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Antes de o leitor começar a ler este volume de contos, gostaria de referir que alguns deles são baseados em factos verídicos. Nas minhas viagens à volta do globo, sempre à procura de um esboço literário que tenha vida própria, encontrei Fala a Morte, que me comoveu tanto que coloquei esta história no início do livro. Esta foi originariamente traduzida do árabe e, apesar de uma ampla investigação, o seu autor permanece anónimo, embora a lenda tenha surgido num peça de Somerset Maugham e, mais tarde, como prefácio do romance de John O'Hara, Appointment in Samarra. Raramente me deparei com um melhor exemplo da arte singela de contar histórias. Este é um dom isento de preconceitos, pois é concedido sem quaisquer considerações quanto à condição social, educação ou instrução. Para demonstrar esta minha afirmação, basta pensar na educação tão diferente que tiveram Joseph Conrad e Walter Scott, John Buchan e O. Henry, H. H. Munro e Hans Christian Andersen. Neste meu quarto livro de contos, tentei escrever dois exemplos muito curtos deste género literário: A Carta e Amor à Primeira Vista. Mas primeiro Fala a Morte:

                                     FALA A MORTE

Um mercador de Bagdade enviou o seu criado ao mer-cado comprar provisões. Passado algum tempo, o criado voltou, pálido e a tremer, e disse:

         Meu amo, quando eu estava no mercado, no meio da multidão, houve uma mulher que me empurrou e, quando me virei, vi que quem me empurrou foi a Morte. Ela olhou para mim e fez um gesto de ameaça. Por favor, empreste-me o seu cavalo para eu poder fugir da cidade e evitar o meu destino. Irei para Samarra e, ali, a Morte não me encontrará. O mercador emprestou-lhe o cavalo, e o criado montou-o, cravou-lhe as esporas e afastou-se à maior velocidade que o cavalo conseguia galopar. Pouco depois, o mercador foi até ao mercado e, quando viu a Morte no meio da multidão, dirigiu-se a ela e perguntou: Por que é que fizeste um gesto de ameaça ao meu criado quando o viste esta manhã?

                   Não foi um gesto de ameaça - respondeu ela -, foi simplesmente de surpresa. Fiquei espantada de o ver em Bagdade, pois tenho um encontro com ele esta noite em Samarra.

                                 O PERITO JUDICIAL

Uma distância estupenda - disse Toby, ao ver a bola do seu adversário voar pelo ar. - São de certeza 230 m, talvez até mesmo 250 m - acrescentou ele, levando a mão à testa para proteger os olhos do sol e continuando a olhar para a bola que saltitava pelo campo de golfe, entre dois buracos. Obrigado - disse Harry. De que é que constou o teu pequeno-almoço, Harry? - perguntou Toby, quando a bola finalmente parou. De uma discussão com a minha mulher - foi a resposta imediata do seu adversário. - Ela queria que eu fosse com ela às compras esta manhã. Se achasse que o meu jogo iria melhorar assim tanto, estaria tentado a casar-me - disse Toby, dirigindo-se à sua bola. - Bolas - disse ele um momento mais tarde, ao ver o seu débil esforço avançar para o terreno acidentado, situado a menos de cem metros de onde estava. O jogo de Toby não melhorou no nono buraco e, quando se dirigiam às instalações do clube um pouco antes do almoço, ele avisou o seu adversário: Terei de me vingar de ti no tribunal na próxima semana. Espero bem que não - disse Harry, com uma gargalhada. Porquê? - perguntou Toby, quando estavam a entrar no clube. Porque eu vou testemunhar como perito judicial do teu lado - respondeu Harry, enquanto se sentavam para almoçar. Que engraçado - disse Toby. - Eu podia jurar que estavas contra mim. Sir Toby Gray, advogado, e o professor Harry Bamford nem sempre estavam do mesmo lado quando se encontravam no tribunal. Todos os presentes que tiverem algo a fazer perante os juizes da rainha aproximem-se e prestem atenção. A audiência do Tribunal da Coroa de Leeds estava aberta. O juiz Fenton olhou para baixo. Sir Toby fitou o idoso juiz. Um homem honesto e justo, reflectiu ele, embora as suas súmulas pudessem ser um pouco enfadonhas. O juiz Fenton acenou a cabeça. Sir Toby levantou-se e deu início à defesa do seu cliente. Meretíssimo Juiz, senhores membros do júri, tenho consciência da enorme responsabilidade que recai sobre os meus ombros. Nunca é fácil defender um homem acusado de homicídio. Isto torna-se ainda mais difícil quando a vítima é a sua própria mulher, com quem ele teve um casamento feliz durante vinte anos. Este facto foi já aceite pela Acusação. "A minha tarefa não é facilitada, Meretíssimo Juiz - prosseguiu Sir Toby -, pelo facto de todas as provas cir-cunstanciais, exploradas ontem de uma forma tão brilhante pelo meu douto amigo, o Dr. Rodgers, nas alegações iniciais da acusação, fazerem crer, à primeira vista, que o meu cliente é culpado. No entanto - disse Sir Toby, agarrando nas lapelas da sua toga de seda preta e virando-se para o júri -, tenciono apresentar uma testemunha de reputa-ção intocável. Tenho a certeza, senhores membros do júri, de que ele não vos dará outra hipótese a não ser a de pro-ferir um veredicto de inocente. Gostaria de chamar o professor Harold Bamford. Um homem elegantemente vestido, com um fato azul trespassado, camisa branca e uma gravata do Yorkshire County Cricket Club, entrou na sala do tribunal e ocupou o seu lugar no banco das testemunhas. Foi-lhe apresentado um exemplar do Novo Testamento, e ele leu o juramento com uma confiança que não deixaria dúvidas em nenhum dos membros do júri de que não era a primeira vez que depunha num julgamento de homicídio. Sir Toby continuou a agarrar na toga enquanto olhava, através da sala, para o seu parceiro de golfe. Professor Bamford - disse ele, como se nunca o tivesse visto antes -, para nós estabelecermos o seu nível de conhecimentos, será necessário fazer-lhe algumas perguntas preliminares que poderão causar-lhe algum embaraço. Mas é extremamente importante que eu seja capaz de mostrar ao juiz a relevância das suas qualificações, na medida em que elas afectam este caso específico. Harry, com um ar severo, acenou a cabeça em sinal de concordância. Professor Bamford, o senhor estudou na Escola de Leeds - disse Sir Toby, olhando o júri composto exclusivamente por habitantes de Yorkshire -, tendo em seguida obtido uma bolsa de estudo para o Magdalen College de Oxford, para estudar Jurisprudência. Harry acenou de novo com a cabeça e respondeu: Exactamente. - Enquanto Toby olhava de novo para os seus apontamentos, um gesto desnecessário, pois ele ensaiara esta rotina com Toby várias vezes. Mas não aceitou a oferta - prosseguiu Sir Toby - e preferiu estudar aqui em Leeds. Estou correcto ? Está - disse Harry. Desta vez, o júri também acenou a cabeça. Quando se trata de coisas que dizem respeito a Yorkshire, não há nada mais leal nem mais orgulhoso do que o homem de Yorkshire, pensou Sir Toby com satisfação. Para que conste nos autos, confirma que terminou a licenciatura na Universidade de Leeds com uma elevada classificação ? Exactamente. E que lhe foi oferecido um lugar na Universidade de Harvard para efectuar o seu doutoramento ? Harry fez uma ligeira vénia e confirmou que assim fora. Tinha vontade de dizer: " Despacha-te, Toby ", mas sabia que o seu velho companheiro de discussão iria tomar o maior partido possível dos momentos seguintes. E quanto à sua tese de doutoramento, escolheu o tema das pistolas e revólveres em relação a casos de homicídio? É verdade, Sir Toby. É também verdade - prosseguiu o distinto advogado - que a sua tese, quando foi apresentada ao júri, gerou tanto interesse que foi publicada pela Harvard University Press e é actualmente leitura obrigatória para quem se queira especializar em Medicina Legal? É muito amável da sua parte dizê-lo - disse Harry, dando a Toby a deixa para a afirmação seguinte. Mas não fui eu quem o disse - disse Sir Toby, endireitando-se e olhando para o júri. - Essas foram as palavras do juiz Daniel Webster, membro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Mas permita-me que passe adiante. Depois de terminar os estudos em Harvard e de ter regressado a Inglaterra, seria exacto dizer que a Universidade de Oxford tentou atraí-lo mais uma vez, oferecendo-lhe a primeira Cátedra de Medicina Legal, mas que o professor recusou mais uma vez o convite e preferiu voltar para a sua antiga universidade, primeiro como professor agregado e, mais tarde, como catedrático. Estou certo, professor Bamford? Está, sim, Sir Toby - disse Harry. Um cargo que tem ocupado ao longo dos últimos onze anos, apesar de várias universidades de todo o mundo lhe terem feito lucrativas ofertas para sair da sua amada Yorkshire e ir trabalhar para elas? Nesta altura, o juiz Fenton, que já ouvira tudo aquilo anteriormente, olhou para baixo e disse: Creio que posso afirmar, Sir Toby, que já demonstrou que a sua testemunha é um eminente perito no seu campo. Será que podemos avançar e tratar do caso vertente? Com todo o gosto, Meretíssimo, especialmente depois das suas amáveis palavras. Não será necessário acumular mais louvores sobre os ombros do professor. Sir Toby teria adorado dizer ao juiz que tinha, de facto, chegado ao fim dos seus comentários preliminares, momentos antes de ser interrompido. Com sua autorização, Meretíssimo, avançarei, então, para o caso vertente, uma vez que as credenciais desta testemunha específica já ficaram amplamente demonstradas - virou-se para trás e olhou para o professor, com quem trocou um piscar de olhos intencional. - Ontem - prosseguiu Sir Toby -, o meu douto amigo, o Dr. Rogers, expôs os argumentos da acusação de uma forma bastante convincente, não deixando qualquer dúvida ao júri de que a mesma dependia de uma única prova: nomeadamente, a arma fumegante que nunca deitou fumo... - Uma expressão que Harry ouvira o seu velho amigo utilizar muitas vezes no passado e que, não tinha qualquer dúvida, usaria em muitas mais ocasiões no futuro. "Estou a referir-me à arma, coberta por impressões digitais do réu, que foi encontrada perto do corpo da sua infeliz mulher, Mrs. Valerie Richards. A Acusação afirmou seguidamente que, depois de ter morto a mulher, o meu cliente entrou em pânico e saiu a correr da casa, deixando a arma no meio da sala. - Sir Toby deu meia volta para olhar o júri de frente. - Com base nesta única e frágil prova, e eu provarei que ela é realmente frágil, é-vos pedido, membros do júri, que condenem um homem por homicídio e o coloquem atrás das grades para o resto da vida - fez uma pausa para permitir que o júri se compenetrasse do significado das suas palavras. "Por conseguinte, voltando agora para si, professor Bamford, como perito eminente no seu domínio, para utilizar a descrição do seu estatuto feita pelo meretíssimo juiz, queria fazer-lhe uma série de perguntas. - Harry compreendeu que o preâmbulo chegara finalmente ao fim e que ele teria de fazer jus à sua reputação. "Começarei por perguntar-lhe, professor, se, de acordo com a sua experiência, é provável que um assassino, depois de ter disparado sobre a sua vítima, deixe a arma do homicídio no local do crime? Não, Sir Toby, isso é extremamente invulgar - respondeu Harry. - Em noventa por cento dos casos em que está envolvida uma pistola, a arma nunca é recuperada, porque o assassino se certifica de que se desfaz da prova. Exactamente - disse Sir Toby. - Nos dez por cento dos casos em que a arma é recuperada, é usual encontrar a arma do assassinato coberta de impressões digitais? Essa situação é quase desconhecida - respondeu Harry. - Anão ser que o assassino seja completamente idiota ou seja, de facto, apanhado em flagrante. O réu pode ser muitas coisas - disse Sir Toby -, mas é óbvio que não é tolo. Tal como o professor, ele estudou no Liceu de Leeds; e foi preso, não no local do crime, mas sim na casa de uma pessoa amiga, situada no outro lado da cidade. - Sir Toby não mencionou, como o advogado de acusação fizera notar várias vezes nas suas alegações iniciais, que o réu fora encontrado na cama com a amante, que era o seu único álibi. "Agora, gostaria de me debruçar sobre a arma em si, professor. Uma Smith & Wesson K4217B. Na realidade, foi uma K4127B - disse Harry, corrigindo o seu velho amigo. Curvo-me perante o seu superior conhecimento - disse Sir Toby, satisfeito com o efeito que o seu pequeno erro teve no júri. - Agora, voltando ao revólver. O laboratório do Ministério da Administração Interna encontrou as impressões digitais da vítima na arma? Encontrou sim, Sir Toby. E, como perito, isso fá-lo chegar a alguma conclusão? Faz, sim. As impressões digitais de Mrs. Richards eram proeminentes sobretudo no gatilho e no cabo do revólver, o que me leva a acreditar que ela foi a última pessoa a manusear a arma. De facto, as provas físicas sugerem que foi ela que apertou o gatilho. Compreendo - disse Sir Toby. - Mas não poderia a arma ter sido colocada pelo assassino na mão de Mrs. Richards, a fim de enganar a Polícia? Eu poderia concordar com essa teoria se a Polícia não tivesse também encontrado as impressões digitais de Mr. Richards no gatilho. Não tenho a certeza de compreender bem aonde quer chegar, professor - disse Sir Toby, compreendendo perfeitamente. Em quase todos os casos em que estive envolvido, a primeira coisa que um assassino faz é remover as suas próprias impressões digitais da arma do crime antes de pensar em colocá-la na mão da vítima. Estou a compreender. Mas corrija-me se eu estiver errado - disse Sir Toby. - Aarma não foi encontrada na mão da vítima, mas sim a três metros de distância do seu corpo, que é onde a acusação diz que ela caiu quando o réu fugiu, em pânico, de casa. Por isso, deixe-me fazer-lhe uma pergunta, professor Bamford, se alguém que cometesse suicídio colocasse um revólver junto à têmpora e carregasse no gatilho, onde acha que a arma iria parar? A qualquer distância entre um metro e oitenta e três metros do corpo - respondeu Harry. - É um erro vulgar cometido muitas vezes por filmes e programas de televisão pouco cuidados mostrar a vítima ainda com a arma na mão, depois de ter dado um tiro na cabeça. O que realmente acontece em caso de suicídio é que a força do coice arranca a arma da mão da vítima e atira-a para longe do corpo. Ao longo de trinta anos a lidar com suicídios envolvendo armas, nem uma só vez tive conhecimento de que a arma tenha permanecido na mão da vítima. Por conseguinte, na sua opinião como perito, professor, as impressões digitais de Mrs. Richards e a posição da arma estariam mais de acordo com um suicídio do que com um assassinato. Exactamente, Sir Toby. Uma última pergunta, professor - disse o advogado de defesa, agarrando nas lapelas. - Em casos semelhantes a este, em que já foi testemunha de defesa, qual foi a percentagem dos júris que pronunciaram um veredicto de inocente? A matemática nunca foi o meu forte, Sir Toby, mas, em vinte e quatro casos, vinte e um terminaram com a absolvição do réu. Sir Toby virou-se para o júri. Vinte e um em vinte e quatro casos - disse ele - terminaram com a absolvição do réu depois de o professor ter sido ouvido como perito judicial. Penso que isso é cerca de 85%, Meretíssimo. Não tenho mais perguntas a fazer. Toby alcançou Harry nas escadas do tribunal. Deu uma palmada nas costas do velho amigo. Atiraste-lhes outra vez poeira para os olhos, Harry. Não admira que, depois de teres prestado o teu depoimento, a Acusação tivesse desistido, nunca te vi em melhor forma. Tenho de ir andando. Tenho um caso a começar amanhã no Bailey, por isso encontramo-nos no primeiro buraco, no sábado, às dez. Isto é, se a Valerie me deixar. Encontrar-nos-emos muito antes - disse o professor, enquanto Sir Toby saltava para dentro de um táxi.

Sir Toby olhou para os seus apontamentos enquanto esperava pela primeira testemunha. O processo começara mal. A Acusação conseguira apresentar uma quantidade de provas contra a sua cliente, que ele não estava em condições de refutar. Não estava nada entusiasmado com a perspectiva de efectuar a inquirição de uma fila de testemunhas que iriam corroborar essas provas. O juiz Fairborough, que estava a julgar este caso, acenou a cabeça na direcção do advogado de acusação. Pode chamar a sua primeira testemunha O advogado Desmond Lennox levantou-se lentamente da cadeira. Obrigado, Meretíssimo. Gostaria de chamar o professor Harold Bamford. Sir Toby ergueu, surpreendido, os olhos dos apontamentos e viu o seu velho amigo dirigir-se, confiante, ao banco das testemunhas. O júri londrino olhou, com um ar intrigado, para o homem de Leeds. Sir Toby teve de admitir que o Dr. Lennox estabeleceu bastante bem as credenciais da sua testemunha, sem fazer qualquer referência a Leeds. O Dr. Lennox fez seguidamente uma série de perguntas a Harry, no fim das quais a sua cliente parecia um cruzamento de Jack, o Estripador, com o Dr. Crippen. Não tenho mais perguntas a fazer, Meretíssimo - disse o Dr. Lennox, sentando-se com uma expressão de satisfação no rosto. O juiz Fairborough olhou para Sir Toby e perguntou: Tem alguma pergunta a fazer a esta testemunha? Tenho, com certeza, Meretíssimo - disse Toby, levantando-se da cadeira. - Professor Bamford - disse ele, como se esta fosse a primeira vez que se encontravam -, antes de me referir ao caso vertente, eu penso que é justo dizer que o meu distinto adversário fez grande questão em estabelecer as suas credenciais como perito judicial perante o júri. Vai-me perdoar eu voltar a esta questão para esclarecer alguns pequenos pormenores que me intrigaram. Com certeza, Sir Toby. O primeiro curso que tirou na... ah, sim, na Universidade de Leeds. Foi em quê? Geografia - disse Harry. Isso é muito interessante. Eu não consideraria a geografia uma preparação óbvia para alguém que se iria tornar um perito em armas. No entanto - prosseguiu ele -, permita-se que salte para o seu doutoramento, que foi atribuído por uma universidade americana. Posso perguntar-lhe se o mesmo foi reconhecido por universidades inglesas? Não, Sir Toby, mas... Por favor, limite-se a responder às perguntas, professor Bamford. Por exemplo, as Universidades de Oxford ou Cambridge reconhecem o seu doutoramento? Não, Sir Toby. Muito bem. E, tal como o Dr. Lennox afirmou, todo este processo pode muito bem estar dependente das suas credenciais como perito judicial. O juiz Fairborough olhou para o advogado de defesa. Competirá ao júri tomar essa decisão, com base nos factos que lhe forem apresentados, Sir Toby. Eu concordo, Meretíssimo. Só estava a determinar qual o grau de credibilidade que os membros de júri devem atribuir ao perito judicial da Acusação. O juiz voltou a franzir o sobrolho. Mas se acha que essa questão já está esclarecida, Meretíssimo, eu prossigo - disse Sir Toby, voltando-se para o seu velho amigo. Professor Bamford, o senhor disse ao júri (como perito) que, neste caso específico, a vítima não podia ter cometido suicídio porque ainda tinha a arma na mão. Exactamente, Sir Toby. É um erro vulgar, cometido muitas vezes por filmes e programas de televisão pouco cuidados, mostrar a vítima ainda com a arma na mão depois de ter dado um tiro na cabeça. Sim, sim, professor Bamford. Já ficámos informados a respeito dos seus grandes conhecimentos sobre telenovelas quando o meu douto amigo o interrogou. Ao menos, encontrámos uma coisa em que é perito. Mas eu gostaria de voltar ao mundo real. Gostaria de ser esclarecido sobre uma questão, professor Bamford: o senhor não está a sugerir, espero bem, que o seu depoimento prova que a minha cliente colocou a arma na mão do marido. Se assim fosse, o senhor não seria um perito, professor Bamford, mas sim um vidente. Eu nunca sugeri tal coisa, Sir Toby. Obrigado pela sua concordância neste ponto. Mas diga-me, professor Bamford, de acordo com a sua experiência, alguma vez encontrou um caso em que o assassino tenha colocado a arma na mão da vítima para sugerir que a causa da morte fosse suicídio? Harry hesitou durante um momento. Não tenha pressa, professor Bamford. O resto da vida de uma mulher pode depender da sua resposta. Já encontrei casos desses no passado - disse ele, hesitando novamente - ... em três ocasiões. Em três ocasiões? - repetiu Sir Toby, tentando parecer surpreendido, apesar de ele próprio ter participado nos três casos. E, nesses três casos, o júri pronunciou um veredicto de inocente? Não - disse Harry em voz baixa. Não? - repetiu Sir Toby, voltando-se para o júri. - Em quantos desses casos o júri considerou o réu inocente? Em dois deles. E que aconteceu ao terceiro? - perguntou Sir Toby. O homem foi condenado por homicídio. E condenado...? - perguntou Sir Toby. A prisão perpétua. Eu acho que gostaria de saber mais alguns pormenores sobre o desfecho desse caso, professor Bamford. Será que estas perguntas têm algum objectivo? - perguntou o juiz Fairborough, olhando para o advogado de defesa. Desconfio que estamos prestes a sabê-lo, Meretíssimo - disse Sir Toby, voltando-se de novo para o júri, cujos olhos estava agora fixos no perito judicial. - Professor Bamford, por favor, relate ao tribunal os pormenores desse caso específico. Nesse processo, Reynolds contra a Coroa - disse Harry -, Mr. Reynolds cumpriu onze anos da pena antes de terem surgido novas provas que demostraram que ele não podia ter cometido o crime. Espero que me perdoe a minha pergunta seguinte, professor Bamford, mas a reputação de uma mulher, já para não falar da sua liberdade, está em causa neste tribunal. - Fez uma pausa, olhou com ar grave para o seu velho amigo e disse: - Nesse caso específico, o professor foi testemunha de acusação? Fui, Sir Toby. Como perito judicial da Coroa? Harry acenou a cabeça em sinal de assentimento. Sim, Sir Toby. E um homem inocente foi condenado por um crime que não cometeu e acabou por cumprir uma pena de onze anos? Harry acenou de novo a cabeça. Sim, Sir Toby. Não existem quaisquer reticências nesse caso específico? - perguntou Sir Toby. Esperou por uma resposta, mas Harry ficou calado. Ele sabia que, neste caso específico, já não tinha qualquer credibilidade como perito judicial. Uma última pergunta, professor Bamford, nos outros dois casos, os veredictos dos júris apoiaram a sua interpretação das provas? Apoiaram, sim, Sir Toby. Professor Bamford, o senhor deverá recordar-se de que a Coroa realçou bastante o facto de, no passado, o seu testemunho ter sido crucial em casos deste tipo; de facto, para citar o Dr. Lennox , "ele constituiu o factor decisivo para comprovar os argumentos da Coroa". No entanto, ficámos agora a saber que, nos três casos em que uma arma foi encontrada na mão da vítima, o senhor teve uma percentagem de fracasso de 33% como perito judicial. Tal como Sir Toby sabia que iria acontecer, Harry não fez quaisquer comentários. E, como resultado, um homem inocente passou onze anos na cadeia. - Sir Toby deslocou a sua atenção para o júri e disse tranquilamente: - Professor Bamford, esperemos que uma mulher inocente não esteja prestes a passar o resto da sua vida na cadeia por causa da opinião de um "perito judicial" que consegue errar em 33% das vezes. O Dr. Lennox pôs-se de pé para protestar contra a forma como a testemunha estava a ser tratada, e o juiz Fairborough fez um sinal de advertência com o dedo. Essa foi uma conduta imprópria, Sir Toby - avisou ele. Mas os olhos de Sir Toby permaneciam fixos no júri, cujos membros tinham deixado de estar suspensos de todas as palavras do perito judicial e murmuravam entre si. Sir Toby dirigiu-se lentamente ao seu lugar e sentou-se. Não tenho mais perguntas a fazer, Meretíssimo. Bela tacada - disse Toby, enquanto a bola de Harry desaparecia no décimo oitavo buraco. - Sou eu a pagar o almoço. Há muitas semanas que não te ganho, Harry. Oh, não sei se isso é verdade, Toby - disse o seu companheiro de golfe, enquanto se dirigiam para as instalações do clube. - Como é que descreverias o que me fizeste no tribunal na quinta-feira? Sim, tenho de te pedir desculpa por isso, meu amigo - disse Toby. - Não é nada de pessoal, como bem sabes. Deixa-me que te diga que foi muito estúpido da parte de Lennox escolher-te como perito judicial. Concordo contigo - disse Harry. - Eu avisei-os de que não havia ninguém que me conhecesse melhor do que tu, mas Lennox insistiu que não estava interessado no Circuito Norte-Leste. Eu não me importaria tanto - disse Toby, sentando-se à mesa - se não fosse o facto... Se não fosse o facto...? - repetiu Harry. De, em ambos os casos, tanto o de Leeds como o do Bailey, qualquer júri ser capaz de ver que os meus clientes eram culpados.

                                       O FIM DO JOGO

Cornelius Barrington hesitou antes de jogar o lance seguinte. Continuou a estudar o tabuleiro com grande interesse. O jogo durava há mais de duas horas, e Cornelius estava confiante de que só lhe faltavam sete lances para xeque-mate. Desconfiou que o seu adversário também tinha consciência desse facto. Cornelius ergueu os olhos e sorriu para Frank Vintcent, que não só era o seu amigo mais antigo mas também passara a ser, como advogado da família, o seu conselheiro mais sensato. Os dois homens tinham muitas coisas em comum: a idade, tendo ambos mais de sessenta anos; os seus antecedentes familiares, pois eram ambos filhos de profissionais liberais da classe média; tinham frequentado a mesma escola e a mesma universidade. Mas as semelhanças terminavam aí. Cornelius era, por natureza, um empresário, um homem que gostava de correr riscos, que fizera fortuna nas minas da África do Sul e do Brasil. Frank era advogado, cauteloso, lento a tomar decisões e fascinado com os pormenores. Cornelius e Frank também eram diferentes fisicamente. Cornelius era alto, entroncado, com uma cabeleira prateada que causaria inveja a muitos homens com metade da sua idade. Frank era magro, de estatura média e, com excepção de um círculo de tufos grisalhos, era quase completamente careca. Cornelius ficara viúvo após quatro décadas de uma vida matrimonial feliz. Frank era um solteirão convicto. Uma das coisas que os tinham mantido amigos próximos era o seu persistente amor pelo xadrez. Frank ia ter com Cornelius a The Willows todas as quintas-feiras à noite para jogar, e o resultado permanecia geralmente inconclusivo, terminando muitas vezes com um empate. A noite começava sempre com um jantar leve, com apenas um copo de vinho cada um (os dois homens levavam o seu xadrez muito a sério) e depois do jogo voltavam para a sala de estar para beber um copo de brande e fumar um charuto; mas, nessa noite, Cornelius estava prestes a quebrar essa rotina. Parabéns - disse Frank, erguendo os olhos do tabuleiro. - Acho que desta vez me bateste. Tenho praticamente a certeza de que não tenho saída - sorriu, deitou o rei vermelho no tabuleiro, levantou-se da cadeira e apertou a mão do seu melhor amigo. Vamos até à sala beber um brande e fumar um charuto - sugeriu Cornelius, como se esta fosse uma ideia nova. Obrigado - disse Frank enquanto saíam do escritório e se dirigiam à sala de estar. Quando Cornelius passou pelo retrato do seu filho Daniel, o seu coração pareceu parar de bater por um momento, algo que não se alterara durante os últimos vinte e três anos. Se o seu único filho não tivesse morrido, ele não teria vendido a empresa. Quando entraram na espaçosa sala de estar, os dois homens foram recebidos por um crepitante fogo que ardia na lareira, o qual fora preparado por Pauline, a governanta de Cornelius, apenas alguns minutos depois de ela ter acabado de levantar a mesa do jantar. Pauline também acreditava nas virtudes da rotina, mas a sua vida também estava prestes a ser destroçada. Eu devia ter-te encurralado alguns lances antes - disse Cornelius -, mas fui tomado de surpresa quando capturaste o bispo da minha rainha. Eu devia ter previsto isso - acrescentou ele, dirigindo-se ao aparador. Dois conhaques generosos e dois charutos Monte Cristo tinham sido colocados numa bandeja de prata. Cornelius pegou no cortador de charutos e passou-o ao seu amigo, depois acendeu um fósforo, inclinou-se para a frente e ficou a ver Frank chupar, até estar convencido de que o charuto estava aceso. Seguidamente, seguiu ele próprio a mesma rotina antes de se afundar na sua poltrona preferida junto da lareira. Frank ergueu o copo. Bem jogado, Cornelius - disse ele, fazendo uma ligeira vénia, embora o seu anfitrião fosse talvez o primeiro a reconhecer que, ao longo dos anos, o seu convidado talvez levasse alguns pontos de vantagem. Cornelius deixou Frank fumar mais um pouco antes de lhe estragar a noite. Por que é que havia de ter pressa? Afinal de contas, há várias semanas que ele se estava a preparar para este momento e não queria partilhar o segredo com o seu amigo mais antigo antes de estar tudo no seu lugar. Ficaram ambos em silêncio durante algum tempo, sentindo-se descontraídos na companhia um do outro. Por fim, Cornelius colocou o seu brande numa mesinha de apoio e disse: Frank, nós somos amigos há mais de cinquenta anos. Igualmente importante foi o facto de, como meu conselheiro jurídico, teres demonstrado ser um astuto advogado. Na realidade, desde a morte prematura de Millicent que não tenho tido mais ninguém em quem confiar. Frank continuou a fumar o seu charuto sem interromper o amigo. Pela expressão do seu rosto, ele compreendeu que o elogio não era mais do que um gambito de abertura. Desconfiou que teria de esperar algum tempo antes de Cornelius revelar o seu lance seguinte. Quando montei a empresa há uns trinta anos, foste tu que redigiste a escritura original; e acho que, desde esse dia, nunca assinei um documento legal que não tivesse passado primeiro pela tua secretária, algo que foi indubitavelmente um factor importante no meu êxito. É muito generoso da tua parte dizê-lo - disse Frank, antes de beber outro golo de brande -, mas a verdade é que foi sempre a tua originalidade e espírito empreendedor que tornaram possível à empresa ficar cada vez mais forte, dons que os deuses decidiram não me conceder, não me deixando outra alternativa senão a de ser um mero escrevinhador. Tu sempre subestimaste a tua contribuição para o êxito da empresa, Frank, mas não tenho qualquer dúvida sobre o papel que desempenhaste ao longo dos anos. Aonde é que esta conversa toda vai ter? - perguntou Frank com um sorriso. Paciência, meu amigo - disse Cornelius. - Ainda me faltam alguns lances antes de revelar o gambito que tenho em mente - recostou-se na poltrona e chupou longamente o charuto. - Como sabes, quando há quatro anos vendi a empresa, tencionava, pela primeira vez, abrandar o ritmo ao fim de muitos anos. Prometera levar Milhe à índia e ao Extremo Oriente, para umas férias prolongadas - fez uma pausa -, mas isso não chegou a acontecer. Frank acenou a cabeça, manifestando compreensão. A morte dela serviu para me lembrar que eu também sou mortal e posso não viver muito mais tempo. Não, não, meu amigo - protestou Frank. - Ainda tens muitos anos à tua frente. É possível que tenhas razão - disse Cornelius -, embora, por estranho que pareça, tenhas sido tu que me fizeste começar a pensar a sério no futuro... Eu? - perguntou Frank, com um ar intrigado. Sim. Não te recordas de, há algumas semanas, estar sentado nessa cadeira e de me teres sugerido que era altura de eu pensar em fazer um novo testamento? Recordo-me, sim - disse Frank -, mas isso foi apenas porque, no teu testamento actual, tu deixas praticamente tudo a Millie. Eu sei - disse Cornelius -, mas, mesmo assim, isso serviu para me fazer pensar. Continuo a levantar-me todos os dias às seis da manhã, mas já não tenho um escritório para onde ir, e passo muitas horas a reflectir sobre como hei-de distribuir a minha riqueza agora que Millie já não pode ser a principal beneficiária. Cornelius deu outra longa chupadela no charuto antes de continuar. No último mês, tenho estado a pensar nos que me rodeiam, os meus familiares, amigos, conhecidos e emprega- dos, e comecei a pensar na forma como sempre me trataram, o que me fez perguntar a mim próprio quais, entre eles, manifestariam o mesmo carinho, atenção e lealdade se eu não tivesse uma fortuna e fosse, pelo contrário, um velho sem vintém. Tenho a sensação de que estou em xeque - disse Frank, com uma gargalhada. Não, não, meu querido amigo - disse Cornelius. - Tu estás isento de dúvidas desse tipo. Se assim não fosse, eu não estaria a partilhar estas confidências contigo. Mas não achas que esses pensamentos são um pouco injustos para com a tua família mais próxima, já para não falar... É possível que tenhas razão, mas eu não quero deixar isso ao acaso. Decidi, por conseguinte, descobrir por mim próprio, pois considero insatisfatória qualquer mera especulação. - Cornelius fez mais uma vez uma pausa para fumar o charuto, antes de prosseguir. - Por isso, deixa-me dizer-te o que tenho em mente, pois confesso que, sem a tua colaboração, ser-me-á impossível levar a cabo o meu pequeno subterfúgio. Mas primeiro deixa-me encher outra vez o teu copo. - Cornelius levantou-se da cadeira, pegou no copo vazio do amigo e dirigiu-se ao aparador. "Como eu estava a dizer - prosseguiu Cornelius, devolvendo o copo, agora cheio, a Frank. - Recentemente, tenho estado a pensar em como os que me cercam se comportariam se eu não tivesse dinheiro, e cheguei à conclusão de que só há uma maneira de descobrir. Frank bebeu um longo golo antes de perguntar: Que tens em mente? Um suicídio fingido, talvez? Nada tão dramático como isso - respondeu Cornelius. - Mas quase, porque - fez uma nova pausa - tenciono declarar que estou falido - olhou através da névoa de fumo, na esperança de observar a reacção imediata do seu amigo. Mas, como acontecera frequentemente no passado, o rosto do velho advogado permaneceu inescrutável, sobretudo porque, embora o seu amigo tivesse feito um lance ousado, ele sabia que o jogo estava longe de ter terminado. Fez avançar tentativamente um peão. Como tencionas fazê-lo? - perguntou. Amanhã de manhã - respondeu Cornelius. - Quero que escrevas às cinco pessoas que mais direito têm a herdar os meus bens: o meu irmão Hugh, a sua mulher Elizabeth, o seu filho Timothy, a minha irmã Margaret e, finalmente, a minha governanta Pauline. E o que dirá essa carta? - perguntou Frank, tentando não parecer demasiado incrédulo. Vais explicar a todos eles que, devido a um insensato investimento feito por mim pouco depois da morte da minha mulher, estou agora cheio de dívidas. De facto, sem a sua ajuda, poderei bem ir à falência. Mas... - protestou Frank. Cornelius ergueu uma mão. Presta atenção - pediu ele - porque o teu papel neste jogo de vida real pode ser crucial. Depois de os teres convencido de que já não podem esperar nada de mim, tenciono pôr a segunda parte do plano em funcionamento, a qual deve demonstrar, sem sombra de dúvida, se eles gostam de mim ou apenas da perspectiva de herdar a minha fortuna. Estou ansioso por saber o que tens em mente - disse Frank. Cornelius fez girar o brande no copo, enquanto reflectia. Como muito bem sabes, as cinco pessoas que referi pediram-me um empréstimo no passado. Eu nunca exigi nada por escrito, pois sempre considerei o pagamento dessas dívidas uma questão de confiança. Esses empréstimos variam entre cem mil libras ao meu irmão Hugh para comprar a sua loja que, segundo creio, está a ir muito bem, e quinhentas libras que a minha governanta Pauline me pediu para dar como entrada na compra de um automóvel. Até mesmo o jovem Timothy precisou de mil libras para pagar o empréstimo à universidade e, como ele parece estar a fazer grandes progressos na profissão que escolheu, não seria nada de mais pedir-lhe, tal como aos outros, que pagasse a sua dívida. E o segundo teste? - perguntou Frank. Desde a morte de Millie, todos eles me têm feito alguns serviços e sempre insistiram que os faziam com todo o gosto. Eu quero descobrir se estão dispostos a fazer o mesmo por um velho sem dinheiro. Mas como é que irás saber... - começou Frank. Penso que se tornará óbvio à medida que as semanas forem passando. E, em todo o caso, há um terceiro teste, que acredito irá decidir a questão. Frank olhou para o amigo. Valerá a pena tentar dissuadir-te desta ideia louca? - perguntou ele. Não, não vale a pena - respondeu Cornelius sem hesitar. - Estou decidido, embora reconheça que, sem a tua colaboração, não posso fazer o primeiro lance, quanto mais levá-lo a bom termo. Se é realmente o que queres que eu faça, Cornelius, então seguirei as tuas instruções à risca, tal como sempre fiz no passado. Mas, neste caso, eu imponho uma condição. E que condição é essa? - perguntou Cornelius. Não vou cobrar nada por este trabalho, de modo a poder afiançar a quem perguntar que não beneficiei nada com as tuas tolices. Mas... Não há "mas" nem meio "mas", meu velho amigo. Quando vendeste a empresa, as minhas acções originais renderam-me um belo lucro. Deves considerar isto uma pequena tentativa de te agradecer. Cornelius sorriu. Sou eu quem deve estar grato e, de facto, reconheço como o teu auxílio me foi precioso ao longo de todos estes anos. Tu és realmente um bom amigo, e juro que, se não fosses solteiro e se não soubesse que isso não alteraria nem um pouco o teu modo de vida, seria a ti que eu deixaria todos os meus bens. Não, obrigado - disse Frank com uma pequena gargalhada. - Se o fizesses, teria de efectuar exactamente o mesmo teste com um conjunto de peças diferentes - fez uma pausa. - Então, qual é o teu primeiro lance? Cornelius ergueu-se da cadeira. Amanhã vais enviar cinco cartas, informando as pessoas em causa que recebi um aviso de falência e que preciso que os empréstimos sejam pagos na sua totalidade o mais rapidamente possível. Frank já começara a tomar apontamentos num pequeno bloco que trazia sempre consigo. Vinte minutos mais tarde, depois de ter anotado as últimas instruções de Cornelius, voltou a colocar o bloco num bolso interior, acabou o copo e apagou o seu segundo charuto da noite. Quando Cornelius se levantou para o acompanhar à porta da frente, Frank perguntou: Mas qual vai ser o terceiro teste, aquele que, segundo pensas, será conclusivo? O velho advogado escutou atentamente, enquanto Cornelius delineava uma ideia tão engenhosa que ele se foi embora a pensar que as vítimas não teriam outra hipótese a não ser revelar o seu verdadeiro carácter. A primeira pessoa a telefonar a Cornelius no sábado de manhã foi o seu irmão Hugh. Deve ter sido poucos momentos depois de ter aberto a carta de Frank. Cornelius teve a sensação distinta de que havia mais alguém a escutar a conversa. Acabei de receber uma carta do teu advogado - disse Hugh - e simplesmente não consigo acreditar. Por favor, diz-me que houve um erro terrível. Infelizmente, não houve erro algum - respondeu Cornelius. - Bem gostaria de te poder dizer o contrário. Mas como é que tu, que és normalmente tão astucioso, permitiste que acontecesse uma coisa dessas? Deve ser da velhice - respondeu Cornelius. - Algumas semanas depois de Millie ter morrido, convenceram-me a investir uma quantia avultada numa empresa que se especializava em fornecer equipamento de minas aos russos. Todos nós já lemos notícias sobre a existência de poços de petróleo inesgotáveis ali existentes se conseguirmos lá chegar, por isso eu estava confiante que o meu in- vestimento renderia um belo lucro. Na sexta-feira passada, fui informado pelo secretário da empresa que estávamos à beira da falência. Mas certamente que não investiste tudo o que tinhas numa única empresa? - perguntou Hugh, parecendo ainda mais incrédulo. No início não, claro - disse Cornelius -, mas fui-me afundando cada vez mais à medida que eles precisavam de mais injecções de capital. No fim, tive de continuar a investir, pois era a única maneira de ter qualquer possibilidade de recuperar o investimento original. Mas a empresa não tem bens a que possas deitar a mão? E equipamento de minas? Está todo a enferrujar algures na Rússia central e, até agora, ainda não vi um dedal de petróleo sequer. Por que é que não saiste enquanto ainda era possível gerir as tuas perdas? - perguntou Hugh. Por orgulho, suponho. Não queria admitir que financiara um mau negócio e acreditei sempre que, a longo prazo, o meu dinheiro estaria seguro. Mas eles devem dar-te alguma compensação - disse Hugh num tom de desespero. Nem um centavo - respondeu Cornelius. - Nem sequer tenho dinheiro para comprar um bilhete de avião para ir passar alguns dias à Rússia para saber qual é a verdadeira situação. Quanto tempo te deram? Já recebi uma notificação de aviso de falência, por isso a minha sobrevivência depende de quanto eu conseguir arranjar a curto prazo. - Cornelius fez uma pausa. - Desculpa ter de te lembrar, Hugh, mas deves recordar-te de que te emprestei cem mil libras há algum tempo. Por isso, estava com alguma esperança que... Mas tu sabes que todo esse dinheiro foi enterrado na empresa e, com as vendas mais baixas que nunca, acho que, neste momento, só conseguiria arranjar alguns milhares. Cornelius julgou ter ouvido uma voz ao fundo a murmurar: "E não mais que isso." Sim, compreendo o teu problema - disse Cornelius. - Mas agradeço-te tudo o que puderes fazer para me ajudar. Quando decidires numa quantia - fez novamente uma pausa - e naturalmente terás de discutir com Elizabeth exactamente quanto poderás dispensar, envia o cheque directamente para o escritório de Frank Vintcent. Ele está a tratar de todo este infeliz assunto. Os advogados acabam sempre por ganhar a sua percentagem, quer se esteja bem ou mal. Devo dizer, com toda a justiça - disse Cornelius -, que, nesta ocasião, Frank renunciou aos seus honorários. E já que estamos a conversar, Hugh, os teus empregados que vão remodelar a cozinha deveriam começar mais lá para o fim da semana. Agora é ainda mais importante que eles terminem o trabalho o mais depressa possível, porque eu vou pôr a casa à venda, e a cozinha nova ajudar-me-á a conseguir um preço melhor. Vou ver o que posso fazer - disse Hugh -, mas é possível que tenha de deslocar essa equipa específica para outro trabalho. Neste momento, estamos com alguns trabalhos em atraso. Oh? Pensei que disseste que estavas com dificuldades monetárias - disse Cornelius, reprimindo o riso. E estamos - disse Hugh, um tudo nada demasiado depressa. - O que eu queria dizer é que todos nós temos de fazer horas extraordinárias só para nos mantermos à tona de água. Acho que compreendo - disse Cornelius. - Mesmo assim, tenho a certeza de que, agora que conheces bem a situação, irás fazer tudo o que te for possível para me ajudares - desligou o telefone e sorriu. A vítima que o contactou de seguida não se deu ao trabalho de telefonar: apareceu-lhe à porta alguns minutos depois e só tirou o dedo do botão da campainha quando ele lhe abriu a porta. Onde está Pauline? - foi a primeira pergunta de Margaret quando o irmão lhe abriu a porta. Cornelius olhou para a irmã, que pusera um pouco de maquilhagem a mais nessa manhã. Infelizmente, tive de a despedir - disse Cornelius, inclinando-se para beijar o rosto da irmã. - O requerente da falência não vê com bons olhos pessoas que não têm dinheiro para pagar aos credores mas conseguem manter um séquito pessoal. Foi muito amável da tua parte vires visitar-me tão rapidamente nesta hora difícil para mim, Margaret, mas, se te apetecer tomar um chá, receio que tenhas de ser tu própria a fazê-lo. Eu não vim cá tomar chá, como deves muito bem saber, Cornelius. O que eu quero saber é como é que conseguiste esbanjar toda a tua fortuna. - Antes de o irmão conseguir recitar algumas das frases do guião que ensaiara, ela acrescentou: - Vais ter, obviamente, que vender a casa. Eu sempre disse que, desde a morte de Millie, ela é demasiado grande para ti. Podes sempre arranjar um pequeno apartamento na vila. Esse tipo de decisão já não depende de mim - disse Cornelius, tentando parecer impotente. De que é que estás a falar? - perguntou Margaret, num tom agressivo. Apenas que a casa e o seu conteúdo foram penhorados pelos requerentes da falência. Para evitar ir à falência, temos de fazer votos para que a casa seja vendida por um preço muito superior ao que a agência imobiliária prevê. Estás a dizer-me que ficaste sem nada? Menos de nada seria mais exacto - disse Cornelius com um suspiro. - E quando me despejarem de The Willows, não terei para onde ir - tentou parecer triste. - Por isso, eu tinha esperança que tu me permitisses aceitar a amável oferta que fizeste no funeral da Millie para que eu fosse viver contigo. A irmã voltou-lhe as costas, pelo que Cornelius não conseguiu ver a expressão do seu rosto. Nesta altura, isso não seria conveniente - disse ela sem qualquer explicação. - E, em todo o caso, Hugh e a Elizabeth têm bastante mais quartos livres na casa do que eu. Está bem - disse Cornelius. Tossiu. - E o pequeno empréstimo que eu te fiz o ano passado, Margaret, desculpa falar no assunto, mas... O pouco dinheiro que eu tenho está cuidadosamente investido, e os meus corretores dizem-me que agora não é altura de vender. Mas a mesada que eu te dei todos os meses durante os últimos vinte anos... seguramente... tens algum dinheiro guardado? Infelizmente, não tenho - respondeu Margaret. - Deves compreender que, sendo tua irmã, eu tinha de manter um certo nível de vida, e agora que já não posso contar com a minha mesada, terei de ter ainda mais cuidado com os meus magros rendimentos. Com certeza, minha querida - disse Cornelius. - Mas qualquer pequena contribuição da tua parte me ajudará, se achares que podes... Tenho de me ir embora - disse Margaret, olhando para o relógio. - Por tua causa, já estou atrasada para o cabeleireiro. Antes de te ires embora, só tenho mais um pequeno pedido a fazer, minha querida - disse Cornelius. - Até agora, tu sempre tiveste a amabilidade de me dar uma boleia para a vila sempre que... Eu sempre disse, Cornelius, que há anos que devias ter aprendido a conduzir. Se o tivesses feito, não precisarias de ter toda a gente à tua disposição dia e noite. Vou ver o que posso fazer - acrescentou ela, enquanto ele lhe abria a porta. É estranho, eu não me lembro de alguma vez dizeres isso. Mas, se calhar, a minha memória também está a desaparecer - disse ele, seguindo a irmã ao longo do caminho que ia ter à estrada. Sorriu. - Carro novo, Margaret? - perguntou num tom inocente. É, sim - respondeu a irmã, mordaz, enquanto ele lhe abria a porta. Cornelius julgou detectar um ligeiro rubor no seu rosto. Riu intimamente enquanto ela se afastava. A cada minuto que passava, estava a aprender mais sobre a sua família. Cornelius voltou a entrar em casa e dirigiu-se ao escri- tório. Fechou a porta, pegou no telefone que estava em cima da secretária e ligou para o escritório de Frank. Vintcent, Ellwood e Halfon - disse uma voz seca. Gostava de falar com Mr. Vintcent, por favor. Quem deseja falar com ele? Cornelius Barrington. Vou ver se ele está disponível, Mr. Barrington. Muito bem, pensou Cornelius. Frank devia ter convencido até mesmo a sua recepcionista de que os rumores eram verdadeiros, porque, até então, a resposta dela fora sempre: Vou passar a chamada, sir. Bom dia, Cornelius - disse Frank. - Acabei agora mesmo de falar com o teu irmão Hugh. Foi a segunda vez que ele me telefonou esta manhã. Que é que ele queria? - perguntou Cornelius. Que eu lhe explicasse todas as implicações da situação, bem como as suas obrigações imediatas. Óptimo - disse Cornelius. - Assim, posso contar receber um cheque de cem mil libras no futuro próximo? Duvido - disse Frank. - Pelo tom da sua voz, não penso que fosse isso que ele tinha em mente mas, assim que ele voltar a contactar-me, eu digo-te. Ficarei ansiosamente à espera, Frank. Acho que estás a divertir-te bastante, Cornelius. Sem dúvida que estou - respondeu ele. - Só tenho pena que Millie não esteja aqui para partilhar este divertimento comigo. Sabes o que ela diria, não sabes? Não, mas acho que sei o que me vais dizer. És um velho malvado. E, como sempre, ela teria razão - confessou Cornelius com uma gargalhada. Adeus, Frank. - Assim que desligou, bateram à porta. Entre - disse Cornelius, intrigado com quem poderia ser. A porta abriu-se e a sua governanta entrou, trazendo na mão uma bandeja com uma chávena de chá e um prato de biscoitos. Ela estava, como sempre, muito bem arranjada, sem um único cabelo fora do lugar, e não manifestou qualquer sinal de embaraço. O primeiro pensamento de Cornelius foi que ela ainda não recebera a carta de Frank. Pauline - disse ele, enquanto ela colocava a bandeja em cima da secretária -, recebeste uma carta do meu advogado esta manhã? Recebi, sim, sir - respondeu Pauline -, e obviamente que vou vender o carro imediatamente para pagar as suas quinhentas libras - fez uma pausa antes de olhar directamente para ele. - Mas eu estava a pensar, sir... Sim, Pauline? Seria possível eu pagar com o meu trabalho? É que eu preciso do carro para ir buscar as minhas filhas à escola, não sei se compreende. Pela primeira vez desde que pusera o plano em prática, Cornelius sentiu-se culpado. Mas ele sabia que, se concordasse com o pedido de Pauline, alguém poderia descobrir e, isso, colocaria o plano em risco. Lamento muito, Pauline, mas não tenho outra opção. Isso foi exactamente o que o advogado me explicou na carta - disse Pauline, mexendo num pedaço de papel que tinha no bolso da bata. - Eu nunca gostei muito de advogados. Esta afirmação fez com que Cornelius se sentisse ainda mais culpado, porque ele não conhecia uma pessoa que merecesse mais confiança do que Frank Vintcent. É melhor eu ir-me embora agora, sir, mas passo por cá esta noite para me certificar de que a casa não está muito desarrumada. Seria possível, sir... Possível...? - disse Cornelius. Seria possível dar-me uma carta de recomendação? Quero dizer, com a minha idade, não é fácil arranjar um emprego. Eu vou dar-te uma recomendação com a qual vais conseguir arranjar um emprego no Palácio de Buckingham - disse Cornelius. Sentou-se imediatamente à secretária e escreveu uma carta cheia de elogios aos serviços que Pauline prestara durante mais de duas décadas. Releu-a e entregou-lha. - Obrigado, Pauline - disse ele -, por tudo o que fizeste no passado pelo Daniel, pela Millie e principalmente por mim. O prazer foi todo meu, sir - disse Pauline. Depois de ela ter fechado a porta atrás de si, Cornelius não pôde deixar de se interrogar se, por vezes, a amizade não era mais forte do que os laços de família. Sentou-se novamente à secretária e começou a tomar alguns apontamentos para se lembrar do que acontecera nessa manhã. Quando terminou, foi à cozinha fazer o almoço e descobriu que havia uma salada já pronta à sua espera. Depois do almoço, Cornelius apanhou um autocarro para o centro da vila, uma experiência nova. Demorou algum tempo a encontrar uma paragem, depois descobriu que o condutor não tinha troco para uma nota de vinte libras. O primeiro local a que se dirigiu depois de se apear no centro da vila foi o escritório do agente imobiliário local, que não pareceu muito surpreendido de o ver. Cornelius ficou radiante com a velocidade com que o rumor da sua morte financeira devia estar a espalhar-se. Vou mandar alguém a The Willows amanhã de manhã, Mr. Barrington - disse o jovem, levantando-se da cadeira atrás da secretária -, para tirar medidas e fotografias. Será que nos autoriza também a colocar uma tabuleta no jardim? Com certeza - disse Cornelius sem hesitar, e esteve quase a acrescentar "quanto maior, melhor". Depois de sair do escritório do agente imobiliário, Cornelius percorreu alguns metros ao longo da rua e entrou na empresa de mudanças local. Perguntou a outro jovem se podia fazer uma marcação para que fossem buscar todo o recheio da sua casa. E para onde irá tudo? Para o armazém Botts, na High Street - informou-o Cornelius. Muito bem, sir - disse o jovem empregado, pegando num bloco de apontamentos que tinha em cima da secretária. Depois de Cornelius ter preenchido o impresso em triplicado, o empregado disse: - Assine aqui, por favor, sir - apontando para o fundo do impresso. Seguidamente, parecendo um pouco nervoso, acrescentou: - É necessário um depósito de cem libras. Com certeza - disse Cornelius, tirando o livro de cheques do bolso. Lamento muito, mas terá de ser em dinheiro - disse o jovem em tom de confidência. Cornelius sorriu. Em mais de trinta anos, nunca ninguém se recusara a aceitar um cheque seu. Volto cá amanhã - disse ele. No caminho de regresso à paragem de autocarro, Cornelius espreitou pela montra da loja de ferragens do irmão e reparou que os empregados não pareciam muito ocupados. Quando chegou a The Willows, voltou para o escritório e tomou alguns apontamentos sobre o que se passara nessa tarde. À noite, quando subia as escadas para se deitar, pensou que aquela devia ter sido a primeira tarde em muitos anos em que ninguém lhe telefonara para perguntar como estava. Dormiu profundamente nessa noite. Na manhã seguinte, quando desceu, Cornelius apanhou o correio do tapete e foi até à cozinha. Passou os olhos pelas cartas enquanto comia uma tigela de flocos de cereais. Tinham-lhe dito uma vez que, assim que se soubesse que alguém poderia estar na falência, a caixa do correio seria inundada por contas a pagar, uma vez que os lojistas e pequenos comerciantes tentariam ser os primeiros a chegar, antes de mais alguém poder ser considerado credor preferencial. Não havia contas naquela manhã porque, antes de iniciar a sua viagem ao longo daquela estrada específica, Cornelius certificara-se de que todas elas estavam pagas. Para além de circulares e ofertas grátis, havia apenas um envelope branco com o carimbo de Londres. Era uma carta manuscrita do seu sobrinho Timothy, dizendo que lamentava muito ter tido conhecimento dos problemas do tio e que, embora actualmente não fosse muitas vezes a Chudley, ele faria o possível por ir visitá-lo a Shropshire no final da semana seguinte. Embora a mensagem fosse breve, Cornelius tomou silenciosamente nota de que Timothy era o primeiro membro da família a manifestar alguma comiseração pelo apuro em que se encontrava. Quando ouviu a campainha, colocou a carta em cima da mesa e dirigiu-se à entrada. Abriu a porta e deparou-se com Elizabeth, a mulher do seu irmão. Tinha o rosto pálido, vincado e com um ar extenuado, e Cornelius duvidou que ela tivesse dormido muito na noite anterior. Assim que entrou na casa, Elizabeth começou a andar de divisão em divisão, como se estivesse a certificar-se de que tudo se encontrava ainda no seu lugar, como se não conseguisse acreditar nas palavras que lera na carta do advogado. Quaisquer dúvidas que pudesse ainda acalentar devem ter sido dissipadas quando, alguns minutos depois, o agente imobiliário local apareceu à porta, com a fita métrica na mão e um fotógrafo ao seu lado. Se Hugh pudesse devolver pelo menos parte dos cem mil libras que eu lhe emprestei, seria uma grande ajuda - comentou Cornelius com a sua cunhada, enquanto a seguia pela casa. Ela demorou algum tempo a falar, apesar de ter tido a noite inteira para pensar na resposta. Não é assim tão fácil - acabou por responder. - O empréstimo foi feito à empresa, e as acções foram distribuídas por várias pessoas. Cornelius conhecia todas as três das várias pessoas. Então, talvez seja altura de tu e Hugh venderem algumas das vossas acções. E permitir que um desconhecido tome conta da empresa, depois de todo o trabalho que nela investimos ao longo dos anos? Não, não podemos permitir que isso aconteça. Em todo o caso, Hugh perguntou a Mr. Vintcent qual era a situação do ponto de vista legal, e ele confirmou que não tínhamos qualquer obrigação de vender as acções. Já pensaste que talvez tenhas uma obrigação moral? - perguntou Cornelius, enfrentando a cunhada cara a cara. Cornelius - disse ela, evitando o seu olhar -, foi a tua irresponsabilidade e não a nossa que provocou a tua queda. Certamente que não estás à espera que o teu irmão sacrifique tudo e coloque a minha família na mesma situação arriscada em que agora te encontras? Cornelius compreendeu o motivo por que Elizabeth não dormira na noite anterior. Ela não só servia de porta-voz de Hugh, como também era óbvio que era ela quem tomava as decisões. Cornelius sempre achara que, dos dois, era ela a mais enérgica, e duvidava que chegasse a encontrar--se frente a frente com o irmão antes de terem chegado a um acordo. Mas se houver alguma outra forma de podermos ajudar... - acrescentou Elizabeth num tom mais suave, enquanto a sua mão pousava numa ornada mesa folheada de ouro da sala de estar. Bem, já que falas nisso - respondeu Cornelius. - Eu vou pôr a casa à venda dentro de algumas semanas e vou procurar... Tão depressa? - perguntou Elizabeth. - E que vai acontecer à mobília toda? Terá de ser vendida para cobrir as dívidas. Mas como já disse... Hugh gostou sempre muito desta mesa Luís XIV - disse Cornelius num tom casual. Quanto valerá ela? - inquiriu Elizabeth num tom pensativo, tentando dar a impressão de que isso não era importante. Não faço a mínima ideia - disse Cornelius. - Se bem me lembro, paguei cerca de sessenta mil libras por ela, mas isso foi há mais de dez anos. E o jogo de xadrez? - perguntou Elizabeth, pegando numa das peças. É uma cópia sem qualquer valor - respondeu Cornelius. - Podes comprar um jogo igual a este em qualquer bazar árabe por algumas centenas de libras. Oh, eu sempre pensei.... - Elizabeth hesitou antes de voltar a colocar a peça no quadrado errado. - Bem, tenho de me ir embora - disse ela, soando como se a sua tarefa estivesse terminada. - Não nos podemos esquecer que ainda tenho uma empresa para gerir. Cornelius acompanhou-a ao longo do comprido corredor, na direcção da porta da frente. Ela passou, sem parar, pelo retrato do seu sobrinho Daniel. No passado, parara sempre comentando que sentia muitas saudades dele. Tenho estado a pensar... - começou Cornelius a dizer quando chegaram à entrada. Sim? - disse Elizabeth. Bem, como tenho que deixar a casa dentro de poucas semanas, estava com esperança que fosse possível ir viver convosco. Isto é, até encontrar alguma coisa dentro das minhas posses. Se, ao menos, tivesses perguntado uma semana atrás - disse Elizabeth, sem a mínima hesitação. - Mas, infelizmente, já decidimos que a minha mãe virá viver connosco e o único outro quarto disponível é o do Timothy, e ele vem a casa a maior parte dos fins-de-semana. Vem? - disse Cornelius. E o relógio de pêndulo? - perguntou Elizabeth, que ainda parecia andar às compras. Vitoriano, comprei-o ao espólio do conde de Bute. Não, eu quero dizer, quanto vale? O que quer que alguém esteja disposto a pagar por ele - respondeu Cornelius quando chegaram à porta da frente. Não te esqueças de me contactar, Cornelius, se houver alguma coisa que eu possa fazer. És muito amável, Elizabeth - disse ele abrindo a porta e vendo o agente imobiliário a colocar uma estaca com uma tabuleta que dizia VENDE-SE. Cornelius sorriu, porque essa foi a única coisa nessa manhã que fez Elizabeth estacar repentinamente.

Frank Vintcent chegou na quinta-feira à noite com uma garrafa de conhaque e duas pizzas na mão. Se eu soubesse que perder Pauline fazia parte do acordo, nunca teria concordado com o teu plano - disse Frank, enquanto mordiscava a pizza aquecida no micro- -ondas. - Como é que consegues passar sem ela? Bastante mal - admitiu Cornelius -, embora ela ainda cá venha uma hora ou duas todas as noites. Caso contrário, esta casa estaria uma pocilga. Pensando bem, como é que tu consegues viver sozinho? Quando se é solteiro - respondeu Frank -, aprende-se a arte da sobrevivência muito cedo. Agora, deixemo- -nos de conversas e vamos ao jogo. Que jogo? - inquiriu Cornelius com uma pequena gargalhada. De xadrez - respondeu Frank. - O outro jogo já me bastou para uma semana. Então, é melhor irmos para a biblioteca. Frank ficou surpreendido com os lances de abertura de Cornelius, pois nunca vira o seu velho amigo ser tão ousado. Nenhum deles falou durante mais de uma hora; Frank passou o tempo todo a tentar defender a sua rainha. Esta pode bem ser a última partida que jogamos com este jogo - disse Cornelius num tom pensativo. Não te preocupes com isso - disse Frank. - Eles permitem sempre que a pessoa fique com alguns itens pessoais. Não quando eles valem duzentas e cinquenta mil libras - respondeu Cornelius. Eu não fazia a mínima ideia - disse Frank, erguendo a vista. Porque tu não és o tipo de homem que se interesse por bens materiais. É uma obra-prima persa do século xvi, e é provável que suscite bastante interesse quando for leiloada. Mas tu certamente que já descobriste tudo o que precisas de saber - disse Frank. - Por que é que hás-de continuar com o exercício quando te arriscas a perder tanta coisa que te é querida? Porque ainda tenho que descobrir a verdade. Frank suspirou, baixou os olhos para o tabuleiro e moveu o bispo da sua rainha. Xeque-mate - disse ele. - E é bem feito por não te concentrares. Cornelius passou a maior parte da sexta-feira de manhã em reunião com o director da Botts & Company, os leiloeiros de arte e mobiliário locais. Mr. Botts já concordara que o leilão poderia ter lugar daí a duas semanas. Dissera várias vezes que gostaria de ter mais tempo para preparar o catálogo e divulgar amplamente por carta uma colecção tão boa, mas, pelo menos, manifestou alguma consideração pela situação em que Mr. Barrington se encontrava. Ao longo dos anos, a Lloyd's of London, o imposto sucessório e a falência iminente tinham sido os melhores amigos do leiloeiro. Precisaremos de ter tudo no nosso armazém o mais cedo possível - disse Mr. Botts - para termos tempo suficiente para preparar o catálogo, permitindo ao mesmo tempo que as peças fiquem expostas ao público durante três dias consecutivos antes do leilão. Cornelius acenou a cabeça em sinal de assentimento. O leiloeiro também recomendou que fosse publicado um anúncio de página inteira no Chudley Advertiser na quarta-feira seguinte, dando informações sobre o que ia ser leiloado, para que estas chegassem ao conhecimento das pessoas que não tinham sido contactadas por carta. Cornelius deixou o escritório de Mr. Botts alguns minutos antes do meio-dia e, no caminho de regresso à paragem do autocarro, passou pela empresa de mudanças. Pagou cem libras em notas de cinco e dez libras, dando a impressão de que levara alguns dias a conseguir o dinheiro. Enquanto esperava pelo autocarro, não pôde deixar de reparar que poucas pessoas se deram ao trabalho de o cumprimentar. Certamente que ninguém atravessou a rua para conversar com ele. Vinte homens em três carrinhas passaram o dia seguinte a carregar e descarregar, percorrendo várias vezes o caminho entre The Willows e o armazém da casa de leilões situado na High Street. Só ao fim da tarde é que a última peça de mobiliário foi retirada da casa. Enquanto percorria as divisões vazias, Cornelius ficou surpreendido ao dar consigo a pensar que, com uma ou duas excepções, não ia sentir a falta de muitos dos seus bens materiais. Foi para o quarto, a única divisão da casa que ainda estava mobilada, e continuou a ler o romance que Elizabeth lhe recomendara antes da sua queda. Na manhã seguinte, só recebeu um telefonema; era do seu sobrinho Timothy a dizer que vinha passar o fim-de-semana a casa e gostaria de saber se o tio Cornelius tinha tempo para o receber. Tempo é a única coisa que não me falta - respondeu Cornelius. Então, posso aparecer esta tarde? - perguntou Timothy. - Digamos, quatro horas? Desculpa não te oferecer um chá - disse Cornelius -, mas acabei o último pacote esta manhã e, como provavel- mente, vou deixar a casa na próxima semana... Não tem importância - disse Timothy, incapaz de disfarçar a sua tristeza ao ver a casa despida das coisas do tio. Vamos até ao quarto. É a única divisão que ainda tem alguma mobília, e a maior parte dela já lá não estará na próxima semana. Eu não fazia a mínima ideia de que tinham levado tudo. Até o retrato do Daniel - disse Timothy, ao passar pela marca oblonga com um tom de creme mais claro que o resto da parede. E o meu jogo de xadrez - suspirou Cornelius. - Mas não me posso queixar. Tive uma boa vida - começou a subir as escadas em direcção ao quarto. Cornelius sentou-se na única cadeira existente, enquanto Timothy se empoleirou ao fundo da cama. O velho estudou o sobrinho mais atentamente. Tornara-se um belo jovem. Um rosto franco, com olhos castanhos límpidos, que serviam para revelar a quem já não o soubesse que fora adoptado. Devia ter vinte sete ou vinte e oito anos, aproximadamente a mesma idade que Daniel teria se fosse vivo. Cornelius sempre gostara muito do sobrinho e imaginara que o afecto era retribuído. Perguntou a si próprio se estava prestes a ficar decepcionado. Timothy permaneceu empoleirado ao fundo da cama, mudando o peso de um pé para o outro com um ar nervoso. Tio Cornelius - começou ele por dizer, com a cabeça ligeiramente inclinada -, como sabe, recebi uma carta do Dr. Vintcent, por isso, achei melhor vir vê-lo pessoalmente para lhe explicar que não tenho mil libras e, por conseguinte, neste momento, não posso pagar a minha dívida. Cornelius ficou decepcionado. Tivera esperança de que ao menos um membro da família... No entanto - prosseguiu o jovem, tirando um envelope comprido do bolso interior do casaco -, quando fiz vinte e um anos, o meu pai ofereceu-me acções no valor de um por cento da empresa, que eu penso que devem valer pelo menos mil libras, por isso, estive a pensar se o tio não se importaria de ficar com elas em troca da minha dívida, isto é, até eu ter dinheiro para as reaver. Cornelius sentiu remorsos por ter duvidado do sobrinho. Teve vontade de lhe pedir desculpa, mas sabia que, para manter o castelo de cartas no seu lugar durante mais alguns dias, não podia fazê-lo. Aceitou a generosa oferta e agradeceu a Timothy. Reconheço o sacrifício que isto deve representar para ti - disse Cornelius -, e lembro-me das inúmeras vezes em que já me falaste da tua ambição de tomar conta da empresa quando o teu pai eventualmente se reformar, e dos teus sonhos de expansão para áreas em que ele se recusa sequer a pensar. Eu acho que ele nunca se vai reformar - disse Timothy com um suspiro. - Mas eu tenho esperança de que, depois de toda a experiência que tenho obtido em Londres, ele me considere um sério candidato a gerente quando Mr. Leonard se reformar no fim do ano. Receio que as tuas probabilidades não aumentem muito, quando ele souber que entregaste mais de um por cento da empresa ao teu tio falido. Os meus problemas não se podem comparar com os que o tio está a enfrentar. Só tenho pena de não lhe poder dar o dinheiro agora. Há alguma coisa que eu possa fazer antes de me ir embora? Há, sim, Timothy - disse Cornelius, regressando ao guião. - A tua mãe recomendou-me um romance de que eu estou a gostar muito, mas os meus olhos parecem começar a ficar cansados cada vez mais depressa. Será que me podes ler algumas páginas? Eu marquei a página onde fiquei. Lembro-me que o tio costumava ler para mim quando eu era pequeno - disse Timothy. - Just William e Swallows and Amazons - acrescentou ele ao pegar no livro que o tio lhe estendeu. Timothy devia ter lido cerca de vinte páginas quando parou subitamente e ergueu a vista. Há um bilhete de autocarro na página 450. Deixo-o lá, tio? Deixa - respondeu Cornelius. - Pu-lo aí para me lembrar de uma coisa - fez uma pausa. - Desculpa, mas estou a sentir-me um pouco cansado. Eu volto em breve para acabar as últimas páginas - disse Timothy, erguendo-se. Não precisas de te incomodar, hei-de conseguir fazê-lo. Oh, eu acho que é melhor eu vir, tio, senão nunca hei-de saber qual deles chega a primeiro-ministro. A segunda série de cartas que Frank Vintcent enviou na sexta-feira seguinte provocou outra rajada de telefonemas. Não sei se compreendo bem o que ela significa - disse Margaret, no seu primeiro contacto com o irmão desde que viera a casa dele, duas semanas antes. Significa exactamente o que ela diz - disse Cornelius, calmamente. - Todos os meus bens materiais vão ser leiloados, mas eu vou permitir a todos que me são queridos que seleccionem uma peça que, por razões sentimentais ou pessoais, eles gostariam que permanecesse na família. Eles poderão comprá-la no leilão, na próxima sexta-feira. Mas a nossa oferta pode ser superada e, nesse caso, nós ficaremos sem nada - disse Margaret. Não, minha querida - disse Cornelius, tentando não se mostrar exasperado. - O leilão público terá lugar à tarde. As peças seleccionadas serão leiloadas separadamente de manhã, com apenas a família e os amigos próximos presentes. As instruções não podem ser mais claras. E podemos ver as peças antes do leilão? Podem, Margaret - disse o irmão, como se estivesse a falar com uma criança deficiente mental. - Como Mr. Vintcent disse claramente na carta: "As peças poderão ser vistas entre as dez e as dezasseis horas na terça, quarta e quinta-feira anteriores ao leilão que terá lugar na sexta-feira, pelas onze horas." Mas nós podemos seleccionar apenas uma peça? Sim - respondeu Cornelius -, é tudo o que o requerente da falência permite. Mas talvez te interesse saber que o retrato de Daniel, que tantas vezes elogiaste, estará entre os lotes disponíveis. Eu gosto bastante dele - disse Margaret. Hesitou por um momento. - Mas o Turner também vai ser vendido? Certamente que sim - disse Cornelius. - Sou obrigado a vender tudo. Fazes alguma ideia do que o Hugh e a Elizabeth querem? Não, não faço a mínima ideia, por que é que não lhes perguntas? - respondeu ele maliciosamente, sabendo bem que eles mal se falavam. A segunda chamada chegou poucos momentos depois de ele ter desligado.

Até que enfim - disse uma voz num tom peremptório, como se Cornelius tivesse culpa de outras pessoas quererem falar com ele. Bom dia, Elizabeth - disse Cornelius, reconhecendo imediatamente a voz. - É bom ouvir-te. É sobre a carta que recebi esta manhã. Sim, calculei que fosse - disse Cornelius. É só, bem, eu só queria confirmar o valor da mesa, a peça Luís XIV, e, já que estou a falar contigo, do relógio de pé que pertenceu ao conde de Bute. Se fores à casa de leilões, Elizabeth, dão-te um catálogo que indica a estimativa mais elevada e mais baixa para todas as peças em leilão. Estou a ver - disse Elizabeth. Ficou calada durante algum tempo. - Suponho que não sabes se a Margaret vai tentar comprar qualquer dessas peças? Não faço ideia - respondeu Cornelius. - Mas era a Margaret que estava a impedir a linha quando estavas a tentar telefonar, e ela fez-me uma pergunta semelhante, por isso sugiro que lhe dês uma apitadela. - Outro longo silêncio. - A propósito, Elizabeth, tu sabes que só podes licitar uma peça? Sei, é o que diz na carta - respondeu a cunhada num tom mordaz. Eu só perguntei, porque sempre achei que Hugh estava interessado no jogo de xadrez. Oh, não, eu acho que não - disse Elizabeth. Cornelius não teve qualquer dúvida de quem faria a licitação em nome daquela família na sexta-feira de manhã. Bem, boa sorte - disse Cornelius. - E não te esqueças dos quinze por cento - acrescentou ele, enquanto pousava o auscultador. Timothy escreveu no dia seguinte a dizer que esperava poder assistir ao leilão, pois queria comprar uma pequena recordação de The Willows e dos tios. Pauline, contudo, disse a Cornelius, enquanto arrumava o quarto, que não tencionava ir ao leilão. Por que não? - perguntou ele. Porque eu de certeza que faria figura de parva e licitaria alguma coisa que não teria dinheiro para pagar. Muito sensato da tua parte - disse Cornelius. - Eu já caí algumas vezes nessa armadilha. Mas estavas interessada nalguma coisa? Estava, sim, mas as minhas poupanças nunca chegariam lá. Oh, nos leilões nunca se sabe - disse Cornelius. - Se mais ninguém estiver interessado, às vezes compram- -se pechinchas. Bem, vou pensar nisso, agora que tenho outro emprego. Fico muito satisfeito em sabê-lo - disse Cornelius, que ficou genuinamente decepcionado com a notícia dela. Nessa quinta-feira à noite, nem Cornelius nem Frank conseguiram concentrar-se na partida de xadrez semanal e, ao fim de meia hora, abandonaram o jogo e decidiram que fora um empate. Devo confessar que estou ansioso por que as coisas regressem à normalidade - disse Frank, enquanto o seu anfitrião deitava xerez para cozinhar no copo. Oh, eu não sei. Acho que a situação tem as suas compensações. Como por exemplo? - perguntou Frank, franzindo o sobrolho depois do primeiro gole. Bem, para começar, estou ansioso pelo leilão de amanhã. Mas ele pode correr muito mal - disse Frank. Que é que pode correr mal? - perguntou Cornelius. Bem, para começar, já pensaste...? - mas ele não completou a frase, porque o seu amigo não estava a prestar atenção. Na manhã seguinte, Cornelius foi o primeiro a chegar à casa de leilões. Tinham sido colocadas cento e vinte cadeiras na sala, alinhadas em filas de doze, prontas para a casa cheia que se antecipava para essa tarde, mas Cornelius pensava que a cena verdadeiramente dramática se iria desenrolar nessa manhã, quando estariam presentes apenas seis pessoas. O segundo a chegar, quinze minutos antes da hora prevista para o início do leilão, foi Frank Vintcent, o advogado de Cornelius. Ao ver o seu cliente a conversar com Mr. Botts, que iria ser o leiloeiro, sentou-se ao fundo da sala, à direita. Margaret, a irmã de Cornelius, chegou a seguir e não foi tão delicada. Dirigiu-se agressivamente a Mr. Botts e perguntou com uma voz estridente: Posso sentar-me onde quiser? Sim, minha senhora, com certeza que pode - respondeu Mr. Botts. Margaret ocupou imediatamente o lugar ao centro da fila da frente, por baixo do pódio do leiloeiro. Cornelius acenou a cabeça na direcção da irmã, antes de descer a coxia para se sentar três filas à frente de Frank. Hugh e Elizabeth chegaram a seguir. Deixaram-se ficar durante algum tempo à entrada enquanto estudavam a disposição da sala. Por fim, percorreram a coxia e ocuparam dois lugares na oitava fila, o que lhes dava uma visão perfeita do pódio, ao mesmo tempo que conseguiam manter Margaret debaixo de olho. Lance de abertura para Elizabeth, pensou Cornelius, que se estava a divertir tranquilamente. Ao ver o ponteiro das horas do relógio de parede atrás do pódio do leiloeiro avançar inexoravelmente na direcção das onze, Cornelius sentiu-se decepcionado por nem Pauline nem Timothy terem aparecido. No momento em que o leiloeiro começou a subir os degraus do púlpito, a porta ao fundo da sala abriu-se suavemente e viu-se a cabeça de Pauline a espreitar. O resto do seu corpo permaneceu escondido atrás da porta até os seus olhos verem Cornelius, que esboçou um sorriso de encorajamento. Ela entrou e fechou a porta, mas não manifestou qualquer interesse em se sentar e deixou-se ficar de pé a um canto. Quando o relógio deu as onze horas, o leiloeiro sorriu para os convidados escolhidos a dedo. Minhas senhoras e meus senhores - começou ele por dizer -, estou neste negócio há mais de trinta anos, mas esta é a primeira vez que efectuo uma venda privada, por isso, até para mim, este leilão é muito invulgar. É melhor eu começar por estabelecer as regras de base para que, se surgir uma disputa mais tarde, ninguém tenha dúvidas. "Todos os presentes têm uma ligação especial, quer como familiares quer como amigos, a Mr. Cornelius Barrington, cujos bens pessoais vão ser leiloados. Cada um de vós foi convidado a seleccionar uma peça do inventário que poderão licitar. Se a vossa licitação for bem sucedida, não poderão licitar qualquer outro lote mas, se não conseguirem adquirir a primeira peça que escolherem, poderão efectuar outra licitação para um outro lote. Espero que isto esteja claro - disse ele, no momento em que a porta se abria de rompante e Timothy entrava, apressadamente, na sala. Peço imensa desculpa - disse ele um pouco ofegante -, mas o meu comboio atrasou-se - sentou-se rapidamente numa cadeira da última fila. Cornelius sorriu, todos os peões estavam agora no seu lugar. Como só cinco de vós podem licitar - prosseguiu Mr. Botts como se não tivesse havido qualquer interrupção -, serão leiloadas apenas cinco peças. Mas a lei diz que se alguém tiver deixado anteriormente uma licitação por escrito, essa licitação deve ser reconhecida como faazendo parte do leilão. Eu tornarei os procedimentos tão simples de seguir quanto possível e, quando for caso disso, direi que tenho uma licitação na mesa, pelo que os senhores deverão partir do princípio que a mesma foi deixada no nosso escritório por um membro do público. Eu acho que é justo que saibam - acrescentou ele - que tenho licitações externas para quatro das cinco peças. "Uma vez explicadas as regras básicas, irei, se me permitirem, dar início ao leilão - olhou para o fundo da sala, para Cornelius, que acenou a cabeça em sinal de assentimento. "O primeiro lote é um relógio de pé, datado de 1892, que foi comprado por Mr. Barrington ao espólio do falecido conde de Bute. "Abrirei a licitação para este lote a três mil libras. Alguém dá três mil e quinhentas? - perguntou Mr. Botts, erguendo uma sobrancelha. Elizabeth pareceu um pouco chocada, pois três mil estava só um pouco abaixo da estimativa e da quantia em que ela e Hugh tinham concordado nessa manhã. "Alguém está interessado neste lote? - perguntou Mr. Botts, olhando directamente para Elizabeth mas, aparentemente, esta ficara hipnotizada. - Vou perguntar mais uma vez se alguém deseja licitar três mil e quinhentas libras por este magnífico relógio de pé. Foi dado aviso suficiente. Não vejo quaisquer licitações, por isso vou ter de retirar esta peça para a colocar no leilão da tarde. Elizabeth parecia continuar em estado de choque. Voltou-se imediatamente para o marido e começou a conversar com ele em voz baixa. Mr. Botts pareceu um pouco desapontado, mas passou rapidamente para o segundo lote. O lote seguinte é uma encantadora aguarela do Tamisa da autoria de William Turner de Oxford. Posso iniciar a licitação a duas mil libras? Margaret acenou furiosamente o catálogo no ar. Obrigado, minha senhora - disse o leiloeiro, sorrindo-lhe. - Tenho uma licitação externa de três mil libras. Alguém dá mais? Eu - gritou Margaret, como se a sala estivesse tão cheia de gente que ela precisasse de se fazer ouvir acima do barulho. Tenho uma licitação de cinco mil em cima da mesa, dá seis, minha senhora? - perguntou ele, dirigindo a sua atenção para a mulher sentada na fila da frente. Dou - disse Margaret com igual firmeza. Há mais alguma licitação? - perguntou o leiloeiro, olhando em redor da sala, um indício seguro de que as licitações tinham parado. - Então, este quadro é vendido à senhora da fila da frente por seis mil libras. Sete - disse uma voz atrás dela. Margaret virou-se e viu que a cunhada também estava a licitar. Oito mil - gritou Margaret. Nove - disse Elizabeth sem qualquer hesitação. Dez mil! - gritou Margaret. Subitamente, fez-se silêncio. Cornelius olhou em redor da sala e viu um sorriso de satisfação perpassar o rosto de Elizabeth, que deixara a cunhada com uma conta de dez mil libras. Cornelius teve vontade de desatar à gargalhada. O leilão estava a ser ainda mais divertido do que ele antecipara. Uma vez que não há mais licitações, esta encantadora aguarela é vendida a Miss Barrington por dez mil libras - disse Mr. Botts batendo com o martelo. Sorriu para Margaret, como se esta tivesse feito um bom investimento. O lote seguinte - prosseguiu ele - é um retrato intitulado simplesmente Daniel, da autoria de um artista desconhecido. É uma obra bem executada e eu estava a contar abrir a licitação com cem libras. Há alguma licitação para cem libras? Para grande decepção de Cornelius, nenhum dos presentes pareceu manifestar interesse. Estou disposto a aceitar uma licitação inicial de cinquenta libras - disse Mr. Botts -, mas não posso descer mais. Alguém deseja licitar cinquenta libras? Cornelius olhou em volta da sala, tentando descobrir, pelas expressões dos rostos, quem seleccionara aquela peça, e por que motivo esse alguém já não desejava licitar quando o preço era tão razoável. Então, receio que tenha de retirar também este lote. Isso significa que posso ficar com ele? - perguntou uma voz ao fundo da sala. Todos se viraram. Se está disposta a licitar cinquenta libras, minha senhora - disse Mr. Botts, ajustando os óculos -, o retrato é seu. Estou sim - disse Pauline. Mr. Botts sorriu na direção dela enquanto fazia descer o martelo. - Vendido à senhora ao fundo da sala por cinquenta libras. Vamos agora para o lote número quatro, um jogo de xadrez de proveniência desconhecida. O que direi desta peça? Posso começar com cem libras? Obrigado, sir. Cornelius olhou em volta para ver quem licitara. Tenho duzentas libras na mesa. Alguém dá trezentas? Timothy acenou a cabeça em sinal de assentimento. Tenho uma licitação de trezentas e cinquenta. Alguém dá quatrocentas? Desta vez, Timothy pareceu desalentado, e Cornelius supôs que a quantia se situava para além dos seus limites. Então, vou ter também de retirar esta peça e colocá- -la no leilão da tarde. - O leiloeiro olhou para Timothy, mas este nem sequer pestanejou. - A peça é retirada. "E, finalmente, chegámos ao lote número cinco. Uma magnífica mesa Luís XIV, datada aproximadamente de 1712, em estado praticamente novo. É possível remontar a sua proveniência ao proprietário original, mas durante os últimos onze anos tem estado na posse de Mr. Barrington. A descrição completa está no vosso catálogo. Devo avisá-los de que esta peça tem gerado um grande interesse, iniciarei a licitação a cinquenta mil libras. Elizabeth ergueu imediatamente a mão acima da cabeça. Obrigado, minha senhora. Tenho uma licitação na mesa de oitenta mil. Alguém dá noventa? - Desta vez, Elizabeth pareceu hesitar antes de voltar a erguer lentamente o catálogo. Tenho uma licitação na mesa de cem mil. Alguém dá cento e dez mil? Toda a gente na sala estava agora a olhar para Elizabeth, com excepção de Hugh que, de cabeça baixa, tinha os olhos postos no chão. Era óbvio que ele não ia ter qualquer influência na licitação. Se não há mais licitações, terei de retirar este lote e colocá-lo no leilão da tarde. Está feito o aviso – declarou Mr. Botts. Enquanto ele levantava o martelo, o catálogo de Elizabeth ergueu-se subitamente no ar. "Cento e dez mil. Obrigado, minha senhora. Alguém dá mais? Então, esta bela peça é vendida por cento e dez mil libras - bateu com o martelo e sorriu para Elizabeth. - Parabéns, minha senhora. Este é, de facto, um magnífico exemplar daquele período - ela esboçou um sorriso desmaiado, com um ar de incerteza no rosto. Cornelius piscou o olho a Frank, que permanecia impassível no seu lugar. Seguidamente, levantou-se da cadeira e dirigiu-se ao púlpito para agradecer a Mr. Botts o seu bom trabalho. Quando se voltou para se ir embora, sorriu a Margaret e Elizabeth, mas nenhuma delas lhe retribuiu o sorriso, parecendo ambas preocupadas. Hugh, com as mãos na cabeça, continuou a olhar para o chão. Quando se dirigiu ao fundo da sala, não viu sinal de Timothy e supôs que o sobrinho se vira obrigado a regressar a Londres. Cornelius ficou desapontado, pois estava a contar que o rapaz fosse almoçar com ele a um pub. Depois de uma manhã tão bem sucedida, ele achava que devia celebrar. Já decidira que não ia assistir ao leilão da tarde, pois não tinha qualquer desejo de ver os seus bens materiais a ser leiloados, mesmo que não tivesse onde pôr a maior parte deles, quando se mudasse para uma casa mais pequena. Mr. Botts prometera telefonar-lhe assim que o leilão terminasse para lhe dizer quanto rendera. Depois de ter comido a sua melhor refeição desde que Pauline se fora embora, Cornelius deu início à sua viagem de regresso a The Willows. Ele sabia exactamente a que horas o autocarro apareceria para o levar de volta a casa e chegou à paragem alguns minutos antes. Agora já sabia que as pessoas o iriam evitar. Cornelius abriu a porta da frente no momento em que o relógio da igreja próxima batia três horas. Estava ansioso por ver Margaret e Elizabeth cair em si quando se compenetrassem de quanto tinham realmente licitado. Sorriu enquanto se dirigia ao escritó-rio e olhou para o relógio, perguntando a si próprio quando receberia a chamada de Mr. Botts. O telefone começou a tocar no momento em que entrou no escritório. Riu para si próprio. Era demasiado cedo para Mr. Botts, por isso tinha de ser Elizabeth ou Margaret a quererem falar urgentemente com ele. Pegou no auscultador e ouviu a voz de Frank no outro extremo da linha. Lembraste-te de retirar o jogo de xadrez do leilão da tarde? - perguntou Frank sem perder tempo com formalidades. De que é que estás a falar? - perguntou Cornelius. Do teu querido jogo de xadrez. Esqueceste-te de que não foi vendido esta manhã? Ele vai aparecer automaticamente no leilão da tarde, a não ser, claro, que já tenhas dado ordens para o retirar ou tenhas revelado o seu verdadeiro valor a Mr. Botts. Oh, meu Deus! - disse Cornelius. Pousou o auscultador e saiu a correr pela porta de trás, pelo que não ouviu Frank dizer: Tenho a certeza de que uma chamada telefónica para o empregado de Mr. Botts será suficiente. Cornelius olhou para o telefone enquanto corria pelo caminho da entrada abaixo. Passavam dez minutos das três, pelo que o leilão devia ter começado há pouco tempo. Enquanto corria para a paragem do autocarro, tentou recordar-se do número de lote do jogo de xadrez. A única coisa de que se lembrava era que havia cento e cinquenta e três lotes em leilão. Ficou de pé na paragem, apoiando-se impacientemente ora num pé, ora noutro, e olhando atentamente a estrada na esperança de mandar parar um táxi quando, para seu alívio, viu um autocarro aproximar-se. Embora os seus olhos nunca se tivessem desviado do motorista, isso não o fez acelerar. Quando eventualmente parou ao lado dele e as portas se abriram, Cornelius saltou para o interior e sentou-se no banco da frente. Teve vontade de dizer ao motorista que o levasse directamente à Botts & Co., na High Street, independentemente de quanto isso lhe pudesse custar, mas duvidou que os outros passageiros concordassem com o seu plano. Olhou para o relógio, quinze horas e dezassete minutos, e tentou recordar-se de quanto tempo Mr. Botts levara a vender cada um dos lotes. Cerca de um minuto, um minuto e meio, talvez, concluiu ele. Na breve viagem até à cidade, o autocarro parou em todas as paragens e Cornelius passou tanto tempo a seguir o avanço do ponteiro dos minutos no seu relógio como a seguir a viagem. Às quinze e trinta e um, o motorista chegou finalmente à High Street. Até mesmo a porta pareceu lenta a abrir-se. Cornelius saltou para o passeio e, apesar de não correr há anos, correu velozmente pela segunda vez nesse dia. Percorreu os duzentos metros até à casa de leilões num tempo superior ao tempo recorde mas, mesmo assim, chegou lá exausto. Entrou a correr na sala do leilão na altura em que Mr. Botts dizia: Lote número 32, um relógio de pé originalmente adquirido ao espólio do... Os olhos de Cornelius percorreram a sala e pousaram numa empregada do leiloeiro que estava a um canto, com o catálogo aberto, a introduzir o valor da licitação de cada lote vendido. Dirigiu-se a ela no momento em que uma mulher, que ele julgou reconhecer, passou rapidamente por ele e saiu da sala. O jogo de xadrez já foi vendido? - perguntou Cornelius, ainda ofegante. Vou verificar, sir - respondeu a empregada, folheando o catálogo. - Já, aqui está, lote 27. Por quanto? - perguntou Cornelius. Quatrocentas e cinquenta libras, sir - respondeu ela. Mr. Botts telefonou a Cornelius mais tarde, para o informar que o leilão da tarde rendera novecentas e duas mil, e oitocentas libras, muito mais do que ele calculara. Sabe, por acaso, quem comprou o jogo de xadrez? - foi a única pergunta de Cornelius. Não - respondeu Mr. Botts. - A única coisa que lhe posso dizer é que foi comprado para outra pessoa. O comprador pagou em dinheiro e levou-o com ele.

Enquanto subia as escadas para se ir deitar, Cornelius teve de admitir que tudo correra de acordo com o plano, com excepção da desastrosa perda do jogo de xadrez, cuja culpa fora toda sua. O que piorava ainda mais as coisas é que ele sabia que Frank não voltaria a referir-se ao incidente. Cornelius estava na casa de banho quando o telefone tocou às sete e trinta da manhã seguinte. Obviamente que alguém ficara acordado a pensar qual seria o melhor momento para o incomodar logo de manhã cedo. És tu, Cornelius? Sou - respondeu ele, bocejando ruidosamente. - Quem fala? - acrescentou ele, sabendo perfeitamente quem era. Daqui é a Elizabeth. Desculpa telefonar-te tão cedo, mas preciso urgentemente de falar contigo. Claro, minha querida - respondeu Cornelius -, por que é que não vens tomar chá comigo hoje à tarde? Não, o assunto não pode esperar tanto tempo. Tenho de falar contigo esta manhã. Posso ir aí por volta das nove? Lamento muito, Elizabeth, mas já tenho um compromisso às nove horas - fez uma pausa. - Mas posso estar contigo às dez, durante meia hora, e assim não chegarei tarde à minha reunião com Mr. Botts às onze. Eu podia dar-te uma boleia para a baixa, se isso ajudasse - sugeriu Elizabeth. É muito amável da tua parte, minha querida - disse Cornelius -, mas estou habituado a apanhar o autocarro e, de qualquer modo, não quero incomodar-te. Encontramo- -nos às dez - desligou. Cornelius ainda estava a tomar banho quando o telefone tocou uma segunda vez. Deixou-se ficar imerso na água quente até ele deixar de tocar. Sabia que era Margaret e tinha a certeza de que ela voltaria a telefonar dentro de minutos. Ainda não acabara de se secar quando o telefone tocou outra vez. Dirigiu-se lentamente ao quarto, pegou no auscultador colocado ao lado da cama e disse:

Bom dia, Margaret. Bom dia, Cornelius - disse ela, num tom de surpresa. Recuperando rapidamente, acrescentou: - Preciso de falar urgentemente contigo. Oh? Que se passa? - perguntou Cornelius, sabendo perfeitamente o que se passava. Não posso discutir uma questão tão delicada ao telefone, mas podia encontrar-me contigo às dez horas. Infelizmente, já combinei encontrar-me com a Elizabeth às dez. Parece que ela também tem um assunto urgente a discutir comigo. Por que é que não passas por cá às onze? Talvez fosse melhor eu ir já - disse Margaret, parecendo agitada. Não, o mais cedo que consigo encontrar-me contigo é às onze, minha querida. Por isso, é onze horas ou chá à tarde. Qual é que te convém mais? Onze - respondeu Margaret sem hesitar. Foi o que eu pensei - disse Cornelius. - Até logo, então - acrescentou ele antes de pousar o auscultador. Quando acabou de se vestir, Cornelius desceu as escadas e dirigiu-se à cozinha para tomar o pequeno-almoço. Uma tigela de flocos de cereais, o jornal local e um envelope sem selo estavam à sua espera, embora não houvesse sinal de Pauline. Deitou chá na chávena, abriu o envelope e retirou dele um cheque em seu nome no valor de quinhentas libras. Suspirou. Pauline devia ter vendido o carro. Começou a folhear o suplemento de sábado, parando quando chegou à secção de "Casas para Venda". Quando o telefone tocou pela terceira vez nessa manhã, ele não fazia ideia de quem pudesse ser. Bom dia, Mr. Barrington - disse uma voz alegre. - Daqui fala o Bruce da agência imobiliária. Vinha dizer- -lhe que tivemos uma oferta para The Willows que é superior à quantia que estávamos a pedir. Bom trabalho - disse Cornelius. Obrigado, sir - disse o agente, com mais respeito na voz do que Cornelius ouvira de alguém nas últimas semanas. - Mas acho que devíamos aguardar mais algum tempo. Tenho a certeza de que consigo fazer com que eles paguem um pouco mais. Se conseguir, o meu conselho é que aceite a oferta e peça um depósito de dez por cento. Esse parece-me um bom conselho - disse Cornelius. - E assim que eles assinarem o contrato, preciso que me arranje uma casa nova. Que tipo de casa procura, Mr. Barrington? Eu quero uma casa com cerca de metade do tamanho de The Willows, com algum terreno. E gostaria de continuar a viver aqui perto. Isso não deverá ser muito difícil, sir. Temos algumas casas excelentes nos nossos livros neste momento, por isso tenho a certeza de que conseguiremos satisfazê-lo. Obrigado - disse Cornelius, encantado por ter falado com alguém que começara bem o dia. Estava-se a rir de um artigo da primeira página do jornal local, quando tocaram à campainha. Olhou para o relógio. Faltavam ainda alguns minutos para as dez, por isso não podia ser Elizabeth. Quando abriu a porta, foi saudado por um homem de farda verde, com uma prancheta numa mão e um embrulho na outra. Assine aqui - foi a única coisa que o mensageiro disse, entregando-lhe um impresso. Cornelius rabiscou a sua assinatura ao fundo do impresso. Teria perguntado quem lhe enviara o embrulho, se a sua atenção não tivesse sido distraída por um carro a aproximar-se da casa. Obrigado - disse ele. Deixou o embrulho no vestíbulo e desceu as escadas para cumprimentar Elizabeth. Quando o carro parou à porta, Cornelius ficou surpreendido ao ver Hugh sentado no banco do passageiro. Foi muito amável da tua parte receber-nos tão depressa - disse Elizabeth, que parecia ter passado outra noite sem dormir. Bom dia, Hugh - disse Cornelius, desconfiando que o seu irmão também não pudera dormir toda a noite. - Por favor, entrem para a cozinha, é a única divisão da casa que está quente.

Quando Cornelius os conduzia ao longo do corredor, Elizabeth parou em frente do retrato de Daniel. Estou muito contente por vê-lo outra vez no seu lugar - disse ela. Hugh acenou a cabeça em sinal de concordância. Cornelius ficou a olhar para o retrato, que não via desde o leilão. Sim, está de novo no seu lugar - disse ele, antes de os levar para a cozinha. - Agora, o que vos traz a The Willows num sábado de manhã? É sobre a mesa Luís XIV - disse Elizabeth num tom de desafio. Sim, vou ter saudades dela - disse Cornelius. - Mas foi um belo gesto da tua parte, Hugh - acrescentou ele. Um belo gesto... - repetiu Hugh. Sim. Suponho que foi a tua maneira de me devolver os cem mil - disse Cornelius. Virando-se para Elizabeth, acrescentou: - Afinal, enganei-me a teu respeito, Elizabeth. Desconfio que a ideia foi tua. Elizabeth e Hugh ficaram a olhar um para o outro, depois começaram a falar os dois ao mesmo tempo. Mas nós não... - disse Hugh. Nós estávamos com esperança... - disse Elizabeth. Depois, calaram-se os dois. Diz-lhe a verdade - disse Hugh com firmeza. Oh? - disse Cornelius. - Será que estou enganado a respeito do que aconteceu no leilão ontem de manhã? Estás, sim - disse Elizabeth, empalidecendo ainda mais. - A verdade é que as coisas ficaram fora de controlo, e eu continuei a licitar durante mais tempo do que devia ter feito - fez uma pausa. - Eu nunca tinha ido a um leilão e quando não consegui ficar com o relógio de pé e depois vi Margaret comprar o Turner tão barato, fiz figura de idiota. Bem, podes sempre voltar a pô-la à venda - disse Cornelius com fingida tristeza. - É uma bela peça, que certamente manterá o seu valor. Já averiguámos essa possibilidade - disse Elizabeth.

Mas Mr. Botts diz que só daqui a, pelo menos, três meses haverá outro leilão de mobiliário, e as condições da venda vinham explicadas claramente no catálogo: pagamento dentro de sete dias. Mas eu tenho a certeza de que, se deixarem a peça com ele... Sim, ele sugeriu isso - disse Hugh. - Mas nós não sabíamos que os leiloeiros adicionam quinze por cento ao preço de venda, pelo que temos de pagar cento e vinte e seis mil e quinhentas libras. E, o que é pior, se a pusermos de novo à venda, eles ficam também com quinze por cento do preço de licitação, por isso acabaríamos por perder mais de trinta mil. Sim, é assim que os leiloeiros ganham o dinheiro - disse Cornelius com um sorriso. Mas nós não temos trinta mil libras, quanto mais cento e vinte e seis mil e quinhentas libras - exclamou Elizabeth. Cornelius encheu lentamente outra chávena de chá, fingindo estar embrenhado em pensamentos. Humm - disse, finalmente. - O que me intriga é vocês pensarem que eu vos posso ajudar, tendo em conta os meus problemas financeiros actuais. Nós pensámos que, uma vez que o leilão rendeu perto de um milhão de libras... - começou Elizabeth. Muito mais do que se esperava - interrompeu Hugh. Estávamos com esperança que dissesses a Mr. Botts que tinhas decidido ficar com a peça, e, claro, que nós confirmaríamos que não nos importávamos. Tenho a certeza de que o fariam - disse Cornelius. Mas isso não resolve o problema da dívida de dezasseis mil e quinhentas libras ao leiloeiro e um prejuízo ainda maior se, daqui a três meses, a mesa não chegar às cento e dez mil libras. Elizabeth e Hugh ficaram calados. Vocês têm alguma coisa que possam vender para ajudar a conseguir o dinheiro? - perguntou finalmente Cornelius.

Só a nossa casa e essa já está hipotecada - disse Elizabeth. E as vossas acções na empresa? Se as vendessem, tenho a certeza de que seriam mais do que suficientes para cobrir o custo. Mas quem é que as quereria comprar - perguntou Hugh -, quando só agora a empresa começa a cobrir as despesas.

Eu - disse Cornelius. Pareceram ambos surpreendidos.

         E em troca das vossas acções - prosseguiu Cornelius -, liberto-vos da vossa dívida para comigo e resolvo o assunto com Mr. Botts. Elizabeth começou a protestar, mas Hugh perguntou: Temos alguma alternativa? Que eu consiga pensar, não - disse Cornelius. Então, acho que não nos resta muita possibilidade de escolha - disse Hugh, virando-se para a mulher. E todos os anos que nós investimos na empresa? - lamentou-se Elizabeth. Tu bem sabes que há algum tempo que a loja não dá um lucro significativo, Elizabeth. Se não aceitarmos a oferta de Cornelius, corremos o risco de passar o resto da vida a pagar a dívida. Elizabeth ficou invulgarmente silenciosa. Bem, isso parece estar resolvido - disse Cornelius. - Por que é que não vão conversar com o meu advogado? Ele tratará de tudo. E tu falas com Mr. Botts? - perguntou Elizabeth. Assim que assinarem os papéis da cedência das acções, eu resolverei o assunto de Mr. Botts. Tenho a certeza de que estará tudo tratado antes do fim-de-semana. Hugh baixou a cabeça. E eu penso que seria sensato - prosseguiu Cornelius, enquanto ambos erguiam a cabeça e olhavam para ele com um ar apreensivo - que Hugh continuasse no Conselho de Administração como presidente, com a remuneração adequada. Obrigado - disse Hugh, apertando a mão do irmão.

É muito generoso da tua parte, dadas as circunstâncias. Enquanto percorriam de novo o corredor, Cornelius olhou mais uma vez para o retrato do filho.

Conseguiste encontrar um sítio para viver? - perguntou Elizabeth. Parece que, afinal, isso não vai ser problema, obrigado, Elizabeth. Ofereceram-me por The Willows uma quantia muito superior à que eu estava à espera e, com mais o dinheiro do leilão, vou poder pagar a todos os meus credores e ficar ainda com uma quantia razoável. Então, por que é que precisas das nossas acções? - perguntou Elizabeth, dando meia volta para o olhar de frente. Pela mesma razão que tu querias a minha mesa Luís XIV, minha querida - disse Cornelius abrindo a porta da frente para eles saírem. - Adeus, Hugh - acrescentou ele, enquanto Elizabeth entrava no automóvel. Cornelius ia voltar para dentro de casa quando viu Margaret a aproximar-se no seu carro novo, por isso ficou à espera dela. Quando ela parou o pequeno Audi, Cornelius abriu a porta do carro para ela sair. Bom dia, Margaret - disse ele, subindo os degraus e entrando em casa ao seu lado. - É bom voltar a ver-te em The Willows. Já nem me lembro da última vez que cá estiveste. Cometi um erro terrível - admitiu a irmã, muito antes de terem chegado à cozinha. Cornelius voltou a encher a chaleira e esperou que ela lhe dissesse o que ele já sabia. Não vou estar com rodeios, Cornelius. Eu não sabia que havia dois Turners. Pois há - disse Cornelius, prosaicamente. - Joseph Mallord William Turner, considerado por muitos o melhor pintor inglês de sempre, e William Turner de Oxford, sem qualquer relação de parentesco com o primeiro e que, embora fosse mais ou menos do mesmo período, não está certamente na mesma categoria que o mestre. Mas eu não sabia... - repetiu Margaret. - Por isso acabei por pagar demasiado dinheiro pelo Turner errado e as artimanhas da minha cunhada não ajudaram nada - acrescentou ela. Sim, eu fiquei fascinado ao ler esta manhã no jornal que entraste para o Guiness Book of Records por teres pago um preço recorde por um quadro desse pintor. Um recorde que eu bem dispensaria - disse Margaret. - Eu estava com esperança de que tu pudesses falar com Mr. Botts e... E o quê...? - perguntou Cornelius inocentemente, deitando chá numa chávena para a irmã. - Lhe explicasses que foi tudo um erro terrível. - Receio que isso não seja possível, minha querida. Assim que o martelo bate na mesa, a venda está feita. Essa é a lei. - Talvez me possas ajudar, pagando o quadro - sugeriu Margaret. - Afinal de contas, os jornais dizem que ganhaste quase um milhão de libras só com o leilão. Mas eu tenho muitos outros compromissos - disse Cornelius com um suspiro -, e, conforme já expliquei à Elizabeth, depois de vocês as duas se terem recusado a alojar-me, tive de arranjar alternativas. Então, estou arruinada - disse Margaret num tom teatral. - Porque não tenho dez mil libras, já para não falar dos quinze por cento. Essa era outra coisa que eu não sabia. Sabes, eu estava à espera de pôr o quadro à venda na Christie's e obter algum lucro. "Finalmente a verdade", pensou Cornelius. "Ou, talvez, metade da verdade."

                   Cornelius, tu foste sempre o mais inteligente da família - disse Margaret, com os olhos a encherem-se de lágrimas. - Certamente que consegues pensar numa saída para este dilema. Enquanto Cornelius andava de um lado para o outro da cozinha como se estivesse embrenhado em pensamentos, a irmã não tirou os olhos dele. Por fim, ele parou em frente dela. Acho que talvez tenha uma solução. Qual é? - exclamou Margaret. - Eu concordo com qualquer coisa.

Qualquer coisa? Qualquer coisa - repetiu ela. Óptimo, então digo-te o que vou fazer - disse Cornelius. - Eu pago o quadro em troca do teu carro novo. Margaret ficou sem fala durante algum tempo. Mas o carro custou-me doze mil libras - disse ela por fim. Talvez, mas, se o vendesses, não conseguirias mais de oito mil por ele. Mas depois como é que eu me movimento de um lado para o outro? Experimenta o autocarro - disse Cornelius. - Eu recomendo-o. Depois de saberes o horário, ele altera toda a tua vida - olhou para o relógio. - De facto, podes começar agora mesmo; há um daqui a cerca de dez minutos. Mas... - disse Margaret, quando Cornelius estendeu a mão. Depois, com um longo suspiro, ela abriu a mala e entregou as chaves do carro ao irmão. Obrigado - disse Cornelius. - Não quero tomar-te mais tempo, senão perdes o autocarro, e o próximo é só daqui a trinta minutos - conduziu a irmã para fora da cozinha e ao longo do corredor. Sorriu enquanto lhe abria a porta. E não te esqueças de ir buscar o teu quadro à casa de leilões, minha querida - disse ele. - Ficará maravilhoso por cima da lareira da tua sala de estar e trará muitas recordações felizes dos tempos que passámos juntos. Margaret não fez qualquer comentário, deu meia volta e começou a percorrer o longo caminho que ia dar à estrada. Cornelius fechou a porta e estava prestes a ir para o escritório telefonar a Frank para lhe contar o que acontecera naquela manhã, quando ouviu um barulho oriundo da cozinha. Mudou de direcção e percorreu novamente o corredor. Entrou na cozinha, dirigiu-se ao lava-louças, inclinou-se e beijou-a no rosto. Bom dia, Pauline - disse ele. Para que foi isso? - perguntou ela, com as mãos imersas em água cheia de espuma de sabão. Por teres trazido o meu filho de volta.

                   Só está emprestado. Se não se portar bem, vai outra vez para minha casa. Cornelius sorriu. Isso faz-me lembrar... eu gostaria de aceitar a tua oferta original. De que é que está a falar, Mr. Barrington? Tu disseste-me que preferias trabalhar para pagar a tua dívida em vez de venderes o teu carro - retirou o cheque do bolso interior do casaco. - Eu sei exactamente quantas horas trabalhaste cá durante o último mês - disse ele, rasgando o cheque ao meio -, por isso estamos quites. Isso é muito amável da sua parte, Mr. Barrington, mas preferia que mo tivesse dito antes de eu vender o carro. Isso não é problema, Pauline, porque eu sou o orgulhoso proprietário de um carro novo. Mas como? - perguntou Pauline, começando a secar as mãos. Foi uma prenda inesperada da minha irmã - disse Cornelius, sem mais explicações. Mas o senhor não conduz, Mr. Barrington. Eu sei. Por isso tenho uma proposta a fazer-te - disse Cornelius. - Troco o carro pelo retrato de Daniel. Mas essa troca não é justa, Mr. Barrington. Eu só paguei cinquenta libras pelo quadro e o carro deve valer muito mais. Então, também tens de concordar em levar-me à vila, de tempos a tempos. Isso significa que tenho o meu emprego antigo de volta? Exactamente, se estiveres disposta a desistir do novo. Já não tenho emprego novo - disse Pauline com um suspiro. - Na véspera de eu começar a trabalhar, arranjaram uma pessoa muito mais nova. Cornelius abraçou-a.

         E, para começar, vamos ter menos desse tipo de coisas, Mr. Barrington. Cornelius deu um passo atrás.

         Claro que podes ter o teu antigo emprego de volta e com um aumento de salário.

                   O que o senhor considerar apropriado, Mr. Barrington. Afinal de contas, o trabalhador é merecedor do       seu empregador. Cornelius conseguiu, com dificuldade, controlar-se para não desatar à gargalhada. Isso significa que toda a mobília vai voltar para The Willows? Não, Pauline. Desde a morte da Millie que esta casa é demasiado grande para mina. Eu devia ter compreendido isso há já algum tempo. Vou procurar uma coisa mais pequena e mudar-me. Há anos que eu lhe podia ter dito isso - disse Pauline. Ela hesitou. - Mas o simpático Mr. Vintcent continuará a vir jantar consigo às quintas-feiras? Com certeza, até um de nós morrer - disse Cornelius com uma pequena gargalhada. Bem, eu não posso ficar aqui a conversar o dia todo, Mr. Barrington. Afinal de contas, o trabalho da mulher nunca acaba. Exactamente - disse Cornelius, saindo rapidamente da cozinha. Atravessou de novo o vestíbulo, pegou no embrulho e levou-o para o escritório. Tirara apenas o papel de embrulho quando o telefone tocou. Colocou o embrulho de lado e, quando pegou no auscultador, ouviu a voz de Timothy. Foi muito simpático da tua parte vir ao leilão, Timothy. Agradeço-te. Só tenho pena de não ter tido dinheiro suficiente para comprar o jogo de xadrez, tio Cornelius. Se ao menos a tua mãe e a tua tia tivessem mostrado a mesma contenção... Não estou a compreender, tio. Não é importante - disse Cornelius. - Então, o que é que eu posso fazer por ti, jovem? O tio obviamente que se esqueceu que eu disse que lhe ia ler o resto daquela história, a não ser, claro, que já a tivesse terminado. Não, com o drama dos últimos dias, esqueci-me completamente. Por que é que não vens amanhã à noite, podes jantar comigo. E antes de te começares a queixar, tenho uma boa notícia: a Pauline está de volta. Uma notícia excelente, tio Cornelius. Estarei aí amanhã por volta das oito horas. Até amanhã - disse Cornelius. Pousou o auscultador e voltou para o embrulho meio aberto. Mesmo antes de acabar de o desembrulhar, já sabia exactamente o que ele continha. O seu coração começou a bater com mais força. Finalmente, tirou a tampa da pesada caixa de madeira e olhou para as trinta e duas belíssimas peças de marfim. Havia um bilhete lá dentro: "Um pequeno agradecimento por toda a tua generosidade ao longo dos anos. Hugh." Depois recordou-se do rosto da mulher que passara por ele na casa de leilões. Claro, era a secretária do irmão. Era a segunda vez que ele se enganava a julgar alguém.

                   Que ironia - disse ele em voz alta. - Se Hugh tivesse posto o jogo à venda na Sotheby's, podia ter   ficado com a mesa Luís XIV e ainda lhe sobraria uma quantia idêntica. Mas, como diria a Pauline, o que conta é a intenção. Estava a escrever um bilhete ao irmão a agradecer-lhe quando o telefone tocou outra vez. Era Frank, fiável como sempre, a relatar a sua reunião com Hugh. O teu irmão assinou todos os documentos necessários, e as acções foram transferidas conforme solicitado. Isso foi rápido - disse Cornelius. Assim que deste instruções a semana passada, preparei todos os documentos legais. Tu continuas a ser o meu cliente mais impaciente. Queres que leve as acções comigo na quinta-feira à noite? Não - disse Cornelius. - Eu passo por aí esta tarde para as ir buscar. Isto é, partindo do princípio que a Pauline está livre para me levar à cidade. Há alguma coisa que me esteja a escapar? - perguntou Frank, num tom de perplexidade. Não te preocupes, Frank. Eu ponho-te a par dos últimos desenvolvimentos quando nos virmos na quinta-feira à noite.

Timothy chegou a The Willows alguns minutos depois das oito da noite do dia seguinte. Pauline pô-lo imediatamente a trabalhar... a descascar batatas. Como estão os teus pais? - perguntou Cornelius, tentando descobrir o que o rapaz sabia. Parecem óptimos, obrigado, tio. A propósito, o meu pai ofereceu-me o cargo de gerente da loja. Começo no princípio do próximo mês. Parabéns - disse Cornelius. - Estou muito satisfeito. Quando é que ele te fez a oferta? Na semana passada - respondeu Timothy. Em que dia? É importante? - perguntou Timothy. Penso que talvez seja - respondeu Cornelius, sem qualquer explicação. O jovem ficou calado durante algum tempo, antes de dizer finalmente: Sim, foi no sábado à noite, depois de eu ter estado consigo - fez uma pausa. - Não tenho a certeza que a minha mãe esteja muito satisfeita com isso. Eu tencionava escrever-lhe a contar mas, como ia voltar cá para o leilão, resolvi dizer-lhe pessoalmente. Mas depois não tive ocasião de falar consigo. Então, ele ofereceu-te o emprego antes do leilão? Foi - disse Timothy. - Quase uma semana antes. - Mais uma vez, o jovem olhou para o tio com um ar intrigado, mas este não lhe deu qualquer explicação. Pauline colocou um prato de carne assada em frente de cada um deles, e Timothy começou a revelar os seus planos para o futuro da empresa. Mas o meu pai, embora continue como presidente do Conselho de Administração - disse ele -, prometeu não interferir demasiado. Eu estive a pensar, tio Cornelius, se o tio, agora que é dono de um por cento da empresa, não gostaria de fazer parte do Conselho de Administração? Cornelius pareceu primeiro surpreendido, depois perplexo. A sua experiência ser-me-ia útil - acrescentou Timothy - para eu avançar com os meus planos de expansão. Não sei bem se o teu pai acharia boa ideia eu fazer parte do Conselho de Administração - disse Cornelius com um sorriso irónico. Não sei porque não - disse Timothy -, afinal de contas, a ideia foi dele. Cornelius ficou calado durante algum tempo. Ele não estivera à espera de continuar a saber mais coisas sobre os jogadores depois de o jogo ter terminado oficialmente. Acho que são horas de irmos para cima descobrir se quem se torna primeiro-ministro é Simon Kerslake ou Raymond Gould - disse ele por fim. Timothy esperou até o tio ter deitado uma generosa medida de brande num copo e ter acendido um charuto, o primeiro no último mês, antes de começar a ler. Ficou tão absorvido na história que só voltou a levantar os olhos quando virou a última página, onde encontrou um envelope colado ao interior da capa do livro. Estava endereçado a "Mr. Timothy Barrington". Que é isto? - perguntou ele. Cornelius ter-lhe-ia dito, mas já estava a dormir. A campainha da porta tocou às oito, como acontecia todas as quintas à noite. Quando Pauline abriu a porta, Frank entregou-lhe um enorme ramo de flores. Oh, Mr. Barrington vai gostar muito - disse ela. - Vou pô-las na biblioteca. Não são para Mr. Barrington - disse Frank, piscando o olho. Não sei o que deu aos dois - disse Pauline, voltando rapidamente para a cozinha. Enquanto Frank repetia o guisado de borrego, Cornelius avisou-o de que aquela poderia ser a última refeição que comiam juntos em The Willows. Isso significa que vendeste a casa? - perguntou Frank, erguendo os olhos. Significa. Assinámos os contratos esta tarde, com a condição de eu me mudar imediatamente. Depois de uma oferta tão generosa, não me encontro em posição de discutir. E como vai à procura de uma nova casa? Acho que encontrei a casa ideal e, assim que a vistoria estiver terminada, faço a minha oferta. Preciso que tu despaches os papéis o mais depressa possível, para não ficar sem casa durante muito tempo. Certamente que o farei - disse Frank. _- Mas entretanto, é melhor vires acampar em minha casa. Eu sei bem quais são as alternativas. O pub local, Elizabeth ou Margaret -disse Cornelius, com um sorriso. Erguendo o copo, continuou. - Obrigado pela oferta. Aceito. Mas há uma condição - disse Frank. E qual é? - perguntou Cornelius. Que Pauline venha também, pois não tenho qualquer intenção de passar os meus tempos livres a arrumar o que tu desarrumas. Que achas, Pauline? - perguntou Cornelius, quando ela entrou na sala. Eu estou disposta a fazer o serviço de casa dos dois cavalheiros, mas apenas por um mês. Caso contrário, o sr Barrington nunca mais sai de lá. Eu certicar-me-ei de que não há demoras nos tramites legais prometo - respondeu Frank. Cornelius inclinou-se para ele com ar de conspiração. Ela detesta advogados, mas acho que tem uma queda por ti. Isso pode bem ser, Mr. Barrington, mas não vai impedir de me ir embora ao fim de um mês, se não se tiver mudado para a casa nova. Acho que é melhor fazeres o depósito na casa muito rapidamente - disse Frank. - Aparecem boas casas no mercado o tempo todo, mas raramente aparecem boas governantas. Não é altura de os senhores irem ao vosso jogo? I Concordo - disse Cornelius. - Mas, primeiro, um brinde.

         À saúde de quem? - perguntou Frank.

         Do jovem Timothy - disse Cornelius, erguendo o copo -, que vai iniciar as suas funções como       gerente da Barringtons, Chudley, no próximo dia um. À saúde do Tim. Sabes que ele me pediu que fizesse parte do Conselho de Administração! - disse Cornelius. Tu hás-de gostar, e a tua experiência ser-lhe-á útil. Mas isso não explica o motivo por que lhe deste todas as tuas acções na empresa, apesar de ele não te ter comprado o jogo de xadrez. Essa foi exactamente a razão por que eu queria que ele assumisse o controlo da empresa. Ao contrário da mãe e do pai, Timothy não permitiu que fosse o coração a governar a cabeça. Frank acenou a cabeça em sinal de assentimento, enquanto Cornelius bebia a última gota de vinho do único copo que se permitiam beber antes de uma partida. Agora, acho que devo avisar-te - disse Cornelius, levantando-se da cadeira -, que o único motivo por que ganhaste as últimas três partidas seguidas foi, simplesmente, o facto de eu estar a pensar noutras coisas. Agora que essas questões foram resolvidas, a tua sorte está prestes a chegar ao fim. A ver vamos - disse Frank, enquanto seguiam juntos ao longo do comprido corredor. Os dois homens pararam por um momento para admirar o retrato de Daniel. Como é que conseguiste obtê-lo de volta? - perguntou Frank. Tive de fazer um acordo com a Pauline, mas acabámos ambos por ficar com o que queríamos. Mas como...? - começou Frank. É uma longa história - respondeu Cornelius - e hei-de contar-ta em pormenor com um copo de brande, depois de ter ganho o jogo. Cornelius abriu a porta da biblioteca e permitiu que o amigo entrasse à sua frente, para poder observar a sua reacção. Quando se viu perante o jogo de xadrez já preparado, o advogado inescrutável não fez qualquer comentário, dirigiu-se simplesmente ao outro extremo da mesa, ocupou o seu lugar habitual e disse: Se bem me recordo, o primeiro lance é teu. Tens razão - disse Cornelius, tentando ocultar a sua irritação. Empurrou a sua rainha para Q4. De volta ao gambito de abertura ortodoxo. Estou a ver que esta noite vou ter de me concentrar. Estavam a jogar há cerca de uma hora, sem terem trocado uma só palavra, quando Cornelius, incapaz de suportar o silêncio, perguntou: Não estás nem um pouco curioso em saber como é que eu consegui ter de volta o meu jogo de xadrez? Não - disse Frank, com os olhos fixos no tabuleiro. - Não estou nada mesmo interessado. Mas por que não, seu casmurro? Porque já sei - disse Frank, movendo o bispo da rainha no tabuleiro. Como é que podias saber? - perguntou Cornelius, que reagiu fazendo recuar o bispo para defender o seu rei. Frank sorriu.

                   Esqueces-te de que Hugh também é meu cliente - disse ele, deslocando a torre do rei para dois quadrados à direita. Cornelius sorriu. E pensar que, se ele conhecesse o verdadeiro valor do jogo de xadrez, não teria necessidade de sacrificar as suas acções. Mas ele conhecia o seu verdadeiro valor - disse Frank, estudando o último lance do seu adversário. Mas como é que ele podia ter descoberto, se eu e tu éramos as únicas pessoas a saber? Porque eu lhe disse - respondeu Frank. Mas por que é que fizeste isso? - perguntou Cornelius, olhando para o seu amigo mais antigo. Porque era a única forma de eu descobrir se Hugh e Elizabeth estavam a trabalhar juntos. Então, por que é que ele não licitou o jogo no leilão da manhã? Precisamente porque ele não queria que a Elizabeth soubesse o que ele tinha em mente. Depois, descobriu que Timothy também queria comprar o jogo para to devolver. Mas ele podia ter continuado a licitar depois de Timothy ter desistido. Não, não podia. Se bem te lembras, ele concordara em licitar a mesa Luís XIV e esta foi a última peça a ser leiloada. Mas a Elizabeth não comprou o relógio de pé, por isso poderia tê-lo licitado. A Elizabeth não é minha cliente - disse Frank, movendo a rainha no tabuleiro. - Por isso, ela nunca teve conhecimento do verdadeiro valor do jogo de xadrez. Ela acreditou no que tu lhe disseste, que valia, no máximo, algumas centenas de libras, e foi por isso que Hugh deu instruções à sua secretária para que licitasse o jogo à tarde. Por vezes, não vemos as coisas mais óbvias, mesmo quando elas estão mesmo à frente dos nossos olhos - disse Cornelius, movendo a sua torre para cinco quadrados. Concordo com essa opinião - disse Frank, movendo a sua rainha e comendo a torre de Cornelius. Levantou os olhos para o adversário e disse: Acho que é xeque-mate.

A CARTA

Os convidados já estavam todos sentados à mesa do pequeno-almoço quando Muriel Arbuthnot entrou na sala, trazendo na mão o correio da manhã. Retirou um envelope branco e comprido da pilha de cartas e entregou-o à sua amiga mais antiga. Um olhar intrigado surgiu no rosto de Anna Clairmont. Quem poderia saber que ela estava a passar o fim-de-semana com os Arbuthnots? Depois viu a letra familiar e viu-se obrigada a sorrir perante o engenho dele. Fez votos para que Robert, o marido, que estava sentado no outro extremo da mesa, não tivesse reparado, e sentiu-se aliviada ao ver que ele continuava absorvido no seu exemplar do The Times. Anna estava a tentar enfiar o polegar no canto do envelope, ao mesmo tempo que olhava cautelosamente para Robert, quando subitamente ele olhou para ela e sorriu. Ela retribuiu o sorriso, deixou cair o envelope no colo, pegou no garfo e enfiou-o num cogumelo morno. Ela não fez qualquer tentativa de recuperar a carta antes de o marido ter desaparecido, novamente, atrás do jornal. Quando ele voltou para a secção de negócios, ela colocou o envelope ao seu lado direito, pegou na faca da manteiga e enfiou-a no canto em que tinha o polegar. Lentamente, começou a abrir o envelope. Terminada esta tarefa, voltou a colocar a faca no seu lugar ao lado da manteigueira. Antes de fazer o gesto seguinte, olhou outra vez na direcção do marido, para ver se ele ainda estava escondido atrás do jornal. Estava. Segurou no envelope com a mão esquerda, ao mesmo tempo que retirava a carta com a direita. Depois, colocou o envelope dentro da mala que tinha ao seu lado. Baixou os olhos para o familiar papel de carta creme Basildon Bond, dobrado em três. Mais um olhar casual na direcção de Robert; como ele permanecia invisível, ela desdobrou a carta de duas páginas. Como sempre, a primeira página não tinha data, nem endereço e estava escrita em papel de continuação. Minha querida Titânia, A primeira noite de Sonho de Uma Noite de Verão em Stratford, seguida da primeira noite em que tinham dormido juntos. Duas coisas novas na mesma noite, comentara ele. Estou sentado no meu quarto, o nosso quarto, a anotar estes pensamentos, poucos momentos depois de me teres deixado. Esta é a terceira tentativa, pois não consigo encontrar as palavras certas para te dizer o que realmente sinto. Anna sorriu. Para um homem que fizera fortuna com palavras, devia ter-lhe sido difícil admiti-lo. Ontem à noite, tu foste tudo o que um homem pode querer numa amante. Foste excitante, meiga, provocadora e, por um magnífico momento, puta. Há mais de um ano que nos encontrámos no jantar dos Selwyns, em Norfolk, e, como já te disse muitas vezes, nessa noite desejei que voltasses para casa comigo. Fiquei acordado toda a noite a imaginar-te deitada ao lado do estropício. Anna olhou para o outro extremo da mesa e viu que Robert chegara à última página do jornal. Personagem de Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare. (N. da T.) E depois houve aquele encontro acidental em Glyndebourne, mas ainda iriam decorrer onze dias até seres infiel pela primeira vez e, mesmo assim, foi preciso o estropício estar ausente em Bruxelas. Essa noite passou-se demasiado depressa para mim. Não consigo imaginar o que o estropício teria pensado, se te tivesse visto na tua farda de criada. Provavelmente, teria partido do princípio que arrumavas sempre a sala da casa de Lonscale Avenue com uma blusa branca transparente, sem soutien, saia de cabedal justa com fecho à frente, meias de rede e sapatos de salto alto fino, não esquecendo o bâton cor-de-rosa-choque. Anna ergueu de novo os olhos e interrogou-se a si própria se estaria a corar. Se ele realmente se divertira tanto, ela teria de ir outra vez fazer compras ao Soho, assim que voltasse para a cidade. Continuou a ler a carta. Minha querida, não há nada que não me agrade quando fazemos amor, mas confesso que o que mais me excita são os locais que escolhes quando tens apenas uma hora para o almoço. Recordo-me de todos eles. No banco de trás do meu Mercedes, no parque de estacionamento da NCP em Mayfair; o monta-cargas da Harrods; a casa de banho do Caprice. Mas o mais excitante de todos foi aquele pequeno camarote de Convent Garden durante uma récita de Tristão e Isolda. Uma vez durante o primeiro intervalo e outra durante o último acto, bem, é uma ópera comprida. Anna riu-se e voltou a colocar rapidamente a carta no colo quando Robert espreitou pelo lado do jornal. O que te fez rir, minha querida? - perguntou ele. A fotografia de James Bond a aterrar na Dome - respondeu ela. Robert pareceu intrigado. - Na primeira página. Ah, sim - disse Robert, passando os olhos pela pri- meira página, mas sem se rir e voltando rapidamente para a secção de negócios. Anna pegou outra vez na carta. O que mais me enlouquece no facto de passares o fim-de-semana com Muriel e Reggie Arbuthnot é a ideia de estares na mesma cama que o estropício. Tenho tentado convencer-me que, uma vez que os Arbuthnots ainda pertencem à família real, provavelmente, deram-vos quartos separados. Anne acenou a cabeça em sinal de concordância, desejando poder dizer-lhe que ele adivinhara correctamente. E é verdade que ele ressona como o QEII a entrar no cais de Southampton? Estou mesmo a vê-lo agora, sentado no outro extremo da mesa do pequeno--almoço. Casaco de tweed Harris, calças cinzentas, camisa aos quadrados e uma gravata do MCC, como era considerado moda pela revista Hare and Hound por volta de 1966. Desta vez, Anna desatou a rir e só foi salva quando Reggie Arbuthnot se levantou da mesa e perguntou: Alguém quer jogar uma partida de ténis de pares? O boletim meteorológico prevê que a chuva pare muito antes do fim da manhã. Eu jogo - disse Anna, escondendo a carta debaixo da mesa. E tu, Robert? - perguntou Reggie. Anne viu o marido dobrar o The Times, colocá-lo à sua frente em cima da mesa e abanar a cabeça. "Oh, meu Deus!", pensou Anna. "Ele tem um casaco de tweed vestido e uma gravata do MCC." Eu gostaria muito - disse Robert -, mas, infelizmente, tenho de fazer várias chamadas telefónicas. Marylebone Cricket Club, a Federação de Críquete Inglesa. (N. da T.) Num sábado de manhã? - comentou Verónica, que estava ao pé do aparador, a encher o prato pela segunda vez. É verdade - respondeu Robert. - Os criminosos não têm semanas de cinco dias e quarenta horas, por isso não estão à espera que os seus advogados as tenham. - Anna não se riu. Afinal de contas, ela ouvira-o fazer aquela mesma observação todos os sábados durante os últimos sete anos. Robert levantou-se da mesa, olhou para a mulher e disse: Se precisares de mim, minha querida, estou no meu quarto. Anna acenou a cabeça em sinal de concordância e ficou à espera que ele saísse da sala. Estava prestes a recomeçar a ler a carta, quando reparou que Robert deixara os óculos em cima da mesa. Levar--lhos-ia assim que terminasse o pequeno-almoço. Colocou a carta à sua frente, em cima da mesa, e concentrou a sua atenção na segunda página. Deixa-me dizer-te o que planeei para o fim-de-semana do nosso aniversário enquanto o estropício estiver na conferência em Leeds. Marquei outra vez um quarto no Lygon Arms, por isso estaremos no mesmo quarto em que passámos a nossa primeira noite juntos. Comprei bilhetes para All is Well. Mas eu planeio uma mudança de ambiente quando voltarmos de Stratford para a privacidade do nosso quarto em Broadway. Quero ser atado à cama de dossel, contigo de pé, vestida com um uniforme de sargento da Polícia: cassetete, apito, algemas e um fato preto justo com botões prateados à frente, que irás desabotoar lenta, lentamente, revelando um soutien preto. E, minha querida, só quero que me libertes quando te tiver feito gritar bem alto, como fizeste no parque de estacionamento subterrâneo em Mayfair. Até essa altura, O teu amado Oberon * - Personagem de Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare. (N. da T.)

Anna ergueu a cabeça e sorriu, perguntando a si própria onde é que iria arranjar uma farda de sargento da Polícia. Estava prestes a voltar para a primeira página para reler a carta quando reparou no P. S. P. S.: O que estará o estropício a fazer neste momento? Anna ergueu a vista e viu que os óculos já não estavam em cima da mesa. Que patife é capaz de escrever uma carta tão escandalosa a uma mulher casada? - perguntou Robert, ajustando os óculos. Anna virou-se e viu, horrorizada, o marido atrás dela a olhar para a carta, com a testa a ficar coberta de gotas de suor. Não me perguntes - disse Anna calmamente, ao mesmo tempo que Muriel surgia ao seu lado, com a raquete de ténis na mão. Anna dobrou a carta, entregou-a à sua amiga mais antiga e disse: - Fascinante, minha querida, mas, para teu bem, espero que Reggie nunca descubra.

O CRIME COMPENSA

Kenny Merchant, não era esse o seu nome verdadeiro mas, afinal, havia muito pouco de verdadeiro em Kenny, escolhera o Harrods numa tranquila manhã de segunda-feira, como local para a primeira parte da operação. Kenny vestia um fato às riscas, camisa branca e gravata do regimento da Guarda. Poucos clientes da loja saberiam que era uma gravata da Guarda, mas ele estava confiante que o empregado que ele seleccionara para o atender reconheceria imediatamente as riscas vermelhas e azul-escuras. A porta foi-lhe aberta por um porteiro que estivera no Coldstreams e que, ao reconhecer a gravata, lhe fez imediatamente continência. Esse mesmo porteiro não lhe fizera continência nas várias visitas que fizera durante a semana anterior mas, nessas ocasiões, Kenny trazia vestido um fato lustroso, muito usado, uma camisa com o colarinho desapertado e óculos escuros. Mas, afinal, a semana anterior fora apenas para reconhecimento; hoje, ele planeava ser preso. Embora o Harrods tenha mais de cem mil clientes por semana, o período mais calmo é sempre entre as dez e as onze da manhã de segunda-feira. Kenny conhecia os enormes armazéns em todos os seus pormenores, tal como um adepto do futebol conhece todas as estatísticas da sua equipa preferida. Ele sabia onde estavam colocadas todas as câmaras CCTV e conseguia reconhecer, à distância de cem metros, qualquer dos guardas de segurança. Ele até sabia o nome do empregado que o iria atender nessa manhã, embora Mr. Parker não fizesse a mínima ideia de que fora seleccionado para ser uma minúscula roda da bem oleada máquina de Kenny. Quando Kenny apareceu no departamento de joalharia nessa manhã, Mr. Parker estava a falar com um jovem empregado sobre as alterações que queria que fossem feitas na vitrina. Bom dia, sir - disse ele, voltando-se para o primeiro cliente do dia. - Em que é que lhe posso ser útil? Estou à procura de botões de punho - disse Kenny, no tom seco que ele teve esperança que o fizesse soar como um oficial da Guarda. Com certeza, sir - disse Mr. Parker. Kenny divertia-se ao ver a forma respeitosa como era atendido, devido ao facto de usar a gravata da Guarda, que comprara no dia anterior na secção masculina por vinte libras. Algum estilo em particular? - perguntou o empregado. Eu preferia de prata. Com certeza, sir - disse Mr. Parker, colocando seguidamente várias caixas de botões de punho de prata em cima do balcão. Kenny já sabia os que queria, pois escolhera-os na tarde do sábado anterior. É aqueles? - perguntou, apontando para a prateleira de cima. Quando o empregado se voltou, Kenny verificou a câmara de TV de vigilância e deu um passo à direita, para se certificar que o viam mais nitidamente. Enquanto Mr. Parker estendia o braço para tirar os botões de punho, Kenny fez deslizar os que escolhera pelo balcão e enfiou- -os no bolso do casaco antes de o empregado se virar. Pelo canto do olho, Kenny viu um guarda de segurança dirigir-se rapidamente a ele, ao mesmo tempo que falava no seu walkie-talkie. Desculpe, sir - disse o guarda, tocando-lhe no cotovelo. - Agradecia que me acompanhasse. Que se passa? - perguntou Kenny, tentando parecer aborrecido, enquanto um segundo guarda de segurança surgia do outro lado. Talvez seja sensato acompanhar-nos, para podermos discutir o assunto em privado - sugeriu o segundo guarda, segurando-lhe o braço com um pouco mais de firmeza. Nunca fui tão insultado em toda a minha vida - disse Kenny, falando agora em voz alta. Tirou os botões de punho do bolso, voltou a colocá-los em cima do balcão, acrescentando: - Eu tencionava pagá-los. O guarda pegou na caixa. Para sua surpresa, o irado cliente acompanhou-o até à sala de entrevistas sem dizer mais uma palavra. Ao entrar na pequena sala de paredes verdes, Kenny foi mandado sentar no extremo de uma secretária. Um dos guardas voltou para as suas tarefas no rés-do-chão, enquanto o outro permanecia ao pé da porta. Kenny sabia que, num dia normal, eram presas quarenta e duas pessoas por roubo no Harrods, e que mais de noventa por cento delas iam a tribunal. Alguns minutos depois, a porta abriu-se e um homem alto e magro, com um ar cansado no rosto, entrou na sala. Sentou-se no outro lado da secretária e olhou para Kenny antes de abrir uma gaveta e retirar de lá um impresso verde. Nome? - perguntou ele. Kenny Merchant - respondeu Kenny sem hesitar. Morada? St. Luke's Road, número 42, Putney. Profissão. Desempregado. Kenny passou vários minutos a responder com exactidão às perguntas do homem alto. Quando chegou à última pergunta, o inquiridor demorou um momento a examinar os botões de punho de prata antes de preencher a última linha. Valor: 90 libras. Kenny conhecia perfeitamente o significado dessa quantia específica. O impresso foi seguidamente rodado sobre a mesa para Kenny assinar, o que, para surpresa do inquiridor, ele fez com um floreio. O guarda acompanhou de seguida Kenny a uma sala adjacente, onde ficou à espera durante quase uma hora. O guarda ficou surpreendido por Kenny não lhe perguntar o que iria acontecer a seguir. Todos os outros o faziam. Mas Kenny, apesar de nunca ter sido acusado de roubar em lojas anteriormente, sabia exactamente o que aconteceria a seguir. Cerca de uma hora mais tarde, foi acompanhado a uma carrinha do Harrods e, juntamente com cinco outras pessoas, conduzido ao Tribunal de Horseferry Road. Aí, seguiu-se uma outra longa espera antes de comparecer perante o magistrado. A acusação foi-lhe lida e ele deu-se como culpado. Como o valor dos botões de punho era inferior a cem libras, Kenny sabia que lhe seria aplicada uma multa em vez de pena de prisão, e esperou pacientemente que o magistrado lhe fizesse a mesma pergunta que fizera quando Kenny se sentara ao fundo do tribunal, na semana anterior, a assistir a vários casos. Há alguma coisa que gostaria que eu tomasse em consideração antes de ler a sentença? Sim, Sr. Dr. Juiz - disse Kenny. - Roubei um relógio no Selfridges a semana passada. Isso está a pesar-me na consciência desde então e gostaria de o devolver - sorriu para o magistrado. O magistrado acenou a cabeça em sinal de assentimento e, olhando para o endereço do réu no impresso à sua frente, deu ordens a um agente da Polícia para que acompanhasse Mr. Merchant a sua casa, para ir buscar a mercadoria roubada. Por um momento, pareceu que o magistrado ia elogiar o criminoso pelo seu gesto de civismo, mas, tal como Mr. Parker, o guarda e o inquiridor, ele não compreendeu que era simplesmente mais uma roda dentada de um roda maior. Kenny foi conduzido à sua casa em Putney por um jovem agente da Polícia, que lhe disse que só começara a trabalhar algumas semanas antes. "Então, vais ter um choque", pensou Kenny, abrindo a porta da sua casa e convidando o agente a entrar. Oh, meu Deus! - disse o jovem, assim que entrou na sala. Deu meia volta, saiu a correr do apartamento e chamou imediatamente o sargento da sua esquadra pelo rádio do automóvel. Dentro de minutos, havia quatro carros-patrulha estacionados na Luke's Road, à porta da casa de Kenny. O inspector Travis entrou e encontrou Kenny sentado na entrada, com o relógio roubado na mão. O relógio que vá para o diabo! - disse o inspector. - E isto tudo? - perguntou ele, esquadrinhando a sala com os braços. É tudo meu - disse Kenny. - A única coisa que admito ter roubado, e estou agora a devolver, é um relógio Timex Masterpiece, no valor de quarenta e quatro libras, roubado no Selfridges. Qual é o teu jogo, rapaz? - perguntou Travis. Não faço a mínima ideia do que quer dizer - disse Kenny com um ar inocente. Tu sabes exactamente o que eu quero dizer - disse o inspector. - Esta casa está cheia de joalharia cara, quadros, objectos de arte e antiguidades... - que valem cerca de trezentas mil libras, gostaria Kenny de lhe ter dito -

.. e não acredito que alguma destas coisas te pertença. Então, vai ter de o provar, inspector, porque, se não o fizer, a lei parte do princípio que as coisas são minhas. E, se assim for, eu poderei fazer delas o que quiser. - O inspector franziu o sobrolho, disse a Kenny quais eram os seus direitos e prendeu-o por furto. A vez seguinte que Kenny apareceu em tribunal foi no Old Bailey, perante um juiz vestido a rigor com cabeleira e toga. Kenny estava adequadamente vestido para a ocasião com um fato às riscas, camisa branca e gravata da Guarda. Sentou-se no banco dos réus, acusado do furto de bens no valor de vinte e quatro mil libras. A Polícia fizera um inventário completo de tudo o que encontrara no apartamento e passara os seis meses seguintes a tentar encontrar os donos do tesouro. Mas, apesar de ter posto anúncios em todos os jornais reconhecidos e até mesmo de ter mostrado os bens roubados no programa de televisão Crimewatch, e de os ter colocado em exposição para que o público os visse, mais de oitenta por cento não foram reclamados. O inspector Travis tentou fazer um acordo com Kenny, dizendo que recomendaria uma sentença leve se ele colaborasse e revelasse quem eram os proprietários dos bens. Sou eu - repetiu Kenny. Se vai ser esse o teu jogo, não esperes qualquer ajuda da nossa parte - disse o inspector. Kenny nunca estivera à espera da ajuda por parte de Travis. Isso nunca fizera parte do plano original. Kenny sempre acreditara que, se se for sovina na escolha de um advogado, pode-se acabar por pagar bem caro. Assim, quando se sentou no banco dos réus, foi defendido por uma importante firma de advogados e por um elegante causídico que cobrava mil libras por dia. Kenny declarou-se culpado da acusação, ciente de que a Polícia, quando testemunhasse, não poderia fazer referência à mercadoria que não fora reclamada e que a lei, por conseguinte, partia do princípio que lhe pertencia. De facto, a Polícia já lhe devolvera, com grande relutância, a mercadoria que não fora capaz de provar que fora roubada, e ele passara-a rapidamente a um comerciante por um terço do seu valor, comparado com o décimo que um receptador lhe oferecera seis meses antes. O Dr. Duveen, o advogado de defesa, fez notar ao juiz que não só este era o primeiro delito do seu cliente, como fora ele que convidara a Polícia a acompanhá-lo a casa, sabendo perfeitamente que a mercadoria roubada seria descoberta e que ele seria preso. Poderia haver maior prova do arrependimento e dos remorsos de um homem?, perguntou ele. O Dr. Duveen prosseguiu, fazendo notar ao tribunal que Mr. Merchant estivera nove anos nas Forças Armadas e que fora honrosamente dispensado depois de ter prestado serviço activo no Golfo, mas desde que saíra parecia ter dificuldades em se adaptar à vida civil. O Dr. Duveen não considerava isto uma desculpa para o comportamento do seu cliente, mas gostaria que o tribunal soubesse que Mr. Merchant jurara não voltar a cometer um crime deste género e, por conseguinte, ele pedia ao juiz que aplicasse uma sentença suave. Kenny estava de pé no banco dos réus, de cabeça baixa. O juiz fez-lhe uma palestra durante algum tempo sobre a malvadez do seu crime, mas acrescentou que tomara em consideração todas as circunstâncias atenuantes que rodeavam o caso e decidira-se por uma pena de prisão de dois anos. Kenny agradeceu-lhe e garantiu que não voltaria a incomodá-lo. Ele sabia que o crime seguinte que planeara não poderia terminar com uma pena de prisão. O inspector Travis viu Kenny ser levado para a prisão; depois, voltando-se para o advogado de acusação, perguntou: Quanto dinheiro acha que aquele estafermo ganhou ao cingir-se à lei? Eu diria que cerca de cem mil libras - respondeu o advogado da Coroa. Mais do que eu conseguiria poupar a vida inteira - comentou o inspector, antes de dizer uma série de palavras que nenhum dos presentes seria capaz de repetir às suas mulheres ao jantar nessa noite. O advogado de acusação não estivera muito longe. Alguns dias antes, Kenny depositara um cheque de oitenta e seis mil libras no Hong-Kong & Shangai Bank. O que o inspector não poderia saber era que Kenny completara apenas metade do seu plano e que, agora que o dinheiro estava no seu lugar, ele estava pronto para se preparar para uma reforma antecipada. Antes de ser levado para a cadeia, fez mais um pedido ao seu advogado. Enquanto esteve encarcerado na Penitenciária Aberta Ford, Kenny utilizou bem o seu tempo. Passou todos os momentos livres a analisar as diversas propostas de lei que estavam actualmente em debate na Câmara dos Comuns. Ele pôs rapidamente de parte vários Livros Verdes, Livros Brancos e Leis sobre saúde, educação e serviços sociais, até encontrar a Lei de Protecção de Dados; começou a estudar cada um dos artigos com a diligência de um membro da Câmara dos Comuns na fase de relatório da lei. Seguiu todas as emendas à medida que estas eram apresentadas à Câmara, bem como todos os artigos novos à medida que os mesmos foram sendo aprovados. Quando a proposta passou a lei em 1992, ele pediu uma reunião com o seu advogado. O advogado escutou atentamente as perguntas de Kenny e, quando se viu sem respostas, admitiu que teria de pedir a opinião de outro advogado. Eu entrarei imediatamente em contacto com Mr. Duveen - disse ele. Enquanto esperava pela opinião do seu advogado, Kenny pediu que lhe fossem fornecidos exemplares de todas revistas de negócios publicadas no Reino Unido. O advogado tentou não parecer intrigado com este pedido, tal como sucedera quando ele pedira que lhe fossem enviadas todas as propostas de lei que estavam a ser debatidas no Parlamento. Ao longo das semanas seguintes, chegaram à prisão inúmeros pacotes de revistas, e Kenny passou todo o seu tempo livre a recortar todos os anúncios que apareciam em três ou mais revistas. No dia em que fez um ano que Kenny fora condenado, o Dr. Duveen compareceu em tribunal para requerer a libertação antecipada do seu cliente, tendo em conta o seu comportamento exemplar. Após alguma ponderação, o juiz decidiu libertar Kenny, colocando-o de novo num mundo insuspeito. Quando Kenny saiu da Penitenciária Aberta Ford   depois de ter cumprido apenas metade da pena, a única coisa que levou consigo foi um envelope grande e castanho, contendo três mil anúncios e o parecer escrito do advogado sobre o artigo 9º, parágrafo 6, subsecção (a) da Lei de Protecção de Dados de 1992. Uma semana depois, Kenny apanhou um avião para Hong-Kong. A Polícia de Hong-Kong informou o inspector Travis que Mr. Merchant se alojara num pequeno hotel e que passava o dia a visitar tipografias locais, a pedir orçamentos para a publicação de uma revista intitulada Business Entreprise UK, e a saber o preço de papel timbrado e envelopes. A revista, descobriram eles rapidamente, conteria alguns artigos sobre finanças e acções, mas o grosso das páginas seria preenchido por pequenos anúncios. A Polícia de Hong-Kong admitia ter ficado intrigada quando descobriu o número de exemplares que Kenny mandara imprimir. Quantos? - perguntou o inspector Travis. Noventa e nove. Noventa e nove? Tem de haver uma razão - foi a reacção imediata de Travis. Ele ficou ainda mais perplexo quando descobriu que já existia uma revista chamada Business Entreprise, que tinha uma tiragem de dez mil exemplares por mês. A Polícia de Hong-Kong informou mais tarde que Kenny encomendara duas mil e quinhentas folhas de papel timbrado e a mesma quantidade de envelopes castanhos. Que andará ele a fazer? - perguntou Travis. Ninguém em Hong-Kong ou Londres encontrou uma resposta convincente. Três semanas depois, a Polícia de Hong-Kong informou que Mr. Merchant fora visto numa estação dos Correios local a enviar duas mil e quatrocentas cartas para endereços em todo o Reino Unido. Na semana seguinte, Kenny apanhou de novo o avião para Heathrow. Embora Travis mantivesse Kenny sob vigilância, o jovem agente da Polícia não conseguia relatar nada de invulgar, para além do facto de o carteiro local lhe ter dito que Mr. Merchant estava a receber cerca de vinte cinco cartas por dia e que ele ia todas as tardes ao Lloyd's Bank, da King's Road, depositar vários cheques que variavam entre duzentas e duas mil libras. O agente não disse que, todas as manhãs, Kenny, antes de entrar no Banco, lhe acenava com a mão. Ao fim de seis meses, o volume de cartas era já muito reduzido e as visitas de Kenny ao Banco quase pararam. A única informação que o agente da Polícia conseguiu transmitir ao inspector Travis foi que Mr. Merchant se mudara do seu pequeno apartamento da St. Luke's Road, Putney, para uma imponente mansão em Chester Square, SW1. Na altura em que Travis dirigiu a sua atenção para casos mais urgentes, Kenny apanhou novamente o avião para Hong-Kong. Quase exactamente um ano depois. - Foi o único comentário do agente. A Polícia de Hong-Kong informou o inspector que Kenny estava a seguir praticamente a mesma rotina anterior, com a única diferença de que, desta vez, se instalara numa suite do Mandarin. Seleccionara a mesma tipografia, que confirmou que o seu cliente fizera uma nova encomenda de Business Enterprise UK. O segundo número continha alguns artigos novos, mas teria apenas mil novecentos e setenta e um anúncios. Quantos exemplares vai ele publicar desta vez? - perguntou o inspector. Os mesmos que da outra vez - foi a resposta. - Noventa e nove. Mas desta vez ele encomendou apenas duas mil folhas de papel timbrado e dois mil envelopes. Que andará ele a fazer? - repetiu o inspector. Desta vez, também não teve resposta. Quando a revista saiu da tipografia, Kenny voltou aos Correios e enviou mil novecentas e setenta e uma cartas antes de apanhar um voo da British Airways de regresso a Londres, em primeira classe. Travis sabia que Kenny estava, de algum modo, a violar a lei, mas não tinha pessoal nem recursos para continuar a investigar o assunto. E Kenny poderia ter continuado a mungir eternamente esta vaca específica, se uma queixa proveniente de uma das principais empresas da Bolsa de Valores não tivesse chegado à secretária do inspector. Mr. Cox, director financeiro da empresa, informou que recebera uma factura de quinhentas libras por um anúncio que a sua empresa não encomendara. O inspector visitou Mr. Cox no seu escritório na City. Após uma longa conversa, Cox concordou em ajudar a Polícia, fazendo uma queixa. A Coroa levou praticamente seis meses a preparar o processo antes de o enviar ao Ministério Público para consideração. Este levou quase o mesmo tempo a decidir levantar um processo mas, quando o fez, o inspector seguiu directamente para Chester Square e prendeu pessoalmente Kenny, sob acusação de fraude. Mr. Duveen compareceu em tribunal na manhã seguinte, insistindo que o seu cliente era um cidadão exemplar. O juiz libertou Kenny sob fiança, mas exigiu que ele entregasse o seu passaporte ao tribunal. Por mim, tudo bem - disse Kenny ao seu advogado. - Só vou precisar dele daqui a dois meses. O julgamento teve início no Old Bailey, seis semanas depois, e, mais uma vez, Mr. Duveen foi o advogado de defesa de Kenny. O oficial de justiça leu as sete acusações de fraude, enquanto Kenny permaneceu em sentido no banco dos réus. Declarou-se inocente de todas as acusações. Ambos os advogados fizeram as suas alegações iniciais mas o júri, como acontece em muitos julgamentos financeiros, não pareceu estar a seguir os argumentos pormenorizados dos advogados. Kenny aceitou que doze bons homens e mulheres decidissem se acreditavam nele ou em Mr. Cox, pois não havia muita esperança de que eles compreendessem os pormenores da Lei de Protecção de Dados de 1992. Quando Mr. Cox leu o seu juramento do terceiro dia, Kenny achou que ele era o tipo de homem a quem se poderia confiar o último tostão. De facto, ele talvez investisse alguns milhares na empresa dele. O Dr. Matthew Jarvis, advogado de acusação, fez uma série de perguntas a Mr. Cox como objectivo de demonstrar que este era um homem tão honesto que achava que tinha o dever de garantir que a fraude perpetrada pelo réu fosse eliminada de uma vez para sempre. O Dr. Duveen levantou-se para efectuar o contra-interrogatório. Permita-me que comece, Mr. Cox, por lhe perguntar se alguma vez viu o anúncio em causa. Mr. Cox lançou-lhe um olhar indignado. Claro que vi - respondeu ele. E ele tinha uma qualidade que, em circunstâncias normais, a sua empresa consideraria aceitável? Sim, mas... Nada de "mas", Mr. Cox. Tinha ou não tinha uma qualidade considerada aceitável pela sua empresa? Tinha - respondeu Mr. Cox, através de lábios franzidos. A sua empresa acabou por pagar o anúncio? Certamente que não - disse Mr. Cox. - Um funcionário meu duvidou do envelope e chamou-me a atenção para ele. Muito louvável - disse Duveen. - E esse mesmo funcionário reparou na frase respeitante ao pagamento da factura? Não, fui eu que a vi - disse Mr. Cox, olhando para o júri com um sorriso de satisfação. Muito interessante, Mr. Cox. E consegue recordar-se das palavras exactas da factura? Sim, penso que sim - disse Mr. Cox. Hesitou, mas apenas por um momento. "Se não estiver satisfeito com o produto, não é obrigado a pagar esta factura." "Não é obrigado a pagar esta factura" - repetiu Duveen. Sim - respondeu Mr. Cox. - Era o que dizia. Por isso, não pagou a factura. Não, não paguei. Permita-me que resuma a sua posição, Mr. Cox. O senhor recebeu um anúncio grátis inserido na revista do meu cliente, de uma qualidade que a sua empresa consideraria aceitável se tivesse sido publicado em qualquer outra publicação periódica. Está correcto? Sim, mas... - começou Mr. Cox a dizer. Não tenho mais perguntas, Meretíssimo. Duveen evitara falar nos clientes que tinham pago os anúncios, pois nenhum deles estava disposto a comparecer em tribunal com receio da publicidade negativa que se seguiria. Kenny achou que o seu advogado destruirá a principal testemunha de acusação, mas Duveen avisou-o de que Jarvis tentaria fazer-lhe a mesma coisa assim que entrasse no púlpito das testemunhas. O juiz sugeriu um intervalo para o almoço. Kenny não almoçou, folheou mais uma vez a Lei da Protecção de Dados. Quando a sessão recomeçou depois do almoço, Mr. Duveen informou o juiz que só chamaria uma testemunha. Kenny entrou no púlpito das testemunhas vestido com um fato azul-escuro, camisa branca e gravata da Guarda. Mr. Duveen passou bastante tempo a permitir que Kenny falasse sobre a sua carreira no Exército e sobre o serviço que prestara ao seu país no Golfo, sem referir os serviços que, mais recentemente, prestara como hóspede de Sua Majestade. Seguidamente, orientou Kenny através das provas em causa. Quando Duveen regressou ao seu lugar, o júri não tinha qualquer dúvida de que estava a lidar com um homem de negócios de irrepreensível rectidão. O Dr. Matthew Jarvis levantou-se lentamente da cadeira e demorou, propositadamente, algum tempo a arrumar os seus papéis antes de fazer a primeira pergunta. Mr. Merchant, permita-me que comece por lhe fazer perguntas sobre a revista em causa, Business Enterprise UK. Por que é que seleccionou esse nome específico para a sua revista? Ele representa tudo aquilo em que acredito. Sim, tenho a certeza disso, Mr. Merchant, mas não é verdade que estava a tentar enganar potenciais anunciantes, fazendo com que eles confundissem a sua publicação com a Business Entreprise, uma revista com muitos anos e uma reputação impecável. Não era isso o que realmente pretendia? Não fiz nada que a Woman não faça com a Woman.s Own ou a House and Garden com Homes and Gardens - retorquiu Kenny. Mas todas as revistas que acabou de referir vendem muitos milhares de exemplares. Quantos exemplares da Business Enterprise UK publicou? Noventa e nove - respondeu Kenny. Só noventa e nove? Então, era pouco provável que chegasse ao topo da lista das revistas mais vendidas, não é verdade? Por favor, esclareça o tribunal sobre o motivo por que escolheu esse número. Porque é inferior a cem, e a Lei de Protecção de Dados de 1992 define uma publicação como consistindo em, pelo menos, cem exemplares. Artigo 2º, subsecção 11. Isso poderá bem ser, Mr. Merchant, o que é mais um motivo - sugeriu o Dr. Jarvis - para considerar escandaloso esperar que os clientes pagassem quinhentas libras por um anúncio na sua revista que não tinha sido encomendado por eles. Escandaloso, talvez, mas não é crime - disse Kenny, com um sorriso cândido. Permita-me que prossiga, Mr. Merchant. Talvez possa explicar ao tribunal em que é que baseou a sua decisão sobre a quantia a cobrar a cada uma das empresas. Descobri qual era a quantia que os departamentos de contabilidade eram autorizados a gastar, sem autorização superior. E que trapaça perpetrou para descobrir essa informação? Telefonei à contabilidade e pedi para falar com o encarregado da facturação. Uma vaga de gargalhadas percorreu a sala do tribunal. O juiz fez soar o martelo e exigiu que se fizesse ordem no tribunal. E foi com base apenas nessa informação que tomou a decisão sobre quanto cobrar? Não inteiramente. Eu tinha uma tabela. Os preços variavam entre duas mil libras para uma página inteira a cores e duzentas libras para um quarto de página a preto e branco. Acho que é um preço bastante competitivo, pelo menos, um pouco inferior à média nacional. Certamente que estava abaixo da média nacional para o número de exemplares produzidos - disse o Dr. Jarvis num tom ríspido. Já conheci pior. Talvez possa dar um exemplo ao tribunal - disse o Dr. Jarvis, confiante de que encurralara o réu. O Partido Conservador. Não estou a compreendê-lo, Mr. Merchant. Eles organizam um jantar uma vez por ano em Gosvenor House. Vendem cerca de quinhentos programas e cobram cinco mil libras por um anúncio de página inteira a cores. Mas, pelo menos, eles dão aos potenciais anunciantes a possibilidade de se recusarem a pagar tais preços. Eu também - retorquiu Kenny. Por conseguinte, concorda que é ilegal enviar facturas a empresas que nunca viram o produto? É possível que seja ilegal no Reino Unido - disse Kenny - e até mesmo na Europa. Mas já não é ilegal se a revista for produzida em Hong-Kong, uma colónia britânica, e as facturas forem enviadas daquele país. O Dr. Jarvis começou a folhear os seus papéis. Eu penso que verá que é a emenda 9ª, artigo 4., tal como foi feita pela Câmara dos Lordes na fase de relatório - disse Kenny. Mas essa não era a intenção dos Lordes quando redigiram essa emenda específica - disse Jarvis, momentos depois de ter encontrado o artigo relevante. Eu não sei ler mentes, Dr. Jarvis - disse Kenny -, por isso não posso ter a certeza de qual era a intenção dos Lordes. Só estou interessado em agir de acordo com a lei. Mas infringiu a lei ao receber dinheiro em Inglaterra e não o declarando às Finanças. Não é esse o caso, Dr. Jarvis. A Business Enterprise UK é uma subsidiária da empresa principal, que está registada em Hong-Kong. No caso de uma colónia britânica, a lei permite que as subsidiárias recebam dinheiro no país de distribuição. Mas o senhor não fez qualquer tentativa de distribuir a revista, Mr. Merchant. Um exemplar de Business Enterprise UK foi colocado na British Library e em outras instituições, conforme estipulado no artigo 19º da lei. Isso pode muito bem ser verdade, mas não é possível fugir ao facto, Mr. Merchant, de que estava a exigir dinheiro sob falsos pretextos. Não se estiver claramente escrito na factura que o cliente não é obrigado a pagar, se não ficar satisfeito com o produto. Mas essa frase está escrita na factura com uma letra tão pequena que é preciso uma lupa para a ler. Consulte a lei, Dr. Jarvis, como eu fiz. Não encontrei nada que dissesse qual deveria ser o tamanho da letra. E a cor? A cor? - perguntou Kenny, fingindo-se surpreendido. Sim, Mr. Merchant, a cor. O papel das suas facturas era cinzento-escuro e o timbre era cinzento-claro. Essas são as cores da empresa, Dr. Jarvis, como qualquer pessoa que tiver olhado para a capa da revista saberá. E não há nada na lei que sugira que cor deverá ser utilizada nas facturas. Ah - disse o advogado de acusação -, mas há um artigo na lei que diz claramente que as frases devem ser colocadas num local proeminente. Artigo 3º, parágrafo 14. Isso é verdade, Dr. Jarvis. E o senhor acha que o verso da folha pode ser descrito como um local proeminente? Certamente que acho - disse Kenny. - Afinal de contas, não havia mais nada no verso. Eu tento cingir-me ao espírito da lei. Então, eu também o farei - disse Jarvis num tom ríspido. - Porque, não é também correcto dizer que, quando uma empresa paga um anúncio na Business Enterprise UK, lhe deverá ser enviado um exemplar da revista? Só se for expressamente solicitado... artigo 42º, parágrafo 9. E quantas empresas solicitaram um exemplar da Business Enterprise UK? No ano passado foram cento e sete. Este ano desceram para noventa e uma. E todas elas receberam exemplares? Não. No ano passado, infelizmente, algumas não receberam; mas este ano consegui satisfazer todas as encomendas. Por conseguinte, nessa ocasião, violou a lei. Sim, porque não podia imprimir cem exemplares da revista, conforme já expliquei. O Dr. Jarvis fez uma pausa para permitir que o juiz tomasse um apontamento. Acho que verá que é o artigo 84º, parágrafo 6, Meretíssimo. O juiz acenou a cabeça em sinal de assentimento. Finalmente, Mr. Merchant, permita-me que aborde algo que o senhor lamentavelmente não disse ao advogado de defesa quando este o interrogou. Kenny agarrou o lado do púlpito das testemunhas. No ano passado, o senhor enviou dois mil e quatro- centos envelopes. Quantas empresas pagaram? Cerca de quarenta e cinco por cento. Quantas, Mr. Merchant? Mil, cento e trinta - admitiu Kenny. E este ano enviou apenas mil e novecentas facturas. Posso perguntar por que motivo foram perdoadas quinhentas empresas? Decidi não facturar as empresas que tinham tido maus resultados anuais e não tinham pago dividendos aos seus accionistas. Isso foi muito generoso da sua parte. Mesmo assim, quantas pagaram? Mil e noventa - respondeu Kenny. O Dr. Jarvis olhou durante algum tempo para o júri antes de perguntar: E qual foi o seu lucro no primeiro ano? Enquanto Kenny ponderava a sua resposta, a sala do tribunal ficou tão silenciosa como estivera durante os oito dias do julgamento. Um milhão, quatrocentas e doze mil libras - respondeu ele finalmente. E este ano? - perguntou calmamente o Dr. Jarvis. Desceu um pouco, creio que por causa da recessão. Quanto? - repetiu o Dr. Jarvis. Um pouco mais de um milhão e doze mil libras. Não tenho mais perguntas a fazer, Meretíssimo. Ambos os advogados fizeram vigorosas alegações finais, mas Kenny pressentiu que o júri teria de esperar até ouvir a conclusão do juiz no dia seguinte antes de chegar ao veredicto. O juiz Thornton levou algum tempo a expressar a sua opinião sobre o processo da Coroa contra Kenneth Merchant. Fez notar ao júri que era sua responsabilidade explicar-lhes a lei, tal como ela era aplicável neste caso específico. Estamos certamente a lidar com um homem que estudou a lei, tal como ela está escrita. E ele tem esse direito, porque são os deputados que fazem as leis, e não compete aos tribunais tentar decifrar os que lhes passava pela mente nessa altura. "Assim, devo dizer-vos que Mr. Merchant é acusado de sete crimes e, em seis deles, aconselho-vos a pronunciarem um veredicto de "inocente" porque, na minha opinião, Mr. Merchant não violou a lei. "Quanto à sétima acusação, a de não ter fornecido a revista Business Enterprise UK aos clientes que tinham pago um anúncio e depois solicitado um exemplar, ele admitiu que, nalguns casos, não o fizera. Senhores membros do júri, é possível que achem que, nessa ocasião, ele violou a lei, embora tenha rectificado a sua posição um ano depois, e desconfio que isto se deveu apenas ao facto de o número de pedidos ter sido inferior a cem exemplares. Os membros do júri recordar-se-ão possivelmente desse artigo específico da Lei de Protecção de Dados e do seu significa- do. - Doze rostos inexpressivos sugeriam que eles não faziam grande ideia do que ele estava a falar. O juiz terminou com as palavras: Espero que não tomem a vossa decisão final de ânimo leve, pois, para além deste tribunal, há várias partes interessadas à espera do vosso veredicto. Ao ver o júri desfilar para fora da sala de audiências, acompanhado pelo oficial de justiça, o réu teve de concordar com aquela opinião. Foi levado de volta à sua cela onde recusou o almoço e passou mais de uma hora deitado no beliche, antes de o terem mandado regressar ao banco dos réus para saber qual era o seu destino. Depois de ter subido as escadas e de se encontrar de novo no banco dos réus, Kenny teve de esperar apenas alguns minutos até o júri voltar a entrar e a sentar-se nos seus lugares. Quando regressou ao seu lugar, o juiz olhou para o escrivão e acenou a cabeça. O escrivão virou-se para o porta--voz do júri e leu cada uma das sete acusações. No que dizia respeito às primeiras seis acusações de fraude e logro, o porta-voz seguiu as instruções do juiz e pronunciou veredictos de "inocente". O escrivão leu então a sétima acusação: não fornecimento de um exemplar da revista às empresas que, tendo pago um anúncio na referida revista e solicitado um exemplar da mesma, não o receberam. Quanto a esta acusação, qual é o vosso veredicto... culpado ou inocente? - perguntou o escrivão. Culpado - disse o porta-voz, voltando a sentar-se. O juiz virou-se para Kenny, que se encontrava em sentido no banco dos réus. Tal como o senhor, Mr. Merchant - começou ele por dizer -, eu passei bastante tempo a estudar a Lei de Protecção de Dados de 1992 e, em particular, as penas por não cumprimento do estipulado no artigo 84º, parágrafo 1. Decidi que não tenho outra opção a não ser impor a pena máxima que a lei permite neste caso específico - olhou para Kenny, com o ar de quem estava prestes a pronunciar a sentença de morte. Aplico ao réu uma multa de mil libras. O Dr. Duveen não se levantou para solicitar autorização para recorrer da sentença, ou tempo para pagar, porque aquele fora exactamente o veredicto que Kenny previra antes do início do julgamento. Durante os últimos dois anos, cometera apenas um erro e não se importava de pagar por ele. Kenny deixou o banco dos réus, passou um cheque da quantia exigida e entregou-o ao escrivão. Depois de ter agradecido à equipa de defesa, olhou para o relógio e saiu rapidamente da sala de audiências. O inspector estava à sua espera no corredor. Isto deverá pôr termo ao teu pequeno negócio - disse Travis, correndo a seu lado. Não estou a ver porquê! - disse Kenny, continuando a correr ao longo do corredor. Porque o Parlamento agora vai ter de alterar a lei - disse o inspector -, e, desta vez, certamente que vai fechar todos os meios de fuga. Aposto que isso não vai acontecer no futuro próximo, inspector - disse Kenny, saindo do edifício e correndo pelos degraus do tribunal abaixo. - Uma vez que o Parlamento vai entrar nas férias de Verão, não estou a ver os deputados com muito tempo para fazer emendas à Lei de Protecção de Dados, antes de Fevereiro ou Março do próximo ano. Mas se tentares repetir o exercício, eu prendo-te assim que saíres do avião - disse Travis quando Kenny parou no passeio. Eu acho que não, inspector. Por que não? Eu não acho que o Ministério Público esteja disposto a passar por outro julgamento dispendioso, se a única coisa que terá probabilidades de conseguir for uma multa de mil libras. Pense nisso, inspector. Bem, apanho-te no ano seguinte - disse Travis. Duvido. Nessa altura, Hong-Kong já terá deixado de ser uma colónia britânica, e eu terei ido para outro lado - disse Kenny, entrando num táxi. Outro lado? - perguntou o inspector, com um ar intrigado. Kenny abriu a janela do táxi, sorriu para Travis e disse: Se não tiver nada melhor para fazer, inspector, eu recomendo-lhe que estude a nova Lei das Disposições Financeiras. Não imagina a quantidade de possibilidades de fuga que ela tem. Adeus, inspector. Para onde? - perguntou o motorista do táxi. Heathrow. Mas, no caminho, podemos parar no Harrods. Quero ir comprar uns botões de punho.

VINHO E ÁGUA

É uma criança com imenso talento - disse a mãe de Robin, enchendo outra chávena de chá para a irmã. - Na cerimónia de encerramento do ano lectivo, o director da escola de Robin disse que nunca saíra um artista tão bom daquela escola. Deves estar muito orgulhosa dele - disse Miriam, antes de beber o chá. Sim, confesso que estou - admitiu Mrs. Summers, quase a ronronar. - Claro que, embora toda a gente soubesse que ele ia ganhar o Prémio do Fundador, até mesmo o professor de Arte ficou surpreendido quando lhe ofereceram um lugar na Slade antes de ele ter feito o exame de admissão. Só é pena o pai dele não ter vivido tempo suficiente para assistir ao seu triunfo. E como vai o John? - perguntou Miriam, servindo- -se de uma tarte de compota. Mrs. Summers suspirou ao pensar no filho mais velho. John termina o curso de Gestão em Manchester este Verão, mas não consegue tomar uma decisão sobre o que quer fazer - fez uma pausa, ao mesmo tempo que deixava cair outro torrão de açúcar no chá. - Só Deus sabe o que ele vai ser. Ele fala em montar um negócio. Ele sempre foi um aluno muito trabalhador - disse Miriam. É verdade, mas nunca conseguiu ser o melhor em nada, e certamente que nunca ganhou prémios. Já te disse que ofereceram ao Robin a oportunidade de fazer uma exposição individual em Outubro? É apenas numa galeria local, claro, mas, como ele disse, tem de começar por qualquer lado. John Summers voltou a Peterborough para ver a exposição individual do irmão. A mãe nunca lhe perdoaria se não aparecesse. Acabara de saber o resultado do seu exame de Gestão. Terminara a licenciatura com quinze valores, o que não era mau, tendo em consideração que fora vice--presidente da Associação de Estudantes, com um presidente que, depois de ser eleito, raramente aparecia. Ele não falaria na sua licenciatura, pois era o dia especial de Robin. Ao fim de anos a ouvir a mãe dizer que o irmão era um artista brilhante, John partira do princípio de que não faltaria muito tempo para que o resto do mundo reconhecesse esse facto. Ele reflectia muitas vezes sobre o facto de os dois serem tão diferentes; mas, afinal de contas, alguém sabia quantos irmãos Picasso tinha? Sem dúvida que um deles devia ter tido um negócio. John levou algum tempo a encontrar a pequena ruela em que estava situada a galeria mas, quando lá chegou, ficou muito satisfeito ao ver que estava apinhada de amigos e pessoas que tinham vindo desejar-lhe sorte. Robin estava de pé, ao lado da mãe, que estava a oferecer as palavras "magnífico", "extraordinário", "verdadeiramente talentoso" até mesmo "génio" a um repórter do Peterborough Echo. Oh, olha, John já chegou - disse ela, deixando por um momento o seu pequeno grupo para cumprimentar o outro filho. Robin não podia ter uma melhor celebração do início da sua carreira - disse John, beijando-a no rosto. Sim, estou de acordo contigo - concordou a mãe. - Tenho a certeza de que, dentro de pouco tempo, irás sentir os efeitos da sua glória. Vais poder dizer a toda a gente que és o irmão mais velho de Robin Summers. Mrs. Summers saiu de ao pé de John para tirar mais uma fotografia com Robin, o que lhe deu a oportunidade de dar a volta à sala para estudar as telas do irmão. Estas consistiam sobretudo nas pinturas que ele fizera durante o seu último ano do liceu. John, que admitia facilmente a sua ignorância no que dizia respeito à arte, achava que o motivo por que não reconhecia o talento óbvio do irmão deveria ser a sua própria inaptidão, e sentia-se culpado por aqueles quadros não serem do género que ele gostaria de ver pendurados em sua casa. Parou em frente do retrato da mãe, o qual tinha um ponto vermelho ao lado, indicando que já fora vendido. Sorriu, confiante de que sabia quem o comprara. Não achas que capta a essência da sua alma? - disse uma voz atrás dele. Certamente - disse John, dando meia volta e encontrando-se frente a frente com o irmão. - Parabéns. Sinto-me orgulhoso de ti. Uma das coisas que mais admiro em ti - disse Robin - é nunca teres tido inveja do meu talento. Certamente que não - disse John. - Ele dá-me muito prazer. Esperemos que algum do meu êxito se reflicta em ti, seja qual for a profissão que decidas seguir. Esperemos que sim - disse John, não sabendo bem que mais dizer. Robin inclinou-se para a frente e baixou a voz. Podias emprestar-me uma libra? Eu devolvo-ta, claro. Com certeza. John sorriu, pelo menos algumas coisas nunca mudavam. Começara anos antes, com seis pence no parque infantil e terminara com uma nota de dez xelins no Dia dos Discursos. Agora estava à espera que lhe desse uma libra. De uma coisa, ele estava certo: Robin nunca devolveria um tostão. Não que John não tivesse muito gosto em dar dinheiro ao irmão. Afinal de contas, dentro de pouco tempo, os seus papéis seriam certamente invertidos. John pegou na carteira que continha duas notas de libra e o seu bilhete de comboio de volta para Manchester. Tirou uma das notas e entregou-a a Robin. John ia fazer-lhe uma pergunta sobre outro quadro, um óleo chamado Barrabás no Inferno, mas o irmão já dera meia volta para ir ter com a mãe e o seu séquito de admiradores. Quando saiu da Universidade de Manchester, John recebeu imediatamente uma oferta de emprego como estagiário da Reynolds & Company; nessa altura, Robin já estava a viver em Chelsea. Mudara-se para um conjunto de quartos que a mãe descrevia como pequenos, mas que se situavam na zona da cidade mais em moda. Ela não acrescentou que ele tinha de os partilhar com mais cinco estudantes. E John? - perguntou Miriam. Está a trabalhar numa empresa de Birmingham, que fabrica rodas ou, pelo menos, penso que é isso que eles fazem - disse ela. John instalou-se nos arredores de Solihull, numa zona da cidade muito fora de moda. A localização era bastante conveniente, pois ficava perto da fábrica, que contava que ele, enquanto fosse estagiário, começasse a trabalhar às oito da manhã, de segunda a sábado. John não aborreceu a mãe com pormenores sobre o que a Reynolds & Company fazia, pois fabricar rodas para a fábrica de automóveis de Longbridge não tinha o mesmo encanto do que ser um artista avant garde a viver na boémia Chelsea. Embora visse poucas vezes o irmão enquanto este frequentou a Slade, John ia sempre a Londres ver as exposições de fim de período. No primeiro ano, os alunos eram convidados a exibir duas obras, e John admitiu, embora só para si próprio, que, no que dizia respeito aos trabalhos do irmão, não gostou de nenhum deles. Mas ele reconhecia que não sabia realmente nada sobre arte. Quando os críticos pareceram concordar com a opinião de John, a mãe explicou que Robin estava avançado em relação ao seu tempo e garantiu-lhe que não faltaria muito para que o resto do mundo chegasse à mesma conclusão. Ela também sublinhou que ambos os quadros tinham sido vendidos no dia da abertura e sugeriu que tinham sido adquiridos por um conhecido coleccionador, que reconhecia um talento em ascensão quando o via. John não teve oportunidade para ter uma longa conversa com o irmão, pois este parecia estar ocupado com o seu próprio grupo, mas regressou a Birmingham nessa noite com menos duas libras na carteira do que quando chegara. No fim do segundo ano, Robin expôs dois novos quadros na exposição de fim de período, Faca e Garfo no Espaço e Agonia da Morte. John colocou-se a alguns passos de distância das telas, aliviado por ver a expressão de perplexidade no rosto dos que paravam para analisar o trabalho do seu irmão e que ficavam ainda mais intrigados com a visão dos dois pontos vermelhos que ali estavam desde o dia de abertura. Encontrou a mãe sentada a um canto da sala, a explicar a Miriam o motivo por que Robin não ganhara o prémio do segundo ano. Embora o seu entusiasmo pelo trabalho de Robin não tivesse diminuído, John achou que ela parecia um pouco mais frágil do que na última vez em que a vira. Que tens feito, John? - perguntou Miriam quando ergueu o olhar e viu o sobrinho perto delas. Sou gerente-estagiário, tia Miriam - respondeu ele, no momento em que Robin atravessava a sala para vir ter com eles. Por que é que não vens jantar connosco? - sugeriu Robin. - Isso dar-te-á a oportunidade de conhecer alguns dos meus amigos. - John sentiu-se comovido com o convite, até ao momento em que a conta dos sete foi colocada à sua frente. Não vai demorar muito até eu poder levar-te ao Ritz - afirmou Robin, depois de a sexta garrafa de vinho ter sido consumida. Sentado num compartimento de terceira classe na viagem de regresso à New Street de Birmingham, John sentiu-se grato por ter comprado um bilhete de ida e volta porque, depois de ter emprestado cinco libras ao irmão, ficara com a carteira vazia. John só voltou a Londres para a cerimónia de fim de curso de Robin. A mãe escrevera-lhe insistindo para que estivesse presente, uma vez que seriam anunciados os nomes dos vencedores dos prémios, e ela ouvira um rumor de que Robin estaria entre eles. Quando John chegou à exposição, já esta abrira. Deu lentamente a volta à sala, parando para admirar algumas das telas. Passou um tempo considerável a estudar os úl-timos trabalhos de Robin. Não havia nenhum distintivo que sugerisse que ele ganhara um dos prémios principais, na realidade, nem sequer uma "menção honrosa". Mas, o que era talvez mais importante, nesta ocasião não havia pontos vermelhos. Isto serviu para lembrar a John que a pensão da mãe já não estava a acompanhar a inflação. Os juizes têm os seus preferidos - explicou a mãe, sentada a um canto com um ar ainda mais frágil do que na última vez em que a vira. John acenou a cabeça em sinal de assentimento, achando que aquela não era altura para lhe contar que fora novamente promovido. Turner nunca ganhou quaisquer prémios enquanto foi estudante - foi o único comentário da mãe sobre o assunto. Que está Robin a pensar em fazer a seguir? - perguntou John. Ele vai mudar-se para um pequeno apartamento em Pimlico, para poder ficar perto do seu grupo, isto é essencial para quem ainda está a tentar tornar-se conhecido. - John não precisou de perguntar quem iria pagar a renda, enquanto Robin "ainda estivesse a tentar tornar-se conhecido". Quando Robin convidou John para jantar com eles, este deu a desculpa de que tinha de voltar para Birmingham. Os amigos de Robin pareceram decepcionados, até John ter tirado uma nota de dez libras do bolso. Depois de Robin ter saído da Escola de Belas-Artes, os dois irmãos raramente se encontraram. Foi cerca de cinco anos depois, quando John foi convidado a fazer uma comunicação numa conferência realizada em Londres sobre os problemas que a indústria automóvel enfrentava, que ele decidiu fazer uma visita de surpresa ao irmão e convidá-lo para jantar. Quando a conferência terminou, John apanhou um táxi para Pimlico, sentindo-se subitamente inquieto por não ter avisado Robin de que talvez o fosse visitar. Depois de subir as escadas até ao último andar, começou a sentir-se ainda mais apreensivo. Tocou à campainha e, quando a porta se abriu, demorou alguns minutos a compreender que o homem que estava à sua frente era o seu irmão. Não conseguia acreditar na transformação ocorrida em apenas cinco anos. O cabelo de Robin estava grisalho. Tinha papos debaixo dos olhos, a pele estava entumescida e manchada, e devia ter engordado, pelo menos, vinte quilos. John - disse ele. - Que surpresa. Não fazia ideia de que estivesses em Londres. Entra. O que mais impressionou John quando entrou no apartamento foi o cheiro. A princípio, pensou que poderiam ser as tintas mas, quando olhou em volta, reparou que o número de telas meio terminadas era inferior ao das garrafas de vinho vazias. Estás a preparar uma exposição? - perguntou John, olhando para uma das obras incompletas. Não, neste momento não tenho nada em vista - disse Robin. - Há muito interesse, claro, mas nada definitivo. Tu sabes como são os negociantes de arte de Londres. Para ser sincero, não sei - disse John. Bem, é preciso estar na moda ou ser-se falado antes de eles pensarem em dar espaço de parede a alguém. Sabias que Van Gogh não vendeu uma única obra em vida? Durante o jantar num restaurante próximo, John ficou a saber mais um pouco sobre os caprichos do mundo da arte, bem como sobre o que alguns críticos pensavam do trabalho de Robin. Ficou satisfeito ao ver que o irmão não perdera a confiança em si próprio, nem a sua crença de que era só uma questão de tempo até ser reconhecido. O monólogo de Robin prosseguiu ao longo de toda a refeição, e só depois de terem voltado ao apartamento é que John teve oportunidade de dizer que se apaixonara por uma rapariga chamada Sally e que se ia casar em breve. Robin não tinha feito quaisquer perguntas sobre a sua carreira na Reynolds & Company, onde ele era agora vice--director. Antes de partir para a estação, John pagou as contas de Robin referentes a várias refeições e deu ao irmão um cheque de cem libras, que nenhum deles se deu ao incómodo de sugerir que era apenas um empréstimo. As palavras de despedida de Robin enquanto John entrava no táxi foram: Submeti dois trabalhos à Academia Real para a Exposição de Verão, e tenho a certeza de que serão aceites pela comissão de selecção. Se assim for, tens de vir assistir à inauguração. Em Euston, John entrou na Menzies para comprar o jornal da tarde e reparou que, no topo da pilha dos livros em promoção, estava um intitulado Introdução ao Mundo da Arte de Fra Angélico a Picasso. Quando o comboio partiu da estação, ele abriu à primeira página e, quando chegou a Carravaggio, estava a parar na estação de New Street, em Birmingham. Ouviu baterem à janela e viu Sally a sorrir-lhe. Esse deve ser um livro fascinante - disse ela, enquanto percorriam a plataforma de braço dado. Sem dúvida que era. Só espero conseguir encontrar o volume II .

Durante o ano seguinte, os dois irmãos encontraram-se duas vezes. A primeira foi uma ocasião triste, quando foram ao funeral da mãe. Quando este terminou, foram tomar chá a casa de Miriam, e aí Robin informou o irmão que a Academia aceitara ambos os quadros para a Exposição de Verão. Três meses mais tarde, John foi a Londres assistir à inauguração. Quando cruzou pela primeira vez os portais consagrados da Academia Real, ele já lera uma dúzia de livros sobre arte, que iam desde o início da Renascença até à arte pop. Visitara todas as galerias de Birmingham e estava ansioso por explorar as galerias das ruelas de Mayfair. Enquanto percorria as salas espaçosas de Academia, John decidiu que chegara a altura de investir no seu primeiro quadro. "Ouçam os peritos mas, no fim, confiem nos vossos olhos", escrevera Godfrey Barker no Telegraph. Os seus olhos disseram-lhe Bernard Dunstan, ao passo que os peritos sugeriam William Russell Flint. Os olhos venceram, porque o Dunstan custava setenta e cinco libras, enquanto o Russell Flint mais barato custava seiscentas. John andou de sala em sala à procura dos dois óleos do irmão mas, sem a ajuda do livrinho azul da Academia, nunca teria conseguido encontrá-los. Tinham sido pendurados na fila de cima da galeria do meio, quase a tocar no tecto. Reparou que nenhum deles fora vendido. Depois de ter dado duas vezes a volta à exposição e de se ter decidido pelo Dunstan, dirigiu-se ao balcão de vendas e passou um cheque como depósito para o que queria comprar. Olhou para o relógio: faltavam alguns minutos para o meio-dia, a hora em que combinara encontrar-se com o irmão. Robin fê-lo esperar quase quarenta minutos e, a seguir, sem qualquer pedido de desculpas, levou-o a dar uma terceira volta à exposição. Apelidou tanto Dunstan como Russell Flint de pintores de sociedade, sem dar uma indicação sobre quem ele achava que tinha talento. Robin não conseguiu esconder a sua desilusão quando viu os seus quadros na galeria do meio.

                   Que possibilidade tenho eu de os vender se estiverem escondidos ali em cima? - disse ele, irritado. John tentou parecer solidário. Durante o almoço, John falou a Robin sobre o testamento da mãe, pois os advogados da família não tinham recebido qualquer resposta às várias cartas que tinham enviado a Mr. Robin Summers.

                   Por princípio, nunca abro nada que venha num envelope castanho - explicou Robin. Bem, pelo menos essa não podia ter sido a razão por que ele não fora ao seu casamento, pensou John. Ele voltou a falar no testamento da mãe. Os legados são bastante simples - disse ele. - Ela deixou-te tudo, com excepção de um quadro. Qual deles? - perguntou Robin, imediatamente. O retrato dela que fizeste quando ainda andavas no liceu. É uma das melhores coisas que já fiz - disse Robin. - Deve valer pelo menos cinquenta libras, e sempre parti do princípio que ela mo deixaria. John passou um cheque de cinquenta libras. Quando regressou a Birmingham nessa noite, não disse a Sally quanto pagara pelos dois quadros. Colocou o Venice de Dunstan na sala de estar, por cima da lareira, e o da mãe no escritório. Quando o seu primeiro filho nasceu, John sugeriu que Robin fosse um dos padrinhos. Porquê? - perguntou Sally. - Ele nem sequer se deu ao trabalho de vir ao nosso casamento. John não pôde discordar da lógica da mulher e, embora tivesse sido convidado para o baptizado, Robin não respondeu nem apareceu, apesar de o convite lhe ter sido enviado num envelope branco. Deve ter sido cerca de um ano depois que John recebeu um convite da Galeria Crewe, de Cork Street para a exposição individual de Robin, há muito aguardada. Esta era, na verdade, uma exposição de dois artistas, e John teria certamente comprado logo um dos quadros do outro pintor, se não achasse que isso iria ofender o irmão. Decidiu qual o óleo que queria, tomou nota do número e, na manhã seguinte, pediu à sua secretária que telefonasse à galeria a reservá-lo em seu nome. Lamento muito, mas o Peter Blake que queria foi vendido na noite da inauguração. Ele franziu o sobrolho. Pode perguntar-lhes quantos quadros de Robin Summers foram vendidos? A secretária repetiu a pergunta e, tapando o bocal, disse: Dois. John franziu o sobrolho pela segunda vez. Na semana seguinte, John teve de ir a Londres representar a sua empresa na Exposição de Automóveis em Earls Court. Decidiu entrar na Galeria Crewe para ver como se estavam a vender os quadros do irmão. Não havia qualquer alteração. Apenas dois pontos vermelhos na parede, ao passo que os de Peter Blake estavam quase esgotados. John saiu da galeria decepcionado por dois motivos e seguiu na direcção de Picadilly. Quase passou por ela sem a ver mas, assim que reparou na cor delicada das suas faces e no seu corpo gracioso, foi amor à primeira vista. Ficou a olhar para ela, com receio de que fosse demasiado cara. Entrou na galeria para a olhar mais de perto. Era pequena, delicada e belíssima. Quanto custa? - perguntou ele em voz baixa, a olhar para a mulher sentada atrás da mesa de vidro. O Vuillard? - perguntou ela. John acenou a cabeça em sinal de assentimento. Mil e duzentas libras. Como num sonho, tirou o livro de cheques do bolso e escreveu uma quantia que sabia que iria esvaziar a sua conta bancária. O Vuillard foi colocado em frente do Dunstan, e assim começou a sua ligação amorosa com várias mulheres pintadas de todo o mundo, embora John nunca tivesse admitido à mulher quanto estas amantes emolduradas lhe custavam. Apesar dos quadros que apareciam ocasionalmente pendurados em cantos obscuros da Exposição de Verão, Robin não teve outra exposição individual durante vários anos. Quando se trata de artistas cujas telas continuam por vender, os negociantes não são sensíveis à sugestão de que as mesmas podem representar um bom investimento porque os pintores poderão ser reconhecidos após a sua morte, sobretudo porque, nessa altura, os donos das galerias também já terão morrido. Quando o convite para a exposição individual seguinte de Robin finalmente apareceu, John viu que não teria outra opção a não ser assistir à inauguração. John estivera recentemente envolvido numa operação de compra, pelos gestores, da Reynolds & Company. Com as vendas de automóveis a aumentar todos os anos ao longo da década de 1970, o mesmo aconteceu à necessidade de lhes colocar rodas, e isso permitiu-lhe cultivar o seu novo passatempo como coleccionador de arte. Recentemente, acrescentara Bonnard, Dufy, Camoin e Luce à sua colecção, continuando a ouvir o conselho dos peritos mas, no fim, confiando nos seus olhos. John desceu do comboio em Euston e deu ao motorista do táxi da frente da fila o endereço para onde queria ser transportado. O motorista de táxi coçou a cabeça por um momento antes de partir na direcção de East End. Quando John entrou na galeria, Robin atravessou rapidamente a sala para o saudar com as palavras: E aqui está alguém que nunca duvidou do meu verdadeiro valor. - John sorriu para o irmão, que lhe ofereceu um copo de vinho branco. John olhou em volta da pequena galeria e observou os grupos de pessoas que pareciam mais interessadas em beber o vinho medíocre do que olhar para quadros medíocres. Quando é que o irmão iria aprender que a última coisa que faz falta numa inauguração são outros artistas desconhecidos acompanhados pelos parasitas que os rodeiam? Robin pegou-lhe no braço e conduziu-o de grupo em grupo, apresentando-o a pessoas que não tinham dinheiro para comprar sequer uma moldura quanto mais uma das telas. Quanto mais a noite se arrastava, mais pena John começou a ter do irmão e, por isso, caiu de bom grado na armadilha do jantar. Acabou por pagar o jantar a doze companheiros de Robin, incluindo o dono da galeria que, pen- sou John, não iria ganhar muito mais nessa noite do que um jantar. Oh, não - tentou ele tranquilizar John. - Já vendemos dois quadros, e muita gente se mostrou interessada. A verdade é que, como suponho que John sabe melhor do que ninguém, os críticos nunca compreenderam bem o trabalho de Robin. John olhou com tristeza para os amigos de John enquanto estes acrescentavam comentários tais como "nunca foi devidamente reconhecido", "um talento não reconhecido", e "há anos que devia ter sido eleito para a Academia Real". Ao ouvir esta sugestão, Robin pôs-se de pé, vacilante, e afirmou: Nunca! Eu hei-de ser como Henry Moore e David Hockney. Quando for convidado, recusarei o convite. - Houve mais aplausos, seguidos de ainda mais vinho pago por John. Quando o relógio bateu as onze horas, John disse que tinha uma reunião muito cedo na manhã seguinte. Pediu desculpas, pagou a conta e foi-se embora para o Savoy. Na banco de trás do táxi, compenetrou-se finalmente de algo de que há muito desconfiava: o irmão simplesmente não tinha talento. Só alguns anos depois é que John voltou a ter notícias de Robin. Parecia que não havia galerias de Londres dispostas a expor o seu trabalho, por isso ele achava que devia partir para o Sul de França, para ir ter com um grupo de amigos igualmente talentosos e igualmente incompreendidos. Vai dar-me um novo fôlego - explicou ele numa das suas raras cartas para o irmão -, uma oportunidade para realizar o meu verdadeiro potencial, que tem sido sufocado durante demasiado tempo pelos pigmeus dos círculos de arte de Londres. E será que tu podias.... John transferiu cinco mil libras para uma conta em Vence, para permitir que Robin desaparecesse para climas mais quentes. A proposta de compra da Reynolds & Company surgira inesperadamente, embora John sempre tivesse pensado que a empresa era um alvo óbvio para uma empresa japonesa de fabrico de automóveis a tentar implantar-se na Europa. Mas até ele ficou surpreendido quando os seus maiores rivais alemães fizeram uma contra-proposta. Ficou a ver o valor das suas acções a subir todos os dias, e só quando a Honda superou a Mercedes é que ele se compenetrou que tinha de tomar uma decisão. Optou por vender as acções e sair da empresa. Disse a Sally que queria levá-la numa viagem à volta do mundo, visitando apenas as cidades que tinham grandes galerias de arte. Primeira paragem no Louvre, seguida do Prado, depois a Uffizi, o Hermitage de Sampetersburgo e, finalmente, Nova Iorque, deixando os japoneses a pôr rodas nos automóveis. John não ficou surpreendido ao receber uma carta de Robin com um carimbo dos correios de França, dando-lhe os parabéns pela sua sorte e desejando-lhe tudo de bom na sua reforma, ao mesmo tempo que comentava que ele próprio não tinha outra opção a não ser continuar a batalhar até os críticos caírem finalmente em si. John transferiu mais de dez mil libras para uma conta bancária em Vence. John teve o seu primeiro ataque de coração em Nova Iorque, quando admirava um Bellini no Frick. Nessa noite, ele disse a Sally, quando esta se encontrava à beira da sua cama, que estava satisfeito por já ter visitado o Metropolitan e o Whitney. O segundo ataque de coração ocorreu pouco depois de ter voltado a Warwickshire. Sally sentiu-se na obrigação de escrever a Robin, que estava no Sul de França, a avisá--lo de que os prognósticos dos médicos não eram encorajadores. Robin não respondeu. O irmão morreu três semanas depois. No funeral estiveram presentes muitos amigos e colegas de John, mas poucos reconheceram o homem entroncado que fez questão de ficar na primeira fila. Sally e os filhos sabiam exactamente por que é que ele aparecera e não fora certamente para apresentar condolências. Ele prometeu que eu seria contemplado no seu testamento - disse Robin à viúva enlutada, poucos momentos depois de terem deixado a sepultura. Mais tarde, embora tivesse tido pouco contacto com os dois rapazes durante os últimos trinta anos, procurou-os para transmitir a mesma mensagem. - Compreendem - explicou ele -, o vosso pai era uma das poucas pessoas que compreendiam o meu verdadeiro valor. Durante o chá em casa de John, enquanto outras pessoas consolavam a viúva, Robin andou de sala em sala a examinar os quadros que o irmão coleccionara ao longo dos anos. Um bom investimento - garantiu ele ao vigário local -, ainda que lhes falte originalidade ou paixão. - O vigário acenou delicadamente a cabeça em sinal de concordância. Quando foi apresentado ao advogado da família, Robin perguntou imediatamente: Quando é que está a contar anunciar o conteúdo do testamento? Ainda não conversei com Mrs. Summers sobre quando o testamento deverá ser lido. No entanto, calculo que seja lá mais para o fim da semana. Robin alojou-se no pub local e telefonou para o escritório do advogado todas as manhãs, até este confirmar que iria divulgar o conteúdo do testamento às três horas da quinta-feira seguinte. Robin chegou ao escritório do advogado alguns minutos antes das três da tarde, a primeira vez em muitos anos que chegara cedo a um encontro. Sally chegou pouco dePois, acompanhada pelos rapazes, e sentaram-se no outro lado da sala, sem o cumprimentar. Embora o grosso dos bens de John Summers tivessem sido deixados à mulher e aos dois rapazes, ele fizera um legado especial ao seu irmão Robin. Durante a minha vida, tive a sorte de coleccionar quadros, alguns dos quais possuem um valor considerável. Na última vez que os contei, eram, ao todo, oitenta e um. A minha mulher Sally pode seleccionar vinte, os meus dois filhos Nick e Chris podem também seleccionar vinte cada um, e o meu irmão Robin deverá receber os vinte e um restantes, o que lhe permitirá viver no estilo de que o seu valor é merecedor. Robin sorriu de satisfação. O seu irmão fora para o seu leito de morte sem nunca duvidar do seu verdadeiro valor. Quando o advogado acabou de ler o testamento, Sally levantou-se do seu lugar e atravessou a sala para falar com Robin. Nós vamos escolher os quadros que queremos manter na família e, depois disso, enviar-te-emos os restantes vinte e um para o Bell and Duck. Ela deu meia volta e foi-se embora antes de Robin ter tido oportunidade de responder. Que mulher tola, pensou ele. Tão diferente do seu irmão, ela não seria capaz de reconhecer um verdadeiro talento se ele estivesse à frente dos seus olhos. Nessa noite, enquanto jantava no Bell and Duck, Robin começou a fazer planos para gastar a sua recém-adquirida fortuna. Depois de ter consumido a melhor garrafa de clarete da hospedaria, tomou a decisão de que se limitaria a colocar um quadro na Sotheby's e um na Christie's de seis em seis meses, o que lhe permitiria viver num estilo de que o seu talento era merecedor, de acordo com as palavras do irmão. Deitou-se por volta das onze e adormeceu a pensar em Bonnard, Vuillard, Dufy, Camoin e Luce, e no que valeriam vinte e uma obras-primas. Ainda estava a dormir às dez horas da manhã seguinte, quando ouviu bater à porta. Quem é? - murmurou ele num tom irritado debaixo do cobertor. É George, o porteiro, sir. Está uma carrinha lá fora. O motorista diz que não pode deixar as coisas sem o se- nhor assinar. Não o deixe ir-se embora - gritou Robin. Pela primeira vez em muitos anos, saltou da cama, vestiu apressadamente a camisa velha azul e as calças, calçou os sapatos e correu pela escadas abaixo até ao pátio. Um homem de fato macaco azul, com um prancheta na mão, estava encostado a uma carrinha grande. Robin dirigiu-se a ele. É o senhor que está à espera de vinte e um quadros? - perguntou o motorista da carrinha. Sou eu, sim - disse Robin. - Onde é que eu assino? Aqui - respondeu o motorista, colocando o polegar por baixo da palavra "Assinatura". Robin rabiscou o nome rapidamente no impresso e depois seguiu o motorista até à parte de trás da carrinha. Deu a volta à maçaneta e abriu as portas. Robin ficou sem fala. Olhou para o retrato da mãe, empilhado em cima de outros vinte quadros da autoria de Robin Summers, pintados entre 1951 e 1999.

DITAMES DO CORAÇÃO

Há um homem na Cidade do Cabo que vai todos os dias ao bairro negro de Crossroads. Passa a manhã a ensinar inglês numa das escolas locais, a tarde a ensinar râguebi ou críquete, de acordo com a estação do ano, e as noites a vaguear pelas ruas a tentar convencer os jovens de que não devem formar gangs ou cometer crimes, e de que não devem meter-se na droga. Ele é conhecido como o Santo de Crossroads. Ninguém nasce com preconceitos dentro de si, embora algumas pessoas tenham contacto com eles muito cedo. Isto era certamente verdade em relação a Stoffel van den Berg. Stoffel nascera na Cidade do Cabo e nunca estivera no estrangeiro. Os seus antepassados tinham emigrado da Holanda no século XVIII, e Stoffel cresceu habituado a ter criados negros que estavam sempre presentes para satisfazer os seus mais pequenos caprichos. Se não obedecessem às ordens de Stoffel, os rapazes (nenhum dos criados parecia ter sido agraciado com um nome, qualquer que fosse a sua idade) eram severamente espancados ou simplesmente não lhes era dada comida. Se desempenhavam bem uma tarefa, ninguém lhes agradecia e certamente que nunca eram elogiados. Para que é que uma pessoa havia de se dar ao trabalho de agradecer a alguém que fora colocado na Terra apenas para servir? Quando Stoffel frequentou a escola primária no Cabo, este preconceito inconsciente foi simplesmente reforçado, pois as salas de aula estavam repletas de crianças brancas ensinadas apenas por professores brancos. Os poucos negros que ele encontrava na escola estavam a limpar as casas de banho que eles próprios nunca seriam autorizados a usar. Durante os anos em que andou na escola, Stoffel provou estar acima da média na sala de aula, sendo um excelente aluno em Matemática, mas excepcional no campo de jogos. Quando andava no último ano do liceu, Stoffel, um bóer louro com um metro e oitenta e seis de altura, era avançado na equipa de râguebi no Inverno e o primeiro a manejar a pá na equipa de críquete durante o Verão. Antes mesmo de lhe ter sido oferecido um lugar na universidade, já se dizia que ele iria jogar râguebi ou críquete para os Spring-boks. Vários representantes de universidades visitaram o liceu no seu último ano para lhe oferecer bolsas de estudo e, aconselhado pelo reitor e apoiado pelo pai, decidiu ir para Stellenbosch. O caminho do êxito de Stoffel prosseguiu a partir do momento em que ele chegou ao campus universitário. No primeiro ano, foi seleccionado para ser o primeiro a manejar a pá nos onze da universidade, quando um dos jogadores regulares ficou lesionado. Durante o resto da época, não falhou um único jogo. Dois anos depois, foi capitão da vitoriosa equipa universitária e, mais tarde, marcou cem pontos para a equipa da Western Province contra a do Natal Quando terminou a universidade, Stoffel foi recrutado pelo Barclays Bank para o seu departamento de Relações Públicas, embora lhe tivesse sido dito claramente na entrevista que a sua primeira prioridade seria garantir a vitória do Barclays na Taça de Críquete Interbancos. Estava a trabalhar há apenas poucas semanas quando os seleccionadores da equipa Springbok lhe escreveram a informá-lo que o seu nome estava a ser considerado para integrar a equipa sul-africana de críquete, que se estava a preparar para uma digressão da equipa inglesa. O Banco ficou radiante e disse-lhe que ele estava dispensado do trabalho durante o tempo que precisasse para se preparar Para a selecção nacional. Ele sonhou com marcar uma centena de pontos em newlands e talvez até mesmo um dia em Lord's. Seguiu com interesse a série Ashes, que estava a ter lugar em Inglaterra. Lera artigos sobre jogadores como Underwood e Snow, mas as reputações não o preocupavam. Tencionava vencê-los   todas as partidas. Os jornais sul-africanos também estavam a seguir a série Ashes com muito interesse, porque queriam manter os seus leitores informados dos pontos fortes e fracos dos adversários que a SUA equipa iria enfrentar dentro de algumas semanas. Depois, do dia para a noite, essas histórias foram transferidas das últimas páginas para a primeira página, quando a Inglaterra seleccionou um jogador do Worcester chamado Basil d'Oliveira. Mr. D'Oliveira, como a imprensa lhe chamava, foi notícia de primeira página porque ele era aquilo que os sul-africanos classificavam como "Mestiço do Cabo" Emigrara para Inglaterra porque no país em que nascera, a África do Sul, não fora autorizado a jogar críquete de primeira classe. A imprensa de ambos os países começou a especular sobre qual seria a atitude do Governo da África do sul se D'Oliveira fosse seleccionado pela MCC, para membro da equipa que visitaria a África do Sul. - Se os ingleses forem suficientemente estúpidos para o seleccionarem - disse Stoffel no Banco aos seus amigos -, a digressão terá de ser cancelada. - Afinal de contas, não se podia esperar que ele jogasse contra um homem de cor. A maior esperança dos sul-africanos era que Mr. D'Oliveira falhasse o último teste em The Oval e não fosse considerado para a digressão, o que faria com que o problema se resolvesse por si só. D'Oliveira fez-lhes a vontade no primeiro turno, marcando apenas onze pontos. Mas, no segundo turno, marcou cento e cinquenta e oito pontos empatando a série e desempenhando um papel importante na vitória da sua equipa. Mesmo assim, numa decisão marcada pela controvérsia, foi deixado de fora da equipa que iria à África do Sul. Mas quando outro jogador se viu obrigado a desistir devido a uma lesão, foi seleccionado para o substituir. O Governo da África do Sul tornou imediatamente clara a sua posição: só jogadores brancos seriam bem-vindos ao seu país. Durante as semanas seguintes tiveram lugar intensas negociações diplomáticas, mas o MCC recusou-se a retirar D'Oliveira da equipa, pelo que a digressão teve de ser cancelada. Só depois de Nelson Mandela se ter tornado presidente em 1994 é que uma equipa inglesa oficial voltou a pôr os pés na África do Sul. Stoffel ficou destroçado com a decisão e, embora jogasse regularmente na Western Province e tivesse garantido que a Taça Interbancos se mantivesse nas mãos do Barclays, duvidou que alguma vez viesse a conseguir a internacionalização. Mas, apesar da sua decepção, Stoffel não tinha quaisquer dúvidas de que o Governo tomara a decisão correcta. Afinal de contas, por que é que os ingleses haveriam de pensar que podiam decretar quem devia visitar a África do Sul? Foi quando jogava contra o Transvaal que conheceu Ingá. Esta não só era o ser mais belo que ele jamais vira, como concordava plenamente com as suas opiniões sobre a superioridade da raça branca. Casaram-se um ano depois. Quando sucessivos países impuseram sanções à África do Sul, Stoffel continuou a apoiar o Governo, afirmando que os decadentes políticos ocidentais se tinham tornado liberais cobardes. Por que é que eles não vinham à África do Sul ver o país com os seus próprios olhos, perguntava ele a todos os que visitavam o Cabo. Assim, depressa descobririam que ele não batia nos criados e que os negros recebiam salários justos, conforme recomendava o Governo. Que mais queriam eles? De facto, ele nunca compreenderia por que é que o Governo não enforcava Mandela e os seus amigos terroristas, por traição. ^ Piet e Marike acenavam a cabeça em sinal de concordância sempre que o pai emitia estas opiniões. Ele explicava-lhes repetidas vezes ao pequeno-almoço que pessoas que tinham caído há pouco tempo das árvores não podiam ser tratadas como iguais. Afinal de contas, era assim que Deus planeara as coisas. Quando, perto dos quarenta anos, deixou de jogar críquete, Stoffel passou a dirigir o Departamento de Relações Públicas do Banco e foi convidado para o Conselho de Administração. A família mudou-se para uma casa grande a alguns quilómetros da cidade, com vista sobre o Atlântico. Embora o resto do mundo continuasse a cumprir as sanções, Stoffel continuava cada vez mais convencido de que a África do Sul era o único país no mundo que sabia fazer bem as coisas. Expressava regularmente essa opinião, tanto em público como em privado. Tu devias candidatar-te ao Parlamento - disse-lhe um amigo. - O país precisa de homens que acreditam no modo de vida sul-africano e que não estão dispostos a ceder perante uma cambada de estrangeiros ignorantes, a maior parte dos quais nem sequer conhece o país. No início, Stoffel não levou essas sugestões a sério. Mas, depois, o presidente do Partido Nacional deslocou-se à Cidade do Cabo especialmente para o ver. A Comissão Política gostaria que o seu nome figurasse como possível candidato nas próximas eleições gerais - disse ele a Stoffel. Stoffel prometeu que iria pensar no assunto mas explicou que, antes de tomar uma decisão, precisaria de conversar primeiro com a mulher e com os outros membros do Conselho de Administração do Banco. Para sua surpresa, todos eles o encorajaram a aceitar. Afinal de contas, tu és uma figura nacional muito popular e ninguém tem quaisquer dúvidas sobre a tua atitude em relação ao apartheid. Uma semana depois, Stoffel telefonou ao presidente do Partido Nacional a dizer que se sentiria honrado por ser candidato. Quando foi escolhido para disputar o lugar seguro de Noordhoek, ele terminou o seu discurso à comissão de selecção com as palavras: Irei para a minha sepultura, sabendo que o apartheid é uma política correcta, tanto para os pretos como para os brancos. - Foi aplaudido de pé. Tudo isso se alterou em 18 de Agosto de 1989. Nessa tarde, Stoffel saiu do Banco alguns minutos mais cedo, pois tinha de fazer um discurso numa reunião que iria ter lugar na Câmara Municipal. Faltavam apenas algumas semanas para as eleições e as sondagens indicavam que ele seria certamente eleito deputado pelo círculo eleitoral de Noordhoek. Ao sair do elevador, encontrou-se com Marinus de Jong, o director do Banco. Outro meio dia, Stoffel? - perguntou ele com um sorriso. Não... exactamente. Vou fazer um discurso numa reunião, Martinus. Fazes muito bem, meu amigo - respondeu de Jong. - E não lhes deixes qualquer dúvida de que, desta vez, ninguém se pode dar ao luxo de desperdiçar votos, isto é, se não quiserem que este país acabe a ser governado por pretos. A propósito - acrescentou ele -, nós também não precisamos de quotas para pretos nas universidades. Se permitirmos que a política do Banco seja ditada por uma cambada de estudantes ingleses, vamos acabar por ter um preto a querer o meu emprego. Sim, eu li o memorando de Londres. Eles estão a agir como um bando de avestruzes. Bem, tenho de me ir embora, Martinus, senão chego atrasado à reunião. Certo. Desculpa ter-te feito perder tempo. Stoffel olhou para o relógio e desceu a correr a rampa que ia ter ao parque de estacionamento. Quando chegou a Rhodes Street, tornou-se rapidamente óbvio que não conseguira evitar o êxodo compacto de pessoas que iam passar o fim-de-semana fora da cidade. Depois de passar os limites da cidade, carregou no ace- lerador. Eram só vinte e dois quilómetros até Noordhoek, embora o terreno fosse acidentado e a estrada sinuosa. Mas, como conhecia bem o caminho, StofFel demorava geralmente menos de meia hora até estacionar à porta de casa. Olhou para o relógio do tablier. Com um pouco de sorte, ainda chegaria a casa a tempo de tomar um duche e de mudar de roupa antes de ir para a reunião. Quando virou para sul na estrada que o levaria às colinas, Stoffel carregou no acelerador, mudando de faixa para ultrapassar os vagarosos camiões e automóveis que não conheciam as estradas tão bem como ele. Lançou um olhar mal-humorado ao ultrapassar velozmente um motorista negro que se esforçava por subir a colina numa camioneta velha, que não deveria ser autorizada a andar na estrada. As mortes na estrada tinham aumentado nove por cento desde que os pretos tinham sido autorizados a fazer exame de condução. Mais uma prova, se é que era necessária qualquer prova, de que os brancos eram naturalmente superiores. Ele faria questão de sublinhar essa estatística na reunião dessa noite. Acelerou na curva seguinte e viu um camião à sua frente. Ele sabia que havia um longo troço de estrada recta antes de chegar a outra curva, por isso tinha tempo de ultrapassar. Carregou no acelerador e deslocou-se para o meio da estrada, surpreendido com a velocidade a que o camião seguia. Quando estava a cerca de cem metros da curva seguinte, apareceu um carro a dobrar a curva. Stoffel teve de tomar imediatamente uma decisão. Devia travar ou acelerar? Carregou no acelerador até o pedal tocar no fundo, partindo do princípio de que o outro motorista iria travar. Passou à frente do camião e, assim que o ultrapassou, colocou-se na sua mão o mais depressa que conseguiu mas, mesmo assim, não conseguiu evitar bater no guarda-lamas do automóvel que vinha em sentido contrário. Por um instante, viu os olhos aterrorizados do outro motorista, que carregou no travão, mas a estrada íngreme não ajudou. O carro de Stoffel bateu na barreira de segurança antes de saltar de novo para o outro lado da estrada e acabar por parar no meio do arvoredo. Essa era a última coisa de que se recordava até voltar a si, cinco semanas depois. Stoffel abriu os olhos e viu Ingá ao pé da cama. Quando ela o viu abrir os olhos, apertou-lhe a mão e saiu apressadamente do quarto para chamar o médico. Quando voltou a acordar, estavam ambos junto da cama, mas só daí a uma semana é que o cirurgião lhe disse o que acontecera depois do acidente. Num silêncio horrorizado, Stoffel ouviu contar que o outro motorista morrera de lesões cerebrais, pouco depois de chegar ao hospital. Tens sorte em estar vivo - foi a única coisa que Ingá disse. Sem dúvida que tem - disse o cirurgião -, porque, poucos momentos depois de o outro motorista ter morrido, o seu coração também parou de bater. Teve a sorte de ter um dador adequado na sala de operações ao lado. Esse não era o condutor do outro carro? - disse Stoffel. O cirurgião acenou a cabeça em sinal de assentimento. Mas... ele não era preto? - perguntou Stoffel num tom de incredulidade. Era, sim - confirmou o cirurgião. - Isso pode surpreendê-lo, Mr. Van den Berg, mas o seu corpo não o sabe. Esteja simplesmente grato por a mulher dele ter concordado com o transplante. Se bem me recordo das suas palavras - ele fez uma pausa -, ela disse: "Não vejo necessidade de morrerem os dois." Graças a ela, pudemos salvar- -lhe a vida, Mr. Van den Berg - hesitou e franziu os lábios, depois disse com uma voz calma. - Mas lamento ter de lhe dizer que as suas outras lesões internas foram tão graves que, apesar do êxito do transplante cardíaco, o prognóstico não é nada bom. Stoffel não falou durante algum tempo até que, finalmente, perguntou: Quanto tempo tenho? Três, possivelmente quatro anos - respondeu o cirurgião. - Mas apenas se levar uma vida tranquila. Stoffel adormeceu profundamente. Só daí a seis semanas é que Stoffel saiu do hospital e, mesmo então, Ingá insistiu num longo período de convalescença. Vários amigos vieram visitá-lo a casa, incluindo Martinus de Jong, que lhe garantiu que o seu emprego no Banco estaria à sua espera assim que ele se restabelecesse totalmente. Eu não vou voltar para o Banco - disse Stoffel, tranquilamente. - Dentro de alguns dias, irás receber a minha carta de demissão. Mas porquê? - perguntou de Jong. - Posso garantir-te... Stoffel acenou a mão. É muito amável da tua parte, Martinus, mas tenho outros planos. Assim que o médico disse que Stoffel podia sair de casa, ele pediu a Ingá que o levasse a Crossroads, para visitar a mulher do homem que ele matara. O casal branco, alto e louro, andou no meio das barracas de Crossroads, observado por olhos tristes, resignados. Quando chegaram ao casebre onde lhe disseram que vivia a mulher do outro motorista, pararam. Se houvesse uma porta, Stoffel teria batido. Espreitou pelo buraco e, através da escuridão, viu uma mulher jovem com um bebé nos braços agachada a um canto. O meu nome é Stoffel van den Berg - disse ele. - Vim dizer-lhe que lamento muito ter causado a morte do seu marido. Obrigada, patrão - respondeu ela. - Não havia necessidade de me vir visitar. Uma vez que não havia nenhum local onde se pudesse sentar, Stoffel sentou-se no chão e cruzou as pernas. Eu também lhe queria agradecer por me ter dado uma oportunidade de viver. Obrigada, patrão. Há alguma coisa que eu possa fazer por si? - Fez uma pausa. - Talvez a senhora e o seu filho queiram ir viver connosco? Não, obrigada, patrão. Não há nada que eu possa fazer? - perguntou Stoffel, sentindo-se impotente. Nada, obrigada, patrão. Stoffel levantou-se, consciente de que só a sua presença a perturbava. Ele e Ingá percorreram de novo o bairro em silêncio e só voltaram a falar depois de terem chegado ao carro. Tenho estado tão cego - disse ele, no caminho de regresso a casa. Não tens sido só tu - admitiu a mulher, com as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos. - Mas que podemos fazer? Eu sei o que tenho de fazer. Ingá escutou enquanto o marido descrevia como tencionava passar o resto da vida. Na manhã seguinte, Stoffel foi ao Banco e, com a ajuda de Marinus de Jong, calculou quanto poderia gastar nos três anos seguintes. Disseste a Ingá que pretendes rebater o teu seguro de vida? A ideia foi dela - disse Stoffel. Como é que tencionas gastar o dinheiro? Vou começar por comprar livros em segunda mão, bolas de râguebi e pás de críquete velhas. Nós podemos ajudar, dando-te o dobro da quantia que tens para gastar - sugeriu o director-geral. Como? - perguntou Stoffel. Usando o excedente que temos no fundo desportivo. Mas isso é só para brancos. E tu és branco - disse o director-geral. Martinus ficou calado por um momento antes de acrescentar: Não penses que és a única pessoa a quem esta tragédia abriu os olhos. E tu estás mais bem colocado para... - ele hesitou. Para...? - repetiu Stoffel. Fazer com que outros, mais preconceituosos do que tu, tomem consciência dos erros do passado. Nessa tarde, Stoffel regressou a Crossroads. Percorreu o bairro durante várias horas até se decidir por um pedaço de terra rodeado de tendas e barracas de lata. Embora o terreno não fosse plano, nem tivesse a forma nem as dimensões perfeitas, ele começou a medir o campo, enquanto centenas de crianças o observavam. No dia seguinte, algumas das crianças ajudaram-no a pintar as linhas laterais e a colocar as bandeiras de canto. Durante quatro anos, um mês e onze dias, Stoffel van den Berg foi todas as manhãs a Crossroads, onde ensinava inglês às crianças numas instalações que serviam de escola. À tarde, ensinava às mesmas crianças as técnicas do râguebi ou do críquete, de acordo com as estações do ano. À noite, vagueava pelas ruas, tentando convencer os adolescentes que não deveriam formar gangs, cometer crimes ou meter-se na droga. Stoffel van den Berg morreu a 24 de Março de 1994, poucos dias antes de Nelson Mandela ser eleito presidente. Tal como Basil D'Oliveira, ele desempenhou um pequeno papel na derrota do apartheid. No funeral do Santo de Crossroads, estiveram presentes mais de duas mil pessoas, que vieram de todo o país para lhe prestar homenagem. Os jornalistas não conseguiram chegar a acordo sobre se, entre os presentes, havia mais negros ou mais brancos. DEMASIADAS COINCIDÊNCIAS Sempre que pensava nos últimos três anos, e fazia-o com frequência, Ruth chegava à conclusão de que Max devia ter planeado tudo até ao último pormenor, sim, até mesmo antes de se terem conhecido A primeira vez que se encontraram foi por acaso, ou foi o que Ruth pensou na altura e, para ser justa para com Max, não foram os dois que se encontraram, mas sim os seus barcos que chocaram um com o outro. O Sea Urchin estava a entrar no ancoradouro adjacente, ao lusco-fusco da tarde, quando as duas proas se tocaram. Os dois velejadores verificaram rapidamente se os seus barcos tinham ficado danificados mas, como ambos tinham bóias insufláveis penduradas sobre os lados, nenhum deles sofrera quaisquer danos. O dono do The Scottish Belle fez um simulacro de continência e desapareceu por baixo do convés. Max preparou um gim tónico, pegou num livro que tencionara acabar de ler no Verão anterior e instalou-se na proa. Começou a folhear o livro, tentando recordar o local exacto a que chegara, quando o velejador do The Scottish Belle voltou a aparecer no convés. O homem mais velho fez de novo um simulacro de continência, pelo que Max baixou o livro e disse: Boa tarde. Desculpe o choque. Não foi nada - respondeu o velejador, erguendo o seu copo de uísque. Max levantou-se da cadeira e, dirigindo-se ao lado do barco, estendeu a mão e disse: Eu chamo-me Max Bennett. Angus Henderson - respondeu o homem mais velho com um ligeiro sotaque de Edimburgo. Vive por estes lados, Angus? - perguntou Max, num tom casual. Não - respondeu Angus. - Eu e a minha mulher vivemos em Jersey, mas os nossos dois gémeos andam na escola aqui na costa sul, por isso nós vimos cá de barco todos os fins de período buscá-los para irem passar as férias a casa. E o senhor? Vive em Brighton? Não, em Londres, mas venho cá abaixo sempre que tenho tempo para andar de barco, o que infelizmente não acontece com a frequência suficiente, conforme o senhor já descobriu - acrescentou ele com uma pequena gargalhada, no momento em que uma mulher surgia no convés do The Scottish Belle. Angus virou-se e sorriu. Ruth, este é Max Bennett. Chocámos literalmente um com o outro. Max sorriu para a mulher que podia passar por filha de Henderson, pois era pelo menos vinte anos mais nova do que o marido. Embora não fosse bela, era atraente e, pelo seu corpo magro, atlético, parecia que fazia ginástica todos os dias. Sorriu timidamente a Max. Por que é que não vem tomar uma bebida connosco? - sugeriu Angus. Obrigado - disse Max, saltando para o barco maior. Inclinou-se e apertou a mão de Ruth. - Muito prazer em conhecê-la, Mrs. Henderson. Chame-me Ruth, por favor. Vive em Brighton? - perguntou ela. Não - respondeu Max. - Eu estava a dizer agora mesmo ao seu marido que só cá venho nalguns fins-de- -semana andar um pouco à vela. E o que faz em Jersey? - perguntou ele, voltando-se novamente para Angus. - Certamente não nasceu lá. Não, mudámo-nos de Edimburgo para lá há sete anos, quando me reformei. Eu era gerente de uma pequena empresa corretora. Hoje em dia, a única coisa que eu faço é manter debaixo de olho uma ou duas propriedades da fa- mília, para garantir que estão a dar um lucro razoável, velejo um pouco e jogo golfe de vez em quando. E você? - perguntou ele. Não muito diferente de si, mas com uma pequena diferença. Oh? Qual é? - perguntou Ruth. Eu também tomo conta de propriedades, mas elas pertencem a outras pessoas. Sou sócio de uma agência imobiliária de West End. Como estão os preços do imobiliário em Londres neste momento? - perguntou Angus depois de mais um golo de uísque. Têm sido dois anos bastante maus para a maior parte dos agentes, ninguém quer vender, e só os estrangeiros têm dinheiro para comprar. E sempre que é altura de renovar o contrato de arrendamento, alguns inquilinos exigem que se baixe a renda, enquanto outros simplesmente deixam de pagar. Angus riu-se. Talvez se deva mudar para Jersey. Pelo menos, assim evitaria... Acho que devemos ir mudar de roupa, senão chegamos atrasados ao concerto dos rapazes - interrompeu Ruth. Henderson olhou para o relógio. Desculpe, Max - disse ele. - Foi muito agradável conversar consigo, mas a Ruth tem razão. Talvez nos voltemos a encontrar. Espero que sim - respondeu Max. Sorriu, colocou o copo em cima de uma mesa próxima e voltou para o seu barco, ao mesmo tempo que os Hendersons desapareciam abaixo do convés. Max pegou mais uma vez no seu romance e, embora tivesse finalmente encontrado o local certo, viu que não conseguia concentrar-se. Trinta minutos depois, os Hendersons reapareceram, vestidos adequadamente para um concerto. Max acenou-lhes casualmente, quando eles pisaram o cais e entraram num táxi. Quando subiu ao convés na manhã seguinte, com uma chávena de chá na mão, Ruth ficou desapontada ao ver que o Sea Urchin já não estava atracado ao lado deles. Estava prestes a desaparecer de novo por baixo do convés, quando julgou ter reconhecido o barco que estava a entrar no cais. Ficou imóvel a ver a vela ficar cada vez maior, na esperança de que Max atracasse no mesmo local em que estivera na noite anterior. Quando a viu no convés, ele acenou. Ela fingiu não o ver. Então, onde está Angus? - perguntou ele, depois de ter atracado. Foi buscar os rapazes para os levar a um jogo de râguebi. Só deve voltar ao fim da tarde - acrescentou ela, desnecessariamente. Max atou uma linha de escarpa ao molhe, levantou os olhos e perguntou: Então, por que é que não vens almoçar comigo, Ruth? Eu sei de um pequeno restaurante italiano que os turistas ainda não conhecem. Ruth fingiu reflectir sobre o convite e acabou por dizer: Sim, por que não? Encontramo-nos daqui a meia hora? - sugeriu Max. Por mim, tudo bem - respondeu Ruth. A meia hora de Ruth aproximou-se mais de cinquenta minutos, pelo que Max voltou para o seu livro mas, mais uma vez, fez poucos progressos. Quando finalmente reapareceu, Ruth vestira uma mini--saia preta de cabedal, uma blusa branca e meias pretas, e pusera demasiada maquilhagem, até mesmo para Jersey. Max olhou-lhe para as pernas. Nada más para trinta e oito anos, pensou ele, mesmo que a saia fosse demasiado justa e certamente demasiado curta. Estás óptima - disse ele, tentando parecer convincente. - Vamos? Ruth foi ter com ele ao cais e eles dirigiram-se lentamente para a cidade, conversando inconsequentemente até ele virar numa rua secundária e parar em frente de um restaurante chamado Venitici. Quando ele abriu a porta para ela entrar, Ruth não conseguiu ocultar a sua desilusão ao ver que estava cheio. Nunca mais conseguimos arranjar uma mesa - disse ela. Oh, eu não teria tanta certeza - disse Max, ao mesmo tempo que o chefe de mesa se dirigia a eles. A mesa do costume, Mr. Bennett? Obrigado, Valerio - disse ele, enquanto eles eram conduzidos para uma mesa tranquila a um canto da sala. Que queres beber, Ruth? Um copo de champanhe? - perguntou Max, depois de se sentarem. Isso seria muito agradável - disse ela, como se isso fosse algo que ela fizesse todos os dias. De facto, ela raramente bebia champanhe antes do almoço, pois nunca passaria pela cabeça de Angus cometer tais extravagâncias, excepto talvez no seu aniversário. Max abriu o menu. A comida aqui é sempre excelente, especialmente os gnocchi, que são feitos pela mulher de Valerio. Derretem- -se simplesmente na boca. Parece óptimo - disse Ruth, não se dando ao trabalho de abrir o menu. E uma salada mista, talvez. Não podias escolher melhor. Max fechou o menu e olhou através da mesa. Os rapazes não podem ser teus - disse ele. - Não se já estão num colégio interno. Por que não? - perguntou Ruth, com um ar tímido. Porque... por causa da idade do Angus. Suponho que parti do princípio que eles deviam ser de um casamento anterior dele. Não - disse Ruth, com uma gargalhada. - Angus já tinha mais de quarenta anos quando se casou. Eu senti- -me muito orgulhosa quando ele me pediu em casamento. Max não fez quaisquer comentários. E tu? - perguntou Ruth, ao mesmo tempo que um empregado de mesa lhe pedia que escolhesse entre quatro tipos de pão diferentes. Já fui casado quatro vezes - disse Max. Ruth pareceu chocada, até ele ter desatado a rir. Na verdade, nunca me casei - disse ele tranquila- mente. - Suponho que nunca encontrei a rapariga certa. Mas tu ainda és suficientemente novo para teres qualquer mulher que queiras - disse Ruth. Sou mais velho do que tu - disse Max, galantemente. Para um homem é diferente - disse Ruth num tom pensativo. O chefe de mesa apareceu de novo ao seu lado, com um pequeno bloco na mão. Dois gnocchis, uma garrafa do seu Barolo - disse Max, devolvendo o menu - e uma salada mista para os dois: espargos, abacate, alface, o senhor já sabe o que eu quero. Com certeza, Mr. Bennett - respondeu Valerio. Max voltou a sua atenção para a sua convidada. Uma pessoa da tua idade não acha Jersey um pouco aborrecida? - perguntou ele, inclinando-se sobre a mesa e empurrando para trás uma madeixa de cabelo louro que lhe caíra sobre a testa. Ruth sorriu timidamente. Tem as suas vantagens - respondeu ela num tom pouco convincente. Como por exemplo? - insistiu Max. Um imposto de vinte por cento. Isso parece uma boa razão para Angus viver em Jersey, mas não para ti. Em todo o caso, eu preferia viver em Inglaterra e pagar quarenta por cento. Agora que ele se reformou e vivemos com um rendimento fixo, é conveniente para nós. Se tivéssemos ficado em Edimburgo, não poderíamos manter o mesmo nível de vida. Então, Brighton é o melhor que se consegue arranjar - disse Max com um sorriso. O chefe de mesa reapareceu com dois pratos degnocchi que colocou à frente deles, e outro empregado depositou um enorme prato de salada no meio da mesa. Eu não me queixo - disse Ruth, bebendo um golo de champanhe. - Angus sempre foi muito generoso. Não me falta nada. Nada? - repetiu Max, ao mesmo tempo que uma mão desapareceu debaixo da mesa e pousou no joelho dela. Ruth sabia que deveria retirá-la imediatamente, mas não o fez. Quando Max tirou finalmente a mão para se concentrar nos gnocchi, Ruth tentou agir como se nada tivesse acontecido. Há alguma coisa que valha a pena ver no West End? - perguntou ela num tom casual. - Disseram-me que An Inspector Calls é bastante bom. Certamente que é - respondeu Max. - Eu fui à estreia. Oh, quando foi isso? - perguntou Ruth com um ar inocente. Há cerca de cinco anos - respondeu Max. Ruth soltou uma gargalhada. Então, agora que sabes como eu estou desactualizada, podes dizer-me o que eu deveria ver. Há uma peça nova do Tom Stoppard que vai estrear no próximo mês - ele fez uma pausa. - Se conseguisses escapar por uns dias, poderíamos vê-la juntos. Não é assim tão fácil, Max. Angus conta que eu fique com ele em Jersey. Nós não vimos muitas vezes ao continente. Max olhou para o prato vazio dela. Parece que os gnocchi corresponderam aos meus elogios. Ela acenou a cabeça em sinal de assentimento. Tens de experimentar o creme brulée, também feito pela mulher do dono. Certamente que não. Esta viagem já significa que vou faltar ao ginásio durante pelo menos três dias, por isso fico-me pelo café - disse Ruth, ao mesmo tempo que era colocado outro copo de champanhe à sua frente. Ela franziu o sobrolho. Finge que é o dia dos teus anos - disse Max, en- quanto a mão desaparecia outra vez debaixo da mesa, desta vez pousando alguns centímetros mais acima, na coxa. Quando olhava para trás, ela pensava que aquele fora o momento em que se deveria ter levantado e ido embora. Então, há quanto tempo és agente imobiliário? - perguntou ela, continuando a fingir que não estava a acontecer nada. Desde que acabei o liceu. Comecei por baixo na empresa, a fazer chá e, o ano passado, tornei-me sócio. Parabéns. Onde é o teu escritório? Mesmo no centro de Mayfair. Por que é que não apareces lá um dia destes? Talvez na próxima vez que estiveres em Londres. Eu não vou muitas vezes a Londres - disse Ruth. Quando viu um empregado de mesa a dirigir-se à mesa deles, Max retirou a mão da perna. Depois de o empregado ter colocado dois capuccinos à sua frente, Max sorriu-lhe e disse: Importa-se de trazer a conta, por favor? Estás com pressa? - perguntou Ruth.

Estou - respondeu ele. - Acabei de me lembrar que tenho uma garrafa de brande antigo escondida no Sea Urchin, e esta pode ser a ocasião ideal para a abrir - inclinou-se sobre a mesa e pegou-lhe na mão. - Sabes, eu estava a guardar essa garrafa para algo ou alguém especial. Eu acho que não seria sensato. Tu só fazes o que é sensato? - perguntou Max, sem lhe largar a mão. E só que eu devia voltar para o The Scottish Belle. Para ficares três horas à espera que Angus volte? Não, é só que... Tens medo que eu tente seduzir-te. É isso o que tinhas em mente? - perguntou Ruth, largando-lhe a mão. É, mas não antes de provarmos o brande - disse Max, ao mesmo tempo que a conta lhe era entregue. Ele virou o pedaço de papel branco, tirou a carteira do bolso e colocou quatro notas de dez libras na bandeja de prata. Angus dissera-lhe uma vez que uma pessoa que paga em dinheiro num restaurante ou não precisa de um cartão de crédito ou ganha demasiado pouco para ter direito a um. Max levantou-se da cadeira, agradeceu ao chefe de mesa um pouco demasiado efusivamente e, quando ele lhes abriu a porta, deu-lhe uma nota de cinco libras. Não falaram enquanto atravessaram a rua no caminho de regresso ao cais. Ruth julgou ver alguém a saltar do Sea Urchin mas, quando voltou a olhar, não havia ninguém à vista. Ruth planeara despedir-se quando chegassem ao barco, mas deu por si a seguir Max para bordo, para a cabina por baixo do convés. Eu não pensava que fosse tão pequeno - disse ela, quando chegou ao último degrau. Descreveu um círculo completo e acabou nos braços de Max. Ela afastou-o suavemente. É ideal para uma pessoa só - foi o único comentário dele, enquanto deitava brande em dois copos. Deu um a Ruth, colocando o outro braço à volta da cintura dela. Puxou-a suavemente para si, deixando que os seus corpos se tocassem. Inclinou-se e beijou-a nos lábios, antes de a largar para beber um golo de brande. Ele ficou a vê-la levar o copo aos lábios e depois tomou-a mais uma vez nos braços. Desta vez, quando se beijaram, os seus lábios separaram-se, e ela não fez grande esforço para o impedir de desapertar o botão de cima da blusa. Todas as vezes que ela tentava resistir, ele afastava-se, esperando que ela bebesse outro golo antes de retomar a sua tarefa. Foram necessários mais alguns golos antes de ele conseguir despir a blusa branca e encontrar o fecho da mini-saia justa, mas, nessa altura, ela já não estava a fingir que tentava impedi-lo. És o segundo homem com quem fiz amor - disse ela, depois em voz baixa, deitada no chão. Eras virgem quando casaste com Angus? - perguntou Max, incrédulo. Ele não se teria casado comigo se não fosse - respondeu ela, muito simplesmente. E não houve ninguém nos últimos vinte anos? - perguntou ele, deitando mais brande no copo. Não - respondeu ela -, embora eu tenha a sensação de que Gerald Prescott, o director da escola primária dos rapazes, gosta de mim. Mas ele nunca foi além de um beijo no rosto e de olhar para mim com um ar de tristeza. Mas tu gostas dele? Gosto. Ele é bastante simpático - admitiu Ruth pela primeira vez na vida. - Mas não é o tipo de homem que dê o primeiro passo. Então, é um tolo - disse Max, tomando-a novamente nos braços. Ruth olhou para o relógio. Oh, meu Deus, já é assim tão tarde? Angus deve estar de volta a qualquer momento. Não entres em pânico, minha querida - disse Max. - Ainda temos tempo para outro brande e talvez mesmo outro orgasmo, o que mais te agradar. Ambos, mas não me quero arriscar a que ele nos encontre juntos. Então, teremos de o guardar para outra altura - disse Max, colocando outra vez a rolha na garrafa. Ou outra rapariga - disse Ruth, começando a calçar as meias. Max pegou numa esferográfica que estava em cima da mesinha e escreveu no rótulo da garrafa: "Para beber apenas quando estiver com a Ruth." Vou voltar a ver-te? - perguntou ela. Isso depende de ti, minha querida - respondeu Max, antes de a beijar outra vez. Quando a largou, ela deu meia volta e subiu os degraus para o convés, desaparecendo rapidamente de vista. Uma vez de regresso ao The Scotish Belle, ela tentou apagar a recordação das últimas duas horas, mas, quando Angus voltou algumas horas depois com os rapazes, ela compreendeu que esquecer Max não iria ser assim tão fácil. Quando subiu ao convés na manhã seguinte, o Sea Urchin já lá não se encontrava. Estás à procura de alguma coisa em particular? - perguntou Angus, quando foi ter com ela. Ela virou-se para ele. Não. Estou ansiosa por estar outra vez em Jersey. Deve ter sido cerca de um mês depois que ela atendeu o telefone e ouviu Max no outro extremo da linha. Teve a mesma sensação de ficar sem fôlego que tivera na primeira vez que tinham feito amor. Vou amanhã a Jersey ver uma casa para um cliente. Há alguma possibilidade de nos encontrarmos? Por que é que não vens jantar connosco? - ouviu Ruth a sua própria voz dizer. Por que é que não vens ter comigo ao hotel? - respondeu ele. - E não nos vamos preocupar com o jantar. Não, eu acho que seria mais sensato vires cá jantar. Em Jersey, até mesmo as caixas do correio falam. Se essa for a única forma de te ver, então, aceito o jantar. Oito horas? Oito horas está óptimo - disse ele e desligou. Quando ouviu o som do telefone a desligar-se, Ruth lembrou-se de que não lhe dera o endereço deles e que não lhe podia telefonar, porque não sabia o número de telefone dele. Quando ela avisou Angus que teriam um convidado para jantar no dia seguinte, ele pareceu satisfeito. Não poderia vir em melhor altura - disse ele. - Há uma coisa sobre a qual eu quero que Max me aconselhe. Ruth passou a manhã do dia seguinte a fazer compras em St. Helier, escolhendo apenas os melhores cortes de carne, as hortaliças mais frescas e uma garrafa de clarete, que sabia que Angus consideraria muito extravagante. Passou a tarde na cozinha, explicando à cozinheira exactamente como queria que a carne fosse preparada, escolhendo e depois rejeitando o que poderia vestir nessa noite. Ainda estava nua quando a campainha tocou, alguns minutos depois das oito. Ruth abriu a porta do quarto e, do cimo das escadas, ouviu o marido dar as boas-vindas a Max. Como Angus parecia velho, pensou ela, ao ouvir os dois homens a conversar. Ela ainda não descobrira sobre o que é que ele queria conversar com Max, e não queria parecer demasiado interessada. Voltou para o quarto e escolheu um vestido que uma amiga descrevera uma vez como sedutor. "Então, será desperdiçado nesta ilha", lembrava-se de ter comentado. Os dois homens puseram-se de pé quando Ruth entrou na sala, e Max deu alguns passos em frente e beijou-a em ambas as faces do mesmo modo que Gerald Prescott sempre fazia. Tenho estado a conversar com Max sobre a nossa casa nas Ardenas - disse Angus, mesmo antes de se sentarem de novo -, e sobre os nossos planos para a vender, agora que os gémeos vão para a universidade. "Que típico de Angus", pensou Ruth. "Despachar os negócios mesmo antes de oferecer uma bebida ao convidado." Ela dirigiu-se ao aparador e preparou um gim tónico para Max, sem sequer pensar no que estava a fazer. Perguntei a Max se ele se importava de ir ver a casa, avaliá-la e aconselhar-me sobre a melhor altura de a pôr à venda. Isso parece-me bastante sensato - disse Ruth. Ela evitou olhar directamente para Max, com medo que Angus visse o que ela sentia por ele. Posso ir até França amanhã - disse Max -, se quiseres. Não tenho nada planeado para o fim-de-semana - acrescentou ele. - Podia dizer-te o que penso na segunda- -feira. Isso parece-me bem - comentou Angus. Fez uma pausa e bebeu um golo do uísque que a mulher lhe dera. - Eu estava a pensar, minha querida, que as coisas talvez fossem mais rápidas se tu fosses também. Tenho a certeza de que Max pode tratar... Oh, não - disse Angus. - Foi ele quem teve a ideia. Afinal de contas, podes mostrar-lhe a casa e, se ele tiver algumas perguntas a fazer, não precisará de telefonar para cá. Bem, eu estou bastante ocupada neste momento com... O clube de brídege, o ginásio e... Não, eu penso que conseguiremos todos sobreviver sem ti durante alguns dias - disse Angus com um sorriso. Ruth detestou parecer tão provinciana em frente de Max. Está bem - disse ela. - Se achas que vai ajudar, eu acompanharei Max às Ardenas. - Desta vez, ela ergueu os olhos para ele. Os chineses teriam ficado impressionados com a expressão inescrutável de Max. A viagem às Ardenas demorou três dias e, mais memoravelmente, três noites. Quando regressaram a Jersey, Ruth teve esperança de que não fosse demasiado óbvio que eles eram amantes. Depois de Max ter entregue a Angus um relatório pormenorizado e uma avaliação, o velho aceitou o seu conselho de que a casa deveria ser posta à venda antes do início da época de Verão. Os dois homens apertaram as mãos para celebrar o acordo e Max disse que contactaria com eles assim que alguém manifestasse interesse. Ruth levou-o ao aeroporto e as suas últimas palavras antes de ele desaparecer na Alfândega foram: Será que podes fazer com que decorra menos de um mês até voltar a ter notícias tuas? Max telefonou no dia seguinte para informar Angus que colocara a casa nas mãos de duas conhecidas agências de Paris com as quais a sua empresa lidava há muitos anos. Antes de perguntares - acrescentou ele -, vou dividir a minha comissão, por isso não vou cobrar mais. Um homem como eu gosto - disse Angus. Desligou antes de Ruth ter tido oportunidade de falar com Max. Durante os dias que se seguiram, Ruth atendeu sempre o telefone antes de Angus, mas Max não voltou a telefonar nessa semana. Quando ele finalmente telefonou na segunda-feira seguinte, Angus estava sentado na mesma sala. Estou ansioso por te rasgar outra vez a roupa, minha querida - foram as primeiras palavras de Max. Folgo muito em sabê-lo, Max, mas vou passar o telefone a Angus, para lhe contares as novidades - respondeu-lhe. Quando passou o telefone ao marido, ela fez votos para que ele tivesse, de facto, novidades. Então, que novidades tens para mim? - perguntou Angus. Tivemos uma oferta de novecentos mil francos pela casa - disse Max -, o que são quase cem mil libras. Mas não vou decidir ainda, porque há mais duas pessoas interessadas em vê-la. Os agentes franceses aconselham que aceitemos qualquer oferta acima de um milhão de francos. Se é esse também o teu conselho, eu concordo - disse Angus. - E se fechares negócio, Max, eu apanho um avião para aí para assinar o contrato. Há algum tempo que ando a prometer à Ruth levá-la a Londres. Óptimo. Será bom voltar a vê-los aos dois - disse Max antes de desligar. Voltou a telefonar no final da semana e Ruth, embora tivesse conseguido dizer uma frase inteira antes de Angus surgir a seu lado, não teve tempo para lhe retribuir as palavras de afecto. Cento e sete mil e seiscentas libras? - disse Angus. - Isso é muito mais do que eu estava à espera. Parabéns, Max. Por que é que não preparas os contratos e, assim que o depósito estiver no Banco, eu vou até aí. - Angus desligou e, virando-se para Ruth, disse: - Bem, parece que já não falta muito tempo para fazermos essa prometida viagem a Londres. Depois de se terem instalado num pequeno hotel em Marble Arch, Ruth e Angus foram ter com Max a um restaurante da South Audley Street de que Angus nunca ouvira falar. E quando viu os preços na ementa concluiu que, mesmo que conhecesse, não o teria escolhido. Mas os em- pregados eram muito atenciosos e pareciam conhecer bem Max. Para Ruth, o jantar foi frustrante, pois a única coisa que Angus queria era conversar sobre o negócio e, quando Max lhe fez a vontade nesse capítulo, ele começou a falar sobre os outros bens que possuía na Escócia. O capital investido parece estar a dar pouco lucro - disse Angus. - Será que podes ir vê-las e aconselhar-me sobre o que devo fazer? Com todo o gosto - disse Max, no momento em que Ruth levantou os olhos do seu foie gras e olhou para o marido. - Estás a sentir-te bem, querido? - perguntou ela. - Ficaste muito pálido. Tenho uma dor no lado direito - queixou-se Angus. - Foi um dia longo e não estou habituado a estes restaurantes elegantes. Tenho a certeza de que não é nada que uma boa noite de sono não resolva. Pode ser que sim, mas acho que devemos voltar imediatamente para o hotel - disse Ruth, parecendo preocupada. Eu concordo com Ruth - opinou Max. - Vou pagar a conta e pedir ao porteiro que nos arranje um táxi. Angus pareceu vacilante ao atravessar o restaurante, apoiado no braço de Ruth. Quando Max foi ter com eles à rua alguns momentos depois, Ruth e o porteiro estavam a ajudar Angus a entrar num táxi. Boa noite, Angus - disse Max. - Espero que te sintas bem depressa. Não hesites em telefonar-me se precisares de qualquer ajuda. Quando Ruth conseguiu meter o marido na cama, este não parecia estar melhor. Embora soubesse que ele não aprovaria a despesa extra, ela mandou chamar o médico do hotel. O médico chegou ao fim de menos de uma hora e, após um exame completo, surpreendeu Ruth ao perguntar-lhe o que Angus comera nessa noite. Ela tentou recordar-se dos pratos que ele escolhera, mas a única coisa de que se conseguia lembrar era que ele concordara com as suges- toes de Max. O médico aconselhou que Mr. Henderson fosse visto por um especialista logo de manhã. Disparate! - disse Angus com uma voz fraca. - Não tenho nada que o nosso médico local não resolva assim que chegarmos a Jersey. Vamos apanhar o primeiro avião para casa. Ruth concordou com o médico, mas sabia que não valia a pena discutir com o marido. Quando ele acabou por adormecer, ela desceu para telefonar a Max para o avisar que iriam regressar a Jersey na manhã seguinte. Ele pareceu preocupado e voltou a prontificar-se para ajudar no que fosse necessário. Na manhã seguinte, quando entraram no avião e o comissário de bordo reparou no estado de Angus, foram necessários todos os poderes de persuasão de Ruth para o convencer a permitir que Angus fizesse a viagem. Tenho de o levar ao seu médico o mais depressa possível - suplicou ela. O comissário acedeu com relutância. Ruth já telefonara para que estivesse um automóvel à espera deles, mais uma coisa que Angus não teria aprovado. Mas, quando o avião aterrou, Angus já não estava em condições de emitir qualquer opinião. Assim que o levou para casa e o meteu na cama, Ruth telefonou ao seu médico de clínica geral. O Dr. Sinclair fez o mesmo exame que o médico de Londres e também perguntou o que Angus comera na noite anterior. Ele chegou à mesma conclusão. Angus teria de ser visto imediatamente por um especialista. À tarde, uma ambulância foi buscá-lo para o levar para o Cottage Hospital. Depois de terminado o exame, o especialista pediu a Ruth que fosse conversar com ele na sala ao lado. Infelizmente, tenho más notícias para si, Mrs. Henderson - disse-lhe ele. - O seu marido teve um ataque cardíaco, agravado possivelmente por um dia longo e por algo que comeu que lhe fez mal. Perante as circunstâncias, acho que talvez seja boa ideia mandar vir os seus filhos da escola. Ruth voltou para casa algumas horas depois, sem sa- ber a quem pedir ajuda. O telefone tocou e, quando atendeu, reconheceu imediatamente a voz. Max - disse ela -, ainda bem que telefonaste. O especialista diz que Angus não tem muito tempo de vida e que eu devia mandar chamar os rapazes - fez uma pausa. - Acho que não tenho coragem para lhes dizer o que aconteceu. Sabes, eles adoram o pai. Deixa isso comigo - disse Max numa voz calma. - Eu telefono ao director da escola, vou buscá-los amanhã de manhã e apanho o avião para Jersey com eles. Isso é muito amável da tua parte, Max. É o mínimo que posso fazer nestas circunstâncias - disse Max. - Agora, tenta descansar. Pareces exausta. Assim que souber o voo em que vamos, eu telefono. Ruth regressou ao hospital e passou a maior parte da noite sentada à beira da cama do marido. O único outro visitante com quem Angus insistiu em falar foi o advogado da família. Ruth concordou que Mr. Craddock o visitasse na manhã seguinte, quando ela fosse buscar Max e os gémeos ao aeroporto. Max emergiu da Alfândega ladeado pelos dois rapazes. Ruth sentiu-se aliviada ao ver que eles estavam muito mais calmos do que ela. Max conduziu-os, aos três, ao hospital. Ela ficou decepcionada por Max planear regressar a Inglaterra no voo da tarde mas, conforme ele explicou, ele achava que ela devia estar com a sua família. Angus morreu tranquilamente no Cottage Hospital de St. Helier na sexta-feira seguinte. Ruth e os gémeos estavam a seu lado. Max foi ao funeral e, no dia seguinte, acompanhou os gémeos à escola. Quando acenou a despedir-se, Ruth perguntou a si própria se voltaria a ter notícias de Max. Ele telefonou-lhe no dia seguinte para perguntar como se sentia. Só e um pouco culpada por ter mais saudades tuas do que deveria - fez uma pausa. - Quando é que estás a pensar em vir a Jersey? Não no futuro próximo. Não te esqueças de que foste tu que me avisaste que em Jersey até as caixas do correio falam. Mas que é que eu hei-de fazer? Os rapazes estão na escola e tu estás em Londres. Por que é que não vens ter comigo à cidade? Será muito mais fácil perderes-te aqui e, com toda a franqueza, em Londres ninguém te vai reconhecer. Talvez tenhas razão. Vou pensar nisso, depois telefono-te. Ruth apanhou o avião para Heathrow uma semana depois e Max estava no aeroporto à sua espera. Ela sentiu-se comovida por ele ser tão compreensivo e meigo, nunca se queixando dos seus longos silêncios, nem do facto de ela não querer fazer amor. Quando ele a levou ao aeroporto na segunda-feira de manhã, ela agarrou-se a ele. Sabes - disse ela -, nem sequer cheguei a ver o teu apartamento, nem o teu escritório. Eu acho que foi sensato da tua parte ficares num hotel desta vez. Poderás ver o escritório quando cá voltares. Ela sorriu pela primeira vez desde o funeral. Quando se despediram no aeroporto, ele tomou-a nos braços e disse: Eu sei que ainda é cedo, minha querida, mas quero que saibas que te amo muito e que tenho esperança de que algures no futuro me consideres merecedor de ocupar o lugar de Angus. Ela regressou a St. Helier nessa noite repetindo constantemente as palavras dele, como se fossem a letra de uma canção que não conseguia tirar da cabeça. Deve ter sido cerca de uma semana mais tarde que ela recebeu uma chamada telefónica do Dr. Craddock, o advogado da família, que sugeriu que ela passasse pelo seu escritório para discutir o conteúdo do testamento do seu falecido marido. Ela marcou um encontro com ele para a manhã seguinte. Ruth partira do princípio que, uma vez que ela e Angus sempre tinham tido uma vida confortável, o seu nível de vida seria o mesmo que até aí. Afinal de contas, Angus não era o tipo de homem que deixasse coisas por resolver. Ela recordou-se de como ele insistira tanto para que o Dr. Craddock o fosse ver ao hospital. Ruth nunca manifestara qualquer interesse pelos negócios de Angus. Embora fosse sempre cuidadoso com o dinheiro, ele nunca lhe recusara nada que ela quisesse. Em todo o caso, Max acabara de depositar cem mil libras na conta de Angus, pelo que, na manhã seguinte, ela partiu para o escritório do advogado confiante que o marido lhe deixara o suficiente para ela viver. Chegou alguns minutos antes da hora marcada. Apesar disso, a recepcionista acompanhou-a imediatamente até ao gabinete do sócio sénior. Quando ela entrou, encontrou três homens sentados à volta da mesa do Conselho de Administração. Puseram-se imediatamente de pé e o Dr. Craddock apresentou-os como sócios da empresa. Ruth partiu do princípio que eles tivessem vindo apenas apresentar as suas condolências, mas eles voltaram a sentar-se e continuaram a estudar os grossos processos colocados à sua frente. Pela primeira vez, Ruth sentiu-se ansiosa. Será que Angus não tinha as coisas em ordem? O sócio sénior ocupou o seu lugar no topo da mesa, desatou um molho de documentos, tirou deles um pergaminho espesso, depois olhou para a mulher do seu falecido cliente. Em primeiro lugar, desejo expressar, em nome da empresa, a tristeza que todos nós sentimos quando tivemos conhecimento da morte de Mr. Henderson - começou ele por dizer. Obrigada - disse Ruth, baixando a cabeça. Pedimos que viesse cá esta manhã para a informar- mos sobre o conteúdo do testamento do seu falecido marido. Depois, teremos todo o gosto em responder a quaisquer Perguntas que queira fazer-nos. Ruth sentiu um arrepio de frio e começou a tremer. Por que é que Angus não a avisara que era provável que houvesse problemas? O advogado leu o preâmbulo, chegando finalmente aos legados: Deixo todos os meus bens materiais à minha mulher, Ruth, com excepção dos seguintes legados: 200 libras a cada um dos meus filhos, Nicholas e Ben, que eu gostaria que eles gastassem nalguma coisa em minha memória. 500 libras à Academia Real Escocesa, para serem usadas na compra de um quadro, que deve ser da autoria de um artista escocês. 1000 libras ao Colégio George Watson, a minha antiga escola, e 2000 libras à Universidade de Edimburgo. O advogado continuou a ler uma lista de legados mais pequenos, terminando com uma dádiva de 100 libras ao Cottage Hospital, que tratara tão bem de Angus durante os seus últimos dias de vida. Tem alguma questão, Mrs. Henderson, sobre a qual a possamos aconselhar? Ou prefere que continuemos a administrar as suas finanças como fazíamos com o seu marido? - perguntou o sócio sénior, olhando para Ruth. Para ser sincera, Dr. Craddock, Angus nunca discutiu as suas questões financeiras comigo, por isso não sei bem o que tudo isto significa. Desde que haja dinheiro suficiente para eu e os rapazes continuarmos a viver como fazíamos quando ele estava vivo, acho bem que continue a gerir as nossas finanças. Eu tive o privilégio de aconselhar Mr. Henderson desde que ele chegou à ilha há cerca de sete anos, Mrs. Henderson, e terei todo o gosto em responder a quaisquer perguntas - disse o sócio sentado à direita do Dr. Craddock. É muito amável da sua parte - disse Ruth -, mas não faço a mínima ideia das perguntas que poderei fazer, excepto talvez saber aproximadamente o valor dos bens do meu marido. Essa não é uma pergunta muito fácil de responder - disse o Dr. Craddock -, porque ele deixou muito pouco em dinheiro. No entanto, tive de calcular um número para a homologação do testamento - disse ele, abrindo uma das pastas à sua frente. - O meu cálculo inicial, que talvez seja um pouco inferior à realidade, sugere uma quantia entre dezoito e vinte milhões. Francos? - perguntou Ruth num murmúrio. Não, minha senhora, libras - disse simplesmente o Dr. Craddock. Após considerável reflexão, Ruth decidiu que não falaria a ninguém sobre a sua fortuna, nem sequer aos filhos. Quando foi a Londres no fim de semana seguinte, disse a Max que os advogados de Angus a tinham informado sobre o conteúdo do testamento de Angus e sobre o valor dos seus bens. Alguma surpresa? - perguntou Max. Nem por isso. Ele deixou duzentas libras a cada um dos rapazes e, com as cem mil libras da venda da nossa casa nas Ardenas, deve haver dinheiro suficiente para vivermos, desde que eu não seja demasiado extravagante. Por isso, se ainda quiseres casar comigo, receio que tenhas de continuar a trabalhar. Ainda bem. Teria detestado a ideia de viver do dinheiro de Angus. De facto, tenho boas notícias para ti. A firma pediu-me que estudasse a possibilidade de abrir uma sucursal em St. Helier, no início do próximo ano. Eu disse- -lhes que só consideraria a oferta com uma condição. Qual é? - perguntou Ruth. Que uma das habitantes concordasse em ser minha mulher. Ruth abraçou-o, mais confiante do que nunca de que encontrara o homem certo com quem passar o resto da sua vida. Max e Ruth casaram-se três meses depois no Registo Civil de Chelsea, com apenas os gémeos como testemunhas, e até mesmo estes se tinham mostrado relutantes em assistir à cerimónia. Ele nunca substituirá o nosso pai - dissera Ben à mãe com considerável emoção. Nicholas acenou a cabeça em sinal de assentimento. Não te preocupes - disse Max, no caminho para o aeroporto. - Só o tempo resolverá esse problema. Quando partiram de Heathrow para começar a lua-de--mel, Ruth mencionou que ficara um pouco decepcionada por nenhum dos amigos de Max ter assistido à cerimónia. Não devemos provocar comentários desagradáveis tão pouco tempo depois da morte do Angus - disse-lhe ele. - Talvez seja sensato deixar passar algum tempo antes de eu te lançar à sociedade de Londres - sorriu e pegou- -lhe na mão. Ruth aceitou a sua afirmação e pôs de lado quaisquer dúvidas que pudesse eventualmente ter. O avião aterrou em Veneza três horas depois, e eles foram transportados num barco a motor para o hotel que dava para a Praça de São Marco. Tudo parecia muito bem organizado, e Ruth ficou surpreendida por o seu novo marido estar disposto a passar horas em lojas de roupa a ajudá-la a escolher numerosos fatos. Ele até escolheu um vestido que ela considerou demasiado caro. Durante toda a semana em que passearam em gôndolas, ele não saiu de ao pé dela nem por um momento. Na sexta-feira, Max alugou um carro e levou a sua noiva a Florença, onde atravessaram as pontes juntos, visitando a Uffizi, o Palácio Pitti e a Academia. À noite, comiam demasiada pasta e dançavam na praça do mercado, regressando muitas rezes ao hotel ao nascer do Sol. Na terceira semana, apanharam o avião para Roma, onde o quarto do hotel, o Coliseu, a ópera e o Vaticano ocuparam a maior parte do seu tempo. As três semanas passaram tão depressa que Ruth não se conseguia lembrar dos dias individuais. Todas as noites, antes de se deitar, ela escrevia aos filhos a descrever as maravilhosas férias que estava a passar, salientando sempre a amabilidade de Max. Ela queria muito que eles o aceitassem, mas receava que, para isso, fosse preciso algo mais do que tempo. Quando ela e Max voltaram a St. Helier, ele continuou a ser amável e atencioso. A única decepção para Ruth foi o facto de ele parecer não estar a ter muito êxito a encontrar um local para a nova sucursal da sua empresa. Todas as manhãs, ele desaparecia por volta das dez horas, mas parecia passar mais tempo no clube de golfe do que na Baixa. A estabelecer ligações - explicava ele -, porque, quando a sucursal abrir, isso será o mais importante. Quando pensas que isso acontecerá? - perguntou Ruth. Já não falta muito - garantiu-lhe ele. - Tens de te lembrar que a coisa mais importante no meu ramo é abrir no local certo. É muito melhor esperar por um local óptimo do que aceitar um menos bom. Mas, à medida que as semanas passavam, Ruth começou a ficar ansiosa por Max não parecer estar mais próximo de encontrar esse local óptimo. Sempre que ela abordava o assunto, ele acusava-a de o aborrecer com censuras, o que significava que ela não se sentia capaz de falar sobre esse assunto durante pelo menos um mês. Quando estavam casados há seis meses, ela sugeriu que fossem passar um fim-de-semana a Londres. Dar-me-ia a oportunidade de conhecer alguns dos teus amigos, de ir ao teatro, e tu poderias ir à tua empresa. Max encontrava sempre uma desculpa para não concordar com os seus planos. Mas ele concordou que regressariam a Veneza para celebrar o seu primeiro aniversário de casamento. Ruth tinha esperança de que as férias de duas sema- reavivassem as recordações da sua visita anterior e que talvez até inspirassem Max, quando regressassem a Jersey, a tomar finalmente uma decisão sobre o local para a instalação da empresa. Afinal, o aniversário de casamento não poderia ter sido mais diferente da lua-de-mel que tinham partilhado um ano antes. Quando o avião aterrou no aeroporto de Veneza, estava a chover, e eles ficaram a tremer de frio numa longa fila, à espera de um táxi. Quando chegaram ao hotel, Ruth descobriu que Max pensava que ela fizera a reserva. Ele perdeu a paciência com o gerente inocente e saiu, desabrido, do hotel. Depois de andarem à chuva com a bagagem durante mais de uma hora, acabaram por encontrar um hotel onde só lhes conseguiram arranjar um quarto pequeno com duas camas, situado por cima do bar. Quando tomavam uma bebida nessa noite, Max confessou que deixara os seus cartões de crédito em Jersey, por isso ele esperava que Ruth não se importasse de pagar as contas até chegarem a casa. De qualquer forma, parecia que ultimamente era ela quem pagava a maior parte das contas, mas Ruth decidiu que aquela não era a altura de abordar o assunto. Em Florença, Ruth mencionou, hesitante, que esperava que, quando regressassem a Jersey, ele tivesse mais sorte em encontrar um local para a empresa e, com um ar inocente, perguntou se a sede não estava preocupada com a sua falta de progressos. Max teve imediatamente um ataque de fúria e saiu da sala do pequeno-almoço, dizendo-lhe que deixasse de o aborrecer constantemente. Ela não voltou a vê-lo durante todo o dia. Em Roma, continuou a chover, e Max não ajudou nada, desaparecendo sem avisar e voltando muitas vezes para o hotel quando ela já estava deitada. Ruth sentiu-se aliviada quando o avião descolou de regresso a Jersey. Uma vez de regresso a St. Helier, ela fez todos os esforços possíveis para não o aborrecer e tentou apoiar Max e compreender a sua falta de progressos. Mas, por mais que se esforçasse, ela deparava-se com longos silêncios de amuo ou ataques de mau génio. À medida que os meses passavam, eles pareciam ficar cada vez mais distantes, e Ruth já não se dava ao trabalho de perguntar como ia a busca do local para instalar a empresa. Há muito que ela achava que a ideia fora abandonada, e perguntava a si própria se alguma vez Max fora encarregado dessa tarefa. Um dia, ao pequeno-almoço, Max anunciou subitamente que a empresa decidira não abrir a sucursal em St. Helier e que lhe escrevera a dizer que, se ele quisesse continuar como sócio da empresa, teria de regressar a Londres para ocupar o seu antigo cargo. E se recusares? - perguntou Ruth. - Há alguma alternativa? Eles tornaram claro que nesse caso esperavam que eu apresentasse o meu pedido de demissão. Eu não me importaria de ir viver para Londres - sugeriu Ruth, na esperança de que isso resolvesse os problemas. Não, eu não acho que isso vá ajudar - disse Max, que já decidira obviamente qual seria a solução. - Acho que seria melhor eu passar a semana em Londres e vir passar o fim-de-semana contigo. Ruth não achou que fosse uma boa ideia, mas sabia que qualquer protesto seria inútil. Max partiu para Londres no dia seguinte. Ruth já não se lembrava da última vez que tinham feito amor e, quando Max não voltou a Jersey para o segundo aniversário de casamento, ela aceitou o convite de Gerald Prescott para jantar. O director da antiga escola dos rapazes foi, como sempre, amável e atencioso, e, quando se encontraram sozinhos, ele limitou-se a beijar Ruth no rosto. Ela decidiu falar-lhe sobre os problemas que estava a ter com Max, e ele escutou-a atentamente, acenando ocasionalmente a cabeça em sinal de assentimento. Foi ao olhar para o seu velho amigo sentado na mesa à sua frente que a ideia de divórcio lhe veio pela primeira vez, com tristeza, à mente. Afastou rapidamente esse pensamento. Quando Max veio a casa no fim-de-semana seguinte, Ruth decidiu fazer um esforço especial. Passou a manhã a fazer compras no mercado, seleccionando ingredientes frescos para o prato preferido dele, coq au vin, e escolhendo um clarete vintage para o acompanhar. Vestiu o vestido que ele escolhera para ela em Veneza e foi ao aeroporto esperá-lo. Ele não chegou no seu voo habitual e atravessou a barreira duas horas depois, explicando que ficara detido em Heathrow. Não pediu desculpas pelas horas que ela passara a andar de um lado para o outro na sala de espera do aeroporto e, quando finalmente chegaram a casa e se sentaram para jantar, ele não fez qualquer comentário sobre a refeição, o vinho ou o seu vestido. Quando acabou de arrumar a cozinha depois do jantar, Ruth apressou-se a ir para o quarto e viu que ele fingia estar a dormir profundamente. Max passou a maior parte do sábado no clube de golfe e, no domingo, apanhou o voo da tarde de regresso a Londres. As suas últimas palavras antes de partir para o aeroporto foram que não tinha a certeza de quando voltaria. Ruth pensou pela segunda vez em divórcio. À medida que as semanas passavam, com a ocasional chamada telefónica de Londres e um raro fim-de-semana juntos, Ruth começou a encontrar-se mais frequentemente com Gerald. Embora ele nunca tentasse fazer mais do que beijá-la no rosto no início e no fim dos seus encontros clandestinos, e certamente nunca lhe tenha colocado a mão na coxa, foi ela que decidiu finalmente que "era altura" de o seduzir. Queres casar comigo? - perguntou ela, enquanto o via vestir-se às seis horas da manhã seguinte. Mas tu já és casada - recordou-lhe Gerald, suavemente. Tu sabes muito bem que há meses que o meu casamento não passa de uma farsa. Fiquei deslumbrada com o encanto de Max e comportei-me como uma adolescente. Deus sabe que eu já lera suficientes romances sobre casamentos precipitados. Se pudesse, casar-me-ia contigo amanhã mesmo - disse Gerald, sorrindo. - Tu sabes que te adoro desde o primeiro momento em que te vi. Embora não te tivesses posto de joelhos, Gerald, eu considero essa resposta como um sim - disse Ruth, com uma gargalhada. Fez uma pausa e olhou para o amante, de pé, na penumbra. - Na próxima vez que vir o Max, peço o divórcio - acrescentou em voz baixa. Gerald despiu-se e voltou para a cama. Só daí a um mês é que Max voltou à ilha e, embora ele tivesse viajado no voo da noite, Ruth estava à sua espera quando ele saiu pela porta principal. Quando ele se inclinou para lhe beijar o rosto, ela virou-lhe a cara. Eu quero o divórcio - disse ela simplesmente. Max seguiu-a até à sala, sem dizer uma palavra. Afundou-se numa poltrona e ficou calado durante algum tempo. Ruth sentou-se pacientemente à espera da reacção dele. Há outro homem? - perguntou ele, finalmente. Há - respondeu ela. Conheço-o? Conheces. Gerald? - perguntou ele, olhando para ela. Sim. Max ficou outra vez calado. Eu terei todo o gosto em tornar as coisas mais fáceis para ti - disse Ruth. - Podes pedir o divórcio com base no meu adultério com Gerald, que eu não me oporei. Ela ficou surpreendida com a reacção de Max. Eu gostaria de ter algum tempo para pensar no assunto - disse ele. - Talvez fosse sensato não fazermos nada até os rapazes virem a casa passar o Natal. Ruth concordou, relutante, mas ficou intrigada, porque não se conseguia recordar da última vez que ele falara dos rapazes à sua frente. Max passou a noite no quarto de hóspedes e voltou para Londres na manhã seguinte, levando consigo duas malas cheias. Durante algumas semanas, ele não regressou a Jersey; entretanto, Ruth e Gerald começaram a planear o seu futuro juntos. Quando vieram da universidade passar as férias de Natal a casa, os gémeos não ficaram surpreendidos nem decepcionados com o facto de a mãe estar prestes a divorciar-se. Max não fez qualquer tentativa para passar a época festiva com a família e chegou a Jersey no dia seguinte ao regresso dos rapazes à universidade. Apanhou um táxi directamente para casa, mas só ficou uma hora. Estou disposto a concordar com o divórcio - disse ele a Ruth. - E tenciono iniciar o processo assim que regressar a Londres. Ruth acenou simplesmente a cabeça em sinal de assentimento. Se quiseres que as coisas andem depressa, sugiro que arranjes um advogado em Londres. Assim, não terás de andar de cá para lá, o que só irá atrasar as coisas. Ruth não levantou qualquer objecção à ideia, pois chegara à fase em que não queria colocar quaisquer obstáculos no caminho de Max. Alguns dias depois de Max ter regressado ao continente, Ruth recebeu a citação de divórcio de uma firma de advogados de Londres de que nunca ouvira falar. Ela deu instruções aos antigos advogados de Angus em Chancery Lane para que tratassem do assunto, explicando a um dos sócios que queria que a questão ficasse resolvida o mais depressa possível. Está a contar obter algum tipo de pensão? - perguntou o advogado. Não - disse Ruth com uma gargalhada. - Não estou à espera de nada dele. A única coisa que quero é que o processo avance rapidamente, baseado no meu adultério. Se essas são as suas instruções, minha senhora, eu vou preparar os documentos necessários, e estes estarão prontos para a senhora assinar dentro de alguns dias. Quando Ruth recebeu a comunicação de que, se não houvesse recurso, o divórcio seria decretado daí a um mês, Gerald sugeriu que fizessem uma viagem para celebrar. Ruth concordou com a ideia, desde que não fossem a Itália. Vamos às ilhas gregas - disse Gerald. - Assim, haverá menos probabilidades de encontrar algum dos meus alunos, já para não falar dos pais deles. - Apanharam o avião para Atenas no dia seguinte. Nunca imaginei que iria passar o terceiro aniversário de casamento com outro homem - disse Ruth, quando entraram no cais de Skyros. Gerald tomou-a nos braços. Tenta esquecer Max - disse ele. - Ele já passou à história. Bem, quase - disse Ruth. - Eu tinha alguma esperança de que o divórcio tivesse sido decretado antes de termos saído de Jersey. Fazes alguma ideia do que provocou a demora? - perguntou Gerald. Só Deus sabe - respondeu Ruth. - Mas, seja o que for, Max lá terá as suas razões - ela fez uma pausa. - Sabes uma coisa, eu nunca cheguei a ver o escritório dele em Mayfair, nem conheci os seus colegas ou amigos. E quase como se tudo isso não passasse de um produto da minha imaginação. Ou da dele - disse Gerald, colocando o braço à volta da cintura dela. - Mas não desperdicemos mais tempo a falar sobre Max. Vamos pensar nos gregos e em orgias bacanais. É isso o que ensinas às crianças inocentes dessa tua escola? Não, é o que elas me ensinam - respondeu Gerald. Durante as três semanas seguintes, eles navegaram pelas ilhas gregas, comendo demasiada moussaka, bebendo demasiado vinho e fazendo votos para que demasiado sexo não os deixasse engordar. No final das férias, Gerald estava um pouco vermelho de mais, e Ruth temia voltar a olhar Para a balança da casa de banho. As férias não podiam ter sido mais divertidas; não apenas porque Gerald era um excelente marinheiro, mas também porque, conforme Ruth veio a descobrir, ele conseguia fazê-la rir até mesmo durante uma tempestade. No regresso a Jersey, Gerald conduziu Ruth a casa. Quando abriu a porta, ela tinha à sua espera uma pilha de cartas. Sorriu. Elas podiam esperar até ao dia seguinte, decidiu. Ruth passou uma noite inquieta, dando voltas na cama. Depois de ter conseguido dormir algumas horas, decidiu que era melhor levantar-se e fazer um chá. Começou a dar uma vista de olhos pelo correio, só parando quando viu um envelope comprido assinalado "Urgente" e com um carimbo dos Correios de Londres. Abriu-o e tirou do seu interior um documento que a fez sorrir: "Foi decretado o divórcio entre as seguintes partes: Max Donald Bennett e Ruth Ethel Bennett." Isto resolve o assunto de uma vez por todas - disse ela em voz alta, e telefonou imediatamente a Gerald para lhe dar a boa-nova. É decepcionante - disse ele. Decepcionante? - perguntou ela. Sim, minha querida. Não imaginas como a minha popularidade subiu desde que os rapazes descobriram que estive de férias com uma mulher casada. Ruth riu-se. Porta-te bem, Gerald, e tenta habituar-te à ideia de seres um respeitável homem casado. Estou ansioso por que isso aconteça - disse ele. - Mas tenho de me despachar. Uma coisa é viver em pecado; outra é chegar atrasado às orações matinais. Ruth foi até à casa de banho e colocou-se agilmente em cima da balança. Gemeu quando viu o sítio em que o pequeno ponteiro, finalmente, parou. Decidiu que nessa manhã teria de passar pelo menos uma hora no ginásio. O telefone tocou no momento em que estava a entrar na banheira. Saiu outra vez e agarrou numa toalha, pensando que deveria ser Gerald de novo. Bom dia, Mrs. Bennett - disse uma voz um tanto formal. Como ela detestava ouvir aquele nome! Bom dia - respondeu ela. Daqui fala Craddock, minha senhora. Há três semanas que tenho estado a tentar entrar em contacto consigo. Oh, lamento imenso - disse Ruth -, mas só regressei ontem de umas férias na Grécia. Compreendo. Bem, eu gostaria de conversar consigo assim que lhe for conveniente - disse ele, não manifestando o mínimo interesse nas férias dela. Sim, com certeza, Dr. Craddock. Eu podia ir ao seu escritório por volta do meio-dia, se estiver disponível Estarei disponível a qualquer hora que decidir, Mrs. Bennett - disse a voz formal. Ruth exercitou-se arduamente no ginásio nessa manhã, decidida a perder os quilos extra que ganhara na Grécia, fosse ou não fosse uma respeitável mulher casada, ela queria ser magra. Quando saiu da máquina de corrida, o relógio do ginásio dava o meio-dia. Apesar de ter corrido para os balneários para tomar duche e mudar de roupa, chegou trinta e cinco minutos atrasada à sua reunião com o Dr. Craddock. A recepcionista conduziu-a mais uma vez ao gabinete do sócio sénior, sem que ela tivesse sequer visto o interior da sala de espera. Quando entrou, viu o Dr. Craddock a andar de um lado para o outro. Desculpem tê-los feito esperar - disse ela, sentindo-se um pouco culpada, ao mesmo tempo que dois dos sócios se levantavam dos seus lugares à mesa do Conselho de Administração. Desta vez, o Dr. Craddock não lhe perguntou se queria chá e conduziu-a simplesmente a uma cadeira, no outro extremo da mesa. Depois de ela se sentar, ele ocupou o seu lugar, olhou para uma pilha de documentos que tinha à sua frente e retirou de lá uma folha. Mrs. Bennett, nós recebemos uma citação dos advogados do seu marido exigindo um pagamento na sua totalidade, na sequência do seu divórcio. Mas nós nunca falámos em pagamentos - disse Ruth, num tom de incredulidade. - Isso nunca fez parte do acordo. Isso é bem provável - disse o advogado, olhando para os papéis. - Mas, infelizmente, a senhora concordou que o divórcio fosse concedido com base no seu adultério com um Sr. Gerald... - ele verificou o nome - ... Prescott, numa ocasião em que o seu marido se encontrava a trabalhar em Londres. É verdade, mas nós só concordámos com isso para apressar as coisas. Nós queríamos que o processo de divórcio fosse o mais rápido possível. Tenho a certeza de que foi isso que se passou, Mrs. Bennett... Ela sempre detestaria aquele nome.

.. no entanto, ao concordar com as condições de Mr. Bennett, ele tornou-se a parte inocente desta acção. Mas isso já não é relevante - disse Ruth -, porque esta manhã recebi a confirmação dos meus advogados de Londres que o divórcio tinha sido decretado. O sócio sentado à direita do Dr. Craddock virou-se e olhou directamente para ela. Posso perguntar-lhe se foi Mr. Bennett que sugeriu que desse instruções a um advogado do continente para que tratasse do divórcio? "Ah, é isso que está por detrás disto tudo. Estão aborrecidos por eu não os ter consultado." Sim - respondeu ela num tom firme. - Foi sim- plesmente uma questão de conveniência, uma vez que, nessa altura, Max estava a viver em Londres, e eu não queria andar de um lado para o outro. Certamente que acabou por ser extremamente conveniente para Mr. Bennett - disse o sócio sénior. - O seu marido alguma vez discutiu um acordo financeiro consigo? Nunca - disse Ruth com ainda maior firmeza. - Ele não fazia ideia do valor da minha fortuna. Eu tenho a impressão - prosseguiu o sócio sentado à esquerda do Dr. Craddock - que Mr. Bennett sabia muito bem o valor da sua fortuna. Mas isso não é possível - insistiu Ruth. - Eu nunca falei com ele sobre dinheiro. No entanto, ele está a exigir um pagamento e parece ter uma estimativa bastante exacta do valor dos bens do seu falecido marido. Então, os senhores têm de se recusar a pagar sequer um tostão, porque isso nunca fez parte do nosso acordo. Eu aceito que o que nos diz está correcto, Mrs. Bennett. Mas, infelizmente, uma vez que senhora foi a parte culpada, não temos qualquer defesa a apresentar. Como pode isso ser possível? - perguntou Ruth. A lei do divórcio em Jersey é inequívoca nesse aspecto - disse o Dr. Craddock. - Como nós lhe teríamos dito, se nos tivesse consultado. Que lei? - perguntou Ruth, ignorando o cáustico comentário. De acordo com a lei de Jersey, uma vez estabelecido que uma das partes do divórcio está inocente, essa pessoa, independentemente do sexo, tem automaticamente direito a um terço dos bens da outra. Ruth começou a tremer. Não há excepções? - perguntou em voz baixa. Há - respondeu o Dr. Craddock. Ruth ergueu o olhar, esperançosa. Se o casamento tiver durado menos de três anos, a lei não se aplica. A senhora, porém, esteve casada durante três anos e oito dias - fez uma pausa, ajustou os óculos e acrescentou - Tenho a impressão de que Mr. Bennett não só sabia exactamente o valor dos seus bens, como conhecia a lei do divórcio de Jersey. Três meses mais tarde, depois de os advogados de ambos os lados terem acordado no valor dos bens de Ruth Ethel Bennett, Max Dudley Bennett recebeu um cheque no valor de seis milhões, duzentas e setenta mil libras. Sempre que pensava nos últimos três anos, e fazia-o com frequência, Ruth chegava à conclusão de que Max devia ter planeado tudo até ao último pormenor. Sim, até mesmo antes de se terem conhecido. AMOR À PRIMEIRA VISTA Andrew estava atrasado e, se não fosse hora de ponta, teria apanhado um táxi. Entrou no metro apinhado e avançou apressadamente por entre a multidão que descia a escada rolante, a caminho de casa. Andrew não ia a caminho de casa. Após apenas quatro estações, ele voltaria a emergir das entranhas da terra para se ir encontrar com Ely Bloom, o director do Chase Manhattan em Paris. Embora Andrew, tal como todos os seus colegas no Banco, não conhecesse Bloom, conhecia bem a sua reputação. Não "tinha um encontro" com ninguém a não ser que houvesse um bom motivo. Desde que, quarenta e oito horas antes, a secretária de Bloom lhe telefonara a marcar a reunião, Andrew passara o tempo a tentar descobrir que motivo seria esse. Uma simples mudança do Crédit Suisse para o Chase parecia a resposta óbvia, mas, se Bloom estivesse envolvido, era pouco provável que fosse assim tão simples. Estaria ele prestes a fazer a Andrew uma oferta que este não pudesse recusar? Estaria à espera que ele regressasse a Nova Iorque depois de ter passado menos de dois anos em Paris? Havia tantas perguntas a flutuar na sua cabeça. Ele sabia que devia deixar de fazer especulações, pois teria as respostas todas às seis horas. Teve vontade de correr pelas escadas rolantes abaixo, mas estas estavam apinhadas de gente. Andrew sabia que possuía alguns pontos do seu lado, dirigira o balcão de câmbios do Crédit Suisse durante quase dois anos, e era do conhecimento geral que estava a superar todos os seus rivais. Quando falavam do êxito de Andrew, os banqueiros franceses encolhiam simplesmente os ombros, ao passo que os seus rivais americanos tentavam sim- plesmente convencê-lo a abandonar o seu cargo actual e a ir trabalhar para eles. Fosse o que fosse que Bloom lhe pudesse oferecer, Andrew estava confiante de que o Crédit Suisse lhe igualaria a oferta. Sempre que recebera outras ofertas durante os últimos doze meses, ele ignorara-as com o mesmo sorriso educado e juvenil, mas sabia que, desta vez, seria diferente. Bloom não era homem que pudesse ser despachado com um sorriso juvenil educado. Andrew não queria mudar de Banco; estava bastante satisfeito com as condições que o Crédit Suisse lhe dera e, na sua idade, que jovem não gostaria de trabalhar em Paris? No entanto, aquela era a altura do ano em que são considerados os bónus anuais, por isso, ele gostaria de ser visto a ter "um encontro" com Ely Bloom, no bar americano do George V. Seria apenas uma questão de horas até alguém falar nisso aos seus superiores. Quando Andrew entrou na plataforma do Metro, esta estava tão apinhada que ele perguntou a si próprio se conseguiria entrar no primeiro comboio que parasse na estação. Olhou para o relógio: 17:37. Ainda tinha bastante tempo para chegar a horas ao encontro mas, como não tinha qualquer intenção de fazer Mr. Bloom esperar, começou a esgueirar-se através de todas as pequenas aberturas que surgiram até se encontrar à frente da multidão, bem colocado para entrar no comboio seguinte. Mesmo que não fizesse um acordo com Mr. Bloom, este ia ser uma figura importante no mundo da Banca nos próximos anos, por isso não fazia sentido chegar atrasado e causar uma má impressão. Andrew esperou impacientemente que o comboio seguinte emergisse do túnel. Olhou para a plataforma oposta e tentou concentrar-se nas perguntas que Bloom poderia fazer. Qual é o seu salário actual? O seu contrato pode ser rescindido? Tem um sistema de bónus? Está disposto a regressar a Nova Iorque? A plataforma dos comboios em direcção a sul estava tão aPinhada como a dele, e a concentração de Andrew quebrou-se quando os seus olhos pousaram numa jovem, que estava a olhar para o relógio. É possível que ela também tivesse um encontro ao qual não pudesse chegar atrasada. Quando ela ergueu a cabeça, ele esqueceu-se imediatamente de Ely Bloom e ficou a olhar para os seus profundos olhos castanhos. Ela não reparou no seu admirador. Devia ter cerca de um metro e setenta e quatro de altura, possuía um rosto oval perfeito, uma pele morena que não precisava de maquilhagem e cabelo preto encaracolado, que não podia ter sido ondulado por nenhum cabeleireiro. "Estou na plataforma errada", pensou ele, "e é demasiado tarde para fazer alguma coisa." Ela vestia uma gabardina bege, cujo cinto apertado não deixava qualquer dúvida de como o seu corpo era elegante e gracioso e as suas pernas (ou o que ele conseguia ver destas) completavam um conjunto perfeito. Ela olhou novamente para o relógio e depois ergueu os olhos, tomando subitamente consciência de que ele estava a olhar para ela. Ele sorriu. Ela corou e baixou a cabeça, no preciso momento em que os dois comboios entraram na estação, vindos dos extremos opostos da plataforma. Todos os que estavam atrás de Andrew avançaram para tentar entrar no comboio. Quando este saiu da estação, Andrew era a única pessoa que ficara na plataforma. Olhou para o comboio do outro lado e viu-o começar a andar e sair lentamente da estação. Depois de ele ter desaparecido no túnel, Andrew sorriu novamente. Na plataforma oposta ficara só uma pessoa e, desta vez, ela retribuiu o sorriso. O leitor talvez queira perguntar como é que eu sei que esta história é verdadeira. A resposta é simples. Foi contada este ano na festa do décimo aniversário do casamento de Andrew e Claire. AMBOS OS LADOS CONTRA O MEIO Há um problema de que ainda não te falei - disse Billy Gibson. - Mas, primeiro, deixa-me encher-te outra vez o copo. Durante a última hora, os dois homens tinham estado tranquilamente sentados a um canto do King Williams Arms a discutir os problemas que tomar conta de uma esquadra de Polícia na fronteira entre a Irlanda do Norte e o Eire acarretam. Billy Gibson estava prestes a reformar-se, após trinta anos na Polícia, tendo os últimos seis sido chefe da Polícia. O seu sucessor, Jim Hogan, fora trazido de Belfast, e dizia-se que, se fizesse um bom trabalho, o seu cargo seguinte seria o de chefe da Polícia. Billy bebeu um longo golo e recostou-se na cadeira antes de começar a contar a sua história. Ninguém tem a certeza da verdade sobre a casa que fica na fronteira, mas, tal como sucede com todas as boas histórias irlandesas, existem sempre várias meias verdades a circular ao mesmo tempo. Antes de chegar ao problema que estou a ter com os seus actuais proprietários, tenho de te falar um pouco sobre a história da casa. Para fazer isso, tenho de referir, pelo menos de passagem, um tal Patrick O'Dowd, que trabalhou no Departamento de Urbanização da Câmara Municipal de Belfast. Um ninho de víboras, nas melhores ocasiões - interrompeu o novo chefe. E aquelas não foram as melhores ocasiões - disse o chefe cessante, antes de beber outro golo de Guinness. Aplacada a sede, ele continuou a contar a sua história. Em primeiro lugar, nunca ninguém compreendeu como é que O'Dowd conseguiu autorização para construir uma casa na fronteira. Só quando ela ficou terminada é que alguém do Departamento de Contribuições Autárquicas de Dublim viu um mapa detalhado da zona e fez notar às autoridades em Belfast que a fronteira passava mesmo pelo meio da sala de estar. Os velhos habitantes da aldeia dizem que o construtor local leu mal os planos, embora outros me garantam que ele sabia exactamente o que estava a fazer. "Na altura, ninguém se importou muito, porque o homem para quem a casa foi construída, Bertie O'Flynn, um viúvo, era um homem temente a Deus que ia à missa à igreja de St. Mary's no sul e bebia a sua Guinness no Volunteer, no norte. Também acho que vale a pena referir - disse o chefe - que Bertie não tinha quaisquer simpatias políticas. "Dublim e Belfast conseguiram chegar a um compromisso raro e concordaram que, uma vez que a porta da frente ficava no norte, Bertie pagaria os impostos à Coroa, mas, como a cozinha e o jardim ficavam no sul, a contribuição autárquic aseria paga à Câmara Municipal do outro lado da fronteira. Durante anos, este acordo não causou quaisquer dificuldades, até o velho Bertie morrer e deixar a casa ao filho, Eamonn. Resumindo, Eamonn era, é e sempre será um mau elemento. "O rapaz foi enviado para a escola no norte e ia à igreja no sul, embora manifestasse pouco interesse por qualquer das duas. De facto, aos onze anos, a única coisa que ele não sabia a respeito de contrabando era escrever correctamente a palavra. Aos treze anos, ele comprava pacotes de cigarros no norte e trocava-os por grades de Guinness no sul. Aos quinze, ganhava mais dinheiro do que o director da escola e, quando terminou o liceu, já tinha um negócio florescente, importando bebidas brancas e vinho do sul e exportando cannabis e preservativos do norte. "Sempre que o seu supervisor da liberdade condicional batia à porta da frente, situada no norte, ele ia para a cozinha, no sul. Quando a Guarda local entrava no quintal, Eamonn desaparecia na sala de jantar e ficava lá até eles se aborrecerem e se irem embora. Bertie, que acaba- va sempre por ir abrir a porta, ficou farto da situação, e desconfio que esse foi um dos motivos por que ele bateu a bota. "Quando, há seis anos, assumi o cargo de chefe da Polícia, decidi que o meu objectivo pessoal era colocar Eamonn O'Flynn atrás das grades. Mas com os problemas que tenho tido que resolver na fronteira e as tarefas policiais normais, a verdade é que nunca o fiz. Comecei a fazer vista grossa, até que o'Flynn conheceu Maggie Crann, uma conhecida prostituta do sul, que estava a tentar expandir o seu negócio para o norte. Uma casa com quatro quartos, dois de cada lado da fronteira, parecia ser exactamente o que ela precisava, mesmo se, de tempos a tempos, um dos seus clientes tivesse de ser deslocado rapidamente e semi-nu, de um lado da casa para o outro, para evitar ser preso. "Quando houve a escalada dos problemas da Irlanda do Norte, eu e o meu colega a sul da fronteira concordámos em considerar a casa uma zona de "não interferência", isto é, até Eamonn ter aberto um casino no sul, numa estufa que mandou construir e em que nunca haveria uma só flor. (a licença de construção foi concedida por Dublim) com o gabinete do caixa situado numa garagem construída recentemente, com espaço para uma frota de autocarros, mas que nunca albergou qualquer veículo (a licença de construção foi concedida por Belfast). Por que é que não se opuseram à licença de construção? - perguntou Hogan. Nós opusemo-nos, mas tornou-se rapidamente óbvio que Maggie tinha clientes em ambos os departamentos - Billy suspirou. - Mas o golpe final foi quando os terrenos em volta da casa foram postos à venda. Ninguém mais se mostrou interessado, e O'Flynn acabou com sessenta e cinco acres em que podia colocar vigias. Isso dá-lhe mais do que tempo suficiente para deslocar quaisquer provas incriminatórias de um lado da casa para o outro, muito antes de nós chegarmos à porta da frente. Os copos estavam vazios. É a minha vez - disse o homem mais novo, dirigindo-se ao bar e pedindo mais cervejas. Quando voltou, fez outra pergunta, antes mesmo de colocar os copos em cima da mesa. Por que é que não requereste um mandado de captura? Com a quantidade de leis que ele deve estar a violar, cer- tamente que há anos que podias ter fechado o local? É verdade - disse o chefe -, mas, sempre que requisito um mandado, ele é a primeira pessoa a saber. Quando lá chegamos, a única coisa que encontramos é um casal feliz a viver sozinho na sua quinta. E o teu colega do sul? Certamente que ele tem todo o interesse em trabalhar contigo e... Julgar-se-ia que sim, não é verdade? Mas, nos últi- mos sete anos, houve cinco chefes da Guarda e, ou por não quererem prejudicar as suas perspectivas de promoção, por não querem complicações ou por se deixarem simples- mente subornar, nenhum deles se mostrou disposto a colaborar. O actual chefe da Guarda reforma-se daqui a poucos meses e não quer fazer nada que possa prejudicar a sua reforma. Não - prosseguiu Billy -, o certo é que falhei. E digo-te uma coisa, ao contrário dos meus colegas, se eu conseguisse resolver o problema do Eamonn O'Flynn de uma vez por todas, estaria até disposto a abdicar da minha reforma. Bem, ainda tens seis semanas, e eu sentir-me-ia ali- viado se O'Flynn estivesse fora de circulação antes de eu assumir o cargo. Por isso, vamos ver se consigo encontrar uma solução que resolva o nosso problema. Concordo com qualquer coisa, excepto matar o homem, e não penses que isso não me veio já à ideia. Tenho de voltar para Belfast - disse Jim Hogan, rindo-se e olhando para o relógio. O velho chefe acenou a cabeça em sinal de assentimento, bebeu a última gota de Guinness e acompanhou o colega até ao parque de estacionamento situado nas traseiras do pub. Hogan só voltou a falar depois de estar sentado ao volante. Ligou o motor e abriu a janela. Vais ter uma festa de despedida? Vou - disse o chefe. - No sábado, antes de me reformar. Por que é que perguntas? Porque eu sempre achei que uma festa de despedida é uma ocasião para esquecer o passado - disse Jim, sem qualquer explicação. O chefe pareceu intrigado. Jim saiu do parque de estacionamento, virou à direita e seguiu para norte, em direcção a Belfast. Quando recebeu o convite, Eamonn O'Flynn ficou um tanto surpreendido, pois não contara fazer parte da lista de convidados do chefe da Polícia. Maggie examinou o cartão impresso que os convidava para a festa de despedida do chefe Gibson que teria lugar no Queen's Arms, em Ballyroney. Vamos aceitar? - perguntou ela. Por que é que eu havia de aceitar - respondeu Eamonn -, quando o filho da mãe passou os últimos seis anos a tentar pôr-me atrás das grades? Talvez seja a sua forma de fazer as pazes - sugeriu Maggie. Sim, e de me apunhalar pelas costas, aposto. Em todo o caso, certamente que não gostarias de ser vista no meio daquela gente. Nisso é que te enganas - disse Maggie. Como assim? Porque seria divertido ver os rostos das mulheres dos vereadores, para já não falar dos polícias, com quem já fui para cama. Mas pode ser uma armadilha. Não sei bem como - disse Maggie -, quando temos a certeza de que os do sul não nos vão causar problemas, e os do norte, que o poderiam fazer, certamente estarão na festa. Isso não os impediria de revistar a nossa casa enquanto estivéssemos fora. Que grande desilusão eles irão ter - disse Maggie - quando descobrirem que foi dada folga ao pessoal e que a casa não passa do lar de dois cidadãos decentes, cumpri- dores da lei. Eamonn permaneceu céptico, e só quando Maggie regressou de Dublim com um vestido novo, que queria que toda a gente visse, é que ele finalmente cedeu e concordou em acompanhá-la à festa. Mas não fico mais de uma hora, e essa é a minha última palavra sobre o assunto - avisou-a ele. Quando saíram de casa na noite da festa, Eamonn verifi-cou se todas as janelas estavam fechadas e todas as portas trancadas, antes de ligar o alarme. De seguida, percorreu lentamente o perímetro das suas terras, avisando todos os guardas para que estivessem particularmente vigilantes e para que o chamassem pelo telemóvel se vissem alguma coisa suspeita, e isso queria dizer tudo. Maggie, que estava a verificar o penteado ao espelho do automóvel, disse-lhe que, se ele demorasse muito mais tempo, não haveria qualquer festa para irem. Quando, meia hora depois, entraram, com um ar des-confiado, no salão de baile do Queen's Arms, Billy Gibson pareceu genuinamente satisfeito por os ver, o que fez com que Eamonn se sentisse ainda mais desconfiado. Penso que ainda não conhecem o meu sucessor - disse o chefe antes de apresentar Eamonn e Maggie a Jim Hogan. - Mas tenho a certeza de que conhecem a sua reputação. Eamonn conhecia bastante bem a sua reputação e teve vontade de voltar imediatamente para casa, mas alguém lhe meteu na mão um copo de Guinness, e um jovem agente da Polícia convidou Maggie para dançar. Enquanto ela dançava, Eamonn olhou em volta da sala para ver se lá estava alguém conhecido. Demasiadas pessoas, concluiu ele, ansioso por se ir embora. Mas depois os seus olhos pousaram em Mick Burke, um carteirista local que estava a servir ao bar. Eamonn ficou surpreendido com o facto de Mick, com o cadastro que tinha, ter sido autori-zado a entrar no salão. Mas, pelo menos, encontrara al-guém com quem poderia conversar. Quando a banda parou de tocar, Maggie foi para a fila da comida e encheu um prato de salmão com batatas novas. Levou-o a Eamonn que, durante alguns minutos, quase pareceu que se estava a divertir. Depois de ter repetido o prato, ele começou a contar histórias aos membros da Guarda, que pareciam estar suspensos de todas as suas palavras. Mas assim que o relógio do salão de baile deu as onze horas, Eamonn teve subitamente vontade de fugir. Nem mesmo a Cinderela saiu do baile antes da meia- -noite - disse-lhe Maggie. - E, em todo o caso, seria falta de educação irmo-nos embora no momento em que o chefe está prestes a fazer o seu discurso de despedida. O homem que propunha os brindes bateu com o seu martelo e pediu silêncio. Uma calorosa salva de palmas saudou Billy Gibson quando este deu alguns passos em frente e tomou o seu lugar em frente do microfone. Colocou o seu discurso em cima do palanque e sorriu para os presentes. Meus amigos - começou ele -, para não falar de um ou dois adversários - ergueu o seu copo na direcção de Eamonn, satisfeito por ver que este ainda se encontrava entre eles. - É com muita tristeza que estou hoje à vossa frente, ciente do muito que vos devo - fez uma pausa. - E refiro-me a todos vós. Aplausos e assobios seguiram estes comentários, e Maggie ficou radiante ao ver que Eamonn também se es-tava a rir. Eu recordo-me perfeitamente de quando entrei para a Polícia. Essa foi uma época verdadeiramente difícil - seguiram-se mais aplausos e alguns assobios mais ruidosos, oriundos dos jovens. O barulho acabou por diminuir quando o chefe retomou o seu discurso, uma vez que ninguém queria negar-lhe a oportunidade de recordar o passado na sua festa de despedida. Eamonn estava ainda suficientemente sóbrio para reparar no jovem agente da Polícia, que entrou na sala com uma expressão ansiosa no rosto. Dirigiu-se rapidamente ao estrado e, embora fosse evidente que não queria interromper o discurso de Billy, cumpriu as instruções de Mr. Ho-gan e colocou um bilhete no meio do palanque.

Eamonn começou a procurar o telemóvel, mas não o conseguiu encontrar em nenhum dos bolsos. Podia jurar que o tinha consigo quando chegara. Quando entregar o meu distintivo à meia-noite... - disse Billy, baixando os olhos para o seu discurso e vendo o bilhete à sua frente. Fez uma pausa e endireitou os óculos, como se estivesse a tentar compenetrar-se do significado da mensagem, depois franziu a testa e voltou a olhar para os seus convidados. - Tenho de vos pedir desculpa, meus amigos, mas parece que houve um incidente na fronteira que exige a minha atenção pessoal. Não tenho outra opção a não ser sair imediatamente e pedir a todos os polícias graduados que se encontrem comigo lá fora imediatamente. Espero que os nossos convidados continuem a divertir-se na festa; podem ter a certeza de que nós voltaremos assim que tivermos resolvido o problema. Só uma pessoa chegou à porta da frente antes do chefe, a qual saiu do parque de estacionamento antes de Maggie se ter apercebido de que ele saíra do salão. No entanto, o chefe com a sirene a apitar, conseguiu ultrapassar Eamonn a cerca de três quilómetros da fronteira. Devo mandá-lo parar por excesso de velocidade? - perguntou o motorista do chefe. Não, acho que não - disse Billy Gibson. - De que é que serve um espectáculo se o actor principal não puder entrar em cena? Quando, alguns minutos depois, parou na orla da sua propriedade, Eamonn viu que a mesma estava cercada por uma fita larga, branca e azul, que dizia: PERIGO. NÃO EN-TRAR. Ele saltou do carro e correu para o chefe, que estava a receber informações de um grupo de agentes policiais. Que diabo se passa? - perguntou Eamonn. Ah, Eamonn, ainda bem que vieste. Ia telefonar-te agora mesmo, para o caso de não teres saído da festa. Pa- rece que, há cerca de uma hora, foi vista uma patrulha do IRA nas tuas terras. Na realidade, isso ainda não foi confirmado - disse um dos agentes que escutava atentamente alguém ao te- lefone. - Existem informações contraditórias oriundas de Ballyroney, que sugerem que possam ter sido paramilita-res unionistas. Bem, sejam eles quem forem, a minha principal preo- cupação é a protecção de vidas e bens e, com esse objectivo, mandei chamar o grupo de sapadores para termos a certeza de que tu e Maggie podem regressar a casa em segurança. Isso é mentira, e o senhor sabe-o - disse Eamonn. Desapareça da minha propriedade antes que eu dê ordens aos meus homens para que o tirem daqui à força. Bem, isso não vai ser assim tão fácil - disse o chefe. Acabei de receber uma mensagem que diz que o chefe dos sapadores já entrou em tua casa. Certamente que fi- carás aliviado ao saber que ele não encontrou ninguém dentro da casa, mas ficou bastante preocupado ao encontrar um embrulho não identificado na estufa e outro semelhante na garagem. Mas esses são apenas... São apenas o quê? - perguntou o chefe com um ar inocente. Como é que a sua gente conseguiu passar pelos meus guardas? - perguntou Eamonn. - Eles tinham ordens para correr convosco assim que pusessem os pés nas minhas terras. Aí está, Eamonn. Eles devem ter saído da propriedade por um momento sem se darem conta e, devido ao perigo iminente em que as suas vidas se encontravam, considerei necessário levá-los a todos para esquadra. Para sua própria protecção, compreendes. Aposto que não tem um mandado de busca para entrar na minha propriedade. Não preciso de mandado - disse o chefe -, se eu achar que alguém corre perigo de vida. Bem, agora que sabe que ninguém corre perigo, nem nunca correu, pode sair da minha propriedade e voltar para a sua festa. Há mais um problema, Eamonn. Acabámos de receber uma chamada, desta vez de um informador anónimo, a avisar-nos de que ele colocou uma bomba na garagem e outra na estufa e que elas vão explodir pouco antes da meia-noite. Assim que fui informado desta ameaça, compreendi que tinha o dever de verificar o manual de segurança para ver qual é o procedimento correcto neste tipo de circunstâncias. - O chefe tirou uma brochura verde e grossa do bolso interior, como se esta andasse sempre com ele. Está a fazer bluff - disse O'Flynn. - O senhor não tem autoridade para... Ah, aqui está o que eu procurava - disse o chefe depois de ter folheado algumas páginas. Eamonn olhou para o livro e viu um parágrafo sublinhado a vermelho. Deixa-me ler-te as palavras exactas, Eamonn, para poderes compreender bem o meu dilema. "Se um oficial acima do posto de major ou inspector for da opinião que as vidas de civis correm perigo no local de um possível ataque terrorista, e se estiver presente um elemento qualificado dos sapadores, ele deverá primeiro retirar da zona todos os civis e, uma vez feito isto, se considerar apropriado, levar a cabo uma explosão isolada." Não pode ser mais claro - disse o chefe. - Agora, podes dizer-me o que está nessas caixas, Eamonn? Se não puderes, tenho de pressupor o pior e proceder de acordo com o manual. Não se atreva, Gibson. Porque eu aviso-o desde já que, se danificar a minha propriedade, processo-o e deixo-o sem um tostão. Estás a preocupar-te desnecessariamente, Eamonn. Posso garantir-te de que existem muitas páginas no manual sobre compensações a vítimas inocentes. Naturalmente que nos sentiríamos na obrigação de reconstruir a tua bela casa, tijolo a tijolo, recriando uma estufa de que Maggie se orgulharia e uma garagem suficientemente grande para estacionares todos os teus automóveis. No entanto, para podermos gastar essa quantidade de dinheiro dos contri- buintes, teríamos de garantir que a casa fosse construída num lado da fronteira, para que um infeliz incidente como este nunca pudesse voltar a acontecer. O senhor não vai ficar impune - disse Eamonn no momento em que um homem entroncado surgiu ao lado do chefe com um êmbolo de bomba na mão. Certamente que te lembras de Mr. Hogan. Eu apresentei-to na minha festa de despedida. Se puser um dedo nesse êmbolo, Hogan, vai ser sub- metido a inquéritos o resto da sua vida. E poderá tirar da cabeça quaisquer ideias de vir a ser chefe da Polícia. Mr. O'Flynn tem uma certa razão, Jim - disse o chefe, olhando para o relógio. - E eu não quero prejudicar a tua carreira. Mas vejo que só assumes o comando daqui a sete minutos, por isso, caber-me-á a triste respon- sabilidade de levar a cabo esta desagradável tarefa. Quando o chefe se inclinou para colocar a mão no êmbolo, Eamonn saltou-lhe em cima. Foram necessários três polícias para o segurar e ele continuou a gritar obscenidades. O chefe suspirou, olhou para o relógio, agarrou no cabo do êmbolo e carregou lentamente. A explosão foi ouvida à distância de vários quilómetros, e o telhado da garagem, ou teria sido da estufa?, foi pelos ares. Em poucos momentos, os edifícios foram arrasados, não deixando nada no seu lugar a não ser fumo, poeira e um monte de entulho. Quando o barulho finalmente cessou, ouviram-se ao longe as doze badaladas dos sinos de St. Mary's. O antigo chefe da Polícia considerou que este era o fim de um dia perfeito. Sabes, Eamonn - disse ele. - Acho que valeu real- mente a pena sacrificar a minha pensão de reforma. UM FIM-DE-SEMANA MEMORÁVEL Conheci Susie há seis anos e, quando ela me telefonou a perguntar se eu gostaria de ir tomar uma bebida com ela, o facto de a minha primeira reacção ter sido um pouco fria não lhe pode ter causado grande surpresa. Afinal de contas, as minhas recordações do nosso último encontro não eram muito felizes. Eu fora convidado para jantar em casa dos Keswicks e, como todas as boas anfitriãs, Sylvia Keswick achava que tinha o dever de emparceirar qualquer homem solteiro com mais de trinta anos, com uma ou mais amigas suas. Com isto em mente, fiquei decepcionado ao ver que ela me colocara ao lado de Mrs. Ruby Collier, a mulher de um deputado conservador que estava sentado à esquerda da anfitriã, no outro extremo da mesa. Poucos instantes depois de eu me ter apresentado, ela disse: Provavelmente, já leu algo sobre o meu marido na imprensa - seguidamente, contou-me como nenhum dos seus amigos conseguia compreender o motivo por que o seu marido não tinha assento no Conselho de Ministros. Não pude dar-lhe a minha opinião sobre o assunto, porque até àquele momento nunca ouvira falar nele. O cartão do outro lado dizia "Susie", e a senhora em causa era o tipo de pessoa que nos faz desejar estarmos sentados à sua frente, numa mesa para dois. Mesmo depois de apenas um olhar furtivo ao seu longo cabelo louro, olhos azuis, sorriso cativante e corpo magro, eu não teria ficado surpreendido ao saber que ela era modelo. Uma ilusão que ela teve todo o gosto em desfazer ao fim de poucos minutos. Apresentei-me, explicando que andara com o nosso anfitrião em Cambridge. E como é que conhece os Kenwicks? - perguntei. Eu estava no mesmo escritório que Sylvia quando trabalhávamos as duas na Vogue, em Nova Iorque. Recordo-me de me ter sentido decepcionado por ela viver no estrangeiro. Durante quanto tempo mais, pergun-tei a mim próprio. Onde trabalha agora? Ainda estou em Nova Iorque - respondeu. - Acabei de ser nomeada subeditora da Art Quarterly. Ainda a semana passada renovei a minha assinatura disse-lhe eu, bastante satisfeito comigo próprio. Ela sor- riu, claramente surpreendida, por eu ter ouvido sequer falar na revista. Quanto tempo vai estar em Londres? - perguntei, olhando para a sua mão esquerda e verificando que ela não usava anel de noivado nem aliança de casamento. Apenas há alguns dias. Cheguei a semana passada, para o aniversário de casamento dos meus pais, e estava com esperança de ver a exposição de Lucian Freud na Tate antes de regressar a Nova Iorque. E você o que é que faz? perguntou. Eu tenho um pequeno hotel na Jermyn Street - respondi. Eu teria, de bom grado, passado o resto da noite a conversar com Susie, e não apenas por causa da minha pai-xão pela arte, mas a minha mãe ensinou-me de pequenino que, por muito que se goste da pessoa que está sentada ao nosso lado esquerdo, devemos ser igualmente atenciosos para a que estiver à nossa direita. Voltei-me para Mrs. Collier, que me atacou com as palavras: Leu o discurso que o meu marido fez ontem na Câmara dos Comuns? Confessei que não o lera, o que foi um erro, porque ela repetiu o discurso inteiro, tintim por tintim. Depois de ela ter terminado o seu monólogo sobre a Proposta de Lei dos Espaços Públicos, compreendi por que é que o seu marido não tinha assento no Conselho de Ministros. De facto, disse a mim próprio que deveria evitá-lo quando fôssemos para a sala tomar café. Gostaria muito de conhecer o seu marido mais tarde - disse-lhe eu, antes de me voltar de novo para Susie. Reparei, porém, que ela estava a olhar insistentemente para alguém sentado no outro lado da mesa. Olhei também e vi que o homem em causa estava embrenhado numa conversa com Mary Ellen Yarc, que estava sentada a seu lado, e não tinha consciência da atenção de que era alvo. Lembrei-me de que ele se chamava Richard qualquer coisa e que viera com a rapariga que estava sentada no outro extremo da mesa. Reparei que esta também estava a olhar directamente para Richard. Tive de confessar que ele tinha o tipo de feições esculpidas e cabelo espesso e ondulado que tornava desnecessário ter um curso de física quântica. E o que se passa actualmente em Nova Iorque? - perguntei, tentando captar de novo a atenção de Susie. Ela voltou-se para mim e sorriu. Vamos ter um presidente da Câmara novo, a qualquer momento - informou-me ela -, e, para variar, até poderá ser republicano. Com toda a franqueza, voto em quem fizer alguma coisa a respeito da taxa de criminalidade. Um deles, não me consigo lembrar do seu nome, passa a vida a falar de tolerância zero. Ele tem o meu voto, seja ele quem for. Embora a conversa de Susie se mantivesse animada e cheia de informações, a sua atenção fugia muitas vezes para o outro lado da mesa. Se Richard olhasse ao menos uma vez para ela, eu teria partido do princípio de que eles eram amantes. Enquanto comíamos a sobremesa, Mrs. Colher atirou-se ao Conselho de Ministros, explanando as razões por que todos os seus membros deveriam ser substituídos e não precisei de perguntar por quem. Quando ela chegou ao ministro da Agricultura, achei que cumprira o meu dever, olhei para trás e vi que Susie fingia estar concentrada no seu pudim, enquanto, de facto, estava muito mais interessada em Richard. Subitamente, ele olhou na direcção dela. Sem qualquer aviso, Susie pegou-me na mão e começou a falar entusiasticamente sobre um filme de Eric Rohmer que vira há pouco tempo em Nice. Poucos homens levantam objecções a que uma mulher lhes agarre na mão, sobretudo quando essa mulher tem a beleza de Susie, mas, de preferência, isso não deve acontecer quando ela está a olhar para outro homem. Quando Richard retomou a sua conversa com a nossa anfitriã, Susie largou-me imediatamente a mão e enfiou o garfo no pudim. Quando Sylvia se levantou da cadeira e sugeriu que passássemos todos à sala, senti-me grato por ter sido poupado a um terceiro round com Mrs. Collier. Infelizmente, isto significou perder os pormenores da proposta de lei que o marido de Mrs. Collier estava a preparar para apresen-tar à Câmara na semana seguinte. Durante o café fui apresentado a Richard, que era afinal um banqueiro de Nova Iorque. Ele continuou a ignorar Susie, ou talvez e inexplicavelmente, ele simplesmente não tivesse dado pela sua presença. A rapariga cujo nome eu não sabia veio ter connosco e murmurou-lhe ao ouvido: Não nos podemos atrasar muito, querido. Não te es- queças de que temos um voo marcado para Paris. Eu não me tinha esquecido, Rachel - respondeu ele -, mas preferia não ser o primeiro a ir-me embora. - Mais alguém que fora criado por uma mãe educada. Senti alguém tocar-me no braço, dei meia volta e vi Mrs. Collier a olhar-me, sorridente. Este é o meu marido Reginald. Eu disse-lhe que queria saber mais pormenores sobre a Proposta de Lei que ele está a preparar. Deviam ter decorrido cerca de dez minutos, embora parecesse mais um mês, até Sylvia vir em minha salvação. Tony, será que te importas de levar Susie a casa?

Está a chover a cântaros, e a esta hora não será fácil encontrar um táxi. Terei todo o gosto - respondi. - Tenho de te agradecer por me teres incluído entre gente tão encantadora. Foi uma noite fascinante - disse eu, sorrindo a Mrs. Colher. A mulher do deputado retribuiu o sorriso. A minha mãe sentir-se-ia orgulhosa de mim. No caminho para o apartamento dela, Susie pergun-tou-me se eu vira a exposição de Freud. Vi - disse eu. - Acho que é espectacular, estou a planear ir vê-la outra vez antes de acabar. Eu estava a pensar em ir vê-la amanhã - disse ela, tocando na minha mão. - Por que é que não vens comigo? - Eu concordei, satisfeito, e, quando a deixei em Pimlico, ela deu-me o tipo de abraço que sugere "Gostaria de te conhecer melhor". Eu não sou perito em muitas coisas mas, quando se trata de abraços, considero-me uma autoridade, porque já tive abraços de todos os tipos, de abraços leves a abraços bem apertados. Consigo interpretar qual- quer mensagem desde "Estou ansiosa por te despir" a "De- saparece!". Na manhã seguinte, cheguei cedo à Tate, calculando que houvesse uma longa fila para a exposição e conceden-do-me tempo para comprar os bilhetes antes de Susie chegar. Eu estava há alguns minutos à sua espera nas escadas quando ela apareceu. Vestia um vestido amarelo curto que acentuava o seu corpo magro e, enquanto ela subia as escadas, reparei que os olhos dos homens a seguiam. Assim que ela me viu, começou a correr pelas escadas acima e cumprimentou-me com um longo abraço. Um abraço do tipo "Acho que já te conheço melhor". Gostei ainda mais da exposição na segunda vez que a vi, em parte devido ao facto de Susie conhecer bem o trabalho de Lucien Freud e de me ter dado uma panorâmica das diferentes fases da sua carreira. Quando chegámos ao último quadro, Mulheres Gordas a Olhar pela Janela, comen-tei um tanto debilmente, Bem, uma coisa é certa, tu nunca hás-de ser assim. Oh, eu não teria tanta certeza - disse ela. - Mas, se fosse, nunca permitiria que descobrisses - pegou-me na mão. - Tens tempo para almoçar? Com certeza que sim, mas não reservei mesa em lado nenhum. Eu reservei - disse Susie com um sorriso. - A Tate tem um restaurante óptimo, e eu reservei uma mesa para duas pessoas, à cautela... - sorriu de novo. Não me recordo muito do almoço, excepto que quando a conta chegou, já não havia mais ninguém no restaurante. Se, neste momento, te fosse possível fazer qualquer coisa - perguntei eu, recorrendo a um tópico de conversa que utilizara muitas vezes no passado -, que farias? Susie ficou calada durante algum tempo antes de responder. Apanhava o vaivém para Paris, passava o fim-de- -semana contigo e via a exposição de Picasso "Os Primeiros Tempos", que está agora no Musée d'Orsay. E tu? Apanhava o vaivém para Paris, passava o fim-de- -semana contigo e via a exposição de Picasso "Os Primeiros Tempos" que... Então, vamos! - disse ela, pegando-me na mão e desatando a rir. Cheguei a Waterloo cerca de vinte minutos antes da hora da partida do comboio. Já reservara uma suite no meu hotel preferido e uma mesa num restaurante, que se orgulha de não ter o seu nome nos guias turísticos. Comprei dois bilhetes de primeira classe e fiquei à espera de-baixo do relógio, tal como tínhamos combinado. Susie só se atrasou alguns minutos. Deu-me um abraço que era definitivamente um passo na direcção de "Estou ansiosa por te despir". Ela deu-me a mão enquanto percorríamos os campos ingleses. Uma vez em França, fico sempre zangado por os comboios andarem a uma velocidade maior no lado francês, inclinei-me para ela e beijei-a pela primeira vez. Ela falou sobre o seu trabalho em Nova Iorque, sobre as exposições "obrigatórias" e deu-me uma antevisão do que eu deveria esperar quando fôssemos ver a exposição de Picasso. O retrato a lápis do pai, sentado numa cadeira, que ele desenhou quando tinha apenas dezasseis anos, foi o arauto de tudo o que estava para vir. - Continuou a falar- -me sobre Picasso e a sua obra com uma paixão que nunca poderia provir de uma mera leitura de um livro sobre o assunto. Quando o comboio parou na Gare du Nord, agarrei nas duas malas e saltei para a plataforma, para ter a certeza de que seríamos dos primeiros na fila dos táxis. Susie passou a maior parte da viagem para o hotel a olhar pela janela do táxi, como uma adolescente na sua primeira viagem ao estrangeiro. Lembro-me de ter pensado que, para uma pessoa tão viajada, aquele era um compor-tamento estranho. Quando o táxi chegou à entrada do Hotel du Coeur, eu disse-lhe que este era o tipo de hotel que eu gostaria de ter, confortável mas despretencioso, oferecendo um serviço cujo nível os anglo-saxónicos raramente conseguiam igua-lar. E o dono, o Albert, é uma jóia. Estou ansiosa por conhecê-lo - disse ela, no momento em que o táxi parou junto da porta principal. Albert estava à nossa espera ao cimo das escadas. Eu sabia que ele estaria lá, tal como eu faria se ele tivesse ido a Londres acompanhado por uma bela mulher. Reservámos o seu quarto habitual, Mr. Romanelli - disse ele, com ar de quem me queria piscar o olho. Susie deu passo em frente e, olhando directamente para Albert, perguntou: E onde fica o meu quarto? Sem pestanejar, ele sorriu e disse: Há um quarto contíguo que tenho a certeza que cosiderará conveniente, minha senhora. É muito amável da sua parte, Albert - disse ela -, mas eu preferia ter um quarto noutro andar. Desta vez, Albert foi apanhado de surpresa, mas recuperou rapidamente a compostura, pediu o livro das reservas e estudou-o durante alguns momentos antes de dizer: Parece que temos um quarto disponível que dá para o parque, no andar inferior ao de Mr. Romanelli - estalou os dedos e entregou as duas chaves a um empregado que ali estava. Quarto 574 para a senhora e a suite Napoléon para o cavalheiro. O empregado segurou a porta do elevador para nós entrarmos e, seguidamente, carregou nos botões 5 e 6. Quando as portas se abriram no quinto andar, Susie disse com um sorriso: Encontramo-nos no átrio um pouco antes das oito, está bem? Acenei a cabeça em sinal de assentimento, pois a minha mãe nunca me ensinara o que fazer numa situação destas. Depois de ter desfeito a mala, tomei um duche e deitei-me na redundante cama de casal. Liguei a televisão e fi-quei a ver um filme francês a preto e branco. Fiquei tão absorvido pelo enredo que, às dez para as oito, quando estava prestes a descobrir quem afogara a mulher na banheira, ainda não estava vestido. Praguejei, vesti-me rapidamente, sem sequer verificar o meu aspecto ao espelho, e corri para a porta ainda a tentar imaginar quem poderia ser o assassino. Saltei para o elevador e praguejei de novo quando as portas se abriram no rés-do-chão, porque Susie estava à minha espera no átrio. Tenho de admitir que, com aquele vestido preto comprido com uma elegante racha lateral que permitia ver de relance a coxa a cada passo que ela dava, eu estava quase disposto a perdoar-lhe. No táxi, a caminho do restaurante, ela fez questão de me dizer que o seu quarto era muito agradável e que o pessoal fora muito atencioso. Durante o jantar (devo confessar que a refeição foi sen-sacional), ela conversou sobre o seu trabalho em Nova Iorque e reflectiu sobre se alguma vez voltaria para Londres. Tentei parecer interessado. Depois de ter pago a conta, ela pegou-me no braço e sugeriu que, uma vez que estava uma noite tão agradável e ela comera demasiado, talvez pudéssemos voltar para o hotel a pé. Apertou-me a mão e eu comecei a pensar que talvez... Ela não largou a minha mão durante todo o caminho de regresso ao hotel. Quando entrámos no átrio, o porteiro correu para o elevador para nos abrir a porta. Que andar? - perguntou ele. Quinto - disse Susie com firmeza. Sexto - disse eu com relutância. No momento em que as portas do elevador se abriram, Susie virou-se e deu-me um beijo no rosto. Foi um dia memorável - disse ela, afastando-se. "Para mim também", tive vontade de dizer, mas mantive-me calado. No meu quarto, fiquei acordado, tentando compreender a situação. Conclui que eu devia ser um peão num jogo muito maior; mas seria um bispo ou um cavalo que finalmente me atiraria para fora do tabuleiro? Não me recordo de quanto tempo demorei a adormecer mas, quando acordei alguns minutos antes das seis, saltei da cama e vi, com satisfação, que o Le Figaro já fora enfiado debaixo da porta. Devorei-o da primeira à última página, ficando a saber tudo sobre os últimos escândalos de França, nenhum deles sexual, devo acrescentar, e depois pu-lo de parte e fui tomar um duche. Desci por volta das oito e encontrei Susie sentada a um canto da sala do pequeno-almoço a beber sumo de laranja. Estava vestida para matar e, uma vez que era óbvio que a vítima não era eu, eu estava mais decidido do que nunca a descobrir quem era. Sentei-me na cadeira em frente dela e, como nenhum de nós falou, os outros hóspedes devem ter partido do princípio de que estávamos casados há muitos anos. Espero que tenhas dormido bem - disse eu finalmente. Dormi, sim, obrigada, Tony - respondeu ela. - E tu? - perguntou num tom inocente. Eu consegui pensar em cem respostas que gostaria de lhe ter dado, mas sabia que, se o fizesse, nunca descobri-ria a verdade. A que horas queres ir ver a exposição? - perguntei. 10:00 - disse ela com firmeza, e depois acrescentou: - Se achares bem. Por mim, está bem - respondi, olhando para o relógio. - Vou reservar um táxi para as 9:30. Encontro-me contigo no átrio - disse ela, fazendo com que parecêssemos cada vez mais marido e mulher. Depois do pequeno-almoço, voltei para o meu quarto, comecei a fazer a mala e telefonei a Albert para lhe dizer que achava que não íamos ficar mais uma noite. Lamento muito, monsieur - respondeu ele. - Só espero que não tenha sido... Não, Albert, a culpa não foi tua, isso posso garantir- -te. Se alguma vez descobrir o culpado, eu digo-te. A propósito, vou precisar de um táxi por volta das 9:30 para nos levar ao Musée d'Orsay. Com certeza, Tony. Não vos vou entediar com a conversa mundana que teve lugar no táxi, no caminho entre o hotel e o museu, porque, para prender a vossa atenção, seria necessário um escritor com muito mais talento do que eu. No entanto, seria indelicado da minha parte não admitir que os desenhos de Picasso valeram bem a viagem. E devo acrescentar que os comentários de Susie fizeram com que uma pequena multidão viesse atrás de nós. O lápis - disse ela - é a ferramenta mais cruel do artista, porque não deixa nada ao acaso. - Ela parou em frente do desenho que Picasso fizera do pai sentado numa cadeira. Fiquei fascinado e, durante algum tempo, não consegui mexer-me. O que é notável neste retrato - disse Susie - é que Picasso o desenhou aos dezasseis anos; por isso é óbvio que, muito antes de sair da escola de arte, ele já se sentia enfadado com temas convencionais. O pai, quando viu o retrato pela primeira vez, e ele próprio era artista... - Susie não terminou a frase. Em vez disso, agarrou-me subitamente na mão e, olhando-me nos olhos, disse: - Tony, é tão bom estar contigo - inclinou-se para a frente, como se me fosse beijar. Eu estava prestes a dizer: Que diabo se passa? - Quando o vi pelo canto do olho. Xeque - disse eu. Que queres dizer com isso... "xeque"? O bispo avançou ao longo do tabuleiro ou, para ser mais exacto, do Canal, e tenho a sensação de que ele vai começar a jogar. De que é que estás a falar, Tony? Eu acho que sabes muito bem do que é que eu estou a falar - respondi. Que coincidência - disse uma voz atrás dela. Susie deu meia volta e, de uma forma convincente, mani- festou-se surpreendida ao ver Richard ali. Que coincidência - repeti. Não é uma exposição maravilhosa? - perguntou Susie, ignorando o meu sarcasmo. É, sem qualquer dúvida - disse Rachel, que obvia- mente não fora informada que, tal como eu, era apenas um peão neste jogo e estava ser prestes a ser comida pela rainha. Bem, agora que nos encontrámos todos outra vez, podíamos almoçar juntos - sugeriu Richard. Infelizmente, nós já temos outros planos - disse Susie, pegando-me na mão. Oh, não é nada que não possa ser alterado, minha querida - disse eu, na esperança de poder permanecer em jogo durante mais algum tempo. Mas a esta hora nunca conseguiremos encontrar uma mesa num restaurante razoável - insistiu Susie. Isso não é problema - garanti-lhe eu com um sorriso. - Eu conheço um pequeno bistro onde certamente nos arranjarão uma mesa. Susie olhou-me, furiosa, enquanto eu saía de xeque, e recusou-se a falar comigo enquanto saíamos do museu e seguíamos juntos ao longo do Sena. Comecei a conversar com Rachel. Afinal de contas, pensei, os peões devem manter-se unidos. Quando me viu à entrada, Jacques atirou os braços ao ar, num gesto de desespero. Quantas pessoas, Monsieur Tony? - perguntou ele com um suspiro de resignação na voz. Quatro - respondi com um sorriso. Acabou por ser a única refeição desse fim-de-semana que realmente me agradou. Passei a maior parte do tempo a falar com Rachel, uma rapariga bastante simpática, embora, com toda a franqueza, não estivesse na mesma divisão que Susie. Ela não fazia a mínima ideia do que estava a acontecer no outro lado do tabuleiro, onde a rainha preta estava prestes a remover o seu cavalo branco. Era um prazer observar a dama em pleno funcionamento. Enquanto Rachel conversava comigo, fiz um grande esforço para escutar a conversa que estava a ter lugar no outro extremo da mesa, mas só consegui captar algumas palavras. Quando pensas estar de volta a Nova Iorque... Sim, eu planeei esta viagem a Paris há algumas semanas... Oh, vais estar sozinho em Genebra... Sim, gostei muito da festa dos Keswicks... Encontrei o Tony em Paris. Sim, é mais uma coincidência, eu mal o conheço... É bem verdade, pensei eu. Gostei tanto da sua representação que nem sequer me importei de ser eu a pagar a conta. Depois de nos termos despedido, Susie e eu passeámos ao longo do Sena, mas não de mãos dadas. Esperei até ter a certeza de que Richard e Rachel tinham desaparecido de vista antes de parar para a confrontar com a situação. Verdade seja dita que ela pareceu sentir-se apropriadamente culpada, como se estivesse à espera de ser castigada. Ontem, também depois do almoço, perguntei-te: "Neste momento, se te fosse possível fazer qualquer coisa, que farias?" Qual seria a tua resposta desta vez? Pela primeira vez, nesse fim-de-semana, Susie pareceu insegura. Podes ter a certeza - acrescentei, olhando para os seus olhos azuis - de que nada do que possas dizer me vai surpreender ou ofender. Gostaria de voltar ao hotel, fazer as malas e ir para o aeroporto. Assim seja - disse eu, dirigido-me à estrada para mandar parar um táxi. Durante a viagem de regresso ao hotel, Susie não falou e, assim que chegámos, ela subiu e desapareceu enquanto eu pagava a conta e pedia que fossem buscar a minha mala, que já estava pronta. Mesmo assim, tenho de admitir que, quando ela saiu do elevador e me sorriu, quase desejei chamar-me Richard. Para surpresa de Susie, acompanhei-a a Charles de Gaulle, explicando que ia regressar a Londres no primeiro voo disponível. Despedimo-nos debaixo do placare das partidas com um abraço, uma espécie de "Talvez nos voltemos a encontrar ou, por outro lado, talvez não". Acenei-lhe a dizer adeus e comecei a afastar-me, mas não resisti a virar-me para ver para que balcão Susie se dirigia. Ela foi para a fila do balcão de check-in da Swissair. Sorri e dirigi-me ao balcão da British Airlines. Passaram-se seis anos desde esse fim-de-semana em Paris e, durante todo esse tempo, não encontrei Susie uma única vez, embora o nome dela surgisse ocasionalmente em conversa em jantares. Descobri que se tornara editora da Art Nouveau e que se casara com um inglês chamado Ian, que trabalhava na promoção do desporto. Fora um casamento inesperado, comentou alguém, após uma longa ligação com um banqueiro americano. Alguns anos mais tarde, ouvi dizer que tivera um filho, seguido de uma filha, mas parecia que ninguém sabia como se chamavam. E, finalmente, há cerca de um ano, tivera conhecimento do seu divórcio através das colunas sociais. E, depois, sem qualquer aviso, Susie telefonou de repente a sugerir que nos encontrássemos para tomar uma bebida. Quando sugeriu o local, vi que ela não perdera a desfaçatez. Ouvi-me a mim próprio a dizer sim, e interroguei-me sobre se a iria reconhecer. Ao vê-la subir as escadas da Tate, compreendi que a única coisa de que me tinha esquecido era de como ela era bela. Estava ainda mais cativante do que antes. Estávamos na galeria há apenas alguns minutos quando me recordei do prazer que era ouvi-la falar sobre o seu tema preferido. Eu nunca gostara muito de Damien Hirst e só recentemente aceitara o facto de Warhol e Lichtenstein serem mais do que simples desenhadores, mas certamente que saí da exposição com um novo respeito pelo seu trabalho. Suponho que não devia ter ficado surpreendido por Susie ter reservado uma mesa no restaurante da Tate e por ela nunca se ter referido ao nosso fim-de-semana em Paris até que, quando tomávamos café, ela perguntou: Se, neste momento, te fosse possível fazer qualquer coisa no mundo, que farias? Ia passar o fim-de-semana a Paris contigo - disse eu, com uma gargalhada. Então, vamos - disse ela. - Há uma exposição de Hockney no Centro Pompidou que tem recebido críticas muito boas, e eu conheço um hotel confortável e despretencioso onde não vou há anos, para não falar de um restaurante que se orgulha de não ser referido nos guias turísticos. Sempre considerei ignóbil um homem falar sobre uma senhora como se ela fosse simplesmente uma conquista ou um trofeu, mas devo confessar que, quando vi Susie desaparecer pela porta das partidas para apanhar o voo de regresso a Nova Iorque na manhã da segunda-feira seguinte, senti que os anos de espera tinham valido bem a pena. Ela nunca mais me voltou a contactar. ALGO EM TROCA DE NADA Jake começou a marcar lentamente o número, como fazia todas as tardes às seis horas, desde o dia em que o seu pai morrera. Durante os quinze minutos seguintes, recostava-se na cadeira e ouvia a mãe contar o que fizera nesse dia. Ela levava uma vida tão sóbria e ordenada que, raramente, tinha alguma coisa interessante para contar. Muito menos ao sábado. Tomava café todas as manhãs com a sua amiga mais antiga, Molly Schultz, e, nalguns dias, o encontro durava até à hora de almoço. Às segundas, quartas e sextas, jogava brídege com os Zaccharis que viviam na casa em frente. Às terças e quintas, visitava a sua irmã Nancy, mas isso, pelo menos, dava-lhe alguma coisa para se queixar quando ele telefonava nesses dias. Aos sábados, ela descansava da árdua semana. A sua única actividade vigorosa era comprar a volumosa edição de domingo do Times logo depois do almoço, uma estranha tradição de Nova Iorque que, pelo menos, lhe dava a oportunidade de informar o filho sobre as notícias que deveria ler no dia seguinte. Todas as tardes a conversa consistia, para Jake, nalgu-mas perguntas apropriadas, dependendo do dia. Segunda, quarta e sexta: como correu o brídege? Quanto ganhaste/ perdeste? Terça, quinta: como está a tia Nancy? A sério? Assim tão mal? Sábado: há alguma coisa interessante no Times que eu deva ler? Os leitores atentos saberão que há sete dias na semana e quererão talvez saber o que a mãe de Jake fazia aos domingos. Ao domingo, ela ia sempre almoçar com a família, por isso não havia necessidade de lhe telefonar nessa tarde. Jake marcou o último dígito do número da mãe e esperou que ela atendesse. Já estava preparado para que ela lhe dissesse o que devia procurar no New York Times do dia seguinte. O telefone tocava geralmente duas ou três vezes antes de a mãe atender, o tempo necessário para ela ir da cadeira junto da janela até ao telefone, colocado no outro lado da sala. Quando o telefone tocou quatro, cinco, seis, sete vezes, Jake começou a pensar que ela talvez tivesse saído. Mas isso não era possível. Tanto de Inverno como de Verão, ela nunca estava fora de casa depois das seis horas da tarde. Ela mantinha uma rotina tão regular que faria sorrir um sargento da Marinha. Finalmente, ouviu atender o telefone. Estava prestes a dizer: "Olá, mamã. Daqui é o Jake", quando ouviu uma voz que não era certamente a da sua mãe, e que já estava a meio da conversa. Pensando que era uma linha cruzada, estava prestes a desligar quando ouviu a voz dizer: Há cem mil dólares para ti. A única coisa que tens de fazer é ir buscá-los. Estão num envelope para ti no Billy's. E onde fica o Billy's? - perguntou outra voz. Na esquina da Oak Street com a Randall. Estão à tua espera por volta das oito. Jake tentou não respirar enquanto anotava "Oak e Randall" no bloco ao lado do telefone. Como é que eles sabem que o envelope é para mim? - perguntou a segunda voz. Pedes um exemplar do New York Times e dás uma nota de cem dólares. Ele dá-te vinte cinco cêntimos de troco, como se lhe tivesses dado um dólar. Assim, se houver mais alguém na loja, não ficará desconfiado. Não abras o envelope antes de estares num local seguro, há muita gente em Nova Iorque que gostaria de deitar a mão a cem mil dólares. E não voltes a contactar-me. Se o fizeres, na próxima vez não recebes nada. O telefone desligou-se. Jack pousou o auscultador, completamente esquecido de que devia telefonar à mãe. Sentou-se e reflectiu sobre o que iria fazer a seguir, se é que ia fazer alguma coisa. Ellen, a mulher, levara os miú- dos ao cinema, como fazia quase todos os sábados, e só deveria estar de volta pelas nove horas. O seu jantar estava dentro do micro-ondas com um bilhete a dizer-lhe quantos minutos levaria a cozinhar. Ele acrescentava sempre um minuto. Jake deu por si a folhear a lista telefónica. Virou as páginas até chegar ao B: Bi..., Bil..., Billy's. E ali estava, na Oak Street, nº 1127. Fechou a lista e foi até ao escritório onde procurou, na estante atrás da secretária, um mapa das ruas de Nova Iorque. Encontrou-o encaixado entre The Memoirs ofElizabeth Schwarzkopfe How to Lose Twenty Pounds When You're Over Forty. Consultou o índice e encontrou rapidamente a Oak Street. Verificou a planta e colocou o dedo no quadrado certo. Calculou que levaria trinta a quarenta minutos a chegar ao West Side. Olhou para o relógio. Eram 18:14. Em que é que ele estava a pensar? Não tencionava ir a lado nenhum. Para começar, ele nem sequer tinha cem dólares. Jake tirou a carteira do bolso interior do casaco e contou lentamente o dinheiro: trinta e sete dólares. Foi à cozinha verificar a caixa de trocos de Ellen. Estava fechada à chave, e não se conseguia recordar onde ela a colocara. Tirou uma chave de fendas da gaveta ao lado do fogão e abriu a caixa: mais vinte e dois dólares. Começou a andar de um lado para o outro da cozinha, a tentar pensar. Depois foi até ao quarto e verificou os bolsos de todos os seus casacos e calças. Mais um dólar e setenta e cinco em trocos. Saiu do quarto e foi até ao quarto da filha. O mealheiro Snoopy de Hesther estava em cima da cómoda. Pegou nele e aproximou-se da cama. Virou o mealheiro de pernas para o ar e abanou-o até todas as moedas terem caído em cima do edredão: mais seis dólares e setenta e cinco. Sentou-se aos pés da cama, tentando desesperadamente concentrar-se, depois lembrou-se da nota de cinquenta dólares que mantinha sempre dobrada junto da carta de condução para uma emergência. Juntou tudo o que encontrara: cento e dezassete dólares e cinquenta cêntimos. Jake olhou para o relógio. Eram 18:23. Iria apenas dar uma vista de olhos. Nada mais, disse a si próprio. Tirou o sobretudo velho do armário da entrada e saiu do apartamento, verificando se a porta da frente, com as suas três fechaduras, estava bem trancada. Carregou no botão do elevador, mas não ouviu qualquer som. Avariado outra vez, pensou Jake, começando a correr pelas escadas abaixo. No outro lado da rua, havia um bar onde Jake ia muitas vezes quando Ellen levava os filhos ao cinema. O barman sorriu quando ele entrou. O costume, Jake? - perguntou ele, um tanto surpreendido de o ver vestido com um sobretudo grosso quando, depois de sair do apartamento, Jake só tinha de atravessar a rua. Não, obrigado - disse Jake, tentando aparentar um ar casual. - Será que tens uma nota de cem dólares? Não tenho a certeza - respondeu o barman. Procurou entre um monte de notas, depois voltou-se para Jake e disse: - Estás com sorte. É a única. Jake entregou a nota de cinquenta, as duas de dez e as dez de um dólar, e, em troca, recebeu uma nota de cem dólares. Dobrando a nota cuidadosamente em quatro, enfiou-a na carteira que voltou a colocar no bolso interior do casaco. Seguidamente, deixou o bar e saiu para a rua. Dirigiu-se lentamente para oeste durante dois blocos até chegar a uma paragem de autocarro. Talvez chegasse demasiado tarde e o problema se tivesse resolvido por si próprio, pensou ele. Um autocarro parou junto do passeio. Jake subiu os degraus, pagou o bilhete e sentou-se perto do fundo, ainda sem saber bem o que faria quando chegasse ao West Side. Estava tão absorto nos seus pensamentos que não deu pela paragem e teve de andar mais de quinhentos metros para trás até à Oak Street. Verificou os números. Faltavam ainda três ou quatro blocos até a Oak Street se cruzar com a Randall. À medida que se aproximava, reparou que cada passo que dava era mais lento do que o anterior. Mas, subitamente, ali estava ela, a meio de um candeeiro, uma tabuleta branca e verde que dizia: "Randall Street." Olhou rapidamente para os quatro cantos da rua, depois olhou novamente para o relógio. Enquanto observava do outro lado da rua, uma ou duas pessoas entraram e saíram da Billy's. A luz dos peões mudou para verde; e ele deu por si a ser levado para o outro lado, juntamente com os outros peões. Olhou outra vez para o relógio: 19:51. À entrada do Billy's, parou. Atrás do balcão estava um homem a empilhar jornais. Vestia uma t-shirt preta e calças de ganga, e devia ter cerca de quarenta anos, um pouco menos de um metro e oitenta de altura e ombros que só poderiam ter sido conseguidos passando várias horas por semana no ginásio. Um cliente passou por Jake e pediu um maço de Malboro. Enquanto o homem atrás do balcão lhe dava o troco, Jake entrou na loja e fingiu estar interessado no expositor das revistas. Quando o cliente deu meia volta para se ir embora, Jake enfiou a mão no bolso interior do casaco, tirou a carteira e tocou no canto da nota de cem dólares. Depois de o homem do Malboro ter saído da loja, Jake voltou a pôr a carteira no bolso, deixando a nota na palma da mão. O homem atrás do balcão aguardou impacientemente enquanto Jake desdobrava lentamente a nota. O Times - ouviu Jake a sua própria voz dizer, ao mesmo tempo que colocava a nota de cem dólares em cima do balcão. O homem da t-shirt preta olhou para o dinheiro e para o relógio. Pareceu hesitar por um momento antes de colocar a mão direita por baixo do balcão. Este movimento fez Jake ficar tenso, até ter visto emergir um envelope comprido, grosso e branco. O homem enfiou-o dentro da secção de negócios do jornal e, depois, com uma expressão impávida no rosto, entregou o jornal a Jake. Pegou na nota de cem dólares, marcou setenta e cinco cêntimos na caixa registadora e deu vinte e cinco cêntimos de troco a Jake. Jake deu meia volta e saiu rapidamente da loja, quase derrubando um homem baixo que parecia tão nervoso como ele. Jake quase correu ao longo da Oak Street, olhando frequentemente por cima do ombro para ver se estava a ser seguido. Viu um táxi que vinha na sua direcção e mandou-o parar. East Side - disse ele, saltando para o interior do táxi. Enquanto o motorista se juntava de novo ao trânsito, Jake retirou o envelope do volumoso jornal e transferiu-o para um bolso interior. Conseguia ouvir o coração a bater com força e passou a maior parte dos quinze minutos seguintes a olhar pela janela de trás do táxi. Quando viu uma entrada do metropolitano à direita, disse ao motorista que parasse. Deu-lhe dez dólares e, sem esperar pelo troco, saltou do táxi e desceu as escadas do metropolitano a correr, emergindo alguns minutos depois no outro lado da rua. Aí, mandou parar outro táxi que seguia na direcção oposta. Desta vez, deu o endereço da sua casa ao motorista. Congratulou-se pelo pequeno estratagema que vira Gene Hackman levar a cabo no filme da semana. Jake, nervoso, tocou no bolso interior para ter a certeza de que o envelope ainda lá estava. Confiante de que ninguém o estava a seguir, deixou de se preocupar em olhar pela janela de trás do táxi. Sentiu-se tentado a olhar para dentro do envelope, mas teria tempo suficiente quando estivesse de volta à segurança do seu apartamento. Olhou para o relógio 20:21. Ellen e os miúdos só deveriam estar de volta daí a, pelo menos, meia hora. Pode deixar-me cerca de cinquenta metros à esquerda - disse Jake ao motorista, satisfeito por estar de novo em território familiar. Quando o táxi parou na esquina anterior ao seu bloco, olhou uma última vez pela janela de trás. Pagou ao motorista com as moedas que tirara do mealheiro Snoopy da filha, depois saiu do táxi e entrou no prédio o mais calmamente que conseguiu. Uma vez no interior do edifício, atravessou apressadamente o átrio e bateu no botão do elevador com a palma da mão. Ainda não estava a funcionar. Praguejou e começou a correr pelos sete lances de escadas acima até ao seu apartamento, subindo cada vez mais lentamente a cada andar que passava, até finalmente parar. Ofegante, abriu as três fechaduras, quase caiu quando entrou em casa, e bateu a porta rapidamente atrás de si. Encostou-se à parede, en- quanto recuperava a respiração. Estava a tirar o envelope do bolso interior do casaco quando o telefone tocou. O primeiro pensamento que lhe veio à mente era que lhe tinham seguido o rasto e queriam o dinheiro de volta. Ficou um momento a olhar para o telefone, depois pegou nervosamente no auscultador. Olá, Jake, és tu? Depois lembrou-se. Sou, sim, mamã. Não me telefonaste às seis - disse ela.

Desculpe, mamã, eu telefonei, mas... - decidiu não lhe dizer porquê. Há uma hora que estou a tentar contactar contigo. Saíste? Fui só ao bar do outro lado da rua. Às vezes vou até lá quando a Ellen leva os miúdos ao cinema. Colocou o envelope ao lado do telefone, desesperado por se livrar dela, mas ciente de que tinha de cumprir a rotina habitual de sábado. Alguma coisa interessante no Times, mamã? - Ouviu-se a si próprio perguntar, num tom demasiado rápido. Nem por isso - respondeu ela. - Parece quase certo que a Hillary vai obter a nomeação dos democratas para o Senado, mas eu vou continuar a votar no Giuliani. Sempre o fiz, sempre o farei - disse Jake, repetindo o comentário frequente da mãe sobre o presidente da Câmara. Pegou no envelope e apertou-o, para ver qual era a sensação de tocar em cem mil dólares. Mais alguma coisa, mamã? - disse ele, tentando que ela avançasse. Há um artigo na secção da sociedade sobre a recuperação do desejo sexual pelas viúvas de setenta anos. Parece que elas, assim que os maridos são enterrados, começam a fazer o THS e voltam à sua velha rotina. Uma delas é citada como tendo dito: "Não é tanto uma questão de tentar compensar o tempo perdido, mas sim de me pôr a par dele." Enquanto escutava, Jake começou a abrir um canto do envelope.

         - Eu era capaz de tentar - estava a mãe a dizer -, mas não tenho dinheiro para a plástica que parece ser necessária. Mamã, acho que estou a ouvir a Elen e os miúdos à porta, por isso é melhor despedir-me. Até amanhã ao almoço. Mas ainda não te falei sobre um artigo fascinante que vem na secção de negócios. Conte lá - disse Jake distraidamente, começando a abrir lentamente o envelope. É uma história sobre uma nova burla que está a ser levada a cabo em Manhattan. Não sei o que é que hão-de inventar a seguir. O envelope estava meio aberto. Parece que há um bando que encontrou uma forma de entrar numa linha telefónica, quando a pessoa está a marcar outro número... Mais um centímetro e Jake conseguiria verter o conteúdo do envelope para cima da mesa. Por isso, quando marcamos, julgamos que temos uma linha cruzada. Jake tirou o dedo do envelope e começou a ouvir com mais atenção. Depois eles preparam uma armadilha, fazendo-nos acreditar que estamos a ouvir uma conversa real. A testa de Jake começou a ficar coberta de suor, enquanto ele olhava para o envelope quase aberto. Eles levam-nos a pensar que, se formos ao outro lado da cidade e entregarmos uma nota de cem dólares, recebemos em troca um envelope com cem mil dólares. Jake sentiu-se agoniado ao pensar na prontidão com que ele perdera os seus cem dólares e na facilidade com que eles o tinham convencido. Estão a usar quiosques e tabacarias para levar a cabo a burla - prosseguiu a mãe. Então, o que é que está dentro do envelope? Nisso é que eles são realmente espertos - disse a mãe. - Eles põem lá dentro uma pequena brochura que dá conselhos sobre como se podem ganhar cem mil dólares. E nem sequer é um estratagema ilegal, porque o preço de capa é de cem dólares. Temos de concordar que são inteligentes. A campainha da porta começou a tocar. Ellen e os miúdos deviam ter voltado do cinema e ela, provavelmente, esquecera-se da chave. A campainha tocou mais uma vez. Já vou, já vou - gritou Jake. Agarrou no envelope, decidido a não deixar qualquer vestígio da sua embaraçosa experiência. Quando a campainha tocou pela terceira vez, correu para a cozinha, abriu a incineradora e atirou o envelope pelo cano abaixo. A campainha continuava a tocar. Desta vez, o visitante devia ter deixado o dedo no botão. Jake correu para a porta. Abriu-a e viu três homens enormes no corredor. O da t-shirt preta saltou para dentro de casa e colocou-lhe uma faca junto da garganta, enquanto os outros dois o seguravam pelos braços. A porta fechou-se atrás deles. Onde está? - gritou o da t-shirt, segurando a faca de encontro à garganta de Jake. Onde está o quê? - conseguiu Jake dizer. - Não sei de que é que estão a falar. Não brinques connosco - gritou o segundo homem. - Queremos os nossos cem mil dólares de volta. Mas não havia dinheiro no envelope, apenas um livro. Atirei-o pelo cano do incinerador abaixo. Escutem, podem ouvir o som. O homem da t-shirt preta inclinou a cabeça, enquanto os outros ficaram calados. Vindo da cozinha, chegava até eles o som de algo a ser triturado. Está bem, nesse caso, tu vais seguir pelo mesmo caminho - disse o homem com a faca na mão. Acenou a cabeça, e os seus dois cúmplices agarraram em Jake como se ele fosse um saco de batatas e levaram-no para a cozinha. No momento em que a cabeça de Jake estava prestes a desaparecer pelo cano da incineradora abaixo, o telefone e a campainha da porta começaram a tocar ao mesmo tempo... OS ESFORÇOS DE OUTROS Tudo começou inocentemente, quando Henry Pascoe, o primeiro-secretário do alto comissário britânico em Aranga, recebeu uma chamada de Bill Paterson, o gerente do Bar-clays Bank. Foi ao fim da tarde de sexta-feira e Henry esperava que Bill lhe estivesse a ligar, sugerindo-lhe uma partida de golfe para sábado de manhã, ou talvez um con-vite para se juntar a ele e à sua mulher Sue para o almoço de domingo. Mas assim que ouviu o tom de voz na outra extremidade da linha, soube que a chamada era de natu-reza oficial. Quando verificares a conta do alto comissário na segunda-feira, verás que foste creditado com um montante mais elevado do que o habitual. Por algum motivo em especial? - respondeu Henry, no seu tom mais formal. Um motivo bastante simples, na realidade - respondeu o gerente do Banco. - A taxa de câmbios subiu a favor de uma noite para a outra. Acontece sempre que cor- rem rumores que vai haver um golpe de Estado - acrescentou num tom casual. - Estás à-vontade para me telefonares na segunda-feira, se tiveres algumas questões. Henry pensou em perguntar a Bill se queria jogar uma partida de golfe no dia seguinte, mas reconsiderou. Foi a primeira experiência de Henry com um golpe de Estado, e a taxa de juro não foi a única coisa a ter um mau fim-de-semana. Na sexta-feira à noite, o chefe de Estado, o general Olangi, apareceu na televisão completamente fardado para avisar os bons cidadãos de Aranga que, devido a alguma inquietação entre um pequeno grupo de dissidentes no Exército, seria necessário impor um recolher obrigatório na ilha, o qual ele esperava não demorasse mais do que alguns dias. No sábado de manhã, Henry mudou para o canal de Informações Mundiais da BBC, para descobrir o que se passava na realidade em Aranga. O correspondente da BBC, Roger Parnell, sempre daria informações mais apuradas do que a televisão e a rádio locais, que estavam simplesmente a emitir, de poucos em poucos minutos, um aviso aos cidadãos da ilha para que não andassem na rua durante o dia porque, se o fizessem, seriam presos. E, se fossem suficientemente tolos para o fazerem à noite, seriam mortos. Isso pôs termo a qualquer partida de golfe no sábado ou ao almoço com Bill e Sue no domingo. Henry passou um fim-de-semana calmo em casa, a ler e a pôr em dia a correspondência recebida de Inglaterra a que não respondera, a limpar o frigorífico de toda a comida extra e, finalmente, a fazer a limpeza das áreas do seu apartamento de solteiro que a empregada parecia nunca ver. Na segunda-feira de manhã, o chefe de Estado parecia estar ainda seguro no seu palácio. A BBC anunciou que vários jovens oficiais tinham sido presos e que constava que alguns tinham sido executados. O general Olangi apareceu, de novo, na televisão para anunciar que o recolher obrigatório fora levantado. Quando chegou ao seu gabinete mais tarde nesse dia, Henry viu que a sua secretária, a qual já passara por vários golpes de Estado, já abrira o correio e deixara-o em cima da sua secretária para ele o ver. Havia uma pilha assina-lada "Urgente, requer medidas", uma outra assinalada "Para decisão" e uma terceira, a maior das três, assinalada "Ver e cesto de papéis". O itinerário da visita iminente do subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha fora colocado no topo na pilha "Urgente, requer medidas", embora o ministro só passasse por St. George, a capital de Aranga, porque era uma conveniente paragem de reabastecimento no caminho de regresso a Londres, após uma viagem a Jacarta. Poucas pessoas se davam ao trabalho de visitar o minúsculo protectorado de Aranga, a não ser que estivessem a caminho ou de regresso de outro local. Este ministro em especial, Mr. Will Whiting, conhecido no Ministério dos Negócios Estrangeiros como "Will Murcho" iria, garantia The Times aos seus leitores, ser substi-tuído na próxima remodelação ministerial por alguém que soubesse escrever. No entanto, pensou Henry, uma vez que Whiting iria pernoitar na residência do alto comissário, esta seria a sua única oportunidade de obter uma decisão vinda dele sobre o projecto da piscina. Henry estava interessado em conseguir autorização para iniciar as obras da nova piscina de que as crianças locais tanto precisavam. Num longo memorando enviado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, ele salientara que, quando a princesa Margarida visitara a ilha, há quatro anos atrás, e colocara a primeira pedra, fora-lhes prometida autorização para avançar, mas ele receava que, se não insistisse, o projecto permaneceria indefinidamente nos processos pendentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Na segunda pilha de cartas, estava o extracto bancário enviado por Bill Patterson que confirmava que, devido ao golpe de Estado que nunca se dera, a conta externa do Alto Comissariado tinha mais mil cento e vinte e três hora, mais do que se esperava. Henry interessava-se pouco pelas questões financeiras do protectorado mas, como primeiro-secretário, era seu dever assinar todos os cheques em nome do Governo de Sua Majestade. Havia uma outra carta na pilha "Para decisão": Um convite para fazer um discurso em nome dos convidados presentes no jantar do Clube dos Rotários, em Novembro. Todos os anos, um membro sénior do pessoal do Alto Comissariado desempenhava esta tarefa. Parecia que esta era a vez de Henry. Ele resmungou, mas colocou um V no canto superior direito da carta. Na pilha "Ver e cesto de papéis" havia as cartas habituais: pessoas que enviavam as desnecessárias ofertas gratuitas, circulares e convites para cerimónias a que nunca ninguém assistia. Nem se dando sequer ao trabalho de passar uma vista de olhos por estes, concentrou a sua atenção na pilha "Urgente" ministro: e começou a verificar o programa do de Agosto 15:30: Mr. Will Whiting, subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, será recebido no aeroporto pelo alto comissário, Sir David Fleming, epelopri-meiro-secretário, Mr. Henry Pascoe. 16:30: Chá no Alto Comissariado com o alto comissário e Lady Fleming. 18:00: Visita ao Colégio Queen Elizabeth, onde o ministro entregará prémios a alunos do sexto ano (discurso em anexo). 19:00: Beberete no Alto Comissariado. Esperam-se cerca de cem convidados (nomes em anexo). 20:00: Jantar com o general Olangi no Quartel Victoria (discurso em anexo). Henry ergueu os olhos quando Shirley, a sua secretária, entrou no gabinete. Quando vou poder mostrar ao ministro o local de construção da nova piscina? - perguntou ele. - Não há qual- quer referência a ela no itinerário. Consegui encaixar uma visita de quinze minutos amanhã de manhã, quando o ministro estiver de novo a caminho do aeroporto. Quinze minutos para discutir algo que vai afectar dez mil crianças - disse Henry, olhando de novo para a agenda do ministro. Virou a página. de Fevereiro 8:00: Pequeno-almoço na residência com o alto comis-sário e representantes das principais empresas lo-cais (discurso em anexo). 9:00: Partida para o aeroporto. 10:30: Voo da British Airways 0177 para Londres, Heathrow. Nem sequer é uma agenda oficial - resmungou Henry, olhando outra vez para a secretária. Eu sei - disse Shirley -, mas o alto comissário achou que, uma vez que a visita do ministro é tão curta, ele deveria concentrar-se nas prioridades mais importantes. Tais como o chá com a mulher do alto comissário - comentou Henry. - Certifique-se de que ele chega ao pequeno-almoço a horas e que o parágrafo que lhe ditei sobre a piscina é incluído no discurso - Henry levantou-se da secretária. - Estive a ler as cartas e marquei-as. Vou dar um salto à Baixa para ver em que pé está o projecto da piscina. A propósito - disse Shirley -, Roger Parnell, o correspondente da BBC, acabou de telefonar a querer saber se o ministro irá fazer alguma declaração oficial enquanto estiver em Aranga. Telefone e diga-lhe que sim, depois mande-lhe por fax o discurso que o ministro vai fazer ao pequeno-almoço, sublinhando o parágrafo sobre a piscina. Henry saiu do escritório e entrou para o seu Austin Mini. O sol batia no tejadilho. Mesmo com as duas janelas abertas, ele ficou coberto de suor depois de ter conduzido apenas algumas centenas de metros. Alguns dos habitantes locais acenaram-lhe quando reconheceram o Mini e o diplomata de Inglaterra, o qual parecia genuinamente preocupado com o seu bem-estar. Estacionou o carro do outro lado da catedral que, em Inglaterra, teria sido descrita como igreja paroquial, e percorreu os trezentos metros até ao local destinado à piscina. Praguejou, como sempre fazia, quando via o pedaço de terra erma. As crianças de Aranga tinham muito poucos equipamentos desportivos: um campo de futebol duro como tijolo, que era transformado em campo de críquete todos os anos no dia 1 de Maio; um salão da Câmara Municipal que servia também de campo de basquete quando não havia sessões da Câmara; e um campo de ténis e um campo de golfe no Britannia Club, para o qual os habitantes locais não eram convidados e onde as crianças não eram autorizadas a passar para além do portão, a não ser que fosse para varrer a estrada. No Quartel Victoria, a menos de quinhentos metros de distância, o Exército possuía um ginásio e meia dúzia de campos de squash, mas apenas os oficiais e os seus convidados podiam utilizá-los. Henry decidiu assumir como missão certificar-se de que a piscina ficasse terminada antes de o Ministério dos Negócios Estrangeiros o colocar noutro país. Ele utilizaria o seu discurso no Clube dos Rotários para levar os sócios do clube a agir. Teria de os convencer a seleccionar o projecto da piscina como a sua obra de beneficência do ano, e pressionaria Bill Paterson a tornar-se presidente da Comissão Recolha de Fundos. Afinal de contas, como gerente do Banco e secretário do Clube dos Rotários, ele era o candidato óbvio. Mas primeiro havia a visita do ministro. Henry começou a pensar nas questões que queria abordar com ele, recordando-se de que teria apenas quinze minutos para convencer o maldito homem a pressionar o Ministério dos Negócios Estrangeiros a conceder mais fundos. Deu meia volta para se ir embora e viu um rapazinho de pé, na orla do local, a tentar ler as palavras esculpidas na primeira pedra: "Piscina de St. George. Esta pedra foi colocada por Sua Majestade, a princesa Margarida, no dia 12 de Setembro de 1987." É isto a piscina? - perguntou, inocentemente, o rapazinho. Enquanto voltava para o carro, Henry repetiu aquelas palavras para si próprio e decidiu incluí-las no seu discurso no Clube dos Rotários. Olhou para o relógio e decidiu que tinha tempo suficiente para passar pelo Britannia Club, na esperança de que Bill Paterson estivesse lá a almoçar. Quando entrou no clube, viu Bill sentado ao bar, no seu banco habitual, a ler um exemplar antigo do Financial Times. Bill levantou os olhos enquanto Henry se aproximava do bar. Pensava que hoje tinhas de tomar conta de um ministro visitante. O avião dele só aterra às 15:30 - disse Henry. - Passei por cá porque queria falar contigo. Precisas de conselhos sobre como gastar o excedente que ganhaste com as taxas de câmbio na sexta-feira passada? Não. Vou precisar de um pouco mais do que isso para conseguir levar por diante este projecto da piscina. Henry saiu do clube vinte minutos depois, tendo conseguido que Bill prometesse presidir à Comissão de Recolha de Fundos, abrir uma conta no Banco e pedir à sede em Londres que fizesse o primeiro donativo. No caminho para o aeroporto, no Rolls-Royce do alto comissário, Henry contou a Sir David as últimas novidades sobre o projecto da piscina. Muito bem, Henry. Agora temos de fazer votos que tenhas tanto êxito com o ministro como, obviamente, tiveste com Bill Paterson - disse o alto comissário, sorrindo. Quando o Boeing 727 aterrou, os dois homens estavam de pé na pista do aeroporto de St. George e havia uma carpete vermelha com um metro e oitenta no chão. Uma vez que era raro aterrar mais de um avião por dia em St. George e havia apenas uma pista, o "Aeroporto Internacional" era, na opinião de Henry, uma denominação um tanto errada. O ministro era, afinal, um sujeito bastante simpático que insistiu que todos o tratassem por Will. Garantiu a Sir David que aguardara ansiosamente esta sua visita a St. Patrick. St. George, Sr. Ministro - murmurou-lhe o alto comissário ao ouvido. Sim, com certeza, St. George - respondeu Will, sem sequer corar. Depois de terem chegado ao Alto Comissariado, Henry deixou o ministro a tomar chá com Sir David e a mulher e regressou ao seu gabinete. Mesmo depois de uma viagem tão breve, ficou convencido de que era pouco provável que Will Murcho tivesse muita influência em Whitehall, mas isso não o impediria de insistir no seu caso. Pelo menos, o ministro lera os seus apontamentos porque lhes dissera que estava ansioso por ver a nova piscina. Ainda não está construída - recordou-lhe Henry. Que estranho - disse o ministro. - Eu achava que tinha lido algures que a princesa Margarida já a inaugurara. Não, ela só colocou a primeira pedra, Sr. Ministro. Mas se o Sr. Ministro apoiar o projecto, é possível que isso se venha a alterar. Vou ver o que posso fazer - prometeu Will. - Mas, como sabem, recebemos instruções para fazer ainda mais cortes em financiamentos no estrangeiro. - Um sinal seguro de que estavam à beira de eleições, pensou Henry. Durante o beberete dessa noite, Henry não conseguiu dizer mais do que "Boa noite, Sr. Ministro", pois o alto comissário estava determinado a apresentar Will a todos os convidados em menos de sessenta minutos. Quando os dois partiram para jantar com o general Olangi, Henry voltou para o seu gabinete para rever o discurso que o ministro faria ao pequeno-almoço na manhã seguinte. Ficou satisfeito ao ver que o parágrafo que ele escrevera sobre o projecto da piscina continuava a figurar na versão final, por isso, pelo menos, constaria dos registos. Verificou a distribuição dos lugares, certificando-se de que ficaria sentado ao lado do chefe de redacção do St. George's Echo. Assim, ele podia ter a certeza de que a próxima edição do jornal falaria no apoio do Governo britânico à recolha de fundos para a piscina. Na manhã seguinte, Henry levantou-se cedo e foi um dos primeiros a chegar à residência do alto comissário. Aproveitou a oportunidade para falar com o maior número possível de homens de negócios locais ali reunidos, sobre a importância do projecto da piscina aos olhos do Governo britânico, salientando que o Barclays Bank já concordara em iniciar o Fundo com um donativo substancial. O ministro chegou alguns minutos atrasado ao pequeno-almoço. Uma chamada de Londres - explicou ele, pelo que só se sentaram a comer às 8:15. Henry sentou-se ao lado do chefe de redacção do jornal local e aguardou impacientemente que o ministro fizesse o seu discurso. Will pôs-se de pé às 8:47. Passou os primeiros cinco minutos a falar sobre bananas e, finalmente, disse: Posso garantir-vos que o Governo de Sua Majestade não se esqueceu do projecto da piscina que foi inaugurada pela princesa Margarida e esperamos, no futuro próximo, poder emitir um comunicado sobre os seus progressos. Fiquei muito satisfeito ao saber por Sir David - olhou para Bill Paterson, que estava sentado à sua frente - que o Clube dos Rotários considerou este projecto a sua obra de beneficência do ano, e que vários proeminentes homens de negócios locais concordaram generosamente em apoiar esta causa. - Isto foi seguido por uma salva de palmas, instigada por Henry. Depois de o ministro se ter sentado de novo, Henry en-tregou ao chefe de redacção do jornal local um envelope que continha um artigo de mil palavras, juntamente com várias fotografias do local. Henry sentiu-se confiante de que iria ocupar as páginas centrais do St. George's Echo da semana seguinte. Quando o ministro se sentou, Henry olhou para o relógio: 8:56. Ia ser apertado. Quando Will desapareceu no interior do seu quarto, Henry começou a andar de um lado para o outro no corredor, olhando para o relógio de minuto a minuto. O ministro entrou no Rolls-Royce oficial às 9:24 e, virando-se para Henry, disse: Infelizmente, vou ter de renunciar ao prazer de ver o local da piscina. No entanto - prometeu -, vou ler o seu relatório no avião e, assim que chegar a Londres, informarei o ministro dos Negócios Estrangeiros. Quando o carro passou velozmente por um terreno vazio no caminho do aeroporto, Henry indicou o local ao ministro. Will olhou pela janela e disse: "Admirável, importante, vale bem a pena", mas nem uma só vez se comprometeu a gastar um único tostão do dinheiro do Governo. Eu farei tudo o que puder para convencer os manda- rins das Finanças. - Foram as suas últimas palavras ao entrar no avião. Henry não precisava que lhe dissessem que o "tudo o que puder" de Will, provavelmente, nem sequer convenceria o funcionário público mais novo das Finanças. Uma semana depois, Henry recebeu um fax do Ministério dos Negócios Estrangeiros comunicar as alterações feitas pelo primeiro-ministro na sua última remodelação ministerial. Will Whiting fora despedido e substituído por alguém de quem Henry nunca ouvira falar. Henry estava a rever o discurso que ia fazer no Clube dos Rotários quando o telefone tocou. Era Bill Paterson. Henry, há rumores de que vai haver outro golpe de Estado, por isso, eu estava a pensar em esperar até sexta- -feira antes de trocar as libras do Alto Comissariado por kora. Aceito de bom grado o teu conselho, Bill, não percebo nada do mercado financeiro. A propósito, estou ansioso por esta noite, pois teremos finalmente a oportunidade de lançar a Campanha de Fundos. O discurso de Henry foi bem recebido pelos rotários mas, quando ele descobriu a dimensão dos donativos que alguns sócios tinham em mente, receou que o projecto só ficasse terminado daí a anos. Não se podia esquecer que só faltavam dezoito meses para ser transferido para outro local. Foi no automóvel a caminho de casa que se lembrou do que Bill dissera no Britannia Club. Começou a formar-se uma ideia na sua mente. Henry nunca tivera o menor interesse pelos pagamentos trimestrais que o Governo britânico fazia à pequena ilha de Aranga. O Ministério dos Negócios Estrangeiros atribuía-lhe cinco milhões de libras do seu fundo de contingência, divididos por quatro pagamentos de um milhão e duzentas e cinquenta mil libras cada, as quais eram au-tomaticamente convertidas em kora, a moeda local, à taxa de câmbio actual. Depois de Bill Paterson dizer a Henry qual era a taxa de câmbios, o administrador principal do Alto Comissariado efectuava todos os pagamentos do Comissa-riado, ao longo dos três meses seguintes. Isto estava prestes a mudar. Henry não dormiu nessa noite, ciente de que não pos-suía a formação nem os conhecimentos necessários para levar a cabo o seu ousado plano, e que tinha de adquirir os conhecimentos de que precisava sem que ninguém sou-besse o que ele andava a fazer. Quando se levantou na manhã seguinte, estava a começar a formar-se um plano na sua mente. Começou por passar o fim-de-semana na biblioteca local, a estudar exemplares antigos do Financial Times, tomando nota, em particular, do que causava as flutuações das taxas de câmbio e verificando se estas seguiam algum padrão. Durante os três meses seguintes, no clube de golfe, em beberetes no Britannia Club e sempre que estava com Bill, ele foi reunindo cada vez mais informações, até que, final-mente, se sentiu confiante de que estava pronto para jo-gar o seu primeiro lance. Quando Bill telefonou na manhã de segunda-feira para dizer que havia um pequeno excedente de vinte e dois mil cento e sete kora na conta actual, devido a rumores de mais um golpe de Estado, Henry deu ordens para colocar o dinheiro na conta da piscina. Mas eu faço geralmente a transferência para o Fundo de Contingência - disse Bill. Há uma nova directiva do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a K14792 - disse Henry. - Ela diz que os excedentes podem agora ser utilizados em projectos locais, se estes tiverem sido aprovados pelo ministro. Mas o ministro foi despedido - recordou o gerente do Banco ao primeiro-secretário. Isso pode muito bem ser, mas eu fui informado pelos meus superiores de que a ordem ainda se aplica. - Henry descobrira que a Directiva K14792 existia, de facto, embora ele duvidasse que, ao emiti-la, o Ministério dos Negócios Estrangeiros estivesse a pensar em piscinas. Por mim, tudo bem - disse Bill. - Quem sou eu para discutir com uma directiva do Ministério dos Negócios Estrangeiros, especialmente quando a única coisa que tenho de fazer é transferir o dinheiro de uma conta do Alto Comissariado para outra neste mesmo Banco? O administrador principal não fez qualquer comentário sobre a falta de dinheiro durante a semana seguinte, pois ele recebera o mesmo número de kora de que estava à espera. Henry partiu do princípio de que se safara. Como o próximo pagamento só seria feito daí a três meses, Henry teve bastante tempo para refinar o seu plano. Durante o trimestre seguinte, alguns homens de negócios locais fizeram os seus donativos, mas Henry compreendeu rapidamente que, com este fluxo de dinheiro, mal podiam começar a escavar. Se quisesse ter algo mais do que um buraco na terra, teria de arranjar qualquer coisa mais substancial. Então, teve uma ideia a meio da noite. Mas, para que o golpe de Estado pessoal de Henry fosse eficaz, ele teria de agir na altura certa. Quando Roger Parnell, o correspondente da BBC, fez a sua chamada semanal para perguntar se havia qualquer coisa que ele devesse noticiar para além da campanha de fundos da pisina, Henry perguntou se lhe podia falar off the record. Com certeza - disse o correspondente. - Sobre o que é que quer falar? O Governo de Sua Majestade está um pouco preo- cupado com o facto de o general Olangi não ser visto há já vários dias, e existem rumores de que o seu recente exame médico descobriu que ele é seropositivo. Deus do Céu! - disse o correspondente da BBC. - Tem alguma prova? Não, não tenho - admitiu Henry -, embora eu tenha ouvido o seu médico pessoal ser um pouco indiscreto com o alto comissário. Para além disso, não tenho nada. Deus do Céu! - repetiu o correspondente da BBC. Isto é, claro, estritamente off the record. Se se viesse a saber que a informação partiu de mim, nós nunca mais poderíamos voltar a conversar. Eu nunca divulgo as minhas fontes - garantiu-lhe o correspondente num tom de indignação. A notícia que apareceu nessa noite no Serviço Internacional era vaga e eivada de condicionais. No entanto, no dia seguinte, quando passou pelo campo de golfe, pelo Britannia Club e pelo Banco, Henry encontrou a palavra "SIDA" na boca de toda a gente. Até mesmo o alto comis-sário lhe perguntou se ele ouvira o rumor. Ouvi, mas não acredito - respondeu Henry sem corar. A kora caiu quatro por cento no dia seguinte, e o general Olangi teve de aparecer na televisão para garantir ao seu povo que os boatos eram falsos e estavam a ser espalhados pelos seus inimigos. A única coisa que a sua aparição na televisão fez foi divulgar os rumores aos que ainda não os tinham ouvido e, como o general parecia ter perdido algum peso, a kora desceu mais dois por cento. Este mês correu-te muito bem - disse Bill a Henry na segunda-feira. - Depois do falso alarme sobre o problema de saúde de Olangi, eu consegui transferir cento e dezoito mil kora para a conta da piscina, o que significa que a comissão pode avançar e dar instruções aos arquitectos para que elaborem planos mais detalhados. Parabéns - disse Henry, passando para Bill os louros pelo seu golpe pessoal. Pousou o auscultador, ciente de que não poderia correr o risco de repetir a proeza. Apesar de os projectos dos arquitectos estarem prontos e de uma maqueta da piscina ter sido colocada no gabinete do alto comissário para que todos a vissem, durante os três meses seguintes houve apenas alguns pequenos dona-tivos de homens de negócios locais. Normalmente, Henry não teria visto o fax, mas ele estava no gabinete do alto comissário a rever um discurso que Sir David iria proferir na Convenção Anual dos Pro-dutores de Bananas, quando o fax foi colocado em cima da secretária do alto comissário. O alto comissário franziu o sobrolho e afastou o discurso para o lado. Não foi um bom ano para as bananas - resmungou ele. O sobrolho manteve-se franzido enquanto lia o fax. Passou-o ao primeiro-secretário. "A todas as Embaixadas e Altos Comissariados: o Governo britânico irá sair do Mecanismo da Taxa de Câmbios. Será emitida uma nota oficial mais tar-de." Se assim for, não vejo o ministro das Finanças durar até ao fim do dia - comentou Sir David. - No entanto, o ministro dos Negócios Estrangeiros continuará no seu cargo, por isso o problema não é nosso - levantou os olhos para Henry. - Mesmo assim, talvez seja boa ideia não falar no assunto durante pelo menos algumas horas. Henry acenou a cabeça em sinal de concordância e dei-xou o alto comissário a trabalhar no seu discurso. Assim que fechou a porta do gabinete do alto comissário, ele correu ao longo do corredor pela primeira vez em dois anos. Quando voltou para o seu gabinete, marcou um número que não precisava de procurar na agenda. Daqui fala Bill Paterson. Bill, quanto dinheiro temos no Fundo de Contingência? - perguntou, tentando parecer casual. Dá-me um segundo, que eu já te digo. Queres que te ligue? Não, eu espero - disse Henry. Ficou a ver o ponteiro dos segundos do relógio que tinha em cima da secretária descrever quase um círculo completo antes de o gerente do Banco voltar a falar. Um pouco mais de um milhão de libras - disse Bill. - Por que é que queres saber? Acabei de receber instruções do Ministério dos Negócios Estrangeiros para trocar imediatamente todo o dinheiro disponível por marcos alemães, francos suíços e dólares americanos. Essa transacção acarreta encargos pesados - disse o gerente do Banco, num tom subitamente formal. - E se a taxa de câmbios não te for favorável... Eu tenho a noção das implicações - disse Henry -, mas o telegrama de Londres não me deixa qualquer hipótese de escolha. Certo - disse Bill. - Isso foi aprovado pelo alto comissário? Acabei de sair do gabinete dele - disse Henry. Então, é melhor eu deitar as mãos ao trabalho, não é verdade? Henry ficou sentado a transpirar no seu gabinete com ar condicionado até Bill lhe telefonar, vinte minutos depois. Convertemos toda a quantia para francos suíços, marcos alemães e dólares americanos, de acordo com as instruções. Mando-te os pormenores amanhã de manhã. Sem cópias, por favor - disse Henry. - O alto comissário não quer que os outros funcionários tenham conhecimento disto. Compreendo, meu amigo - disse Bill. O ministro das Finanças anunciou a decisão da Inglaterra de sair do Mecanismo da Taxa de Câmbio nos degraus do Ministério das Finanças em Whitehall às 19:30; a essa hora, todos os Bancos em St. George já tinham fechado. Assim que os mercados abriram na manhã seguinte, Henry contactou Bill e deu-lhe instruções para que convertesse os francos, os marcos e os dólares, de novo, em libras o mais depressa possível e que lhe dissesse qual era o resultado. Henry transpirou durante mais vinte minutos até Bill lhe telefonar. Fizeram um lucro de sessenta e quatro mil, trezentas e doze libras. Se todas as embaixadas do mundo tiverem efectuado o mesmo exercício, o Governo poderá cortar nos impostos antes das próximas eleições. Certo - disse Henry. - A propósito, podes converter o excedente em kora e colocar o dinheiro na conta da pisci- na? E, Bill, eu garanti ao alto comissário que nunca mais se voltava a falar no assunto. Tens a minha palavra - respondeu o gerente do Banco. Henry informou o chefe de redacção do St. George's Echo que, graças à generosidade dos homens de negócios locais e de muitos particulares, ainda estavam a ser recebidas contribuições para o fundo da piscina. Na realidade, os donativos exteriores perfaziam apenas cerca de metade do que fora conseguido até à data. Um mês após o segundo golpe de Henry, fora seleccionado um empreiteiro de entre uma lista de três, e camiões, máquinas de terraplanagem e escavadoras surgiram no local. Henry ia lá todos os dias para verificar os avanços. Mas não demorou muito até Bill lhe lembrar que, a não ser que chegassem mais fundos, eles não poderiam levar a cabo o seu plano de uma prancha de mergulho e balneários para cem crianças. O St. George's Echo recordava constantemente aos seus leitores a recolha de fundos mas, ao fim de praticamente um ano, quase toda a gente que podia dar alguma coisa já o fizera. Os donativos cessaram quase totalmente, e o dinheiro resultante de leilões, rifas e chás era insignificante. Henry começou a recear ser enviado para o seu cargo seguinte muito antes de o projecto estar terminado, temendo que, quando ele saísse da ilha, Bill e a sua comis-são perderiam o interesse e o trabalho nunca mais ficaria completo. Henry e Bill visitaram o local no dia seguinte e ficaram a olhar para o buraco de cinquenta metros por vinte aberto no chão, rodeado por maquinaria pesada que estava parada há vários dias e seria em breve transferida para outro lo-cal. Vai ser preciso um milagre para angariar fundos suficientes para terminar o projecto, a não ser que o Governo mantenha finalmente a sua palavra - comentou o primeiro-secretário. E o facto de a kora se ter mantido tão estável durante os últimos seis meses não nos ajudou nada - acrescentou Bill. Henry começou a desesperar. Na reunião matinal com o alto comissário na segunda-feira seguinte, Sir David disse a Henry que tinha boas notícias. Não me diga. O Governo de Sua Majestade cumpriu finalmente a sua promessa... Não, não é nada assim tão surpreendente - disse o alto comissário com uma gargalhada. - Mas tu estás na lista de promoções para o próximo ano e vais ter o teu próprio Alto Comissariado - fez uma pausa. - Segundo me dizem, há um ou dois lugares, por isso podes começar a rezar. E, a propósito, quando eu e a Carol partirmos ama- nhã para Inglaterra para as nossas férias anuais, tenta manter Aranga fora das primeiras páginas dos jornais. Isto é, se quiseres ir para as Bermudas em vez das ilhas As- censão. Henry voltou para o seu gabinete e começou a passar os olhos pelo correio com a secretária. Na pilha "Urgente, requer medidas" estava um convite para acompanhar o general Olangi ao local do seu nascimento. Este era um ritual anual que o presidente levava a cabo para demons-trar ao seu povo que não se esquecia das suas raízes. Normalmente, o alto comissário acompanhava-o, mas como desta vez ele estaria em Inglaterra nessa altura, o primeiro-secretário deveria substituí-lo. Henry perguntou a si próprio se Sir David teria planeado as coisas deste modo. Da pilha "Para Decisão", Henry tinha de decidir entre acompanhar um grupo de empresários numa digressão pela ilha, cujo objectivo era tomar conhecimento da situação da produção de bananas, ou fazer um discurso na Associação Política de St. George sobre o futuro do euro. Colocou um V na carta dos empresários e escreveu uma nota sugerindo à Associação Política que o tesoureiro estava mais bem colo-cado para falar sobre o euro. Passou seguidamente à pilha "Ver e cesto dos papéis". Uma carta de Mrs. Davidson a acompanhar um donativo de vinte cinco kora para o fundo da piscina; um convite para a quermesse da igreja na sexta-feira; e um lembrete de que Bill fazia cinquenta anos no sábado. Mais alguma coisa? - perguntou Henry. Apenas uma nota do gabinete do alto comissário com uma sugestão para o seu passeio até às colinas com o presidente: leve uma grade de água fresca, comprimidos para a malária e um telemóvel. Caso contrário, poderá ficar desidratado, ter febre e estar incontactável o tempo todo. Henry riu-se. Sim, sim e sim - disse ele, ao mesmo tempo que o telefone em cima da sua secretária começava a tocar. Era Bill a avisá-lo de que o Banco já não podia pagar mais cheques da Conta da Piscina, pois há mais de um mês que não havia depósitos substanciais. Não preciso que me lembres - disse Henry, olhando para o cheque de vinte cinco kora de Mrs. Davidson. Os empreiteiros abandonaram o local, pois não po- demos efectuar o pagamento da fase seguinte. Pior ainda, o vosso pagamento trimestral de um bilião e setenta e cinco milhões de libras não produzirá quaisquer excedentes en- quanto o presidente parecer tão saudável. Parabéns pelos cinquenta anos de sábado, Bill - disse Henry. Não me faças lembrar - respondeu o gerente. - Mas, já que falas nisso, espero que possas vir à noite cele- brar comigo e com a Sue. Estarei lá - disse Henry. - Nada me irá impedir de ir. Nessa noite, Henry começou a tomar os comprimidos para a malária antes de se deitar. Na quinta-feira, foi bus-car uma grade de água fresca ao supermercado local. Na sexta-feira de manhã, a sua secretária entregou-lhe um telemóvel antes de ele sair. Ela até verificou se ele sabia utilizá-lo. Às nove horas, depois de ter prometido à secretária que lhe telefonaria assim que chegassem à aldeia do general Olangi, Henry saiu do gabinete e conduziu o seu Mini até ao Quartel Victoria. Estacionou o carro e foi acompanhado a uma limusina com a bandeira da Grã-Bretanha que o aguardava perto do fim de uma fila de limusinas. Às 9:30, o presidente emergiu do palácio e dirigiu-se ao Rolls-Royce colocado à frente da fila. Henry não pôde deixar de pensar que o general estava com melhor aspecto do que nunca. Quando a fila de carros saiu do quartel, uma guarda de honra colocou-se em sentido e apresentou armas. Atraves-saram lentamente St. George; as ruas estavam orladas por crianças que acenavam bandeiras e que não tinham ido à escola para poderem aplaudir o seu líder, que partia numa longa viagem até ao local do seu nascimento. Henry recostou-se no banco, preparado para a viagem de cinco horas pelas colinas acima, dormitando de tempos a tempos, mas acordava sempre que passavam por uma aldeia, onde o ritual das crianças a aplaudir era encenado perante o presidente. Ao meio-dia, os automóveis pararam numa pequena aldeia nas colinas, onde os habitantes locais tinham pre-parado o almoço para o seu convidado. Uma hora depois, seguiram viagem. Henry pensou que era provável que os habitantes das tribos locais tivessem sacrificado a melhor parte dos víveres que tinham armazenado para o Inverno para encher a barriga das dezenas de soldados e oficiais que estavam a acompanhar o presidente na sua peregri-nação. Quando partiram outra vez, Henry adormeceu e come-çou a sonhar com as Bermudas onde, estava confiante, não haveria necessidade de construir uma piscina. Acordou sobressaltado. Pensou que ouvira um tiro. Te-ria sido em sonhos? Abriu os olhos e viu o seu motorista saltar do carro e correr para a densa floresta. Henry abriu calmamente a porta de trás, saiu da limusina e, quando viu uma agitação à sua frente, decidiu ir investigar. Andara apenas alguns passos quando viu o corpulento presidente caído, imóvel, na berma da estrada, no meio de uma poça de sangue, rodeado por soldados. Estes voltaram-se subi-tamente e, quando viram o representante do alto comissá-rio, ergueram as armas. Armas ao ombro! - disse uma voz ríspida. - Ten- tem recordar-se de que não somos selvagens. - Um capi- tão do Exército elegantemente vestido deu um passo em frente e fez continência. - Lamento qualquer inconveniên- cia que lhe tenhamos causado, Sr. Primeiro-Secretário - disse ele, numa voz de quem frequentou a Academia Mili- tar de Sandhurst -, mas pode estar tranquilo que não lhe faremos mal. Henry não fez qualquer comentário e continuou a olhar para o presidente morto. Como pode ver, Mr. Pascoe, o falecido presidente foi vítima de um trágico acidente - prosseguiu o capitão. - Nós ficaremos junto dele até ele ser sepultado com todas as honras na aldeia em que nasceu. Tenho a certeza de que era isso que ele gostaria. Henry olhou para o corpo deitado e teve as suas dúvi-das. Eu sugeria, Mr. Pascoe, que regressasse imediata- mente à capital e informasse os seus superiores sobre o que aconteceu. Henry ficou calado. Poderá também dizer-lhes que o novo presidente é o coronel Narango. Henry continuou sem emitir qualquer opinião. Ele sa-bia que o seu dever era enviar uma mensagem ao Ministé-rio dos Negócios Estrangeiros o mais depressa possível. Acenou a cabeça na direcção do capitão e começou a diri-gir-se lentamente ao seu automóvel, agora sem motorista. Sentou-se ao volante, sentindo-se aliviado ao ver que as chaves tinham ficado na ignição. Ligou o motor, fez in-versão de marcha e iniciou a longa viagem pela estrada sinuosa até à capital. Só chegaria a St. George à noite. Depois de ter feito alguns quilómetros e de ter a certeza de que não estava a ser seguido, parou o carro na berma da estrada, pegou no telemóvel e ligou para o seu gabinete. A secretária atendeu. Daqui fala o Henry. Oh, ainda bem que telefonou - disse Shirley. - Acon- teceu muita coisa esta tarde. Mas, em primeiro lugar, Mrs. Da- vidson acabou de telefonar a dizer que parece que a quer- messe da igreja vai angariar cerca de duzentos kora, e ela perguntou se pode passar por lá no caminho de regresso para lhe darem o cheque. E, a propósito - acrescentou Shirley antes de Henry conseguir dizer alguma coisa -, já soubemos da notícia. Sim, foi por isso que eu telefonei - disse Henry. - Temos de contactar imediatamente com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Já contactei - disse Shirley. Que é que lhes disse? Que o senhor estava com o presidente, em missão oficial, e que entraria em contacto com eles assim que estivesse de volta, Sr. Governador. Governador? - disse Henry. Sim, já é oficial. Supus que era por isso que estava a telefonar. A sua nomeação para governador das Bermudas. Parabéns! Obrigado - disse Henry num tom casual. - Mais alguma notícia? Não, não aconteceu mais nada. Tem sido uma tarde de sexta-feira típica, tranquila. Na realidade, eu estava a pensar se poderia ir um pouco mais cedo para casa. Prometi ir ajudar a Sue nos preparativos para a festa de anos do marido. Sim, por que não - disse Henry, tentando permanecer calmo. - E diga a Mrs. Davidson que eu farei todo o possível por passar na quermesse. Duzentos kora farão toda a diferença. A propósito - perguntou Shirley -, como está o presidente? Está prestes a participar numa cerimónia que fará estremecer a terra - respondeu -, por isso é melhor eu ir. Henry tocou no botão vermelho, depois marcou imediatamente outro número. Fala Bill Paterson. Bill, daqui é Henry. Já trocaste o nosso cheque trimestral? Já. Fi-lo há cerca de uma hora. Obtive a melhor taxa que me foi possível, mas, infelizmente, a kora fica sempre mais forte quando o presidente faz a sua visita oficial ao local onde nasceu. Henry evitou acrescentar "E morreu", e disse simples-mente: Quero tudo convertido, de novo, em libras. Aconselho-te a não fazeres isso - disse Bill. - A kora ficou ainda mais forte na última hora. E, em todo o caso, isso teria de ser aprovado pelo alto comissário. O alto comissário está em Dorset, a passar férias. Na sua ausência, o diplomata que ficou a dirigir o Comissa- riado sou eu. Isso poderá bem ser - disse Bill -, mas, mesmo assim, eu teria de fazer um relatório ao alto comissário para ele aprovar quando regressar. Não esperaria outra coisa de ti, Bill - disse Henry. Tens a certeza de que sabes o que estás a fazer, Henry? Eu sei exactamente o que estou a fazer - foi a resposta imediata. - E, já agora, também quero que os kora que temos no Fundo de Contigência sejam convertidos em libras. Não sei bem... - começou Bill a dizer. Mr. Paterson, eu não preciso de lhe recordar que há outros Bancos em St. George que há anos que manifestam o seu desejo de ter a conta do Governo britânico. Henry levou mais quatro horas para chegar à capital. Uma vez que todas as ruas de St. George estavam desertas, ele partiu do princípio de que a notícia da morte do presidente fora anunciada e que fora imposto um recolher obrigatório. Teve de parar em vários postos de controlo, satisfeito por ter a bandeira britânica a esvoaçar no capot, e foi-lhe ordenado que fosse imediatamente para casa. Mesmo assim, isso significava que não teria de passar pela quermesse de Mrs. Davidson para ir buscar o cheque de duzentas kora. Assim que chegou a casa, Henry ligou a televisão e viu o presidente Narango em farda de gala, a dirigir-se ao povo. Podem ter a certeza, meus amigos - estava ele a dizer -, que não têm nada a temer. Tenciono levantar o recolher obrigatório assim que for possível. Mas, até essa altura, por favor, não saiam para a rua, pois os meus sol-dados receberam ordens para atirar. Henry abriu uma lata de feijão com tomate e não saiu de casa durante todo o fim-de-semana. Teve pena de não ir à festa de anos de Bill, mas achou que, bem vistas as coisas, era provavelmente melhor que assim fosse. Sua Alteza Real, a princesa Ana, inaugurou a nova pis-cina de St. George no seu caminho de regresso dos jogos da Commonwealth, realizados em Kuala Lumpur. No dis-curso que fez à beira da piscina, ela disse que ficara muito impressionada com a enorme prancha de saltos e com os modernos balneários. De seguida, referiu o trabalho do Clube dos Rotários e deu-lhes os parabéns pela liderança que tinham manifes-tado ao longo da campanha, em particular o seu presidente, Mr. Bill Paterson que, no dia do aniversário da rainha, recebera uma condecoração como reconhecimento dos seus serviços. Infelizmente, Henry Pascoe não esteve presente na cerimónia, pois ocupara recentemente o seu cargo como alto comissário nas ilhas Ascensão, um grupo de ilhas que não fica no caminho para lado nenhum. "A MULHER RECLINADA" Talvez queiram saber por que é que esta escultura tem o número "13" - disse o conservador, com um sorriso de satisfação a assomar-lhe o rosto. Eu estava ao fundo do grupo, e parti do princípio de que estávamos prestes a ouvir uma palestra sobre as provas do artista. Henry Moore - prosseguiu o conservador, numa voz que tornava claro que ele julgava estar a dirigir-se a uma cambada de turistas ignorantes que confundiam Cubismo com cubos de açúcar e que obviamente não tinham nada melhor para fazer num feriado do que visitar um solar do National Trust - produzia normalmente as suas obras em edições de doze. Para sermos justos para com o grande homem, ele morreu antes de o único molde de um décimo terceiro exemplar de uma das suas obras-primas ter sido aprovado. Olhei para o enorme bronze de uma mulher nua que dominava a entrada de Huxley Hall. A figura magnífica, curvilínea, com o buraco característico no meio do estômago e a cabeça apoiada numa mão em concha, olhava arrogan-temente para um milhão de visitantes por ano. Ela era, de acordo com o catálogo, uma obra clássica de Henry Moore, datada de 1952. Continuei a olhar para a dama inescrutável, desejando inclinar-me e tocar-lhe, o que era sempre um sinal de que o artista conseguira fazer aquilo a que se propusera. Há vinte anos que Huxley Hall - prosseguiu o conservador - é administrado pelo National Trust. Esta escultura, A Mulher Reclinada, é considerada pelos estudiosos um dos melhores exemplos da obra de Moore, executada quando ele se encontrava no auge do seu talento. A sexta edição da escultura foi adquirida pelo quinto duque, um homem de Yorkshire, tal como Moore, pela principesca quantia de mil libras. Quando o Solar passou para o sexto duque, este descobriu que não tinha possibilidades de pôr a obra-prima no seguro, porque não tinha simplesmente dinheiro para pagar o prémio. "O sétimo duque foi mais longe; ele nem sequer tinha dinheiro para a manutenção do Solar nem das terras à sua volta. Pouco antes da sua morte, evitou deixar ao oitavo duque o fardo dos direitos sucessórios, entregando o Solar, o seu conteúdo e os terrenos com mil acres ao National Trust. Os franceses nunca compreenderam que, se se qui-ser matar a aristocracia, o imposto sucessório é muito mais eficaz do que as revoluções. - O conservador riu-se da sua própria piada e, delicadamente, algumas pessoas que estavam na frente do grupo riram-se também. "Agora, voltando ao mistério da edição de treze exemplares - continuou o zelador, pousando uma mão no enorme traseiro de A Mulher Reclinada. - Para o fazer, tenho de explicar primeiro um dos problemas que o National Trust enfrenta sempre que toma conta da casa de outra pessoa. O Trust é uma instituição de beneficência registada. Actualmente, ele possui e administra mais de duzentos e cinquenta edifícios históricos e jardins nas ilhas britânicas, bem como mais de seiscentos mil acres de terrenos e setecentos quilómetros de linha costeira. Todas as propriedades têm de cumprir o critério do Trust de ter "interesse histórico ou beleza natural". Ao assumir a responsabilidade pela manutenção das propriedades, temos de proteger e colocar no seguro os edifícios e o seu conteúdo, sem levar o Trust à falência. No caso de Huxley Hall, nós instalámos o mais avançado sistema de segurança existente no mercado, apoiado por guardas que trabalham vinte e quatro horas. Mesmo assim, é impossível proteger todos os nossos nu-merosos tesouros durante vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano. "Quando algo desaparece, naturalmente que informamos imediatamente a Polícia. Em noventa por cento dos casos, a peça desaparecida é-nos devolvida ao fim de poucos dias. - O conservador fez uma pausa, confiante de que alguém iria perguntar porquê. Porquê? - perguntou uma mulher americana, vestida com calções compridos de xadrez, que estava à frente no nosso grupo. Uma boa pergunta, minha senhora - disse o conservador com um ar de condescendência. - Simplesmente, porque a maioria dos pequenos criminosos verifica que é impossível desfazer-se de mercadoria deste tipo, a não ser que tenha sido roubada por encomenda. Roubada por encomenda? - perguntou a americana, aproveitando a deixa. Sim, minha senhora - disse o conservador, satisfeito por ter a oportunidade de explicar. - Existem bandos de criminosos a operar em todo o mundo que roubam obras- -primas para clientes que não se importam que mais ninguém as veja, desde que as possam admirar em privado. Isso deve sair muito caro - sugeriu a americana. Creio que o custo actual é de cerca de um quinto do valor de mercado da obra - confirmou o conservador. Isto pareceu finalmente calá-la. Mas isso não explica o motivo por que tantas preciosidades são devolvidas tão depressa - disse uma voz no meio da multidão. Eu ia já falar sobre isso - disse o conservador num tom um tanto ríspido. - Se a peça não tiver sido roubada por encomenda, até mesmo o receptador mais inexperiente evitará tocar-lhe. E, antes que a americana pudesse perguntar porquê, ele acrescentou rapidamente: Porque os principais leiloeiros, negociantes de arte e galerias, terão uma descrição pormenorizada da peça desaparecida, poucas horas depois de ela ter sido roubada. Isso deixa o ladrão na posse de algo que ninguém está dis- posto a transaccionar porque, se a peça fosse posta à venda, a Polícia bater-lhes-ia à porta ao fim de poucas horas. Muitas das nossas obras-primas roubadas são, de facto, devol- vidas ao fim de alguns dias ou abandonadas num local onde serão facilmente encontradas. Nos últimos dez anos, isto já aconteceu em três ocasiões diferentes só à Galeria de Arte de Dulwich e, o que é mais surpreendente, é que muito poucas preciosidades estão danificadas quando são devolvidas. Desta vez, ouviram-se vários "Porquês" vindos do pequeno grupo. Ao que parece - disse o conservador, em resposta -, o público pode estar disposto a perdoar um roubo ousado, mas não perdoa os danos causados a uma peça de arte nacional. Devo acrescentar que a possibilidade de um criminoso ser levado a tribunal se as peças roubadas forem devolvidas intactas é também muito reduzida. "Mas continuando com a minha história da edição de treze exemplares - prosseguiu ele. - No dia 6 de Setembro de 1997, o dia do funeral de Diana, a princesa de Gales, no momento em que o caixão entrava na Abadia de Westminster, uma camioneta estacionou junto da entrada principal de Huxley Hall. Seis homens vestidos com fatos-macacos do National Trust saíram da camioneta e disseram ao guarda de serviço que tinham ordens para levar A Mulher Reclinada para Londres, para uma exposição de Henry Moore, que deveria ter brevemente lugar em Hyde Park. "O guarda fora informado que, devido ao funeral, o transporte fora adiado para a semana seguinte. Mas como todos os papéis pareciam estar em ordem e como ele estava com pressa de voltar para junto da televisão, permitiu que os seis homens levassem a escultura. "Depois do funeral, Huxley Hall esteve fechado durante dois dias, pelo que ninguém pensou mais no caso até que, na terça-feira seguinte, apareceu uma segunda camioneta com as mesmas instruções para levar A Mulher Reclinada para Londres, para a exposição de Moore em Hyde Park. Mais uma vez, os papéis estavam em ordem e, durante algum tempo, os guardas partiram do princípio de que se tratava simplesmente de um erro burocrático. Uma chamada telefónica para os organizadores da exposição de Hyde Park desenganou-os. Depressa se tornou óbvio que a obra-prima fora roubada por um bando de criminosos profissionais. A Scotland Yard foi imediatamente informada. "A Scotland Yard - prosseguiu o conservador - tem um departamento inteiro dedicado aos roubos de obras de arte, com os dados sobre muitos milhares de peças listadas no computador. Momentos depois de serem informados do crime, eles conseguem alertar os principais leiloeiros e negociantes de arte do país. O conservador fez uma pausa e colocou a mão de novo no traseiro de bronze da mulher. Uma peça bastante grande para transportar e en-tregar, poderão pensar, muito embora as estradas estivessem invulgarmente vazias no dia do roubo, e a atenção do público estivesse concentrada noutro local. "Durante semanas, não houve notícias sobre A Mulher Reclinada e a Scotland Yard começou a recear que estivessem a lidar com um roubo "por encomenda" bem sucedido. Mas, alguns meses mais tarde, quando um ladrão de meia tigela chamado Sam Jackson foi preso ao tentar roubar da Sala Royal Robing um pequeno quadro a óleo da segunda duquesa, a Polícia obteve a sua primeira pista. Quando foi levado para a esquadra para ser interrogado, o suspeito propôs um acordo ao agente que o prendeu. "- E o que é que tu podes oferecer, Jackson? - pergun-tou o sargento num tom de incredulidade. "- Posso levar-vos à Mulher Reclinada - disse Jack-son -, se, em troca, só me acusarem de roubo. - O que lhe daria a possibilidade de se safar com uma pena suspensa. "- Se recuperarmos A Mulher Reclinada - disse-lhe o sargento -, fazemos um acordo. - Uma vez que o retrato da segunda duquesa era uma cópia medíocre que teria apenas rendido algumas centenas de libras, foi feito um acordo. Jackson foi metido dentro de um carro e conduziu três agentes da Polícia através de fronteira de Yorkshire e até Lancashire, onde se embrenharam cada vez mais no campo até chegarem a uma casa rural deserta. Daí, Jackson conduziu os agentes a pé através de vários campos, tendo chegado a um vale onde encontraram um barracão escon- dido atrás de um arvoredo. Os polícias forçaram a fechadura e abriram a porta, tendo descoberto que era uma fundição abandonada. No chão, havia pedaços de canos de chumbo, provavelmente roubados dos telhados de igrejas ou de casas antigas da zona. "Os polícias revistaram o edifício, mas não encontraram vestígios de A Mulher Reclinada. Estavam prestes a acusar Jackson de fazer a Polícia perder tempo quando o viram junto de um enorme pedaço de bronze. Eu não disse que a iam recuperar no seu estado ori- ginal - disse Jackson. - Só prometi que vos levaria até ela. O conservador esperou que os mais lentos juntassem os seus "huns" e "Ahs", ou simplesmente acenassem a cabeça em sinal de compreensão. Os criminosos tinham tido claramente dificuldade em se desfazer da obra-prima e, uma vez que não queriam ser presos na posse de bens roubados no valor de um milhão de libras, tinham simplesmente derretido A Mulher Reclinada. Jackson negou saber quem era responsável, mas admitiu que alguém tentara vender-lhe um pedaço de bronze por mil libras, ironicamente a quantia exacta que o quinto duque pagara pela obra-prima original. "Algumas semanas depois, foi devolvido ao National Trust um enorme pedaço de bronze. Para nosso desânimo, a companhia de seguros recusou-se a pagar um tostão, afirmando que o bronze roubado fora recuperado. Os advogados do Trust estudaram cuidadosamente a apólice e descobriram que tinham o direito de reclamar o custo da restauração das peças danificadas, devolvendo-as ao estado original. A companhia de seguros cedeu e concordou em pagar todos os custos da restauração. "O nosso contacto seguinte foi com a Fundação Henry Moore, para lhes perguntar se nos poderiam ajudar. Eles examinaram o enorme pedaço de bronze e, depois de o terem pesado e sujeitos a ensaios químicos, concordaram com o laboratório da Polícia de que poderia bem ser o metal em que fora fundida a escultura original comprada pelo quinto duque em 1958. "Depois de muita deliberação, a Fundação concordou em fazer uma excepção sem precedentes à prática habitual de Henry Moore, e fazer um décimo terceiro exemplar de A Mulher Reclinada, desde que o Trust estivesse disposto a pagar os custos da fundição. Naturalmente que nós concordámos com este pedido e acabámos com uma factura de alguns milhares de libras, que estavam cobertos pela nossa apólice de seguros. "No entanto, a Fundação, antes de concordar em criar este singular décimo terceiro exemplar, impôs duas condições. Em primeiro lugar, insistiu para que nunca permi-tíssemos que a estátua fosse vendida, quer pública, quer particularmente. E, em segundo lugar, se o sexto exemplar que foi roubado alguma vez reaparecesse nalgum lugar do mundo, deveríamos devolver imediatamente o décimo ter-ceiro exemplar à Fundação para ele poder ser derretido. "O Trust concordou com estas condições, e é por isso que os senhores podem apreciar esta obra-prima que vêem hoje à vossa frente. Ouviu-se uma salva de palmas e o conservador fez uma pequena vénia. Recordei-me desta história alguns anos depois, quando assisti a um leilão de arte moderna na Sotheby Parke--Bernet em Nova Iorque, quando o terceiro exemplar de A Mulher Reclinada foi leiloado e vendido por um milhão e seiscentas mil libras. Garantiram-me que a Scotland Yard encerrou o processo do sexto exemplar desaparecido, pois considerara o crime resolvido. No entanto, o inspector que estivera encarregue do caso admitiu que, se um criminoso empreendedor conseguisse convencer uma fundição a fazer outro exemplar de A Mulher Reclinada e a marcá-lo 6/12, ele poderia então vendê-lo a um cliente por duzentas e cinquenta mil libras. De facto, ninguém pode ter a certeza de quantos exemplares de A Mulher Reclinada se encontram actualmente em mãos de particulares. A GALINHA DA VIZINHA É SEMPRE MELHOR... O vagabundo acordou sobressaltado. Era sempre a mesma coisa depois de dormir até tarde aos fins-de-semana. Na segunda-feira, depois do nascer do Sol, queriam que ele saísse dali. Ele dormia debaixo da arcada do Critchley's Bank há mais anos do que a maior parte dos empregados trabalhava no edifício. Bill aparecia todas as noites por volta das sete horas para ocupar o seu lugar. Não que qualquer outra pessoa se atrevesse a ocupá-lo ao fim de todos aqueles anos. Ao longo da última década, vira-os ir e vir, alguns com coração de ouro, alguns de prata e alguns de bronze. A maior parte dos que tinham um coração de bronze estava apenas interessada noutro tipo de ouro. Ele sabia distingui-los e não apenas pela forma como o tratavam. Olhou para o relógio por cima da porta: dez para as seis. O jovem Kevin apareceria à porta a todo o momento e pedir-lhe-ia que tivesse a amabilidade de sair dali. Um bom rapaz, o Kevin, dava-lhe muitas vezes algumas moedas, o que deveria representar um sacrifício, ainda mais com o segundo bebé a caminho. Certamente que não seria tratado com a mesma consideração pela maioria dos mais bem vestidos que chegavam mais tarde. Bill permitiu-se a si próprio um momento para sonhar. Gostaria de ter o emprego de Kevin, vestido com aquele grosso casaco quente e chapéu de pala. Continuaria na rua, mas com um emprego verdadeiro e um salário regular. Algumas pessoas têm muita sorte. A única coisa que Kevin tinha de fazer era dizer: Bom dia, sir. Espero que tenha tido um bom fim-de- -semana. - Nem sequer tinha de abrir a porta, já que esta era automática. Mas Bill não se queixava. Não tinha sido um fim-de-semana muito mau. Não chovera e, hoje em dia, a Polícia nunca tentava tirá-lo dali; não desde que, muitos anos atrás, ele vira o homem do IRA a estacionar a carrinha à porta do Banco. Isso devera-se ao seu treino no Exército. Ele conseguira arranjar um exemplar do Financial Ti-mes de sexta-feira e do Daily Mail de sábado. O Financial Times recordou-lhe que ele deveria ter investido em em-presas de alta tecnologia e não em fabricantes de roupa, porque as acções destes estavam a baixar rapidamente na sequência da descida nas vendas. Ele era provavelmente a única pessoa ligada ao Banco que lia o Financial Times de uma ponta à outra e certamente a única que depois o usava como cobertor. Tirou o Mail de um caixote do lixo das traseiras do edifício, era espantoso o que alguns yuppies deitavam para o lixo. Tinha encontrado todo o tipo de coisas, desde um relógio Rolex a uma embalagem de preservativos. Não que qualquer desses objectos lhe servisse para alguma coisa. Havia relógios suficientes na City para que não precisasse de outro e, quanto aos preservativos, desde que saíra do Exército que não tinham qualquer utilidade para ele. Vendera o relógio e dera os preservativos a Vince, que dormia no Banco da América. Vince estava sempre a gabar-se das suas últimas conquistas o que, dadas as circunstâncias, parecia pouco provável. Bill decidira desmascará-lo e dera-lhe os preservativos como prenda de Natal. As luzes estava a ser acesas em todo o edifício e, quando olhou através da janela de vidro laminado, Bill viu Kevin vestir o casaco. Eram horas de pegar nas suas coisas e sair dali: não queria arranjar problemas a Kevin, pois tinha esperança de que o rapaz tivesse em breve a promoção que merecia. Bill enrolou o seu saco-cama, um presente do presidente do Conselho de Administração, que não esperara pelo Natal para lho dar. Não, esse não era o estilo de Sir William. Um cavalheiro nato, com um olho para as raparigas, e quem o censuraria por isso? Bill vira algumas subir no elevador à noite e duvidava que elas lhe tivessem ido pedir conselhos sobre os seus PPRs. Talvez devesse ter-lhe dado os preservativos a ele. Dobrou os seus dois cobertores, um que comprara com algum do dinheiro da venda do relógio, o outro que herdara quando Irish morrera. Tinha saudades de Irish. Meio pão das traseiras do City Club, depois de ter aconselhado o gerente a tirar o dinheiro dos fabricantes da roupa e a investir em alta tecnologia, mas ele limitara-se a dar uma gargalhada. Enfiou os seus parcos bens no saco, outro objecto apanhado do lixo, desta vez nas traseiras do Old Bailey. Finalmente, como todos os bons homens da City, tinha de verificar o dinheiro que possuía, é sempre importante ter dinheiro quando há mais vendedores do que compra-dores. Procurou no bolso (naquele que não estava roto) e encontrou uma libra, duas moedas de dez pence e um penny. Graças aos impostos do Governo, hoje não poderia comprar cigarros, quanto mais a sua imperial do costume. A não ser, claro, que Maisie estivesse atrás do bar O Ceifeiro. Ele bem gostaria de a ceifar, pensou, embora tivesse idade suficiente para ser pai dela. Por toda a cidade, os relógios estavam a começar a dar as seis horas, por isso era altura de se pôr a caminho. Atou os atacadores dos ténis, outra coisa rejeitada pelosyuppies, eram Reeboks, e hoje em dia os yuppies usavam Nikes. Um último olhar enquanto Kevin saía para o passeio. Quando Bill regressasse à noite, às sete horas, mais fiável do que qualquer guarda de segurança, Kevin estaria de regresso à sua casa em Peckham, junto da mulher, Lucy, que estava grávida. Um homem com sorte. Kevin viu Bill afastar-se, a arrastar os pés, desaparecendo no meio dos que começavam a trabalhar muito cedo. Bill era um bom sujeito. Ele nunca causaria embaraços a Kevin, nem queria ser responsável por ele perder o emprego. Depois viu um penny debaixo do arco. Apanhou-o e sorriu. Substituí-lo-ia por uma moeda de libra nessa noite. Afinal de contas, não era isso o que se esperava que os Bancos fizessem com o dinheiro? Kevin voltou para a porta principal exactamente quando os empregados da limpeza estavam a sair. Eles chegavam às três da manhã e tinham de estar fora do edifício às seis. Ao fim de quatro anos, ele sabia o nome de todos eles e eles sorriam-lhe sempre. Kevin tinha de estar no passeio às seis em ponto, de sapatos engraxados, camisa branca lavada, gravata com o emblema do Banco e o regulamentar casaco comprido azul com botões amarelos, grosso no Inverno, leve no Verão. Os Bancos adoram regras e normas. Ele devia fazer continência a todos os membros do .Conselho de Administração quando estes entravam no edifício, mas ele acrescentava mais alguns que poderiam ir em breve para o Conselho de Administração. Entre as seis e as sete chegavam os yuppies com o seu "Olá, Al. Aposto que hoje faço um milhão". Das sete às oito, com um passo ligeiramente mais lento, vinha a gestão intermédia, que já perdera alguma energia depois de ter resolvido os problemas dos filhos pequenos, das mensalidades da escola, do carro novo ou da mulher nova: "Bom dia", sem se darem ao trabalho de o olhar nos olhos. Entre as oito e as nove, era o passo grave da gestão sénior, depois de terem estacionado os seus automóveis no parque de estacionamento, em lugares reservados. Embora fossem a jogos de futebol como todos nós, pensou Kevin, tinham lugares no camarote dos directores. A maior parte deles já chegara à conclusão de que nunca teria assento no Conselho de Administração e acomodara-se a uma vida mais fácil. Entre os últimos a chegar estaria o director executivo do Banco, Phillip Alexander, a ler o Financial Times sentado no banco de trás de um Jaguar, conduzido por um motorista. Kevin devia correr para o passeio para abrir a porta do carro para Mr. Alexander, que depois passava por ele sem sequer lhe dirigir um olhar, quanto mais um obrigado. Finalmente, Sir William Selwyn, o presidente do Conselho de Administração do Banco, sairia do seu Rolls-Royce, após a viagem que começara algures em Surrey. Sir William encontrava sempre tempo para lhe falar: Bom dia, Kevin. Como vai a tua mulher? Bem, obrigado, sir. Quando o bebé nascer, não te esqueças de me comu- nicar. Kevin sorriu quando os yuppies começaram a aparecer; as portas automáticas abriam-se à medida que eles passavam apressadamente. Desde que tinham instalado aquela geringonça, deixara de ter de puxar portas pesadas. Ficou surpreendido por ter mantido o emprego, pelo menos, essa era a opinião de Mike Haskins, o seu superior imediato. Kevin, olhou para Haskins, que estava atrás da secretária da recepção. Mike era um felizardo. No interior do Banco, no quentinho, chávenas de chá servidas regular-mente, o benefício ocasional, já para não falar do aumento de salário. Esse era o emprego que Kevin queria, o degrau seguinte na escada do Banco. Ele merecia-o. E já tinha ideias para que o serviço da recepção fosse mais eficiente. Deu meia volta no momento em que Haskins ergueu o olhar, lembrando a si próprio que só faltavam cinco meses, duas semanas e quatro dias para que o seu patrão se reformasse. Então, Kevin ocuparia o seu cargo, desde que não lhe passassem ao lado e oferecessem o emprego ao filho de Haskins. Ronnie Haskins começara a aparecer regularmente no Banco desde que perdera o emprego na fábrica de cerveja. Fazia pequenos serviços, transportando embrulhos, entregando cartas, chamando táxis e até mesmo indo buscar sanduíches ao pronto-a-comer local para aqueles que não queriam ou não podiam arriscar-se a deixar as suas secretárias. Kevin não era estúpido, ele sabia exactamente o que Haskins pretendia. Tencionava certificar-se de que Ronnie ficaria com o emprego a que Kevin tinha direito e Kevin continuaria lá fora, no passeio. Não era justo. Ele servira o Banco conscienciosamente, nunca faltando ao trabalho e ficando lá fora quer fizesse sol, quer chovesse. Bom dia, Kevin - disse Chris Parnell, passando por ele quase a correr. Tinha um ar ansioso. "Ele devia ter os meus problemas", pensou Kevin, olhando em volta e vendo Haskins mexer a primeira chávena de chá da manhã. Aquele é Chris Parnell - disse Haskins a Ronnie antes de beber o chá. - Outra vez atrasado, vai deitar as culpas para cima dos comboios, como sempre faz. Há anos que me deviam ter dado o cargo dele, e tê-lo-iam feito se eu tivesse sido sargento no Pay Corps e não cabo no Green- jackets. Mas a gerência não pareceu apreciar o que eu tinha para oferecer. Ronnie não fez qualquer comentário; afinal, ele ouvira o pai expressar essa opinião todas as manhãs, durante as últimas seis semanas. Convidei-o uma vez para uma confraternização do meu regimento, mas ele disse que estava muito ocupado. Snob duma figa. Mas tem cuidado com ele, porque ele terá uma palavra a dizer sobre quem irá ficar com o meu posto de trabalho. Bom dia, Mr. Parker - disse Haskins, entregando um exemplar do Guardian ao homem que chegou a seguir. O jornal que um homem lê diz-nos muita coisa sobre ele - disse Haskins a Ronnie quando Roger Parker desapareceu no interior do elevador. - Vê, por exemplo, o jo- vem Kevin lá fora. Ele lê o Sun, e não precisas de saber mais nada sobre ele. É por isso que eu não ficaria surpreendido se ele não conseguisse obter a promoção que pretende - piscou o olho ao filho. - Eu, por outro lado, leio o Ex- press, sempre o li, sempre o hei-de ler. Bom dia, Mr. Tudor-Jones - disse Haskins, entregando um exemplar do Telegraph ao director administrativo. Não disse mais nada até as portas do elevador se terem fechado. Uma altura importante para Mr. Tudor-Jones - in- formou Haskins o filho. - Se não for promovido ao Conselho de Administração este ano, acho que vai ficar a marcar passo até se reformar. Às vezes, olho para estes fulanos e penso que conseguia fazer o trabalho deles. Afinal de contas, eu não tive culpa de o meu velho ser pedreiro e de eu não ter tido a possibilidade de frequentar o liceu. Caso contrário, eu poderia estar hoje no sexto ou sétimo andar, com um gabinete e uma secretária. Bom dia, Mr. Alexander - disse Haskins quando o director executivo do Banco passou por ele, sem retribuir o seu cumprimento. Não preciso de lhe dar o jornal. Miss Franklyn, a secretária dele, vem buscá-lo antes de ele chegar. Agora ele quer ser presidente do Conselho de Administração. Se conse-guir o cargo, vai haver com certeza muitas mudanças por aqui - olhou para o filho. - Tu tens estado a registar a entrada de cada um deles, tal como eu te ensinei? Tenho sim, papá. Mr. Parnell, 7:47; Mr. Parker, 8:09; Mr. Tudor-Jones, 8:11; Mr. Alexander, 8:23. Muito bem, meu filho. Estás a aprender depressa. - Encheu outra chávena de chá e bebeu um golo. Estava demasiado quente, por isso continuou a conversar. - A nossa tarefa seguinte é tratar do correio, que, tal como Mr. Parnell, está atrasado. Por isso, eu sugiro... - Haskins escondeu rapidamente a chávena de chá por debaixo do balcão e atravessou o vestíbulo a correr. Carregou no botão "up" e rezou para que um dos elevadores voltasse para o rés-do-chão antes de o presidente do Conselho de Administração entrar no edifício. As portas abriram-se poucos segundos antes. Bom dia, Sir William. Espero que tenha tido um fim- -de-semana agradável. Tive, sim, obrigado, Haskins - disse o presidente do Conselho de Administração, enquanto as portas se fechavam. Haskins bloqueou o caminho para que ninguém mais pudesse entrar no elevador e Sir William tivesse uma viagem sem interrupções até ao décimo quarto andar. Haskins voltou para o balcão da recepção e encontrou o filho a separar o correio matinal. O presidente do Conselho de Administração disse- -me uma vez que o elevador leva trinta e oito segundos a chegar ao último andar, e que ele calculara que já passara uma semana da sua vida lá dentro, por isso lia sempre o artigo de fundo do Times enquanto subia e os apontamentos para a reunião seguinte enquanto descia. Se ele já passou uma semana fechado lá dentro, eu devo passar metade da minha vida - acrescentou ele pegando no chá e bebendo um golo. Estava frio. - Depois de teres separado o correio, podes levá-lo a Mr. Parnell. Distribuí-lo é tarefa dele e não minha. Ele tem uma vida bem fácil, e não há nenhum motivo para eu fazer o trabalho que lhe compete. Ronnie pegou no cesto cheio de cartas e dirigiu-se ao elevador. Saiu no segundo andar, dirigiu-se à secretária de Mr. Parnell e colocou o cesto à frente dele. Chris Parnell ergueu a vista e viu o rapaz desaparecer porta fora. Olhou para a pilha de cartas. Como sempre, não fora feita qualquer tentativa de o separar. Tinha de falar com Haskins. O homem não andava exactamente muito ocupado, e agora queria que o filho dele ocupasse o seu lugar. Não, se ele tivesse uma palavra a dizer sobre o assunto. Será que Haskins não compreendia que o seu cargo era de grande responsabilidade? Ele tinha de se certificar que o escritório funcionava como um relógio suíço. Cartas em cima da secretária certa antes das nove, verificação de quem faltava às dez horas, tratar de quaisquer avarias de equipamento minutos depois de as mesmas lhe terem sido comunicadas, organizar e dirigir todas as reuniões de pessoal; nessa altura, o segundo correio já teria chegado. Franca-mente, se ele tirasse um dia de folga, tudo pararia. Bastava ver a bagunça que estava à sua espera sempre que regressava das férias de Verão. Olhou para a carta no topo da pilha. Estava endereçada a "Mr. Roger Parker". "Rog", para ele. Há anos que lhe devia ter sido dado o cargo de Rog como chefe do Pessoal, tal como Janice, a sua mulher, lhe recordava constantemente, ele poderia desempenhá-lo com uma perna às costas. Ele não passa de um escriturário com um título mais importante. Só porque andou na escola com o tesoureiro- -chefe. - Não era justo. Janice quisera convidar Roger e a mulher para jantar, mas Chris opusera-se à ideia desde o início. Por que não? - perguntara ela. - Afinal de contas, vocês são ambos adeptos do Chelsea. É porque tens medo que ele recuse, seu snob? Verdade seja dita, Chris pensara em convidar Roger para tomar uma bebida em qualquer lado, não para jantar na sua casa em Rormford. Ele não podia explicar a Janice que, quando Roger ia ao estádio de Stamford Brid-ge, ele não ficava sentado na bancada com o pessoal mas sim nos lugares dos sócios. Depois de separar as cartas, Chris colocou-as em tabu-leiros diferentes, de acordo com os departamentos a que se destinavam. Os seus dois assistentes cobririam os primeiros dez andares, mas ele nunca permitia que eles se aproximassem dos últimos quatro. Só ele é que entrava nos gabinetes do presidente do Conselho de Administração e do director executivo. Janice nunca parava de lhe lembrar que devia manter os olhos bem abertos sempre que estivesse nos pisos dos executivos. Nunca se sabe que oportunidades se poderão oferecer - riu-se para si mesmo, pensando em Gloria do arquivo, e nas oportunidades que ela oferecia. As coisas que aquela rapariga conseguia fazer atrás de um arquivador. Essa era uma coisa que ele não queria que a mulher descobrisse. Pegou nos tabuleiros destinados aos quatro andares superiores e dirigiu-se ao elevador. Quando chegou ao décimo primeiro andar, bateu suavemente à porta antes de entrar no gabinete de Roger. O chefe do Pessoal levantou os olhos da carta que estivera a ler, com um ar de preocupação no rosto. Um bom resultado para o Chelsea no sábado, Rog, mesmo que tenha sido apenas contra o West Ham - disse Chris, colocando uma pilha de cartas no tabuleiro da correspondência de entrada do seu superior. Não obteve qual- quer resposta, pelo que saiu apressadamente do gabinete. Roger ergueu a vista quando Chris saiu. Sentiu-se cul-pado por não ter conversado com ele sobre o jogo do Chelsea, mas não queria explicar que, pela primeira vez nessa época, perdera um jogo em casa. Quem lhe dera não ter mais nada em que pensar a não ser no Chelsea. Voltou a sua atenção para a carta que estivera a ler. Era uma factura de mil e seiscentas libras, a conta do primeiro mês da clínica da mãe. Roger concordara, com relutância, que ela já não estava suficientemente bem para continuar a viver com eles em Croydon, mas não estava à espera de receber uma conta que rondaria as vinte mil libras por ano. Claro que ele fazia votos para que ela vivesse mais vinte anos, mas com Adam e Susan ainda a estudar, e uma vez que Hazel não queria voltar a trabalhar, ele precisava de mais um au-mento de salário, numa altura em que só se falava em cortes e despedimentos. Fora um fim-de-semana desastroso. No sábado começara a ler o relatório McKinsey que dizia o que o Banco teria de fazer se quisesse continuar a ser a principal instituição financeira do século xxi. O relatório sugeria que pelo menos setenta empregados teriam de participar no programa de racionalização de recursos, um eufemismo para "Estás despedido". E a quem seria atribuída a tarefa nada invejável de explicar a essas setenta pessoas o significado exacto de "racionalização de recursos"? Na última vez que tivera de despedir alguém, Roger passara noites em claro. Depois de ler o relatório, sentira-se tão deprimido que não tivera coragem de ir ver o jogo do Chelsea. Viu que teria de marcar uma reunião com Godfrey Tudor-Jones, o director administrativo do Banco, embora soubesse que Tudor-Jones iria desvincular-se do assunto e dizer-lhe: Esse não é o meu departamento, meu rapaz, são questões de pessoal. E tu és o chefe do Pessoal, por isso, suponho que é contigo, Roger. - Não era como se ele tivesse conseguido estabelecer com Tudor-Jones uma relação pessoal na qual se pudesse agora apoiar. Ele bem se esforçara ao longo dos anos, mas o director administrativo tornara muito claro que não misturava negócios com prazer, a não ser, obviamente, que se fosse membro do Conselho de Administração. Por que é que não o convidas para um jogo do Chelsea em casa? - sugerira Hazel. - Afinal de contas, pagaste muito dinheiro por esses dois passes. Eu não acho que ele esteja muito interessado em futebol - respondera-lhe Roger. - Julgo que ele será mais um adepto do râguebi. Então, convida-o para jantar no teu clube. Ele não se deu ao trabalho de explicar a Hazel que Godfrey era sócio do Carlton Club e que achava que ele não se sentiria à-vontade no Croydon Liberal Club. O golpe final veio no sábado à noite, quando o director da escola de Adam telefonara a dizer que precisava de falar urgentemente com ele sobre um assunto que não podia ser discutido pelo telefone. Fora até lá no domingo de manhã, preocupado com o que seria que não poderia ser dis-cutido pelo telefone. Ele sabia que Adam precisava de se esforçar e de estudar muito mais para conseguir entrar na universidade, mas quando o director lhe disse que Adam fora apanhado a fumar marijuana e que as regras da escola sobre essa questão específica não podiam ser mais claras, expulsão imediata e uma comunicação à Polícia no dia seguinte, Roger mal conseguia acreditar nos seus ou-vidos. Quando soube da notícia, Roger sentiu-se como se estivesse de novo no gabinete do director da sua própria escola. Durante a viagem para casa, pai e filho mal conversaram. Quando soube o motivo por que Adam voltara para casa a meio do período, Hazel desatou a chorar e ficou inconsolável. Ela teve receio de que a notícia viesse no Croydon Advertiser e que eles se vissem obrigados a mudar de casa. Naquele momento, Roger certamente que não tinha dinheiro suficiente para se mudarem, mas ele não achou que aquela fosse a altura certa para explicar a Hazel o significado da expressão "falta de fundos". Nessa manhã, durante a viagem de comboio para Londres, Roger não pôde deixar de pensar que nada daquilo teria acontecido se ele tivesse conseguido o lugar de director administrativo. Durante meses, falara-se em Godfrey pas-sar a membro do Conselho de Administração, e, quando isso finalmente acontecesse, Roger seria o candidato óbvio para o substituir. Mas era agora que ele precisava do dinheiro extra, com a mãe numa clínica e o problema de encontrar um colégio que aceitasse Adam. Ele e Hazel tinham de desistir da ideia de celebrar o vigésimo aniversário do seu casamento em Veneza. Sentado à secretária, pensou nas consequências de os seus colegas descobrirem o que acontecera a Adam. Obviamente que não iria perder o emprego, mas podia dizer adeus à promoção. Na casa de banho, ouviria os comentários maliciosos que quereriam que ele ouvisse. Bem, ele sempre foi um liberal, sabem. Por isso, francamente, isso surpreende-vos? - Ele gostaria de lhes explicar que o facto de uma pessoa ler o Guardian não significa necessariamente que ela participe em marchas contra as armas nucleares, advogue o amor livre e fume marijuana aos fins-de-semana. Voltou para a primeira página do relatório McKinley e viu que tinha de marcar uma reunião com o director ad-ministrativo o mais depressa possível. Ele sabia que seria apenas uma formalidade mas, pelo menos, teria cumprido o seu dever para com os colegas. Marcou um número interno, e a secretária de Godfrey Tudor-Jones atendeu o telefone. Gabinete do director administrativo - disse Pamela, com voz de quem estava constipada. Daqui fala Roger. Preciso de falar urgentemente com Godfrey. É sobre o relatório McKinley. Ele tem reuniões durante quase todo o dia - disse Pamela -, mas posso encaixá-lo às 16:15, por quinze minutos. Então estarei aí às 16:15. Pamela pousou o auscultador e tomou nota na agenda do seu chefe. Quem era? - perguntou Godfrey. Roger Parker. Ele diz que tem um problema e que precisa de falar urgentemente consigo. Encaixei-o às 16:15. "Ele não sabe o que são problemas", pensou Godfrey, continuando a verificar as suas cartas para ver se havia alguma assinalada "Confidencial". Não havia nenhuma, por isso ele atravessou o gabinete e devolveu-as todas a Pamela. Ela pegou nelas sem uma troca de palavras entre eles. Nada voltara a ser o mesmo desde aquele fim-de-semana em Manchester. Ele nunca devia ter quebrado a regra de ouro sobre dormir com a secretária. Se não chovesse há três dias, ou se ele tivesse conseguido um bilhete para o jogo do United, ou se a saia dela não fosse tão curta, talvez não tivesse acontecido. Se, se, se... E não fora como se a terra tivesse tremido ou como se tivesse sido mais de uma vez. Que maneira maravilhosa de começar a semana, ficar a saber que ela estava grávida. Como se, neste momento, ele não tivesse problemas suficientes, o Banco estava a ter um ano mau, por isso o seu bónus seria provavelmente metade do que ele estivera à espera. Pior ainda, ele já gastara o dinheiro muito antes de ele ser creditado na sua conta. Levantou os olhos para Pamela. A única coisa que ela dissera depois do desabafo inicial fora que ainda não decidira se ia ter o bebé ou não. Era tudo o que ele precisava agora, com os dois filhos em Tonbridge e uma filha que não conseguia decidir se queria um piano ou um pónei e não compreendia por que é que não podia ter as duas coisas, já para não falar de uma mulher que era uma gastadora compulsiva. Já não se conseguia lembrar de quando o seu saldo bancário tinha sido positivo. Olhou outra vez para Pamela, quando esta saiu do gabinete. Um aborto numa clínica particular também não era barato, mas seria muito mais barato do que a alternativa. Se ele tivesse sido nomeado director executivo, tudo teria sido diferente. O seu nome estivera na lista e, pelo menos, três membros do Conselho de Administração tinham tornado claro que apoiavam a sua candidatura. Mas o Conselho de Administração, na sua sabedoria, oferecera o cargo a um homem de fora. Ele chegara à lista final de três candidatos e, pela primeira vez, compreendeu como se deve sentir o atleta que, sendo claramente o favorito, ganha uma medalha de prata olímpica. Que diabo, ele tinha tantas qualificações para o cargo como Phillip Alexander e tinha a vantagem adicional de trabalhar no Banco há doze anos. Houvera rumores de um lugar no Conselho de Administração como compensação, mas isso iria por água abaixo assim que soubessem de Pamela. E qual fora a primeira recomendação que Alexander fizera ao Conselho de Administração? Que o Banco inves-tisse fortemente na Rússia, com o cataclísmico resultado de que setenta pessoas perderiam o emprego e os bónus de todos teriam de ser ajustados. O que era pior é que Alexander estava agora a tentar deitar as culpas no presidente. Os pensamentos de Godfrey concentraram-se de novo em Pamela. Talvez ele devesse levá-la a almoçar para a tentar convencer que o mais sensato seria fazer um aborto. Estava prestes a pegar no telefone a sugerir o almoço, quando este tocou. Era Pamela. A secretária do director executivo acabou de telefo- nar. Importa-se de subir ao gabinete de Mr. Alexander? - Este era um estratagema que Alexander utilizava regularmente para garantir que as pessoas não se esqueciam da sua posição. Metade das vezes, o que ele queria dis- cutir poderia ter sido facilmente tratado pelo telefone. O homem tinha um complexo de poder. Durante o caminho para o gabinete de Alexander, Godfrey lembrou-se de que a mulher o quisera convidar para jantar, para poder conhecer o homem que lhe roubara um carro novo. Ele não vem - tentara Godfrey explicar. - É uma pessoa pouco sociável. Não custa nada convidar - insistiu ela. Mas Godfrey tivera razão: "Phillip Alexander agradece a Mrs. Tudor-Jones o seu amável convite para jantar, mas lamenta informar que, devido a..." Godfrey tentou imaginar o motivo por que Alexander queria falar com ele. Ela não podia saber de Pamela, não que isso fosse da sua conta. Especialmente se se fosse acre-ditar nos rumores sobre as suas próprias preferências sexuais. Será que ele sabia que a conta a descoberto de Godfrey ultrapassara em muito o limite imposto pelo Banco? Ou iria ele tentar arrastá-lo para o fiasco da Rússia? God-frey sentiu as palmas das mãos a transpirar enquanto batia à porta. Entre - disse uma voz grave. Godfrey entrou e foi recebido pela secretária do director executivo, Miss Franklyn, que viera com ele do Morgans. Ela não disse nada, limitando-se a acenar a cabeça na direcção do gabinete do chefe. Ele bateu uma segunda vez e, quando ouviu "Entre", entrou no gabinete do director executivo. Alexander levantou os olhos da secretária. Leste o relatório McKinley? - perguntou. Não disse "Bom dia, Godfrey", nem "Tiveste um bom fim-de-semana?" Apenas "Leste o relatório McKinley?". Sim, sim - respondeu Godfrey, que não fizera muito mais do que passar os olhos por ele, verificando os títulos dos parágrafos e depois estudando mais pormenorizada- mente as secções que o afectariam directamente. Acima de tudo, ele não queria ser um dos que estavam prestes a ser despedidos. A conclusão é que podemos poupar três milhões por ano. Isto significa despedir setenta empregados e reduzir a metade a maior parte dos bónus. Preciso que me faças um relatório escrito sobre como iremos proceder, que departamentos podem reduzir pessoal e quais as pessoas que nos arriscaríamos a perder se reduzíssemos os seus bónus. Podes ter isso pronto para mim para a reunião do Conselho de Administração de amanhã? "O filho da mãe está prestes a despachar as coisas para os outros", pensou Godfrey. "E parece não se importar de as passar para cima ou para baixo, desde que sobreviva. Quer apresentar ao Conselho de Administração um facto consumado, com base nas minhas recomendações. Nem pensar." Tens alguma coisa neste momento que possa ser considerada prioritária? Não, nada que não possa esperar - disse Godfrey. Ele achou que era melhor não falar no seu problema com Pamela, nem no facto de a mulher ir ficar furiosa se ele não aparecesse nessa noite na peça da escola em que o seu filho mais novo fazia de anjo. Com toda a franqueza, pouco importava até que ele fizesse de Jesus. Godfrey teria de ficar a pé toda a noite a preparar o relatório para o Conselho de Administração. Óptimo. Sugiro que nos encontremos amanhã de manhã às dez horas, para me dizeres como devemos implementar o relatório. - Alexander baixou a cabeça e voltou a sua atenção para os papéis que tinha em cima da secretária, um sinal de que a reunião chegara ao fim. Phillip Alexander ergueu a vista quando ouviu a porta fechar-se. Um homem com sorte, pensou ele, sem problemas de maior. Ele tinha problemas até à raiz dos cabelos. O mais importante agora era ter a certeza de que continuava a distanciar-se da desastrosa decisão do presidente do Conselho de Administração de investir tanto na Rússia. Ele apoiara essa decisão numa reunião do ano anterior e o presidente certificara-se de que o seu apoio ficara registado em acta. Mas assim que ele descobrira o que estava a acontecer no Bank of America e no Barclays, ele pusera imediatamente termo à segunda tranche do Banco, como fazia questão de lembrar continuamente ao Conselho de Administração. Desde esse dia que Phillip inundava o edifício de memorandos, avisando todos os departamentos para que se certificassem de que as suas posições se encontravam cobertas e incitando-os a recuperarem todo o dinheiro que conseguissem. Enviava memorandos todos os dias e o resultado era que, nesta altura, quase toda a gente, incluindo alguns membros do Conselho de Administração, estava convencida de que ele fora, desde o início, céptico em relação à decisão. A versão dos acontecimentos que ele transmitia aos membros do Conselho de Administração que não eram muito próximos de Sir William era que, uma vez que ele ocupava o cargo de director executivo há apenas algumas semanas, achara que não podia ir contra os desejos do presidente, e fora por esse motivo que não se opusera à recomendação de Sir William no sentido de ser concedido um empréstimo de quinhentos milhões de libras ao Nord-sky Bank de Sampetersburgo. A situação ainda lhe poderia ser vantajosa porque, se o presidente do Conselho de Administração se visse obrigado a demitir-se, o Conselho poderia achar que, dadas as circunstâncias, o melhor caminho a seguir seria uma nomeação interna. Afinal de contas, quando Phillip fora nomeado director executivo, o vice-presidente, Maurice Kington, tornara claro que duvidava que Sir William se mantivesse no cargo durante muito mais tempo, e isso fora antes do problema na Rússia. Cerca de um mês depois, Kington demitira-se; na City, era do conhecimento geral que ele só se demitira porque adivinhara problemas no horizonte e não tinha a mínima intenção de renunciar a qualquer dos cerca de trinta cargos de direcção que exercia. Quando publicou um artigo sobre Sir William, o Finan-cial Times protegeu-se começando por dizer: "Ninguém poderá negar que o desempenho de Sir William Selwyn como presidente do Conselho de Administração do Critchley's Bank tem sido sólido, por vezes até mesmo notável. Mas, recentemente, tem havido alguns erros infelizes que parecem ter tido origem no gabinete do presidente do Conselho de Administração." Alexander dera informações pormenorizadas ao jornalista sobre esses "erros infelizes". Alguns membros do Conselho de Administração estavam agora a cochichar: "Quanto mais depressa melhor." Mas Alexander ainda tinha alguns problemas seus a resolver. Mais uma chamada na semana anterior a exigir mais dinheiro. O maldito homem parecia saber exactamente quanto podia pedir de cada vez. Era verdade que a opinião pública já não era tão hostil em relação aos homossexuais. Mas, quando se tratava de um prostituto, a situação ainda era diferente, a imprensa conseguia fazer com que parecesse muito pior do que um homem heterossexual a pagar a uma prostituta. E como é que ele havia de saber que, nessa altura, o rapaz era menor de idade? Em qualquer caso, a lei alterara-se desde então, não que a imprensa fosse permitir que isso a influenciasse. E depois havia o problema de quem seria o vice-presi-dente, agora que Maurice Kington se demitira. Conseguir o substituto certo seria crucial para ele, porque essa pessoa estaria a presidir ao Conselho de Administração quando este nomeasse o presidente seguinte. Phillip já fizera um pacto com Michael Butterfield, que ele sabia que iria apoiar a sua causa e começara a murmurar deixas aos ouvidos dos outros membros do Conselho de Administração. Precisamos de alguém que tenha votado contra o empréstimo à Rússia ... Alguém que não tenha sido nomeado por Sir William... Alguém que seja independente... Alguém que... Ele sabia que a mensagem estava a ser recebida, pois alguns directores já tinham passado pelo seu gabinete a sugerir que Butterfield era o candidato óbvio para o cargo. Phillip concordava de bom grado com a sua escolha. E agora chegara tudo a um ponto crítico, porque teria de ser tomada uma decisão na reunião do Conselho de Administração do dia seguinte. Se Butterfield fosse nomeado vice-presidente, tudo o mais se encaixaria no seu lugar. O telefone em cima da sua secretária tocou. Atendeu e gritou: Eu disse que não atendia chamadas, Alison. É Julian Burr outra vez, Mr. Alexander. Pode ligar - disse Alexander em voz baixa. Bom dia, Phil. Pensei em telefonar-te para te desejar sorte para a reunião do Conselho de Administração de amanhã. Como é que descobriste? Oh, Phil, certamente deves compreender que nem toda a gente no Banco é heterossexual... - A voz fez uma pausa. - E um deles, em particular, já deixou de te amar. Que é que tu queres? Que tu sejas presidente do Conselho de Administração, claro. Que é que tu queres? - repetiu Alexander, subindo de tom a cada palavra que pronunciava. Pensei numas pequenas férias ao sol enquanto sobes de andar. Nice, Monte Carlo, talvez uma semana ou duas em St. Tropez. E quanto imaginas que isso custaria? - perguntou Alexander. Oh, eu acho que dez mil cobririam confortavelmente as minhas despesas. Demasiado confortavelmente - disse Alexander. Penso que não - disse Julian. - Tenta não esquecer que eu sei exactamente quanto dinheiro tens e isso sem o aumento de vencimento com que podes contar quando fores presidente do Conselho de Administração. Sejamos claros, Phil, é muito menos do que o News of the World estaria disposto a oferecer por uma entrevista exclusiva. Até já consigo ver o título: "A Noite do Prostituto com o Presidente do Conselho de Administração de Banco Familiar." Isso é criminoso - disse Alexander. Não é, não. Como, nessa altura, eu era menor de idade, verás que o criminoso és tu. Podes ir demasiado longe, sabes - disse Alexander. Não enquanto tu tiveres a ambição de ir ainda mais longe - disse Julian com uma gargalhada. Preciso de alguns dias. Não posso esperar muito tempo, quero apanhar o primeiro voo para Nice amanhã. Certifica-te de que o dinheiro é transferido para a minha conta antes de ires para a reunião do Conselho de Administração às onze horas. O telefone desligou-se, depois tocou imediatamente a seguir. Quem é desta vez? - disse Alexander, num tom ríspido. Tem o presidente na linha dois. Pode ligar. Phillip, preciso dos últimos números dos emprésti- mos russos, juntamente com a tua avaliação do relatório McKinley. Terei uma actualização da posição russa em cima da sua secretária dentro de uma hora. Quanto ao relatório McKinley, estou, de um modo geral, de acordo com as recomendações nele feitas, mas pedi a Godfrey Tudor-Jones que me desse por escrito a sua opinião sobre como elas deverão ser implementadas. Tenciono apresentar o relatório dele na reunião do Conselho de Administração de amanhã. Espero que isso seja satisfatório, Sr. Presidente? Duvido. Tenho a sensação de que amanhã será demasiado tarde - disse o presidente, sem qualquer explicação antes de desligar. Sir William sabia que o facto de as perdas na Rússia terem excedido os quinhentos milhões não ajudava nada. E agora o relatório McKinley tinha chegado às secretárias de todos os directores, recomendando que setenta postos de trabalho, talvez até mais, fossem eliminados, para pou-par cerca de três milhões de libras por ano. Quando é que os consultores de gestão começariam a compreender que se tratava de seres humanos, não apenas de números numa folha de balanço, entre eles havia setenta empregados leais, alguns dos quais tinham servido o Banco durante mais de vinte anos? No relatório McKinley, não havia qualquer referência ao empréstimo à Rússia, porque isso não fazia parte da sua incumbência; mas a altura não podia ter sido pior. E, no sector bancário, a altura certa é tudo. As palavras de Phillip Alexander ao Conselho de Administração estavam indelevelmente gravadas na memória de Sir William: Não podemos permitir que os nossos rivais se apro- veitem de uma ocasião única. Para que o Critchley's conti- nue a ser um actor no palco internacional, temos de avançar rapidamente enquanto ainda é possível obter lucros. - Os lucros a breve prazo poderiam ser enormes, garantiu Alexander ao Conselho de Administração, embora, de facto, tivesse acontecido exactamente o contrário. E, momentos depois de as coisas se desmoronarem, o filho da mãe come- çara a sair do buraco russo ao mesmo tempo que o atirava lá para dentro. Na altura, ele estava de férias, e Alexander telefonara-lhe para o hotel em Marráquexe, a dizer-lhe que tinha tudo sob controlo e que não havia necessidade de regressar apressadamente a casa. Quando, finalmente, voltou, viu que Alexander já enchera o buraco, deixando-o no fundo dele. Depois de ler o artigo do Financial Times, Sir William viu que os seus dias como presidente do Conselho de Administração estavam contados. A demissão de Maurice Kington fora o golpe final do qual, sabia, não conseguiria restabelecer-se. Ele tentara demovê-lo, mas só havia uma pessoa em cujo futuro, Kington estava interessado. O presidente do Conselho de Administração olhou para a carta de demissão manuscrita. Nessa noite, seria enviada uma cópia a todos os membros do Conselho. Claire, a sua leal secretária, lembrou-lhe que ele tinha cinquenta e sete anos e que falara muitas vezes em se reformar aos sessenta para dar lugar a um homem mais novo. Era irónico pensar quem esse homem mais novo poderia ser. E verdade, ele tinha cinquenta e sete anos. Mas o último presidente do Conselho de Administração só se reformara aos setenta, e era isso o que o Conselho de Administração e os accionistas recordariam. Eles esqueceriam que ele herdara um Banco enfraquecido de um presidente doente e, ao longo da última década, aumentara os lucros ano após ano. Mesmo tendo em conta o desastre russo, ainda leva-vam uma grande vantagem sobre os outros. As insinuações do primeiro-ministro de que estava a ser considerado para um título de nobreza também seriam, em breve, esquecidas. Os cerca de doze cargos de direcção que não eram mais do que rotina para o presidente, à beira da reforma, de um dos principais Bancos evaporar-se-iam subitamente, juntamente com os convites para Buck House, para o Guildhall e para o court central de Wimbledon, a única função social oficial de que a sua mulher realmente gostava. Na noite anterior, ao jantar, ele dissera a Katherine que ia pedir a demissão. Ela pousara a faca e o garfo, dobrara o guardanapo e dissera: Graças a Deus. Agora já não será necessário continuar com esta farsa de casamento. Vou esperar algum tempo, depois peço o divórcio. - Levantara-se da cadeira e saíra da sala sem dizer mais uma palavra. Até então, ele não fizera ideia dos sentimentos de Katherine. Ele partira do princípio de que ela sabia que tinha havido outras mulheres, embora nenhuma das suas ligações amorosas tivesse tido grande significado. Ele achava que tinham chegado a um acordo, um entendimento. Afinal de contas, era o que muitos casais da sua idade faziam. Depois do jantar, deslocou-se a Londres e dormiu no seu clube. Desatarraxou a tampa da caneta de tinta permanente e assinou a carta. Deixara-a em cima da secretária o dia inteiro, na esperança de que antes do fim do expediente acontecesse algum milagre que tornasse possível rasgá-la. Mas, na verdade, ele sabia que isso não iria acontecer. Quando, finalmente, levou a carta à sua secretária, esta já dactilografara os nomes dos destinatários nos doze envelopes. Ele sorriu a Claire, a melhor secretária que já tivera. Adeus, Claire - disse ele, beijando-a no rosto. Adeus, Sir William - respondeu ela, mordendo o lábio. Ele voltou para o seu gabinete, pegou na pasta vazia e num exemplar do The Times. Amanhã ele seria a notícia principal da Secção de Negócios, não era suficientemente conhecido para vir na primeira página. Olhou mais uma vez em volta do gabinete do presidente do Conselho de Administração, antes de o deixar pela última vez. Fechou tranquilamente a porta atrás de si e seguiu lentamente ao longo do corredor até ao elevador. Carregou no botão e ficou à espera. As portas abriram-se e ele entrou, sentindo-se grato por o elevador estar vazio e por não parar até ao rés-do-chão. Saiu para o vestíbulo e olhou para o balcão da recepção. Há muito que Haskins teria ido para casa. Quando a porta de vidro se abriu, pensou em Kevin sentado em casa, em Peckham, ao pé da mulher grávida. Teria gostado de lhe desejar sorte nas suas novas funções na recepção. Ele, ao menos, não seria afectado pelo relatório McKinley. Quando chegou ao passeio, algo atraiu a sua atenção. Virou-se e viu o velho vagabundo a instalar-se para passar a noite no canto por baixo da arcada. O vagabundo levou a mão à testa numa imitação de continência. Boa noite, Sr. Presidente - disse ele com um sorriso. Boa noite, Bill - respondeu Sir William, retribuindo o sorriso. "Se ao menos pudesse trocar de lugar com ele", pensou Sir William, dando meia volta e dirigindo-se ao automóvel que estava à sua espera.

                                                                  Jeffrey Archer

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