que, apesar de todo o ouro de que dispunham, eles não haviam conseguido pagar os funcionários da ferrovia transiberiana, de modo que continuavam com problemas de abastecimento e de transporte. Ela também detalhava a ajuda que o Exército britânico estava tentando proporcionar aos contrarrevolucionários. Essa informação tinha sido escondida do povo britânico, que pagava pelo Exército e cujos filhos estavam arriscando suas vidas.

– O senhor nega ter enviado essa mensagem? – perguntou Murray a Billy.

– Não posso fazer comentários sobre provas obtidas de forma ilegal.

– A destinatária, E. Williams, é na verdade a Sra. Ethel Leckwith, líder da campanha “Deixem a Rússia em paz”, correto?

– Não posso fazer comentários sobre provas obtidas de forma ilegal.

– O senhor já havia mandado outras cartas codificadas para ela antes?

Billy não respondeu.

– E ela usou as informações dadas pelo senhor para redigir matérias jornalísticas hostis, que desabonam o Exército britânico e põem em risco o sucesso de nossas ações aqui.

– De forma alguma – disse Billy. – O Exército foi desabonado por aqueles que nos enviaram para uma missão secreta e ilegal, sem o conhecimento ou a aprovação do Parlamento. A campanha “Deixem a Rússia em paz” é o primeiro passo necessário para que voltemos a desempenhar nosso verdadeiro papel: o de defensores da Grã-Bretanha, e não o de um exército particular de uma pequena conspiração de generais e políticos de direita.

Com grande satisfação, Billy viu que o rosto de traços bem marcados de Fitz estava vermelho de raiva.

– Acho que já ouvimos o suficiente – disse Fitz. – O tribunal vai agora deliberar sobre o veredicto. – Murray murmurou alguma coisa, ao que Fitz acrescentou: – Ah, sim. O acusado tem algo a dizer?

Billy se colocou de pé.

– Gostaria de convocar minha primeira testemunha, o coronel conde Fitzherbert.

– Não seja ridículo – disse Fitz.

– Que os autos registrem que o tribunal me negou o direito de interrogar uma testemunha, muito embora ela estivesse presente no julgamento.

– Diga logo o que tem a dizer.

– Se o direito de convocar uma testemunha não me houvesse sido negado, eu teria perguntado ao coronel qual é a sua relação com a minha família. Ele por acaso não nutre um rancor pessoal contra mim pelo fato de o meu pai ser um líder sindical dos mineradores? Qual era sua relação com a minha irmã? Ele não a contratou como governanta para depois mandá-la embora sem explicação? – Billy sentiu-se tentado a falar mais sobre Ethel, porém isso significaria denegrir o nome da irmã. Além do mais, aquela alusão provavelmente já bastava. – Também perguntaria qual é o interesse pessoal dele nesta guerra ilegal contra o governo bolchevique. Sua esposa não é uma princesa russa? Seu filho não é herdeiro de terras aqui? O coronel na verdade não estaria neste país para defender seus interesses financeiros pessoais? E todas essas questões não seriam a verdadeira explicação para o fato de ele ter convocado este arremedo de julgamento? E isso não o desqualifica totalmente para julgar este caso?

Fitz o encarava impassível, mas tanto Murray quanto Evans pareciam chocados. Ambos desconheciam todas essas informações pessoais.

– Tenho mais uma coisa a dizer – falou Billy. – O Kaiser alemão está sendo acusado de crimes de guerra. Estão dizendo que ele declarou guerra, incentivado por seus generais, contra a vontade do povo, expressa claramente por seus representantes no Reichstag, o parlamento daquele país. A Grã-Bretanha, por sua vez, segundo dizem, só declarou guerra à Alemanha após um debate na Câmara dos Comuns.

Fitz fingiu estar entediado, porém Murray e Evans prestavam atenção no que Billy dizia.

– Agora tomemos esta guerra aqui na Rússia – continuou ele. – Ela nunca chegou a ser debatida no Parlamento britânico. Os fatos estão sendo escondidos do nosso povo sob o pretexto de segurança operacional, que sempre serve de desculpa para os segredos infames do Exército. Nós estamos lutando, mas a guerra nunca foi declarada. O primeiro-ministro britânico e seus colegas estão na mesmíssima posição que o Kaiser e seus generais. São eles que estão agindo de forma ilegal, não eu. – Billy se sentou.

Os dois capitães se juntaram a Fitz para confabular. Billy se perguntou se teria exagerado na dose. Sentira necessidade de ser incisivo, mas talvez tivesse ofendido os capitães em vez de conquistar seu apoio.

No entanto, os juízes pareciam estar em conflito. Fitz falava enfaticamente, enquanto Evans fazia que não com a cabeça. Murray parecia constrangido. Isso provavelmente era um bom sinal, pensou Billy. Ainda assim, nunca sentira tanto medo na vida. Nem quando havia enfrentado as metralhadoras do Somme ou durante a explosão na mina ele ficara tão apavorado quanto naquele instante, com a vida nas mãos de três oficiais perversos.

Por fim, eles pareceram chegar a um acordo. Fitz olhou para Billy e disse:

– Levante-se.

Billy se levantou.

– Sargento William Williams, este tribunal o considera culpado da acusação que lhe foi feita. – Fitz encarou Billy, como se esperasse ver no seu rosto a humilhação da derrota. Billy, no entanto, já esperava aquele veredicto. O que temia era a sentença.

– O senhor está condenado a 10 anos de prisão – disse Fitz.

Billy não conseguiu se manter imperturbável. Não tinha sido condenado à pena de morte – mas a 10 anos de prisão! Quando fosse solto, teria 30 anos. Eles estariam em 1929. Mildred teria 35 anos. Metade de suas vidas já teria passado. Seu semblante desafiador ruiu e seus olhos se encheram de lágrimas.

Uma expressão de profunda satisfação tomou conta do rosto de Fitz.

– Está dispensado – disse ele.

Billy foi levado embora para começar sua sentença.

 

Maio e junho de 1919

No primeiro dia do mês de maio, Walter von Ulrich escreveu uma carta para Maud e a pôs no correio da cidade de Versalhes.

Não sabia se ela estava viva ou morta. Desde Estocolmo não tinha notícias suas. O serviço postal entre a Alemanha e a Grã-Bretanha continuava suspenso, de modo que aquela era sua primeira chance de lhe escrever em dois anos.

Walter e o pai haviam chegado à França na véspera, junto com outros 180 políticos, diplomatas e funcionários do Ministério das Relações Exteriores. Eles faziam parte da delegação que participaria da conferência de paz. A companhia ferroviária francesa havia diminuído a velocidade do trem especial em que viajavam para fazê-los passar bem devagar pela paisagem devastada do nordeste do país.

– Como se nós fôssemos os únicos que jogamos bombas aqui – comentou Otto com irritação. De Paris, eles haviam sido conduzidos de ônibus até a pequena cidade de Versalhes e deixados no Hôtel des Réservoirs. A bagagem do grupo foi descarregada no pátio e eles foram grosseiramente instruídos a carregá-la sozinhos. Estava claro que os franceses não se mostrariam magnânimos na vitória, pensou Walter.

– Eles não venceram, esse é o problema – disse Otto. – Podem não ter perdido de verdade, porque foram salvos pelos britânicos e pelos americanos, mas isso não é motivo para se gabarem. Nós os derrotamos e eles sabem disso. Estão com o orgulho ferido.

O hotel era frio e soturno, porém magnólias e macieiras floresciam do lado de fora. Os alemães puderam passear pelos jardins do majestoso château e visitar as lojas. Havia sempre uma pequena multidão em frente ao hotel. O povo comum não era tão cruel quanto seus representantes oficiais. Às vezes algumas pessoas vaiavam, mas em geral elas estavam apenas curiosas para ver o inimigo.

Walter escreveu para Maud logo no primeiro dia. Não fez menção ao casamento dos dois – ainda não tinha certeza de que fosse seguro e, de toda forma, era difícil perder o hábito de agir em segredo. Disse a ela onde estava, descreveu o hotel e as cercanias e lhe pediu que escrevesse de volta. Foi até a cidade, comprou um selo e postou a carta no correio.

Então, nervoso e cheio de esperança, pôs-se a esperar a resposta. Se ela estivesse viva, será que ainda o amava? Tinha quase certeza de que sim. Porém dois anos haviam transcorrido desde que ela o abraçara com ardor em um quarto de hotel em Estocolmo. O mundo estava cheio de homens que tinham voltado da guerra e descoberto que suas namoradas e esposas haviam se apaixonado por outra pessoa durante os longos anos de separação.

Alguns dias depois, os líderes das delegações foram convocados ao Hôtel Trianon Palace, do outro lado do parque, e receberam com grande cerimônia cópias do tratado de paz redigido pelos Aliados vitoriosos. O documento estava em francês. De volta ao Hôtel des Réservoirs, as cópias foram entregues a equipes de tradutores. Walter chefiava uma delas. Desmembrou sua parte do texto, distribuiu os diferentes trechos aos colegas e sentou-se para ler.

O tratado era pior ainda do que ele imaginava.

O Exército francês ocuparia a região de fronteira da Renânia durante 15 anos. A região alemã do Saar se tornaria um protetorado da Liga das Nações, sendo que os franceses controlariam as minas de carvão locais. A Alsácia e a Lorena seriam devolvidas à França sem plebiscito: o governo francês temia que a população decidisse permanecer alemã. O novo Estado polonês ficaria tão grande que passaria a incluir os lares de três milhões de alemães e as minas de carvão da Silésia. A Alemanha perderia todas as suas colônias: os Aliados as haviam distribuído entre si como ladrões dividindo um butim. E os alemães seriam forçados a aceitar o pagamento de reparações de valor indeterminado – em outras palavras, teriam que assinar um cheque em branco.

Walter se perguntou que tipo de país os Aliados queriam que a Alemanha virasse. Será que estavam imaginando um gigantesco campo de escravos, em que todos vivessem em regime de racionamento e trabalhassem apenas para que seus senhores pudessem confiscar o que produziam? Se Walter fosse obrigado a virar um escravo desse tipo, como poderia cogitar montar uma casa com Maud e ter filhos?

O pior de tudo, no entanto, era a cláusula que imputava a culpa da guerra à Alemanha.

O artigo 231 do tratado dizia: “Os Governos Aliados e Associados afirmam, e a Alemanha aceita, a responsabilidade da Alemanha e de seus aliados por todas as perdas e danos aos quais os Governos Aliados e Associados, bem como seus respectivos cidadãos, foram submetidos em consequência da guerra a eles imposta pela agressão da Alemanha e seus aliados.”

– Isso é mentira – disse Walter, irado. – Uma mentira idiota, ignorante e perversa. – Ele sabia que a Alemanha não era inocente e dissera isso inúmeras vezes ao pai. No entanto, tinha vivido as crises diplomáticas do verão de 1914, acompanhara cada passo do caminho rumo à guerra e sabia que nenhuma nação era culpada sozinha. A prioridade dos líderes de ambos os lados do conflito tinha sido defender seu próprio país – nenhum deles tivera a intenção de afundar o mundo na pior guerra da história: nem Asquith, nem Poincaré, nem o Kaiser, nem o czar, nem o imperador austríaco. Dizia-se que até mesmo Gavrilo Princip, o assassino de Sarajevo, ficara horrorizado ao compreender o que havia iniciado. Contudo, nem mesmo ele era responsável por “todas as perdas e danos”.

Pouco depois da meia-noite, Walter topou com o pai. Ambos estavam fazendo uma pausa e tomando café para ficar acordados e continuar o trabalho.

– É um acinte! – vociferou Otto. – Nós concordamos com um armistício baseado nos 14 Pontos de Wilson, mas esse tratado não tem nada a ver com os 14 Pontos!

Ao menos desta vez, Walter concordava com o pai.

Pela manhã, a tradução já havia sido impressa e cópias despachadas para Berlim por mensageiros especiais – um clássico exemplo da eficiência alemã, pensou Walter, enxergando as virtudes do próprio país com mais clareza agora que ele estava sendo denegrido. Exausto demais para dormir, resolveu dar uma volta até ficar relaxado o suficiente para ir se deitar.

Saiu do hotel e foi em direção ao parque. Os rododendros estavam em flor. Era uma linda manhã para a França, e uma manhã triste para a Alemanha. Quais seriam os efeitos daquelas propostas no frágil governo social-democrata alemão? Será que o povo, em desespero, abraçaria o bolchevismo?

Ele estava sozinho no imenso parque, a não ser por uma jovem que usava um casaco leve de primavera, sentada em um banco debaixo de uma castanheira. Absorto, ele tocou educadamente a aba do chapéu de feltro ao passar por ela.

– Walter – disse a jovem.

Seu coração parou de bater. Ele conhecia aquela voz, mas não podia ser ela. Virou-se e olhou para a mulher.

Ela se levantou.

– Ah, Walter – disse. – Não está me reconhecendo?

Era Maud.

O sangue de Walter disparou por suas veias. Ele deu dois passos em direção a Maud, que se atirou em seus braços. Ele a apertou com força. Enterrou o rosto em seu pescoço para sentir seu cheiro, ainda familiar apesar dos anos. Beijou-lhe a testa, o rosto e então a boca. Ele falava e beijava ao mesmo tempo, mas nem as palavras nem os beijos eram capazes de comunicar tudo o que sentia.

Por fim, ela perguntou:

– Você ainda me ama?

– Mais do que nunca – respondeu Walter, tornando a beijá-la.

Quando os dois estavam deitados na cama, depois de fazer amor, Maud correu as mãos pelo peito nu de Walter.

– Como você está magro – comentou. Sua barriga estava côncava e os ossos de seus quadris, protuberantes. Ela queria engordá-lo à base de croissants amanteigados e foie gras.

Estavam no quarto de um albergue a poucos quilômetros de Paris. A janela estava aberta e uma suave brisa primaveril agitava as cortinas de um amarelo vivo. Maud tinha descoberto aquele lugar muitos anos antes, quando Fitz costumava usá-lo para seus encontros amorosos com uma mulher casada, a condessa de Cagnes. O estabelecimento, pouco mais que uma casa grande em um pequeno vilarejo, nem sequer tinha nome. Os homens faziam reservas para almoçar e depois passavam a tarde em um dos quartos. Talvez também houvesse lugares como aquele nos arredores de Londres, mas, de certa forma, o esquema todo parecia tipicamente francês.

Eles se apresentaram como Sr. e Sra. Wooldridge, e Maud pôs no dedo a aliança que havia passado quase cinco anos guardada. A discreta dona do lugar sem dúvida pensou que eles estavam apenas fingindo serem casados. Isso não seria problema, contanto que ela não desconfiasse que Walter fosse alemão: nesse caso, sim, eles estariam em maus lençóis.

Maud não conseguia parar de tocá-lo. Sentia-se muito agradecida por Walter ter voltado para ela intacto. Acariciou a longa cicatriz em sua canela com as pontas dos dedos.

– Essa foi em Château-Thierry – disse ele.

– Gus Dewar lutou nessa batalha. Espero que não tenha sido ele quem atirou em você.

– Tive sorte de ter cicatrizado tão bem. Vários homens morreram de gangrena.

Fazia três semanas que os dois haviam se reencontrado. Nesse meio-tempo, Walter trabalhava sem descanso na resposta alemã à minuta do tratado, parando apenas cerca de meia hora por dia para passear com ela pelo parque, ou se sentar no banco de trás do Cadillac azul de Fitz enquanto o motorista os conduzia pela cidade.

Maud ficara tão chocada quanto Walter com os termos draconianos apresentados aos alemães. O objetivo da conferência de Paris era criar um mundo novo, justo e pacífico – não possibilitar que os vencedores se vingassem dos perdedores. A nova Alemanha precisava ser democrática e próspera. Ela queria ter filhos com Walter, que seriam alemães. Maud pensava sempre no trecho do Livro de Rute que começava com as palavras “Aonde fores irei”. Mais cedo ou mais tarde, teria que dizer isso a Walter.

Ela, no entanto, ficou aliviada ao descobrir que não era a única a reprovar as propostas do tratado. Entre os Aliados, havia outras pessoas que consideravam a paz mais importante do que a vingança. Doze membros da delegação norte-americana haviam se demitido em protesto. Em uma eleição suplementar na Grã-Bretanha, o candidato que defendia a paz sem vingança tinha vencido. O arcebispo de Canterbury declarara publicamente que estava “muito pouco à vontade” com aquela situação, alegando ser o porta-voz de uma massa silenciosa não representada nos jornais que proclamavam o ódio aos hunos.

Na véspera, os alemães haviam apresentado sua contraproposta – mais de uma centena de páginas de argumentação minuciosa, baseada nos 14 Pontos de Wilson. Naquela mesma manhã, a imprensa francesa ficou em polvorosa. Explodindo de indignação, os jornais chamaram o documento de um monumento à impudência e um exemplo detestável de fanfarronice.

– Eles estão nos acusando de arrogância... logo os franceses! – disse Walter. – Qual é mesmo aquela expressão sobre esfarrapados?

– O roto falando do esfarrapado – respondeu Maud.

Walter rolou de lado e começou a brincar com os pelos pubianos dela. O tufo de pelos era escuro, encaracolado e farto. Maud havia se disposto a apará-lo, mas ele disse que gostava assim.

– O que vamos fazer? – perguntou ele. – É muito romântico nos encontrarmos em hotéis e irmos para a cama em plena tarde, como dois amantes clandestinos, mas não podemos fazer isso para sempre. Temos que revelar ao mundo que somos marido e mulher.

Maud concordou. Também estava ansiosa para poder passar todas as noites em sua companhia, embora evitasse dizer isso: ficava um pouco constrangida por gostar tanto de fazer sexo com ele.

– Nós poderíamos simplesmente ir morar juntos e deixar as pessoas tirarem suas próprias conclusões.

– Não gosto da ideia – respondeu ele. – É como se tivéssemos vergonha da nossa condição.

Ela sentia o mesmo. Queria alardear a felicidade que sentia, não escondê-la. Tinha orgulho de Walter: ele era lindo, corajoso e inteligentíssimo.

– Poderíamos nos casar de novo – falou. – Ficamos noivos, anunciamos o noivado, fazemos uma cerimônia, e não contamos a ninguém que somos marido e mulher há quase cinco anos. Não é ilegal casar com a mesma pessoa duas vezes.

Ele assumiu um ar pensativo.

– Meu pai e seu irmão seriam contra. Não poderiam nos impedir, mas talvez tornassem as coisas desagradáveis... o que estragaria a felicidade da ocasião.

– Tem razão – disse ela, relutante. – Fitz diria que alguns alemães podem ser muito simpáticos e tudo o mais, mas que, mesmo assim, ninguém iria querer que a irmã se casasse com um deles.

– Então nós devemos confrontá-los com um fato consumado.

– Vamos contar a eles e depois anunciar a notícia na imprensa – disse ela. – Diremos que é um símbolo da nova ordem mundial. Um casamento anglo-germânico simultâneo ao tratado de paz.

Ele pareceu não levar muita fé.

– Como conseguiríamos fazer isso?

– Eu posso falar com o editor da revista Tatler. Eles gostam de mim, já lhes dei material de sobra.

Walter sorriu e disse:

– Lady Maud Fitzherbert sempre vestida na última moda.

– Que história é essa?

Ele estendeu a mão para pegar a carteira sobre o criado-mudo e tirou de dentro dela um recorte de jornal.

– A única foto que eu tinha de você – falou.

Ela pegou o recorte. O papel estava mole de tão velho e havia desbotado até adquirir um tom de areia. Ela analisou a imagem.

– Esta foto foi tirada antes da guerra.

– E desde então eu a carrego comigo. Assim como eu, ela sobreviveu.

Os olhos de Maud se encheram de lágrimas, embaçando ainda mais a imagem desbotada.

– Não chore – disse ele, abraçando-a.

Ela pressionou o rosto contra o seu peito nu e chorou. Algumas mulheres choravam à toa, mas ela nunca fora desse tipo. Agora, estava aos soluços. Chorava pelos anos perdidos, pelos milhões de rapazes mortos e pelo desperdício inútil e absurdo que tudo isso representava. Estava derramando todas as lágrimas armazenadas em cinco anos de autocontrole.

Quando seu pranto cessou e não lhe restavam mais lágrimas, beijou-o com sofreguidão e eles tornaram a fazer amor.

O Cadillac azul de Fitz foi buscar Walter no hotel no dia 16 de junho e o levou até Paris. Maud decidira que a revista Tatler precisaria de uma foto dos dois. Walter usava um terno de tweed feito em Londres antes da guerra. Estava largo na cintura, mas, no momento, todos os alemães andavam com roupas mais folgadas do que a encomenda.

Ele havia instalado um pequeno escritório do serviço de inteligência no Hôtel des Réservoirs, no intuito de monitorar os jornais franceses, britânicos, americanos e italianos e coletar fofocas ouvidas pela delegação alemã. Sabia que os Aliados estavam tendo discussões acaloradas sobre a contraproposta alemã. Lloyd George, um político que pecava pelo excesso de flexibilidade, estava disposto a reconsiderar a primeira versão do tratado. Contudo, o primeiro-ministro francês, Clemenceau, afirmou já ter sido generoso demais e ficou possesso diante da sugestão de mudanças. Para surpresa geral, Woodrow Wilson também se mostrou irredutível. Acreditava que a versão apresentada era um acordo justo e, sempre que tomava alguma decisão, tornava-se surdo às críticas.

Os Aliados também negociavam tratados de paz que abrangessem os que lutaram ao lado da Alemanha: Áustria, Hungria, Bulgária e Império Otomano. Estavam criando novos países, como a Iugoslávia e a Tchecoslováquia, e dividindo o Oriente Médio em zonas britânicas e francesas. E, além disso, debatiam se deveriam ou não selar a paz com Lênin. Em todos os países, as pessoas estavam cansadas da guerra, mas alguns poderosos ainda tinham disposição para lutar contra os bolcheviques. O periódico britânico Daily Mail teria desmascarado uma conspiração internacional de financiadores judeus que apoiava o regime moscovita – uma das fantasias menos plausíveis inventadas pelo jornal.

No que dizia respeito ao tratado da Alemanha, Wilson e Clemenceau derrotaram Lloyd George, e, mais cedo naquele dia, a equipe alemã hospedada no Hôtel des Réservoirs havia recebido um recado impaciente dando-lhes o prazo de três dias para aceitá-lo.

Sentado no banco traseiro do carro de Fitz, Walter pensava com pessimismo sobre o futuro de seu país. Seria como em uma colônia africana, refletiu ele: os habitantes primitivos trabalhando tão somente para enriquecer seus senhores estrangeiros. Ele não queria criar filhos em um lugar assim.

Maud aguardava no estúdio do fotógrafo, estonteante em um vestido de verão diáfano que, segundo ela, era de Paul Poiret, seu costureiro favorito.

O fotógrafo tinha um fundo pintado que representava um jardim todo florido, porém Maud o achou de mau gosto, de modo que o casal posou em frente às cortinas da sala de jantar, que felizmente eram simples. A princípio, ficaram lado a lado, sem se tocar, como dois desconhecidos. O fotógrafo propôs que Walter se ajoelhasse na frente de Maud, mas isso seria piegas demais. Por fim, acabaram encontrando uma posição que agradou a todos: os dois de mãos dadas, olhando um para o outro em vez de para a câmera.

O fotógrafo prometeu que as cópias da fotografia ficariam prontas no dia seguinte.

Eles foram almoçar no albergue.

– Os Aliados não podem simplesmente mandar a Alemanha assinar o tratado – disse Maud. – Isso não é negociação.

– Mas foi o que eles fizeram.

– E se vocês recusarem?

– Eles não dizem.

– O que vocês vão fazer?

– Parte da delegação voltará à Berlim hoje à noite para consultar nosso governo. – Ele deu um suspiro. – Infelizmente, eu fui destacado para ir com eles.

– Então está na hora de fazermos nosso anúncio. Vou voltar para Londres amanhã, depois de pegar as fotografias.

– Está bem – disse ele. – Vou contar à minha mãe assim que chegar a Berlim. Ela vai reagir bem. Depois contarei a meu pai. Com ele vai ser diferente.

– Eu vou falar com tia Herm e com a princesa Bea e escrever para Fitz na Rússia.

– Isso significa que esta é a última vez que vamos nos ver por algum tempo.

– Então acabe logo de comer e vamos para a cama.

Gus e Rosa se encontraram no Jardim das Tulherias. Paris estava começando a voltar ao normal, ele pensou com alegria. O sol brilhava, as árvores estavam cobertas de folhas e homens com cravos na lapela fumavam cigarros, observando as mulheres mais bem-vestidas do mundo passar. Em um dos lados do parque, a rue de Rivoli estava cheia de carros, caminhões e carroças puxadas a cavalo; no outro, barcaças circulavam pelo rio Sena. Talvez, no fim das contas, o mundo fosse mesmo se recuperar.

Rosa estava deslumbrante, com um leve vestido vermelho de algodão e um chapéu de aba larga. Se eu soubesse pintar, pensou Gus ao vê-la, faria um retrato dela assim.

Ele usava um blazer azul e um chapéu de palha moderno. Ela riu ao bater os olhos nele.

– O que foi? – perguntou Gus.

– Nada. Você está bonito.

– É o chapéu, não é?

Ela conteve outra risadinha.

– Você está uma graça.

– Estou é ridículo. Não posso fazer nada. Chapéus fazem isso comigo. É que meu corpo parece um daqueles martelos de cabeça redonda.

Ela o beijou de leve na boca.

– Você é o homem mais atraente de Paris.

O mais incrível era que ela estava falando sério. Como fui ter tanta sorte?, pensou Gus.

Ele tomou Rosa pelo braço.

– Vamos passear. – Eles seguiram em direção ao Louvre.

– Você viu a última edição da Tatler? – perguntou ela.

– A revista londrina? Não, por quê?

– Parece que sua grande amiga lady Maud é casada com um alemão.

– Ah! – exclamou ele. – Como eles descobriram?

– Quer dizer que você já sabia?

– Eu desconfiava. Encontrei Walter em Berlim em 1916 e ele me pediu para levar uma carta para Maud. Imaginei que isso significasse que eles estavam noivos ou eram casados.

– Como você é discreto! Nunca disse nada a respeito.

– Era um segredo perigoso.

– E talvez ainda seja. A Tatler é generosa com eles, mas os outros jornais talvez adotem linhas diferentes.

– Maud já foi atacada pela imprensa antes. Ela é bastante durona.

Rosa parecia envergonhada.

– Então era sobre isso que vocês estavam falando naquela noite quando eu o flagrei num tête-à-tête com ela.

– Exato. Ela estava me perguntando se eu tinha notícias de Walter.

– Estou me sentindo uma boba por ter desconfiado que estivesse flertando.

– Eu perdoo você, mas me reservo o direito de trazer isso à tona da próxima vez que me criticar sem motivo. Posso lhe perguntar uma coisa?

– O que quiser, Gus.

– Três coisas, na verdade.

– Quanto suspense. Parece um conto de fadas. Se eu responder errado, vou ser banida do reino?

– Você ainda é anarquista?

– Isso o incomodaria?

– Acho que estou me perguntando se a política poderia nos separar.

– A anarquia é a crença de que ninguém tem o direito de governar. Todas as filosofias políticas, do direito divino dos reis até o contrato social de Rousseau, tentam justificar a autoridade. Os anarquistas acreditam que todas essas teorias são um fracasso e, portanto, nenhuma forma de autoridade é legítima.

– Em teoria, é irrefutável. Mas impossível de ser colocada em prática.

– Você entende rápido. Na verdade, todos os anarquistas são contra o esta­blishment, mas divergem bastante em suas visões de como a sociedade deveria funcionar.

– E qual é a sua visão?

– Ela já não é tão clara quanto antigamente. Cobrir a Casa Branca me fez enxergar a política de outra forma. Mas ainda acredito que a autoridade precisa ser justificada.

– Duvido que algum dia cheguemos a brigar por causa disso.

– Ótimo. Qual é a segunda pergunta?

– Me fale sobre seu olho.

– Eu nasci assim. Poderia fazer uma operação para abri-lo. Atrás da pálpebra só há um punhado de tecido inútil, mas eu poderia usar um olho de vidro. Só que ele nunca iria fechar. Acho que assim é o menor dos males. Incomoda você?

Ele parou de andar e se virou de frente para ela.

– Posso beijá-lo?

Ela hesitou.

– Está bem.

Ele se curvou e beijou a pálpebra fechada. Não sentiu nada de estranho ao tocá-la com os lábios. Era como beijar a bochecha de Rosa.

– Obrigado – disse ele.

– Ninguém nunca fez isso comigo antes – disse ela baixinho.

Ele assentiu. Imaginava que fosse mesmo uma espécie de tabu.

– Por que teve essa vontade? – perguntou ela.

– Porque eu amo tudo em você e quero ter certeza de que saiba disso.

– Ah. – Ela passou alguns segundos em silêncio, dominada pela emoção; mas então sorriu e voltou a falar no tom atrevido de sua preferência. – Bem, se quiser beijar alguma outra parte esquisita, é só dizer.

Ele não soube direito como reagir àquela proposta levemente excitante, então resolver deixar para pensar nela depois.

– Tenho mais uma pergunta.

– Pode falar.

– Quatro meses atrás, eu lhe disse que a amava.

– Eu não me esqueci.

– Mas você ainda não disse o que sente por mim.

– Não é óbvio?

– Talvez, mas quero que você me diga. Você me ama?

– Ah, Gus, será que você não entende? – A expressão em seu rosto mudou, e ela pareceu angustiada. – Eu não sou boa o bastante para você. Você era o melhor partido de Buffalo, e eu era a anarquista caolha. Você deveria se apaixonar por uma mulher elegante, linda, rica. Eu sou filha de médico e minha mãe era empregada doméstica. Não sou a pessoa certa para você amar.

– Você me ama? – repetiu ele com firmeza, mas sem perder a calma.

Ela começou a chorar.

– É claro que amo, seu bobo. Eu te amo de todo o meu coração.

Ele a tomou nos braços.

– Então, é só isso que importa – falou.

Tia Herm largou o exemplar da Tatler.

– Você jamais deveria ter se casado em segredo – disse ela a Maud. Então abriu um sorriso conspiratório. – Mas foi tão romântico!

As duas estavam na sala de estar da casa de Fitz em Mayfair. Bea a havia redecorado depois do fim da guerra, optando pelo novo estilo chamado art déco, com cadeiras de aspecto utilitário e bibelôs de prata modernosos comprados na Asprey. Além de Maud e Herm, estavam presentes também Bing Westhampton, o amigo metido a engraçadinho de Fitz, e sua mulher. Estavam em plena temporada londrina, e o grupo esperava Bea ficar pronta para ir à ópera. Ela estava dando boa-noite a Boy, que já contava três anos e meio, e a Andrew, de 18 meses.

Maud pegou a revista e tornou a ler a matéria. A fotografia não a agradava muito. Ela havia imaginado que fosse retratar duas pessoas apaixonadas. Infelizmente, mais parecia a cena de um filme de cinema. Walter tinha um ar predatório, segurando-lhe a mão e fitando seus olhos como um sedutor perverso, enquanto ela parecia uma donzela ingênua prestes a cair em suas garras.

O texto, no entanto, estava bem dentro de suas expectativas. O autor lembrava aos leitores que lady Maud tinha sido a “sufragista chique” de antes da guerra, que havia criado o jornal The Soldier’s Wife para militar pelos direitos das mulheres deixadas para trás durante a guerra e que fora presa ao protestar em defesa de Jayne McCulley. Informava também que ela e Walter haviam pretendido anunciar seu noivado da forma convencional, mas que foram impedidos pelo conflito. Seu casamento secreto e às pressas era descrito como uma tentativa desesperada de fazer a coisa certa em circunstâncias anormais.

Maud insistira para ser citada na íntegra, e a revista havia mantido a promessa. “Eu sei que alguns britânicos odeiam os alemães”, foram suas palavras. “Mas sei também que Walter e muitos outros de seus conterrâneos fizeram todo o possível para evitar a guerra. Agora que ela terminou, devemos criar paz e amizade entre os antigos inimigos, e espero com sinceridade que as pessoas vejam a nossa união como um símbolo do novo mundo.”

Em seus muitos anos de militância política, Maud havia aprendido que às vezes era possível conquistar o apoio de um veículo de imprensa dando-lhe exclusividade em uma boa história.

Como planejado, Walter tinha voltado para Berlim. Ainda na França, enquanto seguiam de carro para a estação de trem, os alemães haviam sido vaiados por multidões. Uma secretária tinha sido atingida por uma pedra e perdera os sentidos. Os franceses disseram apenas: “Lembrem-se do que eles fizeram com a Bélgica.” A secretária continuava hospitalizada. Nesse meio-tempo, o povo alemão se opunha furiosamente à assinatura do tratado.

Bing veio se sentar ao lado de Maud no sofá. Naquele dia, para variar, não flertou com ela.

– Queria que seu irmão estivesse aqui para aconselhar você em relação a isso – disse ele, meneando a cabeça para a revista.

Maud havia escrito para Fitz dando-lhe a notícia do casamento e anexando o recorte da Tatler, para lhe mostrar que o que ela fizera estava sendo aceito pela sociedade londrina. Não fazia ideia de quanto tempo a carta levaria para chegar até ele, e não esperava ter resposta antes de alguns meses. A essa altura, já seria tarde para Fitz protestar. Só lhe restaria sorrir e lhe dar os parabéns.

Ela, no entanto, ficou irritada com a sugestão de Bing de que precisava de um homem para lhe dizer o que fazer.

– Que tipo de coisa Fitz poderia me falar?

– No futuro próximo, a vida da esposa de um alemão vai ser dura.

– Eu não preciso de um homem para me dizer isso.

– Na ausência de Fitz, de certa forma sinto que é minha responsabilidade.

– Por favor, não se sinta assim. – Maud tentou não se ofender. Que conselhos Bing poderia oferecer a quem quer que fosse, além de quais os melhores clubes noturnos do mundo para se jogar e beber?

Ele baixou a voz.

– Custa-me dizer isso, mas... – Ele olhou de relance para tia Herm, que entendeu a indireta e saiu de perto para se servir de um pouco mais de café. – Se a senhora pudesse dizer que o casamento nunca chegou a ser consumado, talvez tenha chances de conseguir uma anulação.

Maud pensou no quarto de cortinas amarelas e teve que conter um sorriso de felicidade.

– Mas eu não posso, porque...

– Por favor, não me diga nada. Só quero ter certeza de que a senhora sabe quais são as suas alternativas.

Maud reprimiu uma indignação crescente.

– Sei que a sua intenção é boa, Bing...

– Há também a possibilidade de um divórcio. A senhora sabe que um homem pode muito bem dar motivos à esposa.

Maud não conseguiu mais refrear sua indignação.

– Por favor, vamos encerrar este assunto agora mesmo – disse ela, erguendo a voz. – Não tenho o menor intuito de pedir uma anulação ou um divórcio. Eu amo Walter.

Bing ficou emburrado.

– Eu estava apenas tentando dizer o que acho que Fitz, como chefe da sua família, lhe diria se estivesse aqui. – Ele se levantou e dirigiu-se à mulher: – Vamos andando, sim? Não há necessidade de chegarmos todos atrasados.

Alguns minutos depois, Bea apareceu usando um vestido novo de seda cor-de-rosa.

– Estou pronta – disse ela, como se estivesse esperando pelos outros, e não o contrário. Seu olhar recaiu sobre a mão esquerda de Maud, detendo-se sobre a aliança, porém ela não fez comentário algum. Quando Maud lhe dera a notícia, sua reação tinha sido cautelosamente neutra.

– Espero que você seja feliz – dissera ela sem a menor ternura. – E espero que Fitz aceite o fato de você não ter pedido a autorização dele.

Todos saíram para a rua e entraram no carro. Era o Cadillac preto que Fitz tinha comprado depois que o azul ficara preso na França. Fitz pagava por tudo, pensou Maud: pela casa em que as três mulheres moravam, pelos vestidos caríssimos que usavam, pelo carro, pelo camarote na ópera. As faturas de suas despesas no Ritz de Paris haviam sido encaminhadas para Albert Solman, que cuidava das finanças de seu irmão em Londres, e quitadas sem qualquer pergunta. Fitz nunca reclamava. Ela sabia que Walter não seria capaz de lhe proporcionar o mesmo estilo de vida. Talvez Bing tivesse razão e ela fosse achar difícil abrir mão do luxo a que estava acostumada. Porém, estaria ao lado do homem que amava.

Por conta do atraso de Bea, eles chegaram à casa de ópera Covent Garden na última hora. A plateia já havia se acomodado. As três mulheres subiram depressa a escadaria forrada de tapete vermelho e entraram no camarote. Maud se lembrou de repente do que havia feito com Walter naquele mesmo lugar durante a apresentação de Don Giovanni. Ficou encabulada: onde estava com a cabeça para correr um risco daqueles?

Bing Westhampton já estava ali com a mulher e levantou-se para puxar uma cadeira para Bea. A plateia estava em silêncio: o espetáculo já ia começar. Observar as pessoas era um dos grandes atrativos da ópera, de modo que muitas cabeças se viraram para ver a princesa se acomodar. Tia Herm se sentou na segunda fileira, mas Bing reservou um lugar na primeira fila para Maud. Um burburinho se ergueu da plateia: sem dúvida, a maior parte dos presentes tinha visto a fotografia e lido a matéria da Tatler. Muitos conheciam Maud pessoalmente: aquela era a alta sociedade londrina, os aristocratas e políticos, os juízes e bispos, os artistas de sucesso e os empresários endinheirados – e suas respectivas esposas. Maud ficou alguns segundos de pé para que aquelas pessoas pudessem dar uma boa olhada nela e ver toda a felicidade e orgulho que sentia.

Foi um erro.

O barulho da plateia mudou. O burburinho se tornou mais intenso. Não era possível distinguir palavras, mas ainda assim ficou claro que as vozes tinham assumido um tom de reprovação, como uma mosca mudando de zumbido ao se deparar com uma janela fechada. Maud ficou espantada com aquilo. Então ouviu outro ruído, que lhe pareceu assustadoramente uma vaia. Atordoada e com medo, ela se sentou.

Não adiantou muita coisa. Àquela altura, todos já olhavam para ela. Em segundos, as vaias se espalharam pela plateia, ganhando em seguida as galerias.

– Ora essa – protestou Bing, impotente.

Maud nunca havia se deparado com tamanho ódio, nem mesmo no auge das passeatas das sufragistas. Sentiu uma dor na barriga, como se estivesse com cólicas. Desejou que a música começasse logo, porém o maestro também a encarava, segurando a batuta junto à lateral do corpo.

Ela tentou retribuir o olhar de todos com altivez, mas seus olhos se encheram de lágrimas que borraram sua visão. Aquele pesadelo não iria terminar sozinho. Ela precisava tomar uma atitude.

Levantou-se, e as vaias aumentaram.

As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. Quase às cegas, ela virou as costas. Derrubando sua cadeira, cambaleou em direção à porta nos fundos do camarote. Tia Herm se pôs de pé, dizendo:

– Oh, céus... Oh, céus...

Bing também se levantou com um pulo para abrir a porta. Maud saiu, seguida de perto por tia Herm. Bing acompanhou as duas. Às suas costas, Maud ouviu as vaias cessarem em meio a algumas risadas. Então, para seu horror, a plateia começou a aplaudir, parabenizando-se por ter conseguido se livrar dela; e aqueles aplausos maldosos a seguiram ao longo do corredor, escada abaixo e até o lado de fora do teatro.

O trajeto entre os portões do jardim e o Palácio de Versalhes tinha pouco mais de um quilômetro e meio. Naquele dia, estava margeado por centenas de soldados montados da cavalaria francesa, com seus uniformes azuis. O sol de verão se refletia em seus capacetes de aço. Eles empunhavam lanças com flâmulas vermelhas e brancas que ondulavam na brisa morna.

Johnny Remarc tinha conseguido um convite para Maud assistir à assinatura do tratado de paz, apesar da humilhação que havia sofrido na ópera; mas ela foi obrigada a viajar na caçamba de um caminhão aberto, junto com todas as secretárias da delegação britânica, como ovelhas a caminho do mercado.

Em determinado momento, os alemães deram a impressão de que se recusariam a assinar. O marechal de campo Von Hindenburg, herói de guerra, afirmou que preferiria uma derrota honrosa a uma paz ultrajante. O gabinete alemão preferiu renunciar em massa a concordar com o tratado. O chefe da delegação alemã em Paris também se demitira. Por fim, a Assembleia Nacional havia votado pela assinatura do tratado inteiro, com exceção da famosa cláusula que culpava a Alemanha pela guerra. Até mesmo isso era inaceitável, disseram os Aliados na mesma hora.

– O que os Aliados vão fazer se os alemães se recusarem a assinar? – perguntara Maud a Walter em seu albergue, onde os dois tinham passado a viver juntos discretamente.

– Pelo que dizem, vão invadir a Alemanha.

Maud balançara a cabeça.

– Os nossos soldados não iriam lutar.

– Nem os nossos.

– Isso resultaria em um impasse.

– Só que a Marinha britânica ainda não pôs fim ao bloqueio, de modo que a Alemanha não consegue se abastecer. Os Aliados simplesmente esperariam até a escassez de alimentos provocar levantes em todas as cidades alemãs e então invadiriam o país sem encontrar resistência.

– Então vocês são forçados a assinar.

– Ou assinamos, ou morremos de fome – dissera Walter com amargura.

Era 28 de junho, cinco anos exatos desde o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo.

O caminhão conduziu as secretárias até o pátio, e elas desceram o mais gra­ciosamente possível. Maud entrou no palácio e subiu a escadaria imponente, ladeada por mais soldados franceses vestidos de maneira pomposa, desta vez membros da Garde Républicaine cujos capacetes de prata eram adornados com crina de cavalo.

Por fim, ela chegou à Galeria dos Espelhos. Aquele era um dos lugares mais impressionantes do mundo. Era do tamanho de três quadras de tênis enfileiradas. Em uma das laterais, 17 janelas compridas davam para o jardim; na parede oposta, essas janelas eram refletidas por 17 espelhos em forma de arco. O mais importante, porém, era que tinha sido ali, em 1871, no final da guerra franco-prussiana, que os alemães vitoriosos haviam coroado seu primeiro imperador e forçado os franceses a cederem a Alsácia e a Lorena. Agora, os alemães estavam prestes a ser humilhados debaixo do mesmo teto abobadado. E sem dúvida alguns deles estariam sonhando com o dia futuro em que teriam a chance de se vingar. Quando desonramos o próximo, pensou Maud, precisamos estar preparados para, cedo ou tarde, sermos desonrados em troca. Será que esse pensamento ocorreria a algum dos homens presentes em ambos os lados daquela cerimônia? Provavelmente não.

Ela se acomodou em um dos bancos de veludo vermelho. Dezenas de repórteres e fotógrafos estavam ali, além de uma equipe de filmagem com câmeras imensas que registrariam o evento. Os figurões entraram sozinhos ou em duplas e sentaram-se em volta de uma longa mesa: Clemenceau relaxado e irreverente, Wilson tenso e formal, Lloyd George parecendo um galo de briga envelhecido. Gus Dewar entrou e sussurrou algo no ouvido de Wilson, depois foi até os jornalistas e pôs-se a falar com uma repórter jovem e bonita de um olho só. Maud se lembrou de tê-la visto antes. Pôde notar que Gus estava apaixonado por ela.

Às três da tarde, alguém pediu silêncio, e uma quietude reverente recaiu sobre a galeria. Clemenceau disse alguma coisa, uma porta se abriu e os dois signatários alemães entraram. Maud sabia, por Walter, que ninguém em Berlim quisera pôr o nome naquele tratado e que, no fim das contas, a Alemanha decidira enviar o ministro das Relações Exteriores e o ministro dos Correios. Os dois tinham o semblante pálido e envergonhado.

Clemenceau fez um breve discurso e então chamou os alemães com um gesto. Ambos sacaram canetas-tinteiro do bolso e assinaram o papel sobre a mesa. Logo em seguida, em resposta a um sinal inaudível, armas dispararam do lado de fora, avisando ao mundo que o tratado de paz havia sido assinado.

Os demais representantes se aproximaram para assinar, não apenas em nome das grandes potências, mas de todos os países incluídos no tratado. Isso levou bastante tempo, e as pessoas começaram a conversar na plateia. Os alemães permaneceram sentados, rígidos e imóveis, até a cerimônia enfim terminar e eles serem escoltados para fora da galeria.

Maud estava enojada. Nós pregamos um sermão de paz, pensou, mas desde o início vínhamos planejando vingança. Ela saiu do palácio. Do lado de fora, Wilson e Lloyd George estavam sendo cercados por um amontoado de espectadores exultantes. Ela contornou a multidão, foi até a cidade e entrou no hotel onde os alemães estavam hospedados.

Torceu para que Walter não estivesse muito deprimido: aquele tinha sido um dia terrível para ele.

Encontrou-o fazendo as malas.

– Nós vamos para casa hoje à noite – disse ele. – A delegação inteira.

– Já?! – Ela mal tinha pensado no que iria acontecer após a assinatura. Era um acontecimento tão drástico em sua importância que Maud não conseguira prever nada depois dele.

Walter, por sua vez, não só havia pensado no assunto, como tinha um plano.

– Venha comigo – foi tudo o que ele disse.

– Eu não vou conseguir permissão para ir à Alemanha.

– E quem disse que você precisa de permissão? Eu arranjei um passaporte alemão para você em nome de Frau Maud von Ulrich.

Ela ficou atônita.

– Como você conseguiu isso? – perguntou, embora essa não fosse, de forma alguma, a pergunta mais importante em sua mente.

– Não foi difícil. Você é esposa de um cidadão alemão. Tem direito a um passaporte. Usei minha influência para diminuir o trâmite para algumas horas.

Ela o encarava fixamente. Era tudo muito repentino.

– Você vem? – indagou ele.

Maud viu em seus olhos um medo terrível. Walter estava achando que ela poderia desistir na última hora. Teve vontade de chorar diante do pavor que ele sentia de perdê-la. Sentiu-se muito sortuda por ser amada com tamanha paixão.

– Vou – respondeu. – Sim, eu vou. É claro que vou.

Ele não ficou convencido.

– Tem certeza de que é isso que você quer?

Ela aquiesceu.

– Você se lembra da história de Rute, na Bíblia?

– É claro. Por que...

Maud lera esse trecho várias vezes ao longo das últimas semanas, e então recitou as palavras que tanto a haviam comovido:

– “Aonde fores irei, onde ficares ficarei; o teu povo será o meu povo, e o teu Deus será o meu Deus; onde morreres...” – Ela se deteve, o nó em sua garganta impedindo-a de prosseguir; então, depois de uma pausa, engoliu em seco e continuou: – “Onde morreres morrerei, e ali serei sepultada.”

Ele sorriu, mas havia lágrimas em seus olhos.

– Obrigado – falou.

– Eu te amo – disse ela. – A que horas sai o trem?

 

De agosto a outubro de 1919

Gus e Rosa voltaram a Washington junto com o presidente. Em agosto, combinaram de pedir licença do trabalho ao mesmo tempo e foram para Buffalo, cidade natal de ambos. Um dia depois de chegarem, Gus levou Rosa para conhecer seus pais.

Estava nervoso. Queria muito que sua mãe gostasse dela. A Sra. Dewar, no entanto, tinha uma opinião exagerada quanto ao poder de atração do filho sobre as mulheres. Havia encontrado defeito em todas as moças que Gus mencionara. Nenhuma delas era boa o bastante, sobretudo socialmente. Se ele quisesse se casar com a filha do rei da Inglaterra, ela provavelmente diria: “Por que você não encontra uma moça americana de boa família?”

– A primeira coisa que a senhora vai notar, mãe, é que ela é muito bonita – disse Gus naquela manhã durante o café. – Em segundo lugar, que ela só tem um olho. Depois de alguns minutos, vai perceber que ela é muito inteligente. E, quando a conhecer melhor, entenderá que é a moça mais maravilhosa do mundo.

– Não tenho a menor dúvida – respondeu sua mãe, com a falta de sinceridade espantosa que lhe era habitual. – Quem são os pais dela?

Rosa chegou no meio da tarde, quando a mãe de Gus estava fazendo a sesta e seu pai ainda não tinha voltado do centro da cidade. Gus lhe mostrou a casa e os jardins.

– Você sabe que eu venho de uma família mais modesta, não sabe? – perguntou ela com nervosismo.

– Você logo vai se acostumar – respondeu ele. – Ainda por cima, eu e você não vamos viver neste esplendor todo. Mas podemos comprar uma casinha jeitosa em Washington.

Os dois jogaram uma partida de tênis. O jogo foi desequilibrado: Gus, com seus braços e pernas compridos, jogava bem demais para Rosa, que calculava mal as distâncias. Mesmo assim, ela jogou com garra, correndo atrás de todas as bolas, e chegou a vencer alguns games. Além disso, usando um vestido branco com a bainha no meio da canela que estava na moda, ela lhe parecia tão sexy que Gus teve de fazer um enorme esforço para se concentrar em suas jogadas.

Eles foram tomar chá cobertos por uma reluzente camada de suor.

– Agora reúna toda a sua tolerância e boa vontade – disse Gus na entrada da sala de estar. – Minha mãe pode ser terrivelmente esnobe.

Contudo, a mãe de Gus se comportou muito bem. Beijou Rosa nas duas faces e disse:

– Que cara saudável a de vocês, todos corados por causa do exercício. Srta. Hellman, é um prazer conhecê-la, espero que fiquemos amigas.

– A senhora é muito gentil – disse Rosa. – Seria uma honra ser sua amiga.

A mãe de Gus ficou feliz com o elogio. Sabia que era uma grande dame da sociedade de Buffalo e achava adequado que as moças se mostrassem deferentes. Rosa havia percebido isso na mesma hora. Muito esperta, pensou Gus. E muito generosa também, já que no seu íntimo detestava qualquer tipo de autoridade.

– Eu conheço seu irmão, Fritz Hellman – disse a mãe de Gus. Fritz tocava violino na Orquestra Sinfônica de Buffalo. A mãe de Gus fazia parte do conselho. – Ele tem um talento maravilhoso.

– Obrigada. Temos muito orgulho dele.

A mãe de Gus continuou jogando conversa fora e Rosa deixou que ela assumisse o controle. Gus se lembrou da outra vez em que havia trazido para casa uma moça com quem pretendia se casar: Olga Vyalov. A reação de sua mãe na ocasião tinha sido diferente: ela se mostrara cortês e receptiva, porém Gus sabia que, no fundo, não estava sendo sincera. Mas agora seus sentimentos lhe pareciam genuínos.

Na véspera, ele havia perguntado à mãe sobre a família Vyalov. Lev Peshkov tinha sido despachado para a Sibéria como intérprete do Exército. Olga não frequentava muitos eventos sociais e parecia entretida com a criação da filha. Josef havia feito lobby com o pai de Gus, que era senador, para aumentar a ajuda militar aos Brancos.

– Ele parece pensar que os bolcheviques vão prejudicar os negócios da família Vyalov em Petrogrado – dissera sua mãe.

– Essa é a melhor coisa que eu já ouvi sobre os bolcheviques – respondera Gus.

Depois do chá, os dois foram se trocar. Gus ficou agitado ao pensar em Rosa tomando banho no quarto ao lado. Ele nunca a tinha visto nua. Os dois haviam passado juntos algumas horas apaixonadas no quarto de hotel dela em Paris, mas não chegaram a fazer sexo.

– Detesto ser antiquada – dissera Rosa, como se pedisse desculpas –, mas, não sei por que, acho que devemos esperar. – Na verdade, não era tão anarquista assim.

Os pais de Rosa haviam sido convidados para o jantar. Gus vestiu um paletó curto de smoking e desceu. Preparou um uísque para o pai, mas não para ele próprio. Tinha a sensação de que precisava estar bastante lúcido.

Rosa desceu usando um vestido preto que a deixava estonteante. Seus pais chegaram às seis em ponto. Norman Hellman estava de fraque, o que não era o mais adequado para um jantar de família, mas talvez ele não tivesse um smoking. Era um homem miúdo, com um sorriso encantador, e Gus viu na hora que Rosa havia puxado a ele. Norman tomou dois martínis bem depressa, o único sinal de que talvez estivesse nervoso, mas depois disso não bebeu mais. A mãe de Rosa, Hilda, era uma mulher bonita e esbelta, com lindas mãos de dedos longos. Era difícil imaginá-la como empregada doméstica. O pai de Gus simpatizou com ela imediatamente.

Quando todos se acomodaram para jantar, o Dr. Hellman perguntou:

– Quais são seus planos profissionais, Gus?

Como pai da mulher que Gus amava, ele tinha o direito de fazer essa pergunta, mas Gus não tinha resposta.

– Vou continuar trabalhando para o presidente enquanto ele precisar de mim – disse.

– Ele tem uma tarefa e tanto pela frente agora.

– É verdade. O Senado está criando problemas para aprovar o Tratado de Paz de Versalhes. – Gus tentou não soar cáustico demais. – Depois de tudo o que Wilson fez para convencer os europeus a criar a Liga das Nações, mal posso acreditar que os americanos estejam torcendo o nariz para essa ideia.

– O senador Lodge é um encrenqueiro de marca maior.

Gus considerava o senador Lodge um filho da puta egocêntrico.

– O presidente decidiu não levar Lodge com ele para Paris, e agora Lodge está se vingando.

O pai de Gus, que além de senador era um velho amigo do presidente, falou:

– Woodrow tornou a Liga das Nações parte do tratado de paz achando que nós não teríamos como rejeitar o tratado e, portanto, seríamos obrigados a aceitar a liga. – Ele deu de ombros. – Lodge o mandou pastar.

– Para ser justo com Lodge – falou o Dr. Hellman –, eu acho que o povo americano tem o direito de estar preocupado com o artigo dez. Se nós entrarmos para uma liga que garante proteger seus membros de qualquer agressão, estaremos comprometendo as forças americanas com conflitos futuros desconhecidos.

A resposta de Gus foi rápida:

– Se a liga for forte, ninguém se atreverá a desafiá-la.

– Não estou tão confiante quanto você em relação a isso.

Gus não queria discutir com o pai de Rosa, mas era um defensor ardoroso da Liga das Nações.

– Não estou dizendo que nunca mais haveria outra guerra – disse ele em tom conciliatório. – Mas creio que elas seriam menos numerosas e mais curtas, além de pouco recompensadoras para os agressores.

– Acho que você pode ter razão. Mas muitos eleitores estão dizendo: “Que se dane o mundo, só os Estados Unidos me interessam. Não estamos correndo o risco de virar a polícia do mundo?” É uma pergunta sensata.

Gus se esforçou para conter a própria raiva. A liga era a maior esperança de paz que a humanidade já tivera, e corria o risco de nascer morta por causa daquele tipo de crítica mesquinha.

– As decisões do conselho da liga têm que ser unânimes – falou –, então os Estados Unidos nunca seriam obrigados a travar uma guerra contra sua vontade.

– Mesmo assim, não faz sentido termos uma liga se ela não estiver preparada para lutar.

Os inimigos da Liga das Nações eram assim: primeiro reclamavam porque a liga iria lutar, depois reclamavam porque ela não iria lutar.

– Esses problemas são pequenos se comparados à morte de milhões de homens! – disse Gus.

O Dr. Hellman deu de ombros, educado demais para continuar tentando convencer um adversário tão fervoroso.

– Seja como for – disse ele –, acredito que um tratado internacional precise do apoio de dois terços do Senado.

– E no momento nós não temos nem metade – disse Gus, pessimista.

Rosa, que estava escrevendo sobre a questão, disse:

– Pelas minhas contas, são 40 votos a favor, incluindo o senhor, senador Dewar. Quarenta e três senadores ainda têm reservas, oito são terminantemente contra e cinco estão indecisos.

– O que o presidente vai fazer? – perguntou o pai dela a Gus.

– Ele vai ignorar os políticos e entrar em contato direto com o povo. Está planejando uma viagem de 16 mil quilômetros por todo o país. Vai fazer mais de 50 discursos em quatro semanas.

– É uma programação puxada. Ele tem 62 anos e sofre de pressão alta.

Havia certa malícia na atitude do Dr. Hellman. Tudo o que ele dizia era uma provocação. Estava claro que sentia necessidade de avaliar se o pretendente da filha tinha tutano.

– Mas, quando chegar ao fim – respondeu Gus –, o presidente terá explicado ao povo americano que o mundo precisa da Liga das Nações para garantir que nunca mais tenhamos uma guerra igual à que acabou de terminar.

– Torço para que você tenha razão.

– Quando se trata de explicar questões políticas complexas ao cidadão comum, ninguém melhor do que Wilson.

Junto com a sobremesa foi servido champanhe.

– Antes de começarmos – falou Gus –, eu queria dizer uma coisa. – Seus pais pareceram surpresos: ele nunca discursava. – Dr. Hellman, Sra. Hellman, vocês sabem que eu amo a sua filha, que é a moça mais maravilhosa do mundo. Isso é meio antiquado, mas eu queria pedir a sua permissão... – ele tirou do bolso uma caixinha de couro vermelho – ... para oferecer a ela esta aliança de noivado. – Ele abriu a caixa. Dentro dela, havia um anel de ouro com um diamante de um quilate. Não era nada excessivo, mas o diamante era branco, o tom mais cobiçado de todos, e estava lapidado em forma de brilhante redondo: era uma beleza.

Rosa soltou um arquejo.

O Dr. Hellman olhou para a mulher e ambos sorriram.

– É claro que você tem a nossa permissão – disse ele.

Gus deu a volta na mesa e se ajoelhou ao lado da cadeira de Rosa.

– Querida Rosa, você quer se casar comigo? – perguntou.

– Sim, meu amor... amanhã mesmo, se você quiser!

Ele tirou o anel da caixa e o pôs no dedo de Rosa.

– Obrigado – disse Gus.

A mãe dele começou a chorar.

Às sete da noite da quarta-feira, dia 3 de setembro, Gus estava a bordo do trem presidencial enquanto ele saía da Union Station, em Washington. Wilson usava um blazer azul, uma calça branca e um chapéu de palha. Sua mulher, Edith, o acompanhava, bem como Cary Travers Grayson, seu médico parti­cular. Também viajavam no mesmo trem 21 repórteres, entre os quais Rosa Hellman.

Gus estava confiante em que Wilson podia vencer aquela batalha. Ele sempre gostara de estar em contato direto com os eleitores. E, além disso, havia ganhado a guerra, não era verdade?

O trem viajou durante a noite até Columbus, Ohio, onde o presidente fez seu primeiro discurso da turnê. De lá – com algumas paradas rápidas pelo caminho –, seguiu para Indianápolis, onde falou diante de uma multidão de 20 mil pessoas na mesma noite.

Gus, no entanto, já estava desanimado ao final do primeiro dia. O discurso de Wilson não tinha sido bom. Sua voz estava rouca. Ele consultou anotações – sempre se saía melhor quando conseguia discursar sem elas – e, quando começou a falar sobre os detalhes técnicos do tratado que tanto haviam interessado a todos em Paris, pareceu perder o rumo e a atenção da plateia se dispersou. Gus sabia que ele tinha fortes dores de cabeça, tão intensas que às vezes chegavam a embaçar sua visão.

Gus estava muito aflito. Não só por seu amigo e mentor estar doente. Havia mais coisas em jogo. O futuro dos Estados Unidos e do mundo dependia do que acontecesse nas próximas semanas. Somente o compromisso pessoal de Wilson seria capaz de salvar a Liga das Nações de seus adversários tacanhos.

Depois do jantar, Gus foi até a cabine de Rosa. Ela era a única repórter mulher da comitiva, de modo que tinha um compartimento só seu. Embora fosse quase tão a favor da liga quanto Gus, ela disse:

– Está difícil achar muita coisa positiva para dizer sobre o dia de hoje. – Eles se deitaram na cama da cabine, beijando-se e ficando agarradinhos, depois se desejaram uma boa-noite e ele foi embora. O casamento estava marcado para outubro, depois da viagem presidencial. Gus preferia que fosse antes, mas os pais de ambos pediram tempo para se preparar e a mãe de Gus ficou resmungando que pressa demais era indecente, de modo que ele havia cedido.

Wilson trabalhou para melhorar seu discurso, datilografando em sua velha máquina de escrever Underwood enquanto as infindáveis planícies do Meio-Oeste passavam pela janela do trem. Suas apresentações foram melhorando com o passar dos dias. Gus sugeriu que ele tentasse tornar o tratado relevante para cada cidade visitada. Wilson disse aos líderes empresariais de Saint Louis que o tratado era necessário para aquecer o comércio mundial. Em Omaha, falou que um mundo sem o tratado seria como uma comunidade em que as terras não estivessem regularizadas, o que obrigava todos os agricultores a ficarem defendendo suas cercas de espingarda na mão. Em vez de longas explicações, ele transmitia os pontos mais importantes com frases curtas.

Gus também sugeriu que Wilson apelasse para as emoções do povo. Aquela não era uma questão apenas política, argumentou, estava ligada, também, aos sentimentos das pessoas em relação a seu país. Em Columbus, Wilson falou sobre os rapazes do Exército. Em Sioux Falls, disse que queria compensar os sacrifícios das mães que haviam perdido filhos no campo de batalha. Dificilmente recorria a golpes baixos, mas, em Kansas City, cidade natal do virulento senador Reed, comparou seus opositores aos bolcheviques. E seguia bradando à exaustão a mensagem de que, se a Liga das Nações fracassasse, haveria outra guerra.

A cada parada do trem, Gus tentava facilitar as relações com os repórteres a bordo e com seus colegas da imprensa local. Quando Wilson falava sem um discurso preparado com antecedência, sua estenógrafa fazia uma transcrição imediata, que Gus distribuía. Ele também convenceu Wilson a ir ao vagão-bar de vez em quando para um bate-papo informal com a imprensa.

Deu certo. As plateias começaram a reagir cada vez melhor. A cobertura da imprensa continuou dividida, porém a mensagem de Wilson era repetida constantemente mesmo nos jornais contrários a ele. E relatórios vindos de Washington sugeriam que a oposição estava enfraquecendo.

Contudo, Gus podia ver quanto aquela campanha estava custando ao presidente. Suas dores de cabeça se tornaram quase permanentes. Ele dormia mal. Não conseguia digerir comida normal e o Dr. Grayson o pôs em uma dieta líquida. Ele pegou uma infecção de garganta que evoluiu para uma espécie de asma e começou a ter dificuldade para respirar. Passou a tentar dormir sentado.

Nada disso foi revelado à imprensa, nem mesmo a Rosa. Ainda que sua voz estivesse fraca, Wilson continuou com seus discursos. Milhares de pessoas o aplaudiram em Salt Lake City, mas ele parecia exausto e não parava de apertar as mãos uma contra a outra, um gesto estranho que fez Gus pensar em um homem à beira da morte.

Então, na noite de 25 de setembro, houve uma comoção. Gus ouviu Edith chamar o Dr. Grayson. Vestiu um roupão e foi até o vagão do presidente.

O que viu ao chegar o deixou triste e horrorizado. Wilson estava com um aspecto terrível. Mal conseguia respirar e havia desenvolvido um tique facial. Ainda assim, queria prosseguir com a campanha, mas Grayson foi firme e insistiu para que ele cancelasse o restante da viagem. Wilson acabou cedendo.

Na manhã seguinte, com um peso no coração, Gus informou à imprensa que o presidente havia sofrido um colapso nervoso grave, e os trilhos foram liberados para acelerar sua viagem de quase três mil quilômetros de volta para casa. Todos os compromissos presidenciais foram cancelados por duas semanas, em particular uma reunião com os senadores favoráveis ao tratado para planejar a luta pela aprovação do documento.

Naquela noite, sentados na cabine de Rosa, ela e Gus olhavam desconsolados pela janela. Pessoas se juntavam em cada estação para ver o presidente passar. O sol se pôs, mas mesmo assim as multidões continuavam a se reunir sob a luz do crepúsculo. Gus se lembrou da viagem de trem de Brest a Paris e da massa silenciosa parada à beira dos trilhos no meio da noite. Fazia menos de um ano, porém suas esperanças já haviam sido destruídas.

– Nós fizemos o melhor possível – disse Gus. – Mas fracassamos.

– Tem certeza?

– Quando o presidente estava em plena campanha, o resultado já era incerto. Com Wilson doente, não temos a menor chance de o tratado ser ratificado pelo Senado.

Rosa segurou a mão dele.

– Sinto muito – falou. – Por você, por mim, pelo mundo. – Ela fez uma pausa. – O que você vai fazer?

– Gostaria de entrar para um escritório de advocacia de Washington especiali­zado em direito internacional. Afinal de contas, tenho alguma experiência no ramo.

– Imagino que eles vão fazer fila para lhe oferecer um emprego. E talvez algum futuro presidente vá querer a sua ajuda.

Ele sorriu. Às vezes, Rosa tinha uma opinião tão favorável a seu respeito que chegava a ser irrealista.

– E você?

– Eu amo o que faço. Espero poder continuar a cobrir a Casa Branca.

– Você gostaria de ter filhos?

– Sim!

– Eu também. – Gus olhou pela janela, pensativo. – Só espero que Wilson esteja errado em relação a eles.

– Aos nossos filhos? – Ela reparou no tom solene da voz dele, e foi com uma voz assustada que fez a pergunta: – Como assim?

– Wilson diz que eles terão de lutar em outra guerra mundial.

– Deus nos livre! – exclamou Rosa com fervor.

Do lado de fora, a noite caía.

 

Janeiro de 1920

Daisy estava sentada à mesa da sala de jantar da Prairie House da família Vyalov, em Buffalo. Usava um vestido cor-de-rosa. O grande guardanapo de linho amarrado em volta do seu pescoço praticamente a engolia. Tinha quase quatro anos e Lev a adorava.

– Vou preparar o maior sanduíche do mundo – disse ele, fazendo a menina rir. Cortou dois pedaços de torrada em quadradinhos de um centímetro, passou manteiga neles com cuidado, depois acrescentou um pouco dos ovos mexidos que Daisy não queria comer e juntou os dois pedaços – Agora temos que colocar um grão de sal – falou. Sacudiu o saleiro em cima do seu prato e então recolheu com delicadeza um único grão com a ponta do dedo, colocando-o sobre o sanduíche. – Agora sim eu posso comer! – falou.

– Eu quero – disse Daisy.

– Quer mesmo? Mas não é um sanduíche tamanho papai?

– Não! – disse ela, rindo. – É um sanduíche tamanho menina!

– Ah, então está bem – disse ele, pondo o sanduíche na boca da filha. – Você não vai querer outro, vai?

– Vou.

– Mas esse era muito grande.

– Não era, não!

– Certo, acho que vou ter que fazer outro.

Lev estava levando uma vida de rei. As coisas estavam correndo ainda melhor do que ele dissera a Grigori dez meses antes, quando os dois haviam se encontrado no trem de Trótski. Ele vivia com grande conforto na casa do sogro. Administrava três casas noturnas de Vyalov e ganhava um bom salário, além de alguns extras, como propinas dos fornecedores. Tinha posto Marga para morar em um apartamento elegante e a visitava quase todos os dias. Ela havia engravidado uma semana depois de ele voltar e acabara de dar à luz um menino, que haviam batizado de Gregory. Lev conseguira manter a história toda em segredo.

Olga entrou na sala, beijou Daisy e se sentou. Lev amava a filha, mas não sentia nada por Olga. Marga era mais sensual e divertida. E havia muitas outras garotas na cidade, conforme ele havia descoberto quando Marga estava nos últimos estágios da gravidez.

– Bom dia, mamãe! – disse Lev em um tom alegre.

Daisy aproveitou a deixa e repetiu suas palavras.

– Papai está dando comida para você? – perguntou Olga.

Ultimamente, os dois se falavam assim, quase sempre por intermédio da filha. Haviam feito sexo algumas vezes depois de Lev voltar da guerra, mas logo voltaram à indiferença habitual e agora dormiam em quartos separados. Diziam aos pais de Olga que era porque Daisy acordava durante a noite, embora isso fosse raro. Olga tinha a expressão de uma mulher frustrada, mas Lev não estava nem aí.

Josef entrou na sala.

– Olhe o vovô! – disse Lev.

– Bom dia – falou Josef, lacônico.

– Vovô quer um sanduíche – disse Daisy.

– Não – disse Lev. – Eles são grandes demais para o vovô.

Daisy ficava encantada quando Lev dizia coisas que estavam claramente erradas.

– Não são, não – falou ela. – São pequenos demais!

Josef se sentou. Ao voltar da guerra, Lev havia encontrado o sogro muito mudado. Estava gordo e mal cabia em seu terno listrado. O simples esforço de descer a escada o deixava ofegante. Seus músculos tinham virado banha, seus cabelos pretos haviam ficado grisalhos e sua tez rosada ganhara um rubor nada saudável.

Polina veio da cozinha com um bule de café e serviu uma xícara a Josef, que abriu o Buffalo Advertiser.

– Como vão os negócios? – quis saber Lev. Não era uma pergunta despropositada. A Lei Volstead tinha entrado em vigor no dia 16 de janeiro, tornando ilegais a produção, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas. O império Vyalov era sustentado por bares, boates e hotéis e pela venda de bebidas no atacado. A Lei Seca era a serpente no paraíso de Lev.

– Nós estamos morrendo – respondeu Josef com uma franqueza incomum. – Tive que fechar cinco bares em uma semana, e o pior ainda está por vir.

Lev assentiu.

– Estou vendendo aquela cerveja quase sem álcool nas boates, mas ninguém quer. – A lei permitia a venda de cerveja com menos de meio por cento de teor alcoólico. – Você precisa beber quatro litros para sentir alguma coisa.

– Podemos vender bebida clandestina por debaixo dos panos, mas é impossível conseguir em quantidade suficiente e, de qualquer forma, as pessoas ficam com medo de comprar.

Olga ficou chocada. Ela não sabia quase nada sobre os negócios.

– Mas, papai, o que o senhor vai fazer?

– Não sei – respondeu Josef.

Isso era outra mudança. Antigamente, Josef teria se planejado para uma crise como aquela. No entanto, a lei fora aprovada havia três meses e Josef não tinha feito nada para se preparar para a nova situação. Lev vinha esperando o sogro sacar um coelho da cartola. Mas, para seu desânimo, estava vendo que isso não iria acontecer.

Era preocupante. Lev tinha mulher, amante e dois filhos para sustentar com os lucros dos negócios de Vyalov. Se o império estivesse prestes a ruir, ele precisaria fazer planos.

Polina chamou Olga ao telefone, e esta foi até o corredor. Lev pôde ouvi-la falar.

– Oi, Ruby – atendeu ela. – Você acordou cedo. – Houve uma pausa. – O quê? Não acredito. – Seguiu-se um longo silêncio, então Olga começou a chorar.

Josef ergueu os olhos do jornal e disse:

– Mas que diabo...?

Olga bateu o telefone com força e voltou para a sala de jantar. Com os olhos cheios de lágrimas, apontou para Lev e disse:

– Seu desgraçado!

– O que foi que eu fiz? – indagou ele, embora temesse já saber.

– Seu... seu... seu filho da mãe.

Daisy começou a chorar.

– Olga, meu bem, o que houve? – perguntou Josef.

– Ela teve um filho! – respondeu Olga.

– Ai, cacete – disse Lev entredentes.

– Quem teve um filho? – quis saber Josef.

– A piranha de Lev. Aquela que vimos no parque. Marga.

Josef ficou vermelho.

– A cantora do Monte Carlo? Ela teve um filho de Lev?

Chorando, Olga aquiesceu.

Josef se virou para o genro:

– Seu filho da puta!

– Vamos todos tentar ficar calmos – disse Lev.

Josef se levantou.

– Meu Deus, eu achei que tivesse lhe ensinado uma lição.

Lev empurrou a cadeira para trás e se pôs de pé. Recuou, afastando-se de Josef com os braços estendidos para a frente, procurando se defender.

– Que porra é essa, Josef? Calma! – falou.

– Não se atreva a me dizer para ficar calmo – disse Josef.

Com uma agilidade surpreendente, ele deu um passo à frente e golpeou o genro com um dos punhos massudos. Lev não foi rápido o suficiente para se esquivar, e o soco o atingiu bem no alto do malar esquerdo. A dor foi terrível e ele cambaleou para trás.

Daisy começou a berrar e Olga a pegou no colo e fugiu em direção à porta.

– Parem com isso! – gritou.

Josef deu outro soco com a mão esquerda.

Fazia muito tempo que Lev não brigava, mas ele havia crescido nos bairros pobres de Petrogrado e seus reflexos ainda estavam em dia. Defendeu o golpe de Josef, chegou mais perto e esmurrou a barriga do sogro com os dois punhos, um depois do outro. O ar foi expelido com violência do peito de Josef. Então Lev começou a socar o rosto do sogro com jabs curtos, atingindo o nariz, a boca, os olhos.

Josef era um homem forte e intimidador, mas o medo excessivo que as pessoas tinham dele as impedia de revidar, o que o deixara muito tempo sem praticar a autodefesa. Ele cambaleou para trás com os braços erguidos, em uma vã tentativa de se proteger dos socos de Lev.

Os instintos de lutador de rua de Lev não lhe permitiam parar de bater enquanto o oponente ainda estivesse de pé, de modo que continuou a castigar Josef, socando-lhe o corpo e a cabeça até o homem mais velho cair para trás sobre uma das cadeiras e se estatelar no tapete.

Lena, mãe de Olga, entrou correndo na sala, gritou e se ajoelhou junto ao marido. Polina e a cozinheira surgiram na soleira da porta da cozinha, parecendo assustadas. Mesmo com o rosto espancado coberto de sangue, Josef conseguiu se apoiar em um dos cotovelos e empurrar Lena para o lado. Então, quando tentou se levantar, deu um grito e tornou a cair para trás.

Sua pele ficou cinza e ele parou de respirar.

– Meu Deus do céu! – disse Lev.

Lena começou a gritar:

– Josef, ai, meu Joe, abra os olhos!

Lev sentiu o peito de Josef. O coração não batia mais. Ele segurou seu punho, mas não conseguiu encontrar pulsação.

Agora sim estou encrencado, pensou.

Levantou-se do chão.

– Polina, chame uma ambulância.

A babá foi até o corredor e pegou o telefone.

Lev ficou encarando o corpo. Precisava tomar uma decisão importante – e rápido. Ficar ali, alegar inocência, fingir que sentia muito e tentar se safar? Não. As chances de isso dar certo eram pequenas demais.

Ele precisava fugir.

Correu até o andar de cima e tirou a camisa. Depois da guerra, tinha voltado para casa cheio de ouro, que acumulara com a venda de uísque escocês para os cossacos. Com ele, havia comprado pouco mais de cinco mil dólares e enfiado as notas no cinturão que usava para guardar dinheiro, colando o mesmo na parte de trás de uma gaveta com fita adesiva. Apanhou o cinturão, prendendo-o ao redor da cintura, e tornou a vestir a camisa e o paletó.

Colocou o sobretudo. Em cima de seu armário havia uma velha bolsa de lona que continha sua pistola semiautomática Colt .45, modelo 1911, a arma dos oficiais do Exército americano. Guardou a pistola no bolso do sobretudo. Jogou uma caixa de munição e algumas roupas de baixo dentro da bolsa de lona e desceu a escada.

Na sala de jantar, Lena havia posto uma almofada sob a cabeça de Josef, mas seu marido parecia mais morto do que nunca. Olga falava ao telefone no corredor, dizendo:

– Rápido, por favor, acho que ele pode morrer! – Tarde demais, docinho, pensou Lev.

– A ambulância vai demorar muito – disse ele. – Vou chamar o Dr. Schwarz. – Ninguém perguntou por que ele estava carregando uma bolsa.

Foi até a garagem e deu a partida no Packard Twin Six de Josef. Saiu do terreno da casa e dobrou para o norte.

Ele não estava indo chamar o Dr. Schwarz.

Tomou o rumo do Canadá.

Lev dirigia depressa. Enquanto deixava para trás os subúrbios ao norte de Buffalo, tentou calcular quanto tempo ainda tinha. A equipe da ambulância sem dúvida chamaria a polícia. Assim que os policiais chegassem, iriam descobrir que Josef morrera espancado. Olga não hesitaria em lhes contar quem havia nocauteado o pai: se já não odiava Lev antes, certamente o odiava agora. Depois disso, Lev passaria a ser procurado por assassinato.

Em geral havia três carros na garagem de Vyalov: o Packard, o Ford Bigode de Lev e um Hudson azul usado pelos capangas de Josef. Os tiras não levariam muito tempo para deduzir que Lev tinha fugido no Packard. Dentro de uma hora, calculou Lev, a polícia sairia à procura do carro.

Com alguma sorte, a essa altura ele já estaria fora do país.

Tinha ido várias vezes ao Canadá com Marga. Eram apenas 160 quilômetros até Toronto, o que dava três horas em um carro veloz. Eles gostavam de se registrar em um hotel como Sr. e Sra. Peters e passear pela cidade, vestidos com suas melhores roupas, sem precisar se preocupar se iriam ser vistos por alguém que poderia contar a Josef Vyalov. Lev não tinha passaporte americano, mas conhecia vários pontos da fronteira em que não havia postos de controle.

Chegou a Toronto ao meio-dia e registrou-se em um hotel tranquilo.

Pediu um sanduíche na cafeteria e se sentou um pouco para refletir sobre a própria situação. Estava sendo procurado por assassinato. Não tinha casa e não podia visitar nenhuma de suas duas famílias sem correr o risco de ser preso. Talvez nunca mais visse os filhos. Tinha cinco mil dólares em um cinturão e um carro roubado.

Pensou em como havia se gabado com o irmão, apenas 10 meses antes. O que Grigori acharia agora?

Ele comeu o sanduíche e então foi andar sem destino pelo centro da cidade, deprimido. Entrou em uma loja de bebidas e comprou uma garrafa de vodca para levar de volta ao quarto. Talvez naquela noite apenas se embebedasse. Viu que o uísque de centeio custava quatro dólares a garrafa. Em Buffalo custava 10, isso quando você conseguia uma garrafa; em Nova York, 15 ou 20. Sabia disso porque vinha tentando comprar bebida ilegal para as boates.

Voltou para o hotel e conseguiu um pouco de gelo. Seu quarto estava empoeirado, tinha móveis de aparência gasta e dava vista para os fundos de uma série de lojas baratas. Enquanto a noite caía cedo lá fora, como de hábito no norte, ele se sentiu mais deprimido do que nunca. Pensou em sair para arrumar uma garota, mas estava sem ânimo. Será que iria fugir de todos os lugares em que viesse a morar? Havia saído de Petrogrado por causa de um policial morto; em Aberowen, estivera literalmente a um passo de ser pego por pessoas que havia enganado nas cartas; e agora tinha deixado Buffalo na condição de fugitivo da lei.

Precisava dar um jeito no Packard. A polícia de Buffalo talvez enviasse uma descrição do carro por cabo para Toronto. Ele precisava trocar as placas, ou então trocar de carro. Mas não conseguia reunir forças para tanto.

Olga provavelmente estava feliz por se livrar dele. Não precisaria dividir a herança com ninguém. No entanto, a cada dia que passava, o império Vyalov valia menos.

Ficou imaginando se conseguiria trazer Marga e o bebê Gregory para o Canadá. Será que Marga iria querer vir? Os Estados Unidos eram o seu sonho, assim como tinham sido o de Lev. Cantoras de boate não ficavam fantasiando viver no Canadá. Ela talvez fosse com Lev para Nova York ou para a Califórnia, mas não para Toronto.

Ele sentiria falta dos filhos. Seus olhos se encheram de lágrimas quando pensou em Daisy crescendo sem ele. A menina não tinha nem quatro anos: poderia esquecer completamente o pai. Na melhor das hipóteses, teria uma vaga lembrança. Não iria se lembrar do maior sanduíche do mundo.

Depois da terceira dose, ocorreu-lhe que era um pobre injustiçado. Não tivera a intenção de matar o sogro. Josef havia batido primeiro. E, para completar, Lev sequer o matara de fato: ele tinha morrido de algum tipo de convulsão ou ataque cardíaco. Na verdade, fora apenas uma falta de sorte. Mas ninguém acreditaria nisso. A única testemunha era Olga, e ela iria querer vingança.

Ele se serviu de mais uma dose de vodca e deitou-se na cama. Para o inferno com todos, pensou.

Enquanto pegava em um sono irrequieto e embriagado, pensou nas garrafas na vitrine da loja. “Uísque Canadian Club, 4 dólares”, dizia o cartaz. Havia alguma coisa importante nisso, ele sabia, mas por ora não conseguia identificar o que era.

Na manhã seguinte, ao acordar, tinha a boca seca e a cabeça dolorida, mas sabia que o Canadian Club a 4 pratas a garrafa poderia ser a sua salvação.

Enxaguou seu copo e bebeu o gelo derretido no fundo do balde. No terceiro copo, já tinha um plano.

Suco de laranja, café e aspirinas o fizeram se sentir melhor. Ele pensou nos perigos que teria de enfrentar. Mas nunca se deixara paralisar diante dos riscos. Se fosse assim, pensou, eu seria o meu irmão.

Só havia uma grande desvantagem em seu plano. Ele dependia de uma reconciliação com Olga.

Lev foi de carro até um bairro de classe baixa e entrou em um restaurante barato que servia café da manhã para trabalhadores. Sentou-se perto de um grupo de homens que pareciam ser pintores de parede e disse:

– Preciso trocar meu carro por um caminhão. Vocês conhecem alguém que possa estar interessado?

– O carro é quente? – perguntou um dos homens.

Lev abriu um sorriso.

– Ah, amigo, me dê um tempo – disse ele. – Se fosse, você acha que eu o estaria vendendo aqui?

Não encontrou compradores no restaurante nem nos outros poucos lugares que tentou, mas acabou chegando a uma oficina de automóveis administrada por pai e filho. Trocou o Packard por uma caminhonete Mack Junior com capacidade para duas toneladas, com dois estepes, em uma transação que não envolveu dinheiro ou documento algum. Tinha consciência de que estava sendo roubado, mas o dono da oficina sabia que ele estava em situação desesperadora.

Mais tarde, foi até um atacadista de bebidas cujo endereço havia encontrado na lista telefônica da cidade.

– Quero 100 caixas de Canadian Club – pediu. – Por quanto sai?

– Para essa quantidade, 36 pratas a caixa.

– Fechado. – Lev sacou o dinheiro. – Vou abrir um bar perto da cidade e...

– Não precisa explicar, colega – disse o atacadista. Ele apontou para a janela. No terreno baldio ao lado da loja, uma equipe de peões escavava o solo. – Meu novo depósito. Cinco vezes maior do que este. Deus abençoe a Lei Seca.

Lev percebeu que não era a primeira pessoa a ter aquela ideia genial.

Pagou ao homem e juntos carregaram o uísque na caminhonete.

No dia seguinte, Lev voltou para Buffalo.

Lev estacionou a caminhonete lotada de uísque na rua em frente à casa dos Vyalov. A tarde de inverno já estava escurecendo. Não havia nenhum carro no acesso à garagem. Ele aguardou, tenso e ansioso, preparado para fugir, mas não viu nenhuma atividade.

Com os nervos à flor da pele, desceu da caminhonete, foi até a porta da frente e entrou usando a própria chave.

A casa estava em silêncio. Do andar de cima, ele pôde ouvir a voz de Daisy e as respostas sussurradas de Polina. Não havia nenhum outro som.

Avançando sem fazer barulho pelo tapete felpudo, atravessou o saguão e espiou para dentro da sala de estar. Todas as cadeiras haviam sido afastadas para as paredes laterais. No meio da sala havia um suporte envolto em seda preta e, em cima dele, um caixão de mogno encerado com alças reluzentes de latão. Dentro do ataúde, estava o corpo de Josef Vyalov. A morte havia suavizado as linhas endurecidas do seu rosto e ele parecia inofensivo.

Olga estava sentada ao lado do corpo. Usava um vestido preto. Estava de costas para a porta.

Lev entrou na sala.

– Oi, Olga – disse baixinho.

Ela abriu a boca para gritar, mas ele cobriu-lhe o rosto com a mão para impedi-la.

– Não se preocupe – falou. – Eu só quero conversar. – Lentamente, retirou a mão.

Ela não gritou.

Ele relaxou um pouco. Havia superado o primeiro obstáculo.

– Você matou meu pai! – disse ela com raiva. – Sobre o que poderíamos conversar?

Ele respirou fundo. Tinha que lidar com aquela situação sem o menor erro. Não poderia contar apenas com o charme. Precisaria também usar a inteligência.

– Sobre o futuro – respondeu. Seu tom de voz era baixo, íntimo. – O seu, o meu e o da pequena Daisy. Eu sei que estou encrencado, mas você também está.

Ela não queria escutar.

– Não estou encrencada coisa nenhuma. – Virou-se e olhou para o corpo do pai.

Lev puxou uma cadeira para se sentar ao lado dela.

– Os negócios que você herdou estão falidos. Estão todos ruindo, não valem mais quase nada.

– Meu pai era muito rico! – disse ela, indignada.

– Ele tinha bares, hotéis e vendia bebidas no atacado. Tudo isso está perdendo dinheiro, e faz só duas semanas que a Lei Seca entrou em vigor. Cinco bares do seu pai já tiveram que fechar. Logo não vai sobrar mais nada. – Lev hesitou e então se valeu de seu argumento mais forte: – Você não pode pensar só em si mesma. Tem que pensar em como vai criar Daisy.

Ela pareceu abalada.

– Os negócios estão mesmo falindo?

– Você ouviu o que seu pai me disse anteontem no café da manhã.

– Não me lembro direito.

– Bem, não precisa acreditar na minha palavra. Verifique você mesma. Pergunte a Norman Niall, o contador. Pergunte a qualquer um.

Depois de lançar-lhe um olhar duro, Olga decidiu levá-lo a sério.

– Por que você veio me dizer isso?

– Porque eu descobri como salvar os negócios.

– Como?

– Importando bebida do Canadá.

– Isso é contra a lei.

– É. Mas é a única esperança. Sem o álcool, você não tem negócio nenhum.

Ela virou a cabeça de lado.

– Eu posso cuidar de mim mesma.

– Claro – disse ele. – Pode vender esta casa por uma boa grana, investir o dinheiro e se mudar para um apartamento pequeno com sua mãe. Talvez consiga salvar alguma coisa do espólio do seu pai para sustentar você e Daisy por alguns anos, embora devesse estar cogitando também a possibilidade de trabalhar...

– Eu não tenho como trabalhar! – protestou ela. – Nunca fui educada para isso. O que eu iria fazer?

– Ora, você poderia ser vendedora em uma loja de departamentos ou trabalhar em uma fábrica...

Ele não estava falando sério, e ela sabia.

– Não seja ridículo! – disparou.

– Então só resta uma alternativa. – Ele estendeu a mão para tocá-la.

Ela se esquivou.

– Desde quando você liga para o que vai ser de mim?

– Você é minha mulher.

Ela o encarou com um olhar estranho.

Ele estampou sua cara mais sincera.

– Eu sei que tratei você mal, mas nós um dia já nos amamos.

Olga soltou um ruído gutural de desdém.

– E temos uma filha para cuidar.

– Mas você vai ser preso.

– Não se você disser a verdade.

– Como assim?

– Olga, você viu o que aconteceu. Seu pai me atacou. Olhe para o meu rosto: estou com um olho roxo para provar o que digo. Eu tive que revidar. Ele devia estar com problemas de coração. Talvez já estivesse doente há algum tempo, isso explicaria por que não preparou os negócios para a Lei Seca. Seja como for, ele morreu por causa do esforço de me atacar, não por causa dos poucos socos que eu dei para me defender. Você só precisa contar a verdade à polícia.

– Eu já disse a eles que você o matou.

Lev se animou: estava progredindo.

– Não tem problema – disse para tranquilizá-la. – Você afirmou isso no calor do momento, quando estava transtornada pela dor. Agora que está mais calma, consegue ver que a morte do seu pai foi um terrível acidente, porque ele estava mal de saúde e teve um ataque de raiva.

– Será que eles vão acreditar em mim?

– Um júri acreditará em você. Mas, se eu contratar um bom advogado, nem vai precisar haver julgamento. Como haveria, se a única testemunha jurar que não foi assassinato?

– Não sei. – Ela mudou de assunto. – Como você vai arrumar a bebida?

– Isso é fácil. Não se preocupe.

Ela se virou na cadeira para encará-lo.

– Não acredito em você. Você só está dizendo isso para me fazer mudar meu testemunho.

– Vista seu casaco, quero lhe mostrar uma coisa.

Foi um momento de tensão. Se Olga o acompanhasse, ele teria vencido.

Depois de uma pausa, ela se levantou.

Lev escondeu um sorriso de triunfo.

Os dois saíram da sala. Na rua, ele abriu as portas traseiras da caminhonete.

Ela ficou vários instantes calada. Então indagou:

– Canadian Club? – Seu tom havia mudado, observou ele. Estava mais prático. A emoção havia passado para segundo plano.

– Cem caixas – disse ele. – Comprei por três dólares a garrafa. Aqui posso conseguir 10. Ou mais, se vendermos por dose.

– Preciso pensar no assunto.

Era um bom sinal. Ela estava disposta a concordar, mas não queria ser pre­cipitada.

– Entendo, mas não temos tempo para isso – disse ele. – Sou um homem procurado, com uma caminhonete cheia de uísque ilegal, e preciso que você tome uma decisão agora mesmo. Sinto muito por apressá-la, mas, como você pode ver, eu não tenho escolha.

Ela assentiu com a cabeça, pensativa, mas não falou nada.

Lev prosseguiu.

– Se você disser que não, vou vender a bebida, embolsar o dinheiro e sumir. Você vai ficar sozinha. Vou lhe desejar boa sorte e dizer adeus para sempre, sem mágoas. Eu entenderia.

– E se eu disser que sim?

– Nós vamos à polícia agora mesmo.

Fez-se um silêncio demorado.

Por fim, ela aquiesceu:

– Está bem.

Lev virou o rosto para esconder sua expressão. Você conseguiu, disse a si mesmo. Sentou-se ao lado dela na mesma sala que o cadáver do pai e conseguiu reconquistá-la.

Seu cachorro!

– Tenho que pôr um chapéu – disse Olga. – E você precisa de uma camisa limpa. É melhor causarmos uma boa impressão.

Aquilo era uma boa coisa. Ela estava mesmo do seu lado.

Os dois tornaram a entrar na casa para se arrumar. Enquanto esperava por ela, Lev telefonou para o Buffalo Advertiser e pediu para falar com o editor Peter Hoyle. Uma secretária perguntou qual era o assunto.

– Diga a ele que é o homem procurado pelo assassinato de Josef Vyalov.

Logo em seguida, uma voz bradou:

– Hoyle falando. Quem é?

– Lev Peshkov, o genro de Vyalov.

– Onde o senhor está?

Lev ignorou a pergunta.

– Se o senhor puder mandar um repórter até a escadaria da delegacia central de polícia daqui a meia hora, vou ter uma declaração para lhe dar.

– Estaremos lá.

– Sr. Hoyle?

– Sim?

– Mande um fotógrafo também. – Lev desligou.

Com Olga ao seu lado na frente da caminhonete, ele passou primeiro no depósito de Josef à beira do lago. Caixas de cigarros roubados estavam empilhadas junto às paredes. No escritório dos fundos, os dois encontraram o contador de Vyalov, Norman Niall, além do grupo habitual de capangas. Lev sabia que Norman era corrupto, porém melindroso. Encontraram-no sentado na cadeira de Josef, atrás da escrivaninha do antigo patrão.

Todos ficaram pasmos ao ver Lev e Olga.

– Olga herdou os negócios – disse Lev. – A partir de agora, quem vai administrar tudo sou eu.

Norman não se levantou da cadeira.

– Isso é o que veremos – falou.

Lev o encarou com um olhar duro, sem dizer nada.

Norman tornou a falar, com menos segurança desta vez:

– O testamento precisa ser confirmado e tudo o mais.

Lev fez que não com a cabeça.

– Se esperarmos pelas formalidades, não vai restar nada do negócio. – Ele apontou para um dos capangas. – Ilya, vá até o pátio, dê uma olhada dentro da caminhonete, volte e diga a Norm o que viu.

Ilya saiu. Lev contornou a escrivaninha para ir se postar ao lado de Norman. Todos aguardaram em silêncio até Ilya voltar.

– Cem caixas de Canadian Club. – Ele pôs uma garrafa sobre a mesa. – Podemos provar para ver se é legítimo.

– Eu vou administrar os negócios com bebida importada do Canadá – disse Lev. – A Lei Seca é a maior oportunidade que já tivemos. As pessoas vão pagar o que for por álcool. Nós vamos ganhar uma fortuna. Levante-se dessa cadeira, Norm.

– Não é bem assim, garoto – respondeu Norman.

Lev sacou a pistola depressa e usou-a para golpear Norman dos dois lados do rosto. O contador gritou. Como quem não quer nada, Lev apontou o Colt na direção dos capangas.

Olga, é preciso lhe fazer justiça, não gritou.

– Seu otário – disse Lev a Norman. – Eu matei Josef Vyalov, você acha que vou ter medo de uma porra de um contador?

Norman se levantou e saiu correndo da sala, segurando a boca, que sangrava, com uma das mãos.

Lev se virou para os outros homens, mantendo a pistola apontada na direção deles, e disse:

– Qualquer pessoa que não queira trabalhar para mim pode ir embora agora, sem ressentimentos.

Ninguém se mexeu.

– Ótimo – disse Lev. – Porque eu estava mentindo quando disse que não haveria ressentimentos. – Ele apontou para Ilya. – Você, venha comigo e com a Sra. Peshkov. Pode dirigir. Os outros, descarreguem a caminhonete.

Ilya os levou até o centro da cidade no Hudson azul.

Lev achou que talvez tivesse cometido um erro no armazém. Não deveria ter dito “Eu matei Josef Vyalov” na frente de Olga. Ela ainda poderia mudar de ideia. Se a mulher comentasse alguma coisa, ele diria que não tinha falado sério, agira apenas com a intenção de assustar Norm. Olga, no entanto, não mencionou o assunto.

Em frente à delegacia, dois homens de sobretudo e chapéu aguardavam junto a uma câmera grande, apoiada em um tripé.

Lev e Olga desceram do carro.

– A morte de Josef Vyalov é uma tragédia para nós, para sua família e para esta cidade – disse ele ao repórter, que tomou notas em um caderninho. – Eu vim dar à polícia a minha versão do ocorrido. Minha esposa, Olga, a única outra pessoa presente quando ele passou mal, está aqui para testemunhar a minha inocência. A autópsia irá mostrar que meu sogro morreu de enfarte. Minha esposa e eu pretendemos continuar a expandir o grande império que Josef Vyalov criou aqui em Buffalo. Obrigado.

– Pode olhar para a câmera, por favor? – pediu o fotógrafo.

Lev enlaçou Olga com um braço, puxou-a mais para perto e olhou para a câmera.

– De onde veio esse olho roxo, Lev? – quis saber o repórter.

– Ah, isto aqui? – disse ele, apontando para o próprio olho. – Ah, essa é outra história. – Ele abriu seu sorriso mais irresistível e o flash de magnésio do fotógrafo disparou com um clarão ofuscante.

 

De fevereiro a dezembro de 1920

O Quartel de Detenção Militar de Aldershot era um lugar sinistro, pensou Billy, porém melhor que a Sibéria. Aldershot era uma cidade militar pouco menos de 60 quilômetros a sudoeste de Londres. O presídio era um edifício moderno, com três andares de galerias de celas ao redor de um pátio interno. Por conta do teto envidraçado, o lugar era bem iluminado e ganhara o apelido de “Estufa”. Com sua calefação por encanamento e iluminação a gás, a prisão era mais confortável que a maioria dos lugares em que Billy havia dormido nos últimos quatro anos.

Mesmo assim, ele estava infeliz. Embora a guerra já tivesse acabado havia mais de um ano, ele continuava no Exército. A maioria de seus amigos estava de volta à vida civil, ganhando bons salários e levando garotas ao cinema. Ele ainda usava um uniforme e prestava continência, dormia em um catre e comia comida de quartel. Trabalhava o dia inteiro tecendo esteiras na fábrica da prisão. E, o que era pior, nunca via nenhuma mulher. Em algum lugar lá fora, Mildred estava à sua espera – provavelmente. Todo mundo tinha uma história para contar sobre um soldado que havia voltado para casa e descoberto que a esposa ou a namorada dera o fora com outro homem.

Ele não tinha contato com Mildred ou com qualquer outra pessoa do lado de fora. Os detentos – ou “soldados condenados”, como eram chamados oficialmente – geralmente podiam mandar e receber cartas, porém Billy era um caso especial. Como fora acusado de revelar segredos militares por meio de cartas, sua correspondência era confiscada pelas autoridades. Isso fazia parte da vingança do Exército. Ele não tinha mais nenhum segredo para revelar, é óbvio. O que poderia contar à irmã? “Eles sempre cozinham de menos as batatas por aqui.”

Será que Mam, Da e Gramper ao menos sabiam de sua condenação pela corte marcial? O parente mais próximo do soldado deveria ser informado, pensou, mas não tinha certeza e ninguém se dignava responder às suas perguntas. De toda forma, era quase certo que Tommy Griffiths houvesse lhes contado. Esperava que, além disso, Ethel tivesse explicado o que ele de fato fizera.

Billy não recebia visitas. Desconfiava que sua família sequer fizesse ideia de que ele voltara da Rússia. Gostaria de contestar a proibição de se corresponder, mas não tinha como entrar em contato com nenhum advogado – nem dinheiro para pagar um. Seu único consolo era a vaga sensação de que aquilo não poderia durar para sempre.

Suas notícias sobre o mundo lá fora vinham dos jornais. Fitz estava de volta a Londres, fazendo discursos para pedir mais ajuda militar aos Brancos na Rússia. Billy ficou imaginando se isso significaria que os Aberowen Pals tinham voltado para casa.

Os discursos de Fitz não estavam funcionando. A campanha “Deixem a Rússia em paz”, liderada por Ethel, tinha angariado o apoio do Partido Trabalhista e fora endossada por ele. Apesar dos exuberantes discursos antibolcheviques do ministro da Guerra, Winston Churchill, a Grã-Bretanha havia retirado suas tropas da região ártica da Rússia. Em meados de novembro, os Vermelhos tinham expulsado o almirante Kolchak de Omsk. Tudo o que Billy dissera sobre os Brancos – e que Ethel havia repetido em sua campanha – revelou-se verdadeiro; tudo o que Fitz e Churchill tinham dito era mentira. No entanto, Billy estava na cadeia e Fitz, na Câmara dos Lordes.

Ele tinha pouca coisa em comum com seus companheiros de cárcere, que não eram prisioneiros políticos. A maioria havia cometido crimes de verdade: roubo, agressão, assassinato. Eram homens duros, mas Billy também era, e não tinha medo deles. Tratavam-no com um respeito cauteloso, aparentemente sentindo que o delito que cometera estava um nível acima dos seus. Billy se mostrava razoavelmente simpático ao conversar com esses homens, porém nenhum deles tinha qualquer interesse em política. Não viam nada de errado com a sociedade que os havia encarcerado; estavam apenas decididos a derrotar o sistema da próxima vez.

Durante o intervalo de meia hora para o almoço, ele lia o jornal. A maior parte dos outros detentos era analfabeta. Certo dia, ele abriu o Daily Herald e viu a fotografia de um rosto conhecido. Após alguns instantes de incredulidade, percebeu que era uma foto sua.

Lembrou-se de quando o retrato fora tirado. Mildred o havia arrastado até o estúdio de um fotógrafo em Aldgate para ter uma foto sua de uniforme.

– Vou levar este retrato aos lábios todas as noites – tinha dito Mildred. Billy pensara muitas vezes nessa promessa ambígua enquanto estava longe dela.

A manchete dizia: POR QUE O SARGENTO WILLIAMS ESTÁ NA PRISÃO? A animação de Billy aumentou à medida que ele lia a matéria.

 

William Williams, do 8o Batalhão dos Fuzileiros Galeses (conhecido como “Aberowen Pals”), está cumprindo pena de 10 anos em uma prisão militar, condenado por traição. Esse homem é um traidor? Ele por acaso foi desleal ao seu país, desertou para o inimigo, fugiu do combate? Pelo contrário. Lutou com bravura no Somme e continuou a servir na França durante os dois anos seguintes, sendo promovido a sargento.

 

Billy ficou empolgado. Sou eu no jornal, pensou, e estão dizendo que lutei com bravura!

 

Ele então foi mandado para a Rússia. Nós não estamos em guerra com os russos. O povo britânico não necessariamente aprova o regime bolchevique, mas nós não atacamos todos os regimes que desaprovamos. Os bolcheviques não representam nenhuma ameaça ao nosso país ou aos nossos aliados. O Parlamento nunca aprovou qualquer ação militar contra o governo de Moscou. Questiona-se inclusive se a nossa missão na Rússia não seria uma violação do direito internacional, uma hipótese grave.

De fato, durante alguns meses, o povo britânico não foi informado de que o seu Exército estava lutando na Rússia. O governo fez declarações enganosas, afirmando que os soldados estariam lá apenas para proteger nossos bens, organizar uma retirada sem incidentes, ou como força de reserva. O que se subentendia dessas informações era que os soldados não estavam lutando contra as forças Vermelhas.

Foi em grande parte graças a William Williams que essas declarações foram desmascaradas como mentirosas.

– Ei – disse Billy, para ninguém em especial. – Vejam só isso. Graças a William Williams.

Os homens sentados na mesma mesa o cercaram para olhar por cima do ombro dele. Seu companheiro de cela, um brutamontes chamado Cyril Parks, falou:

– É você na foto! O que está fazendo no jornal?

Billy leu o restante da matéria em voz alta:

O seu crime foi dizer a verdade em cartas escritas para a irmã, usando um código simples para escapar da censura. O povo britânico tem uma dívida de gratidão com ele.

No entanto, suas ações desagradaram àqueles membros do Exército e do governo responsáveis por usar secretamente os soldados britânicos para fins políticos. Williams foi levado à corte marcial e condenado a 10 anos de prisão.

Ele não é o único. Muitos soldados que se negaram a participar da tentativa de contrarrevolução foram submetidos a julgamentos duvidosos na Rússia e condenados a sentenças escandalosamente longas.

William Williams e outros como ele são vítimas de homens vingativos em posição de poder. Precisamos sanar esse erro. A Grã-Bretanha é um país de justiça. Afinal, foi por ela que nós lutamos.

– Viram só? – indagou Billy. – Está dizendo aqui que eu sou uma vítima dos poderosos.

– Eu também sou – disse Cyril Parks, que havia estuprado uma menina belga de 14 anos em um celeiro.

De repente, o jornal foi arrancado das mãos de Billy. Ele ergueu os olhos e se deparou com o rosto idiota de Andrew Jenkins, um dos carcereiros mais detestáveis do presídio.

– Você pode ter amigos importantes, Williams – disse ele. – Mas aqui é só mais um detento de merda, então pode voltar para a porra do trabalho.

– Agora mesmo, Sr. Jenkins – respondeu Billy.

Naquele verão de 1920, Fitz ficou indignado quando uma delegação comercial russa chegou a Londres e foi recebida pelo primeiro-ministro David Lloyd George no número 10 da Downing Street, a sede do governo britânico. Os bolcheviques continuavam em guerra com a recém-reconstituída nação da Polônia, e Fitz achava que a Grã-Bretanha deveria ficar do lado dos poloneses, mas não teve muito apoio nesse sentido. Os estivadores londrinos entraram em greve para não carregar os navios com fuzis destinados ao Exército polonês, e o Congresso dos Sindicatos ameaçou realizar uma greve geral em caso de intervenção do Exército britânico.

Fitz se conformou com o fato de que jamais reaveria as terras do falecido príncipe Andrei. Seus filhos, Boy e Andrew, tinham perdido sua herança na Rússia e ele precisava aceitar isso.

Contudo, não pôde ficar calado quando descobriu o que os russos Kamenev e Krassin estavam tramando durante sua visita à Grã-Bretanha. A Sala 40 ainda existia, embora de forma diferente, e o serviço britânico de inteligência vinha interceptando e decodificando os telegramas que os russos enviavam para casa. Lev Kamenev, presidente do soviete de Moscou, estava fazendo, descaradamente, propaganda revolucionária.

Fitz ficou tão possesso que, no início de agosto, confrontou Lloyd George durante um dos últimos jantares da temporada londrina.

O evento foi na casa de lorde Silverman, na Belgrave Square. O jantar não foi tão lauto quanto os que Silverman costumava dar antes da guerra. Houve menos pratos, menos comida voltou intocada para a cozinha e a decoração da mesa era mais simples. Em vez de lacaios, criadas serviram a comida: ninguém mais estava interessado em ser lacaio. Fitz imaginou que aquelas festas eduardianas extravagantes jamais voltariam a existir. No entanto, Silverman ainda conseguia atrair à sua casa os homens mais poderosos do país.

Lloyd George perguntou a Fitz sobre sua irmã, Maud.

Esse era outro assunto que enfurecia Fitz.

– Sinto informar que ela se casou com um alemão e foi morar em Berlim – respondeu ele. Não mencionou que ela já dera à luz seu primeiro filho, um menino chamado Eric.

– Eu fiquei sabendo – falou Lloyd George. – Só queria saber como ela estava. Uma jovem encantadora.

A predileção do primeiro-ministro por jovens encantadoras era conhecida, para não dizer notória.

– Temo que a vida na Alemanha seja difícil – respondeu Fitz. Maud lhe escrevera implorando por dinheiro, mas ele se recusara a dá-lo. Ela não tinha pedido sua permissão para se casar, então como poderia esperar que ele a sustentasse?

– Difícil? – repetiu Lloyd George. – E não deveria ser de outra forma, depois do que eles fizeram. Mesmo assim, sinto muito por ela.

– Mudando de assunto, primeiro-ministro – disse Fitz –, esse tal de Kamenev é um judeu bolchevique, o senhor deveria deportá-lo.

O álcool havia deixado o primeiro-ministro, que trazia uma taça de champanhe na mão, de bom humor.

– Meu caro Fitz – disse ele em tom amigável –, o governo não está muito preocupado com a propaganda equivocada dos russos, que é grosseira e truculenta. Por favor, não subestime a classe operária da Grã-Bretanha: eles sabem reconhecer conversa oca quando a escutam. Acredite, os discursos de Kamenev estão contribuindo mais para desacreditar o bolchevismo do que qualquer coisa que eu ou você poderíamos dizer.

Fitz achava o argumento do primeiro-ministro uma tolice condescendente.

– Ele chegou ao cúmulo de dar dinheiro para o Daily Herald!

– Concordo que é uma indelicadeza da parte de um governo estrangeiro subsidiar um dos nossos jornais, mas, francamente, nós temos medo do Daily Herald? Afinal, até parece que nós, liberais e conservadores, não temos nossos próprios veículos de imprensa.

– Mas ele está entrando em contato com os grupos revolucionários mais radicais do país, loucos dispostos a acabar com todo o nosso modo de vida!

– Quanto mais os britânicos ficarem sabendo sobre o bolchevismo, menos vão gostar, escreva o que estou dizendo. O regime só parece magnífico quando visto de longe, através de uma bruma impenetrável. O bolchevismo é quase uma proteção para a sociedade britânica, pois instiga em todas as classes o horror do que poderia acontecer caso a atual organização social fosse subvertida.

– É só que não gosto nada disso.

– Além do mais – prosseguiu Lloyd George –, se nós os expulsarmos, teremos que explicar como sabemos o que eles estão fazendo, e a notícia de que os estamos espionando pode jogar a classe trabalhadora contra nós de maneira mais eficaz que todos os discursos inflamados dos russos juntos.

Fitz não queria continuar a ouvir um sermão sobre a realidade política, nem mesmo do primeiro-ministro, mas estava tão irritado que insistiu no assunto:

– Mas também não precisamos fazer negócios com os bolcheviques!

– Se nós nos recusássemos a negociar com todos aqueles que usam suas embaixadas aqui para fazer propaganda, não nos sobrariam muitos parceiros comerciais. Por favor, Fitz, nós fazemos comércio com os canibais das Ilhas Salomão!

Fitz tinha suas dúvidas de que isso fosse verdade – afinal de contas, os canibais das Ilhas Salomão não tinham grande coisa a oferecer –, mas deixou passar.

– Estamos tão mal das pernas que precisamos vender para esses assassinos?

– Infelizmente, sim. Eu conversei com vários empresários e eles me assustaram bastante em relação ao próximo ano e meio. Ninguém está fazendo encomendas. Os clientes não compram. Talvez estejamos à beira da pior onda de desemprego que qualquer um de nós já presenciou. Mas os russos querem comprar, e eles pagam em ouro.

– Eu não aceitaria o ouro deles!

– Ora, Fitz – disse Lloyd George –, mas você já tem ouro até dizer chega, não é mesmo?

Quando Billy levou sua esposa a Aberowen pela primeira vez, houve uma festa em Wellington Row.

Era um sábado de verão e, para variar, não estava chovendo. Às três da tarde, Billy e Mildred chegaram à estação com as filhas de Mildred – àquela altura enteadas de Billy –, Enid e Lillian, de oito e sete anos. A essa hora, os mineradores já haviam subido da mina, tomado seu banho semanal e vestido seus ternos de domingo.

Os pais de Billy os estavam esperando na estação. Estavam mais velhos e pareciam menos imponentes; já não dominavam todas as pessoas à sua volta. Da apertou a mão de Billy e disse:

– Estou orgulhoso de você, meu filho. Você não se deixou intimidar por eles, como eu lhe ensinei. – Billy ficou feliz ao ouvir isso, embora não se visse apenas como mais uma das conquistas de Da.

Seus pais já haviam conhecido Mildred, no casamento de Ethel. Da apertou sua mão e Mam a cumprimentou com um beijo.

– É um prazer revê-la, Sra. Williams – disse Mildred. – Ou será que devo chamá-la de Mam agora?

Foi a melhor coisa que ela poderia ter dito, e Mam ficou encantada. Billy tinha certeza de que Da acabaria gostando de Mildred também, desde que ela conseguisse maneirar nos palavrões.

O questionamento insistente de alguns parlamentares da Câmara dos Comuns – valendo-se de informações fornecidas por Ethel – havia forçado o governo a anunciar a redução da sentença de alguns soldados e marinheiros submetidos à corte marcial na Rússia por motim e outras ofensas. A pena de Billy tinha sido reduzida para um ano, e ele fora solto e desmobilizado. Depois disso, se casara o mais rápido possível com Mildred.

Aberowen lhe pareceu estranha. A cidade não havia mudado muito, mas seus sentimentos, sim. Era um lugar pequeno e sem graça, e as montanhas em volta pareciam muros feitos para conter as pessoas. Não tinha mais certeza de que ali fosse seu lar. Tivera a mesma sensação ao vestir seu terno de antes da guerra e perceber que, embora a roupa ainda servisse, ele não se sentia mais à vontade nela. Nada do que acontecesse ali mudaria o mundo, pensou ele.

A família subiu a colina até Wellington Row e encontrou as casas todas decoradas com bandeiras: a da Grã-Bretanha, a do País de Gales e a bandeira vermelha. Uma faixa ia de uma ponta a outra da rua, dizendo: BEM-VINDO AO LAR, BILLY DUPLO. Todos os seus vizinhos haviam saído de casa. Mesas estavam postas com jarras de cerveja e de chá, além de pratos cheios de tortas salgadas, bolos e sanduíches. Quando as pessoas viram Billy, começaram a entoar a tradicional canção de boas-vindas do País de Gales “We’ll Keep a Welcome in the Hillsides”.

Billy chorou.

Alguém lhe deu um caneco de cerveja. Vários rapazes se juntaram em volta de Mildred, admirados. Para eles, tratava-se de uma criatura exótica, com suas roupas londrinas, seu sotaque da cidade e um chapéu de aba imensa que ela própria havia decorado com flores de seda. Mesmo esforçando-se ao máximo para se comportar, ela não conseguia deixar de dizer frases atrevidas como: “Eu já estava ficando de saco cheio, com o perdão da má palavra.”

Gramper parecia mais velho e mal conseguia ficar em pé direito, mas sua cabeça ainda estava boa. Ficou cuidando de Enid e Lillian, tirando balas dos bolsos do colete e mostrando às meninas como conseguia fazer uma moeda desaparecer.

Billy teve que conversar com todas as famílias enlutadas sobre seus companheiros mortos: Joey Ponti, Profeta Jones, Llewellyn Espinhento e tantos outros. Reencontrou Tommy Griffiths, que vira pela última vez em Ufa, na Rússia. O pai ateu de Tommy, Len, estava magro e abatido por conta de um câncer.

Billy recomeçaria a trabalhar na mina na segunda-feira, e os mineradores todos queriam lhe explicar as mudanças que haviam ocorrido lá embaixo desde que ele fora embora: novos túneis escavados mais fundo nos veios de carvão, mais luzes elétricas, precauções de segurança mais adequadas.

Tommy subiu em uma cadeira e fez um discurso de boas-vindas, ao qual Billy teve que responder depois.

– Todos nós fomos modificados pela guerra – disse ele. – Eu me lembro de quando as pessoas costumavam dizer que os ricos tinham sido postos neste mundo por Deus para governar o povo, para nos governar. – Essas palavras foram recebidas com risadas desdenhosas. – Muitos homens foram curados dessa ilusão ao lutar sob o comando de oficiais aristocratas que não teriam capacidade de comandar nem mesmo uma excursão de escola. – Os demais veteranos assentiram, entendendo-o perfeitamente. – A guerra foi ganha por homens como nós, homens comuns, que não tiveram educação, mas que não são burros. – Todos concordaram aos gritos de “É isso aí” e “Apoiado, apoiado”. – Nós agora temos o direito de voto, assim como nossas mulheres, embora nem todas ainda, como minha irmã Eth lhes dirá em breve. – A frase provocou uma pequena vibração por parte das mulheres. – Este país é nosso, e nós devemos assumir o controle dele, da mesma forma que os bolcheviques fizeram na Rússia e os social-democratas na Alemanha. – Os homens vibraram. – Nós temos um partido que representa o operariado, o Partido Trabalhista, e eleitores de sobra para colocá-lo no governo. Lloyd George nos passou a perna na eleição passada, mas não vai conseguir fazer isso outra vez.

– Não! – gritou alguém.

– Então foi para isso que eu voltei para casa. Os dias de Perceval Jones como representante de Aberowen no Parlamento estão prestes a acabar. – A plateia vibrou novamente. – Eu quero ver um trabalhista nos representando na Câmara dos Comuns! – Billy cruzou olhares com o pai: Da estava radiante. – Obrigado por esta recepção maravilhosa. – Ele desceu da cadeira e todos aplaudiram com entusiasmo.

– Belo discurso, Billy – disse Tommy Griffiths. – Mas quem vai ser esse parlamentar trabalhista?

– Vamos fazer o seguinte, Tommy, meu chapa – respondeu Billy. – Você tem três chances de adivinhar.

O filósofo Bertrand Russell visitou a Rússia naquele ano e escreveu um livro curto, chamado Teoria e prática do bolchevismo. O livro quase provocou um divórcio na família Leckwith.

Russell atacava com veemência os bolcheviques. Pior ainda: ele o fazia de uma perspectiva de esquerda. Ao contrário dos críticos conservadores, não defendia que o povo russo não tinha o direito de depor o czar, dividir as terras da nobreza entre os camponeses e administrar as próprias fábricas. Pelo contrário, ele aprovava tudo isso. Russell atacava os bolcheviques não por terem ideais errados, mas por terem ideais certos e não conseguirem colocá-los em prática. Portanto, suas conclusões não podiam ser ignoradas irrefletidamente, como se fossem propaganda.

Bernie leu o livro primeiro. Como todo bibliotecário, tinha verdadeiro horror de marcar os exemplares, mas nesse caso abriu uma exceção, estragando as páginas com comentários irados, sublinhando frases e escrevendo “Que imbecilidade!” ou “Argumento inválido!” a lápis nas margens.

Ethel o leu enquanto amamentava o bebê, que já estava com pouco mais de um ano. O nome da menininha era Mildred, mas seus pais sempre a chamavam pelo apelido, Millie. A Mildred mais velha tinha se mudado para Aberowen com Billy e já estava grávida do primeiro filho do casal. Ethel sentia sua falta, embora estivesse contente em poder usar os quartos do andar de cima da casa. A pequena Millie tinha cabelos encaracolados e, embora ainda fosse um bebê, possuía um brilho sedutor nos olhos que fazia todos pensarem em sua mãe.

Ethel gostou do livro. Russell era um escritor sagaz. Com uma informalidade aristocrática, tinha solicitado uma entrevista com Lênin e passado uma hora com o grande homem. A conversa fora em inglês. Lênin chamara lorde Northcliffe de seu melhor propagandista: as histórias de horror do Daily Mail sobre russos que pilhavam a aristocracia poderiam até aterrorizar a burguesia, mas, segundo ele, surtiriam o efeito contrário na classe operária britânica.

Russell, no entanto, deixava claro que os bolcheviques eram totalmente antidemocráticos. A ditadura do proletariado era de fato uma ditadura, afirmava ele, porém os governantes eram intelectuais de classe média como Lênin e Trótski, que aceitavam o auxílio somente dos proletários que compartilhavam suas opiniões.

– Acho tudo isso muito preocupante – disse Ethel ao terminar de ler.

– Bertrand Russell é um aristocrata! – disse Bernie com raiva. – Ele é neto de conde!

– Isso não quer dizer que esteja errado. – Millie acabou de mamar e pegou no sono. Ethel acariciou sua bochecha macia com a ponta de um dedo. – Russell é socialista. A acusação dele é que os bolcheviques não estão implementando o socialismo.

– Como ele pode dizer uma coisa dessas? A nobreza foi esmagada.

– Assim como a imprensa de oposição.

– Isso é uma necessidade temporária...

– Temporária até quando? A Revolução Russa já conta três anos!

– Não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos.

– Ele afirma haver prisões e execuções arbitrárias e diz que a polícia secreta é mais poderosa agora do que na época do czar.

– Mas ela persegue os contrarrevolucionários, não os socialistas.

– Socialismo quer dizer liberdade, até mesmo para os contrarrevolucionários.

– Não é bem assim!

– Para mim, é.

As vozes exaltadas acordaram Millie. Sentindo a animosidade que pairava no ar, o bebê começou a chorar.

– Pronto – disse Ethel, amuada. – Olhe só o que você fez.

Quando Grigori voltou para casa ao final da guerra civil, reencontrou Katerina, Vladimir e Anna em seu confortável apartamento na sede do governo, que ficava dentro do antigo forte do Kremlin. Na verdade, o lugar era confortável demais para seu gosto. O país inteiro sofria com falta de comida e combustível, mas os estoques do Kremlin estavam abarrotados. O complexo possuía três restaurantes com chefs formados na França e, para consternação de Grigori, os garçons prestavam continência para os bolcheviques, batendo os calcanhares, assim como faziam para a antiga nobreza. Katerina deixava as crianças na creche enquanto ia ao cabeleireiro. À noite, membros do Comitê Central iam à ópera em carros com motorista.

– Espero que não estejamos nos transformando na nova nobreza – disse ele a Katerina certa noite, na cama.

Ela riu com desdém.

– Se for assim, onde estão meus diamantes?

– Bem, mas nós temos banquetes, viajamos de primeira classe nos trens e tudo o mais.

– Os aristocratas nunca fizeram nada útil. Vocês todos trabalham 12, 15, 18 horas por dia. Não é de esperar que fiquem procurando pedaços de madeira no lixo para queimar e se aquecer, como fazem os pobres.

– Por outro lado, a elite sempre tem uma desculpa para seus privilégios especiais.

– Venha cá – disse ela. – Vou lhe dar um privilégio especial.

Depois de fazerem amor, Grigori não conseguiu dormir. Apesar das dúvidas que tinha, não podia deixar de sentir uma satisfação secreta ao ver a família tão bem de vida. Katerina havia engordado. Quando ele a conhecera, era uma voluptuosa moça de 20 anos; agora, era uma mãe roliça de 26. Vladimir tinha cinco anos e estava aprendendo a ler e escrever na escola, junto com os outros filhos dos novos governantes da Rússia; Anna, que eles em geral chamavam de Anya, era uma menina travessa de três anos e cabelos encaracolados. Antes da revolução, o apartamento onde moravam pertencia a uma das damas de companhia da czarina. Era quente, seco e espaçoso, com um segundo quarto de dormir para as crianças, além de uma cozinha e uma sala de estar – espaço suficiente para acomodar 20 pessoas nos lugares em que Grigori costumava morar em Petrogrado. Havia cortinas nas janelas, xícaras de porcelana para o chá, um tapete em frente à lareira e um quadro a óleo do lago Baikal pendurado em cima dela.

Grigori acabou pegando no sono, mas foi acordado às seis da manhã por batidas na porta. Ao abri-la, deparou-se com uma mulher malvestida e esquelética que lhe pareceu familiar.

– Desculpe incomodá-lo tão cedo, Excelência – disse ela, usando a antiga forma de tratamento respeitosa.

Ele a reconheceu: era a mulher de Konstantin.

– Magda! – exclamou, surpreso. – Como você está diferente. Entre! O que houve? Vocês agora estão morando em Moscou?

– Sim, Excelência, nós nos mudamos para cá.

– Pelo amor de Deus, não me chame assim. Onde está Konstantin?

– Preso.

– Hã? Por quê?

– Ele está sendo acusado de ser contrarrevolucionário.

– Impossível! – disse Grigori. – Deve ter havido um erro terrível.

– Sim, senhor.

– Quem o prendeu?

– A Cheka.

– A polícia secreta. Bem, eles trabalham para nós. Vou apurar isso e tentar descobrir o que aconteceu logo depois do café da manhã.

– Por favor, Excelência, eu lhe imploro, faça alguma coisa imediatamente... eles vão fuzilá-lo daqui a uma hora.

– Mas que inferno! – disse Grigori. – Espere aqui, vou colocar uma roupa.

Ele vestiu seu uniforme. Embora a farda não exibisse insígnia de patente alguma, tinha uma qualidade muito superior à do uniforme de um soldado comum, deixando muito claro que Grigori era um comandante.

Alguns minutos depois, ele e Magda deixaram o complexo do Kremlin. Nevava. Os dois percorreram a curta distância até a praça Lubyanka. O quartel-general da Cheka ficava em um imenso prédio barroco feito de tijolos amarelos, antiga sede de uma companhia de seguros. O guarda na porta prestou continência para Grigori.

Ele começou a gritar assim que entrou no prédio.

– Quem está no comando aqui? Tragam-me o oficial de plantão agora mesmo! Eu sou o camarada Grigori Peshkov, membro do Comitê Central bolchevique. Quero ver o prisioneiro Konstantin Vorotsyntsev imediatamente. O que estão esperando? Andem logo! – Ele havia descoberto que essa era a maneira mais rápida de conseguir as coisas, muito embora lhe despertasse uma terrível lembrança do comportamento petulante de um nobre mimado.

Os guardas passaram alguns minutos correndo de um lado para outro, em pânico, e então Grigori teve um choque. O oficial de plantão foi chamado até o saguão de entrada. Grigori o conhecia. Era Mikhail Pinsky.

Ficou horrorizado. Pinsky havia sido truculento e brutal a serviço da polícia do czar; estaria agora agindo da mesma forma em nome da revolução?

Pinsky abriu um sorriso melífluo.

– Camarada Peshkov – falou. – Mas que honra.

– Não foi o que você disse quando eu o nocauteei por importunar uma pobre garota camponesa – disse Grigori.

– As coisas mudaram muito, camarada... para todos nós.

– Por que vocês prenderam Konstantin Vorotsyntsev?

– Atividades contrarrevolucionárias.

– Isso é ridículo. Ele era presidente do grupo de discussão bolchevique na Meta­lúrgica Putilov em 1914. Foi um dos primeiros delegados do soviete de Petrogrado. Ele é mais bolchevique do que eu!

– É mesmo? – indagou Pinsky, e havia um quê de ameaça em sua voz.

Grigori o ignorou.

– Traga-o até aqui.

– Agora mesmo, camarada.

Alguns minutos depois, Konstantin apareceu. Estava sujo, com a barba por fazer e fedia como uma pocilga. Magda caiu em prantos e abraçou o marido.

– Preciso ter uma conversa em particular com o prisioneiro – disse Grigori a Pinsky. – Leve-nos até a sua sala.

Pinsky fez que não com a cabeça.

– Minha humilde sala...

– Não discuta – disse Grigori. – Vamos para a sua sala. – Aquilo era uma maneira de frisar seu poder. Ele precisava manter Pinsky sob controle.

Pinsky os conduziu até uma sala no andar de cima com vista para o pátio interno. Escondeu às pressas dentro de uma gaveta um soco inglês que estava em cima da mesa.

Ao olhar pela janela, Grigori viu que o dia estava raiando.

– Espere lá fora – disse ele para Pinsky.

Os dois se sentaram e Grigori perguntou a Konstantin:

– Que droga é essa?

– Nós viemos para Moscou quando o governo se mudou para cá – explicou Konstantin. – Eu pensei que fosse virar comissário. Mas foi um erro. Não tenho apoio político aqui.

– Então o que você tem feito?

– Voltei a trabalhar normalmente. Estou na fábrica Tod, fazendo peças para motores: engrenagens, pistões, rolamentos.

– Mas por que a polícia acha que você é contrarrevolucionário?

– A fábrica elege um delegado para o soviete de Moscou. Um dos engenheiros anunciou que iria se apresentar como candidato menchevique. Ele organizou uma assembleia e eu fui assistir. Não passávamos de uma dúzia de pessoas. Eu não me pronunciei, saí no meio e nem sequer votei nele. O candidato bolchevique venceu, é claro. Mas, depois da eleição, todos os que participaram da assembleia menchevique foram demitidos. Então, na semana passada, fomos todos presos.

– Não podemos fazer isso – disse Grigori, em desespero. – Nem mesmo em nome da revolução. Não podemos prender trabalhadores por escutarem um ponto de vista diferente.

Konstantin o encarou com uma expressão estranha.

– Você andou fora da cidade?

– É claro – respondeu Grigori. – Estava combatendo os exércitos contrarrevolucionários.

– Então é por isso que não sabe o que vem acontecendo.

– Quer dizer que isso já aconteceu antes?

– Grishka, acontece todos os dias.

– Não acredito.

Magda interveio.

– E ontem à noite eu recebi um recado, de uma amiga que é casada com um policial, dizendo que Konstantin e os outros seriam fuzilados às oito da manhã de hoje.

Grigori olhou para o relógio de pulso que o Exército lhe dera. Eram quase oito horas.

– Pinsky! – gritou.

O policial entrou na sala.

– Cancele a execução.

– Temo que já seja tarde demais para isso, camarada.

– Quer dizer que os homens já foram fuzilados?

– Quase. – Pinsky foi até a janela.

Lá embaixo, no pátio coberto de neve, um pelotão de fuzilamento tinha se reunido à luz tênue do início da manhã. Em frente aos soldados, 12 homens vendados tremiam, sem qualquer tipo de agasalho. Uma bandeira vermelha tremulava acima de suas cabeças.

Diante dos olhos de Grigori, os soldados ergueram os fuzis.

– Parem agora mesmo! – berrou Grigori. – Não atirem! – Mas sua voz foi abafada pela janela e ninguém escutou.

Logo em seguida, ouviu-se o estampido dos disparos.

Os condenados caíram no chão. Grigori ficou olhando a cena, horrorizado.

Ao redor dos corpos caídos, manchas de sangue tingiram a neve; seu vermelho vivo era o mesmo da bandeira hasteada.

 

11 e 12 de novembro de 1923

Aos domingos, Maud dormia durante o dia e se levantava no meio da tarde, quando Walter trazia as crianças para casa depois da aula de catecismo. Eric tinha três anos e a pequena Heike dois, e ambos ficavam tão encantadores com suas roupas mais bonitas que Maud pensava que seu coração fosse estourar de tanto amor.

Nunca havia experimentado uma emoção como aquela. Nem mesmo sua louca paixão por Walter tinha sido tão arrebatadora. Os filhos também a deixavam ansiosa ao extremo. Será que ela conseguiria lhes dar comida, protegê-los do frio, dos motins e da revolução?

Ela lhes serviu pão com leite morno para aquecê-los, e então começou a se preparar para a noite. Ela e Walter iriam dar uma pequena festa de família em comemoração ao aniversário de 38 anos do primo de Walter, Robert von Ulrich.

Contrariando os temores dos pais de Walter – ou suas expectativas, talvez –, Robert não havia morrido na guerra. Fosse como fosse, Walter não tinha herdado o título de Graf Von Ulrich. Seu primo ficara detido em um campo de prisioneiros de guerra na Sibéria. Quando os bolcheviques selaram a paz com a Áustria, Robert e seu companheiro de combate, Jörg, tinham voltado para casa a pé, de carona e a bordo de trens de carga. A viagem demorara um ano, mas eles haviam conseguido. Quando chegaram, Walter lhes arrumou um apartamento em Berlim.

Maud pôs o avental. Na minúscula cozinha de sua pequena casa, preparou uma sopa com repolho, pão dormido e nabo. Também fez um bolinho, embora tenha precisado improvisar, incrementando a receita com mais nabos.

Havia aprendido a cozinhar, além de muitas outras coisas. Uma vizinha gentil, mais velha, tinha se compadecido da aristocrata desnorteada e lhe ensinara a fazer uma cama, passar uma camisa a ferro e limpar uma banheira. Para Maud, tudo aquilo tinha sido uma espécie de choque.

A família morava em uma casa de classe média. Não tiveram dinheiro nenhum para investir em melhorias, tampouco podiam se dar ao luxo de ter os criados com os quais Maud sempre fora acostumada. Seus móveis eram quase todos de segunda mão, e Maud, em seu íntimo, os considerava terrivelmente suburbanos.

Esperavam que as coisas fossem melhorar, mas, na verdade, elas haviam piorado: o casamento com uma inglesa levara a carreira de Walter no Ministério das Relações Exteriores a um beco sem saída. Ele teria ficado grato em mudar de ramo, porém, com o caos na economia, se considerava com sorte de ao menos ter um emprego. E agora, quatro anos de pobreza depois, as insatisfações iniciais de Maud pareciam insignificantes. O estofado dos móveis estava remendado nos lugares em que as crianças o haviam rasgado, papelão cobria as vidraças quebradas e a tinta das paredes descascava em vários pontos.

Maud, no entanto, não se arrependia de nada. Sempre que quisesse, podia beijar Walter, pôr a língua em sua boca, desabotoar sua calça e se deitar com ele na cama, no sofá ou até mesmo no chão, o que compensava todo o resto.

Os pais de Walter chegaram à festa trazendo meio presunto e duas garrafas de vinho. Otto havia perdido Zumwald, a propriedade da família, que agora pertencia ao território da Polônia. A inflação havia quase dizimado suas economias. Contudo, o grande jardim de sua casa em Berlim produzia batatas, e ele ainda tinha muito vinho de antes da guerra.

– Como foi que o senhor conseguiu presunto? – perguntou Walter, incrédulo. Em geral, só se conseguia comprar aquele tipo de coisa com dólares norte-americanos.

– Troquei por uma garrafa de champanhe de safra – respondeu Otto.

Os avós puseram as crianças na cama. Otto lhes contou uma história popular. Pelo que Maud conseguiu ouvir, era sobre uma rainha que havia mandado decapitar o próprio irmão. Ela sentiu um calafrio, mas não se meteu. Depois da história, Suzanne pôs-se a entoar cantigas de ninar com uma voz aguda e as crianças pegaram no sono, aparentemente inabaladas pela história sangrenta contada pelo avô.

Robert e Jörg chegaram usando gravatas vermelhas idênticas. Otto os cumprimentou calorosamente. Parecia não fazer ideia de que os dois eram um casal e aceitava com naturalidade a explicação de que Jörg simplesmente dividia um apartamento com Robert. De fato, era assim que os dois se comportavam na presença dos mais velhos. Maud achava que Suzanne devia intuir a verdade. As mulheres eram mais difíceis de enganar. Felizmente, também eram mais tolerantes.

Robert e Jörg podiam ser bem diferentes na companhia de liberais. Nas festas em sua própria casa, não buscavam esconder o amor que sentiam. Muitos de seus amigos tinham as mesmas preferências. A princípio, Maud ficara espantada: nunca tinha visto dois homens se beijando, admirando as roupas um do outro e flertando como colegiais. Porém, esse tipo de comportamento não era mais tabu, pelo menos não em Berlim. Além do mais, Maud havia lido Sodoma e Gomorra, de Proust, no qual o autor parecia sugerir que esse tipo de coisa sempre existira.

Naquela noite, contudo, Robert e Jörg exibiram um comportamento impecável. Durante o jantar, todos conversaram sobre o que estava acontecendo na Bavária. Na quinta-feira, uma associação de grupos paramilitares chamada Kampfbund havia declarado uma revolução nacional em uma cervejaria de Munique.

Ultimamente, Maud mal suportava ler os jornais. Se os trabalhadores entrassem em greve, trogloditas de direita espancavam os grevistas. Se as donas de casa fizessem uma passeata para protestar contra a escassez de comida, seus protestos se transformavam em revoltas populares. Todos na Alemanha estavam ressentidos com o Tratado de Versalhes, porém o governo social-democrata o aceitara na íntegra. O povo achava que as indenizações estavam estrangulando a economia, muito embora a Alemanha só tivesse pagado uma parte ínfima da dívida e evidentemente não tivesse a menor intenção de tentar quitá-la.

O putsch da cervejaria de Munique estava dando o que falar. O herói de guerra Erich Ludendorff era seu defensor mais célebre. Paramilitares de camisas marrons, que se autodenominavam Tropas de Assalto, e alunos da Escola de Oficiais de Infantaria haviam assumido o controle de prédios estratégicos da cidade. Membros do conselho municipal tinham sido feitos reféns e judeus ilustres haviam sido presos.

Na sexta-feira, o governo lançara um contra-ataque. Quatro policiais e 16 paramilitares tinham sido mortos. As notícias que haviam chegado a Berlim até o momento não eram suficientes para Maud julgar se a insurreição tinha acabado ou não. Se os extremistas assumissem o controle da Bavária, será que o país inteiro cairia em suas mãos?

A situação deixava Walter irado.

– Nós temos um governo eleito democraticamente – disse ele. – Por que as pessoas não podem deixá-lo trabalhar em paz?

– Nosso governo nos traiu – disse seu pai.

– Isso é o que senhor acha. Mas e daí? Nos Estados Unidos, quando os republicanos venceram as últimas eleições, os democratas não se amotinaram!

– Os Estados Unidos não estão sendo arruinados por bolcheviques e judeus.

– Se o senhor está preocupado com os bolcheviques, então diga às pessoas para não votarem neles. E que obsessão é essa com os judeus?

– Eles são uma péssima influência.

– Há judeus na Grã-Bretanha também. Pai, o senhor se esqueceu de como, em Londres, lorde Rothschild se esforçou ao máximo para evitar a guerra? A França, a Rússia e os Estados Unidos também têm judeus. Eles não estão conspirando contra os governos desses países. O que o leva a pensar que os nossos são piores? A maioria só quer ganhar o suficiente para alimentar suas famílias e mandar seus filhos para a escola, como todo mundo.

Para surpresa de Maud, Robert interveio.

– Eu concordo com tio Otto – disse ele. – A democracia é debilitante. A Alemanha precisa de uma liderança mais forte. Jörg e eu entramos para o Partido Nacional-Socialista.

– Ah, Robert, pelo amor de Deus! – exclamou Walter, enojado. – Como você pôde fazer isso?

Maud se levantou.

– Alguém quer um pedaço de bolo de aniversário? – perguntou ela com uma voz jovial.

 

Maud saiu da festa às nove para ir trabalhar.

– Onde está seu uniforme? – perguntou-lhe a sogra enquanto se despedia. Suzanne achava que Maud trabalhava como enfermeira noturna para um cavalheiro rico e idoso.

– Eu deixo lá e me troco quando chego – respondeu. Na verdade, Maud tocava piano em uma boate chamada Nachtleben. Mas seu uniforme de fato ficava no trabalho.

Ela precisava ganhar dinheiro e nunca tinha aprendido a fazer grande coisa, exceto se vestir bem e frequentar festas. Recebera uma pequena herança do pai, mas, como tivera que convertê-la em marcos ao se mudar para a Alemanha, o dinheiro não valia mais nada. Fitz, ainda bravo por ela ter se casado sem sua autorização, recusava-se a lhe dar qualquer ajuda. O salário de Walter no Ministério das Relações Exteriores aumentava todo mês, mas nunca conseguia acompanhar a inflação. Para compensar, ao menos em parte, o aluguel que pagavam pela casa havia se tornado irrisório, de modo que o proprietário já nem se dava ao trabalho de cobrar. Mas eles precisavam comprar comida.

Maud chegou à boate às nove e meia. O espaço havia sido mobiliado e decorado recentemente e, mesmo com as luzes ainda acesas, não era feio. Garçons poliam copos, o barman picava gelo e um cego afinava o piano. Ela pôs um vestido de noite decotado e joias falsas e cobriu o rosto com uma maquiagem pesada: pó de arroz, delineador, batom. Quando as portas se abriram às dez, já estava sentada ao piano.

A boate se encheu rapidamente de homens e mulheres com trajes de noite, que dançavam e fumavam. Eles compravam drinques de champanhe e cheiravam cocaína discretamente. Apesar da pobreza e da inflação, a vida noturna de Berlim era animada. Dinheiro não era problema para aquelas pessoas. Elas tinham renda no exterior ou então algo melhor do que dinheiro: estoques de carvão, um abatedouro, um depósito de tabaco ou, melhor ainda, ouro.

Maud fazia parte de uma banda só de mulheres que tocava o novo ritmo chamado jazz. Fitz teria ficado horrorizado ao ver aquilo, mas ela gostava do emprego. Sempre havia se rebelado contra as restrições impostas por sua criação. Tocar as mesmas canções todas as noites podia ser maçante, mas mesmo assim a música liberava alguma coisa reprimida dentro dela, que rebolava em cima da banqueta e dava piscadelas para os clientes.

À meia-noite, fazia um número solo em que cantava e tocava músicas popularizadas por cantoras negras como Alberta Hunter. Aprendera essas canções por meio dos discos americanos que ouvia em um gramofone do dono da Nachtleben. Elas lhes renderam o nome artístico de Maud Mississippi.

No intervalo entre dois números, um cliente foi cambaleando até o piano e pediu:

– Toque “Downhearted Blues”, sim?

Ela conhecia a canção, um grande sucesso de Bessie Smith. Começou a tocar acordes de blues em mi bemol.

– Pode ser – respondeu. – Por quanto?

Ele estendeu uma nota de um bilhão de marcos.

Maud riu.

– Isso daí não compra nem o primeiro compasso – disse ela. – Tem algum dinheiro estrangeiro?

Ele lhe estendeu uma nota de um dólar.

Ela pegou o dinheiro, enfiou-o dentro da manga do vestido e tocou “Downhearted Blues”.

Maud ficou radiante por ter ganhado um dólar, que valia cerca de um trilhão de marcos. Ainda assim, sentia-se um pouco desanimada e entregou-se totalmente ao clima melancólico do blues. Aprender a ganhar gorjetas era uma façanha e tanto para uma mulher com as suas origens, mas não deixava de ser um pouco humilhante.

Uma vez terminado o seu número, o mesmo cliente a abordou no caminho para o camarim. Pôs a mão em seu quadril e disse:

– Quer tomar café da manhã comigo, gracinha?

Ela era apalpada quase todas as noites, embora, aos 33 anos, fosse uma das mulheres mais velhas da boate: muitas eram garotas de 19 ou 20 anos. Quando isso acontecia, as meninas não podiam fazer escândalo. Deviam abrir um sorriso encantador, afastar a mão do homem e dizer “Hoje não, meu senhor”. Isso, no entanto, nem sempre bastava para desencorajá-los, e as outras meninas haviam ensinado a Maud uma tática mais eficaz.

– É que estou com uns bichinhos nos pelos da boceta – disse ela. – Será que tem problema? – O homem desapareceu.

Depois de quatro anos em Berlim, o alemão de Maud era fluente, e trabalhar na boate ainda lhe ensinara todos as palavras de baixo calão.

A boate fechava às quatro da manhã. Maud tirou a maquiagem e tornou a vestir suas roupas normais. Foi até a cozinha e implorou por alguns grãos de café. Um cozinheiro que gostava dela lhe deu um pouco em um cone de papel.

Os músicos recebiam em espécie todas as noites. As meninas traziam bolsas grandes para poder levar para casa os bolos de notas.

Na saída, Maud recolheu um jornal deixado por algum cliente. Era para Walter. Eles não tinham dinheiro para comprar jornais.

Assim que saiu, ela foi à padaria. Guardar dinheiro era perigoso: ao final do dia, seu salário talvez não comprasse nem um pão. Várias mulheres já aguardavam em frente à loja, no frio. Às cinco e meia, o padeiro abriu as portas e anotou os preços com giz em um quadro-negro. Naquele dia, um pão preto custava 127 bilhões de marcos.

Maud comprou quatro. Não comeriam tudo no mesmo dia, mas pouco importava. Pão dormido podia ser usado para engrossar sopa; notas de dinheiro, não.

Ela chegou em casa às seis. Mais tarde, arrumaria as crianças e as levaria para passar o dia na casa dos avós, para então dormir. Antes, no entanto, poderia passar uma hora ou duas com Walter. Era a melhor parte do seu dia.

Preparou o café da manhã e levou uma bandeja até o quarto.

– Olhe – falou. – Pão fresco, café... e um dólar!

– Essa é a minha garota! – Ele a beijou. – O que vamos comprar? – Ele estremeceu, só de pijama. – Nós precisamos de carvão.

– Não há pressa. Podemos guardar, se você quiser. Vai valer a mesma coisa na semana que vem. Se você estiver com frio, eu posso aquecê-lo.

Ele sorriu:

– Então venha.

Ela tirou a roupa e entrou na cama.

Eles comeram o pão, beberam o café e fizeram amor. O sexo ainda era empolgante, embora menos demorado do que no início do relacionamento.

Depois, Walter leu o jornal que ela havia trazido.

– A revolução de Munique terminou – disse ele.

– Pra valer?

Walter deu de ombros.

– Pegaram o cabeça. Adolf Hitler.

– O líder do partido para o qual Robert entrou?

– Isso. Ele foi acusado de alta traição. Está preso agora.

– Que bom – disse Maud, aliviada. – Graças a Deus isso tudo acabou.

 

Dezembro de 1923 a janeiro de 1924

O conde Fitzherbert subiu em um palanque em frente à prefeitura de Aberowen às três da tarde da véspera das eleições gerais. Estava de fraque e cartola. Ouviu-se uma pequena explosão de vivas dos conservadores nas primeiras fileiras, porém a maior parte da multidão vaiou. Alguém arremessou um jornal amassado, e Billy disse:

– Agora já chega, rapazes, deixem-no falar.

Nuvens baixas escureciam a tarde de inverno e os postes de rua já estavam acesos. Apesar da chuva, o grupo era numeroso, 200 ou 300 pessoas, quase todas mineradores de boina, com alguns chapéus-coco na frente e um punhado de mulheres debaixo de guarda-chuvas. À beira da aglomeração, crianças brincavam sobre as pedras molhadas do calçamento.

Fitz estava fazendo campanha pelo atual representante de Aberowen no Parlamento, Perceval Jones. Ele começou a falar em impostos. Billy achou ótimo. Fitz poderia falar sobre esse assunto o dia inteiro sem tocar o coração do povo de Aberowen. Em teoria, era essa a grande questão das eleições. Os conservadores propunham acabar com o desemprego aumentando as tarifas sobre as importações, de modo a proteger os fabricantes britânicos. Isso havia unido os liberais à oposição, pois a ideologia mais antiga deles era o livre-comércio. Os trabalhistas defendiam que a solução do problema não estava nos impostos e propunham um programa de trabalho em nível nacional para empregar a mão de obra ociosa, além de um aumento no número de anos da educação formal, para evitar que os mais jovens entrassem para um mercado de trabalho já saturado.

A verdadeira questão, no entanto, era quem iria governar.

– Para incentivar o emprego na agricultura, o governo conservador vai conceder a cada agricultor um subsídio de uma libra por cada quatro mil metros quadrados de lavoura, contanto que ele pague a seus empregados no mínimo 30 xelins por semana – disse Fitz.

Billy sacudiu a cabeça, ao mesmo tempo achando graça e ficando revoltado com aquilo. Por que dar dinheiro aos agricultores? Eles não estavam passando fome. Os operários desempregados, sim.

Ao seu lado, Da falou:

– Essa conversa não vai ganhar votos em Aberowen.

Billy concordava. No passado, aquele distrito eleitoral tinha sido dominado pelos agricultores que cultivavam as colinas, mas os tempos haviam mudado. Agora que a classe trabalhadora tinha o direito de voto, o número de mineradores superaria o de agricultores. Na eleição conturbada de 1922, Perceval Jones conseguira manter seu assento no Parlamento por alguns votos. Desta vez, ele com certeza seria derrotado.

Fitz estava ficando mais inflamado.

– Se vocês votarem no Partido Trabalhista, estarão votando em um homem que carrega uma mancha em seu histórico militar – disse ele.

A plateia não gostou muito disso: eles conheciam a história de Billy, que era considerado um herói. Ouviu-se um burburinho de reprovação e Da gritou:

– Não tem vergonha?

Fitz não se deixou abater:

– Um homem que traiu seus companheiros de armas e seus oficiais, um homem que foi levado à corte marcial por deslealdade e mandado para a prisão. Ouçam o que eu digo: não desgracem Aberowen elegendo um homem como esse para o Parlamento.

Fitz desceu do palanque debaixo de aplausos esparsos e vaias. Billy o encarou, mas Fitz não devolveu o olhar.

Então foi a vez de Billy subir para discursar.

– Vocês devem estar esperando que eu insulte lorde Fitzherbert da mesma forma que ele me insultou – disse ele.

No meio da multidão, Tommy Griffiths gritou:

– Acabe com ele, Billy!

– Mas isto aqui não é uma briga na mina – prosseguiu ele. – Essa eleição é importante demais para ser decidida por provocações baratas. – A plateia se calou. Billy sabia que eles não iriam gostar muito daquela abordagem mais sensata. O povo de Aberowen gostava de provocações baratas. Porém, viu seu pai assentindo em aprovação. Da entendia o que Billy estava tentando fazer. Natural­mente. Tinha sido seu professor.

– O conde demonstrou coragem ao vir aqui expor suas opiniões diante de uma multidão de mineradores – continuou Billy. – Ele talvez esteja errado, e está, mas não é um covarde. Foi assim que agiu na guerra. Foi assim que muitos de nossos oficiais agiram. Eles foram corajosos, mas tomaram decisões equivocadas. Sua estratégia e suas táticas eram falhas, sua comunicação, deficiente, e seu pensamento, antiquado. Mas só deram o braço a torcer depois de milhões de homens terem morrido.

A plateia estava totalmente em silêncio. De repente, todos ficaram interessados. Billy viu Mildred, com ar orgulhoso e um bebê em cada braço – os dois filhos dele, David e Keir, de um e dois anos respectivamente. Mildred não nutria a menor paixão pela política, mas queria que Billy entrasse para o Parlamento para a família voltar a Londres e ela poder retomar seu negócio.

– Durante a guerra, nenhum membro da classe trabalhadora jamais foi promovido além de sargento. E todos os ex-alunos dos colégios de elite entraram para o Exército já como segundos-tenentes. Cada veterano que está aqui hoje teve a vida colocada em risco inutilmente por algum oficial tapado, e muitos de nós fomos salvos pela inteligência de um sargento.

Um rumor de aprovação percorreu a plateia.

– Eu estou aqui para dizer que esses dias acabaram. Tanto no Exército quanto em outras áreas da vida, um homem deveria ser promovido por sua inteligência, não por suas origens. – Ele ergueu a voz e ouviu no próprio tom o fervor que conhecia dos sermões do pai. – Esta eleição diz respeito ao futuro, e ao tipo de país em que nossos filhos irão crescer. Precisamos garantir que ele seja diferente do país em que nós crescemos. O Partido Trabalhista não clama pela revolução. Nós já vimos a revolução em prática em outros países, e ela não funciona. Mas nós clamamos por mudança. Uma mudança séria, profunda, radical.

Depois de uma pausa, ele tornou a erguer a voz para concluir seu discurso.

– Não, eu não vou ofender lorde Fitzherbert, tampouco o Sr. Perceval Jones – falou, apontando para as duas cartolas na primeira fila. – Vou apenas dizer a eles: cavalheiros, seu tempo passou. – A plateia vibrou. Billy olhou por sobre a primeira fileira para a multidão de mineradores: homens fortes, corajosos, que haviam nascido sem nada, mas que, mesmo assim, tinham ganhado a vida para si e para suas famílias. – Companheiros trabalhadores – disse ele –, nós somos o futuro!

Ele desceu do palanque.

Quando os votos foram apurados, Billy venceu de lavada.

Ethel também.

Os conservadores formaram a maior bancada no novo Parlamento, mas não tinham a maioria absoluta. O Partido Trabalhista veio em segundo lugar, com 191 membros, incluindo Eth Leckwith por Aldgate e Billy Williams por Aberowen. O Partido Liberal ficou em terceiro. O Partido da Lei Seca escocês conquistou um assento. O Partido Comunista, nenhum.

Quando o novo Parlamento se reuniu, os membros trabalhistas e liberais combinaram de unir seus votos para suplantar o governo conservador, e o rei foi obrigado a convidar o líder do Partido Trabalhista, Ramsay MacDonald, para o cargo de primeiro-ministro. Era a primeira vez na história que a Grã-Bretanha tinha um governo trabalhista.

Ethel não havia voltado ao Palácio de Westminster desde o dia de 1916 em que fora expulsa por gritar com Lloyd George. Agora, sentava-se no banco de couro verde usando sobretudo e chapéu novos, ouvia os discursos dos parlamentares e, de vez em quando, erguia os olhos para a galeria da qual tinha sido enxotada mais de sete anos antes. Frequentava o saguão reservado aos membros da Câmara dos Comuns e votava com os membros do gabinete, socialistas famosos que costumava admirar à distância: Arthur Henderson, Philip Snowden, Sidney Webb e o próprio primeiro-ministro. Tinha sua própria mesa em uma sala que dividia com outras parlamentares mulheres. Fazia pesquisas na biblioteca, comia torradas amanteigadas no salão de chá e buscava sacolas de correspondência endereçadas a ela. Andava pelo prédio imenso, familiarizando-se com a geografia dele, tentando se convencer de que tinha o direito de estar ali.

Um belo dia, no final de janeiro, ela levou Lloyd para lhe mostrar o palácio. O menino já estava com quase nove anos, e nunca havia entrado em uma construção tão grande e luxuosa. Sua mãe tentou lhe explicar os princípios da democracia, mas ele ainda era jovem demais.

Em uma escada estreita, forrada de tapete vermelho, na divisa entre a área dos Lordes e a dos Comuns, os dois toparam com Fitz, que também trazia um jovem visitante: seu filho George, cujo apelido era Boy.

Ethel e Lloyd estavam subindo, enquanto Fitz e Boy desciam, e eles se encontraram em um patamar intermediário da escada.

Fitz a encarou como se esperasse que ela lhe desse passagem.

Os dois filhos de Fitz, Boy e Lloyd, o herdeiro do título e o filho ilegítimo jamais reconhecido, tinham a mesma idade. Eles se entreolharam com grande interesse.

Ethel se lembrou de que, em Tŷ Gwyn, sempre que cruzava com Fitz no corredor tinha que se afastar para o lado e recostar-se contra a parede, baixando os olhos quando ele passava.

Agora, no entanto, ela ficou bem no meio do patamar da escada, segurando a mão de Lloyd com força, sem desgrudar os olhos de Fitz.

– Bom dia, lorde Fitzherbert – falou, erguendo o queixo com insolência.

Fitz a encarou de volta. Sua expressão traía um ressentimento furioso. Por fim, ele falou:

– Bom dia, Sra. Leckwith.

Ela olhou para Boy.

– E você deve ser o visconde de Aberowen – disse. – Como vai?

– Como vai, senhora? – respondeu o menino, educado.

Ela então se dirigiu a Fitz:

– E este aqui é meu filho, Lloyd.

Fitz se recusou a olhar para o menino.

Ethel não deixaria Fitz se safar tão fácil.

– Aperte a mão do conde, Lloyd.

Lloyd estendeu a mão e disse:

– Muito prazer, conde.

Teria sido indecoroso esnobar um menino de nove anos. Fitz foi obrigado a cumprimentá-lo.

Pela primeira vez na vida tocava o próprio filho.

– Tenham um bom dia – falou Ethel, encerrando a conversa, e deu um passo à frente.

A expressão de Fitz era de ira. Relutante, ele se afastou para o lado junto com o filho, e os dois aguardaram, de costas para a parede, enquanto Ethel e Lloyd passavam e continuavam a subir a escada.

 

Personagens históricos

Este livro possui vários personagens históricos, e os leitores às vezes me perguntam como eu estabeleço o limite entre história e ficção. É uma pergunta pertinente, e aqui está a resposta.

Em alguns casos, como, por exemplo, no discurso de Sir Edward Grey diante da Câmara dos Comuns, meus personagens fictícios estão presenciando um fato que realmente ocorreu. O que Sir Edward diz neste romance corresponde às atas do Parlamento, com a ressalva de que eu resumi o pronunciamento sem, assim espero, ter omitido nada importante.

Às vezes, um personagem histórico vai a um lugar fictício, como quando Winston Churchill visita Tŷ Gwyn. Nesse caso, eu verifiquei que Churchill tinha de fato o hábito de visitar casas de campo e que poderia tê-lo feito por volta da data em questão.

Nos momentos em que figuras históricas têm conversas com meus personagens fictícios, em geral estão dizendo coisas que realmente disseram em algum momento. Quando Lloyd George explica para Fitz por que prefere não deportar Lev Kamenev, o texto se baseia em um memorando escrito por Lloyd George, citado na biografia de Peter Rowland.

Minha regra é: ou a cena de fato aconteceu, ou poderia ter acontecido; ou as palavras foram de fato usadas, ou poderiam ter sido. E, caso eu encontre algum motivo que impossibilite a cena de ter acontecido na vida real, ou as palavras de terem sido ditas – como, por exemplo, se o personagem estivesse em outro país na ocasião –, deixo a passagem de fora.

 

                                                                                Ken Follett  

 

                      

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