Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

QUEM CONTA UM CONTO

Neste livro de contos, Jeffrey Archer alia à sua qualidade de narrador uma surpreendente faceta irónica que delicia o leitor desde o primeiro ao último conto.

Passados em diferentes partes do mundo, e alguns baseados em factos verídicos.

Podemos assim encontrar personagens únicos em situações originais e até inovadoras, como a do homem que por engano ouve uma conversa numa linha cruzada, a qual alterará a sua vida, ou a de um criminoso que tudo faz para ser apanhado pela Polícia, ou a dos pensamentos mais íntimos de oito homens, cada qual pensando merecer a função do seu superior hierárquico.

Junte-se ao imaginário de Jeffrey Archer e embarque numa viagem que, por vezes hilariante, não deixa também de ser comovedora.

                                                ÍNDICE

                                   Fala a Morte        

                                   O perito judicial         

                                   O fim do jogo      

                                   A carta           

                                   O crime compensa          

                                   Vinho e água       

                                   Ditames do coração        

                                   Demasiadas coincidências           

                                   Amor à primeira vista       

                                   Ambos os lados contra o meio          

                                   Um fim-de-semana memorável         

                                   Algo em troca de nada          

                                   Os esforços de outros          

                                   A Mulher Reclinada        

                                   A galinha da vizinha é sempre melhor

                                              FALA A MORTE

Um mercador de Bagdade enviou o seu criado ao mer-cado comprar provisões. Passado algum tempo, o criado voltou, pálido e a tremer, e disse:

     Meu amo, quando eu estava no mercado, no meio da multidão, houve uma mulher que me empurrou e, quando me virei, vi que quem me empurrou foi a Morte. Ela olhou para mim e fez um gesto de ameaça. Por favor, empreste-me o seu cavalo para eu poder fugir da cidade e evitar o meu destino. Irei para Samarra e, ali, a Morte não me encontrará.

O mercador emprestou-lhe o cavalo, e o criado montou-o, cravou-lhe as esporas e afastou-se à maior velocidade que o cavalo conseguia galopar.

Pouco depois, o mercador foi até ao mercado e, quando viu a Morte no meio da multidão, dirigiu-se a ela e perguntou:

Por que é que fizeste um gesto de ameaça ao meu criado quando o viste esta manhã?

      Não foi um gesto de ameaça - respondeu ela -, foi simplesmente de surpresa. Fiquei espantada de o ver em Bagdade, pois tenho um encontro com ele esta noite em Samarra.

                                  O PERITO JUDICIAL

Uma distância estupenda - disse Toby, ao ver a bola do seu adversário voar pelo ar. - São de certeza 230 m, talvez até mesmo 250 m - acrescentou ele, levando a mão à testa para proteger os olhos do sol e continuando a olhar para a bola que saltitava pelo campo de golfe, entre dois buracos.

Obrigado - disse Harry.

De que é que constou o teu pequeno-almoço, Harry? - perguntou Toby, quando a bola finalmente parou.

De uma discussão com a minha mulher - foi a resposta imediata do seu adversário. - Ela queria que eu fosse com ela às compras esta manhã.

Se achasse que o meu jogo iria melhorar assim tanto, estaria tentado a casar-me - disse Toby, dirigindo-se à sua bola. - Bolas - disse ele um momento mais tarde, ao ver o seu débil esforço avançar para o terreno acidentado, situado a menos de cem metros de onde estava.

O jogo de Toby não melhorou no nono buraco e, quando se dirigiam às instalações do clube um pouco antes do almoço, ele avisou o seu adversário:

Terei de me vingar de ti no tribunal na próxima semana.

Espero bem que não - disse Harry, com uma gargalhada.

Porquê? - perguntou Toby, quando estavam a entrar no clube.

Porque eu vou testemunhar como perito judicial do teu lado - respondeu Harry, enquanto se sentavam para almoçar.

Que engraçado - disse Toby. - Eu podia jurar que estavas contra mim.

Sir Toby Gray, advogado, e o professor Harry Bamford nem sempre estavam do mesmo lado quando se encontravam no tribunal.

Todos os presentes que tiverem algo a fazer perante os juizes da rainha aproximem-se e prestem atenção.

A audiência do Tribunal da Coroa de Leeds estava aberta. O juiz Fenton olhou para baixo.

Sir Toby fitou o idoso juiz. Um homem honesto e justo, reflectiu ele, embora as suas súmulas pudessem ser um pouco enfadonhas. O juiz Fenton acenou a cabeça.

Sir Toby levantou-se e deu início à defesa do seu cliente.

Meretíssimo Juiz, senhores membros do júri, tenho consciência da enorme responsabilidade que recai sobre os meus ombros. Nunca é fácil defender um homem acusado de homicídio. Isto torna-se ainda mais difícil quando a vítima é a sua própria mulher, com quem ele teve um casamento feliz durante vinte anos. Este facto foi já aceite pela Acusação.

»A minha tarefa não é facilitada, Meretíssimo Juiz - prosseguiu Sir Toby -, pelo facto de todas as provas cir-cunstanciais, exploradas ontem de uma forma tão brilhante pelo meu douto amigo, o Dr. Rodgers, nas alegações iniciais da acusação, fazerem crer, à primeira vista, que o meu cliente é culpado. No entanto - disse Sir Toby, agarrando nas lapelas da sua toga de seda preta e virando-se para o júri -, tenciono apresentar uma testemunha de reputa-ção intocável. Tenho a certeza, senhores membros do júri, de que ele não vos dará outra hipótese a não ser a de pro-ferir um veredicto de inocente. Gostaria de chamar o professor Harold Bamford.

Um homem elegantemente vestido, com um fato azul trespassado, camisa branca e uma gravata do Yorkshire County Cricket Club, entrou na sala do tribunal e ocupou o seu lugar no banco das testemunhas. Foi-lhe apresentado um exemplar do Novo Testamento, e ele leu o juramento com uma confiança que não deixaria dúvidas em nenhum dos membros do júri de que não era a primeira vez que depunha num julgamento de homicídio.

Sir Toby continuou a agarrar na toga enquanto olhava, através da sala, para o seu parceiro de golfe.

Professor Bamford – disse ele, como se nunca o tivesse visto antes -, para nós estabelecermos o seu nível de conhecimentos, será necessário fazer-lhe algumas perguntas preliminares que poderão causar-lhe algum embaraço. Mas é extremamente importante que eu seja capaz de mostrar ao juiz a relevância das suas qualificações, na medida em que elas afectam este caso específico.

Harry, com um ar severo, acenou a cabeça em sinal de concordância.

Professor Bamford, o senhor estudou na Escola de Leeds – disse Sir Toby, olhando o júri composto exclusivamente por habitantes de Yorkshire -, tendo em seguida obtido uma bolsa de estudo para o Magdalen College de Oxford, para estudar Jurisprudência.

Harry acenou de novo com a cabeça e respondeu:

Exactamente. – Enquanto Toby olhava de novo para os seus apontamentos, um gesto desnecessário, pois ele ensaiara esta rotina com Toby várias vezes.

Mas não aceitou a oferta – prosseguiu Sir Toby – e preferiu estudar aqui em Leeds. Estou correcto ?

Está – disse Harry. Desta vez, o júri também acenou a cabeça. Quando se trata de coisas que dizem respeito a Yorkshire, não há nada mais leal nem mais orgulhoso do que o homem de Yorkshire, pensou Sir Toby com satisfação.

Para que conste nos autos, confirma que terminou a licenciatura na Universidade de Leeds com uma elevada classificação ?

Exactamente.

E que lhe foi oferecido um lugar na Universidade de Harvard para efectuar o seu doutoramento ?

Harry fez uma ligeira vénia e confirmou que assim fora. Tinha vontade de dizer:

« Despacha-te, Toby », mas sabia que o seu velho companheiro de discussão iria tomar o maior partido possível dos momentos seguintes.

E quanto à sua tese de doutoramento, escolheu o tema das pistolas e revólveres em relação a casos de homicídio?

É verdade, Sir Toby.

É também verdade - prosseguiu o distinto advogado - que a sua tese, quando foi apresentada ao júri, gerou tanto interesse que foi publicada pela Harvard University Press e é actualmente leitura obrigatória para quem se queira especializar em Medicina Legal?

É muito amável da sua parte dizê-lo - disse Harry, dando a Toby a deixa para a afirmação seguinte.

Mas não fui eu quem o disse - disse Sir Toby, endireitando-se e olhando para o júri. - Essas foram as palavras do juiz Daniel Webster, membro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Mas permita-me que passe adiante. Depois de terminar os estudos em Harvard e de ter regressado a Inglaterra, seria exacto dizer que a Universidade de Oxford tentou atraí-lo mais uma vez, oferecendo-lhe a primeira Cátedra de Medicina Legal, mas que o professor recusou mais uma vez o convite e preferiu voltar para a sua antiga universidade, primeiro como professor agregado e, mais tarde, como catedrático. Estou certo, professor Bamford?

Está, sim, Sir Toby - disse Harry.

Um cargo que tem ocupado ao longo dos últimos onze anos, apesar de várias universidades de todo o mundo lhe terem feito lucrativas ofertas para sair da sua amada Yorkshire e ir trabalhar para elas?

Nesta altura, o juiz Fenton, que já ouvira tudo aquilo anteriormente, olhou para baixo e disse:

Creio que posso afirmar, Sir Toby, que já demonstrou que a sua testemunha é um eminente perito no seu campo. Será que podemos avançar e tratar do caso vertente?

Com todo o gosto, Meretíssimo, especialmente depois das suas amáveis palavras. Não será necessário acumular mais louvores sobre os ombros do professor.

Sir Toby teria adorado dizer ao juiz que tinha, de facto, chegado ao fim dos seus comentários preliminares, momentos antes de ser interrompido.

Com sua autorização, Meretíssimo, avançarei, então, para o caso vertente, uma vez que as credenciais desta testemunha específica já ficaram amplamente demonstradas - virou-se para trás e olhou para o professor, com quem trocou um piscar de olhos intencional. - Ontem - prosseguiu Sir Toby -, o meu douto amigo, o Dr. Rogers, expôs os argumentos da acusação de uma forma bastante convincente, não deixando qualquer dúvida ao júri de que a mesma dependia de uma única prova: nomeadamente, a arma fumegante que nunca deitou fumo... - Uma expressão que Harry ouvira o seu velho amigo utilizar muitas vezes no passado e que, não tinha qualquer dúvida, usaria em muitas mais ocasiões no futuro.

»Estou a referir-me à arma, coberta por impressões digitais do réu, que foi encontrada perto do corpo da sua infeliz mulher, Mrs. Valerie Richards. A Acusação afirmou seguidamente que, depois de ter morto a mulher, o meu cliente entrou em pânico e saiu a correr da casa, deixando a arma no meio da sala. - Sir Toby deu meia volta para olhar o júri de frente. - Com base nesta única e frágil prova, e eu provarei que ela é realmente frágil, é-vos pedido, membros do júri, que condenem um homem por homicídio e o coloquem atrás das grades para o resto da vida - fez uma pausa para permitir que o júri se compenetrasse do significado das suas palavras.

»Por conseguinte, voltando agora para si, professor Bamford, como perito eminente no seu domínio, para utilizar a descrição do seu estatuto feita pelo meretíssimo juiz, queria fazer-lhe uma série de perguntas. - Harry compreendeu que o preâmbulo chegara finalmente ao fim e que ele teria de fazer jus à sua reputação.

«Começarei por perguntar-lhe, professor, se, de acordo com a sua experiência, é provável que um assassino, depois de ter disparado sobre a sua vítima, deixe a arma do homicídio no local do crime?

Não, Sir Toby, isso é extremamente invulgar - respondeu Harry. - Em noventa por cento dos casos em que está envolvida uma pistola, a arma nunca é recuperada, porque o assassino se certifica de que se desfaz da prova.

Exactamente - disse Sir Toby. - Nos dez por cento dos casos em que a arma é recuperada, é usual encontrar a arma do assassinato coberta de impressões digitais?

Essa situação é quase desconhecida - respondeu Harry. - Anão ser que o assassino seja completamente idiota ou seja, de facto, apanhado em flagrante.

O réu pode ser muitas coisas - disse Sir Toby -, mas é óbvio que não é tolo. Tal como o professor, ele estudou no Liceu de Leeds; e foi preso, não no local do crime, mas sim na casa de uma pessoa amiga, situada no outro lado da cidade. - Sir Toby não mencionou, como o advogado de acusação fizera notar várias vezes nas suas alegações iniciais, que o réu fora encontrado na cama com a amante, que era o seu único álibi.

»Agora, gostaria de me debruçar sobre a arma em si, professor. Uma Smith & Wesson K4217B.

Na realidade, foi uma K4127B - disse Harry, corrigindo o seu velho amigo.

Curvo-me perante o seu superior conhecimento - disse Sir Toby, satisfeito com o efeito que o seu pequeno erro teve no júri. - Agora, voltando ao revólver. O laboratório do Ministério da Administração Interna encontrou as impressões digitais da vítima na arma?

Encontrou sim, Sir Toby.

E, como perito, isso fá-lo chegar a alguma conclusão?

Faz, sim. As impressões digitais de Mrs. Richards eram proeminentes sobretudo no gatilho e no cabo do revólver, o que me leva a acreditar que ela foi a última pessoa a manusear a arma. De facto, as provas físicas sugerem que foi ela que apertou o gatilho.

Compreendo - disse Sir Toby. - Mas não poderia a arma ter sido colocada pelo assassino na mão de Mrs. Richards, a fim de enganar a Polícia?

Eu poderia concordar com essa teoria se a Polícia não tivesse também encontrado as impressões digitais de Mr. Richards no gatilho.

Não tenho a certeza de compreender bem aonde quer chegar, professor - disse Sir Toby, compreendendo perfeitamente.

Em quase todos os casos em que estive envolvido, a primeira coisa que um assassino faz é remover as suas próprias impressões digitais da arma do crime antes de pensar em colocá-la na mão da vítima.

Estou a compreender. Mas corrija-me se eu estiver errado - disse Sir Toby. – Aarma não foi encontrada na mão da vítima, mas sim a três metros de distância do seu corpo, que é onde a acusação diz que ela caiu quando o réu fugiu, em pânico, de casa. Por isso, deixe-me fazer-lhe uma pergunta, professor Bamford, se alguém que cometesse suicídio colocasse um revólver junto à têmpora e carregasse no gatilho, onde acha que a arma iria parar?

A qualquer distância entre um metro e oitenta e três metros do corpo - respondeu Harry. - É um erro vulgar cometido muitas vezes por filmes e programas de televisão pouco cuidados mostrar a vítima ainda com a arma na mão, depois de ter dado um tiro na cabeça. O que realmente acontece em caso de suicídio é que a força do coice arranca a arma da mão da vítima e atira-a para longe do corpo. Ao longo de trinta anos a lidar com suicídios envolvendo armas, nem uma só vez tive conhecimento de que a arma tenha permanecido na mão da vítima.

Por conseguinte, na sua opinião como perito, professor, as impressões digitais de Mrs. Richards e a posição da arma estariam mais de acordo com um suicídio do que com um assassinato.

Exactamente, Sir Toby.

Uma última pergunta, professor - disse o advogado de defesa, agarrando nas lapelas. - Em casos semelhantes a este, em que já foi testemunha de defesa, qual foi a percentagem dos júris que pronunciaram um veredicto de inocente?

A matemática nunca foi o meu forte, Sir Toby, mas, em vinte e quatro casos, vinte e um terminaram com a absolvição do réu.

Sir Toby virou-se para o júri.

Vinte e um em vinte e quatro casos - disse ele - terminaram com a absolvição do réu depois de o professor ter sido ouvido como perito judicial. Penso que isso é cerca de 85%, Meretíssimo. Não tenho mais perguntas a fazer.

Toby alcançou Harry nas escadas do tribunal. Deu uma palmada nas costas do velho amigo.

Atiraste-lhes outra vez poeira para os olhos, Harry. Não admira que, depois de teres prestado o teu depoimento, a Acusação tivesse desistido, nunca te vi em melhor forma. Tenho de ir andando. Tenho um caso a começar amanhã no Bailey, por isso encontramo-nos no primeiro buraco, no sábado, às dez. Isto é, se a Valerie me deixar.

Encontrar-nos-emos muito antes - disse o professor, enquanto Sir Toby saltava para dentro de um táxi.

Sir Toby olhou para os seus apontamentos enquanto esperava pela primeira testemunha. O processo começara mal. A Acusação conseguira apresentar uma quantidade de provas contra a sua cliente, que ele não estava em condições de refutar. Não estava nada entusiasmado com a perspectiva de efectuar a inquirição de uma fila de testemunhas que iriam corroborar essas provas.

O juiz Fairborough, que estava a julgar este caso, acenou a cabeça na direcção do advogado de acusação.

Pode chamar a sua primeira testemunha

O advogado Desmond Lennox levantou-se lentamente da cadeira.

Obrigado, Meretíssimo. Gostaria de chamar o professor Harold Bamford.

Sir Toby ergueu, surpreendido, os olhos dos apontamentos e viu o seu velho amigo dirigir-se, confiante, ao banco das testemunhas. O júri londrino olhou, com um ar intrigado, para o homem de Leeds.

Sir Toby teve de admitir que o Dr. Lennox estabeleceu bastante bem as credenciais da sua testemunha, sem fazer qualquer referência a Leeds. O Dr. Lennox fez seguidamente uma série de perguntas a Harry, no fim das quais a sua cliente parecia um cruzamento de Jack, o Estripador, com o Dr. Crippen.

Não tenho mais perguntas a fazer, Meretíssimo - disse o Dr. Lennox, sentando-se com uma expressão de satisfação no rosto.

O juiz Fairborough olhou para Sir Toby e perguntou:

Tem alguma pergunta a fazer a esta testemunha?

Tenho, com certeza, Meretíssimo - disse Toby, levantando-se da cadeira. - Professor Bamford - disse ele, como se esta fosse a primeira vez que se encontravam -, antes de me referir ao caso vertente, eu penso que é justo dizer que o meu distinto adversário fez grande questão em estabelecer as suas credenciais como perito judicial perante o júri. Vai-me perdoar eu voltar a esta questão para esclarecer alguns pequenos pormenores que me intrigaram.

Com certeza, Sir Toby.

O primeiro curso que tirou na... ah, sim, na Universidade de Leeds. Foi em quê?

Geografia - disse Harry.

Isso é muito interessante. Eu não consideraria a geografia uma preparação óbvia para alguém que se iria tornar um perito em armas. No entanto - prosseguiu ele -, permita-se que salte para o seu doutoramento, que foi atribuído por uma universidade americana. Posso perguntar-lhe se o mesmo foi reconhecido por universidades inglesas?

Não, Sir Toby, mas...

Por favor, limite-se a responder às perguntas, professor Bamford. Por exemplo, as Universidades de Oxford ou Cambridge reconhecem o seu doutoramento?

Não, Sir Toby.

Muito bem. E, tal como o Dr. Lennox afirmou, todo este processo pode muito bem estar dependente das suas credenciais como perito judicial.

O juiz Fairborough olhou para o advogado de defesa.

Competirá ao júri tomar essa decisão, com base nos factos que lhe forem apresentados, Sir Toby.

Eu concordo, Meretíssimo. Só estava a determinar qual o grau de credibilidade que os membros de júri devem atribuir ao perito judicial da Acusação.

O juiz voltou a franzir o sobrolho.

Mas se acha que essa questão já está esclarecida, Meretíssimo, eu prossigo - disse Sir Toby, voltando-se para o seu velho amigo.

Professor Bamford, o senhor disse ao júri (como perito) que, neste caso específico, a vítima não podia ter cometido suicídio porque ainda tinha a arma na mão.

Exactamente, Sir Toby. É um erro vulgar, cometido muitas vezes por filmes e programas de televisão pouco cuidados, mostrar a vítima ainda com a arma na mão depois de ter dado um tiro na cabeça.

Sim, sim, professor Bamford. Já ficámos informados a respeito dos seus grandes conhecimentos sobre telenovelas quando o meu douto amigo o interrogou. Ao menos, encontrámos uma coisa em que é perito. Mas eu gostaria de voltar ao mundo real. Gostaria de ser esclarecido sobre uma questão, professor Bamford: o senhor não está a sugerir, espero bem,

que o seu depoimento prova que a minha cliente colocou a arma na mão do marido. Se assim fosse, o senhor não seria um perito, professor Bamford, mas sim um vidente.

Eu nunca sugeri tal coisa, Sir Toby.

Obrigado pela sua concordância neste ponto. Mas diga-me, professor Bamford, de acordo com a sua experiência, alguma vez encontrou um caso em que o assassino tenha colocado a arma na mão da vítima para sugerir que a causa da morte fosse suicídio?

Harry hesitou durante um momento.

Não tenha pressa, professor Bamford. O resto da vida de uma mulher pode depender da sua resposta.

Já encontrei casos desses no passado - disse ele, hesitando novamente - ... em três ocasiões.

Em três ocasiões? - repetiu Sir Toby, tentando parecer surpreendido, apesar de ele próprio ter participado nos três casos.

E, nesses três casos, o júri pronunciou um veredicto de inocente?

Não - disse Harry em voz baixa.

Não? - repetiu Sir Toby, voltando-se para o júri. - Em quantos desses casos o júri considerou o réu inocente?

Em dois deles.

E que aconteceu ao terceiro? - perguntou Sir Toby.

O homem foi condenado por homicídio.

E condenado...? - perguntou Sir Toby.

A prisão perpétua.

Eu acho que gostaria de saber mais alguns pormenores sobre o desfecho desse caso, professor Bamford.

Será que estas perguntas têm algum objectivo? - perguntou o juiz Fairborough, olhando para o advogado de defesa.

Desconfio que estamos prestes a sabê-lo, Meretíssimo - disse Sir Toby, voltando-se de novo para o júri, cujos olhos estava agora fixos no perito judicial. - Professor Bamford, por favor, relate ao tribunal os pormenores desse caso específico.

Nesse processo, Reynolds contra a Coroa – disse Harry -, Mr. Reynolds cumpriu onze anos da pena antes de terem surgido novas provas que demostraram que ele não podia ter cometido o crime.

Espero que me perdoe a minha pergunta seguinte, professor Bamford, mas a reputação de uma mulher, já para não falar da sua liberdade, está em causa neste tribunal. - Fez uma pausa, olhou com ar grave para o seu velho amigo e disse: - Nesse caso específico, o professor foi testemunha de acusação?

Fui, Sir Toby.

Como perito judicial da Coroa?

Harry acenou a cabeça em sinal de assentimento.

Sim, Sir Toby.

E um homem inocente foi condenado por um crime que não cometeu e acabou por cumprir uma pena de onze anos?

Harry acenou de novo a cabeça.

Sim, Sir Toby.

Não existem quaisquer reticências nesse caso específico? - perguntou Sir Toby.

Esperou por uma resposta, mas Harry ficou calado. Ele sabia que, neste caso específico, já não tinha qualquer credibilidade como perito judicial.

Uma última pergunta, professor Bamford, nos outros dois casos, os veredictos dos júris apoiaram a sua interpretação das provas?

Apoiaram, sim, Sir Toby.

Professor Bamford, o senhor deverá recordar-se de que a Coroa realçou bastante o facto de, no passado, o seu testemunho ter sido crucial em casos deste tipo; de facto, para citar o Dr. Lennox , «ele constituiu o factor decisivo para comprovar os argumentos da Coroa». No entanto, ficámos agora a saber que, nos três casos em que uma arma foi encontrada na mão da vítima, o senhor teve uma percentagem de fracasso de 33% como perito judicial.

Tal como Sir Toby sabia que iria acontecer, Harry não fez quaisquer comentários.

E, como resultado, um homem inocente passou onze anos na cadeia. - Sir Toby deslocou a sua atenção para o júri e disse tranquilamente: - Professor Bamford, esperemos que uma mulher inocente não esteja prestes a passar o resto da sua vida na cadeia por causa da opinião de um «perito judicial» que consegue errar em 33% das vezes.

O Dr. Lennox pôs-se de pé para protestar contra a forma como a testemunha estava a ser tratada, e o juiz Fairborough fez um sinal de advertência com o dedo.

Essa foi uma conduta imprópria, Sir Toby – avisou ele.

Mas os olhos de Sir Toby permaneciam fixos no júri, cujos membros tinham deixado de estar suspensos de todas as palavras do perito judicial e murmuravam entre si.

Sir Toby dirigiu-se lentamente ao seu lugar e sentou-se.

Não tenho mais perguntas a fazer, Meretíssimo.

Bela tacada - disse Toby, enquanto a bola de Harry desaparecia no décimo oitavo buraco. - Sou eu a pagar o almoço. Há muitas semanas que não te ganho, Harry.

Oh, não sei se isso é verdade, Toby - disse o seu companheiro de golfe, enquanto se dirigiam para as instalações do clube. - Como é que descreverias o que me fizeste no tribunal na quinta-feira?

Sim, tenho de te pedir desculpa por isso, meu amigo - disse Toby. - Não é nada de pessoal, como bem sabes. Deixa-me que te diga que foi muito estúpido da parte de Lennox escolher-te como perito judicial.

Concordo contigo - disse Harry. - Eu avisei-os de que não havia ninguém que me conhecesse melhor do que tu, mas Lennox insistiu que não estava interessado no Circuito Norte-Leste.

Eu não me importaria tanto - disse Toby, sentando-se à mesa - se não fosse o facto...

Se não fosse o facto...? - repetiu Harry.

De, em ambos os casos, tanto o de Leeds como o do Bailey, qualquer júri ser capaz de ver que os meus clientes eram culpados.

                                     O FIM DO JOGO

Cornelius Barrington hesitou antes de jogar o lance seguinte. Continuou a estudar o tabuleiro com grande interesse. O jogo durava há mais de duas horas, e Cornelius estava confiante de que só lhe faltavam sete lances para xeque-mate. Desconfiou que o seu adversário também tinha consciência desse facto.

Cornelius ergueu os olhos e sorriu para Frank Vintcent, que não só era o seu amigo mais antigo mas também passara a ser, como advogado da família, o seu conselheiro mais sensato. Os dois homens tinham muitas coisas em comum: a idade, tendo ambos mais de sessenta anos; os seus antecedentes familiares, pois eram ambos filhos de profissionais liberais da classe média; tinham frequentado a mesma escola e a mesma universidade. Mas as semelhanças terminavam aí. Cornelius era, por natureza, um empresário, um homem que gostava de correr riscos, que fizera fortuna nas minas da África do Sul e do Brasil. Frank era advogado, cauteloso, lento a tomar decisões e fascinado com os pormenores.

Cornelius e Frank também eram diferentes fisicamente. Cornelius era alto, entroncado, com uma cabeleira prateada que causaria inveja a muitos homens com metade da sua idade. Frank era magro, de estatura média e, com excepção de um círculo de tufos grisalhos, era quase completamente careca.

Cornelius ficara viúvo após quatro décadas de uma vida matrimonial feliz. Frank era um solteirão convicto.

Uma das coisas que os tinham mantido amigos próximos era o seu persistente amor pelo xadrez. Frank ia ter com Cornelius a The Willows todas as quintas-feiras à noite para jogar, e o resultado permanecia geralmente inconclusivo, terminando muitas vezes com um empate.

A noite começava sempre com um jantar leve, com apenas um copo de vinho cada um (os dois homens levavam o seu xadrez muito a sério) e depois do jogo voltavam para a sala de estar para beber um copo de brande e fumar um charuto; mas, nessa noite, Cornelius estava prestes a quebrar essa rotina.

Parabéns - disse Frank, erguendo os olhos do tabuleiro. - Acho que desta vez me bateste. Tenho praticamente a certeza de que não tenho saída - sorriu, deitou o rei vermelho no tabuleiro, levantou-se da cadeira e apertou a mão do seu melhor amigo.

Vamos até à sala beber um brande e fumar um charuto - sugeriu Cornelius, como se esta fosse uma ideia nova.

Obrigado - disse Frank enquanto saíam do escritório e se dirigiam à sala de estar. Quando Cornelius passou pelo retrato do seu filho Daniel, o seu coração pareceu parar de bater por um momento, algo que não se alterara durante os últimos vinte e três anos. Se o seu único filho não tivesse morrido, ele não teria vendido a empresa.

Quando entraram na espaçosa sala de estar, os dois homens foram recebidos por um crepitante fogo que ardia na lareira, o qual fora preparado por Pauline, a governanta de Cornelius, apenas alguns minutos depois de ela ter acabado de levantar a mesa do jantar. Pauline também acreditava nas virtudes da rotina, mas a sua vida também estava prestes a ser destroçada.

Eu devia ter-te encurralado alguns lances antes - disse Cornelius -, mas fui tomado de surpresa quando capturaste o bispo da minha rainha. Eu devia ter previsto isso - acrescentou ele, dirigindo-se ao aparador. Dois conhaques generosos e dois charutos Monte Cristo tinham sido colocados numa bandeja de prata. Cornelius pegou no cortador de charutos e passou-o ao seu amigo, depois acendeu um fósforo, inclinou-se para a frente e ficou a ver Frank chupar, até estar convencido de que o charuto estava aceso. Seguidamente, seguiu ele próprio a mesma rotina antes de se afundar na sua poltrona preferida junto da lareira.

Frank ergueu o copo.

Bem jogado, Cornelius - disse ele, fazendo uma ligeira vénia, embora o seu anfitrião fosse talvez o primeiro a reconhecer que, ao longo dos anos, o seu convidado talvez levasse alguns pontos de vantagem.

Cornelius deixou Frank fumar mais um pouco antes de lhe estragar a noite. Por que é que havia de ter pressa? Afinal de contas, há várias semanas que ele se estava a preparar para este momento e não queria partilhar o segredo com o seu amigo mais antigo antes de estar tudo no seu lugar.

Ficaram ambos em silêncio durante algum tempo, sentindo-se descontraídos na companhia um do outro. Por fim, Cornelius colocou o seu brande numa mesinha de apoio e disse:

Frank, nós somos amigos há mais de cinquenta anos. Igualmente importante foi o facto de, como meu conselheiro jurídico, teres demonstrado ser um astuto advogado. Na realidade, desde a morte prematura de Millicent que não tenho tido mais ninguém em quem confiar.

Frank continuou a fumar o seu charuto sem interromper o amigo. Pela expressão do seu rosto, ele compreendeu que o elogio não era mais do que um gambito de abertura. Desconfiou que teria de esperar algum tempo antes de Cornelius revelar o seu lance seguinte.

Quando montei a empresa há uns trinta anos, foste tu que redigiste a escritura original; e acho que, desde esse dia, nunca assinei um documento legal que não tivesse passado primeiro pela tua secretária, algo que foi indubitavelmente um factor importante no meu êxito.

É muito generoso da tua parte dizê-lo - disse Frank, antes de beber outro golo de brande -, mas a verdade é que foi sempre a tua originalidade e espírito empreendedor que tornaram possível à empresa ficar cada vez mais forte, dons que os deuses decidiram não me conceder, não me deixando outra alternativa senão a de ser um mero escrevinhador.

Tu sempre subestimaste a tua contribuição para o êxito da empresa, Frank, mas não tenho qualquer dúvida sobre o papel que desempenhaste ao longo dos anos.

Aonde é que esta conversa toda vai ter? - perguntou Frank com um sorriso.

Paciência, meu amigo - disse Cornelius. – Ainda me faltam alguns lances antes de revelar o gambito que tenho em mente - recostou-se na poltrona e chupou longamente o charuto. - Como sabes, quando há quatro anos vendi a empresa, tencionava, pela primeira vez, abrandar o ritmo ao fim de muitos anos. Prometera levar Milhe à índia e ao Extremo Oriente, para umas férias prolongadas - fez uma pausa -, mas isso não chegou a acontecer.

Frank acenou a cabeça, manifestando compreensão.

A morte dela serviu para me lembrar que eu também sou mortal e posso não viver muito mais tempo.

Não, não, meu amigo - protestou Frank. – Ainda tens muitos anos à tua frente.

É possível que tenhas razão - disse Cornelius -, embora, por estranho que pareça, tenhas sido tu que me fizeste começar a pensar a sério no futuro...

Eu? - perguntou Frank, com um ar intrigado.

Sim. Não te recordas de, há algumas semanas, estar sentado nessa cadeira e de me teres sugerido que era altura de eu pensar em fazer um novo testamento?

Recordo-me, sim - disse Frank -, mas isso foi apenas porque, no teu testamento actual, tu deixas praticamente tudo a Millie.

Eu sei - disse Cornelius -, mas, mesmo assim, isso serviu para me fazer pensar. Continuo a levantar-me todos os dias às seis da manhã, mas já não tenho um escritório para onde ir, e passo muitas horas a reflectir sobre como hei-de distribuir a minha riqueza agora que Millie já não pode ser a principal beneficiária.

Cornelius deu outra longa chupadela no charuto antes de continuar.

No último mês, tenho estado a pensar nos que me rodeiam, os meus familiares, amigos, conhecidos e empregados, e comecei a pensar na forma como sempre me trataram, o que me fez perguntar a mim próprio quais, entre eles, manifestariam o mesmo carinho, atenção e lealdade se eu não tivesse uma fortuna e fosse, pelo contrário, um velho sem vintém.

Tenho a sensação de que estou em xeque – disse Frank, com uma gargalhada.

Não, não, meu querido amigo - disse Cornelius. - Tu estás isento de dúvidas desse tipo. Se assim não fosse, eu não estaria a partilhar estas confidências contigo.

Mas não achas que esses pensamentos são um pouco injustos para com a tua família mais próxima, já para não falar...

É possível que tenhas razão, mas eu não quero deixar isso ao acaso. Decidi, por conseguinte, descobrir por mim próprio, pois considero insatisfatória qualquer mera especulação. - Cornelius fez mais uma vez uma pausa para fumar o charuto, antes de prosseguir. - Por isso, deixa-me dizer-te o que tenho em mente, pois confesso que, sem a tua colaboração, ser-me-á impossível levar a cabo o meu pequeno subterfúgio. Mas primeiro deixa-me encher outra vez o teu copo. - Cornelius levantou-se da cadeira, pegou no copo vazio do amigo e dirigiu-se ao aparador.

»Como eu estava a dizer - prosseguiu Cornelius, devolvendo o copo, agora cheio, a Frank. - Recentemente, tenho estado a pensar em como os que me cercam se comportariam se eu não tivesse dinheiro, e cheguei à conclusão de que só há uma maneira de descobrir.

Frank bebeu um longo golo antes de perguntar:

Que tens em mente? Um suicídio fingido, talvez?

Nada tão dramático como isso - respondeu Cornelius. - Mas quase, porque - fez uma nova pausa - tenciono declarar que estou falido - olhou através da névoa de fumo, na esperança de observar a reacção imediata do seu amigo. Mas, como acontecera frequentemente no passado, o rosto do velho advogado permaneceu inescrutável, sobretudo porque, embora o seu amigo tivesse feito um lance ousado, ele sabia que o jogo estava longe de ter terminado.

Fez avançar tentativamente um peão.

Como tencionas fazê-lo? - perguntou.

Amanhã de manhã - respondeu Cornelius. – Quero que escrevas às cinco pessoas que mais direito têm a herdar os meus bens: o meu irmão Hugh, a sua mulher Elizabeth, o seu filho Timothy, a minha irmã Margaret e, finalmente, a minha governanta Pauline.

E o que dirá essa carta? - perguntou Frank, tentando não parecer demasiado incrédulo.

Vais explicar a todos eles que, devido a um insensato investimento feito por mim pouco depois da morte da minha mulher, estou agora cheio de dívidas. De facto, sem a sua ajuda, poderei bem ir à falência.

Mas... - protestou Frank.

Cornelius ergueu uma mão.

Presta atenção - pediu ele - porque o teu papel neste jogo de vida real pode ser crucial. Depois de os teres convencido de que já não podem esperar nada de mim, tenciono pôr a segunda parte do plano em funcionamento, a qual deve demonstrar, sem sombra de dúvida, se eles gostam de mim ou apenas da perspectiva de herdar a minha fortuna.

Estou ansioso por saber o que tens em mente – disse Frank.

Cornelius fez girar o brande no copo, enquanto reflectia.

Como muito bem sabes, as cinco pessoas que referi pediram-me um empréstimo no passado. Eu nunca exigi nada por escrito, pois sempre considerei o pagamento dessas dívidas uma questão de confiança. Esses empréstimos variam entre cem mil libras ao meu irmão Hugh para comprar a sua loja que, segundo creio, está a ir muito bem, e quinhentas libras que a minha governanta Pauline me pediu para dar como entrada na compra de um automóvel. Até mesmo o jovem Timothy precisou de mil libras para pagar o empréstimo à universidade e, como ele parece estar a fazer grandes progressos na profissão que escolheu, não seria nada de mais pedir-lhe, tal como aos outros, que pagasse a sua dívida.

E o segundo teste? - perguntou Frank.

Desde a morte de Millie, todos eles me têm feito alguns serviços e sempre insistiram que os faziam com todo o gosto. Eu quero descobrir se estão dispostos a fazer o mesmo por um velho sem dinheiro.

Mas como é que irás saber... - começou Frank.

Penso que se tornará óbvio à medida que as semanas forem passando. E, em todo o caso, há um terceiro teste, que acredito irá decidir a questão.

Frank olhou para o amigo.

Valerá a pena tentar dissuadir-te desta ideia louca? - perguntou ele.

Não, não vale a pena - respondeu Cornelius sem hesitar. - Estou decidido, embora reconheça que, sem a tua colaboração, não posso fazer o primeiro lance, quanto mais levá-lo a bom termo.

Se é realmente o que queres que eu faça, Cornelius, então seguirei as tuas instruções à risca, tal como sempre fiz no passado. Mas, neste caso, eu imponho uma condição.

E que condição é essa? - perguntou Cornelius.

Não vou cobrar nada por este trabalho, de modo a poder afiançar a quem perguntar que não beneficiei nada com as tuas tolices.

Mas...

Não há «mas» nem meio «mas», meu velho amigo. Quando vendeste a empresa, as minhas acções originais renderam-me um belo lucro. Deves considerar isto uma pequena tentativa de te agradecer.

Cornelius sorriu.

Sou eu quem deve estar grato e, de facto, reconheço como o teu auxílio me foi precioso ao longo de todos estes anos. Tu és realmente um bom amigo, e juro que, se não fosses solteiro e se não soubesse que isso não alteraria nem um pouco o teu modo de vida, seria a ti que eu deixaria todos os meus bens.

Não, obrigado - disse Frank com uma pequena gargalhada. - Se o fizesses, teria de efectuar exactamente o mesmo teste com um conjunto de peças diferentes – fez uma pausa. - Então, qual é o teu primeiro lance?

Cornelius ergueu-se da cadeira.

Amanhã vais enviar cinco cartas, informando as pessoas em causa que recebi um aviso de falência e que preciso que os empréstimos sejam pagos na sua totalidade o mais rapidamente possível.

Frank já começara a tomar apontamentos num pequeno bloco que trazia sempre consigo. Vinte minutos mais tarde, depois de ter anotado as últimas instruções de Cornelius, voltou a colocar o bloco num bolso interior, acabou o copo e apagou o seu segundo charuto da noite.

Quando Cornelius se levantou para o acompanhar à porta da frente, Frank perguntou:

Mas qual vai ser o terceiro teste, aquele que, segundo pensas, será conclusivo?

O velho advogado escutou atentamente, enquanto Cornelius delineava uma ideia tão engenhosa que ele se foi embora a pensar que as vítimas não teriam outra hipótese a não ser revelar o seu verdadeiro carácter.

A primeira pessoa a telefonar a Cornelius no sábado de manhã foi o seu irmão Hugh. Deve ter sido poucos momentos depois de ter aberto a carta de Frank. Cornelius teve a sensação distinta de que havia mais alguém a escutar a conversa.

Acabei de receber uma carta do teu advogado – disse Hugh - e simplesmente não consigo acreditar. Por favor, diz-me que houve um erro terrível.

Infelizmente, não houve erro algum – respondeu Cornelius. - Bem gostaria de te poder dizer o contrário.

Mas como é que tu, que és normalmente tão astucioso, permitiste que acontecesse uma coisa dessas?

Deve ser da velhice - respondeu Cornelius. - Algumas semanas depois de Millie ter morrido, convenceram-me a investir uma quantia avultada numa empresa que se especializava em fornecer equipamento de minas aos russos. Todos nós já lemos notícias sobre a existência de poços de petróleo inesgotáveis ali existentes se conseguirmos lá chegar, por isso eu estava confiante que o meu investimento renderia um belo lucro. Na sexta-feira passada, fui informado pelo secretário da empresa que estávamos à beira da falência.

Mas certamente que não investiste tudo o que tinhas numa única empresa? - perguntou Hugh, parecendo ainda mais incrédulo.

No início não, claro - disse Cornelius -, mas fui-me afundando cada vez mais à medida que eles precisavam de mais injecções de capital. No fim, tive de continuar a investir, pois era a única maneira de ter qualquer possibilidade de recuperar o investimento original.

Mas a empresa não tem bens a que possas deitar a mão? E equipamento de minas?

Está todo a enferrujar algures na Rússia central e, até agora, ainda não vi um dedal de petróleo sequer.

Por que é que não saiste enquanto ainda era possível gerir as tuas perdas? - perguntou Hugh.

Por orgulho, suponho. Não queria admitir que financiara um mau negócio e acreditei sempre que, a longo prazo, o meu dinheiro estaria seguro.

Mas eles devem dar-te alguma compensação – disse Hugh num tom de desespero.

Nem um centavo - respondeu Cornelius. – Nem sequer tenho dinheiro para comprar um bilhete de avião para ir passar alguns dias à Rússia para saber qual é a verdadeira situação.

Quanto tempo te deram?

Já recebi uma notificação de aviso de falência, por isso a minha sobrevivência depende de quanto eu conseguir arranjar a curto prazo. - Cornelius fez uma pausa. - Desculpa ter de te lembrar, Hugh, mas deves recordar-te de que te emprestei cem mil libras há algum tempo. Por isso, estava com alguma esperança que...

Mas tu sabes que todo esse dinheiro foi enterrado na empresa e, com as vendas mais baixas que nunca, acho que, neste momento, só conseguiria arranjar alguns milhares.

Cornelius julgou ter ouvido uma voz ao fundo a murmurar: «E não mais que isso.»

Sim, compreendo o teu problema - disse Cornelius. - Mas agradeço-te tudo o que puderes fazer para me ajudar. Quando decidires numa quantia - fez novamente uma pausa - e naturalmente terás de discutir com Elizabeth exactamente quanto poderás dispensar, envia o cheque directamente para o escritório de Frank Vintcent. Ele está a tratar de todo este infeliz assunto.

Os advogados acabam sempre por ganhar a sua percentagem, quer se esteja bem ou mal.

Devo dizer, com toda a justiça - disse Cornelius -, que, nesta ocasião, Frank renunciou aos seus honorários. E já que estamos a conversar, Hugh, os teus empregados que vão remodelar a cozinha deveriam começar mais lá para o fim da semana. Agora é ainda mais importante que eles terminem o trabalho o mais depressa possível, porque eu vou pôr a casa à venda, e a cozinha nova ajudar-me-á a conseguir um preço melhor.

Vou ver o que posso fazer - disse Hugh -, mas é possível que tenha de deslocar essa equipa específica para outro trabalho. Neste momento, estamos com alguns trabalhos em atraso.

Oh? Pensei que disseste que estavas com dificuldades monetárias - disse Cornelius, reprimindo o riso.

E estamos - disse Hugh, um tudo nada demasiado depressa. - O que eu queria dizer é que todos nós temos de fazer horas extraordinárias só para nos mantermos à tona de água.

Acho que compreendo - disse Cornelius. – Mesmo assim, tenho a certeza de que, agora que conheces bem a situação, irás fazer tudo o que te for possível para me ajudares - desligou o telefone e sorriu.

A vítima que o contactou de seguida não se deu ao trabalho de telefonar: apareceu-lhe à porta alguns minutos depois e só tirou o dedo do botão da campainha quando ele lhe abriu a porta.

Onde está Pauline? - foi a primeira pergunta de Margaret quando o irmão lhe abriu a porta. Cornelius olhou para a irmã, que pusera um pouco de maquilhagem a mais nessa manhã.

Infelizmente, tive de a despedir - disse Cornelius, inclinando-se para beijar o rosto da irmã. - O requerente da falência não vê com bons olhos pessoas que não têm dinheiro para pagar aos credores mas conseguem manter um séquito pessoal. Foi muito amável da tua parte vires visitar-me tão rapidamente nesta hora difícil para mim, Margaret, mas, se te apetecer tomar um chá, receio que tenhas de ser tu própria a fazê-lo.

Eu não vim cá tomar chá, como deves muito bem saber, Cornelius. O que eu quero saber é como é que conseguiste esbanjar toda a tua fortuna. - Antes de o irmão conseguir recitar algumas das frases do guião que ensaiara, ela acrescentou: - Vais ter, obviamente, que vender a casa. Eu sempre disse que, desde a morte de Millie, ela é demasiado grande para ti. Podes sempre arranjar um pequeno apartamento na vila.

Esse tipo de decisão já não depende de mim – disse Cornelius, tentando parecer impotente.

De que é que estás a falar? - perguntou Margaret, num tom agressivo.

Apenas que a casa e o seu conteúdo foram penhorados pelos requerentes da falência. Para evitar ir à falência, temos de fazer votos para que a casa seja vendida por um preço muito superior ao que a agência imobiliária prevê.

Estás a dizer-me que ficaste sem nada?

Menos de nada seria mais exacto - disse Cornelius com um suspiro. - E quando me despejarem de The Willows, não terei para onde ir - tentou parecer triste. - Por isso, eu tinha esperança que tu me permitisses aceitar a amável oferta que fizeste no funeral da Millie para que eu fosse viver contigo.

A irmã voltou-lhe as costas, pelo que Cornelius não conseguiu ver a expressão do seu rosto.

Nesta altura, isso não seria conveniente - disse ela sem qualquer explicação. - E, em todo o caso, Hugh e a Elizabeth têm bastante mais quartos livres na casa do que eu.

Está bem - disse Cornelius. Tossiu. - E o pequeno empréstimo que eu te fiz o ano passado, Margaret, desculpa falar no assunto, mas...

O pouco dinheiro que eu tenho está cuidadosamente investido, e os meus corretores dizem-me que agora não é altura de vender.

Mas a mesada que eu te dei todos os meses durante os últimos vinte anos... seguramente... tens algum dinheiro guardado?

Infelizmente, não tenho - respondeu Margaret. - Deves compreender que, sendo tua irmã, eu tinha de manter um certo nível de vida, e agora que já não posso contar com

a minha mesada, terei de ter ainda mais cuidado com os meus magros rendimentos.

Com certeza, minha querida - disse Cornelius. - Mas qualquer pequena contribuição da tua parte me ajudará, se achares que podes...

Tenho de me ir embora - disse Margaret, olhando para o relógio. - Por tua causa, já estou atrasada para o cabeleireiro.

Antes de te ires embora, só tenho mais um pequeno pedido a fazer, minha querida - disse Cornelius. – Até agora, tu sempre tiveste a amabilidade de me dar uma boleia para a vila sempre que...

Eu sempre disse, Cornelius, que há anos que devias ter aprendido a conduzir. Se o tivesses feito, não precisarias de ter toda a gente à tua disposição dia e noite. Vou ver o que posso fazer - acrescentou ela, enquanto ele lhe abria a porta.

É estranho, eu não me lembro de alguma vez dizeres isso. Mas, se calhar, a minha memória também está a desaparecer - disse ele, seguindo a irmã ao longo do caminho que ia ter à estrada. Sorriu. - Carro novo, Margaret? - perguntou num tom inocente.

É, sim - respondeu a irmã, mordaz, enquanto ele lhe abria a porta. Cornelius julgou detectar um ligeiro rubor no seu rosto. Riu intimamente enquanto ela se afastava. A cada minuto que passava, estava a aprender mais sobre a sua família.

Cornelius voltou a entrar em casa e dirigiu-se ao escritório. Fechou a porta, pegou no telefone que estava em cima da secretária e ligou para o escritório de Frank.

Vintcent, Ellwood e Halfon - disse uma voz seca.

Gostava de falar com Mr. Vintcent, por favor.

Quem deseja falar com ele?

Cornelius Barrington.

Vou ver se ele está disponível, Mr. Barrington.

Muito bem, pensou Cornelius. Frank devia ter convencido até mesmo a sua recepcionista de que os rumores eram verdadeiros, porque, até então, a resposta dela fora sempre:

Vou passar a chamada, sir.

Bom dia, Cornelius - disse Frank. - Acabei agora mesmo de falar com o teu irmão Hugh. Foi a segunda vez que ele me telefonou esta manhã.

Que é que ele queria? - perguntou Cornelius.

Que eu lhe explicasse todas as implicações da situação, bem como as suas obrigações imediatas.

Óptimo - disse Cornelius. - Assim, posso contar receber um cheque de cem mil libras no futuro próximo?

Duvido - disse Frank. - Pelo tom da sua voz, não penso que fosse isso que ele tinha em mente mas, assim que ele voltar a contactar-me, eu digo-te.

Ficarei ansiosamente à espera, Frank.

Acho que estás a divertir-te bastante, Cornelius.

Sem dúvida que estou - respondeu ele. - Só tenho pena que Millie não esteja aqui para partilhar este divertimento comigo.

Sabes o que ela diria, não sabes?

Não, mas acho que sei o que me vais dizer.

És um velho malvado.

E, como sempre, ela teria razão - confessou Cornelius com uma gargalhada. Adeus, Frank. - Assim que desligou, bateram à porta.

Entre - disse Cornelius, intrigado com quem poderia ser.

A porta abriu-se e a sua governanta entrou, trazendo na mão uma bandeja com uma chávena de chá e um prato de biscoitos. Ela estava, como sempre, muito bem arranjada, sem um único cabelo fora do lugar, e não manifestou qualquer sinal de embaraço. O primeiro pensamento de Cornelius foi que ela ainda não recebera a carta de Frank.

Pauline - disse ele, enquanto ela colocava a bandeja em cima da secretária -, recebeste uma carta do meu advogado esta manhã?

Recebi, sim, sir - respondeu Pauline -, e obviamente que vou vender o carro imediatamente para pagar as suas quinhentas libras - fez uma pausa antes de olhar directamente para ele. - Mas eu estava a pensar, sir...

Sim, Pauline?

Seria possível eu pagar com o meu trabalho? É que eu preciso do carro para ir buscar as minhas filhas à escola, não sei se compreende.

Pela primeira vez desde que pusera o plano em prática, Cornelius sentiu-se culpado. Mas ele sabia que, se concordasse com o pedido de Pauline, alguém poderia descobrir e, isso, colocaria o plano em risco.

Lamento muito, Pauline, mas não tenho outra opção.

Isso foi exactamente o que o advogado me explicou na carta - disse Pauline, mexendo num pedaço de papel que tinha no bolso da bata. - Eu nunca gostei muito de advogados.

Esta afirmação fez com que Cornelius se sentisse ainda mais culpado, porque ele não conhecia uma pessoa que merecesse mais confiança do que Frank Vintcent.

É melhor eu ir-me embora agora, sir, mas passo por cá esta noite para me certificar de que a casa não está muito desarrumada. Seria possível, sir...

Possível...? - disse Cornelius.

Seria possível dar-me uma carta de recomendação? Quero dizer, com a minha idade, não é fácil arranjar um emprego.

Eu vou dar-te uma recomendação com a qual vais conseguir arranjar um emprego no Palácio de Buckingham - disse Cornelius. Sentou-se imediatamente à secretária e escreveu uma carta cheia de elogios aos serviços que Pauline prestara durante mais de duas décadas. Releu-a e entregou-lha. - Obrigado, Pauline - disse ele -, por tudo o que fizeste no passado pelo Daniel, pela Millie e principalmente por mim.

O prazer foi todo meu, sir - disse Pauline. Depois de ela ter fechado a porta atrás de si, Cornelius não pôde deixar de se interrogar se, por vezes, a amizade não era mais forte do que os laços de família.

Sentou-se novamente à secretária e começou a tomar alguns apontamentos para se lembrar do que acontecera nessa manhã. Quando terminou, foi à cozinha fazer o almoço e descobriu que havia uma salada já pronta à sua espera.

Depois do almoço, Cornelius apanhou um autocarro para o centro da vila, uma experiência nova. Demorou algum tempo a encontrar uma paragem, depois descobriu que o condutor não tinha troco para uma nota de vinte libras. O primeiro local a que se dirigiu depois de se apear no centro da vila foi o escritório do agente imobiliário local, que não pareceu muito surpreendido de o ver. Cornelius ficou radiante com a velocidade com que o rumor da sua morte financeira devia estar a espalhar-se.

Vou mandar alguém a The Willows amanhã de manhã, Mr. Barrington - disse o jovem, levantando-se da cadeira atrás da secretária -, para tirar medidas e fotografias. Será que nos autoriza também a colocar uma tabuleta no jardim?

Com certeza - disse Cornelius sem hesitar, e esteve quase a acrescentar «quanto maior, melhor».

Depois de sair do escritório do agente imobiliário, Cornelius percorreu alguns metros ao longo da rua e entrou na empresa de mudanças local. Perguntou a outro jovem se podia fazer uma marcação para que fossem buscar todo o recheio da sua casa.

E para onde irá tudo?

Para o armazém Botts, na High Street - informou-o Cornelius.

Muito bem, sir - disse o jovem empregado, pegando num bloco de apontamentos que tinha em cima da secretária. Depois de Cornelius ter preenchido o impresso em triplicado, o empregado disse: - Assine aqui, por favor, sir - apontando para o fundo do impresso. Seguidamente, parecendo um pouco nervoso, acrescentou: - É necessário um depósito de cem libras.

Com certeza - disse Cornelius, tirando o livro de cheques do bolso.

Lamento muito, mas terá de ser em dinheiro – disse o jovem em tom de confidência.

Cornelius sorriu. Em mais de trinta anos, nunca ninguém se recusara a aceitar um cheque seu.

Volto cá amanhã - disse ele.

No caminho de regresso à paragem de autocarro, Cornelius espreitou pela montra da loja de ferragens do irmão e reparou que os empregados não pareciam muito ocupados. Quando chegou a The Willows, voltou para o escritório e tomou alguns apontamentos sobre o que se passara nessa tarde.

À noite, quando subia as escadas para se deitar, pensou que aquela devia ter sido a primeira tarde em muitos anos em que ninguém lhe telefonara para perguntar como estava. Dormiu profundamente nessa noite.

Na manhã seguinte, quando desceu, Cornelius apanhou o correio do tapete e foi até à cozinha. Passou os olhos pelas cartas enquanto comia uma tigela de flocos de cereais. Tinham-lhe dito uma vez que, assim que se soubesse que alguém poderia estar na falência, a caixa do correio seria inundada por contas a pagar, uma vez que os lojistas e pequenos comerciantes tentariam ser os primeiros a chegar, antes de mais alguém poder ser considerado credor preferencial.

Não havia contas naquela manhã porque, antes de iniciar a sua viagem ao longo daquela estrada específica, Cornelius certificara-se de que todas elas estavam pagas.

Para além de circulares e ofertas grátis, havia apenas um envelope branco com o carimbo de Londres. Era uma carta manuscrita do seu sobrinho Timothy, dizendo que lamentava muito ter tido conhecimento dos problemas do tio e que, embora actualmente não fosse muitas vezes a Chudley, ele faria o possível por ir visitá-lo a Shropshire no final da semana seguinte.

Embora a mensagem fosse breve, Cornelius tomou silenciosamente nota de que Timothy era o primeiro membro da família a manifestar alguma comiseração pelo apuro em que se encontrava.

Quando ouviu a campainha, colocou a carta em cima da mesa e dirigiu-se à entrada. Abriu a porta e deparou-se com Elizabeth, a mulher do seu irmão. Tinha o rosto pálido, vincado e com um ar extenuado, e Cornelius duvidou que ela tivesse dormido muito na noite anterior.

Assim que entrou na casa, Elizabeth começou a andar de divisão em divisão, como se estivesse a certificar-se de que tudo se encontrava ainda no seu lugar, como se não conseguisse acreditar nas palavras que lera na carta do advogado.

Quaisquer dúvidas que pudesse ainda acalentar devem ter sido dissipadas quando, alguns minutos depois, o agente imobiliário local apareceu à porta, com a fita métrica na mão e um fotógrafo ao seu lado.

Se Hugh pudesse devolver pelo menos parte dos cem mil libras que eu lhe emprestei, seria uma grande ajuda - comentou Cornelius com a sua cunhada, enquanto a seguia pela casa.

Ela demorou algum tempo a falar, apesar de ter tido a noite inteira para pensar na resposta.

Não é assim tão fácil - acabou por responder. – O empréstimo foi feito à empresa, e as acções foram distribuídas por várias pessoas.

Cornelius conhecia todas as três das várias pessoas.

Então, talvez seja altura de tu e Hugh venderem algumas das vossas acções.

E permitir que um desconhecido tome conta da empresa, depois de todo o trabalho que nela investimos ao longo dos anos? Não, não podemos permitir que isso aconteça. Em todo o caso, Hugh perguntou a Mr. Vintcent qual era a situação do ponto de vista legal, e ele confirmou que não tínhamos qualquer obrigação de vender as acções.

Já pensaste que talvez tenhas uma obrigação moral? - perguntou Cornelius, enfrentando a cunhada cara a cara.

Cornelius - disse ela, evitando o seu olhar -, foi a tua irresponsabilidade e não a nossa que provocou a tua queda. Certamente que não estás à espera que o teu irmão sacrifique tudo e coloque a minha família na mesma situação arriscada em que agora te encontras?

Cornelius compreendeu o motivo por que Elizabeth não dormira na noite anterior. Ela não só servia de porta-voz de Hugh, como também era óbvio que era ela quem tomava as decisões. Cornelius sempre achara que, dos dois, era ela a mais enérgica, e duvidava que chegasse a encontrar--se frente a frente com o irmão antes de terem chegado a um acordo.

Mas se houver alguma outra forma de podermos ajudar... - acrescentou Elizabeth num tom mais suave, enquanto a sua mão pousava numa ornada mesa folheada de ouro da sala de estar.

Bem, já que falas nisso - respondeu Cornelius. - Eu vou pôr a casa à venda dentro de algumas semanas e vou procurar...

Tão depressa? - perguntou Elizabeth. - E que vai acontecer à mobília toda?

Terá de ser vendida para cobrir as dívidas. Mas como já disse...

Hugh gostou sempre muito desta mesa Luís XIV - disse Cornelius num tom casual.

Quanto valerá ela? - inquiriu Elizabeth num tom pensativo, tentando dar a impressão de que isso não era importante.

Não faço a mínima ideia - disse Cornelius. – Se bem me lembro, paguei cerca de sessenta mil libras por ela, mas isso foi há mais de dez anos.

E o jogo de xadrez? - perguntou Elizabeth, pegando numa das peças.

É uma cópia sem qualquer valor - respondeu Cornelius. - Podes comprar um jogo igual a este em qualquer bazar árabe por algumas centenas de libras.

Oh, eu sempre pensei.... - Elizabeth hesitou antes de voltar a colocar a peça no quadrado errado. - Bem, tenho de me ir embora - disse ela, soando como se a sua tarefa estivesse terminada. - Não nos podemos esquecer que ainda tenho uma empresa para gerir.

Cornelius acompanhou-a ao longo do comprido corredor, na direcção da porta da frente. Ela passou, sem parar, pelo retrato do seu sobrinho Daniel. No passado, parara sempre comentando que sentia muitas saudades dele.

Tenho estado a pensar... - começou Cornelius a dizer quando chegaram à entrada.

Sim? - disse Elizabeth.

Bem, como tenho que deixar a casa dentro de poucas semanas, estava com esperança que fosse possível ir viver convosco. Isto é, até encontrar alguma coisa dentro das minhas posses.

Se, ao menos, tivesses perguntado uma semana atrás - disse Elizabeth, sem a mínima hesitação. - Mas, infelizmente, já decidimos que a minha mãe virá viver connosco e o único outro quarto disponível é o do Timothy, e ele vem a casa a maior parte dos fins-de-semana.

Vem? - disse Cornelius.

E o relógio de pêndulo? - perguntou Elizabeth, que ainda parecia andar às compras.

Vitoriano, comprei-o ao espólio do conde de Bute.

Não, eu quero dizer, quanto vale?

O que quer que alguém esteja disposto a pagar por ele - respondeu Cornelius quando chegaram à porta da frente.

Não te esqueças de me contactar, Cornelius, se houver alguma coisa que eu possa fazer.

És muito amável, Elizabeth - disse ele abrindo a porta e vendo o agente imobiliário a colocar uma estaca com uma tabuleta que dizia Vende-se. Cornelius sorriu, porque essa foi a única coisa nessa manhã que fez Elizabeth estacar repentinamente.

Frank Vintcent chegou na quinta-feira à noite com uma garrafa de conhaque e duas pizzas na mão.

Se eu soubesse que perder Pauline fazia parte do acordo, nunca teria concordado com o teu plano - disse Frank, enquanto mordiscava a pizza aquecida no micro- -ondas. - Como é que consegues passar sem ela?

Bastante mal - admitiu Cornelius -, embora ela ainda cá venha uma hora ou duas todas as noites. Caso contrário, esta casa estaria uma pocilga. Pensando bem, como é que tu consegues viver sozinho?

Quando se é solteiro - respondeu Frank -, aprende-se a arte da sobrevivência muito cedo. Agora, deixemo- -nos de conversas e vamos ao jogo.

Que jogo? - inquiriu Cornelius com uma pequena gargalhada.

De xadrez - respondeu Frank. - O outro jogo já me bastou para uma semana.

Então, é melhor irmos para a biblioteca.

Frank ficou surpreendido com os lances de abertura de Cornelius, pois nunca vira o seu velho amigo ser tão ousado. Nenhum deles falou durante mais de uma hora; Frank passou o tempo todo a tentar defender a sua rainha.

Esta pode bem ser a última partida que jogamos com este jogo - disse Cornelius num tom pensativo.

Não te preocupes com isso - disse Frank. - Eles permitem sempre que a pessoa fique com alguns itens pessoais.

Não quando eles valem duzentas e cinquenta mil libras - respondeu Cornelius.

Eu não fazia a mínima ideia - disse Frank, erguendo a vista.

Porque tu não és o tipo de homem que se interesse por bens materiais. É uma obra-prima persa do século xvi, e é provável que suscite bastante interesse quando for leiloada.

Mas tu certamente que já descobriste tudo o que precisas de saber - disse Frank. - Por que é que hás-de continuar com o exercício quando te arriscas a perder tanta coisa que te é querida?

Porque ainda tenho que descobrir a verdade. Frank suspirou, baixou os olhos para o tabuleiro e moveu o bispo da sua rainha.

Xeque-mate - disse ele. - E é bem feito por não te concentrares.

Cornelius passou a maior parte da sexta-feira de manhã em reunião com o director da Botts & Company, os leiloeiros de arte e mobiliário locais.

Mr. Botts já concordara que o leilão poderia ter lugar daí a duas semanas. Dissera várias vezes que gostaria de ter mais tempo para preparar o catálogo e divulgar amplamente por carta uma colecção tão boa, mas, pelo menos, manifestou alguma consideração pela situação em que Mr. Barrington se encontrava. Ao longo dos anos, a Lloyd's of London, o imposto sucessório e a falência iminente tinham sido os melhores amigos do leiloeiro.

Precisaremos de ter tudo no nosso armazém o mais cedo possível - disse Mr. Botts - para termos tempo suficiente para preparar o catálogo, permitindo ao mesmo tempo que as peças fiquem expostas ao público durante três dias consecutivos antes do leilão.

Cornelius acenou a cabeça em sinal de assentimento.

O leiloeiro também recomendou que fosse publicado um anúncio de página inteira no Chudley Advertiser na quarta-feira seguinte, dando informações sobre o que ia ser leiloado, para que estas chegassem ao conhecimento das pessoas que não tinham sido contactadas por carta.

Cornelius deixou o escritório de Mr. Botts alguns minutos antes do meio-dia e, no caminho de regresso à paragem do autocarro, passou pela empresa de mudanças. Pagou cem libras em notas de cinco e dez libras, dando a impressão de que levara alguns dias a conseguir o dinheiro.

Enquanto esperava pelo autocarro, não pôde deixar de reparar que poucas pessoas se deram ao trabalho de o cumprimentar. Certamente que ninguém atravessou a rua para conversar com ele.

Vinte homens em três carrinhas passaram o dia seguinte a carregar e descarregar, percorrendo várias vezes o caminho entre The Willows e o armazém da casa de leilões situado na High Street. Só ao fim da tarde é que a última peça de mobiliário foi retirada da casa.

Enquanto percorria as divisões vazias, Cornelius ficou surpreendido ao dar consigo a pensar que, com uma ou duas excepções, não ia sentir a falta de muitos dos seus bens materiais. Foi para o quarto, a única divisão da casa que ainda estava mobilada, e continuou a ler o romance que Elizabeth lhe recomendara antes da sua queda.

Na manhã seguinte, só recebeu um telefonema; era do seu sobrinho Timothy a dizer que vinha passar o fim-de-semana a casa e gostaria de saber se o tio Cornelius tinha tempo para o receber.

Tempo é a única coisa que não me falta - respondeu Cornelius.

Então, posso aparecer esta tarde? - perguntou Timothy. - Digamos, quatro horas?

Desculpa não te oferecer um chá - disse Cornelius -, mas acabei o último pacote esta manhã e, como provavel- mente, vou deixar a casa na próxima semana...

Não tem importância - disse Timothy, incapaz de disfarçar a sua tristeza ao ver a casa despida das coisas do tio.

Vamos até ao quarto. É a única divisão que ainda tem alguma mobília, e a maior parte dela já lá não estará na próxima semana.

Eu não fazia a mínima ideia de que tinham levado tudo. Até o retrato do Daniel - disse Timothy, ao passar pela marca oblonga com um tom de creme mais claro que o resto da parede.

E o meu jogo de xadrez - suspirou Cornelius. - Mas não me posso queixar. Tive uma boa vida - começou a subir as escadas em direcção ao quarto.

Cornelius sentou-se na única cadeira existente, enquanto Timothy se empoleirou ao fundo da cama. O velho estudou o sobrinho mais atentamente. Tornara-se um belo jovem. Um rosto franco, com olhos castanhos límpidos, que serviam para revelar a quem já não o soubesse que fora adoptado. Devia ter vinte sete ou vinte e oito anos, aproximadamente a mesma idade que Daniel teria se fosse vivo. Cornelius sempre gostara muito do sobrinho e imaginara que o afecto era retribuído. Perguntou a si próprio se estava prestes a ficar decepcionado.

Timothy permaneceu empoleirado ao fundo da cama, mudando o peso de um pé para o outro com um ar nervoso.

Tio Cornelius - começou ele por dizer, com a cabeça ligeiramente inclinada -, como sabe, recebi uma carta do Dr. Vintcent, por isso, achei melhor vir vê-lo pessoalmente para lhe explicar que não tenho mil libras e, por conseguinte, neste momento, não posso pagar a minha dívida.

Cornelius ficou decepcionado. Tivera esperança de que ao menos um membro da família...

No entanto - prosseguiu o jovem, tirando um envelope comprido do bolso interior do casaco -, quando fiz vinte e um anos, o meu pai ofereceu-me acções no valor de um por cento da empresa, que eu penso que devem valer pelo menos mil libras, por isso, estive a pensar se o tio não se importaria de ficar com elas em troca da minha dívida, isto é, até eu ter dinheiro para as reaver.

Cornelius sentiu remorsos por ter duvidado do sobrinho. Teve vontade de lhe pedir desculpa, mas sabia que, para manter o castelo de cartas no seu lugar durante mais alguns dias, não podia fazê-lo. Aceitou a generosa oferta e agradeceu a Timothy.

Reconheço o sacrifício que isto deve representar para ti - disse Cornelius -, e lembro-me das inúmeras vezes em que já me falaste da tua ambição de tomar conta da empresa quando o teu pai eventualmente se reformar, e dos teus sonhos de expansão para áreas em que ele se recusa sequer a pensar.

Eu acho que ele nunca se vai reformar - disse Timothy com um suspiro. - Mas eu tenho esperança de que, depois de toda a experiência que tenho obtido em Londres, ele me considere um sério candidato a gerente quando Mr. Leonard se reformar no fim do ano.

Receio que as tuas probabilidades não aumentem muito, quando ele souber que entregaste mais de um por cento da empresa ao teu tio falido.

Os meus problemas não se podem comparar com os que o tio está a enfrentar. Só tenho pena de não lhe poder dar o dinheiro agora. Há alguma coisa que eu possa fazer antes de me ir embora?

Há, sim, Timothy - disse Cornelius, regressando ao guião. - A tua mãe recomendou-me um romance de que eu estou a gostar muito, mas os meus olhos parecem começar a ficar cansados cada vez mais depressa. Será que me podes ler algumas páginas? Eu marquei a página onde fiquei.

Lembro-me que o tio costumava ler para mim quando eu era pequeno - disse Timothy. - Just William e Swallows and Amazons - acrescentou ele ao pegar no livro que o tio lhe estendeu.

Timothy devia ter lido cerca de vinte páginas quando parou subitamente e ergueu a vista.

Há um bilhete de autocarro na página 450. Deixo-o lá, tio?

Deixa - respondeu Cornelius. - Pu-lo aí para me lembrar de uma coisa - fez uma pausa. - Desculpa, mas estou a sentir-me um pouco cansado.

Eu volto em breve para acabar as últimas páginas - disse Timothy, erguendo-se.

Não precisas de te incomodar, hei-de conseguir fazê-lo.

Oh, eu acho que é melhor eu vir, tio, senão nunca hei-de saber qual deles chega a primeiro-ministro.

A segunda série de cartas que Frank Vintcent enviou na sexta-feira seguinte provocou outra rajada de telefonemas.

Não sei se compreendo bem o que ela significa – disse Margaret, no seu primeiro contacto com o irmão desde que viera a casa dele, duas semanas antes.

Significa exactamente o que ela diz - disse Cornelius, calmamente. - Todos os meus bens materiais vão ser leiloados, mas eu vou permitir a todos que me são queridos que seleccionem uma peça que, por razões sentimentais ou pessoais, eles gostariam que permanecesse na família. Eles poderão comprá-la no leilão, na próxima sexta-feira.

Mas a nossa oferta pode ser superada e, nesse caso, nós ficaremos sem nada - disse Margaret.

Não, minha querida - disse Cornelius, tentando não se mostrar exasperado. - O leilão público terá lugar à tarde. As peças seleccionadas serão leiloadas separadamente de manhã, com apenas a família e os amigos próximos presentes. As instruções não podem ser mais claras.

E podemos ver as peças antes do leilão?

Podem, Margaret - disse o irmão, como se estivesse a falar com uma criança deficiente mental. - Como Mr. Vintcent disse claramente na carta: «As peças poderão ser vistas entre as dez e as dezasseis horas na terça, quarta e quinta-feira anteriores ao leilão que terá lugar na sexta-feira, pelas onze horas.»

Mas nós podemos seleccionar apenas uma peça?

Sim - respondeu Cornelius -, é tudo o que o requerente da falência permite. Mas talvez te interesse saber que o retrato de Daniel, que tantas vezes elogiaste, estará entre os lotes disponíveis.

Eu gosto bastante dele - disse Margaret. Hesitou por um momento. - Mas o Turner também vai ser vendido?

Certamente que sim - disse Cornelius. - Sou obrigado a vender tudo.

Fazes alguma ideia do que o Hugh e a Elizabeth querem?

Não, não faço a mínima ideia, por que é que não lhes perguntas? - respondeu ele maliciosamente, sabendo bem que eles mal se falavam.

A segunda chamada chegou poucos momentos depois de ele ter desligado.

Até que enfim - disse uma voz num tom peremptório, como se Cornelius tivesse culpa de outras pessoas quererem falar com ele.

Bom dia, Elizabeth - disse Cornelius, reconhecendo imediatamente a voz. - É bom ouvir-te.

É sobre a carta que recebi esta manhã.

Sim, calculei que fosse - disse Cornelius.

É só, bem, eu só queria confirmar o valor da mesa, a peça Luís XIV, e, já que estou a falar contigo, do relógio de pé que pertenceu ao conde de Bute.

Se fores à casa de leilões, Elizabeth, dão-te um catálogo que indica a estimativa mais elevada e mais baixa para todas as peças em leilão.

Estou a ver - disse Elizabeth. Ficou calada durante algum tempo. - Suponho que não sabes se a Margaret vai tentar comprar qualquer dessas peças?

Não faço ideia - respondeu Cornelius. - Mas era a Margaret que estava a impedir a linha quando estavas a tentar telefonar, e ela fez-me uma pergunta semelhante, por isso sugiro que lhe dês uma apitadela. - Outro longo silêncio. - A propósito, Elizabeth, tu sabes que só podes licitar uma peça?

Sei, é o que diz na carta - respondeu a cunhada num tom mordaz.

Eu só perguntei, porque sempre achei que Hugh estava interessado no jogo de xadrez.

Oh, não, eu acho que não - disse Elizabeth. Cornelius não teve qualquer dúvida de quem faria a licitação em nome daquela família na sexta-feira de manhã.

Bem, boa sorte - disse Cornelius. - E não te esqueças dos quinze por cento - acrescentou ele, enquanto pousava o auscultador.

Timothy escreveu no dia seguinte a dizer que esperava poder assistir ao leilão, pois queria comprar uma pequena recordação de The Willows e dos tios.

Pauline, contudo, disse a Cornelius, enquanto arrumava o quarto, que não tencionava ir ao leilão.

Por que não? - perguntou ele.

Porque eu de certeza que faria figura de parva e licitaria alguma coisa que não teria dinheiro para pagar.

Muito sensato da tua parte - disse Cornelius. - Eu já caí algumas vezes nessa armadilha. Mas estavas interessada nalguma coisa?

Estava, sim, mas as minhas poupanças nunca chegariam lá.

Oh, nos leilões nunca se sabe - disse Cornelius. - Se mais ninguém estiver interessado, às vezes compram- -se pechinchas.

Bem, vou pensar nisso, agora que tenho outro emprego.

Fico muito satisfeito em sabê-lo - disse Cornelius, que ficou genuinamente decepcionado com a notícia dela.

Nessa quinta-feira à noite, nem Cornelius nem Frank conseguiram concentrar-se na partida de xadrez semanal e, ao fim de meia hora, abandonaram o jogo e decidiram que fora um empate.

Devo confessar que estou ansioso por que as coisas regressem à normalidade - disse Frank, enquanto o seu anfitrião deitava xerez para cozinhar no copo.

Oh, eu não sei. Acho que a situação tem as suas compensações.

Como por exemplo? - perguntou Frank, franzindo o sobrolho depois do primeiro gole.

Bem, para começar, estou ansioso pelo leilão de amanhã.

Mas ele pode correr muito mal - disse Frank.

Que é que pode correr mal? - perguntou Cornelius.

Bem, para começar, já pensaste...? - mas ele não completou a frase, porque o seu amigo não estava a prestar atenção.

Na manhã seguinte, Cornelius foi o primeiro a chegar à casa de leilões. Tinham sido colocadas cento e vinte cadeiras na sala, alinhadas em filas de doze, prontas para a casa cheia que se antecipava para essa tarde, mas Cornelius pensava que a cena verdadeiramente dramática se iria desenrolar nessa manhã, quando estariam presentes apenas seis pessoas.

O segundo a chegar, quinze minutos antes da hora prevista para o início do leilão, foi Frank Vintcent, o advogado de Cornelius. Ao ver o seu cliente a conversar com Mr. Botts, que iria ser o leiloeiro, sentou-se ao fundo da sala, à direita.

Margaret, a irmã de Cornelius, chegou a seguir e não foi tão delicada. Dirigiu-se agressivamente a Mr. Botts e perguntou com uma voz estridente:

Posso sentar-me onde quiser?

Sim, minha senhora, com certeza que pode - respondeu Mr. Botts.

Margaret ocupou imediatamente o lugar ao centro da fila da frente, por baixo do pódio do leiloeiro.

Cornelius acenou a cabeça na direcção da irmã, antes de descer a coxia para se sentar três filas à frente de Frank.

Hugh e Elizabeth chegaram a seguir. Deixaram-se ficar durante algum tempo à entrada enquanto estudavam a disposição da sala. Por fim, percorreram a coxia e ocuparam dois lugares na oitava fila, o que lhes dava uma visão perfeita do pódio, ao mesmo tempo que conseguiam manter Margaret debaixo de olho. Lance de abertura para Elizabeth, pensou Cornelius, que se estava a divertir tranquilamente.

Ao ver o ponteiro das horas do relógio de parede atrás do pódio do leiloeiro avançar inexoravelmente na direcção das onze, Cornelius sentiu-se decepcionado por nem Pauline nem Timothy terem aparecido.

No momento em que o leiloeiro começou a subir os degraus do púlpito, a porta ao fundo da sala abriu-se suavemente e viu-se a cabeça de Pauline a espreitar. O resto do seu corpo permaneceu escondido atrás da porta até os seus olhos verem Cornelius, que esboçou um sorriso de encorajamento. Ela entrou e fechou a porta, mas não manifestou qualquer interesse em se sentar e deixou-se ficar de pé a um canto.

Quando o relógio deu as onze horas, o leiloeiro sorriu para os convidados escolhidos a dedo.

Minhas senhoras e meus senhores - começou ele por dizer -, estou neste negócio há mais de trinta anos, mas esta é a primeira vez que efectuo uma venda privada, por isso, até para mim, este leilão é muito invulgar. É melhor eu começar por estabelecer as regras de base para que, se surgir uma disputa mais tarde, ninguém tenha dúvidas.

»Todos os presentes têm uma ligação especial, quer como familiares quer como amigos, a Mr. Cornelius Barrington, cujos bens pessoais vão ser leiloados. Cada um de vós foi convidado a seleccionar uma peça do inventário que poderão licitar. Se a vossa licitação for bem sucedida, não poderão licitar qualquer outro lote mas, se não conseguirem adquirir a primeira peça que escolherem, poderão efectuar outra licitação para um outro lote. Espero que isto esteja claro - disse ele, no momento em que a porta se abria de rompante e Timothy entrava, apressadamente, na sala.

Peço imensa desculpa - disse ele um pouco ofegante -, mas o meu comboio atrasou-se - sentou-se rapidamente numa cadeira da última fila. Cornelius sorriu, todos os peões estavam agora no seu lugar.

Como só cinco de vós podem licitar - prosseguiu Mr. Botts como se não tivesse havido qualquer interrupção -, serão leiloadas apenas cinco peças. Mas a lei diz que se alguém tiver deixado anteriormente uma licitação por escrito, essa licitação deve ser reconhecida como faazendo parte do leilão. Eu tornarei os procedimentos tão simples de seguir quanto possível e, quando for caso disso, direi que tenho uma licitação na mesa, pelo que os senhores deverão partir do princípio que a mesma foi deixada no nosso escritório por um membro do público. Eu acho que é justo que saibam - acrescentou ele - que tenho licitações externas para quatro das cinco peças.

«Uma vez explicadas as regras básicas, irei, se me permitirem, dar início ao leilão - olhou para o fundo da sala, para Cornelius, que acenou a cabeça em sinal de assentimento.

»O primeiro lote é um relógio de pé, datado de 1892, que foi comprado por Mr. Barrington ao espólio do falecido conde de Bute.

»Abrirei a licitação para este lote a três mil libras. Alguém dá três mil e quinhentas? - perguntou Mr. Botts, erguendo uma sobrancelha. Elizabeth pareceu um pouco chocada, pois três mil estava só um pouco abaixo da estimativa e da quantia em que ela e Hugh tinham concordado nessa manhã.

»Alguém está interessado neste lote? - perguntou Mr. Botts, olhando directamente para Elizabeth mas, aparentemente, esta ficara hipnotizada. - Vou perguntar mais uma vez se alguém deseja licitar três mil e quinhentas libras por este magnífico relógio de pé. Foi dado aviso suficiente. Não vejo quaisquer licitações, por isso vou ter de retirar esta peça para a colocar no leilão da tarde.

Elizabeth parecia continuar em estado de choque. Voltou-se imediatamente para o marido e começou a conversar com ele em voz baixa. Mr. Botts pareceu um pouco desapontado, mas passou rapidamente para o segundo lote.

O lote seguinte é uma encantadora aguarela do Tamisa da autoria de William Turner de Oxford. Posso iniciar a licitação a duas mil libras?

Margaret acenou furiosamente o catálogo no ar.

Obrigado, minha senhora - disse o leiloeiro, sorrindo-lhe. - Tenho uma licitação externa de três mil libras. Alguém dá mais?

Eu - gritou Margaret, como se a sala estivesse tão cheia de gente que ela precisasse de se fazer ouvir acima do barulho.

Tenho uma licitação de cinco mil em cima da mesa, dá seis, minha senhora? - perguntou ele, dirigindo a sua atenção para a mulher sentada na fila da frente.

Dou - disse Margaret com igual firmeza.

Há mais alguma licitação? - perguntou o leiloeiro, olhando em redor da sala, um indício seguro de que as licitações tinham parado. - Então, este quadro é vendido à senhora da fila da frente por seis mil libras.

Sete - disse uma voz atrás dela. Margaret virou-se e viu que a cunhada também estava a licitar.

Oito mil - gritou Margaret.

Nove - disse Elizabeth sem qualquer hesitação.

Dez mil! - gritou Margaret.

Subitamente, fez-se silêncio. Cornelius olhou em redor da sala e viu um sorriso de satisfação perpassar o rosto de Elizabeth, que deixara a cunhada com uma conta de dez mil libras.

Cornelius teve vontade de desatar à gargalhada. O leilão estava a ser ainda mais divertido do que ele antecipara.

Uma vez que não há mais licitações, esta encantadora aguarela é vendida a Miss Barrington por dez mil libras - disse Mr. Botts batendo com o martelo. Sorriu para Margaret, como se esta tivesse feito um bom investimento.

O lote seguinte - prosseguiu ele - é um retrato intitulado simplesmente Daniel, da autoria de um artista desconhecido. É uma obra bem executada e eu estava a contar abrir a licitação com cem libras. Há alguma licitação para cem libras?

Para grande decepção de Cornelius, nenhum dos presentes pareceu manifestar interesse.

Estou disposto a aceitar uma licitação inicial de cinquenta libras - disse Mr. Botts -, mas não posso descer mais. Alguém deseja licitar cinquenta libras?

Cornelius olhou em volta da sala, tentando descobrir, pelas expressões dos rostos, quem seleccionara aquela peça, e por que motivo esse alguém já não desejava licitar quando o preço era tão razoável.

Então, receio que tenha de retirar também este lote.

Isso significa que posso ficar com ele? - perguntou uma voz ao fundo da sala. Todos se viraram.

Se está disposta a licitar cinquenta libras, minha senhora - disse Mr. Botts, ajustando os óculos -, o retrato é seu.

Estou sim - disse Pauline. Mr. Botts sorriu na direção dela enquanto fazia descer o martelo. - Vendido à senhora ao fundo da sala por cinquenta libras.

Vamos agora para o lote número quatro, um jogo de xadrez de proveniência desconhecida. O que direi desta peça? Posso começar com cem libras? Obrigado, sir.

Cornelius olhou em volta para ver quem licitara.

Tenho duzentas libras na mesa. Alguém dá trezentas?

Timothy acenou a cabeça em sinal de assentimento.

Tenho uma licitação de trezentas e cinquenta. Alguém dá quatrocentas?

Desta vez, Timothy pareceu desalentado, e Cornelius supôs que a quantia se situava para além dos seus limites.

Então, vou ter também de retirar esta peça e colocá- -la no leilão da tarde. - O leiloeiro olhou para Timothy, mas este nem sequer pestanejou. - A peça é retirada.

»E, finalmente, chegámos ao lote número cinco. Uma magnífica mesa Luís XIV, datada aproximadamente de 1712, em estado praticamente novo. É possível remontar a sua proveniência ao proprietário original, mas durante os últimos onze anos tem estado na posse de Mr. Barrington. A descrição completa está no vosso catálogo. Devo avisá-los de que esta peça tem gerado um grande interesse, iniciarei a licitação a cinquenta mil libras.

Elizabeth ergueu imediatamente a mão acima da cabeça.

Obrigado, minha senhora. Tenho uma licitação na mesa de oitenta mil. Alguém dá noventa? - Desta vez, Elizabeth pareceu hesitar antes de voltar a erguer lentamente o catálogo.

Tenho uma licitação na mesa de cem mil. Alguém dá cento e dez mil?

Toda a gente na sala estava agora a olhar para Elizabeth, com excepção de Hugh que, de cabeça baixa, tinha os olhos postos no chão. Era óbvio que ele não ia ter qualquer influência na licitação.

Se não há mais licitações, terei de retirar este lote e colocá-lo no leilão da tarde. Está feito o aviso – declarou Mr. Botts. Enquanto ele levantava o martelo, o catálogo de Elizabeth ergueu-se subitamente no ar.

»Cento e dez mil. Obrigado, minha senhora. Alguém dá mais? Então, esta bela peça é vendida por cento e dez mil libras - bateu com o martelo e sorriu para Elizabeth. - Parabéns, minha senhora. Este é, de facto, um magnífico exemplar daquele período - ela esboçou um sorriso desmaiado, com um ar de incerteza no rosto.

Cornelius piscou o olho a Frank, que permanecia impassível no seu lugar. Seguidamente, levantou-se da cadeira e dirigiu-se ao púlpito para agradecer a Mr. Botts o seu bom trabalho. Quando se voltou para se ir embora, sorriu a Margaret e Elizabeth, mas nenhuma delas lhe retribuiu o sorriso, parecendo ambas preocupadas. Hugh, com as mãos na cabeça, continuou a olhar para o chão.

Quando se dirigiu ao fundo da sala, não viu sinal de Timothy e supôs que o sobrinho se vira obrigado a regressar a Londres. Cornelius ficou desapontado, pois estava a contar que o rapaz fosse almoçar com ele a um pub. Depois de uma manhã tão bem sucedida, ele achava que devia celebrar.

Já decidira que não ia assistir ao leilão da tarde, pois não tinha qualquer desejo de ver os seus bens materiais a ser leiloados, mesmo que não tivesse onde pôr a maior parte deles, quando se mudasse para uma casa mais pequena. Mr. Botts prometera telefonar-lhe assim que o leilão terminasse para lhe dizer quanto rendera.

Depois de ter comido a sua melhor refeição desde que Pauline se fora embora, Cornelius deu início à sua viagem de regresso a The Willows. Ele sabia exactamente a que horas o autocarro apareceria para o levar de volta a casa e chegou à paragem alguns minutos antes. Agora já sabia que as pessoas o iriam evitar. Cornelius abriu a porta da frente no momento em que o relógio da igreja próxima batia três horas. Estava ansioso por ver Margaret e Elizabeth cair em si quando se compenetrassem de quanto tinham realmente licitado. Sorriu enquanto se dirigia ao escritó-rio e olhou para o relógio, perguntando a si próprio quando receberia a chamada de Mr. Botts. O telefone começou a tocar no momento em que entrou no escritório. Riu para si próprio. Era demasiado cedo para Mr. Botts, por isso tinha de ser Elizabeth ou Margaret a quererem falar urgentemente com ele. Pegou no auscultador e ouviu a voz de Frank no outro extremo da linha.

Lembraste-te de retirar o jogo de xadrez do leilão da tarde? - perguntou Frank sem perder tempo com formalidades.

De que é que estás a falar? - perguntou Cornelius.

Do teu querido jogo de xadrez. Esqueceste-te de que não foi vendido esta manhã? Ele vai aparecer automaticamente no leilão da tarde, a não ser, claro, que já tenhas dado ordens para o retirar ou tenhas revelado o seu verdadeiro valor a Mr. Botts.

Oh, meu Deus! - disse Cornelius. Pousou o auscultador e saiu a correr pela porta de trás, pelo que não ouviu Frank dizer:

Tenho a certeza de que uma chamada telefónica para o empregado de Mr. Botts será suficiente.

Cornelius olhou para o telefone enquanto corria pelo caminho da entrada abaixo. Passavam dez minutos das três, pelo que o leilão devia ter começado há pouco tempo. Enquanto corria para a paragem do autocarro, tentou recordar-se do número de lote do jogo de xadrez. A única coisa de que se lembrava era que havia cento e cinquenta e três lotes em leilão.

Ficou de pé na paragem, apoiando-se impacientemente ora num pé, ora noutro, e olhando atentamente a estrada na esperança de mandar parar um táxi quando, para seu alívio, viu um autocarro aproximar-se. Embora os seus olhos nunca se tivessem desviado do motorista, isso não o fez acelerar.

Quando eventualmente parou ao lado dele e as portas se abriram, Cornelius saltou para o interior e sentou-se no banco da frente. Teve vontade de dizer ao motorista que o levasse directamente à Botts & Co., na High Street, independentemente de quanto isso lhe pudesse custar, mas duvidou que os outros passageiros concordassem com o seu plano.

Olhou para o relógio, quinze horas e dezassete minutos, e tentou recordar-se de quanto tempo Mr. Botts levara a vender cada um dos lotes. Cerca de um minuto, um minuto e meio, talvez, concluiu ele. Na breve viagem até à cidade, o autocarro parou em todas as paragens e Cornelius passou tanto tempo a seguir o avanço do ponteiro dos minutos no seu relógio como a seguir a viagem. Às quinze e trinta e um, o motorista chegou finalmente à High Street. Até mesmo a porta pareceu lenta a abrir-se. Cornelius saltou para o passeio e, apesar de não correr há anos, correu velozmente pela segunda vez nesse dia. Percorreu os duzentos metros até à casa de leilões num tempo superior ao tempo recorde mas, mesmo assim, chegou lá exausto. Entrou a correr na sala do leilão na altura em que Mr. Botts dizia:

Lote número 32, um relógio de pé originalmente adquirido ao espólio do...

Os olhos de Cornelius percorreram a sala e pousaram numa empregada do leiloeiro que estava a um canto, com o catálogo aberto, a introduzir o valor da licitação de cada lote vendido. Dirigiu-se a ela no momento em que uma mulher, que ele julgou reconhecer, passou rapidamente por ele e saiu da sala.

O jogo de xadrez já foi vendido? - perguntou Cornelius, ainda ofegante.

Vou verificar, sir - respondeu a empregada, folheando o catálogo. - Já, aqui está, lote 27.

Por quanto? - perguntou Cornelius.

Quatrocentas e cinquenta libras, sir – respondeu ela.

Mr. Botts telefonou a Cornelius mais tarde, para o informar que o leilão da tarde rendera novecentas e duas mil, e oitocentas libras, muito mais do que ele calculara.

Sabe, por acaso, quem comprou o jogo de xadrez? - foi a única pergunta de Cornelius.

Não - respondeu Mr. Botts. - A única coisa que lhe posso dizer é que foi comprado para outra pessoa. O comprador pagou em dinheiro e levou-o com ele.

Enquanto subia as escadas para se ir deitar, Cornelius teve de admitir que tudo correra de acordo com o plano, com excepção da desastrosa perda do jogo de xadrez, cuja culpa fora toda sua. O que piorava ainda mais as coisas é que ele sabia que Frank não voltaria a referir-se ao incidente.

Cornelius estava na casa de banho quando o telefone tocou às sete e trinta da manhã seguinte. Obviamente que alguém ficara acordado a pensar qual seria o melhor momento para o incomodar logo de manhã cedo.

És tu, Cornelius?

Sou - respondeu ele, bocejando ruidosamente. - Quem fala? - acrescentou ele, sabendo perfeitamente quem era.

Daqui é a Elizabeth. Desculpa telefonar-te tão cedo, mas preciso urgentemente de falar contigo.

Claro, minha querida - respondeu Cornelius -, por que é que não vens tomar chá comigo hoje à tarde?

Não, o assunto não pode esperar tanto tempo. Tenho de falar contigo esta manhã. Posso ir aí por volta das nove?

Lamento muito, Elizabeth, mas já tenho um compromisso às nove horas - fez uma pausa. - Mas posso estar contigo às dez, durante meia hora, e assim não chegarei tarde à minha reunião com Mr. Botts às onze.

Eu podia dar-te uma boleia para a baixa, se isso ajudasse - sugeriu Elizabeth.

É muito amável da tua parte, minha querida - disse Cornelius -, mas estou habituado a apanhar o autocarro e, de qualquer modo, não quero incomodar-te. Encontramo- -nos às dez - desligou.

Cornelius ainda estava a tomar banho quando o telefone tocou uma segunda vez. Deixou-se ficar imerso na água quente até ele deixar de tocar. Sabia que era Margaret e tinha a certeza de que ela voltaria a telefonar dentro de minutos.

Ainda não acabara de se secar quando o telefone tocou outra vez. Dirigiu-se lentamente ao quarto, pegou no auscultador colocado ao lado da cama e disse:

Bom dia, Margaret.

Bom dia, Cornelius - disse ela, num tom de surpresa.

Recuperando rapidamente, acrescentou: - Preciso de falar urgentemente contigo.

Oh? Que se passa? - perguntou Cornelius, sabendo perfeitamente o que se passava.

Não posso discutir uma questão tão delicada ao telefone, mas podia encontrar-me contigo às dez horas.

Infelizmente, já combinei encontrar-me com a Elizabeth às dez. Parece que ela também tem um assunto urgente a discutir comigo. Por que é que não passas por cá às onze?

Talvez fosse melhor eu ir já - disse Margaret, parecendo agitada.

Não, o mais cedo que consigo encontrar-me contigo é às onze, minha querida. Por isso, é onze horas ou chá à tarde. Qual é que te convém mais?

Onze - respondeu Margaret sem hesitar.

Foi o que eu pensei - disse Cornelius. - Até logo, então - acrescentou ele antes de pousar o auscultador.

Quando acabou de se vestir, Cornelius desceu as escadas e dirigiu-se à cozinha para tomar o pequeno-almoço. Uma tigela de flocos de cereais, o jornal local e um envelope sem selo estavam à sua espera, embora não houvesse sinal de Pauline.

Deitou chá na chávena, abriu o envelope e retirou dele um cheque em seu nome no valor de quinhentas libras. Suspirou. Pauline devia ter vendido o carro.

Começou a folhear o suplemento de sábado, parando quando chegou à secção de «Casas para Venda». Quando o telefone tocou pela terceira vez nessa manhã, ele não fazia ideia de quem pudesse ser.

Bom dia, Mr. Barrington - disse uma voz alegre. - Daqui fala o Bruce da agência imobiliária. Vinha dizer- -lhe que tivemos uma oferta para The Willows que é superior à quantia que estávamos a pedir.

Bom trabalho - disse Cornelius.

Obrigado, sir - disse o agente, com mais respeito na voz do que Cornelius ouvira de alguém nas últimas semanas. - Mas acho que devíamos aguardar mais algum tempo. Tenho a certeza de que consigo fazer com que eles paguem um pouco mais. Se conseguir, o meu conselho é que aceite a oferta e peça um depósito de dez por cento.

Esse parece-me um bom conselho - disse Cornelius. - E assim que eles assinarem o contrato, preciso que me arranje uma casa nova.

Que tipo de casa procura, Mr. Barrington?

Eu quero uma casa com cerca de metade do tamanho de The Willows, com algum terreno. E gostaria de continuar a viver aqui perto.

Isso não deverá ser muito difícil, sir. Temos algumas casas excelentes nos nossos livros neste momento, por isso tenho a certeza de que conseguiremos satisfazê-lo.

Obrigado - disse Cornelius, encantado por ter falado com alguém que começara bem o dia.

Estava-se a rir de um artigo da primeira página do jornal local, quando tocaram à campainha. Olhou para o relógio. Faltavam ainda alguns minutos para as dez, por isso não podia ser Elizabeth. Quando abriu a porta, foi saudado por um homem de farda verde, com uma prancheta numa mão e um embrulho na outra.

Assine aqui - foi a única coisa que o mensageiro disse, entregando-lhe um impresso.

Cornelius rabiscou a sua assinatura ao fundo do impresso. Teria perguntado quem lhe enviara o embrulho, se a sua atenção não tivesse sido distraída por um carro a aproximar-se da casa.

Obrigado - disse ele. Deixou o embrulho no vestíbulo e desceu as escadas para cumprimentar Elizabeth.

Quando o carro parou à porta, Cornelius ficou surpreendido ao ver Hugh sentado no banco do passageiro.

Foi muito amável da tua parte receber-nos tão depressa - disse Elizabeth, que parecia ter passado outra noite sem dormir.

Bom dia, Hugh - disse Cornelius, desconfiando que o seu irmão também não pudera dormir toda a noite. - Por favor, entrem para a cozinha, é a única divisão da casa que está quente.

Quando Cornelius os conduzia ao longo do corredor, Elizabeth parou em frente do retrato de Daniel.

Estou muito contente por vê-lo outra vez no seu lugar - disse ela. Hugh acenou a cabeça em sinal de concordância.

Cornelius ficou a olhar para o retrato, que não via desde o leilão.

Sim, está de novo no seu lugar - disse ele, antes de os levar para a cozinha. - Agora, o que vos traz a The Willows num sábado de manhã?

É sobre a mesa Luís XIV - disse Elizabeth num tom de desafio.

Sim, vou ter saudades dela - disse Cornelius. - Mas foi um belo gesto da tua parte, Hugh - acrescentou ele.

Um belo gesto... - repetiu Hugh.

Sim. Suponho que foi a tua maneira de me devolver os cem mil - disse Cornelius. Virando-se para Elizabeth, acrescentou: - Afinal, enganei-me a teu respeito, Elizabeth. Desconfio que a ideia foi tua.

Elizabeth e Hugh ficaram a olhar um para o outro, depois começaram a falar os dois ao mesmo tempo.

Mas nós não... - disse Hugh.

Nós estávamos com esperança... - disse Elizabeth. Depois, calaram-se os dois.

Diz-lhe a verdade - disse Hugh com firmeza.

Oh? - disse Cornelius. - Será que estou enganado a respeito do que aconteceu no leilão ontem de manhã?

Estás, sim - disse Elizabeth, empalidecendo ainda mais. - A verdade é que as coisas ficaram fora de controlo, e eu continuei a licitar durante mais tempo do que devia ter feito - fez uma pausa. - Eu nunca tinha ido a um leilão e quando não consegui ficar com o relógio de pé e depois vi Margaret comprar o Turner tão barato, fiz figura de idiota.

Bem, podes sempre voltar a pô-la à venda - disse Cornelius com fingida tristeza. - É uma bela peça, que certamente manterá o seu valor.

Já averiguámos essa possibilidade - disse Elizabeth.

Mas Mr. Botts diz que só daqui a, pelo menos, três meses haverá outro leilão de mobiliário, e as condições da venda vinham explicadas claramente no catálogo: pagamento dentro de sete dias.

Mas eu tenho a certeza de que, se deixarem a peça com ele...

Sim, ele sugeriu isso - disse Hugh. - Mas nós não sabíamos que os leiloeiros adicionam quinze por cento ao preço de venda, pelo que temos de pagar cento e vinte e seis mil e quinhentas libras. E, o que é pior, se a pusermos de novo à venda, eles ficam também com quinze por cento do preço de licitação, por isso acabaríamos por perder mais de trinta mil.

Sim, é assim que os leiloeiros ganham o dinheiro - disse Cornelius com um sorriso.

Mas nós não temos trinta mil libras, quanto mais cento e vinte e seis mil e quinhentas libras - exclamou Elizabeth.

Cornelius encheu lentamente outra chávena de chá, fingindo estar embrenhado em pensamentos.

Humm - disse, finalmente. - O que me intriga é vocês pensarem que eu vos posso ajudar, tendo em conta os meus problemas financeiros actuais.

Nós pensámos que, uma vez que o leilão rendeu perto de um milhão de libras... - começou Elizabeth.

Muito mais do que se esperava - interrompeu Hugh.

Estávamos com esperança que dissesses a Mr. Botts que tinhas decidido ficar com a peça, e, claro, que nós confirmaríamos que não nos importávamos.

Tenho a certeza de que o fariam - disse Cornelius.

Mas isso não resolve o problema da dívida de dezasseis mil e quinhentas libras ao leiloeiro e um prejuízo ainda maior se, daqui a três meses, a mesa não chegar às cento e dez mil libras.

Elizabeth e Hugh ficaram calados.

Vocês têm alguma coisa que possam vender para ajudar a conseguir o dinheiro? - perguntou finalmente Cornelius.

Só a nossa casa e essa já está hipotecada - disse Elizabeth.

E as vossas acções na empresa? Se as vendessem, tenho a certeza de que seriam mais do que suficientes para cobrir o custo.

Mas quem é que as quereria comprar - perguntou Hugh -, quando só agora a empresa começa a cobrir as despesas.

Eu - disse Cornelius. Pareceram ambos surpreendidos.

     E em troca das vossas acções - prosseguiu Cornelius -, liberto-vos da vossa dívida para comigo e         resolvo o assunto com Mr. Botts.

Elizabeth começou a protestar, mas Hugh perguntou:

Temos alguma alternativa?

Que eu consiga pensar, não - disse Cornelius.

Então, acho que não nos resta muita possibilidade de escolha - disse Hugh, virando-se para a mulher.

E todos os anos que nós investimos na empresa? - lamentou-se Elizabeth.

Tu bem sabes que há algum tempo que a loja não dá um lucro significativo, Elizabeth. Se não aceitarmos a oferta de Cornelius, corremos o risco de passar o resto da vida a pagar a dívida.

Elizabeth ficou invulgarmente silenciosa.

Bem, isso parece estar resolvido - disse Cornelius. - Por que é que não vão conversar com o meu advogado? Ele tratará de tudo.

E tu falas com Mr. Botts? - perguntou Elizabeth.

Assim que assinarem os papéis da cedência das acções, eu resolverei o assunto de Mr. Botts. Tenho a certeza de que estará tudo tratado antes do fim-de-semana.

Hugh baixou a cabeça.

E eu penso que seria sensato - prosseguiu Cornelius, enquanto ambos erguiam a cabeça e olhavam para ele com um ar apreensivo - que Hugh continuasse no Conselho de Administração como presidente, com a remuneração adequada.

Obrigado - disse Hugh, apertando a mão do irmão.

É muito generoso da tua parte, dadas as circunstâncias.

Enquanto percorriam de novo o corredor, Cornelius olhou mais uma vez para o retrato do filho.

Conseguiste encontrar um sítio para viver? - perguntou Elizabeth.

Parece que, afinal, isso não vai ser problema, obrigado, Elizabeth. Ofereceram-me por The Willows uma quantia muito superior à que eu estava à espera e, com mais o dinheiro do leilão, vou poder pagar a todos os meus credores e ficar ainda com uma quantia razoável.

Então, por que é que precisas das nossas acções? - perguntou Elizabeth, dando meia volta para o olhar de frente.

Pela mesma razão que tu querias a minha mesa Luís XIV, minha querida - disse Cornelius abrindo a porta da frente para eles saírem. - Adeus, Hugh - acrescentou ele, enquanto Elizabeth entrava no automóvel.

Cornelius ia voltar para dentro de casa quando viu Margaret a aproximar-se no seu carro novo, por isso ficou à espera dela. Quando ela parou o pequeno Audi, Cornelius abriu a porta do carro para ela sair.

Bom dia, Margaret - disse ele, subindo os degraus e entrando em casa ao seu lado. - É bom voltar a ver-te em The Willows. Já nem me lembro da última vez que cá estiveste.

Cometi um erro terrível - admitiu a irmã, muito antes de terem chegado à cozinha.

Cornelius voltou a encher a chaleira e esperou que ela lhe dissesse o que ele já sabia.

Não vou estar com rodeios, Cornelius. Eu não sabia que havia dois Turners.

Pois há - disse Cornelius, prosaicamente. - Joseph Mallord William Turner, considerado por muitos o melhor pintor inglês de sempre, e William Turner de Oxford, sem qualquer relação de parentesco com o primeiro e que, embora fosse mais ou menos do mesmo período, não está certamente na mesma categoria que o mestre.

Mas eu não sabia... - repetiu Margaret. - Por isso acabei por pagar demasiado dinheiro pelo Turner errado e as artimanhas da minha cunhada não ajudaram nada - acrescentou ela.

Sim, eu fiquei fascinado ao ler esta manhã no jornal que entraste para o Guiness Book ofRecords por teres pago um preço recorde por um quadro desse pintor.

Um recorde que eu bem dispensaria - disse Margaret. - Eu estava com esperança de que tu pudesses falar com Mr. Botts e...

E o quê...? - perguntou Cornelius inocentemente, deitando chá numa chávena para a irmã.

- Lhe explicasses que foi tudo um erro terrível.

- Receio que isso não seja possível, minha querida. Assim que o martelo bate na mesa, a venda está feita. Essa é a lei.

- Talvez me possas ajudar, pagando o quadro - sugeriu Margaret. - Afinal de contas, os jornais dizem que ganhaste quase um milhão de libras só com o leilão.

Mas eu tenho muitos outros compromissos - disse Cornelius com um suspiro -, e, conforme já expliquei à Elizabeth, depois de vocês as duas se terem recusado a alojar-me, tive de arranjar alternativas.

Então, estou arruinada - disse Margaret num tom teatral. - Porque não tenho dez mil libras, já para não falar dos quinze por cento. Essa era outra coisa que eu não sabia. Sabes, eu estava à espera de pôr o quadro à venda na Christie's e obter algum lucro.

«Finalmente a verdade», pensou Cornelius. «Ou, talvez, metade da verdade.»

      Cornelius, tu foste sempre o mais inteligente da família - disse Margaret, com os olhos a encherem-se de lágrimas. - Certamente que consegues pensar numa saída para este dilema.

Enquanto Cornelius andava de um lado para o outro da cozinha como se estivesse embrenhado em pensamentos, a irmã não tirou os olhos dele. Por fim, ele parou em frente dela.

Acho que talvez tenha uma solução.

Qual é? - exclamou Margaret. - Eu concordo com qualquer coisa.

Qualquer coisa?

Qualquer coisa - repetiu ela.

Óptimo, então digo-te o que vou fazer - disse Cornelius. - Eu pago o quadro em troca do teu carro novo.

Margaret ficou sem fala durante algum tempo.

Mas o carro custou-me doze mil libras - disse ela por fim.

Talvez, mas, se o vendesses, não conseguirias mais de oito mil por ele.

Mas depois como é que eu me movimento de um lado para o outro?

Experimenta o autocarro - disse Cornelius. - Eu recomendo-o. Depois de saberes o horário, ele altera toda a tua vida - olhou para o relógio. - De facto, podes começar agora mesmo; há um daqui a cerca de dez minutos.

Mas... - disse Margaret, quando Cornelius estendeu a mão. Depois, com um longo suspiro, ela abriu a mala e entregou as chaves do carro ao irmão.

Obrigado - disse Cornelius. - Não quero tomar-te mais tempo, senão perdes o autocarro, e o próximo é só daqui a trinta minutos - conduziu a irmã para fora da cozinha e ao longo do corredor. Sorriu enquanto lhe abria a porta.

E não te esqueças de ir buscar o teu quadro à casa de leilões, minha querida - disse ele. - Ficará maravilhoso por cima da lareira da tua sala de estar e trará muitas recordações felizes dos tempos que passámos juntos.

Margaret não fez qualquer comentário, deu meia volta e começou a percorrer o longo caminho que ia dar à estrada.

Cornelius fechou a porta e estava prestes a ir para o escritório telefonar a Frank para lhe contar o que acontecera naquela manhã, quando ouviu um barulho oriundo da cozinha. Mudou de direcção e percorreu novamente o corredor. Entrou na cozinha, dirigiu-se ao lava-louças, inclinou-se e beijou-a no rosto.

Bom dia, Pauline - disse ele.

Para que foi isso? - perguntou ela, com as mãos imersas em água cheia de espuma de sabão.

Por teres trazido o meu filho de volta.

Só está emprestado. Se não se portar bem, vai outra vez para minha casa.

Cornelius sorriu.

Isso faz-me lembrar... eu gostaria de aceitar a tua oferta original.

De que é que está a falar, Mr. Barrington?

Tu disseste-me que preferias trabalhar para pagar a tua dívida em vez de venderes o teu carro - retirou o cheque do bolso interior do casaco. - Eu sei exactamente quantas horas trabalhaste cá durante o último mês - disse ele, rasgando o cheque ao meio -, por isso estamos quites.

Isso é muito amável da sua parte, Mr. Barrington, mas preferia que mo tivesse dito antes de eu vender o carro.

Isso não é problema, Pauline, porque eu sou o orgulhoso proprietário de um carro novo.

Mas como? - perguntou Pauline, começando a secar as mãos.

Foi uma prenda inesperada da minha irmã - disse Cornelius, sem mais explicações.

Mas o senhor não conduz, Mr. Barrington.

Eu sei. Por isso tenho uma proposta a fazer-te - disse Cornelius. - Troco o carro pelo retrato de Daniel.

Mas essa troca não é justa, Mr. Barrington. Eu só paguei cinquenta libras pelo quadro e o carro deve valer muito mais.

Então, também tens de concordar em levar-me à vila, de tempos a tempos.

Isso significa que tenho o meu emprego antigo de volta?

Exactamente, se estiveres disposta a desistir do novo.

Já não tenho emprego novo - disse Pauline com um suspiro. - Na véspera de eu começar a trabalhar, arranjaram uma pessoa muito mais nova.

Cornelius abraçou-a.

E, para começar, vamos ter menos desse tipo de coisas, Mr. Barrington.

Cornelius deu um passo atrás.

Claro que podes ter o teu antigo emprego de volta e com um aumento de salário.

O que o senhor considerar apropriado, Mr. Barrington. Afinal de contas, o trabalhador é merecedor do seu empregador.

Cornelius conseguiu, com dificuldade, controlar-se para não desatar à gargalhada.

Isso significa que toda a mobília vai voltar para The Willows?

Não, Pauline. Desde a morte da Millie que esta casa é demasiado grande para mina. Eu devia ter compreendido isso há já algum tempo. Vou procurar uma coisa mais pequena e mudar-me.

Há anos que eu lhe podia ter dito isso - disse Pauline. Ela hesitou. - Mas o simpático Mr. Vintcent continuará a vir jantar consigo às quintas-feiras?

Com certeza, até um de nós morrer - disse Cornelius com uma pequena gargalhada.

Bem, eu não posso ficar aqui a conversar o dia todo, Mr. Barrington. Afinal de contas, o trabalho da mulher nunca acaba.

Exactamente - disse Cornelius, saindo rapidamente da cozinha. Atravessou de novo o vestíbulo, pegou no embrulho e levou-o para o escritório.

Tirara apenas o papel de embrulho quando o telefone tocou. Colocou o embrulho de lado e, quando pegou no auscultador, ouviu a voz de Timothy.

Foi muito simpático da tua parte vir ao leilão, Timothy. Agradeço-te.

Só tenho pena de não ter tido dinheiro suficiente para comprar o jogo de xadrez, tio Cornelius.

Se ao menos a tua mãe e a tua tia tivessem mostrado a mesma contenção...

Não estou a compreender, tio.

Não é importante - disse Cornelius. - Então, o que é que eu posso fazer por ti, jovem?

O tio obviamente que se esqueceu que eu disse que lhe ia ler o resto daquela história, a não ser, claro, que já a tivesse terminado.

Não, com o drama dos últimos dias, esqueci-me completamente. Por que é que não vens amanhã à noite, podes jantar comigo. E antes de te começares a queixar, tenho uma boa notícia: a Pauline está de volta.

Uma notícia excelente, tio Cornelius. Estarei aí amanhã por volta das oito horas.

Até amanhã - disse Cornelius. Pousou o auscultador e voltou para o embrulho meio aberto. Mesmo antes de acabar de o desembrulhar, já sabia exactamente o que ele continha. O seu coração começou a bater com mais força. Finalmente, tirou a tampa da pesada caixa de madeira e olhou para as trinta e duas belíssimas peças de marfim. Havia um bilhete lá dentro: «Um pequeno agradecimento por toda a tua generosidade ao longo dos anos. Hugh.»

Depois recordou-se do rosto da mulher que passara por ele na casa de leilões. Claro, era a secretária do irmão. Era a segunda vez que ele se enganava a julgar alguém.

      Que ironia - disse ele em voz alta. - Se Hugh tivesse posto o jogo à venda na Sotheby's, podia ter   ficado com a mesa Luís XIV e ainda lhe sobraria uma quantia idêntica. Mas, como diria a Pauline, o que conta é a intenção.

Estava a escrever um bilhete ao irmão a agradecer-lhe quando o telefone tocou outra vez. Era Frank, fiável como sempre, a relatar a sua reunião com Hugh.

O teu irmão assinou todos os documentos necessários, e as acções foram transferidas conforme solicitado.

Isso foi rápido - disse Cornelius.

Assim que deste instruções a semana passada, preparei todos os documentos legais. Tu continuas a ser o meu cliente mais impaciente. Queres que leve as acções comigo na quinta-feira à noite?

Não - disse Cornelius. - Eu passo por aí esta tarde para as ir buscar. Isto é, partindo do princípio que a Pauline está livre para me levar à cidade.

Há alguma coisa que me esteja a escapar? - perguntou Frank, num tom de perplexidade.

Não te preocupes, Frank. Eu ponho-te a par dos últimos desenvolvimentos quando nos virmos na quinta-feira à noite.

Timothy chegou a The Willows alguns minutos depois das oito da noite do dia seguinte. Pauline pô-lo imediatamente a trabalhar... a descascar batatas.

Como estão os teus pais? - perguntou Cornelius, tentando descobrir o que o rapaz sabia.

Parecem óptimos, obrigado, tio. A propósito, o meu pai ofereceu-me o cargo de gerente da loja. Começo no princípio do próximo mês.

Parabéns - disse Cornelius. - Estou muito satisfeito. Quando é que ele te fez a oferta?

Na semana passada - respondeu Timothy.

Em que dia?

É importante? - perguntou Timothy.

Penso que talvez seja - respondeu Cornelius, sem qualquer explicação.

O jovem ficou calado durante algum tempo, antes de dizer finalmente:

Sim, foi no sábado à noite, depois de eu ter estado consigo - fez uma pausa. - Não tenho a certeza que a minha mãe esteja muito satisfeita com isso. Eu tencionava escrever-lhe a contar mas, como ia voltar cá para o leilão, resolvi dizer-lhe pessoalmente. Mas depois não tive ocasião de falar consigo.

Então, ele ofereceu-te o emprego antes do leilão?

Foi - disse Timothy. - Quase uma semana antes. - Mais uma vez, o jovem olhou para o tio com um ar intrigado, mas este não lhe deu qualquer explicação.

Pauline colocou um prato de carne assada em frente de cada um deles, e Timothy começou a revelar os seus planos para o futuro da empresa.

Mas o meu pai, embora continue como presidente do Conselho de Administração - disse ele -, prometeu não interferir demasiado. Eu estive a pensar, tio Cornelius, se o tio, agora que é dono de um por cento da empresa, não gostaria de fazer parte do Conselho de Administração?

Cornelius pareceu primeiro surpreendido, depois perplexo.

A sua experiência ser-me-ia útil – acrescentou Timothy - para eu avançar com os meus planos de expansão.

Não sei bem se o teu pai acharia boa ideia eu fazer parte do Conselho de Administração - disse Cornelius com um sorriso irónico.

Não sei porque não - disse Timothy -, afinal de contas, a ideia foi dele.

Cornelius ficou calado durante algum tempo. Ele não estivera à espera de continuar a saber mais coisas sobre os jogadores depois de o jogo ter terminado oficialmente.

Acho que são horas de irmos para cima descobrir se quem se torna primeiro-ministro é Simon Kerslake ou Raymond Gould - disse ele por fim.

Timothy esperou até o tio ter deitado uma generosa medida de brande num copo e ter acendido um charuto, o primeiro no último mês, antes de começar a ler.

Ficou tão absorvido na história que só voltou a levantar os olhos quando virou a última página, onde encontrou um envelope colado ao interior da capa do livro. Estava endereçado a «Mr. Timothy Barrington».

Que é isto? - perguntou ele.

Cornelius ter-lhe-ia dito, mas já estava a dormir.

A campainha da porta tocou às oito, como acontecia todas as quintas à noite. Quando Pauline abriu a porta, Frank entregou-lhe um enorme ramo de flores.

Oh, Mr. Barrington vai gostar muito - disse ela. - Vou pô-las na biblioteca.

Não são para Mr. Barrington - disse Frank, piscando o olho.

Não sei o que deu aos dois - disse Pauline, voltando rapidamente para a cozinha.

Enquanto Frank repetia o guisado de borrego, Cornelius avisou-o de que aquela poderia ser a última refeição que comiam juntos em The Willows.

Isso significa que vendeste a casa? - perguntou Frank, erguendo os olhos.

Significa. Assinámos os contratos esta tarde, com a condição de eu me mudar imediatamente. Depois de uma oferta tão generosa, não me encontro em posição de discutir.

E como vai à procura de uma nova casa?

Acho que encontrei a casa ideal e, assim que a vistoria estiver terminada, faço a minha oferta. Preciso que tu despaches os papéis o mais depressa possível, para não ficar sem casa durante muito tempo.

Certamente que o farei – disse Frank. _- Mas entretanto, é melhor vires acampar em minha casa. Eu sei bem quais são as alternativas.

O pub local, Elizabeth ou Margaret -disse Cornelius, com um sorriso. Erguendo o copo, continuou. - Obrigado pela oferta. Aceito.

Mas há uma condição - disse Frank.

E qual é? - perguntou Cornelius.

Que Pauline venha também, pois não tenho qualquer intenção de passar os meus tempos livres a arrumar o que tu desarrumas.

Que achas, Pauline? - perguntou Cornelius, quando ela entrou na sala.

Eu estou disposta a fazer o serviço de casa dos dois cavalheiros, mas apenas por um mês. Caso contrário, o sr Barrington nunca mais sai de lá.

Eu certicar-me-ei de que não há demoras nos tramites legais prometo - respondeu Frank.

Cornelius inclinou-se para ele com ar de conspiração.

Ela detesta advogados, mas acho que tem uma queda por ti.

Isso pode bem ser, Mr. Barrington, mas não vai impedir de me ir embora ao fim de um mês, se não se tiver mudado para a casa nova.

Acho que é melhor fazeres o depósito na casa muito rapidamente – disse Frank. - Aparecem boas casas no mercado o tempo todo, mas raramente aparecem boas governantas.

Não é altura de os senhores irem ao vosso jogo?

Concordo - disse Cornelius. - Mas, primeiro, um brinde.

À saúde de quem? - perguntou Frank.

Do jovem Timothy - disse Cornelius, erguendo o copo -, que vai iniciar as suas funções como gerente da Barringtons, Chudley, no próximo dia um.

À saúde do Tim.

Sabes que ele me pediu que fizesse parte do Conselho de Administração! - disse Cornelius.

Tu hás-de gostar, e a tua experiência ser-lhe-á útil. Mas isso não explica o motivo por que lhe deste todas as tuas acções na empresa, apesar de ele não te ter comprado o jogo de xadrez.

Essa foi exactamente a razão por que eu queria que ele assumisse o controlo da empresa. Ao contrário da mãe e do pai, Timothy não permitiu que fosse o coração a governar a cabeça.

Frank acenou a cabeça em sinal de assentimento, enquanto Cornelius bebia a última gota de vinho do único copo que se permitiam beber antes de uma partida.

Agora, acho que devo avisar-te - disse Cornelius, levantando-se da cadeira -, que o único motivo por que ganhaste as últimas três partidas seguidas foi, simplesmente, o facto de eu estar a pensar noutras coisas. Agora que essas questões foram resolvidas, a tua sorte está prestes a chegar ao fim.

A ver vamos - disse Frank, enquanto seguiam juntos ao longo do comprido corredor. Os dois homens pararam por um momento para admirar o retrato de Daniel.

Como é que conseguiste obtê-lo de volta? - perguntou Frank.

Tive de fazer um acordo com a Pauline, mas acabámos ambos por ficar com o que queríamos.

Mas como...? - começou Frank.

É uma longa história - respondeu Cornelius - e hei-de contar-ta em pormenor com um copo de brande, depois de ter ganho o jogo.

Cornelius abriu a porta da biblioteca e permitiu que o amigo entrasse à sua frente, para poder observar a sua reacção. Quando se viu perante o jogo de xadrez já preparado, o advogado inescrutável não fez qualquer comentário, dirigiu-se simplesmente ao outro extremo da mesa, ocupou o seu lugar habitual e disse:

Se bem me recordo, o primeiro lance é teu.

Tens razão - disse Cornelius, tentando ocultar a sua irritação. Empurrou a sua rainha para Q4.

De volta ao gambito de abertura ortodoxo. Estou a ver que esta noite vou ter de me concentrar.

Estavam a jogar há cerca de uma hora, sem terem trocado uma só palavra, quando Cornelius, incapaz de suportar o silêncio, perguntou:

Não estás nem um pouco curioso em saber como é que eu consegui ter de volta o meu jogo de xadrez?

Não - disse Frank, com os olhos fixos no tabuleiro. - Não estou nada mesmo interessado.

Mas por que não, seu casmurro?

Porque já sei - disse Frank, movendo o bispo da rainha no tabuleiro.

Como é que podias saber? - perguntou Cornelius, que reagiu fazendo recuar o bispo para defender o seu rei.

Frank sorriu.

Esqueces-te de que Hugh também é meu cliente - disse ele, deslocando a torre do rei para dois quadrados à direita.

Cornelius sorriu.

E pensar que, se ele conhecesse o verdadeiro valor do jogo de xadrez, não teria necessidade de sacrificar as suas acções.

Mas ele conhecia o seu verdadeiro valor - disse Frank, estudando o último lance do seu adversário.

Mas como é que ele podia ter descoberto, se eu e tu éramos as únicas pessoas a saber?

Porque eu lhe disse - respondeu Frank.

Mas por que é que fizeste isso? - perguntou Cornelius, olhando para o seu amigo mais antigo.

Porque era a única forma de eu descobrir se Hugh e Elizabeth estavam a trabalhar juntos.

Então, por que é que ele não licitou o jogo no leilão da manhã?

Precisamente porque ele não queria que a Elizabeth soubesse o que ele tinha em mente. Depois, descobriu que Timothy também queria comprar o jogo para to devolver.

Mas ele podia ter continuado a licitar depois de Timothy ter desistido.

Não, não podia. Se bem te lembras, ele concordara em licitar a mesa Luís XIV e esta foi a última peça a ser leiloada.

Mas a Elizabeth não comprou o relógio de pé, por isso poderia tê-lo licitado.

A Elizabeth não é minha cliente - disse Frank, movendo a rainha no tabuleiro. - Por isso, ela nunca teve conhecimento do verdadeiro valor do jogo de xadrez. Ela acreditou no que tu lhe disseste, que valia, no máximo, algumas centenas de libras, e foi por isso que Hugh deu instruções à sua secretária para que licitasse o jogo à tarde.

Por vezes, não vemos as coisas mais óbvias, mesmo quando elas estão mesmo à frente dos nossos olhos - disse Cornelius, movendo a sua torre para cinco quadrados.

Concordo com essa opinião - disse Frank, movendo a sua rainha e comendo a torre de Cornelius. Levantou os olhos para o adversário e disse:

Acho que é xeque-mate.

                                       A CARTA

Os convidados já estavam todos sentados à mesa do pequeno-almoço quando Muriel Arbuthnot entrou na sala, trazendo na mão o correio da manhã. Retirou um envelope branco e comprido da pilha de cartas e entregou-o à sua amiga mais antiga.

Um olhar intrigado surgiu no rosto de Anna Clairmont. Quem poderia saber que ela estava a passar o fim-de-semana com os Arbuthnots? Depois viu a letra familiar e viu-se obrigada a sorrir perante o engenho dele. Fez votos para que Robert, o marido, que estava sentado no outro extremo da mesa, não tivesse reparado, e sentiu-se aliviada ao ver que ele continuava absorvido no seu exemplar do The Times.

Anna estava a tentar enfiar o polegar no canto do envelope, ao mesmo tempo que olhava cautelosamente para Robert, quando subitamente ele olhou para ela e sorriu. Ela retribuiu o sorriso, deixou cair o envelope no colo, pegou no garfo e enfiou-o num cogumelo morno.

Ela não fez qualquer tentativa de recuperar a carta antes de o marido ter desaparecido, novamente, atrás do jornal. Quando ele voltou para a secção de negócios, ela colocou o envelope ao seu lado direito, pegou na faca da manteiga e enfiou-a no canto em que tinha o polegar. Lentamente, começou a abrir o envelope. Terminada esta tarefa, voltou a colocar a faca no seu lugar ao lado da manteigueira.

Antes de fazer o gesto seguinte, olhou outra vez na direcção do marido, para ver se ele ainda estava escondido atrás do jornal. Estava.

Segurou no envelope com a mão esquerda, ao mesmo tempo que retirava a carta com a direita. Depois, colocou o envelope dentro da mala que tinha ao seu lado.

Baixou os olhos para o familiar papel de carta creme Basildon Bond, dobrado em três. Mais um olhar casual na direcção de Robert; como ele permanecia invisível, ela desdobrou a carta de duas páginas.

Como sempre, a primeira página não tinha data, nem endereço e estava escrita em papel de continuação.

Minha querida Titânia,

A primeira noite de Sonho de Uma Noite de Verão em Stratford, seguida da primeira noite em que tinham dormido juntos. Duas coisas novas na mesma noite, comentara ele.

Estou sentado no meu quarto, o nosso quarto, a anotar estes pensamentos, poucos momentos depois de me teres deixado. Esta é a terceira tentativa, pois não consigo encontrar as palavras certas para te dizer o que realmente sinto.

Anna sorriu. Para um homem que fizera fortuna com palavras, devia ter-lhe sido difícil admiti-lo.

Ontem à noite, tu foste tudo o que um homem pode querer numa amante. Foste excitante, meiga, provocadora e, por um magnífico momento, puta.

Há mais de um ano que nos encontrámos no jantar dos Selwyns, em Norfolk, e, como já te disse muitas vezes, nessa noite desejei que voltasses para casa comigo. Fiquei acordado toda a noite a imaginar-te deitada ao lado do estropício.

Anna olhou para o outro extremo da mesa e viu que Robert chegara à última página do jornal.

Personagem de Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare. (N. da T.)

E depois houve aquele encontro acidental em Glyndebourne, mas ainda iriam decorrer onze dias até seres infiel pela primeira vez e, mesmo assim, foi preciso o estropício estar ausente em Bruxelas. Essa noite passou-se demasiado depressa para mim.

Não consigo imaginar o que o estropício teria pensado, se te tivesse visto na tua farda de criada. Provavelmente, teria partido do princípio que arrumavas sempre a sala da casa de Lonscale Avenue com uma blusa branca transparente, sem soutien, saia de cabedal justa com fecho à frente, meias de rede e sapatos de salto alto fino, não esquecendo o bâton cor-de-rosa-choque.

Anna ergueu de novo os olhos e interrogou-se a si própria se estaria a corar. Se ele realmente se divertira tanto, ela teria de ir outra vez fazer compras ao Soho, assim que voltasse para a cidade. Continuou a ler a carta.

Minha querida, não há nada que não me agrade quando fazemos amor, mas confesso que o que mais me excita são os locais que escolhes quando tens apenas uma hora para o almoço. Recordo-me de todos eles. No banco de trás do meu Mercedes, no parque de estacionamento da NCP em Mayfair; o monta-cargas da Harrods; a casa de banho do Caprice. Mas o mais excitante de todos foi aquele pequeno camarote de Convent Garden durante uma récita de Tristão e Isolda. Uma vez durante o primeiro intervalo e outra durante o último acto, bem, é uma ópera comprida.

Anna riu-se e voltou a colocar rapidamente a carta no colo quando Robert espreitou pelo lado do jornal.

O que te fez rir, minha querida? - perguntou ele.

A fotografia de James Bond a aterrar na Dome - respondeu ela. Robert pareceu intrigado. - Na primeira página.

Ah, sim - disse Robert, passando os olhos pela primeira página, mas sem se rir e voltando rapidamente para a secção de negócios.

Anna pegou outra vez na carta.

O que mais me enlouquece no facto de passares o fim-de-semana com Muriel e Reggie Arbuthnot é a ideia de estares na mesma cama que o estropício. Tenho tentado convencer-me que, uma vez que os Arbuthnots ainda pertencem à família real, provavelmente, deram-vos quartos separados.

Anne acenou a cabeça em sinal de concordância, desejando poder dizer-lhe que ele adivinhara correctamente.

E é verdade que ele ressona como o QEII a entrar no cais de Southampton? Estou mesmo a vê-lo agora, sentado no outro extremo da mesa do pequeno--almoço. Casaco de tweed Harris, calças cinzentas, camisa aos quadrados e uma gravata do MCC, como era considerado moda pela revista Hare and Hound por volta de 1966.

Desta vez, Anna desatou a rir e só foi salva quando Reggie Arbuthnot se levantou da mesa e perguntou:

Alguém quer jogar uma partida de ténis de pares? O boletim meteorológico prevê que a chuva pare muito antes do fim da manhã.

Eu jogo - disse Anna, escondendo a carta debaixo da mesa.

E tu, Robert? - perguntou Reggie.

Anne viu o marido dobrar o The Times, colocá-lo à sua frente em cima da mesa e abanar a cabeça.

«Oh, meu Deus!», pensou Anna. «Ele tem um casaco de tweed vestido e uma gravata do MCC.»

Eu gostaria muito - disse Robert -, mas, infelizmente, tenho de fazer várias chamadas telefónicas.

Marylebone Cricket Club, a Federação de Críquete Inglesa. (N. da T.)

Num sábado de manhã? - comentou Verónica, que estava ao pé do aparador, a encher o prato pela segunda vez.

É verdade - respondeu Robert. - Os criminosos não têm semanas de cinco dias e quarenta horas, por isso não estão à espera que os seus advogados as tenham. - Anna não se riu. Afinal de contas, ela ouvira-o fazer aquela mesma observação todos os sábados durante os últimos sete anos.

Robert levantou-se da mesa, olhou para a mulher e disse:

Se precisares de mim, minha querida, estou no meu quarto.

Anna acenou a cabeça em sinal de concordância e ficou à espera que ele saísse da sala.

Estava prestes a recomeçar a ler a carta, quando reparou que Robert deixara os óculos em cima da mesa. Levar--lhos-ia assim que terminasse o pequeno-almoço. Colocou a carta à sua frente, em cima da mesa, e concentrou a sua atenção na segunda página.

Deixa-me dizer-te o que planeei para o fim-de-semana do nosso aniversário enquanto o estropício estiver na conferência em Leeds. Marquei outra vez um quarto no Lygon Arms, por isso estaremos no mesmo quarto em que passámos a nossa primeira noite juntos. Comprei bilhetes para All is Well. Mas eu planeio uma mudança de ambiente quando voltarmos de Stratford para a privacidade do nosso quarto em Broadway.

Quero ser atado à cama de dossel, contigo de pé, vestida com um uniforme de sargento da Polícia: cassetete, apito, algemas e um fato preto justo com botões prateados à frente, que irás desabotoar lenta, lentamente, revelando um soutien preto. E, minha querida, só quero que me libertes quando te tiver feito gritar bem alto, como fizeste no parque de estacionamento subterrâneo em Mayfair.

Até essa altura,

O teu amado Oberon * ( nota )

* ( Nota ) - Personagem de Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare. (N. da T.)

Anna ergueu a cabeça e sorriu, perguntando a si própria onde é que iria arranjar uma farda de sargento da Polícia. Estava prestes a voltar para a primeira página para reler a carta quando reparou no P. S.

1. S.: O que estará o estropício a fazer neste momento?

Anna ergueu a vista e viu que os óculos já não estavam em cima da mesa.

Que patife é capaz de escrever uma carta tão escandalosa a uma mulher casada? - perguntou Robert, ajustando os óculos.

Anna virou-se e viu, horrorizada, o marido atrás dela a olhar para a carta, com a testa a ficar coberta de gotas de suor.

Não me perguntes - disse Anna calmamente, ao mesmo tempo que Muriel surgia ao seu lado, com a raquete de ténis na mão. Anna dobrou a carta, entregou-a à sua amiga mais antiga e disse: - Fascinante, minha querida, mas, para teu bem, espero que Reggie nunca descubra.

                                  O CRIME COMPENSA

Kenny Merchant, não era esse o seu nome verdadeiro mas, afinal, havia muito pouco de verdadeiro em Kenny, escolhera o Harrods numa tranquila manhã de segunda-feira, como local para a primeira parte da operação.

Kenny vestia um fato às riscas, camisa branca e gravata do regimento da Guarda. Poucos clientes da loja saberiam que era uma gravata da Guarda, mas ele estava confiante que o empregado que ele seleccionara para o atender reconheceria imediatamente as riscas vermelhas e azul-escuras.

A porta foi-lhe aberta por um porteiro que estivera no Coldstreams e que, ao reconhecer a gravata, lhe fez imediatamente continência. Esse mesmo porteiro não lhe fizera continência nas várias visitas que fizera durante a semana anterior mas, nessas ocasiões, Kenny trazia vestido um fato lustroso, muito usado, uma camisa com o colarinho desapertado e óculos escuros. Mas, afinal, a semana anterior fora apenas para reconhecimento; hoje, ele planeava ser preso.

Embora o Harrods tenha mais de cem mil clientes por semana, o período mais calmo é sempre entre as dez e as onze da manhã de segunda-feira. Kenny conhecia os enormes armazéns em todos os seus pormenores, tal como um adepto do futebol conhece todas as estatísticas da sua equipa preferida.

Ele sabia onde estavam colocadas todas as câmaras CCTV e conseguia reconhecer, à distância de cem metros, qualquer dos guardas de segurança. Ele até sabia o nome do empregado que o iria atender nessa manhã, embora Mr. Parker não fizesse a mínima ideia de que fora seleccionado para ser uma minúscula roda da bem oleada máquina de Kenny.

Quando Kenny apareceu no departamento de joalharia nessa manhã, Mr. Parker estava a falar com um jovem empregado sobre as alterações que queria que fossem feitas na vitrina.

Bom dia, sir - disse ele, voltando-se para o primeiro cliente do dia. - Em que é que lhe posso ser útil?

Estou à procura de botões de punho - disse Kenny, no tom seco que ele teve esperança que o fizesse soar como um oficial da Guarda.

Com certeza, sir - disse Mr. Parker.

Kenny divertia-se ao ver a forma respeitosa como era atendido, devido ao facto de usar a gravata da Guarda, que comprara no dia anterior na secção masculina por vinte libras.

Algum estilo em particular? - perguntou o empregado.

Eu preferia de prata.

Com certeza, sir - disse Mr. Parker, colocando seguidamente várias caixas de botões de punho de prata em cima do balcão.

Kenny já sabia os que queria, pois escolhera-os na tarde do sábado anterior.

É aqueles? - perguntou, apontando para a prateleira de cima. Quando o empregado se voltou, Kenny verificou a câmara de TV de vigilância e deu um passo à direita, para se certificar que o viam mais nitidamente. Enquanto Mr. Parker estendia o braço para tirar os botões de punho, Kenny fez deslizar os que escolhera pelo balcão e enfiou- -os no bolso do casaco antes de o empregado se virar.

Pelo canto do olho, Kenny viu um guarda de segurança dirigir-se rapidamente a ele, ao mesmo tempo que falava no seu walkie-talkie.

Desculpe, sir - disse o guarda, tocando-lhe no cotovelo. - Agradecia que me acompanhasse.

Que se passa? - perguntou Kenny, tentando parecer aborrecido, enquanto um segundo guarda de segurança surgia do outro lado.

Talvez seja sensato acompanhar-nos, para podermos discutir o assunto em privado - sugeriu o segundo guarda, segurando-lhe o braço com um pouco mais de firmeza.

Nunca fui tão insultado em toda a minha vida - disse Kenny, falando agora em voz alta. Tirou os botões de punho do bolso, voltou a colocá-los em cima do balcão, acrescentando: - Eu tencionava pagá-los.

O guarda pegou na caixa. Para sua surpresa, o irado cliente acompanhou-o até à sala de entrevistas sem dizer mais uma palavra.

Ao entrar na pequena sala de paredes verdes, Kenny foi mandado sentar no extremo de uma secretária. Um dos guardas voltou para as suas tarefas no rés-do-chão, enquanto o outro permanecia ao pé da porta. Kenny sabia que, num dia normal, eram presas quarenta e duas pessoas por roubo no Harrods, e que mais de noventa por cento delas iam a tribunal.

Alguns minutos depois, a porta abriu-se e um homem alto e magro, com um ar cansado no rosto, entrou na sala. Sentou-se no outro lado da secretária e olhou para Kenny antes de abrir uma gaveta e retirar de lá um impresso verde.

Nome? - perguntou ele.

Kenny Merchant - respondeu Kenny sem hesitar.

Morada?

St. Luke's Road, número 42, Putney.

Profissão.

Desempregado.

Kenny passou vários minutos a responder com exactidão às perguntas do homem alto. Quando chegou à última pergunta, o inquiridor demorou um momento a examinar os botões de punho de prata antes de preencher a última linha. Valor: 90 libras. Kenny conhecia perfeitamente o significado dessa quantia específica.

O impresso foi seguidamente rodado sobre a mesa para Kenny assinar, o que, para surpresa do inquiridor, ele fez com um floreio.

O guarda acompanhou de seguida Kenny a uma sala adjacente, onde ficou à espera durante quase uma hora. O

guarda ficou surpreendido por Kenny não lhe perguntar o que iria acontecer a seguir. Todos os outros o faziam. Mas Kenny, apesar de nunca ter sido acusado de roubar em lojas anteriormente, sabia exactamente o que aconteceria a seguir.

Cerca de uma hora mais tarde, foi acompanhado a uma carrinha do Harrods e, juntamente com cinco outras pessoas, conduzido ao Tribunal de Horseferry Road. Aí, seguiu-se uma outra longa espera antes de comparecer perante o magistrado. A acusação foi-lhe lida e ele deu-se como culpado. Como o valor dos botões de punho era inferior a cem libras, Kenny sabia que lhe seria aplicada uma multa em vez de pena de prisão, e esperou pacientemente que o magistrado lhe fizesse a mesma pergunta que fizera quando Kenny se sentara ao fundo do tribunal, na semana anterior, a assistir a vários casos.

Há alguma coisa que gostaria que eu tomasse em consideração antes de ler a sentença?

Sim, Sr. Dr. Juiz - disse Kenny. - Roubei um relógio no Selfridges a semana passada. Isso está a pesar-me na consciência desde então e gostaria de o devolver - sorriu para o magistrado.

O magistrado acenou a cabeça em sinal de assentimento e, olhando para o endereço do réu no impresso à sua frente, deu ordens a um agente da Polícia para que acompanhasse Mr. Merchant a sua casa, para ir buscar a mercadoria roubada. Por um momento, pareceu que o magistrado ia elogiar o criminoso pelo seu gesto de civismo mas, tal como Mr. Parker, o guarda e o inquiridor, ele não compreendeu que era simplesmente mais uma roda dentada de um roda maior.

Kenny foi conduzido à sua casa em Putney por um jovem agente da Polícia, que lhe disse que só começara a trabalhar algumas semanas antes.

«Então, vais ter um choque», pensou Kenny, abrindo a porta da sua casa e convidando o agente a entrar.

Oh, meu Deus! - disse o jovem, assim que entrou na sala. Deu meia volta, saiu a correr do apartamento e chamou imediatamente o sargento da sua esquadra pelo rádio do automóvel. Dentro de minutos, havia quatro carros-patrulha estacionados na Luke's Road, à porta da casa de Kenny. O inspector Travis entrou e encontrou Kenny sentado na entrada, com o relógio roubado na mão.

O relógio que vá para o diabo! - disse o inspector. - E isto tudo? - perguntou ele, esquadrinhando a sala com

os braços.

É tudo meu - disse Kenny. - A única coisa que admito ter roubado, e estou agora a devolver, é um relógio Timex Masterpiece, no valor de quarenta e quatro libras,

roubado no Selfridges.

Qual é o teu jogo, rapaz? - perguntou Travis.

Não faço a mínima ideia do que quer dizer - disse Kenny com um ar inocente.

Tu sabes exactamente o que eu quero dizer - disse o inspector. - Esta casa está cheia de joalharia cara, quadros, objectos de arte e antiguidades... - que valem cerca de trezentas mil libras, gostaria Kenny de lhe ter dito - ... e não acredito que alguma destas coisas te pertença.

Então, vai ter de o provar, inspector, porque, se não o fizer, a lei parte do princípio que as coisas são minhas. E, se assim for, eu poderei fazer delas o que quiser. - O inspector franziu o sobrolho, disse a Kenny quais eram os seus direitos e prendeu-o por furto.

A vez seguinte que Kenny apareceu em tribunal foi no Old Bailey, perante um juiz vestido a rigor com cabeleira e toga. Kenny estava adequadamente vestido para a ocasião com um fato às riscas, camisa branca e gravata da Guarda. Sentou-se no banco dos réus, acusado do furto de bens no valor de vinte e quatro mil libras.

A Polícia fizera um inventário completo de tudo o que encontrara no apartamento e passara os seis meses seguintes a tentar encontrar os donos do tesouro. Mas, apesar de ter posto anúncios em todos os jornais reconhecidos e até mesmo de ter mostrado os bens roubados no programa de televisão Crimewatch, e de os ter colocado em exposição para que o público os visse, mais de oitenta por cento

não foram reclamados.

O inspector Travis tentou fazer um acordo com Kenny, dizendo que recomendaria uma sentença leve se ele colaborasse e revelasse quem eram os proprietários dos bens.

Sou eu - repetiu Kenny.

Se vai ser esse o teu jogo, não esperes qualquer ajuda da nossa parte - disse o inspector.

Kenny nunca estivera à espera da ajuda por parte de Travis. Isso nunca fizera parte do plano original.

Kenny sempre acreditara que, se se for sovina na escolha de um advogado, pode-se acabar por pagar bem caro. Assim, quando se sentou no banco dos réus, foi defendido por uma importante firma de advogados e por um elegante causídico que cobrava mil libras por dia.

Kenny declarou-se culpado da acusação, ciente de que a Polícia, quando testemunhasse, não poderia fazer referência à mercadoria que não fora reclamada e que a lei, por conseguinte, partia do princípio que lhe pertencia. De facto, a Polícia já lhe devolvera, com grande relutância, a mercadoria que não fora capaz de provar que fora roubada, e ele passara-a rapidamente a um comerciante por um terço do seu valor, comparado com o décimo que um receptador lhe oferecera seis meses antes.

O Dr. Duveen, o advogado de defesa, fez notar ao juiz que não só este era o primeiro delito do seu cliente, como fora ele que convidara a Polícia a acompanhá-lo a casa, sabendo perfeitamente que a mercadoria roubada seria descoberta e que ele seria preso. Poderia haver maior prova do arrependimento e dos remorsos de um homem?, perguntou ele.

O Dr. Duveen prosseguiu, fazendo notar ao tribunal que Mr. Merchant estivera nove anos nas Forças Armadas e que fora honrosamente dispensado depois de ter prestado serviço activo no Golfo, mas desde que saíra parecia ter dificuldades em se adaptar à vida civil. O Dr. Duveen não considerava isto uma desculpa para o comportamento do seu cliente, mas gostaria que o tribunal soubesse que Mr. Merchant jurara não voltar a cometer um crime deste género e, por conseguinte, ele pedia ao juiz que aplicasse uma sentença suave.

Kenny estava de pé no banco dos réus, de cabeça baixa.

O juiz fez-lhe uma palestra durante algum tempo sobre a malvadez do seu crime, mas acrescentou que tomara em consideração todas as circunstâncias atenuantes que rodeavam o caso e decidira-se por uma pena de prisão de dois anos.

Kenny agradeceu-lhe e garantiu que não voltaria a incomodá-lo. Ele sabia que o crime seguinte que planeara não poderia terminar com uma pena de prisão.

O inspector Travis viu Kenny ser levado para a prisão; depois, voltando-se para o advogado de acusação, perguntou:

Quanto dinheiro acha que aquele estafermo ganhou ao cingir-se à lei?

Eu diria que cerca de cem mil libras - respondeu o advogado da Coroa.

Mais do que eu conseguiria poupar a vida inteira - comentou o inspector, antes de dizer uma série de palavras que nenhum dos presentes seria capaz de repetir às suas mulheres ao jantar nessa noite.

O advogado de acusação não estivera muito longe. Alguns dias antes, Kenny depositara um cheque de oitenta e seis mil libras no Hong-Kong & Shangai Bank.

O que o inspector não poderia saber era que Kenny completara apenas metade do seu plano e que, agora que o dinheiro estava no seu lugar, ele estava pronto para se preparar para uma reforma antecipada.

Antes de ser levado para a cadeia, fez mais um pedido ao seu advogado.

Enquanto esteve encarcerado na Penitenciária Aberta Ford, Kenny utilizou bem o seu tempo. Passou todos os momentos livres a analisar as diversas propostas de lei que estavam actualmente em debate na Câmara dos Comuns. Ele pôs rapidamente de parte vários Livros Verdes, Livros Brancos e Leis sobre saúde, educação e serviços sociais, até encontrar a Lei de Protecção de Dados; começou a estudar cada um dos artigos com a diligência de um membro da Câmara dos Comuns na fase de relatório da lei. Seguiu todas as emendas à medida que estas eram apresentadas à Câmara, bem como todos os artigos novos à medida que os mesmos foram sendo aprovados. Quando a proposta passou a lei em 1992, ele pediu uma reunião com o seu advogado.

O advogado escutou atentamente as perguntas de Kenny e, quando se viu sem respostas, admitiu que teria de pedir a opinião de outro advogado.

Eu entrarei imediatamente em contacto com Mr. Duveen - disse ele.

Enquanto esperava pela opinião do seu advogado, Kenny pediu que lhe fossem fornecidos exemplares de todas revistas de negócios publicadas no Reino Unido.

O advogado tentou não parecer intrigado com este pedido, tal como sucedera quando ele pedira que lhe fossem enviadas todas as propostas de lei que estavam a ser debatidas no Parlamento. Ao longo das semanas seguintes, chegaram à prisão inúmeros pacotes de revistas, e Kenny passou todo o seu tempo livre a recortar todos os anúncios que apareciam em três ou mais revistas.

No dia em que fez um ano que Kenny fora condenado, o Dr. Duveen compareceu em tribunal para requerer a libertação antecipada do seu cliente, tendo em conta o seu comportamento exemplar. Após alguma ponderação, o juiz decidiu libertar Kenny, colocando-o de novo num mundo insuspeito.

Quando Kenny saiu da Penitenciária Aberta Ford   depois de ter cumprido apenas metade da pena, a única coisa que levou consigo foi um envelope grande e castanho, contendo três mil anúncios e o parecer escrito do advogado sobre o artigo 9º, parágrafo 6, subsecção (a) da Lei de Protecção de Dados de 1992.

Uma semana depois, Kenny apanhou um avião para Hong-Kong.

A Polícia de Hong-Kong informou o inspector Travis que Mr. Merchant se alojara num pequeno hotel e que passava ^o dia a visitar tipografias locais, a pedir orçamentos para a publicação de uma revista intitulada Business Entreprise UK, e a saber o preço de papel timbrado e envelopes. A revista, descobriram eles rapidamente, conteria alguns artigos sobre finanças e acções, mas o grosso das páginas seria preenchido por pequenos anúncios.

A Polícia de Hong-Kong admitia ter ficado intrigada quando descobriu o número de exemplares que Kenny mandara imprimir.

Quantos? - perguntou o inspector Travis.

Noventa e nove.

Noventa e nove? Tem de haver uma razão - foi a reacção imediata de Travis.

Ele ficou ainda mais perplexo quando descobriu que já existia uma revista chamada Business Entreprise, que tinha uma tiragem de dez mil exemplares por mês.

A Polícia de Hong-Kong informou mais tarde que Kenny encomendara duas mil e quinhentas folhas de papel timbrado e a mesma quantidade de envelopes castanhos.

Que andará ele a fazer? - perguntou Travis. Ninguém em Hong-Kong ou Londres encontrou uma

resposta convincente.

Três semanas depois, a Polícia de Hong-Kong informou que Mr. Merchant fora visto numa estação dos Correios local a enviar duas mil e quatrocentas cartas para endereços em todo o Reino Unido.

Na semana seguinte, Kenny apanhou de novo o avião para Heathrow.

Embora Travis mantivesse Kenny sob vigilância, o jovem agente da Polícia não conseguia relatar nada de invulgar, para além do facto de o carteiro local lhe ter dito que Mr. Merchant estava a receber cerca de vinte cinco cartas por dia e que ele ia todas as tardes ao Lloyd's Bank, da King's Road, depositar vários cheques que variavam entre duzentas e duas mil libras. O agente não disse que, todas as manhãs, Kenny, antes de entrar no Banco, lhe acenava com a mão.

Ao fim de seis meses, o volume de cartas era já muito reduzido e as visitas de Kenny ao Banco quase pararam.

A única informação que o agente da Polícia conseguiu transmitir ao inspector Travis foi que Mr. Merchant se mudara do seu pequeno apartamento da St. Luke's Road, Putney, para uma imponente mansão em Chester Square, SW1.

Na altura em que Travis dirigiu a sua atenção para casos mais urgentes, Kenny apanhou novamente o avião para Hong-Kong.

Quase exactamente um ano depois. - Foi o único comentário do agente.

A Polícia de Hong-Kong informou o inspector que Kenny estava a seguir praticamente a mesma rotina anterior, com a única diferença de que, desta vez, se instalara numa suite do Mandarin. Seleccionara a mesma tipografia, que confirmou que o seu cliente fizera uma nova encomenda de Business Enterprise UK. O segundo número continha alguns artigos novos, mas teria apenas mil novecentos e setenta e um anúncios.

Quantos exemplares vai ele publicar desta vez? - perguntou o inspector.

Os mesmos que da outra vez - foi a resposta. - Noventa e nove. Mas desta vez ele encomendou apenas duas mil folhas de papel timbrado e dois mil envelopes.

Que andará ele a fazer? - repetiu o inspector. Desta vez, também não teve resposta.

Quando a revista saiu da tipografia, Kenny voltou aos Correios e enviou mil novecentas e setenta e uma cartas antes de apanhar um voo da British Airways de regresso a Londres, em primeira classe.

Travis sabia que Kenny estava, de algum modo, a violar a lei, mas não tinha pessoal nem recursos para continuar a investigar o assunto. E Kenny poderia ter continuado a mungir eternamente esta vaca específica, se uma queixa proveniente de uma das principais empresas da Bolsa de Valores não tivesse chegado à secretária do inspector.

Mr. Cox, director financeiro da empresa, informou que recebera uma factura de quinhentas libras por um anúncio que a sua empresa não encomendara.

O inspector visitou Mr. Cox no seu escritório na City. Após uma longa conversa, Cox concordou em ajudar a Polícia, fazendo uma queixa.

A Coroa levou praticamente seis meses a preparar o processo antes de o enviar ao Ministério Público para consideração. Este levou quase o mesmo tempo a decidir levantar um processo mas, quando o fez, o inspector seguiu directamente para Chester Square e prendeu pessoalmente Kenny, sob acusação de fraude.

Mr. Duveen compareceu em tribunal na manhã seguinte, insistindo que o seu cliente era um cidadão exemplar. O juiz libertou Kenny sob fiança, mas exigiu que ele entregasse o seu passaporte ao tribunal.

Por mim, tudo bem - disse Kenny ao seu advogado. - Só vou precisar dele daqui a dois meses.

O julgamento teve início no Old Bailey, seis semanas depois, e, mais uma vez, Mr. Duveen foi o advogado de defesa de Kenny. O oficial de justiça leu as sete acusações de fraude, enquanto Kenny permaneceu em sentido no banco dos réus. Declarou-se inocente de todas as acusações. Ambos os advogados fizeram as suas alegações iniciais mas o júri, como acontece em muitos julgamentos financeiros, não pareceu estar a seguir os argumentos pormenorizados dos advogados.

Kenny aceitou que doze bons homens e mulheres decidissem se acreditavam nele ou em Mr. Cox, pois não havia muita esperança de que eles compreendessem os pormenores da Lei de Protecção de Dados de 1992.

Quando Mr. Cox leu o seu juramento do terceiro dia, Kenny achou que ele era o tipo de homem a quem se poderia confiar o último tostão. De facto, ele talvez investisse alguns milhares na empresa dele.

O Dr. Matthew Jarvis, advogado de acusação, fez uma série de perguntas a Mr. Cox como objectivo de demonstrar que este era um homem tão honesto que achava que tinha o dever de garantir que a fraude perpetrada pelo réu fosse eliminada de uma vez para sempre.

O Dr. Duveen levantou-se para efectuar o contra-interrogatório.

Permita-me que comece, Mr. Cox, por lhe perguntar se alguma vez viu o anúncio em causa.

Mr. Cox lançou-lhe um olhar indignado.

Claro que vi - respondeu ele.

E ele tinha uma qualidade que, em circunstâncias normais, a sua empresa consideraria aceitável?

Sim, mas...

Nada de «mas», Mr. Cox. Tinha ou não tinha uma qualidade considerada aceitável pela sua empresa?

Tinha - respondeu Mr. Cox, através de lábios franzidos.

A sua empresa acabou por pagar o anúncio?

Certamente que não - disse Mr. Cox. - Um funcionário meu duvidou do envelope e chamou-me a atenção para ele.

Muito louvável - disse Duveen. - E esse mesmo funcionário reparou na frase respeitante ao pagamento da factura?

Não, fui eu que a vi - disse Mr. Cox, olhando para o júri com um sorriso de satisfação.

Muito interessante, Mr. Cox. E consegue recordar-se das palavras exactas da factura?

Sim, penso que sim - disse Mr. Cox. Hesitou, mas apenas por um momento. «Se não estiver satisfeito com o produto, não é obrigado a pagar esta factura.»

«Não é obrigado a pagar esta factura» - repetiu Duveen.

Sim - respondeu Mr. Cox. - Era o que dizia.

Por isso, não pagou a factura.

Não, não paguei.

Permita-me que resuma a sua posição, Mr. Cox. O senhor recebeu um anúncio grátis inserido na revista do meu cliente, de uma qualidade que a sua empresa consideraria aceitável se tivesse sido publicado em qualquer outra publicação periódica. Está correcto?

Sim, mas... - começou Mr. Cox a dizer.

Não tenho mais perguntas, Meretíssimo. Duveen evitara falar nos clientes que tinham pago os anúncios, pois nenhum deles estava disposto a comparecer em tribunal com receio da publicidade negativa que se seguiria. Kenny achou que o seu advogado destruirá a principal testemunha de acusação, mas Duveen avisou-o de que Jarvis tentaria fazer-lhe a mesma coisa assim que entrasse no púlpito das testemunhas.

O juiz sugeriu um intervalo para o almoço. Kenny não almoçou, folheou mais uma vez a Lei da Protecção de Dados.

Quando a sessão recomeçou depois do almoço, Mr. Duveen informou o juiz que só chamaria uma testemunha.

Kenny entrou no púlpito das testemunhas vestido com um fato azul-escuro, camisa branca e gravata da Guarda.

Mr. Duveen passou bastante tempo a permitir que Kenny falasse sobre a sua carreira no Exército e sobre o serviço que prestara ao seu país no Golfo, sem referir os serviços que, mais recentemente, prestara como hóspede de Sua Majestade. Seguidamente, orientou Kenny através das provas em causa. Quando Duveen regressou ao seu lugar, o júri não tinha qualquer dúvida de que estava a lidar com um homem de negócios de irrepreensível rectidão.

O Dr. Matthew Jarvis levantou-se lentamente da cadeira e demorou, propositadamente, algum tempo a arrumar os seus papéis antes de fazer a primeira pergunta.

Mr. Merchant, permita-me que comece por lhe fazer perguntas sobre a revista em causa, Business Enterprise UK. Por que é que seleccionou esse nome específico para a sua revista?

Ele representa tudo aquilo em que acredito.

Sim, tenho a certeza disso, Mr. Merchant, mas não é verdade que estava a tentar enganar potenciais anunciantes, fazendo com que eles confundissem a sua publicação com a Business Entreprise, uma revista com muitos anos e uma reputação impecável. Não era isso o que realmente pretendia?

Não fiz nada que a Woman não faça com a Woman.s Own ou a House and Garden com Homes and Gardens - retorquiu Kenny.

Mas todas as revistas que acabou de referir vendem muitos milhares de exemplares. Quantos exemplares da Business Enterprise UK publicou?

Noventa e nove - respondeu Kenny.

Só noventa e nove? Então, era pouco provável que chegasse ao topo da lista das revistas mais vendidas, não é verdade? Por favor, esclareça o tribunal sobre o motivo por que escolheu esse número.

Porque é inferior a cem, e a Lei de Protecção de Dados de 1992 define uma publicação como consistindo em, pelo menos, cem exemplares. Artigo 2º, subsecção 11.

Isso poderá bem ser, Mr. Merchant, o que é mais um motivo - sugeriu o Dr. Jarvis - para considerar escandaloso esperar que os clientes pagassem quinhentas libras por um anúncio na sua revista que não tinha sido encomendado por eles.

Escandaloso, talvez, mas não é crime - disse Kenny, com um sorriso cândido.

Permita-me que prossiga, Mr. Merchant. Talvez possa explicar ao tribunal em que é que baseou a sua decisão sobre a quantia a cobrar a cada uma das empresas.

Descobri qual era a quantia que os departamentos de contabilidade eram autorizados a gastar, sem autorização superior.

E que trapaça perpetrou para descobrir essa informação?

Telefonei à contabilidade e pedi para falar com o encarregado da facturação.

Uma vaga de gargalhadas percorreu a sala do tribunal. O juiz fez soar o martelo e exigiu que se fizesse ordem no tribunal.

E foi com base apenas nessa informação que tomou a decisão sobre quanto cobrar?

Não inteiramente. Eu tinha uma tabela. Os preços variavam entre duas mil libras para uma página inteira a cores e duzentas libras para um quarto de página a preto e branco. Acho que é um preço bastante competitivo, pelo menos, um pouco inferior à média nacional.

Certamente que estava abaixo da média nacional para o número de exemplares produzidos - disse o Dr. Jarvis num tom ríspido.

Já conheci pior.

Talvez possa dar um exemplo ao tribunal - disse o Dr. Jarvis, confiante de que encurralara o réu.

O Partido Conservador.

Não estou a compreendê-lo, Mr. Merchant.

Eles organizam um jantar uma vez por ano em Gosvenor House. Vendem cerca de quinhentos programas e cobram cinco mil libras por um anúncio de página inteira a cores.

Mas, pelo menos, eles dão aos potenciais anunciantes a possibilidade de se recusarem a pagar tais preços.

Eu também - retorquiu Kenny.

Por conseguinte, concorda que é ilegal enviar facturas a empresas que nunca viram o produto?

É possível que seja ilegal no Reino Unido - disse Kenny - e até mesmo na Europa. Mas já não é ilegal se a revista for produzida em Hong-Kong, uma colónia britânica, e as facturas forem enviadas daquele país.

O Dr. Jarvis começou a folhear os seus papéis.

Eu penso que verá que é a emenda 9ª, artigo 4., tal como foi feita pela Câmara dos Lordes na fase de relatório - disse Kenny.

Mas essa não era a intenção dos Lordes quando redigiram essa emenda específica - disse Jarvis, momentos depois de ter encontrado o artigo relevante.

Eu não sei ler mentes, Dr. Jarvis - disse Kenny -, por isso não posso ter a certeza de qual era a intenção dos Lordes. Só estou interessado em agir de acordo com a lei.

Mas infringiu a lei ao receber dinheiro em Inglaterra e não o declarando às Finanças.

Não é esse o caso, Dr. Jarvis. A Business Enterprise UK é uma subsidiária da empresa principal, que está registada em Hong-Kong. No caso de uma colónia britânica, a lei permite que as subsidiárias recebam dinheiro no país de distribuição.

Mas o senhor não fez qualquer tentativa de distribuir a revista, Mr. Merchant.

Um exemplar de Business Enterprise UK foi colocado na British Library e em outras instituições, conforme estipulado no artigo 19º da lei.

Isso pode muito bem ser verdade, mas não é possível fugir ao facto, Mr. Merchant, de que estava a exigir dinheiro sob falsos pretextos.

Não se estiver claramente escrito na factura que o cliente não é obrigado a pagar, se não ficar satisfeito com o produto.

Mas essa frase está escrita na factura com uma letra tão pequena que é preciso uma lupa para a ler.

Consulte a lei, Dr. Jarvis, como eu fiz. Não encontrei nada que dissesse qual deveria ser o tamanho da letra.

E a cor?

A cor? - perguntou Kenny, fingindo-se surpreendido.

Sim, Mr. Merchant, a cor. O papel das suas facturas era cinzento-escuro e o timbre era cinzento-claro.

Essas são as cores da empresa, Dr. Jarvis, como qualquer pessoa que tiver olhado para a capa da revista saberá. E não há nada na lei que sugira que cor deverá ser utilizada nas facturas.

Ah - disse o advogado de acusação -, mas há um artigo na lei que diz claramente que as frases devem ser colocadas num local proeminente. Artigo 3º, parágrafo 14.

Isso é verdade, Dr. Jarvis.

E o senhor acha que o verso da folha pode ser descrito como um local proeminente?

Certamente que acho - disse Kenny. - Afinal de contas, não havia mais nada no verso. Eu tento cingir-me ao espírito da lei.

Então, eu também o farei - disse Jarvis num tom ríspido. - Porque, não é também correcto dizer que, quando uma empresa paga um anúncio na Business Enterprise UK, lhe deverá ser enviado um exemplar da revista?

Só se for expressamente solicitado... artigo 42º, parágrafo 9.

E quantas empresas solicitaram um exemplar da Business Enterprise UK?

No ano passado foram cento e sete. Este ano desceram para noventa e uma.

E todas elas receberam exemplares?

Não. No ano passado, infelizmente, algumas não receberam; mas este ano consegui satisfazer todas as encomendas.

Por conseguinte, nessa ocasião, violou a lei.

Sim, porque não podia imprimir cem exemplares da revista, conforme já expliquei.

O Dr. Jarvis fez uma pausa para permitir que o juiz tomasse um apontamento.

Acho que verá que é o artigo 84º, parágrafo 6, Meretíssimo.

O juiz acenou a cabeça em sinal de assentimento.

Finalmente, Mr. Merchant, permita-me que aborde algo que o senhor lamentavelmente não disse ao advogado de defesa quando este o interrogou.

Kenny agarrou o lado do púlpito das testemunhas.

No ano passado, o senhor enviou dois mil e quatro- centos envelopes. Quantas empresas pagaram?

Cerca de quarenta e cinco por cento.

Quantas, Mr. Merchant?

Mil, cento e trinta - admitiu Kenny.

E este ano enviou apenas mil e novecentas facturas. Posso perguntar por que motivo foram perdoadas quinhentas empresas?

Decidi não facturar as empresas que tinham tido maus resultados anuais e não tinham pago dividendos aos seus accionistas.

Isso foi muito generoso da sua parte. Mesmo assim, quantas pagaram?

Mil e noventa - respondeu Kenny.

O Dr. Jarvis olhou durante algum tempo para o júri antes de perguntar:

E qual foi o seu lucro no primeiro ano?

Enquanto Kenny ponderava a sua resposta, a sala do tribunal ficou tão silenciosa como estivera durante os oito dias do julgamento.

Um milhão, quatrocentas e doze mil libras - respondeu ele finalmente.

E este ano? - perguntou calmamente o Dr. Jarvis.

Desceu um pouco, creio que por causa da recessão.

Quanto? - repetiu o Dr. Jarvis.

Um pouco mais de um milhão e doze mil libras.

Não tenho mais perguntas a fazer, Meretíssimo. Ambos os advogados fizeram vigorosas alegações finais,

mas Kenny pressentiu que o júri teria de esperar até ouvir a conclusão do juiz no dia seguinte antes de chegar ao veredicto.

O juiz Thornton levou algum tempo a expressar a sua opinião sobre o processo da Coroa contra Kenneth Merchant. Fez notar ao júri que era sua responsabilidade explicar-lhes a lei, tal como ela era aplicável neste caso específico.

Estamos certamente a lidar com um homem que estudou a lei, tal como ela está escrita. E ele tem esse direito, porque são os deputados que fazem as leis, e não compete aos tribunais tentar decifrar os que lhes passava pela mente nessa altura.

»Assim, devo dizer-vos que Mr. Merchant é acusado de sete crimes e, em seis deles, aconselho-vos a pronunciarem um veredicto de «inocente» porque, na minha opinião, Mr. Merchant não violou a lei.

»Quanto à sétima acusação, a de não ter fornecido a revista Business Enterprise UK aos clientes que tinham pago um anúncio e depois solicitado um exemplar, ele admitiu que, nalguns casos, não o fizera. Senhores membros do júri, é possível que achem que, nessa ocasião, ele violou a lei, embora tenha rectificado a sua posição um ano depois, e desconfio que isto se deveu apenas ao facto de o número de pedidos ter sido inferior a cem exemplares. Os membros do júri recordar-se-ão possivelmente desse artigo específico da Lei de Protecção de Dados e do seu significado. - Doze rostos inexpressivos sugeriam que eles não faziam grande ideia do que ele estava a falar. O juiz terminou com as palavras:

Espero que não tomem a vossa decisão final de ânimo leve, pois, para além deste tribunal, há várias partes interessadas à espera do vosso veredicto.

Ao ver o júri desfilar para fora da sala de audiências, acompanhado pelo oficial de justiça, o réu teve de concordar com aquela opinião. Foi levado de volta à sua cela onde recusou o almoço e passou mais de uma hora deitado no beliche, antes de o terem mandado regressar ao banco dos réus para saber qual era o seu destino.

Depois de ter subido as escadas e de se encontrar de novo no banco dos réus, Kenny teve de esperar apenas alguns minutos até o júri voltar a entrar e a sentar-se nos seus lugares.

Quando regressou ao seu lugar, o juiz olhou para o escrivão e acenou a cabeça. O escrivão virou-se para o porta--voz do júri e leu cada uma das sete acusações.

No que dizia respeito às primeiras seis acusações de fraude e logro, o porta-voz seguiu as instruções do juiz e pronunciou veredictos de «inocente».

O escrivão leu então a sétima acusação: não fornecimento de um exemplar da revista às empresas que, tendo pago um anúncio na referida revista e solicitado um exemplar da mesma, não o receberam.

Quanto a esta acusação, qual é o vosso veredicto... culpado ou inocente? - perguntou o escrivão.

Culpado - disse o porta-voz, voltando a sentar-se. O juiz virou-se para Kenny, que se encontrava em sentido no banco dos réus.

Tal como o senhor, Mr. Merchant - começou ele por dizer -, eu passei bastante tempo a estudar a Lei de Protecção de Dados de 1992 e, em particular, as penas por não cumprimento do estipulado no artigo 84º, parágrafo 1. Decidi que não tenho outra opção a não ser impor a pena máxima que a lei permite neste caso específico - olhou para Kenny, com o ar de quem estava prestes a pronunciar a sentença de morte.

Aplico ao réu uma multa de mil libras.

O Dr. Duveen não se levantou para solicitar autorização para recorrer da sentença, ou tempo para pagar, porque aquele fora exactamente o veredicto que Kenny previra antes do início do julgamento. Durante os últimos dois anos, cometera apenas um erro e não se importava de pagar por ele. Kenny deixou o banco dos réus, passou um cheque da quantia exigida e entregou-o ao escrivão.

Depois de ter agradecido à equipa de defesa, olhou para o relógio e saiu rapidamente da sala de audiências. O inspector estava à sua espera no corredor.

Isto deverá pôr termo ao teu pequeno negócio - disse Travis, correndo a seu lado.

Não estou a ver porquê! - disse Kenny, continuando a correr ao longo do corredor.

Porque o Parlamento agora vai ter de alterar a lei - disse o inspector -, e, desta vez, certamente que vai fechar todos os meios de fuga.

Aposto que isso não vai acontecer no futuro próximo, inspector - disse Kenny, saindo do edifício e correndo pelos degraus do tribunal abaixo. - Uma vez que o Parlamento vai entrar nas férias de Verão, não estou a ver os deputados com muito tempo para fazer emendas à Lei de Protecção de Dados, antes de Fevereiro ou Março do próximo ano.

Mas se tentares repetir o exercício, eu prendo-te assim que saíres do avião - disse Travis quando Kenny parou no passeio.

Eu acho que não, inspector.

Por que não?

Eu não acho que o Ministério Público esteja disposto a passar por outro julgamento dispendioso, se a única coisa que terá probabilidades de conseguir for uma multa de mil libras. Pense nisso, inspector.

Bem, apanho-te no ano seguinte - disse Travis.

Duvido. Nessa altura, Hong-Kong já terá deixado de ser uma colónia britânica, e eu terei ido para outro lado - disse Kenny, entrando num táxi.

Outro lado? - perguntou o inspector, com um ar intrigado.

Kenny abriu a janela do táxi, sorriu para Travis e disse:

Se não tiver nada melhor para fazer, inspector, eu recomendo-lhe que estude a nova Lei das Disposições Financeiras. Não imagina a quantidade de possibilidades de fuga que ela tem. Adeus, inspector.

Para onde? - perguntou o motorista do táxi.

Heathrow. Mas, no caminho, podemos parar no Harrods. Quero ir comprar uns botões de punho.

                                 VINHO E ÁGUA

É uma criança com imenso talento - disse a mãe de Robin, enchendo outra chávena de chá para a irmã. - Na cerimónia de encerramento do ano lectivo, o director da escola de Robin disse que nunca saíra um artista tão bom daquela escola.

Deves estar muito orgulhosa dele - disse Miriam, antes de beber o chá.

Sim, confesso que estou - admitiu Mrs. Summers, quase a ronronar. - Claro que, embora toda a gente soubesse que ele ia ganhar o Prémio do Fundador, até mesmo o professor de Arte ficou surpreendido quando lhe ofereceram um lugar na Slade antes de ele ter feito o exame de admissão. Só é pena o pai dele não ter vivido tempo suficiente para assistir ao seu triunfo.

E como vai o John? - perguntou Miriam, servindo- -se de uma tarte de compota.

Mrs. Summers suspirou ao pensar no filho mais velho.

John termina o curso de Gestão em Manchester este Verão, mas não consegue tomar uma decisão sobre o que quer fazer - fez uma pausa, ao mesmo tempo que deixava cair outro torrão de açúcar no chá. - Só Deus sabe o que ele vai ser. Ele fala em montar um negócio.

Ele sempre foi um aluno muito trabalhador - disse Miriam.

É verdade, mas nunca conseguiu ser o melhor em nada, e certamente que nunca ganhou prémios. Já te disse que ofereceram ao Robin a oportunidade de fazer uma exposição individual em Outubro? É apenas numa galeria local, claro, mas, como ele disse, tem de começar por qualquer lado.

John Summers voltou a Peterborough para ver a exposição individual do irmão. A mãe nunca lhe perdoaria se não aparecesse. Acabara de saber o resultado do seu exame de Gestão. Terminara a licenciatura com quinze valores, o que não era mau, tendo em consideração que fora vice--presidente da Associação de Estudantes, com um presidente que, depois de ser eleito, raramente aparecia. Ele não falaria na sua licenciatura, pois era o dia especial de Robin.

Ao fim de anos a ouvir a mãe dizer que o irmão era um artista brilhante, John partira do princípio de que não faltaria muito tempo para que o resto do mundo reconhecesse esse facto. Ele reflectia muitas vezes sobre o facto de os dois serem tão diferentes; mas, afinal de contas, alguém sabia quantos irmãos Picasso tinha? Sem dúvida que um deles devia ter tido um negócio.

John levou algum tempo a encontrar a pequena ruela em que estava situada a galeria mas, quando lá chegou, ficou muito satisfeito ao ver que estava apinhada de amigos e pessoas que tinham vindo desejar-lhe sorte. Robin estava de pé, ao lado da mãe, que estava a oferecer as palavras «magnífico», «extraordinário», «verdadeiramente talentoso» até mesmo «génio» a um repórter do Peterborough Echo.

Oh, olha, John já chegou - disse ela, deixando por um momento o seu pequeno grupo para cumprimentar o outro filho.

Robin não podia ter uma melhor celebração do início da sua carreira - disse John, beijando-a no rosto.

Sim, estou de acordo contigo - concordou a mãe. - Tenho a certeza de que, dentro de pouco tempo, irás sentir os efeitos da sua glória. Vais poder dizer a toda a gente que és o irmão mais velho de Robin Summers.

Mrs. Summers saiu de ao pé de John para tirar mais uma fotografia com Robin, o que lhe deu a oportunidade de dar a volta à sala para estudar as telas do irmão. Estas consistiam sobretudo nas pinturas que ele fizera durante o seu último ano do liceu. John, que admitia facilmente a sua ignorância no que dizia respeito à arte, achava que o motivo por que não reconhecia o talento óbvio do irmão deveria ser a sua própria inaptidão, e sentia-se culpado por aqueles quadros não serem do género que ele gostaria de ver pendurados em sua casa. Parou em frente do retrato da mãe, o qual tinha um ponto vermelho ao lado, indicando que já fora vendido. Sorriu, confiante de que sabia quem o comprara.

Não achas que capta a essência da sua alma? - disse uma voz atrás dele.

Certamente - disse John, dando meia volta e encontrando-se frente a frente com o irmão. - Parabéns. Sinto-me orgulhoso de ti.

Uma das coisas que mais admiro em ti - disse Robin - é nunca teres tido inveja do meu talento.

Certamente que não - disse John. - Ele dá-me muito prazer.

Esperemos que algum do meu êxito se reflicta em ti, seja qual for a profissão que decidas seguir.

Esperemos que sim - disse John, não sabendo bem que mais dizer.

Robin inclinou-se para a frente e baixou a voz.

Podias emprestar-me uma libra? Eu devolvo-ta, claro.

Com certeza.

John sorriu, pelo menos algumas coisas nunca mudavam. Começara anos antes, com seis pence no parque infantil e terminara com uma nota de dez xelins no Dia dos Discursos. Agora estava à espera que lhe desse uma libra. De uma coisa, ele estava certo: Robin nunca devolveria um tostão. Não que John não tivesse muito gosto em dar dinheiro ao irmão. Afinal de contas, dentro de pouco tempo, os seus papéis seriam certamente invertidos. John pegou na carteira que continha duas notas de libra e o seu bilhete de comboio de volta para Manchester. Tirou uma das notas e entregou-a a Robin.

John ia fazer-lhe uma pergunta sobre outro quadro, um óleo chamado Barrabás no Inferno, mas o irmão já dera meia volta para ir ter com a mãe e o seu séquito de admiradores.

Quando saiu da Universidade de Manchester, John recebeu imediatamente uma oferta de emprego como estagiário da Reynolds & Company; nessa altura, Robin já estava a viver em Chelsea. Mudara-se para um conjunto de quartos que a mãe descrevia como pequenos, mas que se situavam na zona da cidade mais em moda. Ela não acrescentou que ele tinha de os partilhar com mais cinco estudantes.

E John? - perguntou Miriam.

Está a trabalhar numa empresa de Birmingham, que fabrica rodas ou, pelo menos, penso que é isso que eles fazem - disse ela.

John instalou-se nos arredores de Solihull, numa zona da cidade muito fora de moda. A localização era bastante conveniente, pois ficava perto da fábrica, que contava que ele, enquanto fosse estagiário, começasse a trabalhar às oito da manhã, de segunda a sábado.

John não aborreceu a mãe com pormenores sobre o que a Reynolds & Company fazia, pois fabricar rodas para a fábrica de automóveis de Longbridge não tinha o mesmo encanto do que ser um artista avant garde a viver na boémia Chelsea.

Embora visse poucas vezes o irmão enquanto este frequentou a Slade, John ia sempre a Londres ver as exposições de fim de período.

No primeiro ano, os alunos eram convidados a exibir duas obras, e John admitiu, embora só para si próprio, que, no que dizia respeito aos trabalhos do irmão, não gostou de nenhum deles. Mas ele reconhecia que não sabia realmente nada sobre arte. Quando os críticos pareceram concordar com a opinião de John, a mãe explicou que Robin estava avançado em relação ao seu tempo e garantiu-lhe que não faltaria muito para que o resto do mundo chegasse à mesma conclusão. Ela também sublinhou que ambos os quadros tinham sido vendidos no dia da abertura e sugeriu que tinham sido adquiridos por um conhecido coleccionador, que reconhecia um talento em ascensão quando o via.

John não teve oportunidade para ter uma longa conversa com o irmão, pois este parecia estar ocupado com o seu próprio grupo, mas regressou a Birmingham nessa noite com menos duas libras na carteira do que quando chegara.

No fim do segundo ano, Robin expôs dois novos quadros na exposição de fim de período, Faca e Garfo no Espaço e Agonia da Morte. John colocou-se a alguns passos de distância das telas, aliviado por ver a expressão de perplexidade no rosto dos que paravam para analisar o trabalho do seu irmão e que ficavam ainda mais intrigados com a visão dos dois pontos vermelhos que ali estavam desde o dia de abertura.

Encontrou a mãe sentada a um canto da sala, a explicar a Miriam o motivo por que Robin não ganhara o prémio do segundo ano. Embora o seu entusiasmo pelo trabalho de Robin não tivesse diminuído, John achou que ela parecia um pouco mais frágil do que na última vez em que a vira.

Que tens feito, John? - perguntou Miriam quando ergueu o olhar e viu o sobrinho perto delas.

Sou gerente-estagiário, tia Miriam - respondeu ele, no momento em que Robin atravessava a sala para vir ter com eles.

Por que é que não vens jantar connosco? - sugeriu Robin. - Isso dar-te-á a oportunidade de conhecer alguns dos meus amigos. - John sentiu-se comovido com o convite, até ao momento em que a conta dos sete foi colocada à sua frente.

Não vai demorar muito até eu poder levar-te ao Ritz - afirmou Robin, depois de a sexta garrafa de vinho ter sido consumida.

Sentado num compartimento de terceira classe na viagem de regresso à New Street de Birmingham, John sentiu-se grato por ter comprado um bilhete de ida e volta porque, depois de ter emprestado cinco libras ao irmão, ficara com a carteira vazia.

John só voltou a Londres para a cerimónia de fim de curso de Robin. A mãe escrevera-lhe insistindo para que estivesse presente, uma vez que seriam anunciados os nomes dos vencedores dos prémios, e ela ouvira um rumor de que Robin estaria entre eles.

Quando John chegou à exposição, já esta abrira. Deu lentamente a volta à sala, parando para admirar algumas das telas. Passou um tempo considerável a estudar os úl-timos trabalhos de Robin. Não havia nenhum distintivo que sugerisse que ele ganhara um dos prémios principais, na realidade, nem sequer uma «menção honrosa». Mas, o que era talvez mais importante, nesta ocasião não havia pontos vermelhos. Isto serviu para lembrar a John que a pensão da mãe já não estava a acompanhar a inflação.

Os juizes têm os seus preferidos - explicou a mãe, sentada a um canto com um ar ainda mais frágil do que na última vez em que a vira. John acenou a cabeça em sinal de assentimento, achando que aquela não era altura para lhe contar que fora novamente promovido.

Turner nunca ganhou quaisquer prémios enquanto foi estudante - foi o único comentário da mãe sobre o assunto.

Que está Robin a pensar em fazer a seguir? - perguntou John.

Ele vai mudar-se para um pequeno apartamento em Pimlico, para poder ficar perto do seu grupo, isto é essencial para quem ainda está a tentar tornar-se conhecido. - John não precisou de perguntar quem iria pagar a renda, enquanto Robin «ainda estivesse a tentar tornar-se conhecido».

Quando Robin convidou John para jantar com eles, este deu a desculpa de que tinha de voltar para Birmingham. Os amigos de Robin pareceram decepcionados, até John ter tirado uma nota de dez libras do bolso.

Depois de Robin ter saído da Escola de Belas-Artes, os dois irmãos raramente se encontraram.

Foi cerca de cinco anos depois, quando John foi convidado a fazer uma comunicação numa conferência realizada em Londres sobre os problemas que a indústria automóvel enfrentava, que ele decidiu fazer uma visita de surpresa ao irmão e convidá-lo para jantar.

Quando a conferência terminou, John apanhou um táxi para Pimlico, sentindo-se subitamente inquieto por não ter avisado Robin de que talvez o fosse visitar.

Depois de subir as escadas até ao último andar, começou a sentir-se ainda mais apreensivo. Tocou à campainha e, quando a porta se abriu, demorou alguns minutos a compreender que o homem que estava à sua frente era o seu irmão. Não conseguia acreditar na transformação ocorrida em apenas cinco anos.

O cabelo de Robin estava grisalho. Tinha papos debaixo dos olhos, a pele estava entumescida e manchada, e devia ter engordado, pelo menos, vinte quilos.

John - disse ele. - Que surpresa. Não fazia ideia de que estivesses em Londres. Entra.

O que mais impressionou John quando entrou no apartamento foi o cheiro. A princípio, pensou que poderiam ser as tintas mas, quando olhou em volta, reparou que o número de telas meio terminadas era inferior ao das garrafas de vinho vazias.

Estás a preparar uma exposição? - perguntou John, olhando para uma das obras incompletas.

Não, neste momento não tenho nada em vista - disse Robin. - Há muito interesse, claro, mas nada definitivo. Tu sabes como são os negociantes de arte de Londres.

Para ser sincero, não sei - disse John.

Bem, é preciso estar na moda ou ser-se falado antes de eles pensarem em dar espaço de parede a alguém. Sabias que Van Gogh não vendeu uma única obra em vida?

Durante o jantar num restaurante próximo, John ficou a saber mais um pouco sobre os caprichos do mundo da arte, bem como sobre o que alguns críticos pensavam do trabalho de Robin. Ficou satisfeito ao ver que o irmão não perdera a confiança em si próprio, nem a sua crença de que era só uma questão de tempo até ser reconhecido.

O monólogo de Robin prosseguiu ao longo de toda a refeição, e só depois de terem voltado ao apartamento é que John teve oportunidade de dizer que se apaixonara por uma rapariga chamada Sally e que se ia casar em breve. Robin não tinha feito quaisquer perguntas sobre a sua carreira na Reynolds & Company, onde ele era agora vice--director.

Antes de partir para a estação, John pagou as contas de Robin referentes a várias refeições e deu ao irmão um cheque de cem libras, que nenhum deles se deu ao incómodo de sugerir que era apenas um empréstimo. As palavras de despedida de Robin enquanto John entrava no táxi foram:

Submeti dois trabalhos à Academia Real para a Exposição de Verão, e tenho a certeza de que serão aceites pela comissão de selecção. Se assim for, tens de vir assistir à inauguração.

Em Euston, John entrou na Menzies para comprar o jornal da tarde e reparou que, no topo da pilha dos livros em promoção, estava um intitulado Introdução ao Mundo da Arte de Fra Angélico a Picasso. Quando o comboio partiu da estação, ele abriu à primeira página e, quando chegou a Carravaggio, estava a parar na estação de New Street, em Birmingham.

Ouviu baterem à janela e viu Sally a sorrir-lhe.

Esse deve ser um livro fascinante - disse ela, enquanto percorriam a plataforma de braço dado.

Sem dúvida que era. Só espero conseguir encontrar o volume II .

Durante o ano seguinte, os dois irmãos encontraram-se duas vezes. A primeira foi uma ocasião triste, quando foram ao funeral da mãe. Quando este terminou, foram tomar chá a casa de Miriam, e aí Robin informou o irmão que a Academia aceitara ambos os quadros para a Exposição de Verão.

Três meses mais tarde, John foi a Londres assistir à inauguração. Quando cruzou pela primeira vez os portais consagrados da Academia Real, ele já lera uma dúzia de livros sobre arte, que iam desde o início da Renascença até à arte pop. Visitara todas as galerias de Birmingham e estava ansioso por explorar as galerias das ruelas de Mayfair.

Enquanto percorria as salas espaçosas de Academia, John decidiu que chegara a altura de investir no seu primeiro quadro. «Ouçam os peritos mas, no fim, confiem nos vossos olhos», escrevera Godfrey Barker no Telegraph. Os seus olhos disseram-lhe Bernard Dunstan, ao passo que os peritos sugeriam William Russell Flint. Os olhos venceram, porque o Dunstan custava setenta e cinco libras, enquanto o Russell Flint mais barato custava seiscentas.

John andou de sala em sala à procura dos dois óleos do irmão mas, sem a ajuda do livrinho azul da Academia, nunca teria conseguido encontrá-los. Tinham sido pendurados na fila de cima da galeria do meio, quase a tocar no tecto. Reparou que nenhum deles fora vendido.

Depois de ter dado duas vezes a volta à exposição e de se ter decidido pelo Dunstan, dirigiu-se ao balcão de vendas e passou um cheque como depósito para o que queria comprar. Olhou para o relógio: faltavam alguns minutos para o meio-dia, a hora em que combinara encontrar-se com o irmão.

Robin fê-lo esperar quase quarenta minutos e, a seguir, sem qualquer pedido de desculpas, levou-o a dar uma terceira volta à exposição. Apelidou tanto Dunstan como Russell Flint de pintores de sociedade, sem dar uma indicação sobre quem ele achava que tinha talento.

Robin não conseguiu esconder a sua desilusão quando viu os seus quadros na galeria do meio.

      Que possibilidade tenho eu de os vender se estiverem escondidos ali em cima? - disse ele, irritado. John tentou parecer solidário.

Durante o almoço, John falou a Robin sobre o testamento da mãe, pois os advogados da família não tinham recebido qualquer resposta às várias cartas que tinham enviado a Mr. Robin Summers.

      Por princípio, nunca abro nada que venha num envelope castanho - explicou Robin.

Bem, pelo menos essa não podia ter sido a razão por que ele não fora ao seu casamento, pensou John. Ele voltou a falar no testamento da mãe.

Os legados são bastante simples - disse ele. - Ela deixou-te tudo, com excepção de um quadro.

Qual deles? - perguntou Robin, imediatamente.

O retrato dela que fizeste quando ainda andavas no liceu.

É uma das melhores coisas que já fiz - disse Robin. - Deve valer pelo menos cinquenta libras, e sempre parti do princípio que ela mo deixaria.

John passou um cheque de cinquenta libras. Quando regressou a Birmingham nessa noite, não disse a Sally quanto pagara pelos dois quadros. Colocou o Venice de Dunstan na sala de estar, por cima da lareira, e o da mãe no escritório.

Quando o seu primeiro filho nasceu, John sugeriu que Robin fosse um dos padrinhos.

Porquê? - perguntou Sally. - Ele nem sequer se deu ao trabalho de vir ao nosso casamento.

John não pôde discordar da lógica da mulher e, embora tivesse sido convidado para o baptizado, Robin não respondeu nem apareceu, apesar de o convite lhe ter sido enviado num envelope branco.

Deve ter sido cerca de um ano depois que John recebeu um convite da Galeria Crewe, de Cork Street para a exposição individual de Robin, há muito aguardada. Esta era, na verdade, uma exposição de dois artistas, e John teria certamente comprado logo um dos quadros do outro pintor, se não achasse que isso iria ofender o irmão.

Decidiu qual o óleo que queria, tomou nota do número e, na manhã seguinte, pediu à sua secretária que telefonasse à galeria a reservá-lo em seu nome.

Lamento muito, mas o Peter Blake que queria foi vendido na noite da inauguração.

Ele franziu o sobrolho.

Pode perguntar-lhes quantos quadros de Robin Summers foram vendidos?

A secretária repetiu a pergunta e, tapando o bocal, disse:

Dois.

John franziu o sobrolho pela segunda vez.

Na semana seguinte, John teve de ir a Londres representar a sua empresa na Exposição de Automóveis em Earls Court. Decidiu entrar na Galeria Crewe para ver como se estavam a vender os quadros do irmão. Não havia qualquer alteração. Apenas dois pontos vermelhos na parede, ao passo que os de Peter Blake estavam quase esgotados.

John saiu da galeria decepcionado por dois motivos e seguiu na direcção de Picadilly. Quase passou por ela sem a ver mas, assim que reparou na cor delicada das suas faces e no seu corpo gracioso, foi amor à primeira vista. Ficou a olhar para ela, com receio de que fosse demasiado cara.

Entrou na galeria para a olhar mais de perto. Era pequena, delicada e belíssima.

Quanto custa? - perguntou ele em voz baixa, a olhar para a mulher sentada atrás da mesa de vidro.

O Vuillard? - perguntou ela.

John acenou a cabeça em sinal de assentimento.

Mil e duzentas libras.

Como num sonho, tirou o livro de cheques do bolso e escreveu uma quantia que sabia que iria esvaziar a sua conta bancária.

O Vuillard foi colocado em frente do Dunstan, e assim começou a sua ligação amorosa com várias mulheres pintadas de todo o mundo, embora John nunca tivesse admitido à mulher quanto estas amantes emolduradas lhe custavam.

Apesar dos quadros que apareciam ocasionalmente pendurados em cantos obscuros da Exposição de Verão, Robin não teve outra exposição individual durante vários anos. Quando se trata de artistas cujas telas continuam por vender, os negociantes não são sensíveis à sugestão de que as mesmas podem representar um bom investimento porque os pintores poderão ser reconhecidos após a sua morte, sobretudo porque, nessa altura, os donos das galerias também já terão morrido.

Quando o convite para a exposição individual seguinte de Robin finalmente apareceu, John viu que não teria outra opção a não ser assistir à inauguração.

John estivera recentemente envolvido numa operação de compra, pelos gestores, da Reynolds & Company. Com as vendas de automóveis a aumentar todos os anos ao longo da década de 1970, o mesmo aconteceu à necessidade de lhes colocar rodas, e isso permitiu-lhe cultivar o seu novo passatempo como coleccionador de arte. Recentemente, acrescentara Bonnard, Dufy, Camoin e Luce à sua colecção, continuando a ouvir o conselho dos peritos mas, no fim, confiando nos seus olhos.

John desceu do comboio em Euston e deu ao motorista do táxi da frente da fila o endereço para onde queria ser transportado. O motorista de táxi coçou a cabeça por um momento antes de partir na direcção de East End.

Quando John entrou na galeria, Robin atravessou rapidamente a sala para o saudar com as palavras:

E aqui está alguém que nunca duvidou do meu verdadeiro valor. - John sorriu para o irmão, que lhe ofereceu um copo de vinho branco.

John olhou em volta da pequena galeria e observou os grupos de pessoas que pareciam mais interessadas em beber o vinho medíocre do que olhar para quadros medíocres. Quando é que o irmão iria aprender que a última coisa que faz falta numa inauguração são outros artistas desconhecidos acompanhados pelos parasitas que os rodeiam?

Robin pegou-lhe no braço e conduziu-o de grupo em grupo, apresentando-o a pessoas que não tinham dinheiro para comprar sequer uma moldura quanto mais uma das telas.

Quanto mais a noite se arrastava, mais pena John começou a ter do irmão e, por isso, caiu de bom grado na armadilha do jantar. Acabou por pagar o jantar a doze companheiros de Robin, incluindo o dono da galeria que, pensou John, não iria ganhar muito mais nessa noite do que um jantar.

Oh, não - tentou ele tranquilizar John. - Já vendemos dois quadros, e muita gente se mostrou interessada. A verdade é que, como suponho que John sabe melhor do que ninguém, os críticos nunca compreenderam bem o trabalho de Robin.

John olhou com tristeza para os amigos de John enquanto estes acrescentavam comentários tais como «nunca foi devidamente reconhecido», «um talento não reconhecido», e «há anos que devia ter sido eleito para a Academia Real». Ao ouvir esta sugestão, Robin pôs-se de pé, vacilante, e afirmou:

Nunca! Eu hei-de ser como Henry Moore e David Hockney. Quando for convidado, recusarei o convite. - Houve mais aplausos, seguidos de ainda mais vinho pago por John.

Quando o relógio bateu as onze horas, John disse que tinha uma reunião muito cedo na manhã seguinte. Pediu desculpas, pagou a conta e foi-se embora para o Savoy. Na banco de trás do táxi, compenetrou-se finalmente de algo de que há muito desconfiava: o irmão simplesmente não tinha talento.

Só alguns anos depois é que John voltou a ter notícias de Robin. Parecia que não havia galerias de Londres dispostas a expor o seu trabalho, por isso ele achava que devia partir para o Sul de França, para ir ter com um grupo de amigos igualmente talentosos e igualmente incompreendidos.

Vai dar-me um novo fôlego - explicou ele numa das suas raras cartas para o irmão -, uma oportunidade para realizar o meu verdadeiro potencial, que tem sido sufocado durante demasiado tempo pelos pigmeus dos círculos de arte de Londres. E será que tu podias....

John transferiu cinco mil libras para uma conta em Vence, para permitir que Robin desaparecesse para climas mais quentes.

A proposta de compra da Reynolds & Company surgira inesperadamente, embora John sempre tivesse pensado que a empresa era um alvo óbvio para uma empresa japonesa de fabrico de automóveis a tentar implantar-se na Europa. Mas até ele ficou surpreendido quando os seus maiores rivais alemães fizeram uma contra-proposta.

Ficou a ver o valor das suas acções a subir todos os dias, e só quando a Honda superou a Mercedes é que ele se compenetrou que tinha de tomar uma decisão. Optou por vender as acções e sair da empresa. Disse a Sally que queria levá-la numa viagem à volta do mundo, visitando apenas as cidades que tinham grandes galerias de arte. Primeira paragem no Louvre, seguida do Prado, depois a Uffizi, o Hermitage de Sampetersburgo e, finalmente, Nova Iorque, deixando os japoneses a pôr rodas nos automóveis.

John não ficou surpreendido ao receber uma carta de Robin com um carimbo dos correios de França, dando-lhe os parabéns pela sua sorte e desejando-lhe tudo de bom na sua reforma, ao mesmo tempo que comentava que ele próprio não tinha outra opção a não ser continuar a batalhar até os críticos caírem finalmente em si.

John transferiu mais de dez mil libras para uma conta bancária em Vence.

John teve o seu primeiro ataque de coração em Nova Iorque, quando admirava um Bellini no Frick.

Nessa noite, ele disse a Sally, quando esta se encontrava à beira da sua cama, que estava satisfeito por já ter visitado o Metropolitan e o Whitney.

O segundo ataque de coração ocorreu pouco depois de ter voltado a Warwickshire. Sally sentiu-se na obrigação de escrever a Robin, que estava no Sul de França, a avisá--lo de que os prognósticos dos médicos não eram encorajadores.

Robin não respondeu. O irmão morreu três semanas depois.

No funeral estiveram presentes muitos amigos e colegas de John, mas poucos reconheceram o homem entroncado que fez questão de ficar na primeira fila. Sally e os filhos sabiam exactamente por que é que ele aparecera e não fora certamente para apresentar condolências.

Ele prometeu que eu seria contemplado no seu testamento - disse Robin à viúva enlutada, poucos momentos depois de terem deixado a sepultura. Mais tarde, embora tivesse tido pouco contacto com os dois rapazes durante os últimos trinta anos, procurou-os para transmitir a mesma mensagem. - Compreendem - explicou ele -, o vosso pai era uma das poucas pessoas que compreendiam o meu verdadeiro valor.

Durante o chá em casa de John, enquanto outras pessoas consolavam a viúva, Robin andou de sala em sala a examinar os quadros que o irmão coleccionara ao longo dos anos.

Um bom investimento - garantiu ele ao vigário local -, ainda que lhes falte originalidade ou paixão. - O vigário acenou delicadamente a cabeça em sinal de concordância.

Quando foi apresentado ao advogado da família, Robin perguntou imediatamente:

Quando é que está a contar anunciar o conteúdo do testamento?

Ainda não conversei com Mrs. Summers sobre quando o testamento deverá ser lido. No entanto, calculo que seja lá mais para o fim da semana.

Robin alojou-se no pub local e telefonou para o escritório do advogado todas as manhãs, até este confirmar que iria divulgar o conteúdo do testamento às três horas da quinta-feira seguinte.

Robin chegou ao escritório do advogado alguns minutos antes das três da tarde, a primeira vez em muitos anos que chegara cedo a um encontro. Sally chegou pouco dePois, acompanhada pelos rapazes, e sentaram-se no outro lado da sala, sem o cumprimentar.

Embora o grosso dos bens de John Summers tivessem sido deixados à mulher e aos dois rapazes, ele fizera um legado especial ao seu irmão Robin.

Durante a minha vida, tive a sorte de coleccionar quadros, alguns dos quais possuem um valor considerável. Na última vez que os contei, eram, ao todo, oitenta e um. A minha mulher Sally pode seleccionar vinte, os meus dois filhos Nick e Chris podem também seleccionar vinte cada um, e o meu irmão Robin deverá receber os vinte e um restantes, o que lhe permitirá viver no estilo de que o seu valor é merecedor.

Robin sorriu de satisfação. O seu irmão fora para o seu leito de morte sem nunca duvidar do seu verdadeiro valor.

Quando o advogado acabou de ler o testamento, Sally levantou-se do seu lugar e atravessou a sala para falar com Robin.

Nós vamos escolher os quadros que queremos manter na família e, depois disso, enviar-te-emos os restantes vinte e um para o Bell and Duck.

Ela deu meia volta e foi-se embora antes de Robin ter tido oportunidade de responder. Que mulher tola, pensou ele. Tão diferente do seu irmão, ela não seria capaz de reconhecer um verdadeiro talento se ele estivesse à frente dos seus olhos.

Nessa noite, enquanto jantava no Bell and Duck, Robin começou a fazer planos para gastar a sua recém-adquirida fortuna. Depois de ter consumido a melhor garrafa de clarete da hospedaria, tomou a decisão de que se limitaria a colocar um quadro na Sotheby's e um na Christie's de seis em seis meses, o que lhe permitiria viver num estilo de que o seu talento era merecedor, de acordo com as palavras do irmão.

Deitou-se por volta das onze e adormeceu a pensar em Bonnard, Vuillard, Dufy, Camoin e Luce, e no que valeriam vinte e uma obras-primas.

Ainda estava a dormir às dez horas da manhã seguinte, quando ouviu bater à porta.

Quem é? - murmurou ele num tom irritado debaixo do cobertor.

É George, o porteiro, sir. Está uma carrinha lá fora. O motorista diz que não pode deixar as coisas sem o se- nhor assinar.

Não o deixe ir-se embora - gritou Robin. Pela primeira vez em muitos anos, saltou da cama, vestiu apressadamente a camisa velha azul e as calças, calçou os sapatos e correu pela escadas abaixo até ao pátio.

Um homem de fato macaco azul, com um prancheta na mão, estava encostado a uma carrinha grande. Robin dirigiu-se a ele.

É o senhor que está à espera de vinte e um quadros? - perguntou o motorista da carrinha.

Sou eu, sim - disse Robin. - Onde é que eu assino?

Aqui - respondeu o motorista, colocando o polegar por baixo da palavra «Assinatura».

Robin rabiscou o nome rapidamente no impresso e depois seguiu o motorista até à parte de trás da carrinha. Deu a volta à maçaneta e abriu as portas.

Robin ficou sem fala.

Olhou para o retrato da mãe, empilhado em cima de outros vinte quadros da autoria de Robin Summers, pintados entre 1951 e 1999.

                               DITAMES DO CORAÇÃO

Há um homem na Cidade do Cabo que vai todos os dias ao bairro negro de Crossroads. Passa a manhã a ensinar inglês numa das escolas locais, a tarde a ensinar râguebi ou críquete, de acordo com a estação do ano, e as noites a vaguear pelas ruas a tentar convencer os jovens de que não devem formar gangs ou cometer crimes, e de que não devem meter-se na droga. Ele é conhecido como o Santo de Crossroads.

Ninguém nasce com preconceitos dentro de si, embora algumas pessoas tenham contacto com eles muito cedo. Isto era certamente verdade em relação a Stoffel van den Berg. Stoffel nascera na Cidade do Cabo e nunca estivera no estrangeiro. Os seus antepassados tinham emigrado da Holanda no século XVIII, e Stoffel cresceu habituado a ter criados negros que estavam sempre presentes para satisfazer os seus mais pequenos caprichos.

Se não obedecessem às ordens de Stoffel, os rapazes (nenhum dos criados parecia ter sido agraciado com um nome, qualquer que fosse a sua idade) eram severamente espancados ou simplesmente não lhes era dada comida. Se desempenhavam bem uma tarefa, ninguém lhes agradecia e certamente que nunca eram elogiados. Para que é que uma pessoa havia de se dar ao trabalho de agradecer a alguém que fora colocado na Terra apenas para servir?

Quando Stoffel frequentou a escola primária no Cabo, este preconceito inconsciente foi simplesmente reforçado, pois as salas de aula estavam repletas de crianças brancas ensinadas apenas por professores brancos. Os poucos negros que ele encontrava na escola estavam a limpar as casas de banho que eles próprios nunca seriam autorizados a usar.

Durante os anos em que andou na escola, Stoffel provou estar acima da média na sala de aula, sendo um excelente aluno em Matemática, mas excepcional no campo de jogos.

Quando andava no último ano do liceu, Stoffel, um bóer louro com um metro e oitenta e seis de altura, era avançado na equipa de râguebi no Inverno e o primeiro a manejar a pá na equipa de críquete durante o Verão. Antes mesmo de lhe ter sido oferecido um lugar na universidade, já se dizia que ele iria jogar râguebi ou críquete para os Spring-boks. Vários representantes de universidades visitaram o liceu no seu último ano para lhe oferecer bolsas de estudo e, aconselhado pelo reitor e apoiado pelo pai, decidiu ir para Stellenbosch.

O caminho do êxito de Stoffel prosseguiu a partir do momento em que ele chegou ao campus universitário. No primeiro ano, foi seleccionado para ser o primeiro a manejar a pá nos onze da universidade, quando um dos jogadores regulares ficou lesionado. Durante o resto da época, não falhou um único jogo. Dois anos depois, foi capitão da vitoriosa equipa universitária e, mais tarde, marcou cem pontos para a equipa da Western Province contra a do Natal

Quando terminou a universidade, Stoffel foi recrutado pelo Barclays Bank para o seu departamento de Relações Públicas, embora lhe tivesse sido dito claramente na entrevista que a sua primeira prioridade seria garantir a vitória do Barclays na Taça de Críquete Interbancos.

Estava a trabalhar há apenas poucas semanas quando os seleccionadores da equipa Springbok lhe escreveram a informá-lo que o seu nome estava a ser considerado para integrar a equipa sul-africana de críquete, que se estava a preparar para uma digressão da equipa inglesa. O Banco ficou radiante e disse-lhe que ele estava dispensado do trabalho durante o tempo que precisasse para se preparar Para a selecção nacional. Ele sonhou com marcar uma centena de pontos em newlands e talvez até mesmo um dia em Lord's.

Seguiu com interesse a série Ashes, que estava a ter lugar em Inglaterra. Lera artigos sobre jogadores como Underwood e Snow, mas as reputações não o preocupavam. Tencionava vencê-los   todas as partidas.

Os jornais sul-africanos também estavam a seguir a série Ashes com muito interesse, porque queriam manter os seus leitores informados dos pontos fortes e fracos dos adversários que a sua equipa iria enfrentar dentro de algumas semanas. Depois, do dia para a noite, essas histórias foram transferidas das últimas páginas para a primeira página, quando a Inglaterra seleccionou um jogador do Worcester chamado Basil d'Oliveira. Mr. D'Oliveira, como a imprensa lhe chamava, foi notícia de primeira página porque ele era aquilo que os sul-africanos classificavam como «Mestiço do Cabo» Emigrara para Inglaterra porque no país em que nascera, a África do Sul, não fora autorizado a jogar críquete de primeira classe.

A imprensa de ambos os países começou a especular sobre qual seria a atitude do Governo da África do sul se D'Oliveira fosse seleccionado pela MCC, para membro da equipa que visitaria a África do Sul.

- Se os ingleses forem suficientemente estúpidos para o seleccionarem - disse Stoffel no Banco aos seus amigos -, a digressão terá de ser cancelada. - Afinal de contas, não se podia esperar que ele jogasse contra um homem de cor.

A maior esperança dos sul-africanos era que Mr. D'Oliveira falhasse o último teste em The Oval e não fosse considerado para a digressão, o que faria com que o problema se resolvesse por si só.

D'Oliveira fez-lhes a vontade no primeiro turno, marcando apenas onze pontos. Mas, no segundo turno, marcou cento e cinquenta e oito pontos empatando a série e desempenhando um papel importante na vitória da sua equipa. Mesmo assim, numa decisão marcada pela controvérsia, foi deixado de fora da equipa que iria à África do Sul. Mas quando outro jogador se viu obrigado a desistir devido a uma lesão, foi seleccionado para o substituir.

O Governo da África do Sul tornou imediatamente clara a sua posição: só jogadores brancos seriam bem-vindos ao seu país. Durante as semanas seguintes tiveram lugar intensas negociações diplomáticas, mas o MCC recusou-se a retirar D'Oliveira da equipa, pelo que a digressão teve de ser cancelada. Só depois de Nelson Mandela se ter tornado presidente em 1994 é que uma equipa inglesa oficial voltou a pôr os pés na África do Sul.

Stoffel ficou destroçado com a decisão e, embora jogasse regularmente na Western Province e tivesse garantido que a Taça Interbancos se mantivesse nas mãos do Barclays, duvidou que alguma vez viesse a conseguir a internacionalização.

Mas, apesar da sua decepção, Stoffel não tinha quaisquer dúvidas de que o Governo tomara a decisão correcta. Afinal de contas, por que é que os ingleses haveriam de pensar que podiam decretar quem devia visitar a África do Sul?

Foi quando jogava contra o Transvaal que conheceu Ingá. Esta não só era o ser mais belo que ele jamais vira, como concordava plenamente com as suas opiniões sobre a superioridade da raça branca. Casaram-se um ano depois.

Quando sucessivos países impuseram sanções à África do Sul, Stoffel continuou a apoiar o Governo, afirmando que os decadentes políticos ocidentais se tinham tornado liberais cobardes. Por que é que eles não vinham à África do Sul ver o país com os seus próprios olhos, perguntava ele a todos os que visitavam o Cabo. Assim, depressa descobririam que ele não batia nos criados e que os negros recebiam salários justos, conforme recomendava o Governo. Que mais queriam eles? De facto, ele nunca compreenderia por que é que o Governo não enforcava Mandela e os seus amigos terroristas, por traição.