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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUEIMADA VIVA / Souad
QUEIMADA VIVA / Souad

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

QUEIMADA VIVA

 

Na sua aldeia da Cisjordânia, como em tantas outras, o amor antes do casamento era sinónimo de morte. Tendo ficado grávida, um cunhado é encarregado de executar a sentença: regá-la com gasolina e chegar-lhe fogo. Terrivelmente queimada, Souad sobrevive por milagre. No hospital, para onde a levam e onde se recusam a tratá-la, a própria mãe tenta assassiná-la.

Hoje, muitos anos depois, Souad decide falar em nome das mulheres que, por motivos idênticos aos seus, ainda arriscam a vida. Para o fazer, para contar ao mundo a barbaridade desta prática, ela corre diariamente sérios perigos, uma vez que o "atentado" à honra da sua família é um "crime" que ainda não prescreveu.

Um testemunho comovente e aterrador, mas também um apelo contra o silêncio que cobre o sofrimento e a morte de milhares de mulheres...

  

                     ENVOLTA EM CHAMAS

Sou uma rapariga, e uma rapariga deve caminhar depressa, com a cabeça inclinada para o chão, como se estivesse a contar os passos. Não deve erguer o olhar nem desviá-lo para a direita ou para a esquerda enquanto caminha, porque se os seus olhos se cruzarem com os de um homem toda a aldeia lhe chamará charmuta.

Se uma vizinha já casada, uma velha ou quem quer que seja a avistar sozinha numa ruela, sem estar acompanhada pela mãe ou pela irmã mais velha, sem as ovelhas, sem um molho de feno ou um carrego de figos, também lhe chamarão charmuta.

Uma rapariga tem de estar casada para poder olhar em frente, entrar na loja do comerciante, depilar-se ou usar jóias.

Quando uma rapariga ainda não casou, a partir dos catorze anos, como a minha mãe, a aldeia começa a troçar dela. Mas, para poder casar, uma rapariga tem de esperar pela sua vez na família. Primeiro a mais velha e depois as outras.

Há muitas raparigas na casa de meu pai. Quatro, todas em idade de casar. Há também duas meias-irmãs, filhas da segunda mulher do nosso pai. Ainda são crianças. O único homem da família, o filho adorado por todos, o nosso irmão Assad, nasceu, triunfalmente, no meio de todas estas raparigas. Foi o quarto. Eu sou a terceira.

O meu pai, Adnan, está desgostoso com a minha mãe, Leila, que lhe deu tantas filhas. Também está descontente com a outra esposa, Aicha, que só lhe deu raparigas.

 

Noura, a mais velha, casou tarde, quando eu tinha cerca de quinze anos. Kainat, a segunda rapariga, não é requestada por ninguém. Ouvi dizer que um homem falou em mim ao meu pai, mas tenho de aguardar o casamento de Kainat antes de poder pensar no meu. Talvez Kainat não seja suficientemente bonita ou seja demasiado lenta no trabalho... Ignoro por que razão ninguém a quer, mas se ficar solteira, será objeto de troça da aldeia, tal como eu.

Não conheci folguedos nem prazeres tanto quanto a minha mente é capaz de se lembrar. Na minha aldeia nascer rapariga é uma maldição. O único sonho de liberdade é o casamento. Abandonar a casa do pai em troca da casa do marido e não voltar nunca mais, mesmo que se seja espancada. Quando uma rapariga casada regressa à casa do pai é uma infâmia. Não deve pedir protecção fora da sua própria casa e é dever da família levá-la de novo para o lar.

A minha irmã foi espancada pelo marido e arrastou consigo a vergonha ao vir queixar-se.

Ela tem sorte em ter um marido. Eu sonho com isso. Desde que ouvi dizer que um homem falou de mim ao meu pai, a impaciência e a curiosidade devoram-me. Sei que o rapaz mora a três ou quatro passos da nossa casa. Às vezes avisto-o do alto do terraço onde estendo a roupa. Sei que tem carro, usa fato completo, anda sempre com uma pasta, deve trabalhar na cidade e ter uma boa profissão porque nunca anda vestido como um operário, mas sempre impecável. Gostava de ver a cara dele mais de perto, mas tenho sempre receio que a família me surpreenda a espreitar. Por isso, quando vou apanhar feno para um carneiro doente no estábulo, sigo num passo rápido pelo caminho na esperança de o ver de perto. Mas ele estaciona o carro demasiado longe. À força de tanto o observar, quase já sei a que horas sai para ir trabalhar. Às sete da manhã, finjo dobrar a roupa no terraço, ou simulo colher um figo maduro ou sacudir os tapetes para, durante menos de um minuto, o ver partir de carro. Tenho de ser rápida para não chamar as atenções.

Subo as escadas, atravesso os quartos para aceder ao terraço, sacudo energicamente um tapete e olho por cima do muro de cimento, com os olhos ligeiramente virados para a direita.

 

Se alguém me estiver a observar de longe, não poderá adivinhar que estou a olhar para a rua.

Às vezes, tenho tempo de o avistar. Estou apaixonada por aquele homem e pelo carro! No meu terraço, imagino imensas coisas: que estou casada com ele e, tal como hoje, vejo o carro afastar-se até deixar de o ver, mas ele regressará do trabalho ao pôr-do-sol. Descalço-lhe os sapatos e, de joelhos, lavo-lhe os pés como a minha mãe faz ao meu pai. Trago-lhe o chá, contemplo-o enquanto fuma o longo cachimbo, sentado como um rei diante da porta da sua casa. Sou uma mulher que tem um marido!

E posso até maquiar-me, sair para ir à loja, entrar no carro com o meu marido e ir à cidade. Suportarei o pior só para ter a liberdade, por que tanto anseio, de transpor sozinha esta porta e ir comprar pão!

Nunca serei uma charmuta. Não olharei para os outros homens, continuarei a caminhar depressa, direita e orgulhosa mas sem contar os passos, de olhos baixos, e a aldeia não poderá dizer mal de mim porque estarei casada.

Foi no cimo desse terraço que começou a minha história terrível. Já era mais velha do que a minha irmã mais velha no dia do seu casamento, e continuava a esperar e a desesperar.

Devia ter dezoito anos ou talvez mais, não sei ao certo.

A minha memória desfez-se em fumo no dia em que o fogo se abateu sobre mim.

 

                   MEMÓRIA

Nasci numa aldeia minúscula. Disseram-me que ficava algures num território jordano, depois transjordano, mais tarde cis-jordano, mas como nunca freqüentei a escola não sei nada da história do meu país. Também me disseram que nasci lá em 1958 ou em 1957... Por isso, tenho hoje cerca de quarenta e cinco anos. Há vinte e cinco anos só falava árabe, nunca me tinha afastado da minha aldeia mais de uns poucos quilômetros da última casa, sabia que havia cidades mais distantes sem nunca as ter visto. Não sabia se a Terra era redonda ou plana, não fazia a menor ideia do mundo! Sabia que tínhamos de detestar os judeus que se tinham apoderado da terra, o meu pai chamava-lhes «porcos». Não devíamos aproximar-nos deles, falar com eles nem tocar-lhes sob pena de nos tornarmos porcos como eles. Devia fazer as minhas orações pelo menos duas vezes por dia, recitava como a minha mãe e as minhas irmãs, mas só soube da existência do Corão muitos anos mais tarde, na Europa. O meu único irmão, o rei da casa, frequentava a escola, mas as raparigas não. Nascer rapariga na minha terra é uma maldição. Uma esposa deve antes de mais fazer um filho, pelo menos um, e se só tiver raparigas, fazem troça dela. Bastam duas ou três raparigas no máximo para as lidas da casa, para tratarem da terra e do gado. Se vierem mais, é uma grande desgraça de que convém desembaraçar-se o mais depressa possível. Aprendi muito depressa como é que se desembaraçam delas. Vivi assim mais ou menos até à idade dos dezessete anos, sem saber outra coisa para além de que, pelo fato de ser uma rapariga, era menos do que um animal.

Foi a minha primeira vida, a de uma mulher árabe na Cisjordânia. Durou vinte anos e ali morri. Morri física e socialmente para sempre.

A minha segunda vida começa na Europa em finais da década de 1970, num aeroporto internacional. Sou um farrapo humano, doente, deitada numa maca. Exalo um tal cheiro a morte que os passageiros do avião que me transportou protestaram. Apesar de dissimulada atrás de uma cortina, a minha presença era-lhes insuportável. Dizem-me que vou viver, mas sei muito bem que não e espero a morte. Chego a suplicar-lhe que me leve. A morte é preferível ao sofrimento e à humilhação. Do meu corpo não resta nada. Por que razão insistem em que eu viva quando o que eu desejo é deixar de existir, em corpo e em espírito ?

Ainda hoje, acontece-me pensar nisso. É verdade que teria preferido morrer do que ter de enfrentar esta segunda vida que me era oferecida tão generosamente. Sobreviver, no meu caso, é um milagre. Permite-me agora testemunhar em nome de todas as que não tiveram essa oportunidade, que continuam a morrer nos dias de hoje por uma única razão: serem mulheres.

Aprendi francês ao ouvir as pessoas a falar e esforçando-me por repetir as palavras que me explicavam através de sinais: «Mal? Menos mal? Comer? Beber? Dormir? Andar?». Eu respondia por gestos «sim» ou «não».

Muito mais tarde, aprendi a ler as palavras num jornal, pacientemente e dia após dia. Ao princípio só conseguia decifrar pequenos anúncios, notícias de óbitos, frases curtas com poucas palavras que repetia foneticamente. Por vezes tinha a impressão de ser um animal a quem ensinavam a comunicar como um ser humano, ao mesmo tempo que na minha cabeça, em língua árabe, me interrogava onde estava, em que país e por que não estava morta na minha aldeia. Sentia vergonha por ainda estar viva, mas ninguém sabia. Tinha medo desta vida e ninguém compreendia isso.

Devia dizer tudo isso antes de tentar reunir os pedaços da minha memória, porque queria que as minhas palavras ficassem registradas num livro.

A minha memória está cheia de lacunas.

 

A primeira parte da minha existência é constituída por imagens, por cenas estranhas e violentas como num filme na televisão. Sucede-me eu própria não acreditar nelas, tanto mais que tenho muita dificuldade em ordená-las. É possível, por exemplo, esquecer o nome de uma das nossas irmãs? A idade do irmão no dia em que casou? E, por outro lado, não esqueci as cabras, as ovelhas, as vacas, o forno de pão, a barrela no quintal, a colheita das couves-flor, das courgettes, dos tomates e dos figos... o estábulo e a cozinha... os sacos de trigo e as serpentes? O terraço donde espiava o meu apaixonado? A seara de trigo onde cometi o «pecado»?

No entanto, lembro-me mal da minha primeira infância. Às vezes, uma cor ou um objeto impressiona-me e então evoco uma imagem, uma personagem, gritos, rostos que se confundem. Muitas vezes, quando me fazem uma pergunta, um vazio definitivo instala-se-me na cabeça. Procuro desesperadamente a resposta, mas ela não chega. Ou ocorre-me de súbito uma outra imagem e ignoro a que é que corresponde. No entanto essas imagens estão impressas na minha cabeça e jamais as esquecerei. Não podemos esquecer a nossa própria morte.

Chamo-me Souad, sou uma criança cisjordana e, com a minha irmã, trato dos carneiros e das cabras porque o meu pai possui um rebanho e trabalho mais do que um burro.

Tive de começar a trabalhar por volta dos oito ou nove anos e vi o sangue das regras cerca dos dez. Na nossa terra, diz-se que uma rapariga está «madura» quando isso acontece. Eu sentia vergonha desse sangue porque era necessário dissimulá-lo, mesmo da vista da minha mãe, lavar às escondidas o meu saroual, deixá-lo limpo e secá-lo rapidamente ao sol para os homens e os vizinhos não o verem. Eu só tinha dois sarouals. Lembro-me do papel que servia de proteção nesses dias malditos, em que somos consideradas empestadas. Costumava esconder o sinal da minha impureza no caixote do lixo. Quando tinha dores no ventre, a minha mãe fervia folhas de salva que me dava a beber. Envolvia-me a cabeça com um lenço muito apertado e no dia seguinte já não tinha dores. É o único medicamento de que me lembro e que uso ainda hoje por ser muito eficaz.

 

Logo de manhã cedo, vou ao estábulo, assobio com os dedos para reunir os carneiros à minha volta e parto com a minha irmã Kainat, cerca de um ano mais velha. As raparigas não devem sair sozinhas nem com uma irmã mais nova. A mais velha serve de garantia à mais pequena. A minha irmã Kainat é gentil, roliça, um tanto gorda, ao passo que eu sou pequena e magra, e entendíamo-nos bem.

Costumávamos sair as duas em direcção ao prado com os carneiros e as cabras, a um quarto de hora de marcha da aldeia, caminhando depressa, de olhos baixos até à última casa. Uma vez no prado, éramos livres de contar disparates uma à outra e até de rir um pouco. Não me lembro de termos tido grandes conversas. Lembro-me sobretudo de comermos queijo, de nos regalarmos com uma melancia, de vigiarmos os carneiros e sobretudo as cabras capazes de devorar todas as folhas de uma figueira em poucos minutos. Quando os carneiros se reuniam em círculo para dormir, nós também adormecíamos, à sombra, correndo o risco de deixar que um dos animais se extraviasse num campo vizinho e sofrer as conseqüências no regresso. Se o animal tivesse invadido uma horta, ou se chegássemos uns minutos atrasadas ao estábulo, apanhávamos uma sova com o cinto.

Para mim, a nossa aldeia é muito bonita e muito verde. Há muitos figos, uvas, fruta, limões, e imensas oliveiras. O meu pai possui metade das parcelas cultivadas da aldeia só para ele... Não é muito rico, mas vive bem. A casa é grande, de pedra, cercada por um muro com uma grande porta cinzenta de ferro. Essa porta é o símbolo da nossa clausura. Uma vez no interior, fecha-se atrás de nós para nos impedir de sair. Podemos, pois, entrar por essa porta quando vimos do exterior, mas não podemos sair. Existe uma chave? Um mecanismo automático? Lembro-me que o meu pai e a minha mãe saíam, mas nós não. Pelo contrário, o meu irmão é livre. E livre como o vento: vai ao cinema, sai, entra por essa porta, faz o que quer. Ficava a olhar muitas vezes para aquela maldita porta de ferro e a pensar: «Nunca poderei sair por ali, nunca...»

Não conheço muito bem a aldeia, porque não estamos autorizadas a sair. Se fechar os olhos para me concentrar e com muito esforço, posso dizer aquilo que vi. Há a casa dos meus pais, depois aquela a que eu chamo a casa da gente rica um pouco mais longe, do mesmo lado.

 

Defronte, a casa do meu apaixonado. Atravessa-se a passagem e lá está ela, vejo-a do terraço. Vejo também algumas casas dispersas, mas não sei dizer quantas, muito poucas em todo o caso. Estão cercadas por muros baixos ou por gradeamentos de ferro e as pessoas têm quintais como nós. Nunca visitei a aldeia toda. Só saio de casa para ir ao mercado com o meu pai e a minha mãe ou para o prado com a minha irmã e os carneiros. É tudo.

Até ter dezessete ou dezoito anos de idade, foi tudo o que vi. Não entrei uma única vez no armazém da aldeia, perto de casa, mas, ao passar na camioneta do meu pai para ir ao mercado, vejo sempre o comerciante de pé à porta, a fumar os seus cigarros. Há duas pequenas escadas diante da loja: à direita, as pessoas vão comprar cigarros, jornais e bebidas, mas só os homens; à esquerda, há legumes e fruta.

Há também outra casa do mesmo lado do caminho, onde vive uma mulher casada com quatro filhos, mas ela tem o direito de sair. Pode entrar no armazém, vejo-a em pé nos degraus do lado dos legumes, com sacos de plástico transparentes.

Havia muito terreno à volta da casa. Tínhamos plantado courgettes, abóboras, couves-flor e tomates, imensos legumes. O nosso quintal confinava com o da casa vizinha, separados apenas por um muro baixo que era possível saltar, mas nenhuma de nós o fazia. A clausura era normal. Não passava pela cabeça de uma rapariga da casa transpor aquela barreira simbólica. Para ir onde? Uma vez na aldeia, no caminho, uma rapariga sozinha seria rapidamente assinalada, e a sua reputação e a honra da família destruídas.

Eu fazia a barrela nesse quintal. Havia um poço num dos cantos e costumava aquecer a água numa bacia sobre uma fogueira. Ia buscar uma braçada de lenha ao depósito, partia os ramos com a ajuda do joelho, e demorava algum tempo a aquecer a água... um momento agradável. Ia fazendo outras coisas enquanto esperava, varria, lavava o chão, tratava dos legumes da horta. Depois lavava a roupa à mão e ia estendê-la ao sol no terraço.

A casa era moderna, muito confortável, mas não tínhamos água quente no interior para as lavagens e para a cozinha. Era necessário aquecê-la lá fora e transportá-la para dentro. Mais tarde, o meu pai mandou instalar água quente e encomendou uma banheira com chuveiro. Todas as raparigas se serviam da mesma água para se lavarem, apenas o meu irmão tinha direito a água só para ele e, claro, o meu pai.

À noite, eu dormia com as minhas irmãs, no chão, em cima de uma pele de carneiro. Quando o calor apertava, dormíamos nos terraços, alinhadas sob a lua. As raparigas ficavam deitadas umas ao lado das outras, num canto. Os pais e o meu irmão, noutro.

O dia de trabalho começava cedo. Por volta das quatro da manhã, ao nascer do sol quando não era antes, o meu pai e a minha mãe levantavam-se. Na época do trigo, levávamos de comer conosco, e estávamos todos, o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. Na época dos figos, também saíamos bastante cedo. Era preciso colhê-los um a um, sem esquecer nenhum, metê-los em caixas, que o meu pai levava ao mercado. Tínhamos uma boa meia hora de caminho com o burro até chegarmos a uma pequena cidade, na verdade muito pequena, cujo nome esqueci, se é que o soube alguma vez... Metade do mercado, à entrada da cidade, era reservada à produção do meu pai e alguns comerciantes ocupavam-se da venda. Para comprar roupa, tínhamos que ir a uma cidade maior e ir de carro. Mas as raparigas nunca iam. A minha mãe ia até lá com o meu pai. Era assim: ela compra com o meu pai e dá um vestido às filhas. Quer se goste quer não, temos de o usar. Nem as minhas irmãs, nem eu, nem sequer a minha mãe tínhamos uma palavra a dizer. Ou era assim ou nada.

Portanto, os nossos vestidos eram compridos, de mangas curtas, de um tipo de algodão cinzento, às vezes branco, muito raramente preto, um tecido muito quente e que picava a pele. A gola era bastante alta e fechada. Mas éramos obrigadas a usar mais uma camisa ou um colete consoante a estação, de mangas compridas. Muitas vezes o calor era sufocante, mas as mangas eram obrigatórias. Mostrar uma nesga de braço ou de perna, e pior ainda um bocadinho do decote, era uma vergonha. Andávamos sempre descalças, nunca usávamos calçado, salvo às vezes as mulheres casadas. Eu usava um saroual por baixo do vestido comprido e abotoado até ao pescoço. O saroual consiste numas calças cinzentas ou brancas, muito tufadas, e por baixo ainda umas cuecas grandes como calções até à cintura. Todas as minhas irmãs se vestiam da mesma maneira.

A minha mãe vestia muitas vezes de negro. O meu pai usava um saroual branco, uma camisa comprida e na cabeça o lenço vermelho e branco dos Palestinos.

O meu pai! Recordo-o sentado defronte de casa, no chão, debaixo de uma árvore, com a bengala ao pé. É pequeno, tem a pele muito branca com manchas ruças, a cabeça redonda e olhos azuis muito perversos. Certo dia partiu uma perna ao cair do cavalo e as filhas ficaram muito contentes porque não podia correr tanto atrás de nós para nos bater com o cinto. Se tivesse morrido, teríamos ficado ainda mais satisfeitas.

Lembro-me muito bem dele, do meu pai. A ele não o poderei esquecer nunca, como se estivesse fotografado no meu cérebro. Está sentado diante de casa, como um rei diante do palácio, com o lenço vermelho e branco que dissimula o crânio ruço e calvo, com o cinto posto e tem a bengala apoiada na perna dobrada. Lembro-me muito bem dele, ali, pequenino e mau, tira o cinto... e berra: «Como é que os carneiros regressam sozinhos!»

Agarra-me pelos cabelos e arrasta-me pelo chão até à cozinha. Bate-me enquanto estou de joelhos, puxa-me pela trança como se a quisesse arrancar e corta-a com as enormes tesouras da tosquia. Já não tenho cabelos. Posso chorar, gritar ou suplicar, que só servirá para receber ainda mais pontapés. A culpa é minha.

Adormeci com a minha irmã porque estava muito calor e deixei que os carneiros debandassem. Ele bate-nos com tanta força com a bengala que, às vezes, já nem consigo deitar-me, nem para a esquerda nem para a direita, por causa das dores. Com o cinto ou com a bengala, creio que éramos espancadas todos os dias. Um dia sem pancada não era normal.

Talvez tenha sido dessa vez que ele nos atou às duas, a mim e a Kainat, com as mãos atrás das costas, as pernas atadas, um lenço a tapar-nos a boca para nos impedir de gritar. Ficamos assim durante toda a noite, presas a uma estaca no imenso estábulo, junto dos animais, mas pior do que animais.

A lei dos homens era assim naquela aldeia. As raparigas e as mulheres eram com toda a certeza espancadas todos os dias nas outras casas. Ouvíamos gritos aqui e ali, por isso era normal ser espancada, ter os cabelos rapados e ficar presa a uma estaca no estábulo. Não havia outra forma de vida.

O meu pai era o rei, o senhor todo-poderoso, aquele que possui, que decide, que bate e nos tortura. E fuma tranqüilamente o seu cachimbo diante da sua casa, com as suas mulheres fechadas, a quem trata pior que ao gado. O homem arranja uma mulher para ter filhos, para lhe servir de escrava como as filhas que vierem, se tiver a infelicidade de as ter.

Pensava muitas vezes ao olhar para o meu irmão, que toda a família adorava tal como eu o adorava: «Que é que ele tem a mais? Saiu do mesmo ventre que eu...» E não encontrava resposta. Era assim. Devíamos servi-lo como ao meu pai, de rastos e de cabeça baixa.

Recordo a bandeja do chá, até essa bandeja de chá temos de a levar aos homens da família, de rojo, contando os passos, de dorso vergado e em silêncio. Não se fala. Não se responde às perguntas. Ao meio-dia, é o arroz açucarado, legumes com frango ou carneiro. E sempre pão. Há sempre que comer, à família não falta nada às refeições.

Há muita fruta. As uvas, basta-me colhê-las no terraço. Há laranjas, bananas e, sobretudo, figos pretos e verdes. De manhã, quando os vamos colher muito cedo, é uma recordação que jamais esquecerei. Abriram um pouco com o frio da noite e escorrem como mel, a mais pura das iguarias.

O trabalho mais pesado são os carneiros. Sair com os carneiros, levá-los para o campo, vigiá-los, trazê-los de volta, tosquiar a lã que o meu pai vai levar ao mercado para ser vendida. Seguro o carneiro pelas patas, deito-o por terra, prendo-o e tosquio-o com as enormes tesouras de lã, demasiado grandes para as minhas mãos, que ficam a doer muito passados instantes.

E ordenho as ovelhas, sentada no chão. Seguro-lhes as patas entre as pernas e munjo o leite para fazer queijos. Também deixamos arrefecer o leite e bebemo-lo ao natural, gordo e alimentício.

Na casa de meu pai, o quintal dá-nos quase tudo de que precisamos para comer. E fazemos tudo sozinhas. O meu pai só tem de comprar açúcar, sal e chá.

De manhã, preparo o chá para as raparigas, deito um pouco de azeite num prato, com azeitonas ao lado, e aqueço a água numa bacia sobre as brasas do forno de pão. A um canto da cozinha, no chão, está um saco de pano bege com chá verde seco. Enfio a mão no saco, retiro um punhado que meto na chaleira, acrescento o açúcar e vou buscar a vasilha a ferver ao quintal. É pesada e custa-me transportá-la pelas duas asas. Com as costas arqueadas para não me queimar, volto a entrar na cozinha e despejo a água na chaleira, lentamente, sobre o chá e o açúcar. O açúcar é precioso e caro. Sei que se deixar cair uns grãos no chão, serei espancada. Por isso, sou cuidadosa. Se for desastrada, não devo varrê-lo, mas apanhá-lo e deitá-lo na chaleira. Em seguida, as minhas irmãs vêm comer, mas o pai, a mãe e o irmão nunca estão conosco. Nessa imagem do chá tomado de manhã, sentada no chão da cozinha, vejo sempre e apenas as irmãs. Tento imaginar que idade tinha, mas é difícil. A mais velha, Noura, será que ainda não está casada?

Sou incapaz de ordenar as minhas recordações em função da idade, penso que a minha memória tem um defasamento de um ou dois anos, mais segura no momento do casamento de Noura. Calculo que tinha cerca de quinze anos nessa altura.

Permanecem então em casa a minha irmã Kainat, um ano mais velha do que eu e que não casou, e uma outra irmã mais nova de cujo nome não me recordo. Por mais que me esforce, não consigo lembrar-me do seu nome. Sou forçada a dar-lhe um nome para falar dela, pelo que lhe chamarei Hanan, mas que ela me perdoe, pois não é certamente o verdadeiro. Sei que tratava das duas meias-irmãs que o meu pai trouxe para casa depois de ter abandonado a segunda esposa, Aicha. Conheci essa mulher e não a detestava. Que o meu pai tivesse tomado uma segunda esposa era normal. Sempre desejou ter filhos varões, mas também não funcionou com Aicha, que só lhe deu duas filhas, mais raparigas! Então, não quis saber mais dela e levou as duas novas irmãzitas para casa. Era normal. Tudo era normal naquela vida, incluindo as bengaladas e o resto. Eu não conseguia imaginar outro tipo de vida. Aliás, não imaginava o que quer que fosse. Acho que na minha cabeça não havia sonhos nem pensamentos precisos. Não tínhamos nenhum brinquedo, nenhum jogo, apenas obediência e submissão.

Em todo o caso, as duas filhas pequenas do meu pai vivem agora connosco. Hanan continua em casa para tomar conta delas, disso tenho a certeza. Mas infelizmente também esqueci os nomes delas. Chamo-lhes sempre «as irmãzinhas»... Nas minhas primeiras reminiscências, elas têm cerca de cinco ou seis anos e ainda não trabalham. Estão a cargo de Hanan que raramente sai de casa, salvo em caso de necessidade, para a colheita dos legumes na estação própria.

Em nossa casa as crianças nascem com um ano de intervalo. A minha mãe casou aos catorze anos, o meu pai era muito mais velho do que ela. Ela teve muitos filhos. Catorze no total. Sobreviveram cinco. Durante muito tempo não compreendi o que significava ter catorze filhos. Um dia, o pai da minha mãe falava disso enquanto eu servia o chá. A frase ainda hoje ressoa nos meus ouvidos: «Felizmente que casaste jovem, pudeste fazer catorze filhos... e foi bom teres tido um rapaz!»

Apesar de não andar na escola, sabia contar os carneiros. Por isso podia contar pelos dedos que éramos só cinco que tínhamos saído do ventre da minha mãe: Noura, Kainat, eu Souad, Assad e Hanan. Onde estavam os outros? A minha mãe nunca dizia que tinham morrido, mas era um fato aceite na sua expressão habitual: ! «Tenho catorze filhos, dos quais sete vivos.» Partindo do princípio que ela conta com as meias-irmãs, uma vez que nunca dizíamos meias-irmãs e sim «irmãs»... Éramos efetivamente sete... Faltavam, por conseguinte, outros sete? Admitindo que ela não conta com as mais pequenas, faltavam nove?

Certo dia, porém, percebi porque é que éramos só sete em casa, ou cinco...

Não sei dizer com que idade, mas ainda não era «madura», pelo que tinha menos de dez anos. Noura, a mais velha, está comigo. Esqueci muitas coisas, mas não o que vi com os meus olhos, aterrorizada, apesar de não compreender que era um crime.

Vejo a minha mãe deitada no chão em cima de uma pele de carneiro. Está a parir e a minha tia Salima está ao pé dela, sentada numa almofada. Ouço os gritos, os da minha mãe e os do bebê, e de repente a minha mãe pega na pele de carneiro e sufoca o bebê. Ela está de joelhos, vejo o bebê agitar-se debaixo da coberta e depois acabou. Não sei o que se passa em seguida, já não há bebê, é só isso, e um medo terrível entorpece-me.

Era uma menina que a minha mãe sufocava à nascença. Vi-a fazê-lo uma primeira vez, depois uma segunda vez, não tenho a certeza de ter assistido à terceira, mas soube. Também ouço a minha irmã mais velha, Noura, dizer à minha mãe: «Se eu tiver filhas, faço como tu...»

 

Foi então assim que a minha mãe se desembaraçou das cinco ou sete filhas que teve para além de nós, manifestamente depois de Hanan, a última sobrevivente. Era uma coisa aceite, normal, que não levantava problemas a ninguém. Nem mesmo a mim, pelo menos assim pensei da primeira vez, apesar de ter tido tanto medo.

Aquelas meninas que a minha mãe matava eram um pouco eu própria. Comecei a esconder-me para chorar de cada vez que o meu pai matava um carneiro ou um frango, porque temia pela minha vida. A morte de um animal, como a morte de um bebê, tão simples e tão banal para os meus pais, desencadeava o pavor de também eu desaparecer como eles, com a mesma simplicidade e rapidez. Dizia para mim: «Um dia vai ser a minha vez, ou da minha irmã, eles podem matar-nos quando quiserem. Grande ou pequena, não faz diferença. Já que nos dão a vida, têm o direito de a fazer desaparecer.»

Na minha aldeia, enquanto se vive em casa dos pais, o medo da morte está sempre presente. Receio subir a uma escada quando o meu pai está por baixo. Tenho medo do machado que serve para cortar a lenha, tenho medo do poço quando lá vou buscar água. Tenho medo quando o meu pai vigia o regresso dos carneiros ao curral, conosco. Tenho medo dos ruídos de portas a meio da noite, de me sentir sufocar sob a pele de carneiro que me serve de leito.

Às vezes, ao regressarmos do prado com os animais, eu e Kainat falamos disso:

- E se estiverem todos mortos quando entrarmos em casa... ? E se o pai tiver matado a mãe? Basta uma pedrada! O que é que fazemos?

- Eu rezo sempre que vou buscar água ao poço, que é fundo. Penso que se me atirarem lá para dentro ninguém saberá onde é que eu paro! Podes morrer lá no fundo que ninguém te irá procurar.

Esse poço era o meu grande pavor. E sentia que era também o terror da minha mãe. Também tinha medo dos barrancos, quando conduzia as cabras e os carneiros. Olhava à minha volta, à ideia de que o meu pai podia estar escondido em qualquer parte e que me ia empurrar para o vazio. Para ele seria fácil e, lá no fundo da ravina, eu estaria morta.

 

Podiam até empilhar algumas pedras sobre o meu corpo, eu jazia na terra e aí permaneceria.

A eventual morte da nossa mãe preocupava-nos mais do que a morte de uma irmã. Irmãs, há outras... Ela era espancada muitas vezes como nós. Às vezes, tentava defender-nos quando ele batia com demasiada violência e então ele agredia-a, atirava-a ao chão, arrastava-a pelos cabelos... A nossa vida quotidiana era uma morte possível, dia após dia. Podia chegar por um nada, de surpresa, simplesmente porque o pai assim decidira. Do mesmo modo como a minha mãe decidia sufocar as filhas recém-nascidas.

Estava grávida, depois deixava de estar, ninguém fazia perguntas. Nós não tínhamos qualquer contacto com as outras raparigas da aldeia. Apenas trocávamos os bons-dias e um adeus. Nunca nos juntávamos, a não ser nos casamentos. E as conversas eram banais. Falava-se de comida, faziam-se comentários acerca da noiva, sobre outras raparigas que achávamos bonitas ou feias... de uma mulher que tinha sorte porque estava maquiada.

- Repara naquela, tem as sobrancelhas depiladas...

- Tem um belo corte de cabelo.

- Olha aquela, tem sapatos calçados!

Era a rapariga mais rica da aldeia, usava babuchas bordadas. Nós íamos descalças para os campos, espetávamos espinhos nos pés e tínhamos de nos sentar no chão para os arrancarmos. A minha mãe não tinha sapatos e a minha irmã Noura casara descalça. Eram, no essencial, as poucas frases trocadas nos casamentos e eu só assisti a duas ou três cerimônias.

Era impensável uma mulher queixar-se de ser espancada, porque era normal. Não se falava de bebês vivos ou mortos, a menos que uma mulher acabasse de dar à luz um rapaz. Se esse filho sobrevivesse, glória a ela e à família. Se morresse, choravam-no, era a desgraça para ela e para a família. Contam-se os machos, mas não as fêmeas.

Não sei o que era feito das raparigas recém-nascidas depois de terem sido asfixiadas pela minha mãe. Iam enterrá-las em qualquer parte? Davam-nas a comer aos cães?... A minha mãe vestia-se de negro e o meu pai também. Cada nascimento de uma rapariga equivalia a um enterro na família. A culpa era sempre da mãe se só dava à luz raparigas.

O meu pai pensava assim, tal como toda a aldeia.

Na minha aldeia, se os homens tivessem de escolher entre uma rapariga e uma vaca escolhiam a vaca. O meu pai não se cansava de repetir que nós não servíamos para nada: «Uma vaca dá leite e vitelos. O que é que se faz com o leite e os vitelos? Vendem-se. Traz-se dinheiro para casa, o que significa que uma vaca presta serviços à família. E uma rapariga? Que serviços é que presta à família? Nenhum. Os carneiros, o que é que eles dão à casa? A lã. Vende-se a lã e traz-se dinheiro para casa. A ovelha cresce, dá outros cordeiros, mais leite, fazemos queijos, vendem-se e traz-se dinheiro para casa. Uma vaca ou um carneiro valem mais do que uma rapariga.»

Nós, as raparigas, estávamos convencidas que assim era. Aliás, as vacas, as ovelhas, as cabras eram muito mais bem tratadas do que nós. Nunca batiam às vacas ou às ovelhas!

E estávamos igualmente convencidas de que uma rapariga é um problema para o pai, sempre com medo de não a casar. Depois de casada, é a desgraça e a vergonha se ela deixar o marido que a maltrata e se atrever a voltar para casa dos pais. Enquanto não se casa, o pai receia que fique solteira, porque a aldeia vai falar, o que é dramático para toda a família. Se uma solteirona caminhar na rua com o pai e a mãe toda a gente olha para ela e troça dela. Se tiver mais de vinte anos e continuar em casa dos pais, não é normal. Todos aceitam a regra do casamento da mais velha e das seguintes por ordem de idade. Mas a partir dos vinte anos... ninguém aceita o que quer que seja. Ignoro como era nas outras cidades do meu país, mas na minha aldeia era assim.

Quando eu desapareci da minha aldeia, a minha mãe devia ter menos de quarenta anos. Tinha dado à luz doze ou catorze filhos. Restavam-lhe cinco ou sete. Tinha asfixiado os outros? Não era importante. Era muito simplesmente «normal».

 

                   HANAN

Havia o medo da morte e a porta de ferro, fechada sobre a nossa existência de raparigas sobreviventes e submissas. O meu irmão Assad ia, de pasta, para a escola. O meu irmão Assad montava a cavalo e dava passeios. O meu irmão Assad não comia conosco. Crescia como deve crescer um homem, livre e orgulhoso, servido como um príncipe pelas raparigas da casa. E eu adorava-o como um príncipe. Aquecia-lhe a água do banho quando ainda era pequeno, lavava-lhe a cabeça, zelava por ele como um tesouro inestimável. Não sabia nada da sua vida fora de casa, ignorava o que aprendia na escola, o que via e fazia na cidade. Esperávamos que chegasse à idade de casar: o casamento é a única coisa importante numa família, além do nascimento de um filho!

Assad era belo. Éramos tão próximos um do outro quanto era possível sê-lo na minha família, quando ele era criança. O fato de ter um ano de diferença, de ser a mais velha a seguir a ele deu-me durante algum tempo a oportunidade de estar a seu lado. Não me lembro de ter brincado com ele como brincam as crianças dessa idade na Europa. Aos catorze ou quinze anos, era já um homem e escapou-me. Creio que se casou muito cedo, provavelmente por volta dos dezessete anos. Tornou-se violento. O meu pai odiava-o. Desconheço a razão... Talvez fossem demasiado parecidos. Temia ver-se despojado do seu poder por um filho agora adulto. Ignoro a origem daquela cólera entre eles, mas um dia vi o meu pai pegar num cesto, despejar o que tinha dentro para o encher de pedras, subir ao terraço e atirá-lo à cabeça de Assad como se o quisesse matar.

Quando casou, Assad foi viver com a esposa para uma parte da casa. Encostou um armário contra a porta de comunicação para impedir o meu pai de entrar em casa dele. Não tardei a compreender que a violência entre os homens da minha aldeia vem desde tempos longínquos. O pai transmite-a ao filho que, por sua vez, a transmite até ao infinito.

Há vinte cinco anos que não vejo a minha família, mas se por um acaso extraordinário voltasse a encontrar o meu irmão, gostava de lhe fazer uma única pergunta: «Onde está a irmã desaparecida a quem chamo Hanan»

Hanan... Recordo-a muito morena. Uma bela rapariga, mais bonita do que eu, com uma farta cabeleira e fisicamente mais amadurecida. Lembro-me de que Kainat era doce e afável, talvez demasiado gorda, e que Hanan tinha um caráter diferente, um tanto brusco, menos submissa do que nós. Umas sobrancelhas muito espessas que se unem por cima dos olhos. Não é gorda, mas nota-se que poderá vir a ser forte, um tanto roliça. Não é franzina como eu. Quando nos vem ajudar no varejo das azeitonas, trabalha devagar, move-se com lentidão. Não era hábito na família: caminhávamos depressa, trabalhávamos ligeiras, corríamos para obedecer às ordens, para sair com os animais ou para os trazer de volta. Ela não era muito ativa, era sonhadora e nunca prestava muita atenção ao que lhe diziam. Quando íamos para a apanha da azeitona, por exemplo, já a mim me doíam as pontas dos dedos por ter enchido uma bacia inteira e ainda ela não tinha coberto o fundo da dela. Então, eu dava meia-volta para a ajudar. Se ela fosse a última das últimas, ia ter aborrecimentos com o meu pai. Vejo-nos em fileira no olival. Avançamos de cócoras e em linha ao ritmo da apanha. O gesto tem de ser rápido. Quando a mão está cheia deitamos as azeitonas na bacia e vamos avançando até as azeitonas quase transbordarem. Nessa altura, vamos despejá-las nos grandes sacos de tela. De cada vez que volto para o meu lugar, vejo Hanan sempre atrás, os gestos lentos, como que ao retardador. É realmente muito diferente das outras e não me lembro de falar com ela, de me ocupar dela em especial, a não ser para a ajudar na apanha das azeitonas quando era preciso. Ou para entrançar os cabelos muito espessos numa trança grossa, como ela fazia comigo. Não a vejo conosco no estábulo, não a vejo a mungir as vacas nem a tosquiar a lã dos carneiros... mas antes na cozinha a ajudar a minha mãe. Talvez seja por isso que quase se desvaneceu da minha memória. E no entanto conto e volto a contar, tentando ordená-las por data de nascimento: Noura, Kainat, Souad, Assad e...? A minha quarta irmã deixou de existir, olvidei até o seu nome próprio. Aconteceu-me mesmo já não saber quem tinha nascido antes de quem. Tinha a certeza em relação a Noura, em relação a Assad, mas ainda hoje faço confusões entre Kainat e eu. Quanto àquela a quem chamo Hanan, o pior para mim é que durante anos nem sequer me afligi com o seu desaparecimento.

«Esqueci-a» profundamente, como se um portão de ferro se fechasse sobre essa irmã do meu sangue, tornando-a totalmente invisível ao olhar da minha memória já de si tão confusa.

Há algum tempo, porém, uma imagem surgiu brutalmente e uma visão atroz impôs-se ao meu espírito. Alguém, numa reunião de mulheres, me mostrou a fotografia de uma rapariga morta, deitada no chão, estrangulada por um cordão preto, um fio de telefone. Tive a impressão de já ter visto algo semelhante. Aquela fotografia causava-me uma sensação de mal-estar, não só por se tratar de uma desgraçada rapariga assassinada, mas porque era como se no meio do nevoeiro tentasse «ver» algo que tinha a ver comigo. E no dia seguinte, de forma bizarra, a minha memória despertou de súbito. Eu estava lá! Tinha visto! Sabia quando é que a minha irmã Hanan tinha desaparecido!

Desde então, vivo com esse novo pesadelo no espírito, que me deixa doente. Cada recordação precisa, cada cena da minha existência passada que surge brutalmente, ao acaso, deixa-me doente. Queria esquecer por completo todas essas coisas horríveis e, ao longo de mais de vinte anos, conseguira-o inconscientemente. No entanto, para dar testemunho da minha vida de criança e de mulher no meu país, sou forçada a mergulhar no meu cérebro como no fundo do poço que outrora me aterrorizava tanto. E todos esses fragmentos do meu passado que emergem à superfície parecem-me agora de tal modo horríveis que tenho dificuldade em lhes dar crédito. Sucede-me às vezes, quando estou sozinha, fazer a mim mesma esta pergunta, em voz alta: «Terei vivido estas coisas na realidade?»

Existo e sobrevivi a tudo isso. Outras mulheres viveram-nas e continuam a vivê-las por esse mundo fora. Gostaria de esquecer, mas somos tão poucas as sobreviventes que podem falar que é meu dever testemunhar e reviver esses pesadelos.

Estou em casa e ouço gritos, depois vejo a minha irmã sentada no chão, a gesticular com os braços e as pernas, e o meu irmão Assad debruçado sobre ela, de braços abertos. Prepara-se para a estrangular com o fio do telefone. Evoco essa imagem como se a tivesse presenciado ontem. Estou tão colada contra a parede que desejo enfiar-me por dentro dela e desaparecer. Estou com as duas irmãs mais pequenas e posto-me diante delas para as proteger. Seguro-as pelos cabelos para que não se mexam. Assad deve ter-nos visto ou ouvido aproximar e grita: «Rouhi! Rouhi! Desapareçam! Desapareçam!»

Corro para a escada de cimento que dá acesso aos quartos, arrastando as minhas duas irmãs. Uma das garotas tem tanto medo que estrebucha e magoa uma perna, mas obrigo-a a seguir-me. Sinto o corpo todo a tremer. Fecho-me com elas no quarto e consolo a mais pequena. Trato-lhe do joelho e ali ficamos, as três, muito tempo, sem fazer barulho. Não posso fazer nada, absolutamente nada senão guardar silêncio, com aquela visão de horror.

O meu irmão a estrangular a minha irmã... Ela devia estar ao telefone e ele veio por trás para a estrangular... Ela está morta, estou persuadida de que está morta.

Naquele dia, Hanan usava umas calças brancas tufadas e um camiseiro comprido até aos joelhos. Estava descalça. Vi-a agitar as pernas e os braços que agrediam o meu irmão no rosto enquanto ele gritava: «Desapareçam!»

O telefone era preto, creio. Estava pousado no chão na sala principal, com um fio muito comprido. Ela devia estar a telefonar, mas ignoro a quem e porquê. Não sei o que estava a fazer antes disso, nem onde estava, nem o que poderá ter feito Hanan, mas, que eu saiba, nada no seu comportamento justifica que o meu irmão a queira estrangular. Não compreendo o que se passa.

Permaneci no quarto com as garotas até a minha mãe voltar. Tinha saído com o meu pai. Assad estava sozinho conosco.

 

Durante muito tempo interroguei-me por que razão não estava mais ninguém em casa senão ele e nós. Mais tarde, as recordações foram-se encadeando.

Naquele dia, os meus pais tinham ido ver a mulher do meu irmão a casa dos pais dela, onde se tinha refugiado porque ele lhe tinha batido, apesar de estar grávida. Era por isso que o meu irmão estava sozinho conosco em casa. E devia estar furioso como qualquer homem que sofre essa afronta. Como de costume, eu só tinha fiapos de informação sobre o que se passava. Uma rapariga não assiste às reuniões de família quando surgem conflitos. Mantêm-na à distância. Soube mais tarde que a minha cunhada tinha abortado e suponho que os pais dela acusaram o meu irmão de ser o responsável. Mas naquele dia não havia nenhuma relação entre os dois acontecimentos. Que estava Hanan a fazer ao telefone? Pouco o usávamos. Eu própria devo tê-lo usado duas ou três vezes para falar com a minha irmã mais velha, com a minha tia ou com a mulher do meu irmão. Se Hanan estava a ligar para alguém, era forçosamente alguém da família.

Há quanto tempo estava o telefone instalado em casa? Não devia haver muitos na aldeia naquela época... O meu pai tinha modernizado a casa. Tínhamos uma casa de banho com água quente e telefone...

Quando os meus pais regressaram, sei que a minha mãe falou com Assad. Vejo-a a chorar, mas sei agora que estava a fingir. Presentemente sou realista e compreendi como se passam as coisas no meu país. Sei por que razão matam as raparigas. Sei como tudo se passa. Há uma reunião de família que decide e, no dia fatal, os pais nunca estão presentes. Só aquele que tiver sido designado para matar é que fica com a rapariga.

A minha mãe não chorava verdadeiramente. Não chorava! Era tudo teatro. Sabia forçosamente a razão por que o meu irmão tinha estrangulado a minha irmã. Senão porquê sair nesse mesmo dia com o meu pai e com a minha irmã mais velha, Noura? Porquê deixar-nos sozinhas em casa com Assad? O que ignoro é o motivo para a condenação de Hanan. Deve ter cometido um pecado, mas não imagino qual. Ter saído sozinha? Alguém a viu falar com um homem? Terá sido denunciada por um vizinho? Basta tão pouco para se considerar que uma rapariga é uma charmuta, que trouxe a vergonha à família e que deve morrer para lavar a honra não apenas dos pais e do irmão, mas da aldeia inteira!

A minha irmã era mais madura do que eu, apesar de mais nova. Deve ter cometido uma imprudência, que eu ignorava em absoluto. As raparigas não trocam entre si confidências. Têm muito medo de falar, mesmo entre irmãs. Sei o que digo, porque eu própria me calei...

Eu gostava muito do meu irmão. Todas nós o amávamos porque era o único homem da família, o único protetor depois do meu pai. Se o pai morrer, é ele quem dirige a casa e, se ele morrer, se só restarem mulheres, a família está perdida. Deixa de haver carneiros, deixa de haver terras, não resta nada. A pior coisa que pode acontecer a uma família é perder o único irmão. Como viver sem um homem? É o homem que dita a lei e nos protege, é o filho que ocupa o lugar do pai e casa as irmãs.

Assad era violento como o meu pai. Era um assassino, embora essa palavra não tenha qualquer sentido no meu país, desde que se trate de dar a morte a uma mulher. O irmão, o cunhado ou o tio, pouco importa, têm por missão preservar a honra de uma família. Têm direito de vida e de morte sobre as suas mulheres. Se o pai ou a mãe disserem ao filho: «A tua irmã pecou, deves matá-la...», ele fa-lo-á por uma questão de honra, é essa a lei.

Assad era o nosso irmão adorado. Certa vez, caiu do cavalo - ele gostava muito de andar a cavalo. O cavalo escorregou e ele caiu. Choramos tanto, lembro-me bem! Com a dor, rasguei o vestido e puxei os cabelos. Felizmente não foi grave e tratamos dele. Mas quando o meu pai partiu a perna, ficamos tão contentes que éramos capazes de dançar de alegria. E, ainda hoje, não consigo conceber que Assad é um assassino. A visão da minha irmã estrangulada é um autêntico pesadelo, mas naquele momento eu não era capaz de lhe querer mal. O que ele tinha feito era normal, tinha aceitado fazê-lo por uma questão de dever, porque era necessário para toda a família. E eu gostava dele.

Não sei o que fizeram de Hanan. Seja como for, ela desapareceu de casa. Esqueci-a. Não compreendo muito bem porquê. Depois do medo, deve ter funcionado a lógica da minha vida naquela época, os costumes, a lei, tudo o que nos obriga a viver essas coisas com «normalidade». Só são crimes e horrores noutros sítios, no Ocidente, noutros países onde as leis são diferentes. Eu própria devia ter morrido e o fato de ter sobrevivido por milagre à lei tradicional perturbou-me durante muito tempo. Hoje, suponho que devo ter sofrido um choque e que a minha experiência amplificou esse choque a ponto de me tornar amnésica em relação a certos acontecimentos. Foi um psiquiatra que mo disse.

Foi assim que Hanan desapareceu da minha vida e das minhas recordações. Talvez tenha sido enterrada juntamente com os outros bebês. Talvez a tenham queimado e enterrado debaixo de um talude ou num campo. Ou talvez a tenham dado aos cães. Não sei. Vejo muito bem no olhar das pessoas daqui, quando falo da minha vida no meu país, que têm dificuldade em compreender. Fazem-me perguntas para eles lógicas: «A polícia não apareceu?», «Ninguém se preocupa se alguém desaparece?», «O que diz a gente da aldeia?»

Nunca vi a polícia em toda a minha vida. Uma mulher que desaparece não tem importância. E a gente da aldeia concorda com a lei dos homens. Se não se matar uma rapariga que desonrou a família, as pessoas da aldeia rejeitam essa família, mais ninguém lhe dirige a palavra, mais ninguém negocia com ela e a família tem de partir! Então...

Nesta perspectiva, o destino da minha irmã foi pior do que o meu. Mas ela teve sorte, porque está morta. Pelo menos não sofre.

Os gritos da minha irmã ainda ressoam nos meus ouvidos, de tal modo ela gritava! Kainat e eu receamos por nós durante algum tempo. Sempre que víamos o meu pai, o meu irmão ou o meu cunhado temíamos que fizessem qualquer coisa. E às vezes nem conseguíamos dormir. Eu acordava com freqüência durante a noite. Sentia uma ameaça permanente. Assad era sempre colérico e violento. Não estava autorizado a visitar a mulher, que saíra do hospital para voltar diretamente para casa dos pais porque ele a agredira com demasiada violência. No entanto, ela voltou a vir viver com ele, como impunha a lei. Deu-lhe outros filhos, felizmente rapazes. Sentíamo-nos orgulhosas dele, continuávamos a gostar dele como dantes, embora tivéssemos medo dele. O que não compreendo é porque é que odiava o meu pai tanto quanto adorava o meu irmão, quando, ao fim e ao cabo, eles eram iguais.

Se tivesse casado na minha aldeia e tivesse dado à luz raparigas, se Assad tivesse sido encarregado de estrangular uma das minhas filhas, eu teria feito como as outras mulheres, teria sofrido sem me revoltar. É insuportável pensar e dizer isto aqui, mas para nós, lá, era assim.

Hoje é diferente, porque estou morta na minha aldeia e nasci uma segunda vez na Europa. O meu espírito absorveu outras

idéias.

Não obstante, continuo a amar o meu irmão. É como a raiz de uma oliveira que não se consegue arrancar, mesmo que a árvore caia.

 

                   O TOMATE VERDE

Eu limpava o estábulo todas as manhãs. Era muito grande e exalava um cheiro intenso. Depois de limpo, deixava a porta aberta para arejar. Era muito úmido e com o calor do sol formava-se vapor no interior. Enchíamos baldes com estrume, eu levava-os à cabeça até à horta para secar. Uma parte desse esterco, o de cavalo, servia unicamente para adubar a terra do quintal. O meu pai dizia que era o melhor adubo. Os excrementos de carneiro destinavam-se ao forno do pão. Depois de bem seco, sentava-me no chão e amassava-o à mão fazendo uma espécie de pequenas bolachas que ia amontoando em pilhas para alimentar o forno.

Levávamos os carneiros para o prado de manhã cedo e íamos buscá-los para os trazermos para o curral quando o sol estava demasiado quente, por volta das onze horas. Os carneiros comiam e dormiam. Eu também regressava a casa para comer. Azeite numa tigela, pão quente, chá, azeitonas, fruta. À noite havia frango, cordeiro ou coelho. Quase todos os dias comíamos carne com arroz e sêmola que nós mesmas preparávamos. Todos os legumes vinham da horta.

Durante o dia, enquanto estava calor, trabalhava em casa. Preparava a massa para o pão. Também dava de comer aos pequenos anhos. Pegava-lhes pela pele do pescoço, como se faz aos gatos, e levantava-os até às tetas da mãe para mamarem. Havia sempre vários, e por isso tinha de tratar de um atrás do outro. Quando um já tinha mamado o suficiente, voltava a pô-lo no seu lugar, até todos terem comido. Em seguida, ia tratar das cabras, que púnhamos à parte no estábulo. Os dois cavalos tinham um canto só para eles, assim como as quatro vacas. O estábulo era realmente enorme: havia uns sessenta carneiros e pelo menos quarenta cabras. Os cavalos estavam sempre lá fora nos prados e só os recolhíamos à noite. Destinavam-se exclusivamente ao uso do meu irmão e do meu pai, para os seus passeios, e jamais ao nosso. Depois de terminado o trabalho no estábulo, não fechava a porta quando me ia embora por causa do calor, mas havia uma barreira de madeira, de uma madeira muito pesada, muito espessa, que impedia que os animais saíssem.

Em seguida, era preciso tratar da horta, quando o sol declinava. Havia muitos tomates que tinham de ser apanhados quase todos os dias, quando estavam maduros. Uma vez, por engano, apanhei um tomate verde. Nunca me esqueci desse tomate! Penso muitas vezes nisso, quando estou na minha cozinha. Era metade amarelo e metade vermelho e começava a amadurecer. Tinha pensado em escondê-lo quando chegasse a casa, mas tarde demais, o meu pai já tinha chegado. Sabia que não o devia ter apanhado, mas as minhas duas mãos avançavam muito depressa. Tínhamos sempre que trabalhar tão depressa que os gestos eram mecanizados, os dedos deslizavam à volta dos tomateiros, à esquerda, à direita, à esquerda, à direita até ao pé... E o último, o que tinha apanhado menos sol, veio ter-me à mão sem querer. E ali estava, bem visível, dentro da bacia. O meu pai berrou-me:

- És louca? Estás a ver o que fizeste? Colheste um tomate verde! Maboula!

Bateu-me, esborrachou-me na cabeça, fazendo escorrer as sementes por cima de mim.

- Agora vais comê-lo!

Enfiou-me na boca à força e esfregou-me a cara com os restos. Achei que, apesar de tudo, devia poder-se comer, mas era ácido, muito amargo, repugnante. Engoli-o, à força. Depois, não quis comer, chorava e sentia o estômago revolto. Mas ele enfiou-me a cabeça dentro do prato e obrigou-me a comer, quase como um cão. Não conseguia mexer-me, ele segurava-me violentamente pelos cabelos, sentia-me mal. A minha meia-irmã troçava de mim e chalaceava. Recebeu uma estalada tal que vomitou o que tinha na boca e começou a chorar.

Quanto mais eu dizia que me doía a cabeça mais ele se obstinava em me esborrachar o rosto dentro da sêmola. Esvaziou o prato até ao fundo, fazendo pequenas bolas de sêmola que me enfiava pela boca abaixo. Estava furioso. No fim, limpou as mãos a um pano, que me atirou à cabeça, e foi instalar-se tranqüilamente à sombra, na varanda.

Esvaziei a bandeja, sem deixar de chorar. Tinha comida na cara, nos cabelos, nos olhos. E fui varrer, como todos os dias, até apanhar o mínimo grão de sêmola que se escapara da mão do meu pai.

Durante longos anos olvidei episódios tão importantes como o desaparecimento de uma das minhas irmãs, mas nunca me esqueci daquele tomate verde e da humilhação de ser tratada abaixo de cão. E vê-lo ali, tranqüilamente sentado à sombra, fazendo a sua sesta como um rei depois das sovas quase diárias, era o pior de tudo. Ele era o símbolo de uma escravatura normal, que eu aceitava de cabeça baixa e dorso vergado sob a pancada, como as minhas irmãs, como a minha mãe. Hoje, porém, compreendo o meu ódio. Gostava de o ver sufocar debaixo do lenço que usava.

Era a vida de todos os dias. Cerca das quatro horas, saíamos com os carneiros e as cabras até ao pôr-do-sol. A minha irmã caminhava à frente e eu ia sempre atrás com um bordão para obrigar os animais a avançar e, sobretudo, para intimidar as cabras. As cabras estavam sempre agitadas, prontas a correr para qualquer lado. Depois de chegarmos ao prado, havia um pouco de tranqüilidade, só nós e o rebanho. Pegava numa melancia e batia com ela numa pedra para a abrir. Tínhamos medo que nos apanhassem no regresso com a roupa suja do sumo açucarado. Lavávamos a roupa diretamente no corpo quando chegávamos ao estábulo, antes que os pais nos vissem. Era impensável despir o vestido, mas felizmente secava muito depressa.

O sol ficava de um amarelo especial e afastava-se no horizonte, o céu passava do azul ao cinza, tínhamos de regressar antes de cair a noite. E como na nossa terra a noite cai muito depressa, tínhamos de andar tão depressa como o sol, contar os passos enquanto percorríamos o caminho, passar rente às paredes, e o portão de ferro voltava a fechar-se sobre nós.

A seguir era a hora de mungir as vacas e as ovelhas. Lembro-me de me doerem os braços. Com um grande canjirão debaixo do ventre da vaca, um tamborete quase ao nível do chão, pegava numa das patas da vaca e apertava-a entre as minhas pernas para evitar que ela se mexesse e o leite jorrasse para fora da vasilha. Se houvesse uma poça de leite no chão, nem que fossem apenas umas gotas, esse seria o último dia da minha vida! O meu pai esbofeteava-me, berrando que ia ficar sem um queijo! As tetas das vacas eram muito grossas e muito duras porque estavam intumescidas de leite e as minhas mãos eram pequenas. Doíam-me os braços, demorava muito tempo a ordenhar e estava exausta. Uma vez, foi numa época em que havia seis vacas no estábulo, adormeci, agarrada ao balde, com a pata da vaca apertada entre as pernas. Por azar, o meu pai apareceu e gritou: «Charmuta! Puta!» Arrastou-me pelo chão do estábulo, puxando-me pelos cabelos, e apanhei uma sova com o cinto. Eu amaldiçoava aquele cinto grande de couro, que ele usava sempre à cintura com outro mais pequeno. O mais pequeno zurzia com muita força. Ele chicoteava levantando o braço e segurando o cinto por uma das pontas como uma corda. Quando usava o grande, tinha de o dobrar em dois, porque era muito pesado. Eu suplicava e chorava de dor, mas quanto mais lhe dizia que doía mais ele batia, chamando-me puta.

À noite, à hora da refeição, ainda chorava. A minha mãe tentou saber o que se passava. Percebeu que o meu pai me tinha espancado com muita força nessa tarde, mas ele começou a bater-lhe também, dizendo-lhe que não lhe dizia respeito, que não tinha de saber porque é que me tinha batido, uma vez que eu sabia.

Um dia normal em casa incluía pelo menos uma bofetada ou um pontapé com o pretexto de que trabalhava devagar, que a água do chá demorara muito a ferver... Às vezes conseguia esquivar-me às pancadas na cabeça, mas era raro. Não me lembro se a minha irmã Kainat sofria tanta pancada como eu, mas penso que sim, pois tinha tanto medo como eu. Nunca perdi esse reflexo de trabalhar depressa e de caminhar depressa, como se tivesse permanentemente um cinturão à espreita. Um burro avança às bastonadas. Se o bastão parar, ele pára. Sucedia o mesmo conosco, com a diferença de que o meu pai nos batia com muito mais força do que ao burro. Por uma questão de princípio, volto a ser espancada no dia seguinte para não esquecer a sova da véspera. Para continuar a avançar sem adormecer, como o burro nos trilhos.

 

O burro recorda-me um outro episódio, que tem a ver com a minha mãe. Vejo-me a levar o rebanho para a pastagem como de costume e regressar rapidamente a casa para limpar o estábulo ainda mais depressa. A minha mãe está comigo e apressa-me porque temos de ir apanhar figos. É preciso carregar as caixas no dorso do burro e caminhar durante bastante tempo fora da aldeia. Sou incapaz de situar esta história no tempo, a não ser que essa manhã me parece muito próxima da cena do tomate verde. É fim de estação porque a figueira junto à qual nos detemos está nua. Prendo o burro ao tronco da figueira para o impedir de comer os frutos e as folhas que juncam o chão.

Começo a apanhar os figos e a minha mãe diz-me: - Escuta bem, Souad. Tu ficas aqui com o burro, apanhas todos os figos à beira do caminho, mas não te afastas desta árvore. Não saias daqui. Se vires o teu pai chegar com o cavalo branco, ou o teu irmão ou alguém, assobias e eu venho logo.

Afasta-se um pouco pelo caminho para ir ao encontro de um cavaleiro que espera, montado no cavalo. Conheço-o de vista. Chama-se Fadel. Tem uma cabeça muito redonda, é baixo e bastante forte. O seu cavalo está muito bem tratado, é todo branco com uma mancha preta e tem a cauda entrançada até à ponta. Não sei se é casado ou não.

A minha mãe engana o meu pai com ele. Compreendi quando ela me disse: «Se alguém se aproximar, assobia.» O cavaleiro desaparece e a minha mãe também. Eu apanho conscienciosamente os figos à beira do caminho. Não há muitos naquele sítio, mas não posso ir procurar mais longe senão não verei chegar nem o meu pai nem ninguém.

Estranhamente, esta história não me surpreende. Na minha memória, não tenho a sensação de recear grande coisa. Talvez por a minha mãe ter um plano bem organizado. O burro está preso ao tronco da figueira nua, não pode comer nada, nem folhas nem frutos, como convém neste tipo de colheita. Por isso não preciso de o vigiar como em plena estação e posso trabalhar sozinha. Dou dez passadas numa direção, dez noutra, apanho os figos caídos para os depositar nas caixas. Tenho uma boa visão do caminho em direção à aldeia, posso avistar ao longe alguém que se aproxime e assobiar a tempo. Já não vejo nem o tal Fadel nem a minha mãe, mas calculo que devem estar a uns cinqüenta passos, escondidos algures no campo. Portanto, se houver um contratempo, ela poderá sempre alegar que se afastou um momento devido a uma necessidade urgente. Um homem, mesmo o meu pai ou o meu irmão, jamais fará uma pergunta indecente sobre o assunto. Seria vergonhoso.

Não fico sozinha muito tempo: a caixa ainda está quase vazia quando eles regressam, separados. A minha mãe sai do campo. Vejo Fadel montar de novo a cavalo; falha a sela uma primeira vez porque o cavalo é alto. Tem um belo chicote de madeira, muito fino, e sorri à mamã antes de desaparecer.

Finjo que não vi nada.

Despacharam-se muito depressa. Fizeram amor algures no campo, ao abrigo das ervas, ou estiveram simplesmente juntos para falarem um com o outro, não quero saber. Não tenho o direito de perguntar o que estiveram a fazer nem de me mostrar surpreendida, não me diz respeito. A minha mãe não vai fazer-me confidências. Também sabe que eu não direi nada, pelo simples fato de ser sua cúmplice e ser espancada até à morte tal como ela. A única coisa que o meu pai sabe fazer é bater nas mulheres e obrigá-las a trabalhar para ganhar dinheiro. Por isso, que a minha mãe vá fazer amor com outro homem sob o pretexto de lhe trazer umas caixas de figos, deixa-me até muito contente. Ela tem toda a razão.

Agora temos de colher os figos muito depressa para as caixas ficarem suficientemente cheias de modo a justificar o tempo gasto. Senão o meu pai vai perguntar: «Voltas com as caixas vazias, o que é que estiveste a fazer todo este tempo?» E não escapo ao cinto.

Estamos bastante afastadas da aldeia. A minha mãe monta em cima do burro, com as pernas um pouco afastadas à volta do pescoço do animal, junto à cabeça para não esmagar os frutos. Eu caminho à frente para guiar os passos do burro pela vereda e regressamos com um bom carrego.

Um pouco mais longe cruzamo-nos com uma mulher idosa sozinha com um burro, que também leva figos. Como já é velha, não tem de ir acompanhada e segue à nossa frente. A minha mãe saúda-a e continuamos o caminho juntas. É um caminho muito estreito e bizarro, cheio de buracos, de lombas e de calhaus. Há sítios com subidas muito íngremes e o burro tem dificuldade em avançar com a carga.

 

Em dado momento pára pura e simplesmente no cimo de um declive, diante de uma enorme serpente, e recusa-se a avançar. Por mais que a minha mãe o chicoteie e o incite, ele não se mexe. Pelo contrário, tenta recuar, com as narinas palpitantes de medo, tal como eu. Detesto cobras. E como o declive é realmente muito abrupto, as caixas oscilam sobre o seu dorso, ameaçando tombar. Felizmente que a mulher que nos acompanha parece não recear a serpente, apesar de enorme. Não sei como é que ela fez, mas vejo o corpo enrolar-se, contorcer-se. Deve ter-lhe desferido um golpe com o bastão... e, por fim, a enorme serpente esquiva-se pela ravina e o burro volta a avançar.

Havia muitas serpentes, pequenas e grandes, em redor da aldeia. Todos os dias víamos algumas e tínhamos tanto medo delas como das granadas. Desde a guerra com os judeus, havia granadas um pouco por toda a parte. Nunca se sabia se não íamos morrer ao pisar uma por acaso. Em todo o caso, ouvia falar nisso em casa, quando o pai do meu pai ou o meu tio nos vinham visitar. A minha mãe alertava-nos para essas granadas, quase invisíveis no meio das pedras, e eu não despegava os olhos do caminho com medo de tropeçar numa. Não me lembro de ter visto nenhuma, mas sei que o perigo era permanente. Era preferível nunca levantar uma pedra e ver bem onde se punham os pés. As serpentes chegavam a fazer ninho dentro de casa, na despensa, entre os sacos de arroz ou no meio das medas de palha no estábulo.

Quando chegamos, o meu pai não estava em casa. Foi um alívio porque tínhamos perdido tempo: eram já dez horas. A essa hora o sol já está alto, o calor aperta e os figos muito maduros correm o risco de ficar com a pele encarquilhada e moles. E têm de estar em bom estado e cuidadosamente preparados para o meu pai os poder vender no mercado.

Eu gostava muito de preparar as caixas de figos. Escolhia belas folhas de figueira, muito grandes e muito verdes para forrar o fundo das caixas. Em seguida, colocava os frutos delicadamente, bem arranjados como belas jóias, e dispunha por cima grandes folhas para os proteger do sol. Era a mesma coisa com as uvas: cortávamo-las com uma tesoura, limpávamo-las cuidadosamente, não devia ficar um único bago estragado nem uma folha suja.

 

Forrava as caixas com folhas de videira e cobria-as de igual modo, para manter os cachos frescos.

Também havia a época das couves-flor, das courgettes, das beringelas, dos tomates e das abóboras, e o meu pai também vendia os queijos que eu estava encarregada de fabricar. Deitava o leite numa grande vasilha de metal, retirava a gordura amarelada que se formava nas bordas e a nata que punha à parte para fazer o laban que vendíamos em pacotes separados para o Ramadão. Guardávamo-los em grandes baldes e era o meu pai que se encarregava de fazer os pacotes com plástico muito duro para evitar que o produto se estragasse. Por cima, escrevia em árabe laban.

Com o halib, o leite, eu fazia iogurtes e queijo, à mão. Tinha um tecido branco transparente e uma tigela de ferro. Primeiro enchia até ao rebordo a tigela para os queijos terem sempre o mesmo tamanho, em seguida envolvia-os no tecido, atava-os com um nó e apertava com muita força para o suco escorrer para uma vasilha. Quando os queijos já não deitavam mais suco, colocava-os em cima de uma enorme bandeja dourada, coberta por um pano para o sol e as moscas não os estragarem. Embalava-os depois em pacotes brancos que o meu pai também marcava. Eram muito bonitos depois de embalados, muito bem acondicionados. O meu pai ia ao mercado praticamente todos os dias na época da fruta e dos legumes. Para vender os queijos e o leite, duas vezes por semana.

O meu pai só se sentava ao volante da camioneta quando já estava tudo carregado e, quando não terminávamos a tempo, desgraçadas de nós. Instalava-se à frente com a minha mãe e eu seguia entalada entre as caixas, atrás. Tínhamos uma boa meia hora de caminho. Quando chegávamos, via os prédios grandes. Era a cidade. Uma cidade bonita e muito limpa. Havia luzes vermelhas para parar os carros. Lojas bonitas. Recordo-me de uma montra com um manequim e um vestido de noiva. Mas não estava autorizada a passear e menos ainda a olhar para as montras. Ficava de boca aberta e torcia o pescoço para as contemplar de longe o máximo de tempo possível. Nunca tinha visto tal coisa.

Gostava muito de poder visitar aquela cidade, mas quando via as raparigas nos passeios, com vestidos curtos, as pernas descobertas, sentia vergonha. Se me cruzasse com elas de perto, teria cuspido à sua passagem. Eram charmutas... Para mim, era repugnante.

 

Andavam sozinhas, sem os pais ao lado. Pensava para comigo que nunca poderiam casar. Não havia nenhum homem que as quisesse porque tinham mostrado as pernas e os lábios pintados. E não compreendia por que razão não estavam fechadas.

Apercebo-me agora que a vida na aldeia não mudara desde que a minha mãe nascera e, antes dela, a sua mãe, e desde tempos ainda mais recuados. Aquelas raparigas eram espancadas como eu? Trabalhavam tanto como eu? Estavam fechadas como eu? Eram escravas como eu? Não podia afastar-me um centímetro da camioneta do meu pai. Ele vigiava a descarga das caixas, recebia o dinheiro e, a um gesto seu, como um burro, tinha de subir e enfiar-me no interior, tendo como único prazer uma pausa no trabalho e a visão das lojas inacessíveis através dos caixotes de fruta ou de legumes.

O mercado era muito grande. Havia uma espécie de cobertura feita de videiras que projetava sombra para a fruta. Era muito bonito. Depois de vender tudo, o meu pai ficava feliz. Ia ter com o vendedor antes de o mercado fechar, sozinho, e trazia o dinheiro na mão. Contava-o várias vezes e metia-o num saquinho de tecido, atado com um cordel, que enfiava à volta do pescoço. Foi com esse dinheiro do mercado que ele pôde modernizar a casa.

Eu gostava muito de subir para a camioneta porque era um momento de repouso. Não tinha de fazer nada durante o trajecto, ficava sentada sossegada. Mas mal chegávamos ao mercado, tínhamos de nos despachar, transportar as caixas com toda a rapidez. O meu pai gostava de mostrar que a mulher e a filha trabalhavam no duro. Eu ia sempre com a minha mãe. Ele nunca levava as duas irmãs juntas.

Quando a minha irmã os acompanhava, eu ia buscar água para lavar o pátio, que ficava a secar ao sol. Preparava a comida e amassava o pão. Sentada no chão, deitava a farinha num grande alguidar com água e sal e trabalhava a massa à mão. Depois deixava repousar a massa sob um pano branco, à espera que levedasse. Ia atear o forno de padeiro para ficar muito quente. A casa de amassar o pão era como uma casa pequena, com um telhado de madeira, e lá dentro o forno de ferro estava sempre aceso. As brasas ardiam durante muito tempo, mas era preciso reavivar o lume em especial antes de fazer o pão.

É magnífico ver uma massa a levedar... eu adorava fazer pão.

 

Fazia uma cova na massa para ficar mais bonita, antes de a meter no forno. E para não se pegar às mãos, mergulhava-as numa saca de farinha e acariciava a massa que se ia tornando branca e muito macia. Fazia uma espécie de grande bolacha, soberba, um belo pão redondo e um pão chato que devia ter sempre a mesma forma. Senão o meu pai atirava-me à cara.

Depois de cozido o pão, limpava o forno e apanhava as cinzas. Quando saía dali, tinha os cabelos, a cara, as sobrancelhas e as pestanas cobertos de pó cinzento. Sacudia-me como um cão com pulgas.

Um dia, estava eu dentro de casa e vimos fumo a sair do telhado da casa do forno. Corri com a minha irmã para ver o que se passava e começamos a gritar que havia fogo. O meu pai trouxe água. Havia labaredas e ardeu tudo. No interior do forno via-se uma espécie de excrementos de cabra, completamente negros. Tinha-me esquecido de um pão dentro do forno e não tinha limpo bem as cinzas. Ficara uma brasa que desencadeou o fogo. A culpa era minha. Não me devia ter esquecido daquele bocado de pão, mas, sobretudo, nunca devia esquecer-me de remexer as cinzas com um bocado de madeira para remover as brasas.

Eu era responsável pelo incêndio no forno de padeiro, a pior das catástrofes.

E o meu pai desancou-me mais do que nunca. Levei pontapés e bastonadas nas costas. Agarrou-me pelos cabelos, pôs-me de joelhos e esmagou-me o rosto contra as cinzas, felizmente já mornas. Sentia-me sufocar, babava-me, a cinza entrava-me pelo nariz e pela boca e tinha os olhos vermelhos. Obrigou-me a comer as cinzas para me castigar. Com o choro, quando ele me largou, estava completamente negra e cinzenta, com os olhos vermelhos como tomates. Era uma falta muito grave da minha parte e, se a minha mãe e a minha irmã não estivessem presentes, creio que o meu pai me teria atirado para o lume antes de o apagar.

Foi necessário reconstruir o forno com tijolos e essa tarefa demorou bastante tempo. Todos os dias eu tinha direito a um insulto, a uma palavra ofensiva. Esgueirava-me para o estábulo de costas curvadas e varria o pátio de cabeça baixa. Penso que o meu pai me detestava de verdade e, no entanto, à parte essa falha, eu fazia um bom trabalho.

 

Lavava a roupa à tardinha, antes do cair da noite. Tratava de toda a roupa de casa, sacudia as peles de carneiro, varria, cozinhava, alimentava os animais, limpava o estábulo. Eram raros os momentos de repouso.

Nunca saíamos à noite. O meu pai e a minha mãe saíam com muita freqüência, iam a casa dos vizinhos, a casa dos amigos. O meu irmão também saía, mas nós não. Não tínhamos amigas e a minha irmã mais velha nunca nos visitava. A única pessoa estranha à casa que eu via às vezes era uma vizinha, Enam. Tinha um sinal num dos olhos, as pessoas faziam troça dela e toda a gente sabia que nunca se casara.

Do alto do terraço, via a moradia das pessoas ricas. Estavam no terraço, iluminado, e ouvia-os rir, via-os a comer lá fora, mesmo à noite, já tarde. Porém, em nossa casa, ficávamos fechadas nos quartos como coelhos. Da aldeia, lembro-me apenas dessa família rica, que não morava muito longe de nós, e de Enam, a solteirona sempre sozinha, sentada em frente da casa dela. A única distração era o trajeto de camioneta até ao mercado.

Os momentos de repouso eram tão raros... Quando não estávamos a trabalhar para nós, íamos ajudar os outros aldeões e estes faziam o mesmo em relação a nós.

Na aldeia, éramos várias raparigas mais ou menos da mesma idade e mandavam-nos subir para um autocarro para irmos colher as couves-flor num campo enorme. Lembro-me desse campo de couves-flor! Era tão grande que não se via o fim e tínhamos a impressão de que nunca conseguiríamos apanhar tudo! O motorista era tão baixo que tinha de pôr uma almofada em cima do assento para conduzir. Tinha uma cabeça esquisita, redonda e minúscula, com os cabelos rentes.

Durante todo o dia colhemos as couves-flor, de gatas, as raparigas todas em fila como de costume, vigiadas por uma mulher já idosa que tinha um bastão. Nem pensar em fazer ronha. As couves eram empilhadas num grande caminhão. Finda a jornada, deixaram o caminhão no lugar e voltamos a entrar para o autocarro de regresso à aldeia. Havia muitos laranjais de ambos os lados da estrada. Como tínhamos muita sede, o motorista parou o carro e disse-nos para cada uma ir buscar uma laranja e voltar depressa.

 

«Uma laranja e balas!», o que queria dizer «uma mas não duas!».

Todas as raparigas voltaram a correr para o carro e o motorista, que parara num desvio estreito, fez marcha-atrás. Logo a seguir desligou bruscamente o motor, apeou-se e começou a gritar tanto que todas as raparigas saíram do carro como doidas.

Tinha esmagado uma das raparigas. Uma roda passara-lhe por cima da cabeça. Como eu estava mesmo à frente, baixei-me, levantei-lhe a cabeça pelos cabelos, julgando que estava viva. Mas a cabeça ficou colada à terra e desmaiei com a comoção.

Lembro-me depois de estar de novo dentro do autocarro, deitada nos joelhos da nossa vigilante. O motorista parava diante de cada casa para depositar as raparigas, já que não tínhamos autorização para regressar sozinhas, mesmo na aldeia. Quando desci diante da minha casa, a vigilante explicou à minha mãe que eu estava doente. A mamã deitou-me e deu-me de beber. Nessa noite, mostrou-se gentil comigo porque a mulher explicou-lhe tudo. Via-se obrigada a contar o acidente a cada uma das mães enquanto o motorista aguardava. Seria porque era conveniente que dissessem todos a mesma coisa?

É estranho que aquilo tivesse acontecido precisamente àquela rapariga. Enquanto apanhávamos as couves-flor, estava sempre no meio da fila e nunca nas extremidades. Acontece que, na nossa terra, uma rapariga que é protegida assim pelas outras significa que é capaz de fugir. E eu tinha reparado que aquela rapariga estava sempre enquadrada, que não mudava de lugar na fila. Para mim era sobretudo estranho que não falassem com ela. Nem sequer devíamos olhar para ela porque era charmuta e, se falássemos com ela, passávamos a ser também tratadas como charmuta. O motorista teria feito de propósito para a esmagar? O boato correu durante muito tempo na aldeia. A polícia veio interrogar-nos e reuniram-nos no campo onde aquilo tinha acontecido. Eram três polícias e, para nós, era um acontecimento ver aqueles homens e ainda por cima polícias. Não podíamos olhá-los nos olhos, devíamos respeitá-los e estávamos todas muito impressionadas. Mostraram o sítio exato. Baixei-me. Havia uma cabeça falsa, que levantei com a mão. Eles disseram-me: «Halas, halas, halas...» Chegara ao fim. Voltamos a subir para o autocarro. O motorista chorava!

 

Conduzia depressa e de uma forma estranha. O carro dava ressaltos na estrada e recordo-me de que a vigilante se agarrava ao peito com as duas mãos porque os seios também saltavam. O motorista esteve preso. Para nós, e para a aldeia em peso, não tinha sido um acidente.

Durante muito tempo depois disso, estive doente. Voltava a ver-me a levantar a cabeça esmagada da rapariga e tinha medo dos meus pais por causa de tudo o que se dizia dela. Devia ter feito algo de mal, mas ignoro o quê. De qualquer modo, dizia-se que era charmuta. À noite não conseguia dormir, estava constantemente a ver a cabeça esmagada, ouvia o barulho das rodas quando o carro recuou. Jamais poderei esquecer aquela rapariga. Apesar de todos os tormentos que eu própria sofri, aquela imagem ficou-me gravada na mente. Tinha a mesma idade que eu, os cabelos curtos, um corte de cabelo muito bonito. Também era estranho que tivesse os cabelos curtos. As raparigas da aldeia nunca cortavam o cabelo. Porquê ela? Era diferente de nós, usava roupas mais bonitas. O que é que fizera dela uma charmuta. Nunca cheguei a saber. Mas fiquei a saber por mim.

À medida que ia ficando mais velha, aguardava com grande expectativa que me pedissem em casamento. Mas ninguém estava interessado em Kainat, o que parecia não a inquietar. Como se já se tivesse resignado a permanecer solteira, o que eu achava tão terrível para ela como para mim, que tinha de esperar pela minha vez.

Começava a ter vergonha de me mostrar nos casamentos das outras, com medo que fizessem troça de mim. Casar era o melhor que podia esperar para me libertar. Contudo, mesmo casada, uma mulher arriscava a vida ao mínimo erro. Lembro-me daquela mulher com quatro filhos. O marido devia estar com toda a certeza empregado na cidade, porque andava sempre com um casaco sobre os ombros. Quando o avistava ao longe, caminhava sempre depressa e os sapatos deixavam uma nuvem de poeira atrás dele.

A mulher chamava-se Souheila e, um dia, ouvi a minha mãe dizer que na aldeia se contavam coisas sobre ela. As pessoas pensavam que ela tinha uma ligação com o dono do armazém porque ia lá muitas vezes comprar pão, legumes e fruta.

 

Talvez não tivesse uma horta tão grande como a nossa. Talvez se encontrasse com o homem às escondidas como a minha mãe com Fadel. Um dia, a minha mãe contou que os seus dois irmãos entraram pela porta dentro e lhe cortaram a cabeça. E que tinham deixado o corpo no chão e se tinham passeado pela aldeia com a cabeça degolada. Contava também que o marido, ao regressar do trabalho, ficara satisfeito por a mulher estar morta, porque se suspeitava que tinha feito qualquer coisa com o dono da loja. No entanto, ela não era muito bonita e já tinha quatro filhos.

Eu não vi esses homens passearem pela aldeia com a cabeça da irmã, apenas ouvi o relato da minha mãe. Já era suficientemente amadurecida para compreender, mas não tive medo. Talvez por não ter visto nada, justamente. Parecia-me que na minha família ninguém era charmuta, que essas coisas nunca me iriam acontecer. Aquela mulher tinha sido castigada, era normal. Mais normal do que uma rapariga da minha idade esmagada na estrada.

Não imaginava que simples mexericos de comadres, meras suposições de vizinhos, e até mentiras podiam fazer de qualquer mulher uma charmuta e arrastá-la para a morte para defender a honra das outras.

É o que se chama um crime de honra, «Jarimai al Sharaf», e, para os homens do meu país, não é um crime.

 

                   O SANGUE DA NOIVA

Os pais de Hussein vieram pedir Noura. Vieram por diversas vezes para discutir o assunto porque, na nossa terra, quando se casa uma filha esta é vendida a troco de ouro. Portanto, os pais de Hussein trouxeram consigo ouro, colocaram esse ouro num belo prato dourado e o pai de Hussein disse:

- Aqui tendes, metade para Adnan, o pai, e a outra metade para a sua filha, Noura.

Se o ouro for pouco, discute-se. As duas partes são importantes porque, no dia do casamento, a rapariga deverá mostrar a toda a gente o ouro que o pai obteve ao vendê-la.

Não é para Noura essa quantidade de ouro que ostentará no dia do casamento. O número de braceletes, de colares, de diademas de que necessita é para defender a sua honra e a dos seus pais. Não é para o seu futuro nem para si, mas poderá passear pela aldeia e, ao passar, as pessoas dirão a quantidade de ouro que ela trouxe aos pais. Se uma rapariga não tiver jóias no dia do casamento, será uma terrível vergonha para ela e para a família. O meu pai esqueceu-se de nos dizer isso quando gritava às filhas que nem sequer lhe davam o que lhe dava uma ovelha. Quando vende a filha, tem direito a metade do ouro!

Por isso, pode regatear o preço. A discussão decorre sem a nossa presença, apenas entre os pais. Mal esteja concluído o negócio, não há papéis assinados, é a palavra dos homens que conta. Unicamente a dos homens.

As mulheres não têm o direito de dizer nada, tanto a minha mãe e a mãe de Hussein como a futura noiva. Ainda ninguém viu o ouro, mas todos sabem que o casamento foi acordado porque a família de Hussein veio. Mas não convém incomodar, não convém mostrar-se, há que respeitar a negociação dos homens. A minha irmã Noura sabe que entrou em casa um homem acompanhado pelos pais e, portanto, que vai com certeza casar-se. Está muito contente. Diz-me que deseja casar para se poder vestir melhor, depilar as sobrancelhas, ter uma família sua e filhos. Noura é tímida e tem uma cara bonita. Apesar de tudo, está preocupada enquanto os pais discutem, gostava muito de saber a quantidade de ouro que eles trouxeram, e reza a Deus para que cheguem a acordo.

Não faz idéia como é o futuro marido, ignora a idade dele, mas não vai perguntar como é ele. Fazer essa pergunta é vergonhoso. Até mesmo a mim, que podia esconder-me em qualquer lado para espreitar a cara dele. Talvez receie que eu vá contar aos pais.

Alguns dias depois, o meu pai chama Noura na presença da minha mãe e diz-lhe:

- Pois bem, tu vais casar no dia tal.

Eu não assisti porque não tinha o direito de estar com eles. Nem sequer devia dizer «Eu não tinha o direito», porque tal coisa não existe. É a tradição, é assim e pronto. Se o teu pai te disser «Não saias desse canto a vida inteira», tu ficas nesse canto toda a vida. Se o teu pai te puser uma azeitona no prato e te disser «Hoje não comes mais nada», tu não comes mais nada. É muito difícil abandonar essa pele de escrava consentida, porque se nasce com ela quando se é rapariga e, durante toda a infância, essa forma de não-existência, de obedecer ao homem e à sua lei, é cultivada ininterruptamente, pelo pai, pela mãe, pelo irmão, e a única saída, que consiste em casar, vai perpetuá-la com o marido.

Quando a minha irmã Noura acede a esse estatuto tão ansiado, calculo que eu teria menos de quinze anos. Mas talvez esteja enganada, e bastante, porque, à força de pensar nisso e de tentar ordenar as minhas reminiscências, apercebi-me de que a minha vida naquele tempo não tinha nenhuma das referências que temos na Europa. Não havia aniversários nem fotografias, era uma vida mesquinha de um animalzinho que come, que trabalha o mais depressa possível, que dorme e que apanha pancada. Depois sabemos que estamos «maduras», ou seja, corremos o perigo de atrair a cólera da sociedade ao mínimo passo em falso.

 

E, a partir dessa idade «madura», o casamento é a etapa seguinte. Normalmente, uma rapariga está madura aos dez anos e casa entre os catorze e os dezessete, o mais tardar. Noura devia estar próxima do limite máximo. A família começou então a preparar o casamento, a avisar os vizinhos. Como a casa não é suficientemente espaçosa, vai-se alugar o pátio comum para a recepção. É um lugar muito bonito, uma espécie de quintal florido plantado de videiras e com um pátio para dançar. Há uma varanda coberta que permite ficar à sombra e onde a noiva fica abrigada.

O meu pai escolheu o carneiro. Escolhe-se sempre o anho mais novo porque a carne é tenra e a cozedura não demora muito. Se a carne levar muito tempo a cozer, irão dizer que o pai não é muito rico, que escolheu um carneiro velho e não oferece boa comida. A sua reputação na aldeia não será famosa e a da filha será pior ainda.

Portanto, é o meu pai que escolhe o cordeiro. Dirige-se ao estábulo, observa, apanha o que escolheu e levamo-lo para a horta. Prende-lhe as patas para o imobilizar, pega na faca e degola-o com um único golpe da lâmina. Em seguida, pega na cabeça e torce-a um pouco sobre um recipiente grande para o sangue jorrar. Vejo o sangue a correr com uma vaga sensação de repulsa. As patas do carneiro ainda se agitam. A tarefa do meu pai está concluída e as mulheres vão ocupar-se da carne. Põem água a ferver para limpar as vísceras do carneiro. Não comemos as tripas, mas devem servir para alguma coisa porque são cuidadosamente postas de lado. Depois é preciso retirar a pele e é a minha mãe que se encarrega desse trabalho delicado. A pele não pode ficar estragada. Deve ficar inteira. O carneiro está agora por terra, sem as entranhas e limpo. Com uma faca grande, a minha mãe separa a pele da carne. Vai cortando rente à carne e puxa com um gesto preciso. Aos poucos o couro desprende-se até que a pele inteira se separa do corpo. Vai deixá-la a secar para a vender ou guardar. A maior parte das peles dos nossos carneiros são vendidas. Mas é-se mal visto se só levarmos uma pele para o mercado. Tem que se levar várias para mostrar que se é rico.

Na véspera do casamento, ao cair da noite, depois do carneiro, a minha mãe ocupa-se da minha irmã. Vai buscar uma velha sertã, um limão, umas gotas de azeite, uma gema de ovo e açúcar. Põe tudo a derreter na frigideira e fecha-se com Noura. É com esse preparado que a vai depilar. Têm que se remover por completo os pêlos do sexo, que deve ficar nu e limpo. A minha mãe diz que, se por azar, se deixar ficar um pêlo que seja, o homem vai-se embora sem sequer olhar para a mulher, dizendo que está suja!

Essa história dos pêlos sujos preocupa-me. Não se faz a depilação das pernas nem dos braços, mas apenas do sexo. E também das sobrancelhas, mas por uma questão de beleza. Mal os pêlos aparecem numa rapariga é o primeiro sinal de que já é uma mulher, juntamente com os seios. E morre com os pêlos, porque, assim como Deus nos criou, assim nos recebe. No entanto, todas as raparigas se sentem orgulhosas ante a idéia de serem depiladas... É a prova de que vamos pertencer a outro homem que não o pai. Uma pessoa passa a ser realmente alguém, sem pêlos. Acho que é mais um castigo do que outra coisa, porque ouço a minha irmã gritar. Quando ela sai do quarto, uma pequena multidão de mulheres que aguardava atrás da porta bate as palmas e grita. É uma grande alegria: a minha irmã está pronta para o casamento, o famoso sacrifício da sua virgindade.

Depois desta sessão, pode ir dormir. As mulheres também voltam para as suas casas porque já a viram e tudo foi feito segundo as regras.

No dia seguinte, ao nascer do sol, prepara-se a comida no pátio do casamento. É preciso que toda a gente assista à preparação da refeição e calcule o número de pratos. Mas sobretudo não convém perder a cozedura de um único punhado de arroz, senão toda a aldeia falará disso. Metade do pátio é consagrado à preparação dos alimentos: a carne, o cuscuz, os legumes, o arroz, os frangos e muitos doces, bolos que a minha mãe fez com a ajuda de vizinhas, pois nunca conseguiria preparar tudo sozinha para tanta gente.

Depois de prontos os pratos e expostos aos olhares de todos, a minha mãe vai com outra mulher preparar a minha irmã. O vestido é bordado à frente, desce até aos tornozelos e tem botões de tecido. Quando sai do quarto, Noura está magnífica, coberta de ouro. Bela como uma flor. Usa braceletes, colares e, sobretudo, o mais importante de tudo para uma noiva, o diadema!

 

O diadema é uma fita com moedas de ouro presa à volta da cabeça. Os cabelos soltos foram alisados com azeite para ficarem brilhantes. Vai-se instalar no trono. O trono é uma mesa com uma cadeira em cima, coberta com uma toalha branca. Noura deve subir, sentar-se e esperar assim que a venham admirar antes da chegada do futuro esposo. Todas as mulheres se atropelam para entrarem no pátio e contemplar a noiva, lançando gritinhos.

Os homens dançam lá fora. Não se misturam com as mulheres no pátio.

Nem sequer podemos ficar à janela a vê-los dançar.

O noivo faz agora a sua entrada em cena. A noiva baixa timidamente a cabeça. Ainda não está autorizada a olhá-lo de frente, pois é a primeira vez que vai ver como ele é. Suponho que a minha mãe lhe deu algumas indicações sobre o seu aspecto, a família, o trabalho, a idade... mas não sei ao certo. Talvez se tenham limitado a dizer-lhe que os pais dele tinham trazido o ouro necessário.

A minha mãe pega num véu que coloca sobre a cabeça da minha irmã e ele chega como um príncipe, bem vestido. Aproxima-se dela. Noura conserva as mãos discretamente pousadas nos joelhos, a cabeça inclinada sob o véu, para demonstrar a sua boa educação. Pressupõe-se que aquele momento representa o essencial da vida da minha irmã.

Eu observo como as outras e invejo-a. Sempre a invejei por ser a mais velha, por acompanhar a minha mãe a todo o lado, enquanto eu andava numa azáfama no estábulo com Kainat. Invejo-a por ser a primeira a sair de casa. Naquele dia, todas as raparigas gostariam de estar no lugar da noiva, com um belo vestido branco e coberta de ouro. Ela é tão bonita. Noura não está calçada, é a minha única decepção. Para mim, estar descalça é uma miséria. Vejo mulheres na rua, a caminho do mercado, com sapatos calçados. Talvez porque os homens usam sempre, para mim os sapatos são o símbolo da liberdade. Poder andar sem que as pedras e os espinhos me magoem a pele... Noura está descalça e Hussein usa uns belos sapatos envernizados que me fascinam.

Hussein avança em direção à minha irmã. Sobre a mesa alta, instalam outra cadeira para ele, coberta com uma toalha branca. Ele senta-se, levanta o véu branco e as exclamações de júbilo ressoam pelo pátio. A cerimônia chegou ao fim.

 

O homem acaba de descobrir o rosto daquela que se manteve pura para ele e que lhe dará filhos.

Permanecem ali, os dois sentados como dois manequins. As pessoas dançam, cantam, comem, mas eles não se mexem. Trazem-lhes de comer aos seus lugares e, para que não as sujem, protegem-lhes as belas roupas com panos brancos.

O noivo não toca na mulher, não a beija nem lhe pega na mão. Não se passa nada entre eles, nem um gesto de amor ou de ternura. São uma imagem fixa do casamento, que perdura durante muito tempo.

Ignoro tudo sobre aquele homem, que idade tem, se tem irmãos ou irmãs, qual é o seu trabalho e onde é que vive com os pais. No entanto, ele é da mesma aldeia. Não se vai procurar mulher fora da terra! É também a primeira vez que eu vejo aquele homem. Não sabíamos se era bonito ou feio, baixo, alto, gordo, cego, maneta, se tinha ou não a boca torta, se tinha orelhas ou não, ou um nariz grande... Hussein é um belo homem. Não é muito alto, cerca de um metro e setenta, os cabelos encarapinhados muito curtos, o corpo bem lançado. O rosto moreno e trigueiro tem um aspecto saudável. O nariz muito curto, bastante achatado, com narinas largas, é imponente. Uma postura orgulhosa e, à primeira vista, não parece má pessoa, mas talvez seja. Pressinto-o, porque às vezes fala com nervosismo.

Para darem a entender que a festa chegou ao fim e que os convidados se vão embora, as mulheres cantam, dirigindo-se diretamente ao marido, qualquer coisa que diz mais ou menos isto: «Agora protege-me. Se não me protegeres, não és um homem...» E a derradeira canção obrigatória: «Não saímos daqui se tu não dançares.»

Os dois têm de dançar para que a cerimônia termine.

O marido ajuda a mulher a descer - desta vez toca-lhe com o dedo, ela pertence-lhe - e dançam juntos. Alguns não dançam, por timidez. A minha irmã dançou muito com o marido e a aldeia achou magnífico.

O marido conduz agora a mulher para casa dele, a noite já caiu. O pai, se for um verdadeiro homem, ofereceu-lhe uma casa. A casa de Hussein não fica muito distante da dos pais dele, dentro da aldeia. Vão-se embora, os dois sozinhos, a pé.

 

Nós vemo-los afastar-se e choramos. Até o meu irmão chora. Choramos porque ela nos deixou, choramos porque não sabemos o que lhe vai acontecer se não for virgem para o seu marido. Não estamos tranqüilos. Temos de esperar pelo momento em que o marido mostra o lençol à varanda ou o pendura à janela ao romper do dia para que as pessoas constatem oficialmente a presença do sangue da virgem. O lençol deve ficar visível para todos e deve vir vê-lo o maior número de pessoas da aldeia. Se houver apenas duas ou três testemunhas, não chega. A prova pode ser contestada, nunca se sabe.

Lembro-me da casa deles e do pátio. Havia um muro de pedra e de cimento a toda a volta. Estava toda a gente de pé, à espera. De súbito, o meu cunhado apareceu com o lençol, o que desencadeou as aclamações. Os homens assobiam, as mulheres cantam, batem nas mãos, quando ele exibiu o pano branco. É um lençol especial que se coloca na cama para a primeira noite. Hussein prende-o agora à varanda com molas brancas de cada lado. O casamento é de branco, a roupa de cama é branca, as molas são brancas. O sangue é vermelho.

Com a mão, Hussein saúda a multidão e volta a entrar. É a vitória.

O sangue do carneiro, o sangue da mulher virgem, sempre o sangue. Lembro-me que o meu pai costumava matar um carneiro em todos os Aid. O sangue enchia uma bacia e ele mergulhava um trapo lá dentro para pintar a porta de entrada e os ladrilhos. Era preciso meter os pés lá dentro para transpor a porta pintada de sangue até acima. Aquilo punha-me doente. Tudo o que ele matava deixava-me doente de medo. Quando ainda era criança, obrigavam-me, assim como às outras, a ver o meu pai matar as galinhas, os coelhos, os carneiros e, tanto eu como a minha irmã, estávamos convencidas de que ele nos podia torcer o pescoço como às galinhas e sangrar-nos como a um carneiro. Da primeira vez, estava de tal modo aterrorizada que me refugiei nas pernas da minha mãe para não ver, mas ela obrigou-me a olhar. Queria que eu soubesse como é que o meu pai matava para fazer parte da família, para não ter medo. Mas apesar disso nunca deixei de ter medo, porque o sangue representava o meu pai.

 

No dia seguinte ao casamento, contemplava como os demais o sangue da minha irmã no lençol branco. A minha mãe chorava e eu também. Chora-se muito nesses momentos, porque temos de manifestar a nossa alegria, saudar a honra do pai que a preservou virgem. E choramos também de alívio, porque Noura triunfou da grande provação. Da única provação de toda a sua vida. Só lhe resta provar que é capaz de lhe dar um filho.

Espero o mesmo para mim, é normal. E estou muito satisfeita por ela ter casado: a seguir, será a minha vez. Nessa altura, curiosamente, nem sequer penso em Kainat, como se a minha irmã um ano mais velha do que eu não contasse. Contudo, era a ela que competia casar antes de mim!

Depois voltamos para casa. Vamos arrumar o pátio. É a família da noiva que vai lavar a louça, limpar tudo, deixar o pátio impecável, há muito que fazer. Às vezes as vizinhas vêm dar uma ajuda, mas não é a regra.

A partir do momento em que casa, Noura não vem muito a nossa casa, aliás não tem motivos para vir porque vai ocupar-se da sua família. No entanto, alguns dias após o casamento, menos de um mês de qualquer modo, veio a nossa casa queixar-se à mamã e estava a chorar. Como não podia perguntar o que se passava, fiquei à espreita ao cimo das escadas para tentar perceber.

Noura mostrou-lhe as marcas da sova. Hussein tinha-lhe batido tanto que até tinha marcas no rosto. Desceu as calças para mostrar as coxas violáceas e a mamã chorava. Ele deve tê-la arrastado pelos cabelos, todos os homens fazem isso. Mas não percebi por que razão Hussein a tinha espancado. Às vezes basta que a jovem esposa não saiba cozinhar muito bem, que se esqueça do sal, que não haja molho porque se esqueceu de deitar um pouco de água... basta isso para levar pancada. Noura queixou-se à minha mãe, porque o meu pai é muitíssimo violento e tê-la-ia mandado para casa sem a ouvir. A mamã ouviu-a mas não a consolou. Disse-lhe:

- É o teu marido, não é grave, vais voltar para casa.

E Noura voltou, apesar de ter sido espancada como foi. Voltou para casa do marido que a tinha agredido à paulada.

Não tínhamos alternativa. Mesmo que nos estrangulassem, não tínhamos alternativa. Ao ver a minha irmã naquele estado, eu podia ter pensado que o casamento não serve para mais nada senão para ser espancada como dantes.

 

Mas mesmo perante a idéia de apanhar pancada, mais do que tudo no mundo eu desejava casar. É uma coisa curiosa o destino das mulheres árabes, pelo menos na minha aldeia. Aceitam-no naturalmente. Nem nos passa pela cabeça revoltarmo-nos. Sabemos chorar, esconder-nos, mentir se for preciso para evitar a pancada, mas revoltarmo-nos nunca. Apenas porque não temos outro sítio onde viver senão em casa do pai ou do marido. Viver sozinha é inconcebível.

Hussein nem sequer veio buscar a mulher. Aliás, ela não ficou muito tempo tal o medo da minha mãe de que a filha quisesse voltar para casa! Mais tarde, quando Noura engravidou e toda a gente esperava que tivesse um rapaz, passou a ser a princesa da família do marido, do marido e da minha família. Eu às vezes sentia ciúmes. Ela era mais importante do que eu na família. Já antes do casamento falava mais com a minha mãe e depois de casar estavam ainda mais próximas uma da outra. Quando iam apanhar juntas o feno, demoravam mais tempo porque falavam muito uma com a outra. Fechavam-se numa das divisões, cuja porta era verde, lembro-me bem, e eu passava diante da porta. Sentia-me só e abandonada porque a minha irmã estava atrás daquela porta com a minha mãe, a ser depilada. O compartimento servia também para armazenar o trigo, as azeitonas e a farinha.

Não sei por que razão aquela porta me veio brutalmente à memória. Atravessava-a muitas vezes, quase todos os dias, com sacos. Passou-se algo inquietante atrás dessa porta, mas o quê? Penso que me escondi no meio dos sacos, com medo. Estou a ver-me como se fosse um macaco, acocorada de joelhos, no escuro. Aquela divisão não tem muita luz. Escondi-me lá, e tenho a testa encostada ao chão. Os ladrilhos são castanhos, pequenos quadrados castanhos. E o meu pai pintou de branco o espaço entre os ladrilhos. Tenho medo de qualquer coisa. Vejo a minha mãe, que tem um saco enfiado na cabeça. Foi o meu pai que lhe enfiou o saco na cabeça. Foi ali ou noutro sítio? Foi para a castigar? Quer estrangulá-la? Não posso gritar. Em todo o caso é o meu pai, ele mantém o saco muito apertado junto à nuca da mamã, vejo o perfil dela, o nariz contra o tecido. Segura-a pelos cabelos com uma das mãos e com a outra aperta o saco.

Ela está vestida de negro. Deve ter-se passado qualquer coisa algumas horas antes.

 

Mas o quê? A minha irmã veio a nossa casa, porque o marido lhe batia. A mamã ouviu-a, será que a mamã não deve lamentar a filha? Não deve chorar, não deve tentar defendê-la junto do meu pai? Parece-me que as recordações se encadeiam a partir daquela porta verde. A visita da minha irmã, eu escondida no meio dos sacos cheios de trigo, a minha mãe a ser asfixiada pelo meu pai com um saco vazio. Devo ter entrado ali para me esconder. É um hábito meu, esconder-me. No estábulo, no quarto ou no armário do corredor onde põem a secar as peles de carneiro antes de as venderem. Estão penduradas como no mercado e escondo-me lá dentro, mesmo que me falte o ar, para não me apanharem. Mas é raro esconder-me no meio dos sacos da despensa, porque tenho muito medo que saiam de lá cobras. Se me fui esconder ali é porque temo que também me aconteça alguma coisa de mal a mim.

Talvez fosse no dia em que o meu pai tentou sufocar-me com uma pele de carneiro, num dos quartos do piso superior. Quer que eu lhe diga a verdade, que lhe diga se a mamã o enganou ou não. Dobrou a pele ao meio. E comprime-me a cabeça. Prefiro morrer do que trair a minha mãe. Apesar de a ter visto com os meus próprios olhos esconder-se com um homem. Se eu disser a verdade, ele mata-nos às duas. Mesmo com uma faca na garganta, não a posso trair. Já não consigo respirar. É ele que me solta ou sou eu que lhe fujo? Seja como for, corro e vou esconder-me lá em baixo, atrás daquela porta verde, no meio dos sacos imóveis que parecem monstros. Sempre me meteram medo naquela divisão quase negra. Costumava sonhar que, durante a noite, o meu pai esvaziava o trigo e enchia os sacos de serpentes!

É assim que, por vezes, fragmentos da minha vida anterior tentam encontrar espaço na minha memória. Uma porta verde, um saco, o meu pai que quer asfixiar a minha mãe e a mim para me obrigar a falar, o medo do escuro, e as serpentes.

Não há muito tempo, estava a encher um grande saco de lixo e um bocado de papel de embalagem de plástico ficou preso em cima. Foi deslizando aos poucos para o fundo do saco, fazendo um barulho especial. Dei um salto como se uma serpente fosse saltar do caixote de lixo. Estava a tremer e desatei a chorar como uma criança.

 

O meu pai sabia matar uma serpente. Tinha uma bengala especial com dois ganchos na extremidade. Apertava-a entre os dois ganchos e a serpente não se podia mexer. Em seguida, matava-a com um pau. Assim como era capaz de imobilizar as serpentes para as matar, também era capaz de as meter nos sacos para me morderem se eu lá enfiasse a mão para tirar farinha. Era por isso que eu tinha medo daquela porta verde, que ao mesmo tempo me fascinava porque a minha mãe e a minha irmã iam para lá fazer a depilação, sem mim. E continuava a não ser oficialmente pedida em casamento.

Contudo, o boato tinha-me chegado aos ouvidos, quando tinha apenas uns doze ou treze anos... Uma família tinha falado em mim aos meus pais, a título oficioso. Algures na aldeia, havia um homem para mim. Mas era preciso esperar. Antes da minha, era a vez de Kainat.

 

                   ASSAD

Fui a única que desatei a correr, aos gritos, quando o cavalo escorregou e ele caiu. Tenho constantemente diante de mim a imagem do meu irmão: tinha uma camisa verde com muitas cores e, como estava vento, a camisa flutuava nas suas costas. Estava magnífico em cima do cavalo. Eu gostava tanto dele, do meu irmão, que aquela imagem jamais me abandonou.

Creio que era ainda mais gentil com ele depois do desaparecimento de Hanan. Rojava-me aos seus pés. Não tinha medo dele, não receava que me fizesse mal... Seria por ser mais velha do que ele? Por sermos mais chegados? No entanto, ele também nos batia quando o meu pai não estava. Chegou mesmo a agredir a minha mãe uma vez. Discutiram, ele puxou-lhe pelos cabelos e ela chorou... estou a vê-los com toda a nitidez, mas não me lembro do motivo dessa briga. Continuo a ter uma enorme dificuldade em juntar as imagens, em detectar um significado. Como se a minha memória palestina se tivesse pulverizado em pequenas partículas na nova vida que tive de construir na Europa.

Hoje é difícil de entender, depois do que o meu irmão fez, mas naquela época, depois de passado o terror, de certeza que não tomei consciência de que Hanan estava morta. Só hoje, ao rever a cena que surgiu na minha memória, é que não posso pensar outra coisa ao relacionar os fatos entre si, com lógica e distanciamento. Por um lado, os meus pais estavam ausentes, e sempre que ocorre um drama, isto é, quando uma mulher é condenada pela família, aquele que é encarregado da sua execução é o único presente.

Depois, nunca mais voltei a ver Hanan em casa. Nunca mais. Nessa tarde, Assad estava louco de raiva, humilhado por ter sido posto de lado na altura do parto da mulher, humilhado pelos sogros. A notícia da morte do filho esperado teria chegado através daquele telefone? Teria Hanan sido brusca com ele? Não sei. A violência em casa dos meus pais, e na nossa aldeia em geral, era tão recorrente e quotidiana em relação às mulheres! E eu gostava tanto de Assad! Quanto mais o meu pai detestava o filho, mais eu adorava aquele único irmão.

Lembro-me do seu casamento como de uma festa extraordinária. Provavelmente a única recordação de verdadeira alegria no meu passado de demência. Eu devia ter uns dezoito anos e era velha. Tinha mesmo recusado assistir a um outro casamento, porque as raparigas troçavam de mim abertamente. Ditos, cotoveladas, risos desagradáveis à minha passagem. E eu chorava o tempo todo. Às vezes tinha vergonha de passar na aldeia com o rebanho com receio do olhar das pessoas. Não era melhor do que a vizinha que tinha a mancha no olho e que ninguém queria. A minha mãe autorizou-me a não ir ao casamento de uma vizinha, porque compreendia o meu desespero. Foi então que ousei falar ao meu pai:

- A culpa é tua! Deixa-me casar!

Ele insistia em não querer e deu-me murros na cabeça.

- A tua irmã tem de casar primeiro! Desaparece!

Eu só disse uma vez, não voltei a repetir.

Mas no casamento do meu irmão, toda a família está feliz e eu em especial. Ela chama-se Fatma e não compreendo porque é que vem de uma família estranha de outra aldeia. Não havia nenhuma família com uma filha casadoira à nossa volta? O meu pai alugou autocarros para irmos ao casamento. Um para as mulheres e outro para os homens. O dos homens vai à frente, bem entendido.

Atravessamos montanhas e de cada vez que descrevemos uma curva as mulheres soltam exclamações para agradecer a Deus ter-nos protegido da ravina, de tal modo o caminho é perigoso. A paisagem assemelha-se a um deserto, a estrada não está alcatroada, é um caminho de terra seca e escura, e as rodas do carro dos homens levantam uma grande nuvem de poeira à nossa frente. Mas toda a gente dança. Levo um tambor pequeno apertado entre os joelhos e acompanho as exclamações de júbilo das mulheres. Danço também, com o meu lenço, sou muito hábil a dançar. Toda a gente dança, toda a gente está alegre, o motorista é o único que não dança!

O casamento do irmão é uma festa muito maior do que o da irmã. A mulher dele é jovem, bela, de estatura pequena e muito morena. Não é uma criança, tem quase a mesma idade de Assad. Na aldeia, na nossa terra, troçaram um pouco do meu pai e da minha mãe por o meu irmão ser «obrigado» a desposar uma rapariga de idade madura e desconhecida. Devia casar com uma rapariga mais nova do que ele, pois não é normal desposar uma mulher da mesma idade! E por que razão ir procurá-la fora? É uma rapariga muito bonita e tem a sorte de ter muitos irmãos. O meu pai teve de gastar muito ouro para a pedir em casamento. Ela recebeu imensas jóias.

O casamento dura três dias inteiros de dança e de festa. E no regresso, lembro-me de que o motorista parou o carro na berma da estrada e que dançamos mais. Estou a ver-me com o tambor e o lenço, tenho o coração feliz, estou orgulhosa de Assad. Para nós ele é como o bom Deus e é muito estranho este amor por ele, que teima em perdurar. É a única pessoa que sou incapaz de odiar, apesar de me bater, apesar de espancar a mulher, apesar de se ter tornado um assassino.

Aos meus olhos, ele é Assad o ahouia. Assad meu irmão. Assad ahouia. Bom-dia meu irmão Assad. Nunca saio para o trabalho sem lhe dizer: «Bom-dia, meu irmão Assad!» Uma verdadeira devoção. Em crianças, partilhamos muitas coisas. Agora que está casado e que vive em nossa casa com a mulher, continuo a servi-lo. Se faltar água quente para o seu banho, vou aquecê-la para ele, limpo a banheira, lavo e arrumo-lhe a roupa. Coso-a se for preciso antes de a guardar no seu lugar.

Na verdade, não devia amá-lo nem servi-lo com tanta dedicação, porque ele é como os outros homens. Muito pouco tempo depois do casamento, Fatma é espancada e envergonha-o ao regressar para casa dos pais. E, ao contrário do que é costume, o pai e a mãe não a trazem de volta para casa, à força, nesse mesmo dia. Talvez sejam mais ricos, mais avançados do que nós, ou, sendo a única filha, gostem mais dela, não sei. Creio que os problemas entre o meu pai e Assad começaram por causa disso. O meu irmão tinha querido aquela mulher de outra aldeia, tinha obrigado o pai a dar muito ouro, e o resultado era que a mulher abortara em vez de lhe dar um filho e nos trouxera a desonra ao voltar para casa dela! Não assisti às reuniões de família, como é evidente, e não existe nada na minha memória que justifique as deduções que hoje faço, mas lembro-me perfeitamente do meu pai no terraço com o cesto cheio de pedras, que vai atirando uma a uma à cabeça de Assad. E lembro-me do armário que o meu irmão encostou contra a porta do seu quarto para o impedir de entrar. Talvez Assad quisesse a casa só para si e, por isso, comportava-se como se ela lhe pertencesse. Penso que o meu pai não queria que ele tivesse poder dentro de casa. Não queria que o privasse da sua autoridade e do seu dinheiro.

O meu pai dizia com muita freqüência ao meu irmão: «Tu és ainda uma criança!»

Assad revoltava-se, tanto mais que era muito seguro de si e demasiado mimado por nós. Era o príncipe da casa e, na nossa terra, nunca se deve dizer a um homem que ele é uma criança, o que é uma humilhação grave! E ele berrava: «Estou em minha casa!» O meu pai não suportava aquilo. Na aldeia, as pessoas perguntavam-se que asneira é que Fatma teria feito, porque é que ia tantas vezes para casa do pai. Tê-la-iam visto com outro homem? Nestes casos, os boatos espalham-se depressa. Diziam-se coisas más acerca dela, mas era completamente mentira, porque era uma rapariga gentil. Infelizmente, basta que alguém diga uma única vez «Ela é má» para passar a ser má para toda a aldeia e acabou-se, nunca mais deixa de ser mal vista.

A minha mãe sentia-se infeliz com tudo aquilo. Às vezes, tentava acalmar o meu pai quando ele se pegava com Assad:

- Porque fazes isso? Deixa-o em paz!

- Tenho vontade de o matar! E se tentares protegê-lo, também dou cabo de ti!

Vi Fatma caída no chão e o meu irmão dar-lhe pontapés nas costas. Houve um dia em que ela apareceu com um olho vermelho e o rosto todo pisado. Mas não podíamos dizer nem fazer nada. Entre a violência do pai e do filho, a única coisa que nos restava era escondermo-nos para não apanharmos também.

O meu irmão amava a mulher? Naquele momento, o amor era para mim um mistério. Na nossa terra, fala-se de casamento mas não de amor. Fala-se de obediência e de submissão total, mas não de relações de amor entre o homem e a mulher.

 

Apenas de uma relação sexual obrigatória entre uma rapariga virgem comprada para o marido. De contrário, só resta o esquecimento ou a morte. Onde está então o amor?

No entanto, lembro-me de uma mulher da aldeia, a que vivia na casa mais bela com o marido e os filhos. Eram conhecidos pelo luxo da sua casa e pela sua riqueza. As crianças freqüentavam a escola. Era uma família grande, porque casavam sempre entre primos. Em casa deles, havia azulejos por toda a parte. Até a passagem exterior era ladrilhada. Nas outras casas, eram de pedras ou de areia, às vezes de alcatrão. Mas ali havia uma bela álea, com árvores. Havia um homem que tratava do quintal e do pátio, cercado por um gradeamento de ferro forjado que brilhava como ouro. De longe, reparava-se naquela casa. Na minha terra, adoramos tudo o que brilha. Se um homem tiver um dente de ouro, é porque é rico! E quando se é rico, tem de se mostrar que se é. Aquela casa era moderna e nova, magnífica vista de fora. Havia dois ou três carros sempre estacionados em frente. Nunca lá entrei, claro, mas quando passava defronte com os carneiros, fazia-me sonhar. O proprietário chamava-se Hassan. Era um homem muito alto, muito moreno e muito elegante. Eram muito ligados um ao outro, ele e a mulher, andavam sempre juntos. Ela estava grávida de gêmeos e ia dar à luz. Infelizmente o parto correu mal, os gêmeos sobreviveram, mas a mulher morreu. Paz à sua alma, pois era muito jovem. Foi o único enterro que vi na aldeia. O que me comoveu e impressionou foi ver toda a família a gritar e a chorar atrás da charola onde repousava o corpo, e o marido mais do que ninguém. Com a dor rasgou a longa camisa branca tradicional, enquanto caminhava atrás do corpo da mulher. E a sogra também rasgou o vestido. Vislumbrei os seios nus daquela mulher de idade, pendentes sobre o ventre por entre os bocados de tecido rasgado. Nunca tinha visto tamanho desespero. Aquela mulher que iam enterrar era amada, a sua morte consternava toda a família, toda a aldeia.

Eu também estava lá, ou vi o enterro do alto do terraço? É mais provável que fosse do terraço, porque era ainda muito nova. Seja como for, também chorei. Havia imensa gente. Atravessaram lentamente a aldeia. E aquele homem que clamava a sua dor, que rasgava a camisa, nunca o poderei esquecer. Como era belo ao gritar de amor pela mulher!

 

Era um homem com muita dignidade e caráter.

Os pais da minha mãe e do meu tio habitavam na aldeia e o meu avô, Mounther, também andava sempre muito cuidado. Era muito alto, como o filho, bem barbeado, sempre impecável, mesmo quando usava o traje tradicional. Tinha sempre na mão o «rosário» e desfiava as contas uma atrás da outra entre os dedos esguios. Às vezes vinha fumar um cachimbo com o meu pai e pareciam entender-se bem. Porém um dia a minha mãe saiu de casa para dormir em casa dos pais dela, porque o meu pai lhe tinha batido muito. Deixou-nos sozinhos com ele. Na nossa terra, uma mulher não pode levar os filhos consigo. Sejam raparigas ou rapazes, ficam em casa do pai. À medida que fui crescendo, mais ele lhe batia e mais ela se ia embora. Era o avô Mounther que a trazia à força para casa. Ausentava-se às vezes uma semana, outras vezes um dia ou uma noite. Certa vez, esteve ausente pelo menos um mês e o meu avô recusou-se a falar com o meu pai.

Penso que se a minha mãe tivesse morrido, nunca teria um enterro como o daquela mulher e o meu pai não teria gritado nem chorado, nem rasgado a camisa como o senhor Hassan. Ele não amava a minha mãe.

Devo ter-me convencido de que, na nossa terra, o amor não existia ou, pelo menos, na nossa casa. Ao fim e ao cabo, só tinha o meu irmão a quem amar, apesar da sua violência e, às vezes, da sua loucura. As minhas irmãs também o amavam. Noura já não vivia lá em casa, mas Kainat era como eu, protegia-o e regozijava-se quando ele montava a cavalo.

Para além das irmãs mais pequenas, demasiado pequenas para se pensar em casamento, só restávamos nós em casa. Duas solteironas. Em relação a Kainat, eu tinha a impressão de que ela se resignava. Não era feia, mas... não era muito bonita nem muito sorridente. Kainat era diferente de mim. Talvez fôssemos duas camponesas mal vestidas, mal penteadas... Mas eu era pequena e delgada e ela era bastante forte, com um peito demasiado grande. Entre nós, os homens gostam de mulheres fartas de carnes, mas não apreciam muito um peito grande. Ela não devia agradar, isso entristecia-a, mas não podia fazer nenhum esforço para ser mais bonita.

 

Kainat engordara apesar de comer o mesmo que eu, a culpa não era dela. E, de qualquer modo, nem uma nem outra tínhamos a possibilidade de parecermos mais bonitas do que Deus nos fizera. Como? Não tínhamos belos vestidos, usávamos sempre as mesmas calças brancas ou cinzentas, não nos pintávamos nem usávamos jóias. Além disso, ficávamos fechadas como galinhas velhas, caminhando rente às paredes, contando os passos, de nariz baixo, desde que saíamos de casa com os carneiros.

Se Kainat não acalenta esperanças e me veda o caminho do casamento, eu pelo menos sei que houve um homem que me pediu em casamento. Disse-me a minha mãe:

- Veio cá o pai de Faiez pedir-te para o filho. Mas por enquanto não podemos falar em casamento, temos de esperar pela tua irmã.

Desde então, imagino que ele espera por mim e se impacienta com a recusa dos meus pais.

O meu irmão Assad conhece-o. Mora na casa em frente da nossa, do outro lado da estrada. Não são camponeses como nós, não tratam muito da horta. Os pais dele tiveram três filhos e Faiez é o único que falta casar. Não há raparigas em casa, é por isso que não está cercada de muros, mas antes por uma bela vedação e a porta nunca está fechada à chave. As paredes são cor-de-rosa e o carro que está sempre estacionado em frente é cinzento.

Faiez trabalha na cidade. Não sei o que faz, mas imagino que esteja num escritório como o meu tio. De qualquer modo, é muito melhor do que Hussein, o marido da minha irmã mais velha. Hussein anda sempre com fato de operário, sempre pouco limpo e cheira mal.

Faiez é a elegância personificada, tem um carro de quatro lugares, com que sai todas as manhãs.

Comecei a espiar o carro para o ver. O melhor observatório é o terraço onde vou sacudir os tapetes de lã de carneiro, onde apanho as uvas, onde estendo a roupa. Se estiver atenta, posso descobrir sempre qualquer coisa para fazer lá em cima.

Reparei primeiro que ele estacionava sempre o carro no mesmo sítio, a pouca distância da porta. Como não podia permanecer demasiado tempo no terraço, para descobrir a que horas é que ele saía de casa demorei vários dias até perceber que saía por volta das sete todas as manhãs, uma altura em que para mim era muito fácil arranjar qualquer coisa para fazer lá em cima.

A primeira vez que o vi tive sorte. Apressara-me a limpar o estábulo e carregava um molho de feno seco para uma ovelha doente prestes a parir. Encontrava-me a dois ou três passos com a palha nos braços quando ele saiu. Tão elegante como o meu tio, de fato completo, com uns belos sapatos pretos e beges com atacadores, uma pasta na mão, os cabelos muito negros, a pele muito morena e uma postura orgulhosa.

Baixei a cabeça e enfiei o nariz na palha. Ouvi o som dos seus passos até chegar ao pé do carro, o barulho da porta ao fechar-se, o ruído do motor e dos pneus no cascalho. Só levantei a cabeça quando o carro se afastou e esperei que desaparecesse, com o coração a bater-me no peito e as pernas a tremer. E pensei: «Quero este homem para marido, amo-o. Quero-o, quero-o...»

Mas que fazer? Como suplicar-lhe que fosse ele próprio suplicar ao meu pai a celebração do casamento? Antes de mais, como falar com ele? Uma rapariga não dirige a palavra a um homem. Nem sequer deve olhá-lo de frente. Ele é inacessível e, mesmo que esse homem queira casar comigo, não é ele quem decide. É o meu pai, sempre ele, e era capaz de me matar se soubesse que me demorei um minuto no caminho com o feixe de palha para chamar a atenção de Faiez.

Naquele dia não esperava tanto, mas queria que ele me visse, que soubesse que eu também estava à espera. Por isso, decidi fazer tudo o que pudesse para me encontrar com ele às escondidas e falar-lhe. Apesar de correr o risco de ser morta à pedrada ou à paulada. Não queria continuar à espera meses ou anos que Kainat saísse de casa, era demasiado injusto. Não queria ficar mais velha e tornar-me no alvo da chacota da aldeia. Não queria perder toda a esperança de ir para outro lugar com um homem, de me libertar das brutalidades do meu pai.

Todas as manhãs e todos os fins de tarde estarei no terraço, à espreita do meu apaixonado, até que ele levante os olhos para mim e me faça um sinal. Ou um sorriso. De contrário, tenho a certeza de que irá pedir em casamento outra rapariga da aldeia ou fora da aldeia. E, um dia, verei uma mulher subir para o carro em vez de mim.

Ela vai roubar-me Faiez.

 

                  O SEGREDO

Estou consciente de que arrisco a vida por causa desta história de amor que começa há perto de vinte cinco anos, na minha aldeia natal na Cisjordânia. Uma aldeia minúscula, então em território ocupado pelos Israelitas, e cujo nome ainda não posso dizer. Porque continuo a pôr em perigo a minha vida, mesmo a milhares de quilômetros de distância. Na minha terra estou oficialmente morta, a minha existência foi olvidada desde há muito, mas se lá voltasse hoje matar-me-iam uma segunda vez para salvar a honra da minha família. E o direito tradicional.

No terraço da casa familiar, espiando a chegada do homem que amo, sou uma rapariga que corre perigo de morte. No entanto, só penso numa coisa: no casamento.

É Primavera. Não sei dizer o mês, provavelmente Abril. Na minha aldeia as contas não se fazem da mesma maneira que na Europa. Nunca se sabe ao certo a idade do pai ou da mãe, ignoramos a data do nosso nascimento. Calcula-se o tempo em função do Ramadão, da estação das ceifas ou da colheita dos figos. Orientamo-nos pelo sol ao longo de uma jornada de trabalho, que começa e acaba com ele.

Julgo ter cerca de dezessete anos, mas saberei mais tarde que tenho dezenove nos papéis. Ignoro a existência desses papéis e como é que foram feitos. É muito possível que a minha mãe tenha confundido o nascimento de uma das filhas com o de outra no momento em que a obrigaram a dar-me uma existência oficial. Estou madura desde que me apareceram as regras e apta a casar depois de três ou quatro períodos de Ramadan.

 

Serei uma mulher no dia do meu casamento. A minha própria mãe ainda é nova mas já parece uma velha e o meu pai é velho porque lhe faltam muitos dentes.

Faiez é sem dúvida mais velho do que eu, o que é bom. O que espero dele é segurança. O meu irmão Assad casou muito jovem ainda com uma rapariga da idade dele e, se por azar ela não lhe der filhos, um dia terá de arranjar outra mulher.

Ouço os passos de Faiez no saibro do caminho. Sacudo o tapete de lã no parapeito do terraço e ele levanta os olhos. Observa-me e sei que percebeu. Não há o mínimo gesto e, sobretudo, nem uma palavra, entra no carro e parte. O meu primeiro encontro durou o tempo de trincar uma azeitona, uma emoção inesquecível.

Na manhã do dia seguinte, mais aventurosa, simulo ir buscar uma cabra para passar diante da porta dele. Faiez sorri-me e como o carro não arranca logo, sei que ele me observa enquanto me dirijo ao prado com o gado. De manhã, o ar é mais fresco, o que me deu uma oportunidade de vestir o casaco de lã vermelha, a minha única roupa nova, abotoado desde o umbigo até ao pescoço, e que me faz parecer mais bonita. Se pudesse dançar no meio dos carneiros, dançaria. O meu segundo encontro durou mais tempo, porque ao virar-me levemente à saída da aldeia, vejo que o carro ainda não arrancou.

Não posso ir mais longe, no que toca a deixar-lhe sinais. Cabe-lhe agora a ele decidir como há de fazer para falar comigo às escondidas. Sabe para onde vou e a que horas.

No dia seguinte, a minha mãe não está, o meu pai foi à cidade com ela, o meu irmão está com a mulher e Kainat ocupa-se dos estábulos e das irmãs mais pequenas. Vou sozinha apanhar a erva para os coelhos. Depois de ter caminhado um quarto de hora, Faiez aparece à minha frente. Seguiu-me discretamente e saúda-me. A sua súbita presença deixa-me desvairada. Olho à minha volta, inquieta, com receio de ver aparecer o meu irmão ou uma mulher da aldeia. Não se vê vivalma, mas avisto a proteção de um talude bastante alto na berma do campo e Faiez segue-me. Sinto vergonha, não despego os olhos dos pés, machuco o vestido e puxo os botões do casaco, sem saber que dizer. Ele toma uma pose lisonjeira, com uma haste de trigo entre os dentes e examina-me:

- Porque é que não te casas?

- Tenho de encontrar o homem da minha vida e esperar que a minha irmã se case.

- O teu pai falou contigo?

- Disse-me que o teu pai tinha ido falar com ele, há já bastante tempo.

- Vives bem em tua casa?

- Se ele me vir contigo, bate-me.

- Gostavas que nos casássemos um com o outro?

- Mas é preciso que a minha irmã case primeiro...

- Tens medo?

- Tenho, tenho medo. O meu pai é mau. Também é perigoso para ti. O meu pai pode bater-me e bater-te a ti também.

Ele continua tranqüilamente sentado atrás do talude enquanto eu me apresso a apanhar a erva. Parece estar à minha espera, embora saiba muito bem que não posso regressar à aldeia com ele.

- Tu ficas aqui, eu vou voltar sozinha.

Caminho depressa ao regressar a casa, orgulhosa de mim mesma. Quero que ele fique com boa impressão, que me ache uma rapariga atilada. Tenho de ter muito cuidado com a minha reputação perante ele, porque fui eu que tomei a iniciativa.

Nunca me tinha sentido tão feliz. É maravilhoso estar com ele, tão perto, ainda que por breves minutos. É uma sensação que me invade todo o corpo, sem que a saiba definir com clareza naquele momento. Sou extremamente ingênua e a educação que recebi não é superior à de uma cabra, mas essa sensação de maravilhamento é a da liberdade do meu coração e também do meu corpo. Pela primeira vez na minha vida sou alguém porque eu própria decidi fazer aquilo que faço. Estou viva. Não obedeço nem ao meu pai nem a mais ninguém. Pelo contrário, desobedeço.

A minha recordação desses instantes e dos que se seguiram é muito nítida. Antes disso, é praticamente inexistente. Não me revejo, não sei como sou, se sou bonita ou não. Não tenho consciência de ser um ser humano, de pensar, de ter sentimentos. Conheço o medo, a sede quando está calor, o sofrimento e a humilhação de ficar presa no estábulo como um animal e de ser espancada até deixar de sentir as costas. O terror de ser asfixiada ou atirada para o fundo de um poço. Recebi docilmente muita pancada. Apesar de o meu pai já não correr tão depressa como nós, arranja sempre maneira de nos apanhar. Para ele é fácil esmurrar-me a cabeça no rebordo da banheira se eu entornar umas gotas de água. É simples bater-me com a bengala nas pernas quando me atraso a trazer-lhe o chá. Quando se vive assim, não é possível refletirmos sobre nós. O meu primeiro verdadeiro encontro com Faiez, no campo de trigo verde, dá-me pela primeira vez em toda a minha existência a idéia de quem sou. Uma mulher, impaciente por encontrá-lo, que o ama e que está determinada a ser sua esposa a qualquer preço.

No dia seguinte, no mesmo sítio, ele espera que eu passe a caminho do campo para ir ter comigo.

- Olhas para outros rapazes além de mim?

- Não. Nunca.

- Queres que fale com o teu pai sobre o casamento? Apetecia-me beijar-lhe os pés por causa daquelas palavras.

Queria que ele fosse logo, naquele mesmo minuto, que corresse a anunciar ao pai que ele, Faiez, não quer esperar mais tempo, que tem de me pedir à minha família, levar o ouro e as jóias para mim, e preparar uma grande festa.

- Faço-te sinal da próxima vez, mas não vistas o teu casaco vermelho quando vieres ter comigo, dá muito nas vistas e é perigoso.

Os dias passam, o sol nasce e põe-se, e de manhã e à noite espreito um sinal dele, lá em cima no terraço. Agora tenho a certeza de que ele está apaixonado. No nosso último encontro não apareceu. Esperei durante muito tempo, mais de um quarto de hora, correndo o risco de chegar a casa atrasada e de apanhar do meu pai. Sentia-me inquieta e infeliz, mas na vez seguinte ele veio. Vi-o aproximar-se ao longe, fez-me sinal para me esconder ao fundo do campo, atrás do talude onde ninguém nos pode ver porque as ervas são altas.

- Porque não vieste?

- Vim, mas escondi-me mais longe para ver se tu te encontravas com mais alguém.

- Eu não olho para ninguém.

- Os rapazes assobiam quando passas.

- Os meus olhos não se desviam nem para a direita nem para a esquerda. Sou uma rapariga honesta.

- Agora já sei. Falei com o teu pai. Casaremos em breve.

 

Ele cumprira o que dissera, tinha ido falar com o meu pai depois do nosso segundo encontro. E embora a data não tivesse sido fixada, o ano não chegaria ao fim sem eu estar casada.

É um dia belo e quente, os figos ainda não estão maduros, mas tenho a certeza de que não terei de esperar pelo começo do Verão e das colheitas para a minha mãe preparar a cera quente para me depilar. Faiez aproxima-se de mim, muito perto. Fecho os olhos, tenho um certo medo. Sinto a mão dele na nuca e beija-me na boca. Afasto-o logo, sem dizer nada, mas o meu gesto quer dizer: «Atenção! Não avances mais.»

- Até amanhã. Espera por mim, mas não no caminho, é muito perigoso. Esconde-te aqui, na vala. Venho ter contigo depois do trabalho.

Ele é o primeiro a partir. Espero que esteja bastante longe para regressar como de costume, mas desta vez mais nervosa. Aquele beijo, o primeiro da minha vida, perturbou-me. E no dia seguinte, ao vê-lo aproximar-se do meu esconderijo, sinto o coração confrangido. Ninguém em casa suspeita dos meus encontros secretos. De manhã, a minha irmã acompanha-me por vezes para levarmos os carneiros e as cabras, mas a maior parte das vezes regressa para tratar do estábulo e da casa, pelo que fico sozinha durante a tarde. Na Primavera, a erva está alta, os carneiros devem aproveitar e é sobretudo a eles que devo uma certa facilidade para me deslocar sozinha. É uma falsa liberdade que a família me concede, porque o meu pai está sempre atento ao momento em que saio e ao momento em que entro. A aldeia e os vizinhos lá estão para me lembrarem que não tenho direito ao mínimo desvio. Comunico através de sinais invisíveis com Faiez, do terraço. Um gesto da cabeça, e sei que ele virá. Mas se entrar no carro muito depressa sem olhar para cima, é porque não vem. Sei que nesse dia virá, porque mo confirmou. E experimento um sentimento muito forte de que algo se vai passar.

Tenho medo que Faiez queira algo mais do que um beijo e ao mesmo tempo desejo-o sem saber verdadeiramente o que me espera. Receio repeli-lo se ele quiser ir demasiado longe e que ele se zangue. Também confio nele porque sabe muito bem que não posso permitir que me toquem antes de casar. Sabe perfeitamente que não sou uma charmuta. E prometeu casar comigo.

 

Mas apesar disso tenho medo, ali sozinha no prado com o rebanho. Oculta no meio das ervas altas, vigio ao mesmo tempo os animais e o caminho. Não vejo ninguém. O prado está magnífico, cheio de flores. Os carneiros estão tranqüilos nesta estação, passam o tempo a pastar sem quererem fugir como em pleno Verão, quando a erva rareia.

Esperava-o vindo da direita, mas Faiez chega da direção oposta, de surpresa. Está certo, ele toma precauções para que não o vejam, está a proteger-me. É tão belo. Usa umas calças justas da cintura até ao joelho e largas para baixo. É a moda masculina para os homens que se vestem à moderna, à ocidental. Traz um pullover branco de mangas compridas, de decote em bico, que deixa ver os pêlos do peito. Acho-o elegante, incomparavelmente chique ao pé de mim. Obedeci-lhe e não trouxe o casaco vermelho, para não ser vista ao longe. Tanto o meu vestido como o saroual são cinzentos. Tive o cuidado de lavar muito bem a roupa, porque com o trabalho fica muitas vezes suja. Escondi os cabelos sob um lenço branco, mas lamento não ter trazido o casaco vermelho, gostava de estar mais bonita.

Sentamo-nos no chão e ele beija-me. Pousa-me a mão na coxa, mas eu não deixo. Zanga-se. Tem uma expressão cruel quando me olha nos olhos.

- Porque é que não queres? Deixa!

Tenho tanto medo que ele se vá embora, que vá procurar outra... Pode fazê-lo quando quiser, é um belo homem, o meu futuro marido. Amo-o, não queria ceder, tenho muito medo, mas mais medo ainda de o perder. É a minha única esperança. E então deixo que ele o faça sem saber o que me vai acontecer e até onde é que ele irá. Está ali, diante dos meus olhos, quer tocar-me, e nada mais interessa. O sol não tardará a declinar, está menos calor, já não me resta muito tempo até recolher o rebanho. Deita-me na erva e faz o que quer. Já não digo nada, não faço um gesto para o afastar. Não é violento, não me força, sabe muito bem o que faz. A dor apanha-me de surpresa. Não estava à espera, mas não é por causa disso que choro. Ele não diz nada nem antes nem depois, não me pergunta porque choro e eu própria não sei porquê tantas lágrimas. Não saberia o que lhe responder se ele me perguntasse. Eu não queria. Sou virgem, não sei nada do amor entre um homem e uma mulher, ninguém me explicou. A mulher deve sangrar, com o marido, foi tudo o que aprendi desde a infância. Ele faz o que quer em silêncio, até eu sangrar, e fica com uma expressão perplexa, como se não esperasse. Estaria convencido que eu já tinha feito aquilo com outros homens? Pelo facto de andar sozinha com os carneiros? Ele próprio tinha-me dito que me tinha espreitado e que eu era uma rapariga séria. Não me atrevo a olhá-lo de frente, tenho vergonha. Levanta-me o queixo e diz:

- Amo-te.

- Também te amo.

Não compreendi naquele momento que ele estava orgulhoso de si. Só muito mais tarde é que lhe quis mal por ter duvidado da minha honra, por se ter aproveitado de mim quando sabia perfeitamente o que eu estava a arriscar. Eu não queria fazer amor com ele escondida numa vala, queria o que querem todas as raparigas da minha aldeia. Casar, ser depilada como deve ser, ter um belo vestido e ir dormir na sua casa. Queria que ao nascer do sol ele mostrasse a todos o lençol branco manchado. Queria ouvir os aplausos das mulheres. Ele aproveitou-se do meu receio, sabia que eu acabaria por ceder para não o perder.

Fui a correr esconder-me, um pouco mais longe, para limpar o sangue das pernas e recompor a roupa, enquanto ele compunha tranqüilamente o fato. Depois, supliquei-lhe que não me abandonasse, que tratasse do casamento rapidamente. Uma rapariga que deixa de ser virgem é gravíssimo, está tudo acabado para ela.

- Nunca te abandonarei.

- Amo-te.

- Eu também te amo. Agora vais voltar para casa, mudas de roupa e fazes de conta que nada se passou. Mas sobretudo não chores em casa.

Partiu antes de mim. Eu já não chorava, mas sentia-me mal. Aquele sangue era repugnante. Fazer amor com um homem não era uma festa. Tinha sofrido, sentia-me suja, não tinha água para me lavar, mas apenas um punhado de erva para me limpar, sentia ainda um ardor no ventre e tinha de reunir os carneiros para regressar, com as calças sujas. Tinha de as lavar às escondidas. Enquanto caminhava apressada, ia pensando que não voltaria a sangrar, mas interrogava-me se sentiria sempre dores com o meu marido. Seria sempre assim tão nojento?

 

Quando chegar a casa, o meu rosto estará normal? Não choro, mas no meu íntimo sofro e tenho medo. Tomo consciência do que fiz. Deixei de ser rapariga. Já não estou em segurança enquanto não casar. Na noite do casamento, não serei virgem. Mas não é importante, porque ele sabe que eu era virgem quando estive com ele. Hei de desvencilhar-me, faço um golpe com uma faca e mancho de sangue o meu lençol de casamento. Serei como todas as outras mulheres.

Aguardo três dias. Espreito no terraço que Faiez me faça um sinal de encontro. Desta vez, leva-me até um pequeno abrigo de pedras, na outra extremidade do campo. Costumamos proteger-nos ali da chuva. Desta vez, não sangro. Ainda me sinto mal, mas tenho muito menos medo. Ele voltou e isso é tudo o que conta para mim. Está comigo e amo-o mais ainda. O que ele faz com o meu corpo não é importante, é com a cabeça que eu o amo. É toda a minha vida, toda a minha esperança de abandonar a casa dos meus pais, de ser uma mulher que anda na rua com um homem, que se senta no carro ao lado dele para ir comprar vestidos e sapatos às lojas, e ir ao mercado.

Estou contente por estar com ele, por lhe pertencer... É um homem verdadeiro. Percebi muito bem que para ele não era a primeira vez, sabe fazer bem as coisas. Estou confiante em relação ao casamento, ele não sabe ainda quando e eu também não, mas não faço perguntas. No meu espírito, é uma certeza.

Entretanto, tenho que ter muito cuidado para que ninguém me denuncie. Quando nos encontrarmos a próxima vez, mudo de caminho. Calculo quanto tempo mais será preciso e, entretanto, não me atrevo a sair sozinha de casa pela porta de ferro. Espero sempre pela minha mãe ou pela minha irmã. De manhã, espio sempre a saída de Faiez. Mal ouço os passos dele no cascalho, aproximo-me rapidamente do muro de cimento. Se houver alguém lá fora, viro as costas; se não houver ninguém, aguardo o sinal. Houve dois encontros desde que deixei de ser virgem. Não podemos ver-nos todos os dias, pois seria imprudente. O sinal para o terceiro encontro só chega ao fim de seis dias. Sinto sempre medo, mas também confiança. Estou atenta ao mínimo ruído no campo. Evito ficar na orla do prado. Aguardo, sentada na erva da vala, com o meu cajado, observo as abelhas que esvoaçam à volta das flores silvestres, sonho com o dia já próximo em que deixarei de guardar os carneiros e as cabras, em que não irei limpar os excrementos do estábulo. Ele vai chegar, amar-me e, quando se for embora, dir-lhe-ei, como da primeira e da segunda vez: «Não me abandones.»

Fazemos amor pela terceira vez. O sol está amarelo, devo regressar para ordenhar as ovelhas e as vacas. Digo-lhe:

- Amo-te, não me abandones. Quando voltas?

- Não nos podemos ver imediatamente. Temos de esperar um pouco. Temos de ter cuidado.

- Até quando?

, - Até eu te fazer sinal.

Naquele momento, a minha história de amor durava há uma quinzena de dias, o tempo de três encontros no prado onde pastavam os carneiros. Faiez tem razão em ser prudente e eu devo ser paciente, esperar que os meus pais falem comigo, tal como falaram com a minha irmã Noura. Agora o meu pai não vai poder esperar para casar Kainat antes de mim! Uma vez que Faiez me pediu em casamento e ela continua solteira aos vinte anos, pode desembaraçar-se de mim, ainda tem duas filhas! Khadija e Salima, as mais pequenas, vão trabalhar, por sua vez, com a minha mãe e ocupar-se do rebanho e das colheitas. Fatma, a mulher do meu irmão, está outra vez grávida e vai parir em breve. Também pode trabalhar. Aguardo o meu destino sempre com um ligeiro temor, porque não depende de mim. Mas a espera é demasiado longa. Os dias vão passando e Faiez não me dá qualquer sinal. Apesar disso, todas as tardes espero vê-lo aparecer como ele sabe, vindo do nada, à esquerda ou à direita da vala onde me escondo.

Uma manhã, no estábulo, sinto-me esquisita. O odor do estrume deixa-me azoada. Ao preparar a refeição, é a carne de carneiro que me agonia. Sinto-me nervosa, tenho vontade de chorar e de dormir sem motivo. Sempre que sai de casa, Faiez olha noutra direção e não me faz sinal. O tempo custa a passar, é demasiado longo e não sei quando tive o período nem quando é que deve aparecer de novo. Ouvi muitas vezes a minha mãe perguntar à minha irmã Noura:

- Já te veio o período?

- Sim, mamã.

- Então, ainda não é para agora.

E outras vezes:

- Não te veio o período? Quer dizer, portanto, que estás grávida!

Não vejo vir a minha menstruação. Verifico várias vezes ao dia. Sempre que vou à casa de banho ou ao abrigo vou ver se há sangue. Às vezes sinto-me tão estranha que a esperança renasce. Mas nunca é isso. E tenho tanto medo que o medo me aperta a garganta como se fosse vomitar. Não me sinto como dantes, não me apetece trabalhar, não me apetece levantar. Estou diferente.

Tento descobrir uma razão que não seja a pior. Interrogo-me se o choque de deixar de ser virgem pode mudar assim tanto uma rapariga. Talvez as regras não venham logo? Não me posso informar sobre esta explicação ingênua. A mínima pergunta sobre o assunto faria desabar sobre mim a ira de Deus.

Penso nisso constantemente, a toda a hora do dia e sobretudo da noite, quando me vou deitar ao pé das minhas irmãs. Se estiver grávida, o meu pai vai asfixiar-me com a manta de carneiro. De manhã, quando acordo, fico contente por estar viva.

Tenho medo que alguém da família se aperceba que não estou normal. Tenho vontade de vomitar diante do prato de arroz doce e vontade de dormir no estábulo. Sinto-me cansada, tenho as faces pálidas, a minha mãe vai forçosamente perceber e perguntar-me se estou doente. Nunca estive doente. Por isso, escondo-me, finjo que estou bem, mas é cada vez mais difícil. E Faiez não aparece. Entra no carro com o seu belo fato, a pasta e os sapatos elegantes e arranca tão depressa que levanta turbilhões de areia atrás de si. É o começo do Verão. Está muito calor logo de manhã. Tenho de sair com os animais de madrugada e trazê-los de volta antes que o sol esteja demasiado forte. Já não posso espreitá-lo do terraço, embora precise absolutamente de falar com ele sobre o casamento. Apareceu-me uma mancha esquisita no nariz. Uma pequena mancha castanha, que tento esconder porque sei o que significa. Noura também teve quando ficou grávida. A minha mãe olhou para mim com um ar surpreendido:

- O que é que tu fizeste?

- Foi com hena, esfreguei com os dedos sem prestar atenção. Tinha feito de propósito e manchado o nariz com hena.

 

Mas esta mentira não pode arrastar-se durante muito tempo. Estou grávida e há mais de um mês que não voltei a estar com Faiez.

Preciso de falar com ele urgentemente. Uma tarde, quando o sol ainda não se tinha posto, vou até à horta aquecer água como se fosse para uma barrela e subo ao terraço com a roupa, mais ou menos à hora a que sei que ele regressa. Desta vez, faço-lhe sinal com a cabeça e insisto, fazendo gestos até ele compreender: «Quero falar contigo, vou lá abaixo, segue-me...»

Ele viu-me e eu escapo-me em vez de ir tratar de uma ovelha doente ao curral, como dei a entender. A ovelha está realmente doente, estamos à espera que dê à luz, não é a primeira vez que fico junto dela. Cheguei mesmo a dormir em cima da palha uma noite inteira com receio de não a ouvir.

Ele chega ao nosso local de encontro pouco tempo depois de mim e tenta logo fazer amor, persuadido de que o chamei para isso. Recuo.

- Não, não foi para isso que te quis ver.

- Para quê, então?

- Preciso de falar contigo.

- Falamos depois... Vem!

- Tu não me amas, não nos podemos ver apenas para conversarmos?

- Claro que te amo, amo-te tanto que cada vez que te vejo desejo-te.

- Faiez, a primeira vez eu não queria nada, depois tu beijaste-me e aceitei três vezes e até hoje não voltei a ter o período.

- Talvez haja um atraso.

- Não, nunca tive atrasos e sinto-me esquisita.

Já não me deseja. Leio-o no seu rosto. Ficou pálido.

- Que vamos fazer?

- Temos de casar depressa, já! Não podemos esperar, tens de ir falar com o meu pai, mesmo que não haja festa, não me importo!

- As pessoas da aldeia vão falar, isso nunca se faz!

- Como é que vamos fazer com o lençol que tens de pendurar na varanda?

- Com isso não te preocupes, eu cá me arranjo. Mas não podemos fazer um casamento sem uma grande festa. Tínhamos combinado um grande casamento e vamos fazer um grande casamento.

Vou falar com o teu pai. Espera por mim aqui amanhã, à mesma hora.

- Mas eu nem sempre posso. Tu és homem, podes fazer o que quiseres... Espera que te faça sinal. Se eu puder, faço uma trança com os meus cabelos. Se não tirar o lenço, não venhas.

No dia seguinte, arrisco-me ao dizer que vou colher erva para a ovelha doente. Faço o sinal e corro para o nosso encontro, a tremer. O meu pai não disse nada, não ouvi dizer nada. Tenho tanto medo que quase perco o fôlego. Ele chega uma boa meia hora depois de mim. Por uma questão de prudência, passo ao ataque:

- Porque é que não foste falar com o meu pai?

- Não ouso encará-lo de frente, ao teu pai. Tenho medo dele.

- Mas tens de te despachar, já passaram quase dois meses. A barriga vai começar a crescer e o que é que eu faço?

Começo a chorar e, então, ele diz-me:

- Pára, não entres em casa a chorar. Amanhã irei falar com o teu pai.

Eu acreditei, tamanho era o meu desejo de acreditar. Porque o amava e tinha também boas razões para esperar, uma vez que já me tinha pedido em casamento ao meu pai. Percebia o seu receio de o encarar. Não era simples explicar a razão por que queria fazer o casamento tão depressa. Qual a justificação que poderia alegar perante a desconfiança e a crueldade do meu pai, sem confessar o segredo e desonrar-me a mim e a si próprio diante da família?

Nessa noite, fiz as minhas preces a Deus como de costume. Os meus pais eram muito religiosos e a minha mãe freqüentava muito a mesquita. As raparigas deviam fazer as orações duas vezes ao dia, dentro de casa. No dia seguinte, ao acordar, agradeci a Alá por ainda estar viva.

Quando subi ao terraço, o carro já tinha partido. Trabalhei

como de costume, tratei da ovelha, limpei o estábulo, saí com o rebanho, apanhei os tomates.

Esperei pela noite. Sentia tal medo que apanhei uma pedra grande e golpeei o ventre na esperança de que o sangue recompusesse as coisas.

 

                   O ÚLTIMO ENCONTRO

Anoiteceu. Aguardo desesperadamente a chegada de Faiez, sozinho ou com os pais, embora saiba que ele não virá. Hoje, já é demasiado tarde. E o carro não está parado em frente da casa e as portadas das janelas estão fechadas.

É a catástrofe, para mim. Passo a noite sem dormir, tentando imaginar que foi ter com a família algures e se as janelas estão fechadas é por causa do calor.

É extraordinário como a minha memória conservou gravadas essas breves semanas da minha vida. Eu, que tenho tanta dificuldade em reconstituir a minha infância a não ser em imagens cruéis, sem um único momento de felicidade ou de paz, jamais consegui esquecer esses instantes de liberdade roubada, de medo e de esperança. Revejo-me perfeitamente, nessa noite, sob a minha manta de carneiro, com os joelhos a tocar o queixo, segurando o ventre com ambas as mãos, à escuta do mínimo ruído no escuro. Amanhã ele vem, amanhã ele não vem... Ele vai salvar-me, ele vai abandonar-me... Era uma espécie de música que não parava de soar na minha cabeça.

No dia seguinte de manhã, vejo o carro estacionado diante da casa dele. Penso: «Está vivo!» Ainda há uma esperança. Não pude espiar a saída dele, mas à noite, quando regressa, estou no terraço. Faço o sinal combinado para um encontro no dia seguinte antes do pôr-do-sol.

E à tardinha, mesmo antes de o sol se pôr, vou apanhar feno para os carneiros. Espero dez minutos, um quarto de hora, pensando que talvez se tenha escondido um pouco mais longe. Já acabou a ceifa, mas nalguns pontos do campo posso apanhar bons feixes de trigo, que ato com palha. Vou-os alinhando perto do caminho, depois de atados. Trabalho depressa, mas tomo o cuidado de deixar três feixes por atar, para disfarçar se passar por ali alguém, porque naquele lugar estou muito exposta aos olhares. Basta-me debruçar-me sobre os feixes e assumir um ar muito afadigado, com a tarefa já terminada. Disponho de um quarto de hora de tolerância antes de voltar para casa. Disse à minha mãe que trazia o feno dentro de meia hora. Àquela hora os carneiros já foram recolhidos, as cabras e as vacas também, e resta-me fazer a ordenha e os queijos para o dia seguinte. Servi-me de todos os pretextos para aqueles encontros. Fui ao poço buscar água para os animais, o que implica várias idas e vindas com um enorme balde equilibrado na cabeça. Os coelhos precisavam de erva tenra, as galinhas dos grãos que eu ia respigar... Fui ver se os figos já começavam a estar maduros, precisei de limões para a cozinha ou de ir atear as brasas ao forno do pão.

Temos que desconfiar incessantemente dos pais que desconfiam da filha. Uma rapariga pode fazer muitas coisas... Vai ao pátio? Que vai ela fazer ao pátio? Não terá combinado um encontro atrás da casa do forno, por acaso? Vai ao poço? Terá levado o balde? Os animais não beberam já? Vai buscar feno? Quantos molhos vai trazer?

Naquela tarde, arrasto o saco de tela atrás de mim, de feixe em feixe. Encho-o rapidamente e espero, espero. Sei que o meu pai está sentado como de costume debaixo do candeeiro diante de casa e que espera com o cinto, fumando o cachimbo como um paxá, que a filha regresse à hora a que tem de regressar. Conta os minutos. Ele tem um relógio e, se eu tiver dito meia hora, é meia hora, nem mais um minuto se não quiser apanhar umas chicotadas com o cinto.

Já só me falta atar os últimos três molhos. O céu toma uma tonalidade cinza e o amarelo do sol desmaia. Não tenho relógio, mas só me restam alguns minutos até a noite cair com a rapidez usual com que anoitece no meu país. É como se o sol estivesse tão fatigado de nos iluminar que cai como uma pedra, deixando-nos brutalmente no escuro.

 

Perdi a esperança. Acabou-se. Ele abandonou-me. Chego a casa. O carro dele não está lá. Levanto-me no dia seguinte de manhã e continuo a não avistar o carro.

É realmente o fim. Já não me resta qualquer esperança de viver e percebi. Aproveitou-se de mim, foi um momento agradável para ele. Mas para mim não.

Mordo os dedos, mas é demasiado tarde. Nunca mais voltarei a vê-lo. Ao cabo de uma semana, já nem sequer procuro espiá-lo do alto do terraço. As portadas das janelas da casa cor-de-rosa estão cerradas, ele fugiu no carro como um cobarde. Não posso pedir ajuda a ninguém.

Aos três ou quatro meses, o meu ventre começa a crescer. Ainda o consigo dissimular bastante bem sob a roupa, mas quando transporto um balde ou outro carrego qualquer à cabeça, com as costas vergadas e os braços no ar, tenho de fazer um esforço considerável para o tornar invisível. Esfrego a mancha no nariz para a apagar, mas teima em não desaparecer. Não posso repetir a história da hena, porque a minha mãe não vai acreditar.

É à noite que a angústia é mais forte. Vou dormir muitas vezes com os carneiros. O pretexto é inatacável: quando uma ovelha está prestes a parir, chama como um ser humano e, se não a ouvirmos, a cria pode sufocar no ventre da mãe.

Penso muitas vezes naquele animal, cuja cria estava mal posicionada. Tive de enfiar o braço até ao fundo no seu ventre, com muito cuidado, para colocar a cabeça do cordeiro em boa posição e puxá-lo para mim. Tinha muito medo de o magoar e lutei durante muito tempo para recuperar viva a pequena cria. A mãe não conseguia expulsá-lo, pelo que tive de a ajudar. Cerca de uma hora mais tarde morreu.

A cria era uma fêmea. Seguia-me como uma criança. Quando me afastava, chamava por mim. Ordenhava primeiro as outras ovelhas e dava-lhe a beber com o biberão. Devia ter então uns quinze anos. Ajudei muitas ovelhas a parir, mas essa recordação foi a única que conservei. Seguia-me até à horta e subia os degraus da casa. Para onde quer que eu fosse, andava sempre atrás de mim. A mãe morrera e o cordeiro estava vivo...

 

É estranho pensar na enorme trabalheira que tínhamos para ajudar a nascer as crias das ovelhas, enquanto a minha mãe asfixiava as crianças que dava à luz. Nessa altura, nem me ocorria tal idéia. Era um costume que tínhamos de aceitar. Hoje, quando essas imagens desfilam na minha memória, sinto-me revoltada. Se estivesse consciente como estou agora, teria preferido estrangular a minha mãe nem que fosse para salvar uma única dessas filhas.

Para uma mulher subjugada àquele ponto, matar as filhas era normal. Para um pai como o meu, cortar rentes os cabelos da filha com as tesouras de tosquiar os carneiros era normal. Bater-lhes com o cinturão ou com a bengala era normal. Prendê-las no estábulo no meio das vacas, durante toda a noite, era normal. O que é que o meu pai me podia fazer quando soubesse que eu estava grávida? Eu e a minha irmã Kainat achávamos que ficar presas no estábulo era a pior coisa que nos podia acontecer. Com as mãos atadas atrás das costas, com a boca amordaçada por um lenço para não gritarmos e os pés atados com a corda de que se servira para nos bater. Emudecidas, despertas toda a noite, limitávamo-nos a olhar uma para a outra, pensando a mesma coisa: «Enquanto estivermos presas, estamos vivas.»

É justamente o meu pai que avança para mim, num dia em que eu fazia a barrela da roupa. Ouço-o manquejar atrás de mim e a bengala bater no chão do pátio. Pára nas minhas costas, não ouso levantar-me.

- Tenho a certeza que estás grávida.

Largo a roupa na bacia, não tenho forças para levantar os olhos para ele. Não sou capaz de simular uma expressão surpreendida ou humilhada, não conseguirei mentir se olhar para ele.

- Não, não estou, papá.

- Estás sim! Olha para ti! Engordaste! E essa mancha, dizes que é do sol, depois vens dizer que é de hena? A tua mãe tem de ver os teus seios.

Foi portanto a minha mãe que desconfiou. E é ele que vem dar ordens.

- Vais mostrar-lhes.

E o meu pai afasta-se com a bengala, sem acrescentar uma palavra.

Não me bateu. Eu não protestei, com a boca paralisada.

 

Penso que desta vez é que é, vou morrer. Agora é a vez da minha mãe. Rodeia a bacia, de mãos nas ancas. Está calma, mas rude.

- Pára de lavar a roupa! Mostra-me os teus seios!

- Não, mamã, peço-te! Tenho vergonha.

- Mostras-me ou queres que te rasgue o vestido? Então, desabotoo os botões da gola até à altura do peito e abro o tecido.  

- Estás grávida?

- Claro que não!

- Tiveste o período?

- Tive!

- Da próxima vez que tiveres o período, deixas-me ver! Respondi que sim, para ficar calma, para a tranqüilizar e para

minha segurança. Sei que vou ter de me cortar, deixar correr o sangue para um papel e mostrar-lhe na próxima lua.

Abandono a roupa, saio de casa atravessando o quintal sem autorização e vou esconder-me nos ramos de um velho limoeiro. É estúpido procurar proteção assim, não é o limoeiro que me vai salvar, mas tenho tanto medo que já nem sei o que faço. O meu pai foi logo à minha procura e encontra-me ali, encavalitada como uma cabra no meio da folhagem. Puxa-me pelas pernas e caio.

Tenho um dos joelhos a sangrar e ele leva-me para casa. Vai buscar folhas de salva, que macera e aplica a massa sobre a ferida para estancar o sangue. É estranho. Não compreendo por que razão, depois de me ter feito cair de forma tão brutal, se dá ao trabalho de me tratar, o que nunca fizera antes. Nesse momento, penso que afinal ele não é mau. Acreditou no que eu lhe respondi. À distância, pergunto-me se não foi muito simplesmente para evitar que me servisse desse sangue para fazer crer que me viera o período...

Ao cair, magoei-me no abdômen e tenho esperança de que a queda faça aparecer as regras.

Um pouco mais tarde, tem lugar um conselho de família ao qual não sou autorizada a assistir. Os meus pais mandaram vir Noura e Hussein. Fico à escuta do outro lado da parede. Falam todos ao mesmo tempo e ouço o meu pai dizer:

- Tenho a certeza de que ela está grávida, não nos quer dizer, esperemos que nos mostre as regras...

 

Quando se calaram, subo para o meu quarto e finjo que estou a dormir.

No dia seguinte, os meus pais vão à cidade. Estou proibida de sair. Fecham a porta do pátio, mas passo pelo quintal e fujo a esconder-me no campo. Com uma pedra grande começo a bater metodicamente no ventre, por cima do vestido, para provocar sangue. Nunca ninguém me disse como é que os bebês crescem na barriga da mãe. Sei que num dado momento o bebê se mexe. Vi a minha mãe grávida, sei quanto tempo é preciso para a criança vir ao mundo, mas ignoro todo o resto. A partir de quando é que uma criança vive? Para mim é ao nascer, pois é nesse momento que vi a minha mãe decidir se o deixava viver ou não. O que espero ardentemente, agora que estou grávida de cerca de três meses e meio ou quatro, é que o sangue volte. Só penso nisso. Não imagino sequer que a criança que trago no ventre é já um ser humano.

E choro de raiva, de medo, porque o sangue não jorra. Porque os meus pais vão regressar e tenho de estar em casa antes deles.

Esta recordação neste momento é de tal modo dolorosa... sinto-me tão culpada. Por mais que diga que era ignorante, que estava aterrorizada com o que me esperava, é um pesadelo pensar no modo como golpeei o meu ventre para que aquela criança não nascesse.

E no dia seguinte a mesma coisa, bato no ventre com tudo o que encontro e sempre que posso. A minha mãe aguarda. Concedeu-me um mês a contar do dia em que me obrigou a mostrar-lhe os seios. Sei que faz as contas na sua cabeça e, entretanto, estou proibida de sair. Tenho de ficar fechada em casa e contentar-me com as lides domésticas. A minha mãe disse-me:

- Não voltas a passar por aquela porta! Não voltas a guardar os carneiros nem voltas a apanhar feno.

Posso escapulir-me pelos pátios e pelas hortas, mas para ir onde? Nunca apanhei o autocarro sozinha, não tenho dinheiro e, de qualquer maneira, o motorista não me deixará subir.

Devo estar no quinto mês. Senti mexer no ventre e, em pé, atiro-me contra a esquina de um muro, como louca. Já não posso mentir mais nem esconder a barriga e o peito, não tenho outra saída.

A única idéia que me ocorre, a única possível, é fugir de casa e ir refugiar-me em casa da irmã da minha mãe, que vive na aldeia. Sei onde é. Assim, uma manhã, enquanto os meus pais foram ao mercado, atravesso o quintal, passo diante do poço, salto por cima do talude e fujo para casa dela. Não tenho muitas esperanças, porque é má, tem ciúmes da minha mãe por razões que ignoro. Mas talvez por isso me deixe ficar em sua casa e encontre uma solução. Ao ver-me chegar sozinha, a sua primeira inquietação são os meus pais. Porque não estão comigo?

- Preciso da tua ajuda, tia.

Conto-lhe tudo, o casamento previsto e adiado, a seara de trigo.

- Quem é?

- Chama-se Faiez, mas já não está na aldeia, tinha prometido...

- Está bem. Vou ajudar-te.

Veste-se, põe o lenço e pega-me na mão.

- Vem, vamos dar uma volta juntas.

- Mas onde? Que vais fazer?

- Vem, dá-me a mão, não te podem ver por aí sozinha.

Pensei que me levasse a casa de outra mulher, de uma vizinha

que sabe segredos para fazer voltar o sangue das regras ou impedir que a criança continue a crescer no meu ventre. Ou que vá esconder-me em qualquer parte até eu me ver liberta disto.

Mas leva-me de volta para casa. Puxa-me como um burro que se recusa a avançar.

- Porque me levas para casa? Ajuda-me, suplico-te!

- Porque o teu lugar é lá, são eles que se vão ocupar de ti e não eu.

- Suplico-te, deixa-me ficar contigo! Sabes o que me vai acontecer!

- O teu lugar é aqui! Percebeste? E não voltes a sair da tua casa nunca mais!

Obriga-me a transpor a porta, chama pelos meus pais, dá meia-volta e afasta-se sem sequer se virar. No seu rosto pude ler a maldade e o desprezo. Devia estar a pensar: «A minha irmã tem uma serpente em casa, esta rapariga desonrou a família.»

O meu pai volta a fechar a porta e a minha mãe lança-me um olhar cruel, ao mesmo tempo que faz um sinal com o queixo e um gesto com a mão que significa: «Charmuta... porca... atreveste-te a ir a casa da minha irmã!» Detestam-se, as duas. Se acontecer uma desgraça a uma delas, a outra rejubila.

- Sim, fui a casa dela, pensava que ela me podia ajudar, esconder-me...

- Entra! Sobe para o teu quarto!

Sinto o corpo todo a tremer e não me aguento nas pernas. Ignoro o que me espera quando estiver fechada no quarto. Não consigo dar uma passada.

- Souad! Entra já!

A minha irmã já não me dirige a palavra. Sente tanta vergonha como eu e também já não sai de casa. A minha mãe trabalha como de costume, as minhas outras irmãs tratam dos animais e mantêm-me fechada como se tivesse peste. Às vezes, ouço-os falar uns com os outros. Receiam que alguém me tenha visto na aldeia, que as pessoas falem. Ao tentar salvar a pele e refugiar-me em casa da minha tia, foi sobretudo a minha mãe que envergonhei. Os vizinhos vão ficar a saber, as bocas vão falar, os ouvidos vão ouvir.

Desde esse dia, nunca mais voltei a pôr o nariz de fora. O meu pai montou uma fechadura nova na porta do meu quarto, que soa como uma espingarda todas as noites. A porta do quintal faz um barulho idêntico.

Quando lavo o pátio, de vez em quando, olho para aquela porta com a sensação de sufocar no peito. Nunca mais voltarei a sair dali. Nem sequer me dou conta de que aquela porta é uma estupidez, dado que o quintal e o talude de pedra que o protege não são obstáculos intransponíveis. Saltei por ali mais de uma vez. Mas a prisão é certa para qualquer rapariga na minha situação. Lá fora seria ainda pior. Lá fora, é a vergonha, o desprezo, as pedradas, as vizinhas a cuspir-me na cara, e a arrastarem-me pelos cabelos até casa. Não me passa pela cabeça sair dali. As semanas vão passando. Ninguém me interroga, ninguém quer saber quem me fez isto, como e porquê. Mesmo que eu acuse Faiez, o meu pai não irá ter com ele para me casar. A culpa é minha e não dele. Um homem que rouba a virgindade a uma mulher não é culpado, foi ela que quis. Pior ainda, foi ela que pediu! Foi ela que provocou o homem, porque é uma puta desavergonhada. Não tenho nada para me defender. A minha ingenuidade, o meu amor por ele, a sua promessa de casamento, até mesmo o seu primeiro pedido feito ao meu pai, nada disso conta. Na nossa terra, um homem que se respeite não desposa a rapariga que ele próprio desflorou antes do casamento.

Ele amava-me? Não. E se cometi algum erro, foi o de acreditar que não o perderia se fizesse o que ele queria. Eu estava apaixonada? Tive medo que ele arranjasse outra? São argumentos que não interessam... mesmo para mim deixaram de fazer sentido.

Uma noite houve outra reunião de família: os meus pais, a minha irmã mais velha e o seu marido Hussein. O meu irmão não está em casa porque a mulher vai dar à luz e foi ter com ela, a casa da família.

Fico à escuta atrás da parede, aterrorizada. A minha mãe fala com Hussein:

- Não podemos pedir ao nosso filho, ele não será capaz, é muito novo.

- Eu posso ocupar-me dela. O meu pai fala, por sua vez:

- Se tens que o fazer, deves fazê-lo como deve ser. Qual é a tua idéia?

- Não te preocupes, eu arranjarei maneira. Ouço a minha mãe de novo:

- Deves tratar dela, mas tens que te desembaraçar rapidamente.

Ouço a minha irmã chorar e dizer que não quer ouvir aquilo e quer voltar para casa. Hussein diz-lhe para esperar e acrescenta, dirigindo-se aos meus pais:

- Vocês saem. Não estejam em casa, não podem cá estar. Quando voltarem, estará terminado.

Ouvi com os meus ouvidos a minha condenação à morte e fugi para a escada porque a minha irmã preparava-se para sair. Não ouvi o que se seguiu. Um pouco mais tarde, o meu pai fez a ronda da casa e a porta do quarto das raparigas bateu com estrondo.

Não dormi. Não conseguia compreender o que tinha ouvido. Pensava para mim: será um sonho? É um pesadelo? Vão realmente fazer isso? Será para me assustarem? E se o fizerem, quando será? Como? Vão me cortar a cabeça?

 

Talvez me deixem ter a criança e me matem depois. Ficarão com ele, se for um rapaz? E a minha mãe vai asfixiá-la se for uma rapariga?

Vão matar-me antes?

No dia seguinte, porém, fiz como se não tivesse ouvido nada. Mantinha-me vigilante, mas não acreditava verdadeiramente nisso. Porém, logo a seguir começava a tremer outra vez e acreditava. As únicas interrogações eram quando e onde. Não podia ser já de seguida... aliás, Hussein fora-se embora. E, além disso, eu não conseguia imaginar Hussein a querer matar-me!

Nesse dia, a minha mãe disse-me com o mesmo tom do costume:

- É altura de ires lavar a roupa, eu e o teu pai vamos à cidade.

Soube o que se ia passar. Eles ausentavam-se de casa como Hussein tinha dito.

Quando, recentemente, me lembrei do desaparecimento da minha irmã Hanan, apercebi-me que era a mesma coisa. Os pais tinham saído, as raparigas estavam sozinhas em casa com o irmão. A única diferença, em relação a mim, era que Hussein ainda lá não estava. Contemplei o pátio, que era grande, com uma parte ladrilhada e o resto coberto de areia. A toda a volta, havia um muro encimado por um gradeamento bastante alto e pontiagudo. E, num dos cantos, o portão cinzento, metálico, completamente liso do lado virado para o pátio, sem fechadura nem chave, apenas com uma maçaneta no exterior.

A minha irmã Kainat nunca lava a roupa comigo, não são precisas duas pessoas.

Não sei de que tarefa a incumbiram, nem onde está com as mais pequenas. Deixou de me falar. Dorme ao meu lado, de costas viradas desde que tentei fugir para casa da minha tia.

A minha mãe espera que eu recolha a roupa para lavar. É bastante porque, em regra, só fazemos a barrela uma vez por semana. Se começar por volta das duas ou três da tarde, não estou despachada antes das seis horas.

Primeiro, vou buscar água ao poço, mesmo ao fundo do quintal. Disponho as achas de madeira para a fogueira, coloco a enorme celha em cima e encho-a de água até metade. Sento-me numa pedra à espera que aqueça.

 

Os meus pais saem pela porta de casa, que fecham sempre à chave quando saem.

Eu estou do outro lado do pátio. Ateio constantemente as brasas. Não posso deixar que o fogo esmoreça, a água tem de estar muito quente quando molhar a roupa. Em seguida, esfrego as nódoas com sabão de azeite e volto ao poço buscar água para enxaguar.

É um trabalho duro e cansativo que faço há anos, mas neste momento é-me particularmente penoso.

Ali fico, descalça, sentada numa pedra, com um vestido de pano cinzento, cansada de ter medo. Já nem sei dizer há quanto tempo estou grávida com este pavor no meu ventre. Em todo o caso, há mais de seis meses. Olho de vez em quando para a porta, ao fundo, mesmo ao fundo do imenso pátio. Fascina-me.

Se ele vier, só pode entrar por ali.

 

                     O FOGO

De súbito, ouço bater a porta. Ele aparece e avança. Revejo essas imagens vinte cinco anos depois como se o tempo se tivesse imobilizado. São as últimas imagens da minha existência anterior, lá longe, na minha aldeia da Cisjordânia. Desfilam ao retardador, como nos filmes que passam na televisão. Surgem incessantemente diante dos meus olhos. Queria apagá-las mal surge a primeira, mas já não consigo parar o filme. Quando a porta bate, é demasiado tarde para o interromper, tenho necessidade de rever essas imagens porque continuo sempre a tentar compreender o que não compreendi: como é que ele fez? Eu teria sido capaz de lhe escapar se tivesse compreendido?

Avança na minha direção. É o meu cunhado Hussein com roupa de trabalho, umas calças velhas e uma t-shirt. Pára em frente de mim e diz:

- Olá, como vai isso? - com um sorriso. Tem na boca uma erva, que vai mascando sem deixar de sorrir. - Vou-me ocupar de ti.

Aquele sorriso... diz que vai ocupar-se de mim, e eu não estava à espera daquilo. Também esboço um sorriso, de agradecimento, não me atrevendo a balbuciar uma palavra.

- Estás com uma grande barriga, hem?

Baixo a cabeça, sinto vergonha de olhar para ele. Baixo ainda mais a cabeça e toco os joelhos com a testa.

- Tens aí uma mancha. Puseste hena de propósito?

- Não, pus hena nos cabelos, não foi de propósito.

- Fizeste de propósito para esconderes.

Olho para a roupa que me preparava para enxaguar, entre as minhas mãos trêmulas.

É a última imagem fixa e lúcida. Aquela roupa e as minhas mãos a tremer. As últimas palavras que o ouvi dizer foram: «Fizeste de propósito para esconderes.»

Ele não disse mais nada, eu mantive a cabeça baixa com vergonha, levemente aliviada por não me fazer mais perguntas.

De repente senti uma coisa fria escorrer-me pela cabeça. E de súbito o fogo envolveu-me. Percebi o fogo, e o filme acelera-se, as imagens passam muito depressa. Começo a correr descalça pelo quintal, bato com as mãos nos cabelos, grito e sinto a roupa a flutuar atrás de mim. A minha roupa também estava a arder?

Sinto o cheiro a petróleo e corro, mas a parte de baixo do vestido impede-me de dar grandes passadas. O terror guia-me, instintivamente, para longe do pátio. Corro para o quintal porque não há outra saída. Mas não me lembro de quase nada depois. Sei que estou a arder e corro e grito de dor. Como é que consegui fugir? Ele correu atrás de mim? Estava à espera que caísse para me ver a arder?

Devo ter forçosamente trepado para cima do muro baixo do quintal para me encontrar, depois, ou no quintal dos vizinhos ou na rua. Havia mulheres, duas creio, por isso era com certeza na rua, e elas batiam-me com qualquer coisa, suponho que com os lenços.

Arrastaram-me até à fonte da aldeia e a água derramou-se num jacto sobre mim enquanto eu berrava de pavor. Ouço essas mulheres a gritar, mas não vejo mais nada. Tenho a cabeça descaída sobre o peito, sinto escorrer a água fria, que nunca mais pára e grito de dor porque a água fria queima-me. Estou enroscada, sinto o cheiro a carne queimada, a fumo. Devo ter desmaiado. Já quase não consigo ver. Há ainda algumas imagens vagas, sons, como se estivesse na camioneta do meu pai. Mas não é o meu pai. Ouço vozes de mulheres que choram. «A desgraçada», «a desgraçada»... Consolam-me. Estou deitada num carro. Sinto os solavancos da estrada. Lembro-me de gemer.

E, depois, mais nada. Mas, mais tarde, outra vez o ruído do carro e as vozes das mulheres. Continuo a arder como se o fogo ainda me envolvesse.

 

Não consigo levantar a cabeça, não consigo mexer o corpo nem os braços, sinto-me a arder, sempre a arder... sinto o cheiro nauseabundo da gasolina, não compreendo aquele ruído do motor, as lamentações das mulheres, não sei para onde me levam. Quando entreabro os olhos, só consigo vislumbrar um bocadinho do meu vestido ou da minha pele. É negro e cheira mal. Continuo a arder e, no entanto, o fogo já não me envolve. Mas, apesar disso, continuo a arder. Na minha mente, continuo a correr envolta em chamas.

Vou morrer. Não importa. Talvez já esteja morta. Finalmente acabou-se.

 

                   MORRER

Estou numa cama de hospital, recurvada, como o cão da espingarda, por baixo de um lençol. Veio uma enfermeira arrancar-me o vestido. Puxou maldosamente a roupa, deixando-me paralisada pela dor. Não vejo praticamente nada, tenho o queixo colado ao peito e não consigo levantá-lo. Também não consigo mexer os braços. Tenho dores na cabeça, nos ombros, nas costas, no peito. Sinto-me mal. A enfermeira é tão má que fico atemorizada quando a vejo entrar. Não fala comigo. Arranca-me bocados, põe uma compressa e desaparece. Se me pudesse deixar morrer tenho a certeza que o faria. Sou uma rapariga impura, se me queimaram foi porque o merecia, porque não sou casada e estou grávida. Sei muito bem o que ela pensa.

Trevas. Coma. Quanto tempo, quantos dias ou noites?... Ninguém me quer tocar, não se preocupam comigo, não me dão de comer nem de beber, esperam que eu morra.

E eu queria morrer, tamanha é a vergonha que sinto por ainda estar viva. Tamanho é o meu sofrimento. Não sou eu que me mexo, é essa mulher má que me vira para me arrancar bocados. Mais nada. Queria que me untassem a pele com óleo para acalmar o ardor, queria que afastassem o lençol para o ar me refrescar um pouco. Veio um médico. Avistei umas pernas enfiadas numas calças e uma bata branca. Ele falou mas não compreendi. É sempre aquela mulher má que vai e vem. Consigo mexer as pernas e é com a ajuda delas que de quando em quando soergo o lençol. Tenho dores deitada de costas, tenho dores deitada de lado.

 

Durmo, com a cabeça sempre colada ao peito. Com a cabeça inclinada como quando estava envolta pelas chamas.

Os meus braços são estranhos, ambos ligeiramente afastados e paralisados. Continuo a ter mãos, mas não me servem para nada. Queria coçar-me, arrancar a pele para não sofrer mais.

Obrigam-me a levantar. Caminho ao lado daquela enfermeira. Doem-me os olhos. Vejo as pernas, as mãos pendentes ao lado do corpo, os ladrilhos. Odeio esta mulher. Leva-me para uma sala e pega numa mangueira para me lavar. Diz que eu cheiro tão mal que tem vontade de vomitar. Exalo um cheiro fétido, choro, estou para ali como um resíduo imundo, como uma coisa putrefata sobre a qual despejam um balde de água. Como a caca nas casas de banho, puxa-se o autoclismo, e pronto, acabou-se. Morro. A água arranca-me a pele, grito, choro, suplico, o sangue escorre-me até às pontas dos dedos. Obriga-me a permanecer de pé. Arranca, sob o jacto de água fria, bocados de carne negra, pedaços da minha roupa queimada, imundícies fétidas que formam um pequeno montículo no canto do ducha. Exalo um tal cheiro a podre, a carne queimada e a fumo que ela colocou uma máscara e sai por instantes da casa de banho a tossir e a amaldiçoar-me.

Inspiro-lhe repugnância, devia morrer como um cão, mas longe dela. Porque é que não acaba comigo? Volto para a cama, abrasada e gelada ao mesmo tempo, e atira o lençol para cima de mim para não me ver mais. Morre para aí, é o que me diz o seu olhar. Morre para te irem deitar fora algures.

Vejo o meu pai, com a bengala. Está furioso, golpeia o chão, quer saber quem me engravidou, quem me trouxe para ali, tudo o que se passou. Tem os olhos vermelhos. Chora, o velho, mas continua a aterrorizar-me com aquela bengala e não consigo sequer responder-lhe. Vou adormecer, ou morrer, ou despertar, o meu pai estava ali, já lá não está.

Mas não sonhei, a voz dele ressoa ainda na minha cabeça:

- Fala!

Consegui sentar-me um pouco para não sentir os braços colados sob o lençol, com a cabeça apoiada numa almofada. Não há nada capaz de me aliviar, mas posso ver quem passa no corredor, com a porta entreaberta. Ouço alguém, vislumbro uns pés descalços, um vestido negro e comprido, uma silhueta pequena como a minha, delgada, quase magra. Não é a enfermeira. É a minha mãe.

As duas tranças untadas de azeite, o lenço negro, a fronte estranha, arqueada entre as sobrancelhas até ao nariz, semelhante a uma ave de rapina. Amedronta-me. Senta-se num tamborete com o seu saco negro. E começa a soluçar, a fungar, a limpar as lágrimas com um lenço enquanto balança a cabeça.

Chora de desgosto por causa da vergonha. Chora por causa dela e de toda a família. E leio o ódio nos seus olhos.

Interroga-me, apertando o saco contra si. Conheço bem aquele saco, é-me familiar. Leva-o sempre consigo quando sai, quando vai ao mercado ou para o campo. Costuma meter lá dentro pão, uma garrafa de plástico com água, às vezes com leite. Tenho medo, mas não tanto como na presença do meu pai, como de costume. O meu pai pode matar-me, mas ela não. Ela vai gemendo as suas frases e eu sussurro-as.

- Olha para ti, minha filha... Não posso levar-te para casa assim, já não podes viver lá em casa, viste como estás?

- Não consigo ver-me.

- Estás queimada. A vergonha abateu-se sobre toda a família. Agora já não posso levar-te comigo. Diz-me como é que ficaste grávida. Quem foi?

- Faiez. Não sei o nome do pai dele.

- Foi Faiez, o vizinho?

Recomeça a chorar e a martelar os olhos com o lenço, amarrotado numa bola, como se o quisesse enfiar na cabeça.

- Onde é que fizeste isso? Onde?

- No campo.

Faz um esgar, morde os lábios e chora mais ainda.

- Escuta, minha filha, escuta, gostava que morresses, era melhor que morresses. O teu irmão é novo, se não morreres, ele terá problemas.

O meu irmão vai ter problemas. Que problemas? Não compreendo.

- A polícia foi a nossa casa falar com a família. Com a família toda. Com o teu pai e o teu irmão, com a tua mãe, com o teu cunhado, com toda a família. Se tu não morreres, o teu irmão terá problemas com a polícia.

 

Deve ter tirado o copo do saco porque não há nada à minha volta. Não há nenhuma mesa ao lado da cama, não vejo nada. Não, não a vi remexer no saco, tirou-o do parapeito da janela, é um copo do hospital. Mas não sei o que é que ela lhe deitou lá dentro.

- Se não beberes isto, o teu irmão vai ter problemas, porque a polícia foi a nossa casa.

Deve tê-lo enchido enquanto eu chorava de vergonha, de dor, de medo. Eu chorava de muitas coisas, com a cabeça baixa e os olhos fechados.

- Bebe este copo... sou eu que to dou.

Jamais esquecerei aquele copo grande, cheio até ao rebordo, com um líquido transparente que parecia água.

- Tu vais beber isto e o teu irmão não terá problemas. É melhor, é melhor para ti, é melhor para mim, é melhor para o teu irmão.

Ela chorava. E eu também. Lembro-me das lágrimas a correr sobre as queimaduras do queixo, ao longo do pescoço, a devorarem-me a pele.

Não conseguia erguer os braços. Foi ela que pôs as mãos debaixo da minha cabeça, que me soergueu até ao copo que segurava numa das mãos. Até àquele momento ninguém me dera de beber. Aproximava o copo grande da minha boca. Queria umedecer pelo menos os lábios, tanta a sede que sentia. Tentava levantar o queixo, mas em vão.

De súbito, apareceu o médico e a minha mãe assustou-se. Ele pegou no copo com um gesto brusco, voltou a pousá-lo com brusquidão e gritou com força:

-Não!

Vi o líquido derramar-se no parapeito da janela. Escorria pelo vidro, transparente, tão cristalino como água.

O médico pegou na minha mãe pelo braço e obrigou-a a sair do quarto. Eu não desviava os olhos do copo, tê-lo-ia bebido mesmo derramado no chão, tê-lo-ia lambido com a língua, como um cão. Tinha sede, tanto fazia beber como morrer.

O médico reapareceu e disse-me:

- Tiveste sorte por eu ter chegado no momento exato. Primeiro o teu pai e agora a tua mãe! Mais ninguém da tua família volta a entrar aqui!

 

Levou o copo e repetiu:

- Tiveste sorte... Não quero ver mais ninguém da tua família!

- O meu irmão Assad, gostava de ver o meu irmão, ele é amável.

Já não sei o que ele me respondeu. Sentia-me esquisita, sentia tudo a andar à roda na minha cabeça. A minha mãe falara-me da polícia, do meu irmão que ia ter aborrecimentos? Porquê ele, se tinha sido Hussein quem me deitara fogo? Aquele copo era para eu morrer. Ainda havia uma mancha no rebordo da janela. A minha mãe desejava a minha morte e eu também. No entanto, tinha tido sorte, dissera o médico, porque estava prestes a beber aquele veneno invisível. Sentia-me liberta, como se a morte me tivesse enfeitiçado e o médico fizesse desaparecer o feitiço no espaço de um segundo. A minha mãe era uma excelente mãe, a melhor das mães, cumpria o seu dever ao dar-me a morte. Era melhor para mim. Não deviam ter-me salvo do fogo, trazer-me para ali para sofrer e levar tanto tempo a morrer para me libertar da minha vergonha e da vergonha de toda a família.

O meu irmão veio três ou quatro dias depois. Nunca esquecerei aquele saco de plástico transparente, que deixava ver laranjas e uma banana. Desde que ali estava, ainda não tinha comido nem bebido nada. Não podia e, de qualquer modo, ninguém tentava ajudar-me. Nem sequer o médico se atrevia a fazê-lo. Tinha compreendido que me deixavam morrer, porque não convinha interferir na minha história. Eu era culpada aos olhos de todos. Sofria o destino de todas as mulheres que mancham a honra dos homens. Tinham-me lavado simplesmente porque exalava um cheiro pestilento e não para tratarem de mim. Mantinham-me ali porque era um hospital onde devia morrer sem arranjar mais problemas aos meus pais e à aldeia inteira.

Hussein não se tinha desempenhado bem da sua tarefa ao deixar-me fugir enquanto ardia.

Assad não me fez perguntas. Estava assustado e com pressa de voltar à aldeia.

- Vou atravessar os campos para ninguém me ver. Se os pais souberem que vim ver-te, vou ter problemas.

Eu tinha desejado que ele viesse, mas sentia-me inquieta ao vê-lo inclinar-se por cima de mim. Vi nos seus olhos que as minhas queimaduras lhe causavam repugnância.

 

Ninguém, nem sequer ele, se preocupara em saber até que ponto é que eu estava a sofrer com a pele que se ia escavando, apodrecendo, ressudando enquanto me devorava lentamente como o veneno de uma serpente em toda a parte superior do meu corpo, no crânio sem cabelos, nos ombros, nas costas, nos braços, nos seios.

Chorei muito. Chorei por saber que era a última vez que o via? Chorei por ter um desejo enorme de ver os filhos dele? Estavam à espera que a mulher desse à luz. Soube mais tarde que tinha tido dois rapazes. Toda a família deve tê-la admirado e felicitado.

Não pude comer a fruta. Sozinha era impossível e o saco desaparecera.

Nunca mais voltei a ver a minha família. A minha derradeira visão da minha mãe é essa imagem do copo com água envenenada. A do meu pai a golpear furioso o chão com a bengala. E a do meu irmão com o saco de fruta.

No mais profundo do meu sofrimento, procurava ainda entender por que razão não tinha visto nada quando o fogo se derramou sobre a minha cabeça. Havia um bidão de gasolina ao meu lado, mas estava fechado com um tampão. Não vi Hussein tocar-lhe. Estava de cabeça baixa enquanto ele me dizia que ia «ocupar-se de mim» e durante breves segundos julguei-me salva por causa daquele sorriso e da erva que mascava tranqüilamente. Na realidade, ele pretendia ganhar a minha confiança para impedir a minha fuga. Na véspera, tinha previsto tudo com os meus pais. Mas onde é que foi buscar o lume? Ao braseiro? Não vi nada. Terá usado um fósforo para ser assim tão rápido? Eu costumava ter sempre uma caixa de fósforos à mão, mas também não vi nada. Talvez tivesse um isqueiro na algibeira... Mal tive tempo de sentir o líquido frio nos cabelos e já estava a arder. Gostava muito de saber porque é que não vi nada.

As noites, deitada ao comprido na cama, são um pesadelo interminável. Fico imersa numa escuridão completa, vejo cortinas à volta, a janela desapareceu. Uma dor estranha como uma facada no ventre, as pernas a tremer... vou morrer. Tento erguer-me mas não consigo. Os meus braços continuam rígidos como duas chagas imundas que se recusam a servir-me. Não há ninguém, estou sozinha, por isso quem é que me cravou esta faca no ventre?

 

Sinto entre as coxas algo de estranho. Dobro uma perna, depois a outra, tateio com o pé, tento livrar-me sozinha daquela coisa que me horroriza. Ao princípio não me dou conta que estou prestes a parir. Tateio com ambos os pés, no escuro. Empurro, sem o saber, o corpo da criança, lentamente, debaixo do lençol. Depois permaneço imóvel, exausta pelo esforço. Junto as pernas e sinto o bebê contra a pele, de ambos os lados. Mexe-se ao de leve. Retenho a respiração. Como é que saiu tão depressa? Uma punhalada no ventre e ei-lo? Vou voltar a adormecer, é impossível, esta criança não saiu sozinha sem prevenir. Devo estar com um pesadelo.

Mas não estou a sonhar, porque o sinto ali, entre os joelhos, contra a pele das pernas. As minhas pernas não ficaram queimadas, sinto as coisas com a pele das pernas e dos pés. Não me atrevo a fazer um movimento, depois levanto um pé tal como faria com a mão para aflorar... uma cabecinha minúscula, uns braços que se agitam debilmente.

Devo ter gritado. Não me lembro. O médico entra no quarto, afasta as cortinas, mas continuo mergulhada nas trevas. Lá fora deve ser noite. Apenas distingo uma luz no corredor através da porta aberta. O médico debruça-se, retira o lençol e leva a criança sem sequer ma mostrar.

Já não há nada entre as minhas pernas. Alguém repuxa as cortinas. Não me lembro de mais nada. Devo ter desmaiado, devo ter dormido durante muito tempo, não sei ao certo. Nos dias seguintes, só tenho uma certeza, já não tenho a criança no meu ventre.

Não sabia se o bebê estava vivo ou morto, ninguém me dizia nada e eu não ousava perguntar àquela enfermeira má o que tinham feito à criança.

Que ele me perdoe, mas sentia-me incapaz de lhe dar uma realidade. Sabia que tinha dado à luz, mas não o tinha visto, não mo tinham posto nos braços, não sabia se era um rapaz ou uma rapariga. Naquele momento eu não era uma mãe, mas um despojo humano condenado à morte. A vergonha era mais forte.

O médico informou-me mais tarde que eu tinha dado à luz um bebê de sete meses, que estava vivo e protegido. Escutava vagamente o que ele me dizia, porque as orelhas queimadas doíam-me horrivelmente! Toda a parte superior do meu corpo era uma sensação dolorosa, e eu oscilava entre um estado de coma e uma semi-consciência, sem ver desfilar os dias e as noites. Toda a gente aguardava a minha morte e contava com ela.

Achava que Deus não me deixava morrer tão depressa como eu desejava. As noites e os dias confundiam-se no mesmo pesadelo e nos raros momentos de lucidez só tinha uma obsessão, arrancar com as unhas a pele infecta e pestilenta que continuava a devorar-me. Infelizmente, os meus braços já não me obedeciam.

Um dia, alguém entrou no meu quarto no meio desse pesadelo. Adivinhei mais a sua presença do que a vi. Uma mão de mulher passou como uma sombra sobre o meu rosto, sem o tocar. Uma voz de mulher com um sotaque engraçado disse-me, em árabe:

- Vou-te ajudar... Tem confiança, vou-te ajudar, estás a ouvir-me?

Eu disse que sim sem acreditar, tão mal me sentia naquela cama, abandonada ao desprezo dos outros. Não compreendia como é que me podiam ajudar e, sobretudo, quem teria poderes para o fazer.

Levarem-me de volta para a minha família? Eles já não me queriam. Uma mulher queimada por uma questão de honra deve arder até ao fim. A única solução era ajudarem-me a não sofrer mais, ajudarem-me a morrer.

Contudo, respondo sim àquela voz de mulher, sem saber quem ela é.

 

                   JACQUELINE

Chamo-me Jacqueline. Quando este caso surge, encontro-me no Médio Oriente onde trabalho com uma organização humanitária, Terra dos Homens. Percorro os hospitais em busca de crianças abandonadas, deficientes ou mal-nutridas. Ac-tuo em colaboração com o CICV, a Cruz Vermelha internacional, e com diferentes organizações que trabalham com Palestinos e Israelitas. Trabalho, portanto, nas duas comunidades e tenho muito contacto com ambas as populações. Vivo com elas.

Mas foi só ao fim de sete anos de presença no Médio Oriente que ouvi falar de raparigas assassinadas. As famílias acusam-nas se se encontrarem com um rapaz ou se falarem com ele. Por vezes, surgem suspeitas sem a mínima prova, só por ouvir dizer sabe-se lá a quem. Pode acontecer que essas raparigas tenham tido realmente uma aventura com um rapaz, o que é absolutamente impensável na sua comunidade, uma vez que são os pais que decidem os casamentos. Ouvi dizer... Disseram-me... Mas, até então, nunca me tinha confrontado com um caso deste gênero.

Para um espírito ocidental, a idéia de que pais ou irmãos possam assassinar a filha ou a irmã simplesmente porque se apaixonou parece incrível, sobretudo na época em que vivemos. Nos nossos países, as mulheres são livres, votam, têm filhos sozinhas...

Porém, estou aqui há sete anos e acredito desde logo, apesar de nunca ter assistido e de ser a primeira vez que ouço falar do assunto. É necessário que se instale um clima de grande confiança para que se fale de um assunto tão tabu como esse e que, sobretudo, não diz respeito aos estrangeiros. Foi uma mulher que decidiu mencioná-lo na minha presença. Uma amiga cristã, com a qual estou freqüentemente em contacto porque se ocupa de crianças. Por esse fato, passam por ela muitas mães oriundas de todo o país, de todas as aldeias. E ela é um pouco como o moukhtar do sector, o que significa que convida as mulheres a beber chá ou café e discute com elas o que se passa nas aldeias donde vêm. Aqui, é uma forma de comunicação importante. Todos os dias se toma chá ou café enquanto se conversa, é a tradição, e a oportunidade que ela tem de identificar os casos de crianças em situação grave. Certo dia, ouve um grupo de mulheres dizerem:

- Na aldeia, temos uma rapariga que se portava muito mal e por isso os pais tentaram queimá-la. Consta que está num hospital, algures.

Esta amiga possui um certo carisma, respeitam-na e dá provas de uma enorme coragem, como virei a constatar depois. Normalmente, só se ocupa de crianças, mas a mãe nunca está longe dos filhos! Assim, por volta de 15 de Setembro desse ano, a minha amiga disse-me:

- Escuta, Jacqueline, há uma rapariga no hospital que está quase a morrer. A assistente social confirmou-me que foi queimada por alguém da família. Achas que podes fazer alguma coisa?

- Que mais é que sabes?

- Sei apenas que é uma rapariga nova que estava grávida e que na aldeia dela dizem: «Fizeram bem em castigá-la, agora vai morrer no hospital.»

- É monstruoso!

- Eu sei, mas aqui é assim. Está grávida e, portanto, vai morrer. É tudo. É normal. As pessoas dizem: «Pobres pais!» Lamentam os pais, mas não a filha. Aliás, ela vai mesmo morrer, segundo ouvi dizer.

Semelhante história faz tocar uma campainha de alarme na minha cabeça. Na altura, estou a trabalhar no seio da associação Terra dos Homens, dirigida por um homem fantástico, Edmond Kaiser. A minha missão primordial são as crianças. Nunca abordei, por razões óbvias, esse tipo de casos, mas digo para comigo: «Jacqueline, minha cara, tens de ir ver de perto o que se passa!»

 

Dirijo-me ao tal hospital, que conhecia bastante mal dado que o tinha visitado poucas vezes. Não tenho problemas porque conheço o país, os costumes, desembaraço-me com a língua e já passei muito tempo em hospitais. Limito-me a pedir que me levem junto de uma rapariga que foi queimada. Conduzem-me sem qualquer problema e entro numa divisão ampla, onde vejo duas camas e duas raparigas. Tenho desde logo a impressão que se trata de uma sala de desterro. Um sítio para onde levam aqueles casos que não convém mostrar.

Um quarto bastante soturno, com grades nas janelas, duas camas e o resto completamente vazio.

Como há duas raparigas, pergunto à enfermeira:

- Estou à procura daquela que acabou de ter um bebé.

- Ah sim, é aquela!

É tudo. A enfermeira sai. Não se detém sequer no corredor, não me pergunta quem sou, nada! Apenas um vago gesto em direcção a uma das camas:

- É aquela!

Vejo uma delas com os cabelos curtos, frisados mas quase rapados, e outra com os cabelos meio curtos e inteiriçados. Mas as duas raparigas têm o rosto completamente negro, coberto de fuligem. Os corpos estão cobertos por um lençol. Sei que já lá estão há algum tempo. Há cerca de quinze dias, segundo me dizem. É evidente que não conseguem falar. São duas moribundas. A que tem os cabelos retesados está em coma. A outra, a que teve um filho, mal abre as pálpebras por breves instantes.

Ninguém circula naquele quarto, nem enfermeira nem médico. Não ouso falar e menos ainda tocar-lhes, e o cheiro que ali reina é infecto. Vim para ver uma mulher e descubro duas horrivelmente queimadas sem sombra de dúvida e sem receberem quaisquer cuidados. Saio à procura de uma enfermeira noutro sítio fora daquela sala de degredo. Encontro uma.

- Gostava de falar com o médico-chefe do hospital.

Estou habituada a este tipo de instalações hospitalares, não é nenhuma novidade para mim. O médico-chefe recebe-me bem, com bastante afabilidade.

- Trata-se do seguinte. Estão aqui duas raparigas queimadas.

 

Sabe que trabalho com uma organização humanitária e talvez pudéssemos ajudá-las.

- Ouça... não a aconselho a fazer isso. Uma delas caiu no fogo, a outra é uma questão de família. Aconselho-a vivamente a não se meter nisso.

- Doutor, de qualquer maneira o meu trabalho é ajudar e em especial as pessoas que não recebem qualquer outro tipo de ajuda. Pode dizer-me mais alguma coisa?

- Não, não, não. Seja prudente. Não se envolva neste género de histórias!

Quando as coisas são assim, convém não forçar demasiado as pessoas. Fico-me por ali, mas volto a descer até à sala de degredo e permaneço sentada alguns instantes. Aguardo, à espera que aquela que entreabre os olhos possa comunicar. O estado da outra é mais preocupante.

Quando uma enfermeira passa no corredor, tento fazer uma pergunta:

- Esta rapariga, a que tem cabelo e não se mexe, o que foi que lhe aconteceu?

- Ah, caiu numa fogueira, está muito mal, vai morrer.

Nem uma ponta de piedade no diagnóstico. Uma mera constatação. Mas a fórmula que consiste em dizer «caiu na fogueira» não me engana.

A outra mexe-se um bocado. Aproximo-me dela e fico ali um bom bocado, sem dizer nada. Observo, tento perceber, escuto os ruídos no corredor, à espera que apareça alguém a quem me possa dirigir. Mas as enfermeiras passam apressadas, não querem saber para nada daquelas duas raparigas. É óbvio que não existem cuidados organizados para elas. De fato, talvez haja alguns, mas não os vejo. Ninguém se aproxima de mim, ninguém me pergunta nada. E no entanto sou uma estrangeira, vestida à ocidental, embora sempre bastante coberta, por respeito pelas tradições do país onde trabalho. É indispensável para se ser recebido em qualquer parte. Podiam ao menos perguntar-me o que faço ali, mas em vez disso ignoram-me.

Passado um momento, inclino-me sobre aquela que parece poder ouvir-me, mas não sei onde lhe posso tocar. O lençol não me deixa ver onde está queimada. Vejo que tem o queixo completamente colado ao peito.

 

Como se fosse um único bloco. Vejo que tem as orelhas queimadas e que pouco sobrou. Passo-lhe uma mão diante dos olhos. Ela não reage. Não lhe vejo nem as mãos nem os braços e não ouso levantar o lençol. Enfim, não sei o que fazer. Mas tenho que lhe tocar em qualquer sítio para assinalar a minha presença. Como se fosse uma moribunda. Para lhe dar a perceber que está ali alguém, para que sinta uma presença, um contacto humano.

Tem as pernas dobradas, os joelhos erguidos debaixo do lençol, como as mulheres se sentam à moda oriental, mas na horizontal. Coloco a mão num dos joelhos e ela abre os olhos.

- Como te chamas?

Não responde.

- Escuta, vou-te ajudar. Vou voltar e ajudar-te.

- Aioua.

Sim, em árabe, e nada mais. Volta a fechar os olhos. Nem sequer sei se me viu.

Foi o meu primeiro encontro com Souad.

Fui-me embora, consternada. Era evidente para mim que tinha de fazer alguma coisa! Em tudo o que tenho realizado até aqui, sempre tive a sensação de ter recebido um chamamento. Basta que me falem de uma situação de apuro para que eu acorra sabendo que vou fazer qualquer coisa em resposta a esse apelo. Não sei o quê, mas hei-de descobrir.

Vou ter de novo com a tal amiga que me dá alguns dados novos, se assim se pode dizer, sobre o caso daquela rapariga.

- A criança que ela deu à luz, o serviço social já lha tirou por ordem da polícia. Não vais poder fazer nada. Ela é jovem, ninguém te ajudará dentro do hospital. Jacqueline, acredita em mim, não vais poder fazer nada.

- Está bem, vamos ver.

No dia seguinte volto ao hospital. Ela mantém-se pouco consciente e a vizinha de cama continua em coma. E aquele cheiro nauseabundo é insuportável. Ignoro a extensão das queimaduras, mas ninguém as desinfetou. Dois dias depois, uma das duas camas está vazia. A jovem em coma morreu durante a noite. Olho para aquela cama vazia, mas apesar disso ainda não limpa, com uma pena imensa.

 

É sempre uma mágoa enorme não ter podido fazer qualquer coisa. E reflito: «Agora, é preciso tratar da outra.» Porém, ela está semi-inconsciente, delira muito e não percebo nada do que tenta responder às minhas perguntas.

E eis que acontece aquilo a que chamo o milagre. Na pessoa de um jovem médico palestino que encontro ali pela primeira vez. O diretor do hospital já me tinha dito: «Não pense mais nisso, ela vai morrer.» Peço a opinião àquele jovem médico.

- O que acha? Porque é que não lhe limpam o rosto, para já?

- Tentamos limpá-la como podemos, mas não é fácil. Estes casos são extremamente difíceis para nós, muito complicados, por causa dos costumes... compreende...

- Acha que a podemos salvar, que podemos fazer alguma coisa?

- Se ainda não morreu, talvez ainda haja hipóteses. Mas tem que ser prudente quando se trata de uma história destas, muito prudente.

Nos dias seguintes, encontro um rosto um pouco mais limpo e vestígios de mercurocromo aqui e ali. O jovem médico deve ter dado instruções à enfermeira, que faz um esforço, mas sem se preocupar grandemente. Souad contou-me mais tarde que a tinham agarrado pelos cabelos para a esfregarem dentro de uma banheira e que a manipulavam assim porque ninguém lhe queria tocar. Abstenho-me, por isso, de fazer críticas, o que só contribuiria para agravar as minhas relações com aquele hospital. Voltei a procurar o jovem médico árabe, a única pessoa que me parece acessível.

- Trabalho com uma organização humanitária, posso fazer alguma coisa, por isso gostava de saber se há alguma esperança de vida para ela.

- A mim, parece-me que sim. Podíamos tentar qualquer coisa, mas duvido que tal se faça no nosso hospital.

- Então, talvez a pudéssemos mudar de hospital?

- Sim, mas a rapariga tem família, pais, é menor, não é possível! Não podemos intervir, os pais sabem que ela está ali, a mãe já cá veio e, aliás, as visitas foram proibidas desde que... É um caso muito especial, acredite.

 

- Ouça, doutor, eu gostaria de fazer alguma coisa. Ignoro quais sejam as interdições, mas se me diz que há uma esperança de vida, ainda que ínfima, não posso ficar indiferente.

Então, o jovem médico olha para mim, algo surpreendido com a minha obstinação. Pensa certamente que eu não meço bem as conseqüências... mais uma dessas «humanitárias» que não percebem nada do país. Calculo que terá uns trinta e poucos anos e acho-o simpático. É alto, delgado, moreno e fala bem inglês. Não se assemelha nada aos seus confrades, em regra muito fechados aos pedidos dos Ocidentais.

- Se eu a puder ajudar, ajudo-a.

Partida ganha! Nos dias que se seguiram, fala abertamente comigo sobre o estado da paciente. Como foi educado em Inglaterra e é bastante culto, as relações tornam-se mais fáceis. Avanço mais um pouco na minha investigação sobre Souad e fico a saber que efetivamente ela não recebe quaisquer cuidados médicos.

- Ela é menor, pelo que não lhe podemos tocar sem consultar os pais. E para eles, ela está morta. Seja como for, é isso que esperam.

- Mas se eu quisesse transferi-la para outro hospital, onde seria mais bem tratada, acha que me deixariam fazê-lo?

- Não. Só os pais é que podem dar autorização e eles não vão autorizar!

Volto a ir ter com a minha amiga que está na origem desta aventura e dou-lhe a conhecer a minha idéia.

- Eu queria transferi-la para outro sítio. Que achas? É possível?

- Sabes, se os pais quiserem que ela morra, não conseguirás nada! Trata-se de uma questão de honra para eles, na aldeia.

Sou bastante obstinada neste gênero de situações. Não me satisfaço com uma negativa, insisto em forçar a recusa até descobrir uma abertura positiva, ainda que ínfima. Em qualquer dos casos, gosto de explorar uma idéia até ao fim.

- Achas que posso ir à aldeia dela?

- Arriscas-te muito. Ouve-me com atenção. Ignoras o que é um código de honra inexorável. Eles querem que ela morra porque senão a sua honra não é lavada e a família é expulsa da aldeia. Têm de se ir embora, desonrados. Compreendes? Se insistes, podes ir meter-te na boca do lobo, mas na minha opinião corres um enorme risco para nada, afinal. Ela está condenada. Tanto tempo sem ter recebido cuidados e com aquelas queimaduras, não vai sobreviver, a desgraçada.

No entanto, apesar de tudo, a pequena Souad abre um pouco os olhos quando a vou visitar. Escuta-me e responde-me a despeito do seu sofrimento abominável.

- Sei que tiveste um bebê. Onde está? - Não sei. Levaram-no. Não sei...

Com tudo o que tem de suportar e o que a espera, a morte anunciada segundo me dizem, compreendo perfeitamente que a criança não seja o seu principal problema.

- Souad, tens de me responder porque eu quero fazer qualquer coisa. Se conseguirmos sair daqui, se eu te levar para outro lado, vens comigo?

- Sim, sim, sim. Vou contigo. Para onde é que vamos?

- Para outro país, não sei qual, mas para qualquer parte onde não se ouça falar mais disto.

- Sim, mas tu sabes, os meus pais...

- Eu trato dos teus pais. Eu trato disso. De acordo? Confias em mim?

- Sim... Obrigada.

E então, munida dessa confiança, pergunto ao jovem médico se sabe onde fica essa famosa aldeia onde se queimam como tochas as raparigas culpadas por se apaixonarem.

- Ela é de uma pequena povoação, a cerca de quarenta quilômetros daqui. É bastante longe, não há uma estrada transitável para os carros e é perigoso porque não sabemos muito bem o que se passa. Não há polícia nesses lugares.

- Não sei se poderei ir lá sozinha...

- Nem pensar! Não a aconselho de modo algum. Para já, até encontrar o sítio, vai-se perder uma dezena de vezes. Não existem mapas tão pormenorizados...

Sou ingênua, mas não tanto. Sei que é um problema obter informações sobre o caminho em lugares desse gênero quando se é estrangeiro. Tanto mais que a povoação em causa fica situada em território ocupado pelos Israelitas. Mas eu, Jacqueline, com ou sem a Terra dos Homens, humanitária ou não, cristã ou não, posso perfeitamente passar por uma israelita que veio espiar os Palestinos. Ou então o inverso, consoante o troço da estrada onde me encontre.

- Quer fazer-me o favor de me acompanhar?

- É uma loucura.

- Ouça, doutor, podemos salvar uma vida... é você mesmo que me diz que há uma esperança se a transferirmos para fora daqui...

Salvar uma vida. O argumento faz sentido para ele, que é médico. Mas também é natural do país tal como as enfermeiras, para as quais Souad, ou qualquer outra rapariga como ela, deve morrer. ..

Entretanto uma delas não sobreviveu. Ignoro se tinha alguma hipótese de escapar, mas em todo o caso não foi tratada. Apetecia-me muito dizer a este médico simpático que acho insuportável «deixar morrer» uma rapariga sob o pretexto de que é a tradição! Mas não o farei, porque sei que ele próprio está prisioneiro deste sistema, perante o hospital, perante o diretor, as enfermeiras e a população em geral. Já revela bastante coragem ao falar comigo sobre o assunto. Os crimes de honra são tabus.

Acabo por quase o convencer. É realmente um homem muito bom, honesto, que me deixa enternecida ao responder com um ar hesitante:

- Não sei se terei coragem...

- Podemos sempre tentar. E se não resultar, vamo-nos embora.

- De acordo, mas vai permitir-me dar meia-volta se houver a mínima complicação.

Prometo. Este homem, a quem chamarei Hassan, vai pois servir-me de guia.

Sou uma rapariga ocidental que trabalha no Médio Oriente com a Terra dos Homens para se ocupar de crianças em situações difíceis, sejam muçulmanas, judias ou cristãs. Trata-se de um exercício de diplomacia permanente e complexa. Mas no dia em que subo para o meu carro com aquele médico corajoso a meu lado, não tenho verdadeiramente consciência do risco. As estradas não são seguras, os habitantes são desconfiados, e estou a arrastar aquele médico árabe, acabado de sair de uma universidade inglesa, para uma aventura que seria rocambolesca se o objetivo a atingir não fosse tão sério. Deve achar-me completamente louca.

Na manhã da partida, Hassan está ligeiramente pálido de medo. Eu mentiria se dissesse que me sentia descontraída, mas atiro-me para a frente com a inconsciência da minha juventude dessa época e a certeza do meu envolvimento ao serviço dos outros. Como é evidente, nenhum de nós ia armado.

Para mim, era «seja o que Deus quiser»; para ele, «inchAllah».

Quando saímos da cidade, percorremos uma clássica paisagem rural palestina, de terrenos retalhados pertencentes a pequenos camponeses. São parcelas cercadas por muros baixos de pedra, com muitos lagartos e cobras que se esgueiram por entre as pedras. A terra tem uma tonalidade ocre avermelhada, salpicada de figueiras-da-barbária.

A pista que sai da cidade não é alcatroada, mas é transitável. Liga os lugarejos e as aldeias vizinhas, os mercados. Os tanques israelitas aplainaram-na razoavelmente, embora subsistam buracos suficientes para fazer chiar o meu pequeno carro. À medida que nos afastamos da cidade vamos encontrando mais pequenos cultivos. Quando o lote de terreno é bastante grande, os camponeses semeiam trigo, se for mais pequeno, serve de pasto aos rebanhos. Vêem-se algumas cabras, alguns carneiros. Mais gado, se o camponês for rico.

As raparigas trabalham no amanho da terra. Freqüentam muito pouco, se é que freqüentam, a escola e as que têm a sorte de ir à escola não tardam a ser chamadas para tratarem dos mais pequenos. Já tinha percebido que Souad era totalmente iletrada.

Hassan conhece esta pista, mas vamos à procura de uma povoação de que nunca ouviu falar. De vez em quando pedimos indicações no caminho, mas como o meu carro tem matrícula israelita, são maiores as probabilidades de perigo. Encontramo-nos em território ocupado e as indicações que nos fornecem não são necessariamente fiáveis.

Passado um bocado, diz-me Hassan:

- Seja como for não é razoável, vamos estar completamente sozinhos na aldeia. Mandei prevenir a família através do telefone árabe, mas sabe Deus como é que nos vão esperar. Só o pai? Toda a família?

 

Ou a aldeia inteira? Eles não podem entender a sua diligência!

- Você disse-lhes que a jovem ia morrer e que vínhamos falar com eles sobre isso?

- Justamente, e é isso que eles não vão entender. Queimaram-na e aquele que o fez está provavelmente à nossa espera na curva da estrada. De toda a maneira, vão dizer que as roupas pegaram fogo ou que ela caiu de cabeça em cima da fogueira! É complicado nas famílias...

Sei isso. Desde o início, há uns bons dez dias atrás, que me vêm repetindo que uma mulher queimada é uma coisa complicada e que não me devo meter. Só que resolvi meter-me.

- Garanto-lhe que era preferível darmos meia-volta... Estimulo a coragem do meu precioso companheiro. Sem ele, é possível que lá tivesse ido de qualquer maneira, mas uma mulher sozinha não circula por aquelas regiões.

Finalmente, descobrimos a aldeia em questão. O pai recebe-nos no exterior, à sombra de uma árvore imensa, defronte de casa. Sento-me no chão, com Hassan à minha direita. O pai está sentado, apoiado ao tronco da árvore, numa posição familiar, com uma perna fletida, sobre a qual repousa uma bengala. É um homem pequeno, arruivado, com um rosto muito claro e sardento, levemente albino. A mãe permanece de pé, muito direita no seu vestido negro, com um véu da mesma cor na cabeça. Tem o rosto descoberto. É uma mulher sem idade, de traços burilados e olhar duro. As camponesas palestinas têm muitas vezes esse olhar. Mas é normal, atendendo ao fardo que carregam de trabalho, de filhos e de escravatura.

A casa é de dimensões médias, com um aspecto muito típico da região, embora não se veja grande coisa. Parece fechada, vista do exterior. Em todo o caso, o homem não é pobre.

Hassan apresenta-me depois das habituais cortesias.

- Esta senhora trabalha numa organização humanitária...

E a conversa prossegue à moda palestina, primeiro entre os dois homens.

- Como vão os rebanhos?... E a colheita?... Está a vender bem?...

- Está mau tempo... o Inverno aproxima-se, os Israelitas causam-nos muitos problemas...

Fala-se longamente da chuva e do bom tempo antes de abordar o propósito da nossa visita. É normal. Ele não fala da filha e, portanto, Hassan não fala dela e eu também não. Oferecem-nos chá - como sou uma estrangeira em visita, não posso recusar a hospitalidade tradicional - e é altura de partirmos. Seguem-se as saudações.

- Viremos visitá-los de novo...

Não avançamos mais e partimos. Porque tem que se começar assim e ambos o sabemos. Para abordarmos o assunto é preciso não nos apresentarmos como inimigos ou como inquiridores, há que deixar passar o tempo para podermos voltar.

Estamos de novo na pista em direção à cidade, a uns quarenta e tal quilômetros dali. Recordo-me de ter soltado um «ufff!».

- Não correu mal, pois não? Vamos voltar daqui a uns dias.

- Quer realmente voltar cá?

- Quero. Até agora ainda não fizemos nada.

- Mas o que é que lhes pode propor? Dinheiro, não vale a pena... não conte com isso. Honra é honra.

- Vou jogar com o fato de a rapariga estar às portas da morte. O que é lamentavelmente verdade, como você mesmo me disse...

- Sem ter recebido cuidados urgentes, e agora já é demasiado tarde, ela não tem quaisquer hipóteses de fato.

- Portanto, uma vez que a situação é essa, vou dizer-lhes que a vou levar para outro lado para morrer... Talvez isso lhes resolva o problema?

- Ela é menor, não tem papéis e precisa do consentimento dos pais. Eles não vão mexer um dedo para obterem os documentos e você não vai conseguir nada...

- De qualquer maneira, voltamos cá. Quando é que liga para o telefone árabe?

- Dentro de alguns dias, dê-me algum tempo...

Ela não dispõe de muito tempo, a pequena Souad. Mas apesar de Hassan ser um médico milagre para a minha expedição, trabalha no hospital, tem família e o simples fato de se envolver num crime de honra pode acarretar-lhe graves aborrecimentos. Compreendo-o cada vez melhor e respeito a sua prudência.

 

Lutar contra um tabu deste tipo e tentar contorná-lo é, de qualquer modo, algo novo para mim e invisto nisso toda a minha energia. Porém, é ele quem estabelece os contactos na aldeia para anunciar a nossa visita e imagino perfeitamente o poder de persuasão a que tem de recorrer para uma tarefa tão simples...

 

                   SOUAD VAI MORRER

O meu irmão é amável. Tentou trazer-me bananas, mas o médico disse-lhe para não voltar cá.

- Quem te fez isso?

- O meu cunhado, Hussein, o marido da minha irmã mais velha. A minha mãe trouxe veneno num copo...

Conheço mais um pouco da história de Souad. Fala melhor comigo, mas as condições neste hospital são terríveis para ela. Deram-lhe banho uma vez, segurando-a pelos poucos cabelos que lhe restam. As queimaduras estão infectadas, destilam umidade e sangram permanentemente. Consegui divisar a parte superior do corpo dela: a cabeça sempre inclinada como que em oração, o queixo colado à parte de cima do busto. Não mexe os braços. A gasolina ou o petróleo foi derramado na cabeça. Ardeu enquanto descia pelo pescoço, as orelhas, as costas, os braços e a parte superior do peito. Ela enovelou-se assim como uma estranha múmia, provavelmente enquanto a transportavam, e permanece exatamente na mesma posição mais de quinze dias depois. Sem contar com o parto em estado de semi-coma e com a criança desaparecida. A assistente social deve tê-lo depositado como um mísero embrulho num qualquer orfanato, mas onde? Conheço demasiado bem o futuro que espera essas crianças ilegítimas. Um futuro sem esperança.

O meu plano é louco. Numa primeira fase, quero transferi-la para Belém, cidade sob controlo israelita na altura, mas tão acessível para mim como para ela. Está fora de causa levá-la para outra cidade.

 

Sei sem sombra de dúvida que não dispõem dos meios necessários para os queimados graves. Trata-se pois de uma primeira etapa. Contudo, numa segunda fase, em Belém, poderão dispensar-lhe o mínimo de cuidados básicos. Terceira fase do plano: partida para a Europa, com o acordo da organização Terra dos Homens, que ainda não solicitei.

Isto sem falar da criança, que tenciono tentar encontrar entretanto.

Quando o meu jovem médico sobe para o meu pequeno carro para uma segunda visita a casa dos pais, mostra-se igualmente inquieto. Idêntica recepção, no exterior debaixo da árvore, a mesma conversa banal à partida, mas desta vez eu falo dos filhos que nunca vemos.

- Têm muitos filhos? Onde estão?

- Estão a trabalhar no campo. Temos uma filha casada, que tem dois rapazes e um filho casado, também com dois rapazes.

Excelente ter rapazes. Há que felicitar o chefe de família. Mas lamentá-lo também.

- Sei que têm uma filha que vos causa muitos problemas.

- Ya haram! É terrível o que nos acontece! Que desgraça!

- É realmente lamentável para vós.

- Sim, é uma pena. Allah Karim! Mas Deus é grande.

- Na aldeia, é penoso ter problemas tão difíceis...

- Sim, é muito duro para nós.

A mãe não fala. Continua de pé, hierática.

- Bem, de qualquer modo ela vai morrer em breve. Está muito mal.

- Sim. Allah Karim!

O meu médico acrescenta, num tom muito profissional:

- Sim, ela está realmente muito mal.

Percebeu o meu interesse naquele estranho regatear sobre a morte esperada de uma rapariga. Ajuda-me, acrescentando uma mímica bastante explícita sobre a morte inevitável de Souad, quando o que esperamos é precisamente o contrário... É agora a sua vez. O pai confia-lhe por fim, com maior clareza, o ponto fulcral de todas as suas preocupações.

- Espero que possamos ficar na aldeia.

- Com certeza que sim. De qualquer maneira, ela vai morrer.

- Se Deus quiser. É a nossa fatalidade. Não se pode fazer nada contra isso.

Mas não conta o que aconteceu, absolutamente nada. Então, a certa altura, avanço um peão no tabuleiro de xadrez.

- No entanto, não deixa de ser um transtorno para vocês se ela morrer aqui. Como é que vão fazer o enterro? Onde?

- Vamos enterrá-la aqui, no quintal.

- Se eu a levasse comigo, talvez ela pudesse morrer noutro sítio e vocês não teriam mais problemas.

É evidente que para os pais não faz qualquer sentido que eu a leve comigo para ir morrer algures. Nunca ouviram falar de semelhante coisa em toda a vida. Hassan apercebe-se e insiste.

- No fundo, vocês teriam menos problemas e a aldeia também...

- Sim, mas nós vamos enterrá-la assim, se Deus quiser, e dizemos a toda a gente que a enterramos e acabou-se.

- Não sei, pense nisso. Talvez eu a possa levar para morrer noutro sítio. Posso fazer isso se concordarem...

É terrível, mas neste jogo mórbido a única coisa que posso fazer é jogar com a morte! Para eles seria um horror se lhes falasse na recuperação de Souad e nos cuidados a dar-lhe. Então, pedem-nos que os deixemos discutir o assunto entre eles. Uma forma de nos darem a entender que é altura de partirmos. O que fazemos depois das saudações da praxe, com a promessa de voltarmos. Que pensar da nossa tentativa, naquele momento? Teremos negociado de forma correta? Por um lado, Souad desaparece, por outro, a família recupera a honra perdida na aldeia...

Deus é grande, como diz o pai. Há que aguardar pacientemente.

Entretanto, vou todos os dias ao hospital numa tentativa de que lhe sejam dispensados ao menos os cuidados mínimos. A minha presença obriga-os a fazerem alguns esforços, como por exemplo desinfetá-la um pouco mais. Porém, sem analgésicos e sem produtos específicos, a pele da pobre Souad continua uma chaga imensa, insuportável para ela e de aspecto repelente para os outros. Penso muitas vezes, como num sonho de conto de fadas, nos hospitais do meu país, de França, de Navarra ou de outros sítios, onde tratam dos queimados graves com tanta precaução e empenhamento para tornarem as dores suportáveis...

Reatamos as negociações, sempre os dois, eu e o meu corajoso médico. É preciso malhar no ferro, propor a transação com igual dose de diplomacia e de convicção.

- O que não seria bom era que ela morresse cá na terra. Para vocês, mesmo no hospital, na cidade, não convém. Mas nós podemos levá-la para longe, para outro país. E assim acabou-se e poderão dizer à aldeia em peso que ela morreu. Irá morrer noutro país e nunca mais ouvem falar dela.

Neste momento, a conversa torna-se extremamente tensa. Sem os papéis, qualquer acordo com eles não servirá para nada. Estou quase a chegar ao assunto. Não faço mais perguntas, nem quem fez aquilo nem quem é o pai da criança. Essas histórias não têm qualquer interesse para a negociação e a sua evocação apenas contribuiria para manchar mais ainda a sua honra. O que importa é convencê-los de que a filha vai morrer, mas noutro sítio. E deixo que me tomem por uma louca, por uma estrangeira excêntrica, que, ao fim e ao cabo, lhes interessa aproveitar.

Sinto que a idéia começa a fazer o seu caminho. Se disserem que sim, mal viremos as costas, poderão declarar a morte da filha a toda a aldeia, sem mais pormenores, e sem enterro no quintal. Poderão contar o que bem entenderem e até que vingaram a sua honra à sua maneira. É demencial se pensamos nisso com um raciocínio de Ocidental... é realmente uma loucura conseguir objectivos em semelhantes condições. Esta negociação não os incomoda, em termos morais. Aqui a moral é uma moral especial, exerce-se contra as raparigas e as mulheres, ao pretender impor-lhes uma lei que só interessa aos homens do clã. Mesmo aquela mãe aceita-a sem vacilar ao desejar a morte e o desaparecimento da própria filha. Não pode fazer outra coisa e, intimamente, chego a lamentá-la. Aliás, não me preocupo com os estados de alma. Em todos os países onde trabalho, seja em África, na índia, na Jordânia ou na Cisjordânia, tenho de me adaptar à cultura e respeitar os costumes ancestrais. O único objetivo é ajudar aqueles ou aquelas que são vítimas desses costumes. Mas é a primeira vez na minha vida que negocio uma vida nestes moldes. Eles cedem.

 

O pai obriga-me a prometer, e a mãe também, que nunca mais a verão! NUNCA MAIS?

- Não! Nunca mais! JAMAIS!

Prometo. Mas para cumprir a minha promessa e levar Souad para o estrangeiro, preciso dos papéis dela.

- Tenho que lhes pedir uma coisa... Talvez seja um pouco difícil, mas irei convosco e ajudo-vos. Temos de ir juntos ao serviço que passa os documentos de identidade e de viagem.

Este novo obstáculo inquieta-os de imediato. Todo e qualquer contacto com a população israelita, e sobretudo com a administração, constitui um problema para eles.

- Levo-os de carro até Jerusalém, a si e à senhora, para assinarem os papéis.

- Mas nós não sabemos escrever!

- Não faz mal, basta a impressão digital...

- Está bem, nós vamos consigo.

Desta vez é com a administração que tenho de negociar antes

de vir buscar os pais. Felizmente conheço gente no serviço de vistos de Jerusalém. Ali, posso prestar esclarecimentos e os funcionários sabem o que faço pelas crianças. De resto, é uma criança que vou salvar. Souad disse-me que tinha dezessete anos, mas que importa, é ainda uma criança. Explico aos funcionários israelitas que lhes vou trazer os pais de uma palestina gravemente doente, que não convém fazê-los esperar três horas sob pena de se irem embora sem assinarem nada. São pessoas iletradas, que necessitam da minha presença para as formalidades. Portanto, vou trazê-los, munidos de uma certidão de nascimento, se a tiverem, e a administração terá apenas que confirmar a idade da filha no salvo-conduto. Acrescento, e mais uma vez sou temerária, que essa rapariga vai partir acompanhada por uma criança. Embora continue a ignorar o paradeiro do bebê e como descobri-lo.

Mas, por agora, não se põe a questão: cada coisa a seu tempo. O meu único problema é apressar os pais e que sejam dispensados alguns cuidados à pequena Souad.

Como é evidente, o funcionário israelita interroga-me:

- Sabes o nome do pai da criança?

- Não, não sei o nome.

- Devo escrever ilegítima?

 

Aquela designação num documento oficial enerva-me.

- Não, não vamos escrever ilegítimo! A mãe vai para o estrangeiro e lá as vossas histórias de filhos ilegítimos não fazem sentido!

Este salvo-conduto para Souad e para a criança não é um passaporte, mas apenas uma autorização para sair do território palestino com destino a um país estrangeiro. Souad nunca mais voltará a este território. O que significa que, virtualmente, ela deixará de ter existência no seu país, eliminada do mapa, a jovem queimada. Um fantasma.

- Passe-me dois salvo-condutos, um para a mãe e outro para a criança.

- E onde é que está a criança?

- Vou buscá-la.

O tempo arrasta-se, mas ao fim de uma hora a administração israelita dá-me luz verde. E no dia seguinte vou ter com os pais, desta vez sozinha, como uma adulta. Sobem para o carro em silêncio, como duas máscaras, e eis-nos em Jerusalém, no serviço de vistos. Um território inimigo para aquela gente, onde por hábito são tratados como menos do que nada.

Aguardo, sentada ao lado deles. Para os israelitas, sou de algum modo uma garantia de que aquelas pessoas não vêm para ali com uma bomba. Conhecem-me muito bem desde que trabalho nos meios palestinos e israelitas. De súbito, a funcionária que redige os papéis faz-me sinal para me aproximar.

- De acordo com a certidão de nascimento, esta rapariga tem dezenove anos! Tu disseste-me dezessete!

- Não vamos discutir por causa disso. De qualquer maneira, tu estás-te nas tintas se ela tem dezessete ou dezenove anos...

- Porque é que não a trouxeste? Ela também tem de assinar!

- Não a trouxe porque está moribunda num hospital.

- E a criança?

- Ouve, não te preocupes. Passem-me um salvo-conduto para a rapariga na presença dos pais, para eles assinarem, e em relação ao da criança eu trago-vos todos os dados e venho cá buscá-lo.

Desde que não seja posta em causa a segurança do território, os funcionários israelitas são colaboradores. No início da minha atividade humanitária, sempre que o meu trabalho me levava aos territórios ocupados, eles interpelavam-me. Depois, tive que me desvencilhar com eles. Quando perceberam que também me ocupava de crianças israelitas com graves deficiências devido a casamentos consangüíneos em certas comunidades, as coisas melhoraram. Infelizmente, algumas crianças vindas de famílias ultra-religiosas, onde se casam entre primos, nascem com mongolismo ou com graves deficiências. De resto, sucede o mesmo em certas famílias árabes ultra-religiosas. Na altura, o meu trabalho incide essencialmente sobre esse problema nas duas comunidades, o que me permite movimentar num certo clima de confiança, designadamente com a administração.

O serviço de salvo-condutos está situado fora das muralhas, junto à cidade velha de Jerusalém. Já com o precioso documento na mão, sigo a pé, com os pais que continuam sem dizer palavra, por entre soldados israelitas armados até aos dentes, para entrar no carro. Vou levá-los à aldeia tal e qual como os trouxe. O homenzinho ruivo de olhos azuis, com um keffieh branco e bengala, e a mulher toda de negro, desde os olhos até à fímbria da saia.

É pelo menos uma hora de trajeto entre Jerusalém e a aldeia. Da primeira vez, tinha muito medo de os enfrentar apesar da minha aparência dinâmica e ousada. Mas agora já não os temo, não os julgo, limito-me a pensar: «Pobre gente.» Todos nós somos objeto de uma fatalidade própria.

Acompanharam-me, tanto à ida como à vinda, sem pronunciarem uma única palavra. Receavam que os israelitas lhes causassem aborrecimentos. Tinha-lhes dito que não tivessem medo, que tudo ia correr bem. À parte algumas palavras essenciais, não tive uma verdadeira conversa com eles. Não vi o resto da família, nem o interior da casa. Observando-os, custava-me a acreditar que tivessem querido matar a filha. No entanto, ainda que o executante tivesse sido o cunhado, foram eles que decidiram... Tive o mesmo sentimento mais tarde, depois desta primeira experiência, com outros pais que conheci em idênticas circunstâncias. Não conseguia olhá-los como assassinos. Aqueles não choravam, mas vi alguns chorarem, porque eles próprios são prisioneiros desse costume abominável: o crime de honra.

 

Diante de casa, sempre fechada sobre o segredo e a desgraça, descem do carro, silenciosos, e parto logo de seguida. Não nos voltaremos a ver.

Tenho muitas coisas a tratar. Antes de mais, entrar em contacto com o meu «patrão».

Edmond Kaiser é o fundador de Terra dos Homens. Ainda não lhe falei da minha tentativa louca. Antes, precisava de «finalizar», se assim se pode dizer, a parte administrativa. Contacto, então, Edmond Kaiser que, na altura, nunca ouvira falar desse género de histórias. Faço-lhe um resumo da situação.

- O caso é este: tenho uma rapariga que foi queimada e que tem um bebê. A minha intenção é levá-la para o nosso país, mas ainda não sei onde pára o bebê. Concordas com tudo?

- Evidentemente que estou de acordo.

Era assim, o Edmond Kaiser. Um homem formidável, com a intuição da urgência irrevogável. Feita a pergunta, a resposta não se fazia esperar. Podíamos falar com ele com toda a simplicidade.

Tenho pressa de tirar a pequena Souad daquela sala de degredo onde sofre como um cão, mas onde temos a sorte, ela e eu, de contar com um apoio enorme na pessoa do doutor Hassan. Se não fosse a sua bondade e a sua coragem, só Deus sabe se eu teria conseguido ser bem-sucedida.

Decidimos os dois removê-la durante a noite, numa maca, discretamente. Cheguei a acordo com o diretor do hospital para que ninguém a visse. Não sei se eles alegaram que tinha falecido durante a noite, mas é provável.

Deito-a ao comprido no banco de trás, são três ou quatro horas da manhã, e dirigimo-nos para outro hospital. Naquela altura, ainda não havia as inúmeras barragens instaladas com a Intifada. A viagem decorre sem incidentes e chego de madrugada ao hospital, onde já está tudo combinado. O médico-chefe está ao corrente e pedi que não lhe fizessem perguntas sobre a família, a aldeia ou os pais.

O estabelecimento está melhor equipado e é sobretudo mais limpo. Recebe auxílio da Ordem de Malta. Instalam Souad num quarto. Venho vê-la todos os dias, enquanto continuo à espera de conseguir os vistos para a Europa e, sobretudo, de encontrar a criança.

Ela não me fala do bebê. Como se lhe bastasse saber que está vivo algures, e essa aparente indiferença é perfeitamente compreensível. Sofrimento, humilhação, angústia, depressão: Souad é incapaz, psicológica e fisicamente, de se aceitar como mãe. É bom que se saiba que as condições em que é acolhido um filho ilegítimo, dado à luz por uma mãe considerada pecaminosa e queimada por uma questão de honra, são tais que é preferível separá-lo da comunidade. Se eu pudesse deixar esse bebê viver em boas condições no seu país, tomaria essa decisão. Tanto para a criança como para a mãe, seria a solução menos penosa. Infelizmente, é impossível. Essa criança irá viver durante toda a vida a pretensa vergonha da mãe, metido num orfanato onde será desprezado. Sinto que tenho o dever de o tirar dali, tal como a Souad.

- Quando partimos?

Ela não pensava noutra coisa senão em partir e perguntava-me em todas as visitas.

- Quando tivermos os vistos. E vamos tê-los, não te preocupes.

Queixa-se das enfermeiras que arrancam os pensos sem cuidado, grita sempre que alguém se aproxima e sente-se maltratada. Suspeito que as condições, ainda que mais higiênicas, não são as ideais. Mas que outra coisa posso fazer, enquanto os vistos não estiverem prontos? E esses documentos demoram sempre muito tempo.

Entretanto, faço várias diligências para encontrar o bebê, servindo-me das minhas amizades. A amiga que me referiu o caso de Souad entra em contacto, algo reticente, com uma assistente social, que se mostra ainda mais reticente. O relato da minha amiga é explícito.

- Respondeu-me que sabe onde ele está, que é um rapaz, mas que não o podemos tirar assim, que é impossível. Acha que fazes mal em te preocupares com a criança. A verdade é que será um encargo suplementar para ti e, depois, para a mãe!

Vou, pois, saber qual é a opinião de Souad.

- Como se chama o teu filho?

- Chama-se Marouan.

- Foste tu que lhe deste esse nome?

- Fui, fui eu. Foi o médico que me pediu.

Ela tem momentos de amnésia e outros de lucidez, que às vezes me deixam confusa. Esqueceu as circunstâncias terríveis do parto, esqueceu que lhe disseram que era um rapaz, e nunca me tinha falado no nome da criança. E, de súbito, a uma pergunta simples, a resposta é direta. Prossigo no mesmo sentido:

- O que é que pensas? Eu acho que não devemos partir sem o Marouan. Vou procurá-lo, não o podemos deixar aqui...

Ela olha para baixo, penosamente, por causa do queixo que continua colado ao busto.

- Achas?

- Sim, acho. Tu vais-te embora, vais ser salva, mas eu sei em que condições Marouan vai viver, será um inferno para ele.

Será sempre o filho de uma charmuta. O filho de uma puta. Não o digo, mas ela deve saber. A entoação daquele «Achas?» basta-me. É positiva.

Portanto, vou à procura da criança. Começo por visitar um ou dois orfanatos, tentando descobrir um bebé que deve ter agora cerca de dois meses e se chama Marouan. Mas não o descubro nem sou a pessoa mais indicada para encontrar a criança. A assistente social não gosta de raparigas como Souad. É palestina, de boas famílias, o que não constitui obstáculo às tradições. Sem ela, porém, não conseguirei nada. Então, à força de insistência, mas sobretudo para ser agradável à minha amiga, indica-me o centro onde ele foi entregue. Naquela altura, era mais um ninho de ratos do que um orfanato. Tirá-lo de lá é muito complicado. Está prisioneiro do sistema que ali o depositou.

Inicio várias diligências, cujos meandros resultam finalmente uma quinzena de dias mais tarde. Conheço intermediários para todos os gostos. Os que perfilham a idéia de que a criança deve ter a mesma sorte da mãe, e os que preferem desembaraçar-se de um problema e de mais uma boca para alimentar. Algumas dessas crianças morrem sem mais explicações. Por último, os que têm coração e compreendem a minha obstinação. No fim de contas, acabo por me encontrar com um bebê de dois meses nos braços, com uma cabeça minúscula, um pouco em forma de pêra, com uma ligeira bossa na fronte, resultado do nascimento prematuro.

 

Mas de boa saúde, o que é uma proeza da sua parte. Não teve nem incubadora, nem uma ponta de ternura. Tem apenas vestígios de uma ligeira icterícia típica dos recém-nascidos. Eu receava que tivesse problemas graves. A mãe ardera como uma tocha com a criança no ventre e deu-a à luz em condições de absoluto pesadelo. Está magro, mas sem problemas. Olha-me com os seus olhos redondos, sem chorar, sereno.

Quem sou eu? O Zorro? Sou estúpida, sabe lá ele quem é o Zorro...

Estou habituada a crianças que sofrem de mal nutrição. Temos, nesse momento, sessenta numa instituição. Porém, levo-o para minha casa, onde tenho tudo o necessário para o seu caso. Já promovi a deslocação de crianças atingidas por enfermidades graves para serem operadas na Europa. Durante a noite, instalo Marouan numa alcofa, enfaixado, vestido, alimentado. Já tenho os vistos. Tenho tudo. Edmond Kaiser espera-nos em Lausanne, com destino ao CHU, sector de queimados graves.

Amanhã, partimos. Transporte da mãe numa maca para apanharmos o avião em Telavive. Souad é dócil como uma rapariguinha. Sofre terrivelmente, mas quando lhe pergunto:

- Como é que isso vai? Não tens muitas dores? Ela responde simplesmente:

- Sim, tenho dores. E é tudo.

- Se eu te virar um pouco, ficas melhor?

- Sim, fico melhor. Obrigada.

Sempre «obrigada». Obrigada pela cadeira de rodas no aeroporto, uma peça que nunca tinha visto na vida. Obrigada pelo café com uma palhinha. Obrigada por a instalar num canto, o tempo necessário para validar os bilhetes. Como seguro o bebê, o que me causa algum embaraço nas formalidades, sempre demoradas, digo a Souad:

- Escuta, vou colocar o bebê ao teu colo, não te mexas... Lança-me um olhar levemente assustado. As queimaduras não lhe permitem segurá-lo nos braços. Apenas consegue aproximá-los de ambos os lados do corpo do bebê, rígida e angustiada. Esboça um gesto de receio quando lhe confio a criança. É duro para ela.

- Fica assim. Volto já.

 

Sou forçada a pedir-lhe ajuda, não posso empurrar a cadeira de rodas, segurar o bebê e apresentar-me em todos os balcões do aeroporto onde tenho de mostrar o meu passaporte, os vistos, os salvo-condutos, e dar explicações sobre a minha estranha equipagem.

E é um pesadelo, porque os passageiros que passam ao lado dela fazem o que fazem todas as pessoas diante de um bebê:

- Oh! Que bonito que é este bebê! Ah! Tão querido!

Nem sequer olham para a mãe, completamente desfigurada, de cabeça inclinada sobre a criança. Tem pensos sob a camisa do hospital - era muito difícil vesti-la -, um dos meus casacos de malha e uma manta por cima. Não consegue levantar a cabeça para dizer «obrigada» às pessoas que passam e eu sei até que ponto aquele bebê que acham tão amoroso a enche de pânico.

Quando me afasto dela para tratar das formalidades, penso que a cena é surrealista. Ali está ela, queimada, com o bebé nos braços. Viveu um inferno e a criança também, e as pessoas passam e sorriem: «Oh! Que lindo bebê!»

No momento de embarcar, levanta-se outro problema: o de a subir para dentro do avião. Já subi com uma cadeira de rodas a escada de um avião, mas naquele momento estou verdadeiramente embaraçada. Os israelitas possuem uma técnica. Trazem uma grua enorme e Souad vê-se suspensa numa espécie de cabina na extremidade da grua. A cabina sobe lentamente, chega ao nível da porta do avião, onde dois homens a recuperam.

Reservei três lugares à frente para a poder estender e as hospedeiras colocaram uma cortina para a subtraírem aos olhares dos restantes passageiros. Marouan está num berço da companhia de aviação. Vôo direto para Lausanne.

Souad não se queixa. Tento ajudá-la a mudar de posição de vez em quando, mas nunca há nada que a alivie. As pastilhas analgésicas não servem de grande ajuda. Tem uma expressão levemente esgazeada, sonolenta, mas confiante. Expectante. Não lhe posso dar de comer, mas apenas de beber com o auxílio de uma palhinha. E trato de mudar a fralda ao bebê, que ela evita olhar.

Sofre com tantas coisas tão complicadas. Ignora o que quer dizer Suíça, o país para onde â levo para aí ser tratada. Nunca viu um avião, uma grua, nem tantas pessoas diferentes na barafunda que é um aeroporto internacional.

 

Levo comigo uma espécie de pequena selvagem iletrada, que não pára de descobrir coisas talvez aterradoras para ela. Também sei que as dores estão muito longe de chegar ao fim. Será preciso muito tempo até que esta sobrevivência volte a ser uma vida suportável. Nem sequer sei se a poderão operar e se ainda será possível fazer enxertos. Depois, será a integração no mundo ocidental, a aprendizagem de uma língua e tudo o mais que se seguirá. Sempre que «resgatamos» uma vítima, sabemos, como diz Edmond Kaiser, que é uma responsabilidade que assumimos para o resto da vida.

A cabeça de Souad está ao lado da vigia. Não acredito que, no seu estado, seja capaz de pensar em tudo o que a aguarda. Espera, sem saber exatamente o quê.

- Estás a ver aquilo? Chamam-se nuvens. Dorme. Alguns passageiros queixam-se do cheiro, apesar das cortinas corridas à volta. Desde o dia da minha primeira visita a Souad, naquela sala de desterro e de morte, passaram dois meses. Cada centímetro de pele do busto e dos braços está decomposta numa vasta chaga purulenta. Bem podem os passageiros apertar o nariz e dirigir à hospedeira caretas enojadas que eu não ligo. Trago comigo uma mulher queimada e o seu bebê, e um dia irão saber porquê. Saberão também que há outras, que já morreram ou vão morrer, em todos os países onde a lei dos homens instituiu o crime de honra. Na Cisjordânia, mas também na Jordânia, na Turquia, no Irão, no Iraque, no Iêmen, na índia, no Paquistão e mesmo em Israel, e até na Europa. Ficarão a saber que as raras sobreviventes são obrigadas a permanecer escondidas o resto da vida, para que os seus assassinos não as encontrem não importa onde, por esse mundo fora. Porque ainda conseguem fazê-lo. Ficarão a saber que a maior parte das associações humanitárias não as tomam a seu cargo porque essas mulheres constituem casos sociais individuais, «culturais»! E nalguns países as leis protegem os seus assassinos. O caso destas mulheres não faz parte das grandes campanhas contra a fome e a guerra, a ajuda aos refugiados, ou as grandes epidemias. Posso compreendê-lo e aceitá-lo. A cada um a sua função neste triste estaleiro mundial. Mas a experiência que acabo de viver revela a dificuldade e o tempo que é preciso para uma pessoa se integrar discretamente num país, identificar as sobreviventes dos crimes de honra e ajudá-las, arrostando com todos os riscos e perigos inerentes.

Souad é a minha primeira «resgatada» deste tipo, mas o trabalho não terminou. Impedi-la de morrer é uma coisa, ajudá-la a renascer é outra.

 

                   A SUÍÇA

Deitada no avião, pude contemplar a sua carinha bonita, comprida e morena, com o gorro branco enfiado na cabeça. Perdi a noção de tempo e tenho a impressão de que ele só tem três semanas, embora Marouan já tenha dois meses. Jacqueline disse-me que chegamos a Genebra num dia 20 de Dezembro.

Tive medo quando ela mo pôs ao colo. Os meus braços não o podiam segurar e eu sentia tamanha confusão, vergonha e sofrimento, tudo misturado, que não compreendia o que se passava.

Dormi muito. Não me lembro sequer de descer do avião nem da ambulância que me levou para o hospital. Só no dia seguinte é que percebi onde estava.

Desse dia extraordinário, acabei por reter apenas o rosto de Marouan e as nuvens. Não sabia o que eram aquelas estranhas coisas brancas do lado de lá da janela e Jacqueline explicou-me que estávamos no céu. Eu sabia que íamos para a Suíça, mas nessa altura era uma palavra que não significava nada para mim. Confundo Suíça com judeu, porque tudo o que é exterior à minha aldeia, ou seja a norte, é um país inimigo.

Não fazia então a menor idéia do mundo, dos países estrangeiros, dos diferentes nomes desses países. Nem sequer conheço o meu próprio país. Cresci sabendo apenas uma coisa: que existe o meu território e o resto do mundo. O inimigo, como dizia o meu pai, onde comiam carne de porco!

Portanto, ia viver num país inimigo, mas estava confiante porque «a senhora» estava lá.

 

As pessoas à minha volta, no hospital, ignoravam a minha história. Jacqueline e Edmond Kaiser não tinham contado nada. Eu era uma queimada grave, a única coisa que importava nesse serviço.

Tomaram conta de mim a partir do dia seguinte para uma primeira operação de urgência, que consistiu em descolar o queixo para poder levantar a cabeça. Estava em carne viva, pesava trinta e quatro quilos de queimaduras e de ossos e não tinha pele. Cada vez que via aproximar-se a enfermeira com o carrinho dos curativos, começava a chorar. No entanto, davam-me calmantes e a enfermeira era muito terna. Cortava a pele morta, delicadamente, pegando-lhe com uma pinça. Dava-me antibióticos e besuntava-me com uma pomada. Acabara o horror dos duchas à força, das gazes arrancadas sem cuidado que eu sofrera no hospital do meu país. Depois, conseguiram distender-me os braços para os poder mexer. Ao princípio, pendiam de cada lado, hirtos e rígidos como os braços de uma boneca.

Comecei a pôr-me em pé, a andar nos corredores, a servir-me das mãos e a descobrir esse mundo novo cuja língua não falava. Como não sabia ler nem escrever, mesmo em árabe, refugiava-me num silêncio prudente até aprender algumas palavras básicas.

Só podia conversar com Jacqueline e Hoda, porque as duas falavam árabe. Edmond Kaiser era maravilhoso. Admirava-o como jamais admirei algum homem na minha vida. Era o meu verdadeiro pai, apercebo-me agora, fora ele que decidira da minha vida, que me enviara Jacqueline.

O que mais me espantou, quando saí do meu quarto para ir ver Marouan ao berçário, foi a liberdade das raparigas. Acompanhavam-me duas enfermeiras. Estavam maquiadas, bem penteadas, com saias curtas e discutiam com os homens. Eu pensava: «Elas falam com os homens, vão morrer!» Fiquei de tal modo chocada que assim que pude contei a Jacqueline e a Edmond Kaiser.

- Olha aquela rapariga ali, está a discutir com um homem! Eles vão matá-la.

Fiz com a mão o gesto de que lhe iam cortar a cabeça.

- Não, estão na Suíça, não é a mesma coisa que no teu país, ninguém lhe vai cortar a cabeça, é completamente normal.

- Mas olha, tem as pernas à mostra, não é normal deixar ver as pernas.

- Claro que é normal. Ela vestiu uma bata para trabalhar.

- E os olhos? É grave pintar os olhos?

- Não, aqui as mulheres pintam-se, saem, têm o direito de ter um namorado. No teu país não. Aqui, não estás na tua terra, estás na Suíça.

Eu não conseguia entender, meter aquilo na minha cabeça. Acho que devo ter dado cabo da paciência a Edmond Kaiser a fazer-lhe sempre as mesmas perguntas. Da primeira vez, disse: - Nunca mais volto a ver aquela rapariga. Vai morrer.

Mas no dia seguinte vi que continuava ali, e fiquei contente por ela. Interiormente, pensava: «Graças a Deus que está viva. Usa a mesma bata branca, vêem-se-lhe as pernas, portanto eles têm razão, ninguém morre por causa disso.» Pensava que em todos os países era como no meu. Se uma rapariga for vista a falar com um homem, morre.

Também me chocava a maneira como aquelas raparigas andavam. Sorriam, satisfeitas e caminhavam como os homens... além disso viam-se muitas louras.

- Porque é que são louras? Porque é que não são morenas como eu? Porque há menos sol? Quando estiver mais calor, vão ficar escuras e com os cabelos frisados? Oh! Aquela usa mangas curtas. Olha, olha para ali, duas mulheres a rirem! Na nossa terra, uma mulher nunca se ri com outra, uma mulher nunca usa mangas curtas... E têm sapatos!

- E ainda não viste nada!

Lembro-me da primeira vez que visitei a cidade, sozinha com Edmond Kaiser. Jacqueline voltara a partir em missão. Vi mulheres sentadas em restaurantes, a fumarem um cigarro, com os braços nus e uma bela pele branca. Só via as louras de pele branca, que me fascinavam. Perguntava-me de onde viriam. Na nossa terra, as louras são tão raras que os homens apreciam-nas muito, o que me levava a pensar que deviam estar em perigo por causa disso. Edmond Kaiser deu-me a minha primeira lição de geografia.

- Estas nasceram brancas, outras nascem de outras cores noutros países. Mas aqui, na Europa, também há negras, brancas, ruivas com sinais na cara...

- Sinais como os meus?

- Não, não estão queimadas como tu. São manchas muito pequenas por causa do sol na pele branca!

Eu olhava, sempre à procura de uma mulher igual a mim e dizia a Edmond Kaiser:

- Deus me perdoe, mas gostava muito de encontrar outra mulher queimada, nunca vi nenhuma. Porque é que eu sou a única mulher queimada?

Ainda hoje, guardo esse sentimento de ser a única mulher queimada sobre a terra. Se tivesse sido vítima de um acidente, não seria a mesma coisa. É o destino e não podemos revoltar-nos contra o destino.

À noite, tinha pesadelos e via a cara do meu cunhado. Sentia-o andar à minha volta e voltava a ouvi-lo dizer-me: «Vou ocupar-me de ti...»

E eu corria envolta em chamas. Durante o dia, bruscamente, também pensava nisso e voltava a experimentar o desejo de morrer para não sofrer mais.

Aliás, hei de sentir-me queimada durante toda a vida. Toda a minha vida terei de me esconder, usar mangas compridas, eu que sonho com mangas curtas como as outras mulheres, usar blusas de gola alta, eu que sonho com decotes como as outras mulheres. Elas gozam dessa liberdade. Eu estou prisioneira da minha pele, apesar de caminhar livremente na mesma cidade livre.

Então, como tinha esse desejo, perguntei se um dia poderia ter um dente de ouro, brilhante. E Edmond Kaiser respondeu-me, com um sorriso:

- Não, primeiro tens de te tratar; depois, falamos dos teus dentes.

Na nossa terra, um dente de ouro é uma coisa maravilhosa. Tudo o que brilha é maravilhoso. Mas devo tê-lo surpreendido com o meu pedido bizarro. Não tinha nada meu, estava permanentemente deitada, passeavam-me apenas de vez em quando entre os tratamentos, não pude tomar ducha durante várias semanas. Estava fora de causa vestir-me antes de estar cicatrizada, tinha uma camisa vestida, e estava coberta de pensos. Não podia ler porque não sabia. Não podia falar, porque as enfermeiras não me entendiam. Jacqueline tinha-lhes deixado algumas fichas com palavras em francês e a transcrição fonética do árabe. Comer, dormir, casa de banho, mal, mais ou menos, tudo o que lhes pudesse ser útil para cuidarem de mim. Quando estava de pé, ficava muitas vezes ao pé da janela. Olhava a cidade, as luzes e a montanha lá em cima. Era magnífica. Contemplava aquele espetáculo de boca aberta. Tinha vontade de sair e de ir passear, nunca tinha visto tal coisa, tudo o que via era tão belo!

Ia todas as manhãs ver Marouan. Era obrigada a sair do edifício para ir à maternidade. Tinha frio. Vestia apenas a camisa do hospital, abotoada nas costas, um roupão do hospital e sapatos do hospital. Juntamente com a escova de dentes do hospital, eram os meus únicos pertences. Caminhava muito depressa, como na minha terra, de cabeça baixa. A enfermeira dizia-me para andar devagar, mas eu não queria. Queria armar em orgulhosa lá fora pelo facto de estar viva, apesar de ainda ter medo. As enfermeiras e os médicos não conseguiam nada contra isso. Eu tinha a impressão de ser a única mulher queimada no mundo. Sentia-me humilhada, culpada, não conseguia desembaraçar-me desse sentimento. Às vezes, sozinha, deitada na minha cama, pensava que devia ter morrido porque o merecia. Quando Jacqueline me transportou do hospital até ao avião para Lausanne, lembro-me de ter tido a impressão de ser um saco do lixo. Devia atirar-me para um canto e deixar-me apodrecer. Essa idéia, a vergonha de ser aquilo que era, ocorria-me com regularidade.

Foi então que comecei a esquecer a minha vida anterior, queria ser outra pessoa naquele país. Queria ser como aquelas mulheres livres, integrar-me, aprender a viver ali o mais rapidamente possível. Durante anos, enterrei as recordações. A minha aldeia e a minha família tinham de deixar de existir na minha cabeça. Mas havia Marouan e as enfermeiras que me ensinavam a dar-lhe o biberão, a mudar-lhe as fraldas, a ser mãe durante alguns minutos por dia na medida das minhas capacidades físicas. E que o meu filho me perdoe, mas custava-me fazer o que me pediam. Inconscientemente, eu era culpada por ser a mãe dele. Quem podia compreender isso? Sentia-me incapaz de o assumir, de imaginar o seu futuro comigo e com as minhas queimaduras. Como lhe podia dizer, mais tarde, que o pai era um cobarde? Que fazer para que ele próprio não se sentisse culpado do que eu era agora? Um corpo mutilado, um espetáculo atroz. Eu própria já não conseguia imaginar-me «antes». Era bonita? A minha pele era macia? Tinha uns braços flexíveis e um peito sedutor? Havia espelhos, o olhar dos outros. Via-me feia e desprezível, tanto por dentro como por fora. Um saco de lixo. Continuava a sofrer. Tratavam do meu corpo, restituíam-me as forças físicas, mas na minha cabeça as coisas continuavam mal. Não só eu não o conseguia exprimir, como a palavra «depressão» me era totalmente desconhecida. Vim a conhecê-la alguns anos mais tarde. Só pensava que não me devia queixar e, desse modo, enterrei vinte anos da minha vida tão profundamente que ainda tenho dificuldade em desenterrar recordações. Creio que o meu cérebro não podia fazer outra coisa para sobreviver.

Depois, ao longo de muitos meses, fui fazendo enxertos. Ao todo, foram vinte e quatro operações. As pernas, que não tinham ficado queimadas, serviram de pele de reserva. Entre cada intervenção, era necessário esperar pela cicatrização, e recomeçar. Até já não ter mais pele para os enxertos.

A pele enxertada ainda estava frágil, necessitava de enormes cuidados para a tornar flexível e a hidratar. E assim continua a ser.

Edmond Kaiser tinha decidido vestir-me. Levou-me a um grande armazém. Tão grande e tão cheio de calçado e de roupa que não sabia para onde olhar. Em matéria de calçado, não queria chinelos bordados como os da minha terra. Também queria umas calças a sério e não um saroual. Já tinha visto raparigas com calças quando acompanhava o meu pai ao mercado, na camioneta, para levar a fruta e os legumes. Vestiam calças à moda, muito largas em baixo, chamavam-lhes calças «charleston». Eram raparigas de má nota e eu não estava autorizada a usá-las, lá na terra.

Não tive umas «charleston». Ele comprou-me um par de sapatos pretos de salto baixo, uns jeans normais e um pullover muito bonito. Fiquei decepcionada. Há nove meses que estava à espera de roupa nova e sonhava com ela. No entanto, sorri e agradeci. Tinha adquirido o hábito de sorrir às pessoas, sempre, o que as espantava bastante, e de agradecer tudo. Sorrir era a minha forma de responder à sua gentileza, mas também a única maneira de comunicar, durante muito tempo. Quando queria chorar, escondia-me... um velho hábito. Sorrir era o símbolo de uma outra vida. Aqui as pessoas eram sorridentes, mesmo os homens. Queria sorrir o mais possível. Dizer obrigado, era o mínimo que podia fazer. Nunca ninguém me tinha dito obrigado antes. Nem o meu pai, nem o meu irmão, nem ninguém quando eu trabalhava como uma escrava. Estava acostumada à pancada, mas não aos agradecimentos.

Achava, por isso, que «obrigada» era uma extrema delicadeza, um grande respeito. Dava-me prazer dizer, porque também me diziam. Obrigada pelo penso, pela pastilha para dormir, pelo creme para não esfolar a pele, pela refeição e, sobretudo, pelo chocolate. Devorei tabletes inteiras de chocolate... É tão bom e tão reconfortante.

Portanto, agradeci a Edmond Kaiser as calças, os sapatos e o belo pullover.

- Aqui, és uma mulher livre, Souad, podes fazer o que te apetecer, mas aconselho-te a vestir com simplicidade, com roupas confortáveis e que não te irritem a pele, e que não chames as atenções.

Tinha razão. Nesse país que me acolhia com tanta bondade, eu continuava a ser uma jovem pastora da Cisjordânia, inculta, sem educação e sem família, que sonhava com um dente de ouro!

Abandonei o hospital para ser internada num centro de acolhimento, no final do ano da minha chegada.

Os enxertos sucediam-se. Voltava ao hospital, onde sofria. As coisas continuavam a não estar muito bem na minha cabeça, mas ia sobrevivendo. Não podia pedir mais. Ia aprendendo francês como podia, algumas expressões, fragmentos de frases que repetia como um papagaio, sem sequer saber o que era um papagaio!

Jacqueline explicou-me, mais tarde, que na altura em que ela me trouxe para a Europa, as hospitalizações repetidas não me permitiam seguir aulas regulares de francês. Era mais importante salvar-me a pele do que mandar-me para a escola. Aliás, eu não pensava nisso. Na minha aldeia, havia duas raparigas que apanhavam o autocarro para irem à escola à cidade e faziam troça delas.

 

Eu também troçava delas, persuadida tal como as minhas irmãs de que nunca arranjariam marido por irem à escola!

Secretamente, a minha maior vergonha era não ter marido. Conservava a mentalidade da minha aldeia, era mais forte do que eu. E pensava para comigo que não havia nenhum homem que me quisesse. Ora, para uma mulher do meu país, viver sem homem é um castigo para a vida inteira.

Na casa que me tinha acolhido e a Marouan, todos pensavam que eu acabaria por me habituar a essa dupla punição de ser feia e não ser desejada por um homem. Estavam também convencidos de que iria ocupar-me do meu filho quando tivesse possibilidade de trabalhar para o educar. Apenas Jacqueline percebeu que eu era totalmente incapaz de o fazer. Em primeiro lugar, porque seriam precisos anos para voltar a ser um ser humano e aceitar-me tal como era. E durante todos esses anos a criança ia crescer mal. Depois, porque, apesar dos meus vinte anos, eu continuava a ser uma criança. Não sabia nada da vida, das responsabilidades, da independência.

Foi nessa altura que abandonei a Suíça. Os tratamentos tinham chegado ao fim, podia ir viver para outro lado. Jacqueline encontrou uma família de acolhimento, algures na Europa. Pais adotivos de quem gostei muito e a quem chamava papá e mamã, como Marouan. Esse casal recebia muitas crianças enviadas pela Terra dos Homens. Umas ficavam muito tempo, outras eram adotadas. A família era sempre numerosa. Tínhamos de tratar dos mais pequenos e eu ajudava dentro das minhas possibilidades. Um dia, a «mamã» disse-me que me ocupava demasiado de Marouan e pouco dos outros. Esta reflexão surpreendeu-me porque não tinha a sensação de me dedicar ao meu filho. Estava demasiado confusa para o fazer. Nos meus únicos momentos de solidão, passava-os a passear ao longo de uma ribeira com Marouan no carrinho de bebê. Sentia necessidade de caminhar, de estar lá fora. Não sabia por que razão tinha tanto desejo de andar sozinha no campo, talvez pelo hábito de andar com os rebanhos. Como dantes, levava água e qualquer coisa para comer e empurrava o carrinho, caminhando depressa, direita e orgulhosa. Era dúplice, caminhava depressa como na minha terra e direita e orgulhosa como na Europa.

 

Fiz todos os possíveis para fazer o que a mamã me dizia, ou seja, trabalhar mais com ela e tratar das outras crianças. Eu era a mais velha, era normal. Porém, quando estava fechada dentro de casa, morria de desejo de me escapar, de ir ver as pessoas lá para fora, de falar, de dançar, de conhecer um homem para ver se ainda podia ser uma mulher.

Tinha de fazer esse teste. Era louca por acalentar essa esperança, mas era mais forte do que eu, queria tentar viver.

 

                    MAROUAN

Marouan tinha cinco anos quando assinei os papéis que autorizavam a nossa família de acolhimento a adotá-lo. Entretanto eu tinha feito alguns progressos na língua deles - continuava a não saber ler nem escrever, mas sabia o que fazia. Não se tratava de um abandono. Os meus novos pais iam educar o rapazinho o melhor possível. Ao passar a ser filho deles, ia poder beneficiar de uma verdadeira educação e usar um nome que o poria a salvo de todo o meu passado. Eu era totalmente incapaz de lhe dar equilíbrio, de lhe dispensar cuidados, uma escolaridade normal. Muitos anos mais tarde, sinto-me culpada por ter feito essa escolha. Mas esses anos permitiram-me reconstruir uma vida em que já não acreditava, embora a esperasse instintivamente. Não sei explicar tudo isto muito bem sem desatar em pranto. Durante todos estes anos quis convencer-me que não sofria com essa separação. Mas não é possível esquecer um filho, sobretudo aquele filho.

Eu sabia que ele era feliz e ele sabia da minha existência. Aos cinco anos não podia ignorar que tinha uma mãe verdadeira, pois tínhamos vivido juntos em casa dos seus pais adotivos. Não sabia como é que lhe tinham explicado a minha partida, mas a família recebia inúmeras crianças vindas do mundo inteiro e recordo-me que, a dada altura, éramos dezoito à volta da mesa. Na sua maior parte, eram crianças perdidas. Todos nós os tratávamos por «papá» e «mamã». Essas pessoas formidáveis recebiam da Terra dos Homens o dinheiro necessário para o acolhimento provisório de algumas crianças e, quando se iam embora, era sempre doloroso.

 

Vi alguns atirarem-se para os braços da «mamã» ou do «papá», porque não os queriam deixar. No entanto, aquela casa era para eles apenas uma pausa destinada a restituir-lhes a saúde - a maioria permanecia em casa dos nossos pais o tempo necessário para uma operação de urgência, impossível de realizar nos seus países, para onde regressavam depois. Possuíam, pois, um verdadeiro país e uma verdadeira família algures no mundo. Os que não podiam regressar para parte nenhuma, como Marouan e eu, foram adotados. Eu estava legalmente morta na Cisjordânia e Marouan não existia lá. Afinal, fora aqui que ele nascera, como eu, num dia 20 de Dezembro. E os seus pais eram também os meus. Era uma situação algo estranha e quando abandonei aquele lar familiar, ao fim de quase quatro anos de vida comum, considerava-me mais como uma irmã mais velha de Marouan. Tinha vinte e quatro anos. Não podia continuar a seu cargo. Tinha de trabalhar, de obter a minha independência, de tornar-me uma adulta.

Se eu não tivesse optado por deixá-lo ficar para ser adotado, não teria podido educá-lo sozinha. Era uma mãe depressiva, que ia transferir para ele a carga do meu sofrimento, o ódio da minha família Cisjordânia. Teria de lhe contar coisas que desejava ardentemente esquecer! Não podia, estava para além das minhas forças. Não tinha dinheiro, estava doente, era uma refugiada, obrigada a viver sob uma identidade falsa o resto da minha vida porque vinha de uma aldeia onde os homens são cobardes e cruéis. E tinha que aprender tudo. A única solução que me restava era lançar-me nesse novo país e nos seus costumes para tentar sobreviver. Quanto a Marouan, estaria protegido da minha guerra pessoal. Costumava pensar: «Agora tenho de me integrar neste país, não tenho outra alternativa.» Não queria que fosse o país a integrar-me, cabia a mim integrar-me, era eu que tinha de me reconstruir. O meu filho falava a língua, tinha pais europeus, documentos, um futuro normal, tudo o que eu não tinha tido e continuava a não ter.

Escolhi sobreviver e deixá-lo viver. Sabia, por ter vivido lá, que aquela família seria boa para ele. De resto, quando me falaram na adoção, surgiu a hipótese de outros pais, mas recusei.

- Não, outra família não! Ou Marouan fica aqui ou nada feito. Eu tenho vivido convosco, sei como será educado aqui, não quero que o ponham com outra família.

 

O «papá» deu-me a sua palavra de honra. Eu tinha vinte e quatro anos e uma idade mental que não chegava aos quinze. Tinha permanecido bloqueada na infância, devido a uma extrema infelicidade. O meu filho fazia parte de uma vida que precisava de esquecer para poder construir outra. Nessa altura, não sabia explicar as coisas com esta clareza, muito pelo contrário. Avançava dia após dia, como no meio do nevoeiro e por instinto. Mas de uma coisa tinha a certeza, que o meu filho tinha direito à segurança e a pais normais. Eu não era uma mãe normal. Detestava-me, chorava por causa das queimaduras, daquela pele horrível que era uma condenação até ao fim dos meus dias. Ao princípio, no hospital, acreditava que toda aquela gente maravilhosa me ia restituir a minha pele e voltaria a ser como dantes.

Quando percebi que só me podiam restituir a vida com aquele invólucro de pesadelo durante o resto dos meus dias, soçobrei dentro de mim mesma. Já não era nada, era feia, tinha de me esconder para não afligir os outros.

Nos anos seguintes, ao retomar pouco a pouco o gosto pela vida, queria esquecer Marouan, certa de que ele tinha mais sorte do que eu. Freqüentava a escola, tinha pais, irmãos, uma irmã, era necessariamente feliz. Mas permanecia ali, escondido num recanto da memória.

Fechava os olhos, e lá estava ele. Corria pela rua e lá estava ele, atrás, à frente ou ao meu lado, como se eu fugisse e ele me perseguisse. Tinha sempre presente essa imagem da criança que uma enfermeira me colocava nos joelhos e que eu não podia apertar nos braços, porque corria pelo quintal, envolta em chamas e o meu filho ardia comigo. Um filho que o pai rejeitara, sabendo perfeitamente que nos estava a condenar à morte aos dois. E pensar que tinha amado tanto aquele homem e depositado tantas esperanças nele!

Tinha medo de não voltar a encontrar mais nenhum. Por causa das cicatrizes, da minha cara, do meu corpo e do que eu própria era, interiormente. Sempre essa idéia de que não valia nada, esse terror de desagradar, de ver os olhares desviarem-se.

 

Comecei por trabalhar numa quinta, mas depois, graças ao «papá», entrei para uma fábrica que fabricava peças de precisão. Era um trabalho limpo e ganhava bem. Verificava circuitos e peças de mecanismo. Havia outro sector interessante nessa fábrica, mas era necessário verificar as peças no computador e não me sentia capaz. Recusei a formação nesse posto, alegando que preferia trabalhar de pé na cadeia de montagem, em vez de permanecer sentada. Um dia, a chefe de equipa chamou-me.

- Souad, venha comigo, se faz favor.

- Sim, minha senhora.

- Sente-se ali, ao meu lado, pegue nesse rato, que eu vou mostrar-lhe!

- Mas eu nunca fiz isso, não sei. Prefiro a cadeia...

- E se um dia deixar de haver trabalho nas cadeias de montagem? O que é que se faz? Nada? A Souad deixa de trabalhar?

Não me atrevia a dizer-lhe que não. Apesar de ter medo. Sempre que tinha de aprender qualquer coisa nova, ficava com as mãos úmidas e as pernas trêmulas. Era o pânico total, mas apertava os dentes. Cada dia, cada hora da minha vida, tinha de aprender, sem qualquer bagagem, incapaz de ler e de escrever como os outros. Analfabeta sem sequer conhecer essa palavra! Mas desejava tanto trabalhar que se aquela mulher me tivesse dito para enfiar a cabeça num balde e não respirar, tê-lo-ia feito.

Aprendi portanto a manipular um rato e a compreender um ecrã de computador. Ao fim de alguns dias aquilo funcionava. Mostravam-se todos muito satisfeitos comigo. Em três anos nunca faltei um minuto, o meu lugar estava sempre impecável - limpava-o antes de sair - e chegava sempre a horas, antes dos outros. Tinham-me «preparado» na infância, à custa de paulada, para um trabalho intenso e para a obediência, para a pontualidade e a limpeza. Era uma segunda natureza, a única que me restava de uma vida anterior. Costumava pensar para comigo. «Nunca se sabe, se amanhã vier outra pessoa, não quero que encontre o lugar sujo...»

Tornei-me inclusivamente um tanto ou quanto maníaca da ordem e da limpeza. Quando se tira um objeto do seu lugar deve ser colocado de novo no mesmo sítio, deve-se tomar ducha todos os dias, escovar os dentes três vezes ao dia, lavar o cabelo duas vezes por semana, escovar as unhas, mudar de roupa interior todos os dias... procuro a pureza em tudo, é muito importante para mim, sem que o saiba explicar.

Gosto de escolher a minha roupa, mas neste caso sei porquê: porque a escolha sempre me foi interdita. Gosto do vermelho, por exemplo, porque a minha mãe costumava dizer: «Tens aqui o teu vestido, veste-o.» Era feio e cinzento, mas, mesmo que não gostasse dele, vestia-o.

Portanto, gosto do vermelho, do verde, do azul, do amarelo, do preto, do castanho, de todas as cores que me eram interditas. Quanto ao modelo, não tenho alternativa. Gola alta ou rente ao pescoço, blusa fechada, calças. E os cabelos a tapar as orelhas. Não posso mostrar nada.

Às vezes, ia sentar-me numa esplanada de café, coberta de roupa tanto de Verão como de Inverno e ficava a observar as pessoas que passavam. As mulheres de mini-saia ou decotadas, de braços e pernas expostos ao olhar dos homens. Eu espiava nesses olhares algum que pudesse pousar em mim e não via nenhum. Então voltava para casa. Até ao dia em que avistei da janela do meu quarto um carro e um homem lá dentro, de que só via as mãos e os joelhos.

Apaixonei-me. Era o único homem na terra inteira. Só o via a ele, por causa daquele carro, das duas mãos pousadas sobre o volante.

Não me apaixonei por ele por ser belo, gentil, terno, porque não me batia ou por me sentir em segurança ao pé dele. Apaixonei-me porque ele guiava. Bastava ver o carro estacionar diante do prédio para sentir o coração a bater. O estar ali, o simples facto de o ver entrar ou sair do carro quando ia para o trabalho ou quando voltava... fazia-me chorar! De manhã, tinha medo que ele não voltasse à noite.

Não tive consciência de que era a mesma coisa que da primeira vez. Foi preciso que alguém me chamasse a atenção, mais tarde, para eu perceber. Um carro e um homem que parte e regressa, debaixo da minha janela, que amo à primeira vista sem lho dizer, que espio com a angústia de não voltar a ver o carro chegar. Era simples. Na altura, não consegui ver mais longe. Por vezes, tentava esforçar a memória, saber o porquê das coisas da minha vida, mas desistia muito depressa, era demasiado complicado para mim.

António tinha um carro vermelho. Eu ficava à janela até o ver desaparecer de vista... E voltava a fechar a janela.

Conheci-o, falei com ele, soube que tinha uma namorada que eu conhecia, e aguardei. Começamos por ser amigos. Passaram pelo menos dois anos e meio ou três até essa amizade se transformar noutra coisa. Eu estava apaixonada, mas ele... não sabia o que pensava de mim. Não ousava perguntar-lhe, mas fazia todos os possíveis para que ele me amasse, para o conservar. Queria dar-lhe tudo, servi-lo, acarinhá-lo, alimentá-lo, fazer tudo para o ter comigo!

Era a única maneira. Não via outra. Como poderia seduzi-lo? Com os meus belos olhos? Com as minhas pernas bonitas? Com o meu belo decote?

Primeiro, vivemos juntos, sem nos casarmos, e precisei de algum tempo para me sentir à vontade. Não acendia a luz para me despir, mas apenas velas. De manhã, fechava-me na casa de banho o mais depressa possível e só aparecia enfiada num roupão, da cabeça aos pés. Isto arrastou-se durante muito tempo. Ainda hoje me incomoda. Sei que as minhas cicatrizes não são bonitas.

Começamos por nos mudar para um estúdio na cidade. Trabalhávamos os dois. Ele ganhava honestamente a vida e eu também. Esperava que me pedisse em casamento, mas ele não abordava o assunto. Sonhava com um anel de noivado, com uma cerimônia e, por isso, fiz pelo António o que a minha mãe fazia pelo meu pai, o que todas as mulheres da minha aldeia faziam pelo marido. Levantava-me às cinco da manhã especialmente por causa dele, para lhe lavar os pés e o cabelo. Para lhe preparar a roupa, bem passada. Para o ver partir para o trabalho com um último aceno de mão, um beijo atirado da janela...

E esperava-o, à noite, com a refeição pronta, até à meia-noite e meia, ou mesmo à uma da manhã se necessário, para comer com ele. Ainda que tivesse fome, esperava por ele como vira fazer às mulheres da nossa terra. Com a diferença que tinha sido eu a escolher aquele homem, que ninguém mo tinha imposto e que o amava. Tudo isso devia ser bastante surpreendente para ele. Um homem ocidental não está habituado. Ao princípio, disse-me:

- Excelente! Agradeço-te, poupa-me tempo e não tenho que me preocupar.

Ele era feliz. Quando regressava à noite, sentava-se no seu cadeirão e eu descalçava-lhe os sapatos e as peúgas. Enfiava-lhe as pantufas. Tinha-me posto completamente ao seu serviço para o reter em casa.

Todos os dias temia que ele conhecesse outra mulher. E quando ele regressava à noite, comia a refeição que eu lhe tinha preparado, sentia-me aliviada e feliz até ao dia seguinte.

Porém, António não queria casar nem queria ter filhos. E eu queria. Não estava preparado. Respeitei as suas idéias até que estivesse preparado. Esperei cerca de sete anos, assim. António sabia que eu tinha tido um filho, que havia sido adotado. Tive de lhe contar os aspectos essenciais da minha vida, explicar as cicatrizes das queimaduras, mas depois de lhe contar, não voltamos a falar nisso. António achava que a decisão que eu tinha tomado era a melhor solução para Marouan. Marouan pertencia a outra família e eu já não tinha uma palavra a dizer sobre a vida dele. Davam-me notícias dele com bastante regularidade, mas eu tinha medo de o ir ver.

Só o fui ver três vezes durante todos esses anos. E na ponta dos pés. Tinha acabado por me habituar a essa culpabilidade suplementar. Esforçava-me tanto por esquecer que quase o conseguia.

Mas queria pelo menos um filho. E era imperativo casar primeiro. Tinha de refazer a minha vida com ordem: um marido, uma família.

Tinha quase trinta anos no dia desse casamento tão esperado. António estava preparado, a sua situação tinha melhorado, podíamos mudar-nos do estúdio para um apartamento. E ele também queria um filho. Era o meu primeiro casamento, o meu primeiro vestido, os meus primeiros sapatos elegantes.

Uma saia comprida de pele, uma blusa de pele, um casaco curto de pele, sandálias de salto. Tudo branco e de couro. O couro é macio, mas também é caro. Gostava daquela sensação na minha pele. Nos armazéns, nunca era capaz de passar diante de roupa de couro sem lhe tocar, sem a afagar, ver se era macia. Nunca tinha percebido porquê, mas agora já sei. Era como se mudasse de pele. Mas é também uma defesa, uma maneira de exibir uma pele bonita aos olhos dos outros, e não a minha. Tal como o sorriso é uma forma de oferecer felicidade aos outros, mas não necessariamente a minha.

Esse casamento foi a alegria da minha vida. A única que conheci antes dessa foi o meu primeiro encontro com o pai de Marouan. Mas já não pensava nisso. Estava esquecido, enterrado noutra cabeça que não a minha. Quando fiquei grávida, senti-me no paraíso.

Laetitia era verdadeiramente um filho desejado. Estava sempre a falar com ela no meu ventre, sentia-me orgulhosa ao exibi-lo e usava roupas justas e cingidas. Queria que toda a gente soubesse que estava à espera de um filho, que toda a gente visse o meu anel e a minha aliança. Toda a minha atitude de então era o inverso daquilo que vivera da primeira vez, mas nem tinha consciência. Tinha sido obrigada a esconder-me, a mentir e a suplicar, a pedir para casar para que do meu ventre não nascesse uma criança para desonra da minha família. E estava viva, na rua, caminhava pelos passeios com o meu ventre novo, com um filho novo. Julgava ter apagado tudo com aquela felicidade. Acreditava nisso porque o desejava com todas as minhas forças.

Num recanto da minha cabeça, Marouan estava escondido, muito pequeno. Um dia, talvez fosse capaz de o enfrentar, de lhe contar, mas ainda não tinha acabado de renascer.

Laetitia chegou como uma flor. Apenas o tempo de dizer ao médico:

- Acho que preciso de ir à casa de banho...

- Não, é o bebê que está a chegar...

Uma flor pequenina, de cabelos negros e tez mate. Deslizou para fora do meu ventre com uma facilidade espantosa. Ouvi dizer à minha volta:

- Para um primeiro filho, é extraordinário, é raro dar à luz com tanta facilidade...

Amamentei-a até aos sete meses e meio, e foi um bebê muito fácil. Comia tudo, dormia bem, nunca teve problemas de saúde.

Dois anos depois, quis ter outro filho. Rapaz ou rapariga, não importava. Mas o meu desejo era tal que não engravidava e o médico aconselhou-nos a ir de férias, António e eu, e a não pensar mais nisso. No entanto, eu estava à espreita e a cada decepção, uma vez por mês, desatava em pranto. Até que, finalmente, se perfila no horizonte outra menina.

Ficamos os dois loucos de alegria quando nasceu Nadia.

A Laetitia era ainda muito pequena quando me perguntou, acariciando-me a mão:

- O que é isto, mamã? Dói-dói? É o quê?

- Sim, a mamã tem um dói-dói, mas explico-te quando fores mais crescida.

Nunca mais voltou a falar nisso. Aos poucos, fui arregaçando as mangas diante dela, mostrava-me um pouco mais. Não queria impressioná-la, não queria chocá-la, e por isso ia avançando aos poucos, progressivamente.

Tocou-me no braço, devia ter uns cinco anos.

- O que é, mamã?

- A mamã queimou-se.

- Queimaste-te com quê?

- Foi uma pessoa.

- É muito má!

- Sim, é muito má.

- O papá pode fazer-lhe o que ele te fez a ti?

- Não, o teu papá não pode fazer o que ele fez à mamã, porque foi lá longe, no país onde nasci, e aconteceu há muito tempo. A mamã há de explicar-te quando tu fores ainda mais crescida.

- Mas com que é que te queimaram?

- Sabes, nesse país, não existem máquinas de lavar como aqui, e por isso a mamã ia buscar água e acendia uma fogueira...

- Como é que fazias uma fogueira?

- Lembras-te quando fomos com o papá buscar lenha à floresta e acendemos o lume para grelhar as salsichas? A mamã fazia o mesmo. Havia um sítio para acender o lume para aquecer a água. A mamã estava a lavar a roupa, chegou um senhor, pegou num produto muito mau, que queima tudo, até pode queimar uma casa inteira, despejou esse produto em cima da cabeça da mamã e acendeu um fósforo. Foi assim que a mamã ficou queimada.

- Ele é mau! Detesto-o! Vou matá-lo!

- Não podes ir matá-lo, Laetitia. Talvez Deus já o tenha castigado. Porque a mim já me castigou bastante. Mas eu sou muito feliz, porque te tenho a ti e ao papá. E amo-te.

- Mamã, porque é que ele fez isso?

- Leva muito tempo a explicar... e tu és muito pequena.

- Mas eu quero!

- Não, Laetitia. A mamã já te disse que um dia te há de explicar. São coisas graves, muito difíceis de explicar e que tu agora não podes entender. Tudo o que a mamã te contou agora já chega.

Nesse mesmo dia, depois da refeição da noite, eu estava sentada numa poltrona e ela estava de pé ao meu lado. Acariciou-me os cabelos e começou a levantar-me o pullover. Suspeitava o que ela queria, e fazia-me sentir mal.

- Que estás a fazer, Laetitia?

- Quero ver as tuas costas. Deixei-a ver.

- Ah, mamã, a tua pele não é macia. Vê a minha como é macia.

- É verdade. A tua pele é muito macia porque é a tua pele verdadeira, mas a pele da mamã não é macia porque tem uma grande cicatriz. É por isso que tens de ter muito cuidado com os fósforos. São do papá, são só para acender os cigarros do papá. Se tocares nos fósforos, vais-te queimar como a mamã. Prometes? O fogo pode matar.

- Tu tens medo do fogo, não tens, mamã?

Não conseguia dissimular esse medo, que surgia à mínima ocasião. E os fósforos eram um pesadelo para mim. É sempre assim.

Laetitia começou a ter pesadelos, ouvia-a agitada e a gritar: «Ai! Ai!». E via agarrar-se com todas as forças ao edredão de penas. Uma dessas vezes, caiu da cama. Esperava que as coisas acalmassem, mas um dia disse-me:

- Sabes, mamã, à noite venho ver se estás a dormir.

- Por que é que fazes isso?

- Para não morreres.

Levei-a ao meu médico. Estava preocupada com ela e censurava-me por lhe ter contado tantas coisas. Mas o médico disse-me que tinha feito bem em dizer-lhe a verdade e que devia estar muito atenta dali para o futuro.

 

Depois foi a vez de Nadia. Mais ou menos na mesma idade. Mas reagiu de modo muito diferente. Não teve pesadelos, não tinha medos por minha causa, embora não estivesse bem. Percebia que guardava tudo para si. Estávamos as duas sentadas e ela suspirava.

- Por que estás a suspirar, minha querida?

- Não sei, suspiro.

- Coração que suspira não tem tudo a que aspira. O que é que queres dizer à mamã e não te atreves a dizer?

- As tuas orelhas são pequenas! Tens umas orelhas pequenas porque comias pouco?

- Não, querida. A mamã tem orelhas pequenas porque foi queimada.

Expliquei a Nadia da mesma maneira. Queria que as minhas filhas ouvissem as mesmas coisas, as mesmas palavras. Por isso, usei a mesma linguagem, a mesma verdade com Nadia.

Fê-la sofrer. Nadia não disse, como a irmã, que queria matar quem tinha feito aquilo, pediu para tocar. Eu tinha brincos, que uso com freqüência para dissimular o que me resta das orelhas.

- Podes tocar, mas não puxes os brincos porque me faz doer. Tocou ao de leve nas minhas orelhas e foi para o quarto, fechando a porta.

Para elas, o mais difícil de suportar devia ser a escola. Estavam a crescer e António nem sempre as podia ir buscar. Eu imaginava as perguntas das outras crianças. Porque é que a tua mamã é assim? O que é que tem a tua mamã? Porque é que ela usa sempre um pullover no Verão? Porque é que não tem orelhas?

A etapa seguinte de explicações foi a mais dura. Simplifiquei-a, sem falar de Marouan. Menti. Tinha conhecido um senhor de quem gostava e que gostava de mim, mas os meus pais não autorizavam. Tinham decidido que devia morrer queimada. Era um costume do meu país. Mas Jacqueline, que vinha muitas vezes a nossa casa visitar-nos, tinha-me trazido para a Europa para me curarem.

Laetitia era sempre mais violenta e Nadia ficava calada, silenciosa. Laetitia tinha uns doze anos quando me disse que queria lá ir para os matar a todos. Quase as mesmas palavras do pai, quando lhe contei a minha história e o nascimento de Marouan. «Espero que estourem todos por te terem feito isso!»

 

Voltei a ter pesadelos. Estava deitada, a dormir, e a minha mãe vinha com uma faca brilhante na mão. Brandia a lâmina por cima da minha cabeça e dizia: «Vou-te matar com esta faca!» E a faca brilha como uma luz... A minha mãe é real, está realmente ali, presente por cima da minha cabeça. Acordo, empapada em suor, aterrorizada.

Esse pesadelo repetiu-se com muita freqüência. Despertava sempre no momento em que a lâmina brilhava com mais intensidade. O mais insuportável era rever a minha mãe. Mais do que a morte, mais do que o fogo, é aquele rosto que me obceca. Ela quis matar-me, matou os seus bebês, é capaz de tudo, e é a minha mãe! Saí da barriga dela!

Tenho tanto medo de me parecer com ela que, um dia, decidi submeter-me a uma nova operação, mas desta vez estética. Mais uma, menos uma... Esta ia libertar-me de uma semelhança física que já não conseguia suportar quando me via ao espelho. Uma ligeira curvatura entre as sobrancelhas, na base do nariz, igual à dela. Já não a tenho e acho que fico mais bonita. No entanto, o pesadelo continuava a perseguir-me. E o médico não podia fazer nada. Talvez devesse ter consultado um psiquiatra, mas essa idéia nunca me tinha ocorrido.

Certo dia, fui consultar uma curandeira para lhe explicar o meu caso. Deu-me uma pequena faca, minúscula, e disse-me: «Meta-a debaixo da sua almofada, com a lâmina recolhida, e nunca mais voltará a ter esse pesadelo.»

Fiz o que ela disse e a lâmina nunca mais voltou a aterrorizar-me durante o sono.

Infelizmente, continuo a pensar na minha mãe.

 

                   TUDO O QUE FALTA

Gostava muito de ter aprendido a escrever. Sei ler, mas apenas as letras impressas. Não compreendo uma letra manuscrita porque só aprendi a ler o jornal. Mas acontece-me com freqüência tropeçar numa palavra. Então, pergunto às minhas filhas.

Ao princípio, Edmond Kaiser e Jacqueline tentaram dar-me algumas noções. Queria aprender para ser como as outras. Por volta dos vinte e quatro anos, quando comecei a trabalhar, tive a possibilidade de freqüentar umas aulas durante três meses. Estava muito contente. Era difícil, porque pagava muito mais do que o meu salário e, então, António disse-me:

- Não te preocupes, eu posso ajudar-te.

- Não. Quero pagar as minhas aulas, sozinha - respondi.

Queria consegui-lo eu mesma, com o meu próprio dinheiro. Parei ao fim de três meses, mas mesmo assim ajudou-me bastante. Ensinaram-me a segurar num lápis como a uma criança que vai para o infantário e a escrever o meu nome. Não sabia fazer os a nem os s, nada. Assim, aprendi o alfabeto, letra a letra, ao mesmo tempo que a língua. Ao cabo desses três meses já conseguia decifrar algumas palavras no jornal.

Comecei por ler o horóscopo, porque alguém me tinha dito que eu era Balança! Todos os dias decifrava o meu futuro. Aquilo que entendia nem sempre era muito claro, mas ao princípio precisava de textos breves e de frases curtas. Ler um artigo inteiro ficaria para mais tarde. Nos textos curtos, também havia os obituários.

 

Nunca ninguém os esmiuçou como eu! «É com muita dor que a família X comunica o falecimento da Senhora X. Paz à sua alma!»

Também lia os pequenos anúncios de casamento, as vendas de carros, mas não tardei a pô-los de parte porque não me entendia com as abreviaturas! Quis assinar um jornal diário, muito popular, mas António achava-o estúpido... Por isso, todos os dias, antes do trabalho, descia à cidade e começava por beber um café enquanto lia o jornal. Gostava imenso desse momento. Para mim, era a melhor forma de aprender. E aos poucos, quando as pessoas à minha volta falavam de um acontecimento qualquer, podia responder que também estava a par, que tinha lido no jornal. As pessoas viajam, vão e vêm, falam do mar, de restaurantes, de hotéis, da praia. Falam do mundo inteiro, mas eu não podia discutir com eles essas coisas. Agora já posso.

Conheço um pouco da geografia européia, as grandes capitais e algumas cidades mais pequenas. Visitei Roma, Veneza e Porto-fino. Em Espanha, visitei Barcelona com os meus pais adotivos, mas só lá estive cinco dias.

Foi nas férias de Verão. Estava muito calor e tinha a impressão de estar a privar o papá e a mamã da praia, de os obrigar a ficar fechados como eu. Por isso regressei e eles ficaram. Para mim um fato de banho é uma coisa difícil de encarar. Teria de estar sozinha na praia, do mesmo modo que estou sozinha na minha casa de banho.

Conheço muito pouco do mundo. É uma bola redonda, mas nunca me ensinaram a compreendê-lo. Sei, por exemplo, que os Estados Unidos são a América, mas ignoro onde fica a América nessa bola redonda. Mesmo a Cisjordânia não a sei situar.

Experimentei ver nos livros de geografia das minhas filhas, mas não sei por onde começar para conseguir imaginar todos os países. Não tenho a noção das distâncias. Se alguém me disser, por exemplo: «Encontramo-nos a uns quinhentos metros da tua casa», não consigo calcular na minha mente o que são quinhentos metros. Os meus pontos de referência são visuais, uma rua ou uma loja que conheço. Portanto, não consigo mesmo imaginá-lo. Vejo a meteorologia internacional na televisão e tento lembrar-me onde ficam a Inglaterra, Madrid, Paris e Londres, Beirute e Tela Vive.

 

Lembro-me de ter trabalhado ao lado de Telavive com o meu pai. Ainda era pequena, tinha uns dez anos. Tinham-nos levado para ali para a colheita de couves-flor. Era para um vizinho que nos tinha ajudado a ceifar o trigo. Havia uma barreira que nos protegia dos judeus, estávamos quase na terra deles. Eu pensava que bastava transpor aquela barreira para se ser judeu e tinha muito medo. Tomei consciência de que as memórias que me restam da infância estão todas associadas ao medo.

Tinham-me ensinado que não nos devíamos aproximar dos judeus, porque eram todos halouf, «porcos». Nem sequer devíamos olhar para eles. Para nós, era algo horrível estarmos ali tão perto deles. Comem de maneira diferente, vivem de maneira diferente. Não os podemos comparar conosco, é como o dia e a noite, como a lã e a seda. Foi assim que aprendi as coisas. A lã são os judeus e a seda os muçulmanos. Não percebo por que razão me meteram essas coisas na cabeça, mas era assim que pensávamos. Quando víamos um judeu na rua - aliás, eles quase nunca apareciam - havia logo desordens com pedras e paus. Mas, sobretudo, não nos devíamos aproximar nem falar com ele senão também nos tornávamos judeus! Tenho que perceber de uma vez por todas que são tolices. Aquela gente não me fez mal nenhum! No meu bairro, por exemplo, há um talho judeu muito bonito. Lá, a carne é melhor, já experimentei, mas não me atrevo a entrar lá sozinha para comprar. Por isso, vou ao tunisino só porque é tunisino. Porquê? Não sei. Penso muitas vezes: «Souad, tu vais entrar ali e comprar aquela bela carne, é igual às outras!»

Sei que um dia hei de conseguir, mas ainda tenho medo. Na minha terra, ouvi dizer demasiadas vezes que não devíamos ter qualquer espécie de contacto com eles, que devíamos ignorá-los como se não existissem sobre a terra. Era mais do que ódio. Era o pior inimigo dos muçulmanos.

Nasci muçulmana e continuo a acreditar em Deus, continuo muçulmana, mas hoje pouco me resta dos costumes da minha aldeia. E não gosto da guerra, detesto a violência. Se alguém me censura alguma coisa, se me acusam por exemplo de renegar a religião muçulmana porque digo mal dos homens do meu país - o que já me aconteceu -, em vez de agredir, falo, discuto, procuro convencer os outros, obrigando-os a ouvirem-me para os ajudar a compreender o que não perceberam.

A minha mãe brigava com as vizinhas. Atirava-lhes pedras ou puxava-lhes os cabelos. Na nossa terra, os cabelos entram sempre nas brigas. E eu costumava esconder-me atrás da porta, no forno de padeiro ou no estábulo ao pé dos carneiros. Não queria assistir àquilo.

Gostava de aprender tudo o que não sei. Compreender as diferenças do mundo e espero que as minhas filhas aproveitem a oportunidade que aqui têm. Foi a minha desgraça que lhes deu essa oportunidade, é o destino que as preserva da violência do meu país, das pedradas e da crueldade dos homens. Não quero que lhes metam na cabeça o que meteram na minha e que tenho tanta dificuldade em apagar. Tento refletir sobre isso e dou-me conta que, se me tivessem dito que tinha os olhos azuis sem me mostrarem um espelho, teria acreditado durante toda a vida que tinha olhos azuis. O espelho representa a cultura, a educação, o conhecimento de si e dos outros. Se olhar para o espelho, penso, por exemplo: «Como tu és pequenina!».

Sem um espelho, caminharia sem dar por isso, a menos que estivesse ao lado de um homem alto. E o que é que eu pensaria desse homem grande, se também ele não sabe o que é ser grande?

Começo a perceber que não sei nada dos judeus, que não estudei a história deles e que, se continuar assim, também eu direi às minhas filhas que um judeu é um halouf. Irei transmitir-lhes uma tolice em vez do conhecimento e da possibilidade de pensarem pelas suas cabeças.

Um dia, António disse a Laetitia:

- Não quero que um dia venhas a casar com um árabe.

- Porquê, papá? Um árabe é igual a ti, igual a qualquer outra pessoa, como toda a gente.

Então, disse ao meu marido:

- Tanto pode ser um árabe como um judeu, um espanhol, um italiano... o mais importante é que elas escolham quem elas amam e sejam felizes. Porque eu não o fui.

Amo o António, mas não sei porque é que ele me ama, nunca tive a coragem de lhe perguntar, de lhe dizer:

- Olha para mim, donde venho e como sou agora. Fui queimada, como é possível que tu me queiras, a mim, quando há tantas outras mulheres?

Não tenho confiança em mim e, às vezes, penso:

- Bolas! E se ele arranjar outra mulher, o que é que eu faço? Não deixa de ser estranho. Quando falo com ele ao telefone, faço sempre a mesma pergunta: «Onde estás, querido?» E quando me responde que está em casa, sinto um imenso alívio. Tenho sempre esse leve receio dentro de mim. O medo do abandono, do homem que não volta, por quem espero sozinha e angustiada, como esperei pelo pai de Marouan.

Nestes últimos tempos, sonhei muitas vezes que António estava com uma mulher.

Era mais um pesadelo, que começou dois dias após o nascimento de Nadia, a mais nova. António tinha outra mulher. Caminhavam juntos de braço dado. E eu dizia à minha filha Laetitia: «Vai depressa à procura do papá!» Eu não me atrevia a ir. A minha filha puxava pelo casaco do pai: «Não, papá! Não te vás embora com ela! Vem!» Era preciso trazê-lo de volta para mim e puxava pelo pai tanto quanto era capaz! Este pesadelo não tem fim. Nunca sei se António vai voltar ou não. Da última vez acordei por volta das três e meia da manhã e não o vi. Levantei-me, não estava na sua poltrona e a televisão estava desligada. Precipitei-me para a janela para ver se o carro estava lá, antes de reparar que havia luz no seu escritório e que estava a trabalhar nas contas da empresa.

Gostava tanto de ter paz, de não ter mais pesadelos! Porém, os meus sentimentos nunca são tranqüilos: emoção, angústia, incerteza, ciúme, inquietude permanente toda a vida. Há algo que se quebrou em mim e, muitas vezes, as pessoas não se apercebem, porque sorrio sempre por delicadeza, por respeito pelos outros.

Mas quando vejo passar uma mulher bonita, de belos cabelos, com pernas bonitas e uma pele bonita... Quando chega o Verão, a época da piscina e dos vestidos ligeiros...

Abro o roupeiro: está cheio de roupa fechada até ao pescoço. Mas continuo a comprar roupa, vestidos decotados, blusas sem mangas, porque me dá prazer. Mas só os posso usar com casaco, também abotoado até ao pescoço. A minha outra pele...

 

Todos os Verões, fico colérica. Sei que a piscina abre a 6 de Maio e fecha a 6 de Setembro, e isso deixa-me furiosa. Gostava que chovesse, que nunca estivessem mais de 25 graus. Fico egoísta, mesmo contra a minha vontade. Quando está muito calor, só saio de manhã muito cedo ou à tardinha. Controlo a meteorologia e acontece-me exclamar em voz alta:

- Ainda bem que amanhã não está bom tempo.? E as crianças choram.

- É uma maldade o que estás a dizer, mamã! Nós queremos ir à piscina!

Se a temperatura subir para os 30 graus lá fora, fecho-me no quarto. Fecho a porta à chave e choro. Se tenho a coragem de sair com as duas camadas de roupa, a que gostava de mostrar e a que me dissimula, receio as pessoas que se cruzam comigo. Saberão como eu sou? Interrogar-se-ão por que razão é que eu me visto da mesma maneira no Verão e no Inverno?

Gosto do Outono, do Inverno e da Primavera. Tenho a sorte de viver num país onde o sol só é quente três ou quatro meses no ano. Não poderia viver ao sol, apesar de ter nascido num país de sol. Esqueci esse país, as horas em que o sol dourado queimava a terra, as horas em que se tornava de um amarelo pálido no céu cinzento antes de se pôr quando vinha a noite. Não quero sol.

Às vezes, fico a olhar para a piscina lá fora e detesto-a. Para minha desgraça, foi construída para comodidade dos locatários da residência.

Foi ela que desencadeou esta maldita depressão.

 

Tinha quarenta anos. Estávamos mesmo no início do Verão, num mês de Junho que se anunciava quente. Acabara de fazer as compras nas lojas da parte de baixo do prédio e via lá fora, pela janela, aquelas mulheres quase nuas em fato de banho. Uma das minhas vizinhas, uma rapariga bonita, regressava precisamente da piscina em bikini, descalça, com um páreo sobre os ombros, ao lado do namorado, de tronco nu. Eu estava sozinha, fechada, obcecada pela idéia de que não podia fazer o mesmo que eles. Não era justo, estava tanto calor. Abri o roupeiro e procurei. Espalhei não sei quantos vestidos em cima da cama até encontrar qualquer coisa razoável, mas continuava a não me sentir bem na minha pele. Mangas curtas por baixo e outra blusa por cima. Demasiado quente. Não posso vestir uma blusa demasiado transparente, mesmo fechada até cima. Uma mini-saia também não por causa das pernas que serviram de reserva aos meus enxertos. Não posso andar decotada nem de mangas curtas por causa das cicatrizes. Tudo o que espalhava em cima da cama eram coisas que «não posso pôr». Transpirava e sentia tudo colado à pele.

Deitei-me e comecei a chorar seriamente. Não agüentava mais ficar fechada com aquele calor, enquanto as outras estavam lá fora com a pele ao ar livre. Podia chorar à vontade, estava sozinha, as miúdas ainda estavam na escola defronte de casa. Depois mirei-me ao espelho do meu quarto e pensei: «Olha para ti! Que fazes aqui? Não podes ir com a tua família à praia. Mesmo que vás, vais privá-las de ficarem dentro de água porque têm de regressar por tua causa. As miúdas estão na escola, mas quando chegarem querem ir para a piscina. Felizmente para elas, têm esse direito, mas tu não! Tu nem sequer podes ir ao restaurante da piscina tomar um café, beber uma limonada, porque tens medo que as outras te vejam. Estás vestida da cabeça aos pés como se fosse Inverno e estivessem 10 graus à beira da piscina. Devem achar-te louca! Não serves para nada! Estás aqui, mas é como se não estivesses. És um objeto que fica fechado em casa.»

Dirigi-me à casa de banho, peguei no frasco de soporíferos que tinha comprado na farmácia, sem receita, porque tinha dificuldade em dormir. Demasiadas coisas baralhavam-se na minha cabeça. Despejei o tubo e contei os comprimidos. Havia dezenove e engoli-os todos.

Passados poucos minutos, senti-me estranha, tudo girava à volta. Abri a janela, chorava ao olhar, à minha frente, o telhado da escola de Laetitia e de Nadia. Abri a porta do apartamento enquanto falava sozinha, ouvia-me como se estivesse no fundo de um poço. Queria subir ao sexto andar, saltar do terraço, caminhava como uma sonâmbula sem parar de falar.

- Que será delas se eu morrer? Elas gostam de mim. Porque é que as dei à luz? Para sofrerem? Não chega tudo o que eu sofri? Não quero que elas sofram, ou abandonamos esta vida as três juntas ou então... Não, elas precisam de mim. António está a trabalhar.

 

Ele diz que está a trabalhar, mas talvez esteja na praia, não sei onde está... Mas ele sabe muito bem que eu estou em casa, porque está muito calor. Não posso sair, não me posso vestir como quero. Porque me aconteceu isto? Que mal fiz eu a Deus? Que é que eu fiz neste mundo?

Chorava no corredor. Já não sabia onde estava. Voltei ao apartamento para fechar a janela, em seguida dirigi-me à entrada, parei diante das caixas do correio, à espera das minhas filhas. Depois, já não me lembro de nada, até ao hospital.

Perdi os sentidos sob o efeito do medicamento. Fizeram-me uma lavagem ao estômago e o médico manteve-me sob observação. No dia seguinte, dei comigo no hospital psiquiátrico. Vi uma psiquiatra, uma mulher muito simpática. Entrou no meu quarto.

- Bom-dia, minha senhora...

- Bom-dia, doutora.

Queria sorrir num gesto de delicadeza, mas desfiz-me em lágrimas. Obrigou-me a tomar um tranqüilizante e sentou-se ao meu lado.

- Conte-me como é que aconteceu, porque é que tomou aqueles comprimidos todos. Porque é que se quis suicidar?

Expliquei: o sol, a piscina, o fogo, as cicatrizes, o desejo de morrer, e recomecei a chorar. Não conseguia destrinçar o que se tinha passado na minha mente. Fora a piscina, aquela estúpida piscina, que tinha desencadeado tudo. Queria morrer por causa de uma piscina?

- Sabe que é a segunda vez que escapa à morte? Primeiro, foi o seu cunhado, agora é você. Acho que já chega e se não a tratarmos, pode repetir-se. Eu estou aqui para a ajudar. Quer que a ajude?

Durante um mês segui uma terapia com ela e, em seguida, enviou-me a outra psiquiatra, uma vez por semana, todas as quartas-feiras. Era a primeira vez na minha vida desde o fogo que me era dada a palavra diante de alguém que estava ali apenas para me ouvir falar dos meus pais, da minha infelicidade, de Marouan... Não era fácil para mim. Às vezes sentia vontade de acabar com aquilo, mas fazia um esforço porque sabia que no fim me iria sentir bem.

Ao fim de algum tempo comecei a achá-la demasiado autoritária. Sentia que me queria impor um caminho a seguir, como se me dissesse para regressar a casa indo pela direita, quando eu sabia perfeitamente que podia ir pela esquerda...

E pensei para comigo: «Merda! Ela dá-me ordens, mas não é minha mãe.» Já bastava ter a obrigação de ir conversar com ela todas as quartas-feiras. Preferia ir quando me apetecesse ou quando tivesse necessidade. Também teria preferido que ela me fizesse perguntas, que falasse comigo, que fossem quatro olhos a olharem-se. Não estar a falar para as paredes, enquanto ela escrevia. Durante um ano, resisti à vontade de fugir. E percebi que não estava a ser realista, e que ao desejar morrer estava a negar a existência das minhas duas filhas. Era egoísta ao pensar apenas em mim, ao querer ir-me embora sem querer saber do resto. É muito bonito dizer «quero morrer...» E os outros?

Estou melhor, embora às vezes seja muito penoso. Sucede-me de repente. Sobretudo no Verão. Vamos mudar de casa, para longe daquela piscina. A nossa casa será à beira da estrada, mas o Verão continuará a vir. Mesmo na montanha ou no deserto, haverá sempre Verão.

Por vezes digo a mim mesma: «Senhor, gostava de não me levantar amanhã de manhã, gostava de morrer e não sofrer mais.»

Tenho a minha família, amigos à minha volta, esforço-me muito. Mas tenho vergonha de mim. Se tivesse ficado queimada num acidente ou paralítica, olharia as minhas cicatrizes de maneira diferente. Seria o destino, ninguém seria responsável, nem sequer eu.

Mas o meu cunhado queimou-me e fê-lo por vontade do meu pai e da minha mãe. Não foi o destino nem a fatalidade que me deixaram como sou. O que mais me atormenta foi terem-me privado da minha pele, de mim mesma, não durante um mês ou um ano, ou dez anos, mas durante toda a vida.

E isto repete-se de tempos a tempos. Uma vez foi um western com muitas brigas e cavalos. Dois homens a lutarem um com o outro num estábulo. Um deles, por malvadez, acendeu um fósforo e atirou-o para o feno, entre as pernas do adversário, que ficou coberto de chamas e começou a correr enquanto ardia. Comecei a gritar, a cuspir o que comia. Parecia uma louca.

 

Antônio dizia-me:

- Não é verdade, querida, é um filme, é só um filme. Apagou a televisão. Apertou-me nos braços para me acalmar, repetindo:

- Querida, é a televisão. Não é verdade, é cinema!

Eu estava longe, ficara para trás, e corria envolta em chamas. Não dormi toda a noite. Tenho um tal terror do fogo que a mais pequena chama deixa-me paralisada. Não afasto os olhos de António quando ele acende um cigarro, espero que o fósforo se apague ou que a chama do isqueiro se extinga. Não vejo muita televisão por causa disso. Tenho medo de ver alguém ou alguma coisa a arder. As minhas filhas são muito atentas. Mal se apercebem de qualquer coisa que possa chocar-me, cortam a imagem.

Não quero que acendam velas. Em nossa casa é tudo elétrico. Não quero ver fogo na cozinha nem em parte nenhuma. Mas um dia alguém brincou com fósforos à minha frente, a rir, para fazer uma demonstração. Tinha posto álcool num dos dedos e chegou-lhe lume. A pele não ardia, era uma brincadeira.

Levantei-me, num acesso de pavor e de furor.

- Vai fazer isso para outro lado! Eu fui queimada. Tu não sabes o que isso é!

O fogo numa lareira não me assusta, desde que não me aproxime. A água não me incomoda desde que seja morna. Tenho medo de tudo o que é quente. Do fogo, da água quente, do forno, das placas, das caçarolas, das máquinas de café sempre ligadas, da televisão que se pode incendiar, das tomadas elétricas mal instaladas, do aspirador, dos cigarros esquecidos, de tudo... De tudo o que pode advir do fogo. E por fim, as minhas filhas vivem aterrorizadas por minha causa. Porque uma rapariga de catorze anos que não pode ligar uma placa elétrica por minha causa, não é normal. Quando eu não estou, não quero que se sirvam da panela elétrica, que ponham água a ferver para a massa ou para o chá. Tenho de estar ao pé delas, atenta, com os nervos alerta, para ter a certeza de que eu própria apago tudo. Não se passa um único dia que eu me vá deitar sem ir ver antes as placas elétricas.

Vivo com este medo dia e noite. Sei que estorvo a vida dos outros. Que o meu marido é paciente, mas que às vezes se cansa de um terror tão irracional. Que as minhas filhas deviam poder pegar numa caçarola sem eu me pôr a tremer.

 

Terão de o fazer um dia mais tarde.

Cerca dos quarenta anos, sobreveio-me outro terror. A idéia de que Marouan se tornara um homem, a quem não via há vinte anos, que sabia que eu tinha casado e tinha irmãs algures. Mas Laetitia e Nadia não sabiam que tinham um irmão.

Esta mentira era um peso de que não falava com ninguém. António sabia da sua existência desde o princípio, mas nunca falávamos disso. Jacqueline sabia, mas respeitava a minha mentira. Tinha-me pedido para participar em conferências para falar do crime de honra perante outras mulheres. Jacqueline prosseguia o seu trabalho, partia em missão e voltava umas vezes vitoriosa, outras de mãos vazias. Eu tinha a obrigação de contar a minha vida de mulher queimada, de testemunhar na minha qualidade de sobrevivente. Era praticamente a única a poder fazê-lo depois de todos estes anos.

E continuava a mentir, a não revelar a existência de Marouan, persuadindo-me que estava a proteger ainda o meu filho desse horror. Mas ele era quase um homem. A grande interrogação era saber se eu estava a preservar mais a minha vergonha pessoal, a minha culpabilidade por ter deixado que o adotassem, ou o próprio Marouan.

Precisei de tempo até perceber que tudo estava interligado. Na minha aldeia, não há psiquiatras, as mulheres não se colocam essas perguntas. Apenas somos culpadas de sermos mulheres.

As minhas filhas cresceram, os «porquê, mamã?» tornaram-se cruéis.

- Mas porque é que eles te queimaram, mamã?

- Porque eu queria casar com um rapaz que tinha escolhido e estava à espera de um bebê.

- E que aconteceu ao bebê? Onde está?

Ficara lá, num orfanato. Não fui capaz de lhes dizer outra coisa.

 

                   TESTEMUNHA SOBREVIVENTE

Jacqueline pediu-me, pois, que desse o meu testemunho em nome da associação Surgir. Esperou que os meus nervos mo permitissem fazer, depois da depressão que me tinha abalado bruscamente, dado que eu tinha conseguido construir uma vida normal, estava integrada no meu novo país, tinha emprego, marido e filhos, segurança. Estava melhor, embora ainda me sentisse frágil perante aquele público formado por mulheres européias. Ia falar-lhes de um mundo totalmente diferente, de uma crueldade absolutamente inexplicável para elas.

Contei a minha história perante essas mulheres, sentada em cima de um estrado diante de uma pequena mesa com um microfone. Jacqueline estava ao meu lado. Relatei tudo desde o princípio. Fizeram-me perguntas: «Porque é que ele a queimou?... Tinha feito algo de mal?... Queimou-a só por ter falado com um homem?»

Nunca conto que estava à espera de um filho. Em primeiro lugar, porque, grávida ou não, basta que se comece a falar na aldeia, basta uma denúncia, para que a punição seja a mesma. Jacqueline sabe que é assim. Mas, sobretudo, para poupar o meu filho, que não sabe nada do meu passado nem do dele. Não digo o meu nome verdadeiro, pois o anonimato constitui uma medida de segurança. Jacqueline conhece casos em que a família conseguiu descobrir a rapariga a milhares de quilômetros de distância e assassiná-la.

Levantou-se uma mulher, no meio do público.

- Souad, você tem um rosto bonito, onde estão essas cicatrizes?

- Compreendo muito bem que me faça essa pergunta, já contava com ela. Mas vou mostrar-lhe onde estão as minhas cicatrizes.

Levantei-me diante de toda a gente e desabotoei a blusa. Por baixo, estava decotada e de mangas curtas. Mostrei os braços e as costas. E aquela mulher começou a chorar. Os poucos homens presentes mostravam-se incomodados. Tinham pena de mim.

No momento em que me expus, tive a sensação de ser uma espécie de monstro de feira. O que não me incomoda assim tanto no contexto de um testemunho, por ser importante para as pessoas. Devo fazê-las compreender que sou uma sobrevivente. Estava à beira da morte quando Jacqueline apareceu naquele hospital. Devo-lhe a vida e a obra que ela se esforça por continuar com a Surgir necessita de uma testemunha viva para sensibilizar o público para os crimes de honra. A maior parte das pessoas ignoram-no. Muito simplesmente porque são raras as sobreviventes em todo o mundo. E que, por razões de segurança, não se devem expor. Escaparam ao crime de honra graças aos vários postos da associação em diversos países. Não é só na Jordânia e na Cisjordânia, mas em todo o Médio Oriente, na índia, no Paquistão...

Esta parte do testemunho cabe a Jacqueline. É ela que explica igualmente que se torna imperioso tomar medidas de segurança em relação a todas essas mulheres.

Quando dei o meu primeiro testemunho, estava na Europa há cerca de quinze anos. A minha vida alterou-se por completo e posso assumir o risco que elas ainda não podem correr. As questões pessoais que se seguiram tinham a ver com a minha nova vida, mas sobretudo com a condição das mulheres do meu país. Foi um homem quem me fez a pergunta.

E eu, que às vezes tenho dificuldade em encontrar a palavra exacta quando se trata da minha própria vida de infortúnio, entusiasmo-me quando se trata das outras e ninguém me consegue parar.

- Pois bem, lá na minha terra uma mulher não tem vida própria. Muitas raparigas são espancadas, maltratadas, estranguladas, queimadas, mortas. Para nós, é normal. A minha mãe quis envenenar-me para «acabar» o trabalho do meu cunhado e para ela era normal, faz parte do seu mundo. É esta a vida normal para nós, mulheres. Tu és desancada com pancada, é normal. És queimada, é normal, és estrangulada, é normal, és maltratada, é normal. Como dizia o meu pai, a vaca e os carneiros merecem mais consideração do que as mulheres. Se não quisermos morrer, temos de nos calar, obedecer, humilharmo-nos, casar virgens e ter filhos rapazes. Se eu não tivesse encontrado um homem no meu caminho, teria sido essa a minha vida. Os meus filhos seriam como eu e os meus netos como os meus filhos. Se eu continuasse a viver lá, tornar-me-ia normal como a minha mãe, que asfixiava as próprias filhas. Talvez tivesse matado a minha filha. Talvez deixasse que a queimassem. Agora, penso que é monstruoso! Mas se lá tivesse permanecido, teria feito o mesmo! Quando estava no hospital, no meu país, à beira da morte, ainda achava que era normal. Mas, quando vim para a Europa, compreendi, aos vinte cinco anos, à custa de ouvir o que diziam as pessoas à minha volta, que existem países onde não se queimam as mulheres e onde as raparigas são tão bem aceites como os rapazes. Para mim, o mundo estava confinado à minha aldeia. A minha aldeia era maravilhosa, era o mundo inteiro, até ao mercado! Para lá do mercado, deixava de ser normal porque as raparigas se pintavam, usavam vestidos curtos e decotes. Eram elas que não eram normais. A minha família era! Nós éramos puros como a lã dos carneiros e os outros, para lá do mercado, eram impuros!

«As raparigas não tinham o direito de ir à escola, porquê? Para não conhecerem o mundo. O mais importante eram os nossos pais. Devemos fazer o que eles dizem. O conhecimento, a lei, a educação é unicamente deles que vêm. Era por isso que não havia escola para nós. Para não apanharmos o autocarro, para não nos vestirmos de forma diferente, com uma pasta na mão, para não aprendermos a ler e a escrever, é demasiado inteligente e não convém a uma rapariga! O meu irmão era o único rapaz no meio das raparigas, vestia-se como aqui, como na cidade, ia ao barbeiro, à escola, ao cinema, tinha liberdade para sair, porquê? Porque tinha uma pilinha entre as pernas! Teve sorte, teve dois rapazes, mas afinal não foi ele quem teve mais sorte, foram as suas filhas. Essas tiveram a imensa sorte de não terem nascido!

 

«A Fundação Surgir, com Jacqueline, tenta salvar essas raparigas. Mas não é fácil. Nós estamos ali, de braços cruzados. Eu estou a falar-vos e vocês escutam-me. Mas elas, as que lá estão, estão a sofrer! É por essa razão que venho dar o meu testemunho pela Surgir sobre os crimes de honra, porque continuam a existir!

«Estou viva e de pé graças a Deus, graças a Edmond Kaiser e graças a Jacqueline. A Surgir significa coragem, trabalhar muito para ajudar essas raparigas. Admiro-os. Não sei como fazem. Preferia levar comida e roupa aos refugiados, aos doentes, do que fazer o trabalho deles. Têm que desconfiar de toda a gente. Pode-se estar a falar com uma mulher de ar amável que te vai denunciar porque queres ajudar e ela não está de acordo. Jacqueline chega a um país, é obrigada a comportar-se como eles, a comer, a andar e a falar como eles. Tem de se fundir nesse mundo para permanecer anônima!»

- Obrigada, minha senhora!

Ao princípio, sentia-me angustiada, não sabia como devia falar, mas agora Jacqueline vê-se obrigada a interromper-me!

Falar diante do público, em direto, não me incomodava muito. Mas tive medo da rádio, por causa dos que me rodeavam, das relações de trabalho, das minhas filhas, que sabiam, mas que não sabiam tudo. Tinham à volta de dez e oito anos, tinham companheiras de escola, eu pedia-lhes que fossem discretas se lhes fizessem perguntas.

- Ah, fixe, gostava muito de ir contigo!

Esta reação de Laetitia era ao mesmo tempo reconfortante e algo inquietante. A mamã a falar na rádio, é fixe... Apercebi-me de que elas não compreendiam o que estava em jogo nesse testemunho e que, à parte as minhas cicatrizes, não sabiam quase nada da minha vida. Mais cedo ou mais tarde, quando fossem mais crescidas, teria de lhes contar tudo e isso punha-me antecipadamente doente.

Era a primeira vez que ia falar para um auditório tão grande.

Através dessa emissão, as minhas filhas ficaram a conhecer um novo lado da minha história. Depois de ter ouvido o programa, Laetitia teve uma reação muito violenta.

- Agora, tu vais-te vestir, mamã, pegas na tua mala, vamos para o aeroporto e partimos para a tua aldeia. Vamos fazer-lhes o mesmo. Vamos queimá-los! Pegamos nos fósforos e queimamo-los como eles te fizeram a ti! Não te posso ver assim.

Foi acompanhada por um psicólogo durante seis meses, até que um dia declarou:

- Sabes, mamã, tu é que és a minha psicóloga. Tenho sorte porque falo contigo de tudo, de A a B. Tu respondes a todas as perguntas que te faço. Por isso, não quero ir lá mais.

Não a quis forçar. Telefonei ao médico e fizemos juntos o balanço. Ele achava que talvez ela necessitasse de mais umas sessões suplementares, mas de momento não convinha forçá-la.

- Porém, se vir que não está bem, que tem dificuldade em falar, que se mostra deprimida, gostava que ma trouxesse cá.

Receio que a minha história seja um fardo muito pesado para elas, de futuro. Têm medo por mim e eu por elas. Tenho estado à espera que sejam suficientemente maduras para compreenderem tudo o que ainda não lhes disse: a minha vida anterior em pormenor, o homem que queria para marido, o pai de Marouan. Temo mais essa revelação do que todos os testemunhos que me possam pedir. Terei também de as ajudar a não odiarem o país donde venho e que é, em parte, o delas. Vivem na ignorância total do que lá se passa. Como impedi-las de sentirem ódio contra os homens desse país? A terra é bela, mas os homens são maus. Na Cisjordânia, há mulheres que lutam para terem uma lei que não seja a lei dos homens. Contudo, são os homens que votam as leis.

Neste momento, nalguns países há mulheres na prisão. É a única maneira de as proteger e de impedir a sua morte. Mesmo na prisão, não estão totalmente em segurança. Porém, os homens que as querem matar estão em liberdade. A lei não os pune ou a punição é tão leve que não tardam a ficar de mãos livres para degolarem, queimarem, vingarem a sua pretensa honra.

E se alguém se apresentar numa aldeia, num bairro, para os impedir de causar danos, mesmo de metralhadora em punho, terá dez atrás de si se vier sozinho e cem se forem dez! Se um juiz condenasse um homem por um crime de honra como simples assassino, esse mesmo juiz nunca mais poderia andar na rua, nunca mais poderia viver numa aldeia, teria de fugir de vergonha por ter punido um «herói».

Pergunto-me o que será feito do meu cunhado. Terá ido para a cadeia apenas alguns dias? A minha mãe falara da polícia, dos aborrecimentos que o meu irmão e o meu cunhado podiam vir a ter se eu não morresse. Por que razão a polícia não veio interrogar-me? A vítima era eu, com queimaduras de terceiro grau!

Conheci raparigas vindas de longe, como eu, há anos. Escondem-nas. Uma rapariga sem pernas: foi agredida por dois vizinhos que a amarraram e puseram debaixo de um comboio. Uma outra a quem o pai e o irmão quiseram massacrar à facada e atiraram para um vazadouro de lixo. Outra ainda que a mãe e os dois irmãos atiraram pela janela e que ficou paralítica.

E as outras de que não se fala, que foram encontradas demasiado tarde, já mortas. As que conseguiram fugir mas foram apanhadas no estrangeiro e mortas.

As que conseguiram fugir a tempo e se escondem, com ou sem filhos, virgens ou mães.

Não conheci nenhuma mulher queimada como eu porque não sobreviveram. E continuo a esconder-me, não posso dizer o meu verdadeiro nome, mostrar o meu rosto. Só posso falar, é a única arma que me resta.

 

                   JACQUELINE

Hoje e nos próximos anos, o meu papel é continuar a salvar outras Souad. Será demorado, complicado, árduo e, como sempre, é preciso dinheiro. A nossa fundação chama-se Surgir, porque é preciso surgir no momento certo para ajudar essas mulheres a escaparem à morte. Trabalhamos em qualquer parte do mundo, no Afeganistão, em Marrocos ou no Chade. Em toda a parte onde possamos intervir com urgência. Uma urgência que avança lentamente! Anuncia-se que mais de seis mil casos de crimes de honra são recenseados por ano, mas por detrás desses números escondem-se todos os suicídios, acidentes, etc, que não são contabilizados...

Nalguns países, para as poderem proteger, metem as mulheres na prisão logo que elas têm a coragem de se queixar. Algumas estão presas há mais de quinze anos! Porque as únicas pessoas que as podem tirar de lá são o pai ou o irmão, ou seja, os que as querem assassinar. Por isso, se um pai pedir para a filha sair, é evidente que o governador não autoriza! Tanto quanto sei, houve uma ou duas que, mesmo assim, saíram; foram mortas em seguida.

Na Jordânia - e é apenas um exemplo - existe uma lei que estipula, tal como na maior parte dos países, que todo e qualquer homicídio, crime de direito comum, deve ser punido com vários anos de prisão. Porém, a par dessa lei, dois breves artigos, 97 e 98, precisam que os juízes serão indulgentes em relação aos culpados de crimes de honra. A pena varia, em regra, entre seis meses e dois anos de cadeia. Os condenados, às vezes considerados heróis, muitas vezes não a cumprem na totalidade. Há associações de advogadas locais a lutarem para que esses artigos sejam alterados. Houve outros artigos que o foram, mas não os artigos 97 e 98.

Trabalhamos localmente com associações de mulheres que, desde há vários anos, puseram de pé programas de prevenção da violência e de acompanhamento de mulheres vítimas da violência nos respectivos países. A sua tarefa é lenta e freqüentemente contrariada pelos irredutíveis... Contudo, passo a passo as coisas vão avançando. As mulheres do Irão fizeram progressos no campo dos seus direitos cívicos. As mulheres do Médio Oriente ficaram a saber que existem no seu país leis que lhes dizem respeito e lhes conferem direitos. Os Parlamentos são ouvidos e certos artigos da lei emendados.

Pouco a pouco, as autoridades vão reconhecendo esses crimes. As estatísticas são anunciadas oficialmente nos relatórios da Comissão dos Direitos do Homem, no Paquistão. No Médio Oriente, a medicina legal de vários países informa sobre o número de casos conhecidos e as associações locais averiguam os casos de violência e efetuam investigações sobre as razões históricas e atuais para a manutenção desses costumes arcaicos.

Seja no Paquistão, que registra o número mais significativo de raparigas e de mulheres assassinadas, seja no Médio Oriente ou na Turquia, o essencial é reprimir esses costumes que são transmitidos cegamente.

Num passado recente, algumas autoridades como o rei Hussein e o príncipe Hassan pronunciaram-se abertamente contra tais crimes que, segundo eles, «não são crimes de honra e sim de desonra». Imãs e religiosos cristãos explicam, incansavelmente, que o «crime de honra» é totalmente estranho ao Corão e aos Evangelhos.

Não perdemos a coragem nem a obstinação. A Surgir adquiriu o hábito de ir bater a todas as portas, correndo o risco que lhes batam com a porta na cara. Às vezes, funciona.

 

                   O MEU FILHO

Laetitia e Nadia ainda eram pequenas quando voltei a visitar a minha família adotiva pela primeira vez depois de lhe ter «abandonado» Marouan. Receava as reações do meu filho perante as duas irmãs ainda pequenas. Estava a entrar na adolescência, eu tinha construído uma vida nova sem ele, e não sabia se ele se ia lembrar de mim, se me ia censurar ou desinteressar-se de nós. Sempre que telefonava para avisar da minha visita e da minha inquietude, respondiam-me: «Não, não, não há problema, Marouan está ao corrente, podes vir.»

Mas muitas vezes ele não estava presente. Perguntava por ele e garantiam-me sempre que estava bem. Vi-o três vezes em vinte anos. E, de cada vez, sentia-me sempre mal. Chorava ao voltar para casa. As minhas duas filhas cruzavam-se com o irmão sem saberem quem era, enquanto que ele estava ao corrente. Marouan não manifestava nada, não reclamava nada, e eu calava-me. Eram umas visitas penosas. Não podia falar com ele, não tinha forças para o fazer. Da última vez, António disse-me:

- Acho que é preferível não voltares lá. Passas o tempo a chorar, ficas deprimida, não serve de nada. Ele tem a vida dele, pais, uma família, amigos... deixa-o em paz. Um dia, mais tarde, explicas-lhe se ele te pedir.

Continuava a sentir-me culpada, recusava-me a desmentir o passado, tanto mais que ninguém, com exceção de Jacqueline e do meu marido, sabia que eu tinha tido um filho. Mas continuava a ser meu filho?

 

Não queria um drama de família, era demasiado duro.

A última vez que o vi, tinha cerca de quinze anos. Chegou mesmo a brincar um pouco com as irmãs... A conversa limitou-se a uma troca de palavras de uma triste banalidade.

- Bom-dia, tudo bem?... Tudo bem, e tu?

Passaram perto de dez anos. Pensava que ele me tinha esquecido, que deixara de existir na sua vida de homem adulto. Sabia que trabalhava, que vivia num estúdio com uma namorada, como todos os jovens da sua idade.

Laetitia tinha treze anos e Nadia doze. Consagrei-me à educação de ambas e convenci-me que tinha feito o meu dever. Nos momentos de depressão, egoisticamente, pensava que para continuar a sobreviver era preferível esquecer. Invejava as pessoas felizes, que não tiveram uma infância infeliz, que não têm um segredo, que não têm uma vida dupla. O que posso dizer é que queria enterrar a minha primeira vida, com todas as minhas forças, para tentar ser como essas pessoas. Mas sempre que participava numa conferência, que tinha de relatar aquela vida de pesadelo, essa felicidade vacilava nos seus alicerces como uma casa mal construída. António percebia e Jacqueline também. Era frágil, mas simulava não o ser.

Um dia, Jacqueline falou comigo.

- Podias prestar um favor a outras mulheres se fizéssemos um livro sobre a tua vida.

- Um livro? Mas eu mal sei escrever...

- Mas sabes falar...

Ignorava que se podia «falar» um livro. Um livro é algo de tal modo importante... Lamentavelmente, não faço parte daqueles que lêem livros. As minhas filhas lêem e António também. Eu prefiro o jornal da manhã. Fiquei de tal modo impressionada com a idéia de um livro, de mim num livro, que me deu volta à cabeça. Há já alguns meses, ao acompanhar o crescimento das minhas filhas, pensava que um dia teria de lhes dizer mais um pouco. Se tudo isso ficasse escrito num livro de uma vez por todas, seria menos angustioso do que afrontá-las sozinha.

Até à data limitara-me a contar-lhes, aos poucos, apenas o essencial para justificar o meu aspecto físico. Mas, mais tarde ou mais cedo, elas iriam querer compreender tudo e as perguntas que me iriam fazer seriam outras tantas facadas na minha cabeça.

Ainda não me sentia capaz de vasculhar na memória à procura do resto. À força de querermos esquecer, acabamos por esquecer de fato. O psiquiatra tinha-me explicado que era normal, devido ao choque e ao sofrimento causado pela falta de cuidados médicos. Mas o mais grave era Marouan. Eu vivia assente numa mentira protetora há demasiado tempo. E vivia mal.

Se aceitasse contar a minha vida num livro, teria de falar nele. Teria esse direito? Disse que não. Tinha demasiado medo. Tanto a minha segurança como a dele estavam em causa. Um livro chega a toda a parte do mundo. E se a minha família me descobrisse? Se fizessem mal a Marouan? Eram perfeitamente capazes disso. Por outro lado, desejava fazê-lo. Acontecia-me com demasiada freqüência sonhar bem desperta com uma vingança impossível. Imaginava-me a voltar à minha terra, bem escondida e protegida até encontrar o meu irmão. Passava-se tudo como num filme na minha cabeça. Chegava diante da casa dele e perguntava:

- Lembras-te de mim, Assad? Como vês, estou viva! Olha bem para as minhas cicatrizes. Foi o teu cunhado Hussein que me queimou, mas aqui estou!

«Lembras-te da minha irmã Hanan? O que é que fizeste à minha irmã? Deste-a aos cães? E a tua mulher, como vai ela? Porque é que me queimaram no dia em que ela deu à luz os filhos? Eu estava grávida, também tinham de queimar o meu filho? Explica-me porque não fizeste nada para me ajudar, tu, o meu único irmão de sangue?

«Apresento-te o meu filho Marouan! Nasceu dois meses antes do tempo no hospital da cidade, mas é grande e bonito e está bem vivo! Olha para ele!

«E Hussein? Está velho ou morreu? Espero que ainda viva, mas que esteja cego ou paralítico, para me saber viva diante dele! Espero que sofra tanto como eu sofri!

«E o meu pai e a minha mãe? Morreram? Diz-me onde estão para os ir amaldiçoar sobre o seu túmulo!»

Imagino muitas vezes este sonho de vingança. Torna-me violenta como eles. Sinto o desejo de matar como eles! Julgam-me morta, todos eles, e desejava tanto que me vissem viva!

 

Durante quase um ano, disse que não ao livro, a não ser que pudesse deixar o meu filho à margem da narrativa. E Jacqueline respeitou a minha decisão. Era pena, mas compreendia.

Não queria fazer um livro a falar de mim sem falar dele e não conseguia decidir-me a um frente a frente com Marouan para resolver o problema. A vida continuava e sentia-me desmoralizar à força de dizer a mim própria: «Faz! Não, não faças!» Como abordar Marouan? Um belo dia telefono-lhe, sem mais nem menos, sem o avisar ao fim de tantos anos, para lhe dizer: «Marouan, podemos conversar?»

Como me devo apresentar? A mamã? Como agir diante dele? Aperto-lhe a mão? Beijo-o? E se ele já não se lembrar de mim? Tem esse direito, uma vez que eu própria o «esqueci»...

Jacqueline fez-me refletir numa coisa que me atormentava ainda mais.

- Como seria se Marouan conhecesse um dia uma das irmãs e ela não soubesse que são irmãos? Se ela se apaixonasse por ele e o levasse a tua casa, o que é que fazias?

Nunca tinha pensado nisso. Separavam-nos cerca de vinte quilômetros. Laetitia ia fazer catorze anos e estava quase na idade de ter os seus amigos... Depois era Nadia... vinte quilômetros não é nada. O mundo é tão pequeno! Apesar desse risco incerto, mas sempre possível, não conseguia decidir-me. Passou um ano.

Até que, finalmente, as coisas se resolveram por si. Marouan telefonou lá para casa. Eu estava a trabalhar e foi Nadia que atendeu. Ele limitou-se a dizer:

- Conheço a tua mãe, estivemos juntos na mesma família de acolhimento. Podes pedir-lhe que me telefone?

Quando cheguei a casa, Nadia já não sabia do papel onde tinha anotado o número. Procurou por toda a parte e eu comecei a ficar enervada. Parecia que o destino não queria que eu retomasse o contacto com Marouan. Ignorava onde é que ele vivia e trabalhava agora. Podia telefonar ao seu pai adotivo para me informar, mas não tinha coragem. Auto-recriminava-me pela minha cobardia. Era mais fácil deixar que fosse o destino a decidir do que olhar-me ao espelho. Foi ele que telefonou, numa quinta-feira. E foi ele que disse: «Precisamos de conversar.» Combinamos um encontro para o dia seguinte ao meio-dia. Ia ter que enfrentar o meu filho e sabia o que me esperava.

 

Em suma, a pergunta era esta: «Porque é que me adotaram quando eu tinha cinco anos? Porque é que não ficaste comigo?... Explica-me.»

Queria aparecer bonita. Fui ao cabeleireiro, pintei-me, vesti uma roupa simples, uns jeans, tênis e uma blusa camiseiro vermelha, de mangas compridas e gola fechada. O encontro estava marcado para o meio-dia em ponto, defronte de um restaurante da cidade.

A rua era estreita. Ele vem do centro da cidade e eu da estação, não pode haver qualquer desencontro. De resto, seria capaz de o reconhecer entre milhares. Vejo-o aproximar-se ao longe, com um saco de desporto verde. Na minha cabeça ele era ainda um adolescente, mas é um homem que me sorri. Não me agüento nas pernas, as mãos começam a tremer-me e o coração salta-me no peito como se acabasse de conhecer o homem da minha vida. É um encontro de amor. Ele é alto, tem de se inclinar bastante para me beijar com naturalidade, como se me tivesse visto na véspera, e eu retribuo o beijo.

- Ainda bem que telefonaste.

- Tinha ligado há quinze dias, mas como tu não telefonaste, pensei: «Pronto, ela não me quer ver...»

Disse-lhe que não, expliquei que Nadia tinha perdido o número.

- Se eu não tivesse voltado a ligar ontem, ias telefonar-me?

- Não sei, acho que não. Não me atrevia por causa dos teus pais... sei que a mamã morreu...

- Sim. O papá agora está muito só, mas enfim... e tu...

Ele não sabe como me há de tratar. O hábito que adquiri ao princípio de tratar a minha família de acolhimento por «papá» e «mamã» não facilita as coisas. Quem é a mamã?

- Sabes, Marouan, podes tratar-me por mamã, podes tratar-me por Souad, por pequena, grande, podes tratar-me como quiseres. E se Deus quiser, vamos ficar a conhecer-nos.

- Está bem. Vamos almoçar e conversar.

Sentamo-nos à mesa e eu devoro-o com os olhos. É parecido com o pai. Possui a mesma silhueta, o mesmo andar rápido, o mesmo olhar, mas no entanto é diferente. Também tem leves parecenças com o meu irmão... mais calmo, feições mais doces.

 

Tem o ar de aceitar a vida tal como ela é, sem demasiadas complicações. É simples e direto.

- Explica-me como é que te queimaram.

- Tu não sabes, Marouan?

- Não, nunca ninguém me disse nada.

Explico-lhe e, à medida que vou falando, vejo que o olhar dele se altera. Quando falo das chamas que me envolviam, ele pousa o cigarro que ia acender.

- Eu estava no teu ventre?

- Sim, estavas no meu ventre. Dei à luz completamente só. Não te pude sentir por causa das queimaduras. Vi-te, entre as minhas pernas, foi tudo. Depois desapareceste. Mais tarde, Jacqueline foi-te buscar para te levar comigo de avião. Estivemos nove meses juntos no hospital e depois confiaram-nos aos cuidados do papá e da mamã.

- Então, sou eu o culpado das tuas queimaduras?

- Não, o culpado não foste tu! Nunca! Infelizmente, é um costume da nossa terra. Os homens de lá é que ditam as leis. Os responsáveis foram os meus pais e o meu cunhado, mas tu é que nunca!

Olha as minhas cicatrizes, as minhas orelhas, o meu pescoço, pousa a mão no meu braço, ternamente. Pressinto que adivinha o resto, mas não pede para ver. Terá medo de pedir?

- Não queres ver...

- Não. Só essa história já me faz sentir mal, ainda ia sofrer mais. Como é o meu pai? É parecido comigo?

- Sim, a parte de cima do rosto... Não te observei muito a andar, mas tens a mesma postura dele, direita e orgulhosa. E também a nuca, a boca e sobretudo as mãos. As tuas mãos são iguais às dele até à ponta dos dedos... Ele era um pouco mais alto, mas musculado como tu. Era bonito. Ainda há pouco ao olhar para os teus ombros, julguei estar a ver o teu pai.

- Isso deve impressionar-te, porque de qualquer modo devias amá-lo.

- Sim, a verdade é que eu o amava. Ele tinha prometido que nos casávamos... mas depois, sabes, quando soube que eu estava grávida, nunca mais voltou...

- Foi indecente em ter-te abandonado! Afinal, foi por minha causa...

- Não, Marouan. Nunca penses isso. Foi por causa dos homens daquela terra. Mais tarde, quando conheceres melhor aquele país, irás perceber.

- Gostava muito de o conhecer um dia. Não podíamos ir lá os dois? Só para ver como é e também para o ver a ele... gostava de ver a cara dele. Ele sabe da minha existência?

- Ficaria surpreendida se soubesse. Nunca mais o voltei a ver, sabes... Além disso estão em guerra... Não, é melhor nunca mais os ver.

- É verdade que deste à luz aos sete meses?

- Sim, é verdade. Nasceste sozinho, não te vi durante muito tempo, mas eras muito pequenino...

- A que horas?

- A que horas? Não sei... foi num dia 1º. de Outubro, segundo me disseram depois. Eu própria não sabia! Não te sei dizer a hora... O importante é que eras perfeito da cabeça aos pés!

- Porque é que tu ias a casa dos pais e não me dirigias a palavra?

- Não me atrevia, diante do papá e da mamã que te tinham adotado. Não queria magoá-los. Foram eles que te criaram e fizeram tudo o que puderam.

- Lembro-me de ti. No quarto, deste-me um iogurte, depois caiu-me um dente, havia sangue no iogurte e eu não o quis comer, mas tu obrigaste-me a comê-lo. Lembro-me disso.

- Eu não me lembro... Sabes, naquela altura, eu tratava também das outras crianças e a mamã dizia que eu não devia ocupar-me mais de ti do que dos outros... Além disso, em casa dos pais não se desperdiçava comida, custava muito dinheiro dar de comer a tantas crianças.

- Quando eu tinha catorze ou quinze anos, não gostava de ti, sabes... Tinha ciúmes.

- Ciúmes de quem?

- Ciúmes de ti. Queria que estivesses sempre ao pé de mim.

- E agora? Hoje?

- Desejo conhecer-te, desejo saber imensas coisas...

- Não me queres mal por ter tido outros filhos?

- É ótimo ter irmãs... Também gostava muito de as conhecer. Olhou para o relógio. Eram horas de eu voltar para o trabalho.

- É pena que tenhas de ir, é muita pena, gostava de ficar mais tempo contigo.

- Sim, mas sou obrigada a ir. Queres ir lá a casa amanhã?

- Não, é demasiado cedo. Prefiro que nos encontremos noutro sítio.

- Então, amanhã à tarde, às sete horas, no mesmo sítio. Eu trago as miúdas.

Ele parece muito feliz. Não esperava que fosse tão fácil. Julgava que ele me censurava tanto por ter permitido que o adotassem que me desprezasse. Mas nem sequer levantou a questão. Beija-me, beijo-o e dizemos um ao outro «adeus e até amanhã».

Volto para o trabalho, com a cabeça a zumbir como uma abelha. Deixei para trás um peso enorme. O que quer que aconteça agora, libertei-me de uma angústia que me estava a minar há muito e que não queria admitir. Lamento não ter sido capaz de ficar com o meu filho. Um dia, terei de lhe pedir realmente perdão por o ter esquecido no meu desejo de refazer a vida. Eu estava morta na minha cabeça, tinha água em vez de idéias, não sabia o que fazia. Nada era real. Flutuava. Devia ter-lhe dito isso, e ter-lhe dito também que, apesar do seu pai nos ter abandonado aos dois, eu amava aquele homem. A culpa não era minha se ele era cobarde como os outros. Devia ter-lhe dito: «Marouan, tive tanto medo que esmurrei o meu ventre...» É preciso que ele me perdoe por ter feito isso. Pensava que o sangue me viria libertar, era demasiado ignorante. Não tinha nada na cabeça, apenas medo! Poderá ele compreender e perdoar-me? Poderei dizer tudo a esse filho? E às minhas filhas? Como é que os três me vão julgar?

Estou tão transtornada que não consigo dormir nessa noite. Mais uma vez volto a ver as chamas que me envolvem e corro pelo quintal como uma louca.

António deixa que me desvencilhe sozinha, não quer interferir por enquanto, mas percebe muito bem que não estou bem.

- Falaste com as miúdas?

- Ainda não. Amanhã... Vamos jantar as três com Marouan e hei de descobrir o momento conveniente para falar com elas. Mas tenho medo, António.

- Hás de conseguir. Agora já não podes recuar.

 

Às três e cinqüenta e sete da manhã, tinha uma mensagem de Marouan no meu celular: «É para te dizer que estou bem e dar-te um beijo. Até amanhã, mamã.» Fez-me chorar.

 

                   CONSTRUIR UMA CASA

Nessa noite, António saiu com um amigo para me deixar sozinha com as miúdas.

Sábado à tarde, sete horas, 16 de Novembro de 2002.

O jantar é bem disposto. Eles devoram e riem por tudo e por nada. Laetitia, muito faladora, não pára de tagarelar como de costume. Marouan veio acompanhado pela namorada. Para as minhas filhas, oficialmente ele é ainda uma das crianças que conheci em casa da família que me acolheu. A presença deles não as surpreende, estão felizes por saírem um sábado à noite com a mãe e uns amigos.

Não cresceram juntos, mas transmitem uma sensação de cumplicidade. Temia que a noite fosse penosa. Antônio dissera-me antes de sair:

- Telefona-me se precisares de mim, que eu vou ter contigo. É estranho, mas sinto-me bem, já quase não tenho medo.

Apenas uma certa inquietação em relação às minhas duas filhas. Marouan implica com a mais velha.

- Anda, Laetitia, senta-te ao meu lado, vá lá.

Aperta-a contra si, gracejando. Ela vira-se para mim e segreda-me ao ouvido:

- Ele é tão simpático, mamã!

- Pois é.

- E bonito!

Observo com atenção as feições dos três rostos. Marouan tem mais traços de Laetitia, talvez a parte superior da fronte.

 

Parece-me descobrir nele uma expressão de Nadia, mais pensativa e mais reservada do que a irmã. Laetitia manifesta sempre os seus sentimentos e as suas reações às vezes são demasiado impulsivas. Herdou a costela italiana do pai. Nadia prefere guardá-los para si.

Irão elas compreender?... Tenho uma enorme tendência para as ver ainda como umas garotas de três anos e para as super-proteger. Com a idade de Laetitia já a minha mãe estava casada e grávida...

Ela acabou de me dizer:

- Que bonito que ele é...

Podia apaixonar-se pelo irmão! O meu silêncio podia desencadear toda uma série de catástrofes. Neste momento, riem às gargalhadas e fazem troça de um homem manifestamente embriagado. O homem olha para a nossa mesa, dirigindo-se de longe a Marouan:

- Grande estúpido! Tens sorte em estar com mulheres! Quatro mulheres e eu aqui sozinho!

Marouan é orgulhoso e aparentemente susceptível. Resmunga:

- Vou-me levantar e dar-lhe um murro.

- Não, fica sentado, se fazes favor!

- Está bem...

O dono do restaurante encarrega-se de afastar o intruso com calma e a refeição acaba no meio de piadas e de risos.

Acompanhamos Marouan e a amiga até à estação. Ele vive e trabalha no campo. O meu filho ocupa-se de jardins e da manutenção de espaços verdes. Parece gostar da sua profissão, de que falou um pouco à mesa. Laetitia e Nadia ainda não têm projetos definidos. Nadia fala em ir trabalhar na costura e Laetitia salta de uma idéia para outra. Caminham os três à minha frente, pela rua que desce até à estação, Marouan no meio, Laetitia dá-lhe um braço e Nadia o outro. É a primeira vez na vida que elas fazem isto com toda a confiança. Eu continuei sem dizer nada e Marouan é formidável, deixa andar. Graceja com as irmãs, naturalmente, como se as conhecesse desde sempre. Eu não tive grandes alegrias na vida antes do meu casamento com António e do nascimento das minhas filhas. Marouan nasceu no meio do sofrimento, sem pai, e elas num ambiente de felicidade e são os tesouros do pai. Os seus destinos são diferentes, mas os seus risos aproximam-nos mais do que eu alguma vez conseguiria fazer. Sou invadida por um sentimento desconhecido.

 

Tenho orgulho neles. Esta noite, não me falta nada. No meu espírito já não há angústia nem tristeza, mas uma grande paz.

No cais da estação, Laetitia diz-me:

- Nunca me senti tão bem com ninguém como com Marouan. E Nadia acrescenta:

- Eu também...

- Gostava de ir dormir em casa de Marouan e da amiga, amanhã de manhã almoçávamos juntos e depois apanhávamos o comboio de volta!

- Não, vamos voltar para casa, Laetitia, o teu pai está à nossa espera.

- Ele é tão simpático, mamã, gosto muito dele, é amoroso, é bonito... É mesmo bonito, mamã!

Foi depois a vez de Nadia se agarrar a mim:

- Quando é que o voltamos a ver, mamã?

- Talvez amanhã ou depois de amanhã. A mamã vai arranjar tudo, vais ver.

- O que é que ela está a dizer, Nadia?

- Pedi à mamã para voltarmos a estar com o Marouan e a mamã disse que sim, que íamos estar com ele amanhã, não foi, mamã? Combinado?

- Podem contar comigo. A mamã vai arranjar as coisas...

O comboio parte, olho para o relógio, é uma e quarenta e oito da manhã. Correm as duas ao mesmo tempo que atiram beijos com a mão. Nunca poderei esquecer aquele momento. Desde que vivo na Europa, adquiri o hábito dos relógios e esse hábito transformou-se numa espécie de referência quase maníaca. A minha memória tem tantas lacunas em relação ao passado que anoto conscienciosamente o presente, sempre que é importante para mim. É engraçado, ainda na véspera Marouan queria saber a que horas tinha nascido... Também ele tem necessidade de pontos de referência. Trata-se de um presente que tenho dificuldade em lhe oferecer. Pensei nisso esta noite, na minha insônia. Tudo o que consigo extrair da minha pobre cabeça é que era de noite. Creio ter visto uma lâmpada elétrica acesa no corredor daquele maldito hospital quando o médico levou o meu filho. A hora... é um reflexo dos Ocidentais, na nossa terra só os homens usavam relógio.

 

Durante vinte anos, tive de me contentar com o Sol e a Lua. Direi a Marouan que ele nasceu à hora da lua.

Ao chegar a casa, deixo uma mensagem no seu celular para saber se chegaram bem. Responde-me com um «obrigado, boa-noite, até amanhã, até amanhã...».

É tarde, as miúdas vão-se deitar e António ainda não dorme.

- Como é que correu, querida?

- Impecável.

- Falaste com elas?

- Não, ainda não. Mas estou preparada para lhes dizer amanhã. Já não tenho mais razões para esperar, porque elas gostaram logo dele. Não deixa de ser estranho... é como se o conhecessem há muito tempo.

- Marouan não disse nada, não fez alusão a nada?

- Absolutamente nada, foi formidável. Mas é estranho que Laetitia se tenha apegado tanto a ele, e Nadia também. Estavam penduradas nele. Nunca se comportam assim com os amigos. Nunca...

- Estás muito nervosa...

Não estou nervosa. Estou curiosa. Será possível que os irmãos e as irmãs se reconheçam desta maneira? O que se passa entre eles para que seja tão evidente? Há um sinal, algo que têm em comum mesmo sem o saberem? Eu esperava tudo e nada ao mesmo tempo, mas não contava com esse afeto instintivo.

- Talvez devesses esperar um dia ou dois...

- Não. Amanhã é domingo, vamos até à cafeteria do escritório, não há lá ninguém e falo calmamente com Laetitia e com Nadia. Vamos ver o que Deus nos dará, António.

Depois das minhas filhas, serão as pessoas que nos rodeiam, os vizinhos e, sobretudo, o escritório onde trabalho há anos. Asseguro a manutenção, organizo pequenas recepções, sinto-me lá como em casa e a amizade dos meus patrões conta muito... Como é que lhes vou apresentar Marouan ao fim de dez anos?

Preciso de estar sozinha com as minhas filhas. Vão julgar a mãe por uma mentira de vinte anos e, ao mesmo tempo, uma mulher que não conhecem, a mãe de Marouan, que o escondeu ao longo de todos estes anos. A mulher que as ama e as protege. Disse-lhes muitas vezes que o nascimento de ambas é a felicidade da minha vida.

 

Como vão aceitar que o nascimento de Marouan tenha sido um pesadelo tão grande a ponto de nunca lhe ter dito o mesmo?

No dia seguinte de manhã, por volta das nove horas, o despertar de domingo é como de costume.

- Queres que te faça um café, mamã?

- Com muito gosto.

É o ritual da manhã, a que respondo sempre «com muito gosto». Sou intransigente em matéria de delicadeza e de respeito mútuo. Acho que as crianças daqui são freqüentemente mal-educadas. Usam uma linguagem ordinária que aprendem na escola e contra a qual lutamos firmemente, António e eu. Laetitia já teve de ser repreendida pelo pai mais de uma vez por responder mal. Eu recebi uma única educação, a da escravatura.

Laetitia traz-me o café e um copo de água morna. Ela e a irmã beijam-me, naturalmente. O amor que recebo delas e do pai todos os dias surpreende-me, como se não o merecesse. O que vou fazer é igualmente duro por outras razões além do medo de afrontar o olhar do meu filho.

- Gostava de lhes falar de uma coisa muito importante.

- Então, diz, mamã, estamos à espera.

- Não, aqui não, vou levá-las ao escritório, à cafeteria.

- Mas tu hoje não trabalhas! Sabes que estive a pensar na noite de ontem, foi ótima. Marouan não te ligou?

- Nós voltamos tarde. Ele ainda deve estar a dormir.

Se não fosse o irmão, ficaria inquieta. Conversam entre si, totalmente despreocupadas com aquela passagem invulgar pelo escritório num domingo de manhã. Sou eu que imagino coisas. Vão sair com a mãe, a mãe tem de ir ao escritório fazer qualquer coisa e depois... Pouco importa, confiam em mim.

- Ontem à noite passamos umas belas horas juntos.

- Ah, era isso que nos querias dizer?

- Calma, uma coisa de cada vez... Ontem à noite passamos momentos muito agradáveis com Marouan. Isso não vos diz nada? Marouan fá-las pensar em quê?

- Num rapaz amoroso que vivia em casa dos teus pais adotivos, foi ele que disse...

- Além disso é bonito e delicado.

- O que é que vos atrai, é a sua beleza ou a sua delicadeza? - É tudo, mamã, ele tem um ar muito doce.

- É verdade... Vocês lembram-se que eu estava grávida quando me queimaram? Eu contei-lhes.

- Sim, tu contaste-nos...

- E onde é que achas que possa estar essa criança? Olham-me nos olhos, com uma expressão singular.

- Ele não ficou lá? Na tua família?

- Não. Não tens uma idéia do lugar onde estará essa criança? Nunca viste ninguém parecido contigo, Laetitia, ou contigo, Nadia? Ou até comigo, alguém com a mesma voz, com a mesma maneira de andar que eu?...

- Não, mamã, juro que não.

- Não, mamã.

Nadia limita-se a repetir o que diz a irmã - em regra, Laetitia é a porta-voz -, mas na véspera senti despontar uma pequena ponta de ciúme da parte dela. Marouan ria-se mais com Laetitia e prestava-lhe um pouco menos de atenção a ela. Ouve-me atentamente e não despega o olhar de mim.

- Tu também não, Nadia? Também não sabes?

- Não, mamã.

- Tu, Laetitia, és mais velha, não te lembras? Deves tê-lo visto em casa dos meus pais adotivos...

- Juro-te que não, mamã.

- Pois bem, é Marouan!

- Oh, meu Deus, é Marouan, com quem estivemos ontem à noite!

E desfazem-se as duas em pranto.

- É o nosso irmão, mamã! Estava na tua barriga!

- É o vosso irmão, estava no meu ventre e dei-o à luz sozinha. Mas não o deixei lá ficar, trouxe-o para cá.

É chegado o momento de lhes explicar o mais difícil, o porquê da adoção. Procuro as palavras, com cuidado, palavras que já ouvi no consultório do psiquiatra, «reconstruir-se...», «aceitar-se...», «voltar a ser uma mulher...», «voltar a ser mãe...».

- Tu guardaste isso para ti durante vinte anos, mamã! Porque é que não nos disseste mais cedo?

- Vocês eram muito pequenas, não sabia como iriam reagir, queria contar-vos quando fossem mais crescidas, como aconteceu com as cicatrizes... com o fogo. É como construir uma casa: vão-se colocando os tijolos, um a um. Se o tijolo não for sólido, que acontece? O tijolo cai. É a mesma coisa, minha querida. A mamã queria construir a sua casa e achava que mais tarde seria suficientemente sólida e suficientemente alta para receber nela Marouan. Senão, a minha casa podia desmoronar-se, sem que eu pudesse fazer nada. E agora ele chegou. A escolha é vossa.

- É o nosso irmão, mamã. Diz-lhe que venha viver conosco para nossa casa. Que achas, Nadia? Temos um irmão mais velho e eu sonhava ter um irmão mais velho, sempre te disse isso, um irmão mais velho como a minha amiga. E agora eu tenho um irmão mais velho, que é Marouan! Que dizes, Nadia?

- Eu vou despejar o roupeiro e dou-lhe também a minha cama! Nadia, que é incapaz de me dar uma pastilha elástica! É muito generosa, mas não abdica facilmente das suas coisas. Mas fê-lo pelo irmão!

É espantoso, um irmão surgido do nada e ei-la pronta a dar-lhe tudo...

Foi assim que o irmão mais velho, desconhecido, entrou em casa. Com a mesma simplicidade com que se esvazia um roupeiro e se oferece a cama. Vamos ter em breve uma casa maior, onde ele terá o seu quarto. A felicidade confunde-me. Eles passam o tempo a telefonar-se, à espera uns dos outros, e pensei que não tardariam a brigar. Mas Marouan é o irmão mais velho e conquistou de imediato autoridade sobre as irmãs.

- Laetitia, não respondas nesse tom à mamã! Ela pediu-te para baixares o som da televisão e tu vais baixá-lo! Tens sorte, muita sorte, em teres os teus pais, tens de os respeitar!

- Está bem, pronto, desculpa, não volto a fazer, prometo...

- Não vim para cá para nos zangarmos, mas a mamã e o papá trabalham os dois. O que é isto, o quarto todo desarrumado?

- Mas nós temos muitos trabalhos da escola, tu já lá andaste e sabes como é!

- Sim, é verdade, mas isso não é razão para tratar assim o papá e a mamã.

Depois, Marouan chamou-me à parte.

- Mamã, o que é que o António pensa disto? Não fica aborrecido por eu ralhar com elas?

- António fica contente que o faças.

- Tenho medo que ele um dia me diga: «Mete-te na tua vida, são minhas filhas...»

António, porém, nunca o fez. É uma atitude inteligente da parte dele. Pelo contrário, agrada-lhe muito delegar uma parte da sua autoridade. E, para cúmulo, a verdade é que elas obedecem melhor ao irmão do que a mim ou ao pai... Conosco discutem, são capazes de atirar com uma porta, mas com ele não. Penso muitas vezes: «Oxalá isto dure...»

Às vezes há uma certa tensão e Laetitia vem refugiar-se na minha cama.

- Ele enerva-me!

- Ele tem razão, assim como o teu pai tem razão. Tu dás más respostas...

- Porque é que ele diz que se vai embora se não o ouvirmos? E que não veio para cá para se chatear conosco...?

- É normal. Marouan não teve a mesma sorte que tu, viveu momentos difíceis que vocês não viveram. Para ele, os pais são importantes, uma mãe é algo precioso quando não se teve a mãe ao lado, percebes?

Se conseguisse libertar-me desta culpabilidade que vem à tona ainda tantas vezes... Se pudesse mudar de pele... Disse a Marouan que, se ele estivesse de acordo, estava decidida a contar a nossa história num livro.

- Será como o nosso álbum de família. E também um testemunho sobre o crime de honra.

- Um dia irei à aldeia...

- À procura de quê, Marouan? De vingança? De sangue? Nasceste lá, mas não conheces os homens dali. Eu também sonho com isso, também guardo rancores, penso que seria um alívio chegar à minha aldeia contigo e gritar-lhes na cara: «Olhem todos! É Marouan, o meu filho! Queimaram-nos, mas não morremos! Vejam como ele é belo, forte e inteligente!»

- Era o meu pai que eu queria ver de perto! Gostava de perceber por que razão te abandonou, sabendo o que te esperava...

- Talvez. Mas perceberás melhor quando ficar escrito num livro. Direi tudo o que tu ainda ignoras e que muitas pessoas também ignoram. Porque são poucas as sobreviventes e, entre elas, há mulheres que continuam escondidas durante muito tempo. Viveram no medo e continuam a viver no medo. Eu posso testemunhar por elas.

- Tens medo?

- Algum.

Tenho sobretudo medo que os meus filhos e Marouan em especial vivam com o espinho da vingança. Que a violência que se transmite entre gerações de homens tenha deixado uma marca, ainda que ínfima, no seu espírito. Também ele terá de construir a sua casa, tijolo a tijolo. Um livro é excelente para construir uma casa.

Recebi uma carta do meu filho, com uma bela caligrafia arredondada. Queria incentivar-me a levar a cabo essa árdua tarefa. A sua carta fez-me chorar mais uma vez.

 

         Mamã,

Depois de todo este tempo em que vivi sozinho, sem ti, o ter-te reencontrado finalmente, apesar de tudo o que se passou, deu-me a esperança de uma vida nova. Penso em ti e na tua coragem. Obrigado por nos dares este livro. Ele dar-me-á, também a mim, coragem na vida. Amo-te, mamã.

               Teu filho, Marouan.

 

Contei a minha vida pela primeira vez, fazendo um esforço para desenterrar da memória as coisas mais ocultas. Foi mais penoso do que um testemunho em público e mais doloroso do que responder às perguntas das crianças. Espero que este livro viaje pelo mundo, que chegue até à Cisjordânia e que os homens não o queimem.

Em nossa casa será arrumado numa prateleira da estante, e ficará tudo dito de uma vez para sempre. Mandarei encaderná-lo com uma bela capa de couro para não se estragar, com belas letras douradas.

 

                                                                                Souad  

 

                      

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