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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU / Josiane da Veiga
QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU / Josiane da Veiga

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Toda história tem um começo. E o assasinato de sua mãe tornou Dylan Bennet um vilão. Não obstante, criou sua fama em cima de sangue, violência e sexo.
A vingança o movia. Perdeu tudo por conta do maldito gângster Foster. Atingir o homem era o único objetivo de sua vida.
Mas, naquela floresta, a menina de chapeu vermelho não era tão indefesa.
Jessica Foster não era uma coitadinha. Apesar de ter crescido em um convento, ela tinha no sangue o arredio desejo de liberdade. Então, enredar-se pelo mundo proposto por aquele homem pecaminoso não lhe deu medo.
Jessica era corajosa o suficiente para espreitar a obscuridade da alma de Dylan.

 


 


Capítulo 01

Chicago, 1910.

— Era uma vez...

Dylan sentiu os olhos pesarem. A mãe, tão bonita quanto o sol ao entardecer, estava sentada ao seu lado na cama. Nas mãos, a jovem mulher mantinha um livro de conto de fadas e, naquela noite, lhe narraria alguma bonita história como era de costume.

— Uma graciosa menina; quem a via ficava logo gostando dela.

Mas havia algo errado naquela noite. O menino de cinco anos não conseguia definir exatamente o quê.

Naquele casebre em que moravam solitários logo após o assassinato do pai, as noites eram sempre atormentadas por algo à espreita, um demônio que parecia consumir a racionalidade da mãe. Mas, naquela noite em especial, havia algo a mais. E não se encontrava no livro velho e mofado de histórias, nem no vento fantasmagórico que batia na janela.

O estralo na porta ele mais sentiu que ouviu. A mãe sobressaltou-se, mas não parou sua narrativa.

— .. . Certa vez, presenteou-a com um chapeuzinho de veludo vermelho e, porque lhe ficava muito bem, a menina não mais quis usar outro e acabou ficando com o apelido de Chapeuzinho Vermelho.

Dylan Bennet podia ouvir os passos no corredor, mas a neutralidade na voz da mãe não o assustou. O que quer que fosse que andava em passos lentos pelo assoalho rangido não merecia a atenção materna.

Ela estava certa em terminar sua história ao seu pequeno filho.

E que história. Havia um lobo. Uma avó. Um engano. Assassinato, morte e redenção.

O som no corredor cessou. A voz da mãe também cessou. Então, ela curvou-se para ele e beijou levemente sua têmpora.

— Dylan. — Seu tom era sério e rápido. Contudo, não perturbador. — No quarto da mama tem uma sacolinha com dinheiro. Pegue e fuja. Procure por seu tio, August Bennet. Não vá para um orfanato e não deixe que o peguem. Se cuide, eu te amo muito.

Todas aquelas palavras ditas fizeram-no fechar os olhinhos. A mãe beijou sua face novamente, e depois se afastou em direção à porta.

Ela saiu.

O som do corredor voltou.

Mas, apenas passos. Não houve gritos, nem súplicas. Era como se a mãe estivesse disposta a enfrentar o que fosse para não traumatizá-lo.

Depois, o estrondo capaz de fazer as madeiras tremerem. Um clarão seguiu-se. Outro.

E o silêncio novamente tomou o ambiente.

Dylan nunca mais ouviria a voz da mãe. Mas o ecoou daqueles tiros o seguiria até o fim de sua vida.


Foi August Bennet que o encontrou. Não que fora tarefa fácil. Assim que a polícia foi chamada até o casebre para recolher o corpo da mulher de um antigo cafetão, num bairro pobre de Chicago, a criança que lá residia desapareceu.

Pareceu entender as ordens da mãe. Pegou sua sacolinha com alguns trocados e saiu andando sem rumo pela cidade, à procura do tio August.

Foi um dos homens de August que o viu. Em meio a uma praça de má fama, o menino perdido parecia aterrorizado pela solidão.

Não entendia ainda que a mãe nunca voltaria, e que August não era exatamente o tipo exemplar de familiar.

Quando um carro negro parou próximo do garotinho, ele viu um homem grande, alto e de vestimentas impecáveis se aproximar.

A mãe era uma puta pobre, então não conseguia perceber que aquele era alguém do mesmo sangue. Por que um dos homens mais abastados da cidade era irmão de sua pobre genitora?

Foi levado até uma mansão, onde recebeu um quarto e alimento.

E só com o passar dos anos compreendeu que a mãe, apesar de puta, era honesta. Não queria o dinheiro sujo de August, por isso preferiu a prostituição.

Não que se odiassem, os dois irmãos. Quando soube que a irmã havia levado dois tiros na cara, August foi até sua casa, sujou seus sapatos de couro preto impecáveis na poça de sangue, e apertou a pobre mulher nos braços. Jurou a ela que cuidaria de Dylan.

Apenas, o destino os levou a posições diferentes.

A puta honesta seguindo a dignidade miserável, enquanto o rico e respeitável comerciante contrabandeava drogas em todo estado de Illinois.

— Você é sangue do meu sangue e eu não tenho filhos — o tio disse, alguns anos depois. — Terá que cuidar de tudo que conquistei — indicou.

Foi então que Dylan passou a ir às aulas de manhã e a aprender a atirar durante à tarde. Praticamente um treinamento de guerra.

Ele precisava saber como se portar diante das situações que envolviam o mercado negro do contrabando.

Aos dezesseis anos matou o primeiro homem. Um comerciante que revendeu mercadoria de August e não lhe pagou. Além disso, não cumpriu o trato.

— A palavra de um homem é tudo — o tio lhe disse. — Se um homem diz que vai lhe pagar em tal dia, e esse dia chegar e ele não trouxer o dinheiro, esse homem não é digno de respirar.

Dylan apertou o gatilho. Era fácil. Era prazeroso. O sangue era quente. Ele gostava daquela sensação de poder.

A hombridade da mãe foi perdendo-se com o passar dos dias, dos meses, dos anos. Mas, sua voz doce e seu olhar amoroso nunca se perderam em sua memória.

Aos dezoito quis saber quem a havia assassinado. Já havia cometido uma ou duas dúzias de execuções pela cidade e estava pronto para destruir o canalha que lhe explodira a face.

O tio, agora de cabelos brancos, insistiu para que ele esquecesse isso.

— Putas sempre atraem o que não presta. Provavelmente foi algum cliente.

Mas, não era. Alguns sussurros que ele havia captado pela casa lhe indicou que não havia sido tão simples.

Foi nessa época que surgiu um nome: Foster. Antony Foster. Um ítalo-americano concorrente que havia matado o cafetão de sua mãe e depois ordenou que atirassem na prostituta que havia presenciado o crime.

— Não se meta com aquele homem — o tio ordenou.

Porque, soube depois, Foster era um demônio. Usava as extensas ferrovias para escoar suas drogas e contrabando subornando políticos, policiais e funcionários das vias férreas. Em menos de uma década havia se tornado o bandido mais respeitado da sociedade.

Até soube que a Igreja lhe fizera uma homenagem em uma festa católica qualquer após uma pomposa doação a Casa das Irmãs do Sagrado Coração.

Foster era um bandido perigoso e poderoso. E, enquanto August viveu, Dylan não tentou ir atrás de vingança.

Todavia, nunca o esqueceu e sempre lhe estudou os passos. Queria pegá-lo, massacrá-lo, destruí-lo. Só teria paz quando o matasse e só viu essa oportunidade surgir mais de uma década e meia depois, em meio a Lei Seca, quando os Bennet já haviam se tornado gângsteres poderosos e ameaçadores.

Porém, não foi da maneira que desejava.


Dylan Bennet estava sentado ao lado do caixão negro. Ao fundo da sala onde ocorria o velório, Harold Dayley o observava atentamente.

Em meio à crise entre brancos e negros no início da década de vinte, onde ocorreu um massacre entre as duas comunidades, Harold tornou-se órfão.

Nem saberia especificar como tudo aconteceu. Foi tão rápido, na verdade.

Aparentemente um jovem negro havia ido até uma praia e, por engano, nadou até o lado branco da cidade. Quando os cor-de-leite perceberam o rapaz, atiram-lhe pedras, expulsando-o do lugar. Assim, o jovem precisou retornar a nado até o seu lado. Morreu no trajeto, sem forças, sucumbindo na correnteza.

Levou com ele mais de vinte negros e dez brancos, numa guerra racial que se instaurou então.

Os pais, apesar de não se envolverem na luta e trabalharem dia e noite na fábrica de máquinas que ficava ao sul, foram vítimas daquela batalha.

Não que brigassem por ela, mas tiveram a casa queimada, junto a outras mil residências, numa vingança por alguma morte ocorrida naquele dia.

Morreram queimados, e Harold só escapou porque sua janela do quarto estava quebrada e não fechava direito.

Assim o menino ficou só. Sem parentes para lhe acolher ou uma casa para voltar, tornou-se de rua. Foi uma sorte quando começou a ser usado pelos Bennet para recados. Aquilo o livrou da morte certa.

Em pouco tempo, ganhou o respeito e o carinho de Dylan. Eram como irmãos, apesar de um ser preto e outro branco.

Quando iam a zona sul da cidade, as pessoas encaravam Dylan com ódio, apesar de nada dizerem por perceberem – pelas vestimentas – que aquele era um bandido perigoso.

Na zona norte, onde os brancos viviam, era Harold o tratado como animal, afugentado pela cor de sua pele.

Todavia, entre os dois homens havia uma forte ligação. E não havia, dentro daquela gangue, quem se atrevesse a criticar a amizade pujante.

Até porque Dylan era explosivo e agia sem pensar muito. Era Harold quem lhe segurava o temperamento e lhe impedia de cometer barbáries.

Aproximou-se do amigo a quem chamada de irmão. Dylan estava quieto e sem lágrimas, apesar de estar perdendo o único parente que tinha. August morrera durante a madrugada, dormindo, contrariando a todas as leis que indicavam que teria um findar violento.

— Joe Bergl disse que seu novo Rolls-Royce ficará pronto hoje — murmurou.

Assunto estranho para um velório.

— Preto, como pedi?

— Sim, muito bonito o carro — Harold indicou.

— Você já o viu? O piso falso que solicitei está lá? Cabem as armas e munições?

— A blindagem é especial também — Harold completou. — Ele disse que pode ir olhar o carro quando desejar.

Juntamente com Clarence Lieder, Joe era um dos mais famosos mecânicos de gângsteres de Chicago. Dylan sabia que aquele carro estava perfeito.

— Dylan — o murmuro de Harold fê-lo volver o olhar para o outro. — Eu sinto muito por seu tio.

Dylan quis rir, mas dignou-se a dar os ombros.

— Meu tio me ensinou tudo que sei, mas ele era um obstáculo a meus propósitos.

O que aquilo significava?

— Dylan...

— Um veneno simples em seu chá e ele livrou-se de uma vida difícil. Agora que tinha tuberculose, não lhe restava muito. Ao menos, assim, ele teve um fim digno.

Harold precisou manter a face pacífica para não demonstrar o horror que sentia ao perceber que Dylan havia assassinado o tio.

— Eu sei o que está pensando.

— Nada disse.

— Não precisa. Eu consigo perceber pela sua respiração entrecortada.

Harold fugiria naquele instante, se pudesse. Não porque não amava seu irmão de alma, mas porque se aterrorizava pelas ações dele.

— Meu tio teve a vida que quis, dormiu com todas as mulheres que o dinheiro pôde comprar — aproximou-se do ouvido do outro e murmurou. — E com alguns homens também — riu. — E então morreu tranquilo numa cama quente, para desgosto de todos os seus inimigos.

Era uma perspectiva otimista que Harold não conseguia seguir.

— O que fará agora?

— Quero dominar Chicago.

— Os Bennet são muito fortes do lado leste da cidade. Creio que...

— Quero a cidade — reafirmou.

— Foster mantêm...

— Quero a morte dele.

— Dylan...

— Tudo se encaminhou para que eu chegasse aqui — murmurou. — Antony Foster é meu principal inimigo e rival nos negócios. Chegou a hora de ele saber que há um novo lobo mau nessa floresta chamada Chicago.


Aquela noite estava gelada. Noites frias sempre o agoniavam.

David Foster, sobrinho do magnata Antony, estava parado ao lado de um Buick escuro aguardando a negociação do carregamento de uma carga importante.

Não entendia porque o governo havia proibido o álcool. Não percebiam que aquilo só aumentava a criminalidade. Homens ansiavam pela sua bebida e tinham direito a ela.

Puxou um charuto e o acendeu. Não estava apreensivo porque era um acordo comum ao seu dia-a-dia. Uma carga de uísque chegaria à baía em breve e ele apenas precisava verificar se os empregados a colocariam em um determinado caminhão conforme combinado.

Repentinamente o som de pneus cortou o ar.

David buscou pelo Colt 38 que mantinha na cintura, esperando pelo desfecho daquela inesperada visita.

Repentinamente, o som de tiros cortou o ar. Mas, não havia veículo em lugar nenhum. Percebeu, então, que o veículo era apenas uma isca para desviar a atenção, e que o som de balas vinha da baía.

Era uma armadilha. Um roubo de seu contrabando.

Disparou contra o escuro, uma, duas... tantas vezes que perderam-se em sua mente medrosa, mas não acertou em ninguém. Deu-se conta que era alvo fácil ali, solitário.

Repentinamente, sentiu um corte quente contra a barriga. Caiu ao lado do veículo. Fora baleado!

Passos. Pegou a arma. Disparou. Apenas um click seco se ouviu. Estava descarregada. O maldito ladrão sem honra o havia aguardado terminar de descarregar sua munição.

Então, um homem de sobretudo bege aproximou-se.

— Preto! Preto sujo! — xingou, revoltado porque um ser de cor escura se atreveu a machucar um Foster.

Recebeu um chute na face. Mas, não daquele desgraçado e sim de outro, branco, que se aproximou por trás, segurando Shotgun 12.

— Filho da puta! Filho da...

— Não vai morrer — o branco avisou. — Ao menos, não agora. Quero que leve um recado.

— Recado?

— Diga a seu tio que Dylan Bennet manda cumprimentos.

Uma coronhada na fronte, e David apagou.

A guerra agora estava oficialmente declarada.

 

 


Capítulo 02

 


"Houve, uma vez, uma graciosa menina; quem a via ficava logo gostando dela ".

Irmãos Grimm

 

“ Não toquem na menina. Ela é minha filha ”.

Os joelhos doíam. Ela quase podia sentir o sangue quente escorregando nas pernas. Usar pedregulhos como fonte de penitência era comum naquele ambiente. Ajoelhar-se sobre pedras era o que de melhor ela podia esperar por tamanho horror em sua alma.

— Então Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: " Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes? " Jesus respondeu: " Eu digo a você: Não até sete, mas até setenta vezes sete ”.

Passos em volta de si. A freira vestida de negro parecia envolvê-la em seu manto de contrição.

“ Não toquem na menina. Ela é minha filha ”.

— Ore Jessica — a mulher comandou.

Sentiu um amargor nos lábios. Passaram-se duas horas desde que fora chamada para demonstrar fisicamente seu arrependimento pelos pecados praticados.

— Ave Maria, cheia de graça... — começou.

Ficava ali o aprendizado. Padre Tom não queria saber o quanto de ódio ela nutria em sua alma. A confissão de seus demônios só lhe causaria mais dor. Uma jovem criada em um convento desde os sete anos devia sentir-se sempre vistosa e cheia de gentileza.

Seu ódio devia ser bem guardado. Não devia mais falar sobre ele. Aquelas pessoas, por mais que a tivessem criado, não eram sua família, nem seus amigos. O dinheiro do maldito Foster as havia comprado. O dinheiro comprava tudo.

A vara de marmelo cortou o ar e chocou-se nas suas costas.

— Continue — a freira ordenou.

— Santa Maria, mãe da misericórdia...

“ Não toquem na menina. Ela é minha filha ”.


A vida fora do convento não havia sido fácil, mas havia a mãe. Ah, a mãe...

Era tão bela e jovem, a pequena e formosa Justine. E tola, também, não podemos deixar de mencionar. Idiota o suficiente para se encantar, aos imaturos dezesseis anos, por Antony Foster, um homem com o dobro da idade dela.

A vida de crimes do homem não a amedrontou. O homem cruel e grosseiro com os outros era charmoso e encantador com ela. Dava-lhe presentes, levava-a para passear...

Foi assim que caiu na mais antiga falácia romântica de todas: a de que uma mulher pode transformar um homem, mexer com seus escrúpulos, modificar sua índole. Ah, soubesse a pequena Justine que caráter não se muda, que essência é algo que trazemos da alma, talvez ela não tivesse trocado um segundo olhar com Antony.

Todavia, a verdade só veio realmente quando percebeu que estava grávida. Ali, o caráter de Antony ficou explícito.

O seu charmoso príncipe encantado badboy agora era um homem repulsivo. Não lhe pediu que abortasse, ordenou que matasse o bebê ainda no ventre. Quando ela se recusou, ele agiu como quase todos os cafajestes: negou que a criança fosse sua.

Justine nunca havia se deitado com outro homem, mas recolheu sua dignidade e sumiu da vida de Antony. Não que tivesse para onde ir, a própria família a expulsou quando a perceberam de barriga a crescer.

Assim, passou a dormir num quartinho alugado e a trabalhar como empregada aqui e acolá, mas conseguiu parir e criar a filha, até que Antony Foster retornasse a sua vida da pior maneira possível.

Os Estados Unidos estavam passando por um momento de intensa violência e miséria. Assim, a Lei estava de olho naqueles que poderiam estar alimentando a velha máquina da indignidade.

Foster percebeu que havia olhos grandes em cima de si, e decidiu eliminar qualquer pista que chegasse ao seu nome. Matou velhos comparsas, prostitutas e, por fim, percebeu que ainda havia alguém vivo que poderia delatá-lo as autoridades.

Não foi difícil encontrar Justine. Ela costumava trabalhar em casas ricas pela cidade, mas, quando não conseguia trabalho, para não deixar a pirralha na qual dera a luz passar fome, prostitui-se por comida.

Um dos seus homens dormiu com ela. Indicou-lhe o endereço. Numa madrugada, reuniu dois comparsas de sua confiança e partiu em direção à casa.

Tentaram ser discretos. Chamar a atenção não era do seu interesse. Quando bateu na porta daquele casebre, esperou pacientemente que a vadia viesse abrir. Ela quase gritou quando o viu. Mas, tão logo uma réstia de espaço surgiu no vão, eles a empurraram e entraram na casa.

Lá, o som ficou restrito ao ambiente. Logo, Antony viu uma pequena e feminina miniatura de si mesmo o encarando com horror, enquanto corria para a mãe.

Um dos homens fez menção de bater na garotinha.

— Não toquem na menina. Ela é minha filha — avisou.

Depois, puxou a garota e a levou dali. Aproximavam-se do carro quando o som único de um disparo fez a criança desejar correr de volta para a casa.

Segurou-a com firmeza.

— Você tem sorte — murmurou. — Vai ter um futuro. Vou te levar para um lugar onde receberá educação. Devia me agradecer por te livrar daquela puta.

Jessica nunca pôde se despedir da mãe e dizer o quanto a amava. E tudo por culpa daquele maldito que, percebeu depois, era seu pai.


O ódio nunca nasce de forma arrebatadora. É algo cultivado, começa com a dor da perda, a solidão e, por fim, passa a nutrir a alma pelo desejo de vingança àquele que causou tanta amargura.

Jessica não odiava Deus, nem a igreja, nem as freiras que a educaram. Nem padre Tom, apesar de odiar a maneira como ele tratava Antony Foster por conta do poder que o homem exercia em Chicago.

Ela apenas não aceitava que a vida – injusta – celebrava um bandido enquanto alguém como a mãe fora massacrada e tirada da filha em tão pouca idade.

O pai veio vê-la umas duas vezes, naqueles anos que se passaram no convento. Ela se recusava a olhar para sua cara, mas sentia que sua voz adentrava sua alma e fervilhava sua necessidade de vingança.

Falou disso um dia, ao padre, que achou que estivesse dominada por demônios. Afinal, na ideia de todos o pai a tirou de uma mãe puta e a levou a uma vida decente e honrosa. E Jessica sabia, de alguma forma, que se falasse a verdade sobre aquele ato, também seria vítima, mesmo sendo a filha do homem.

Os anos passaram.

As penitências eram sempre aplicadas com o intuito de fazê-la limpar sua alma, tornando-a própria para Deus.

Mas, Jessica não desejava perdão. Nem para ela, nem para o pai. Queria justiça. Queria que ele tivesse o mesmo fim de Justine.

E então ela parou de orar por perdão, e passou a rezar por possibilidades. Chances de deixar o convento. Chances de conseguir uma arma. Chances de atirar na cabeça de Antony Foster.

Chances...

Não sabia nada da vida. Mas, sabia o que aquele espírito vingador em sua cerne lhe inflamava.

Não importava o destino se ela tivesse a chance de cumprir com seu desejado. Se, após matá-lo tudo que lhe restasse fosse enfiar o cano do revólver na boca e atirar, estava tudo bem. Tudo valia a pena, se ela pudesse destruí-lo.


Ela acordava às cinco horas da manhã para a primeira oração do dia.

E, naquele dia em especial, padre Tom parecia muito amistoso ao celebrar a missa.

— O Nobre Experimento mudará nosso país — disse.

Houve um sonoro amém.

Jessica imaginou do que se tratava aquele assunto, mas logo percebeu ser a tal Lei Seca que as freiras murmuravam entre si durante o almoço.

Naquele clima hostil pelo país, o Congresso havia aprovado uma emenda que proibia a fabricação, transporte e venda de bebidas alcoólicas por todo o país. Era, obviamente, uma medida desesperada para evitar a onda de crimes que inundava o país e, em especial, Chicago.

Padre Tom era contra as bebidas. Mesmo o vinho, ele apenas bebericava por obrigação.

— Álcool atrai demônios — ele disse, certa vez, e agora repetia. — Isso prova que Deus olha com carinho para nosso país e que nossos congressistas estão dispostos a cumprir a vontade do Nosso Senhor.

Jessica começou a pensar se homens como Antony Foster bebiam. E se, caso bebessem, iriam parar de usufruir das bebidas por causa de Deus ou dos políticos.

Com certeza, Antony Foster daria o seu jeito...

O que ela não imaginava é que o jeito do pai seria tornar-se um dos maiores contrabandistas de bebidas destiladas durante o tempo da Lei Seca.

 


Capítulo 03

 


“...não sabendo, porém, que animal perverso era ele, não sentiu medo.”

Irmãos Grimm


Borbulhas explodiam na água marrom, suja, daquele bar clandestino ao sul de Chicago.

A água estava dentro do uma grande tina de madeira que os trabalhadores de uma das fábricas usavam para limpar as mãos. O ambiente, já vazio pela madrugada que adentrava, só mantinha ali o homem que se afogava e os outros cinco homens da gangue Bennet que o torturavam.

Dylan assentiu para Thomas, um dos seus homens. O homem foi retirado da água, em choque, respirando fundo, buscando oxigênio.

— Ainda não tem nada a me dizer? — Dylan indagou.

O dono do bar negociava há anos com Antony Foster. Se alguém soubesse algum podre do homem, era ele.

— O Sr. Foster matou todos que sabiam demais.

— Sério? — O idiota falava como se Dylan não soubesse. — Mas, eu não preciso de nada escandaloso ou ilegal. Apenas alguma informação simples, como se ele tem alguma amante favorita, ou algum filho fora do mundo do crime.

— Mas, eu não sei de nada.

Dylan assentiu novamente, e Thomas voltou a enfiar a cabeça do homem na água.

— Não acho que Foster tenha algum segredo — Harold murmurou sobre seus ombros.

— É melhor que tenha ou então ele vai morrer — apontou para o afogado.

Novamente, o corpo voltou à superfície. Uma breve pausa para que o homem recuperasse o fôlego. Dylan, calmamente, puxou um charuto e o acendeu.

— Nós podíamos ficar a noite toda aqui, mas estou cansado — avisou. — Por que não diz logo o que sabe e eu o deixo viver? — O outro fez menção de retrucar, mas Dylan o interceptou com a palma da mão ereta. — Por favor, não insista na ideia de que Foster é homem sem passado sujo. Eu sei que ele mandou matar uma cambada de gente anos atrás, para esconder segredos.

— Antony Foster vai me matar — o outro apontou.

— E o que acha que eu farei contigo se ficar se fazendo de desentendido?

Outro breve silêncio. Quando Thomas fez menção de levá-lo novamente à água, o homem ergueu as mãos, rendido.

— Ele tem uma filha — informou. — Poucas pessoas sabem disso, além de alguns homens de confiança do clã.

— E você sabe como?

— O sobrinho dele contou, durante uma bebedeira, que ficou bem interessado na garota, mas o tio vedou. Disse que, ao menos com ela, quer fazer algo bom.

— Como assim?

— Deixou-a para ser criada pelas freiras. Quando concluir seus estudos, irá para a faculdade. Lhe dará uma casa, e um começo de vida.

Dylan fez outro sinal com a fronte e Thomas largou o homem.

— Matá-lo? — o empregado indagou.

— Sou um homem de palavra. Se ele me deu a dele, e disse a verdade, viverá. — Volveu-se para Harold. — Descubra tudo sobre essa garota.

Quando o grupo entrou no veículo preto parado na esquina, o dono do bar entrou rapidamente para dentro de seu estabelecimento, arrumou suas coisas e nunca mais foi visto.


Harold sabia que precisava levantar informações sobre a tal filha do homem poderoso, ou Dylan faria aquilo com seus métodos cruéis.

Eis um fato, caro leitor, que ainda não lhes narrei: Harold Dayley não era um delinquente como seu obstinado chefe. Na verdade, o homem de pele escura e modos polidos teria sido um bom pastor em alguma congregação, ou um bom empregado, pai de família, em outra cidade, caso a vida não o houvesse levado até seu inevitável destino: Dylan.

O amor que nutria pelo irmão era o causador de seus erros. Ele sabia disso. Ele pedia perdão a Deus todas as noites por isso. Contudo, mesmo ciente dos pecados praticados, ele não podia simplesmente abandonar Dylan.

Eles não tinham o mesmo sangue, mas tinham a mesma alma. E Harold respirava pelo irmão. Morreria pelo irmão. A vida ainda custaria caro por conta daquilo.

Ele pensava nisso quando se deparou, numa rua escura, com alguns baderneiros a perseguirem uma mulata pequena e bonita, que choramingava de medo e tentava livrar-se das mãos dos homens.

— Ei! — gritou, avançando.

Logo os homens se afastaram. As vestimentas de Harold causavam medo em qualquer um na cidade de Chicago.

— Você está bem? — indagou a moça.

Só então a observou mais atentamente. Céus, era linda... Apesar das vestes simples e dos olhos molhados pelas lágrimas, era uma beldade de virar a cabeça de qualquer vivente.

— O que uma moça como você faz nesse lado da cidade? — questionou.

Tirou o casaco, colocou sobre os ombros frágeis.

— Buscava trabalho, senhor.

Até a voz dela era doce...

— Como se chama?

— Mary.

— Eu tenho trabalho para você — avisou, de súbito, sem pensar. — Sabe cozinhar?

 


— Jessica Foster — Harold entregou a ele uma pasta com documentos relacionados à garota. — Nasceu em janeiro de 1902. A mãe era uma menina, basicamente. Foi morta alguns anos depois, acerto de contas entre gangues. Antony Foster a adotou legalmente – contudo, discretamente –, e a encaminhou ao convento Sagrado Coração. O padre Tom tem a tutela da garota.

— E como ela é?

— A vi de longe — Harold murmurou. — Mas, é uma jovem normal. Bonita, até. Cabelos escuros, olhos azuis, típica ítalo-americana. O temperamento, creio eu, deve ser doce e delicado, pois foi criada dentro de um convento.

Naquele palacete ao leste de Chicago, agora Dylan Bennet conseguia ver exatamente quais seriam os próximos passos de sua vida.

— E qual é a da nova cozinheira? — brincou.

— A moça procurava trabalho.

— Muitos procuram. Mas, poucos têm a sorte de encontrarem um cavalheiro como você.

Harold não conseguia esconder o sorriso animador.

— Quem sabe... Um dia... — murmurou.

Um dia poderia ser um pastor ou um simples pai de família. Talvez a jovem Mary estivesse ali por um propósito.

Que Deus o permitisse sonhar...


Foster era tão confiante em seu poder na cidade que o Convento não tinha sequer um único guarda a manter sua filha protegida.

Assim, não foi difícil para os homens entrarem. Numa madrugada fria de inverno, enquanto uma das madres preparava o altar para as rezas da madrugada, Harold a rendeu.

— Pelo amor de Deus, isso é um convento. Respeite Nosso Senhor! — A mulher buscava dignidade no homem negro, mas não a encontrou.

— Jessica Foster, madre? Onde está? — Harold indagou.

— O que deseja com Jessica?

— Não importa à senhora. Diga-me onde ela está e ninguém irá se machucar.


— Segunda torre, cela B. Você tem vinte minutos. Depois disso, o sino irá soar para as rezas — Harold avisou ao amigo.

Dylan assentiu.

— E a freira?

— Lhe bati com a coronha da arma. Mas, não ficará desacordada por muito tempo.

Outro aceno.

— Saíam daqui e deixem o carro ligado. Em breve irei até vocês.

— Não precisa se arriscar, senhor — Thomas murmurou. — Eu posso fazer isso.

— Tudo que se trata de Foster, eu quero fazer pessoalmente.

Diante disso os homens saíram do convento. Dylan seguiu na direção correta, e logo estava no corredor que indicava as celas das noviças.

Percebeu as letras de identificação nas portas e, na segunda, entrou.

Apesar do breu, logo a percebeu. Cabelos longos e escuros contrastando com a fronha branquíssima. Dormia como um anjo, serena, alheia ao mal que espreitava.

Ela remexeu-se e ele lhe apontou a arma. Repentinamente, matá-la parecia má ideia. Ter uma refém com a qual Foster pudesse se importar era algo precioso.

Um manto escarlate caiu sobre sua face, com a virada do corpo no leito. Era frio, ela parecia buscar se aquecer melhor com as poucas cobertas.

Dylan sorriu, aproximando-se da cama.

— Acorde... Acorde chapeuzinho vermelho.

A moça pareceu um tanto confusa, mas logo arregalou os olhos ao perceber o cano gelado do colt sobre sua bochecha.

— Cobertas vermelhas? Lembra-me de a história do lobo mau — ele brincou. — Não precisa se assustar, apenas quero devorá-la um pouquinho, chapeuzinho.

Repentinamente, a coisa mais surpreendente do mundo arrebatou todo o ambiente. A voz lúcida, fria e racional da mulher ficou audível.

— Você acha que eu sou a presa? A vítima? A chapeuzinho? — ela riu baixo. — Eu sou o caçador.

Capítulo 04

 


"Esta menina delicada

é um quitute delicioso”.

Irmãos Grimm

 

— Acha necessário amordaçar uma noviça?

Dylan Bennet encarou o amigo com o olhar assombrado. Harold não fazia ideia do demônio de aparência frágil que estava diante deles.

— Noviça? Só se for do diabo.

— Não blasfeme.

— Sequer se assustou em ver um homem armado em seu quarto — objetou. — Depois, ainda me ameaçou com palavras um tanto desconfortantes. Não nega a raça. É bem filha de Antony Foster.

A mulher gemeu e se chacoalhou na cama, parecia ansiosa para falar. Mas, nenhum dos homens moveu-se para soltá-la.

— Está presa nesse quarto, nessa mansão fora da cidade, cercada por seus homens. Por que mantê-la amarrada? Ao menos podemos lhe dar uma estadia decente.

As palavras pareciam incoerentes ao Bennet.

— É a filha de Foster!

— É uma moça criada em um convento. Quiçá, sequer sabe o que o pai faz.

— É o mesmo sangue podre.

— Ainda assim nada fez para isso.

Dylan ergueu as mãos, derrotado. Era difícil competir numa guerra verbal com o melhor amigo.

Caminhou para próximo da janela e observou o movimento do sol que nascia enquanto Harold soltava a mordaça da moça.

— Então, prenderam-me por causa de Foster? — ela indagou.

— Você não tem a doçura das freiras — Dylan deixou a janela e volveu-se para ela. Aquela constatação o incomodava.

— Porque não o sou.

— Mas, foi criada num convento.

— Uma interna — explicou. — Que teve que viver a vida pelos olhos de outras jovens que lá estiveram. E aprendi o que pude enquanto isso.

Os dois homens se encararam.

— Querem Antony Foster, não é? — ela indagou.

Dylan passeou os olhos pelo corpo bonito e atraente. O olhar azul era vívido como o fogo do fogão. Ela estava enrubescida; todavia, aquele vermelhidão não aparentava raiva.

— Sim, eu quero o maldito.

— Então me solte. Dê-me uma arma. Diga-me onde ele está e deixe-me fazer o serviço.

O olhar do bandido apertou-se, diante da frase enigmática.

— É seu pai.

— Sim, é meu pai. Acredito que conseguirei entrar em sua casa e me aproximar para matá-lo.

Dylan riu. Era um blefe, tinha certeza.

— E por que mataria o homem que te deu tudo?

— E o que ele me deu, branco? — ela indagou, enojada.

— Teto, educação — o outro homem da sala respondeu. — O que se espera de um pai.

— Cale a boca, preto — devolveu. — Não sabe de nada!

Dylan caminhou reto até a cama. Afundou o joelho nas cobertas e segurou a garganta da mulher com força. Mesmo assim, não viu medo.

— Não fale assim com ele — murmurou.

Soltou-a. Jessica Foster tossiu antes de retrucar.

— E como vou chamá-lo, branco? Não fomos apresentados.

Maldita!

Por que não choramingava? Por que não aparentava o mínimo respeito ou temor?

— Eu sou Harold e ele é Dylan — o amigo respondeu.

— Harold! — ralhou. — Não diga a ela!

— Não vê o óbvio, amigo? — indagou. — Não percebe o ódio?

— É uma encenação para ser solta.

Jessica riu. Ela tinha uma risada tão falsa quando a própria. Dylan arrepiou-se com o fato. Quando planejou pegar a garota, preparou-se para uma indefesa e amedrontada noviça. Mas, diante dele estava um furacão.

Voltou a aproximar-se da cama. Queria ver o medo naquele olhar. Queria que ela o temesse, porque isso ajudaria em seus planos. Então, escorregou a mão pela perna pálida, erguendo a saia levemente.

— Talvez eu devesse fodê-la e depois entregá-la a meus homens? — murmurou a ameaça, e preparou-se para o choro e as súplicas.

Mas, nada mudou. Estava diante de um iceberg .

— Acha que pode me ameaçar? Amedrontar-me? Você não tem nada para tirar de mim, porque nada restou depois de Antony Foster.

Dylan ficou sobressaltado diante da frase. No entanto, nada disse. Sendo segurado no braço por Harold, ele deixou o quarto.


— Jessica Foster — Harold murmurou. Diante dele, Dylan servia conhaque em pequenos copos. — Parece ser uma jovem muito forte.

— Interpretação — contrapôs.

— Não sei — o outro negou com a face. — Parece odiar o tal Foster mais que você.

— É o pai dela — ironizou. Depois, estendeu o copo ao amigo. — Provavelmente, quer nos enganar.

Charutos foram acesos. Cada qual parecia meditar diante da situação que acabara de ocorrer.

— Me perdoe, irmão — Harold murmurou. — Mas a achei estranhamente franca e sincera.

— Está defendendo aquela mulher?

— Sabe a hora que ela me chamou de preto? Não senti o repúdio ou a ofensa nas palavras. Era uma característica. Ora, é minha cor. E você é branco. Ela não sabia nossos nomes, então nos chamou pelo que nos definiu. Usou a mesma entonação quando falou do pai.

— Quer dizer o quê com isso?

— Que talvez não esteja mentindo.

Dylan recusou o óbvio.

— O que importa? Ainda temos que descobrirmos onde está Foster e avisá-lo que estamos com sua filha.

— Sim, até porque ele não veio vingar o sobrinho...

Subitamente, um sorriso maquiavélico no rosto do pele clara. Harold arqueou as sobrancelhas.

— O que pensa?

— Em testar a nossa prisioneira.

Houve novamente um breve silêncio.

— Não lhe disse antes, mas o advertirei agora. Não concordo com estupros.

— E quem precisa estuprar uma mulher quando se tem um monte de meretrizes a lhe servir por um bom dinheiro? — devolveu. — Agora, vá buscar informações sobre a filha de Foster. Quero saber tudo sobre a mãe, família ou qualquer outra coisa relevante.

O outro assentiu e levantou-se rapidamente. Apesar de serem irmãos de alma, Dylan ainda era seu chefe.


— Aonde vamos?

A pergunta de Madison, uma das jovens cortesãs que serviam aos homens do clã Bennet, era coerente. Quando a chamou naquela tarde para lhe afagar o ego masculino, a jovem loira aspirante à atriz que se perdeu no mundo da prostituição e das drogas imaginou que Dylan a levaria ao próprio quarto.

Contudo, ele seguia em direção ao outro corredor da casa.

— Diga-me, bela Madison, você se incomoda com plateia?

A pergunta seguiu-se ao abrir de uma porta. No fundo do quarto, uma jovem estava presa em uma cama. As mãos e as pernas bem firmes em cordas que iam até a cabeceira. O olhar dela era frio e irrequieto.

Madison percebeu a roupa simples de dormir, e quis rebelar-se contra algo tão asqueroso. Mas, como uma Moll , uma mulher de bandido, ela tinha que aquiescer e aceitar o que viesse.


Jessica percebeu o horror da jovem ao vê-la presa. Mesmo assim, aquela pequena loira de olhos verdes não pestanejou ao entrar no quarto.

Estava bem vestida. Escandalosamente bem vestida.

O vestido preto, de tranças nas pontas, era acima do joelho. Jessica nem sabia que mulheres podiam mostrar os joelhos! Ela usava colares largos que chegavam ao peito. Uma tiara com uma pena colorida adornava seus cachos claros.

— Jessica Foster, essa é Madison. — O homem que se dizia Dylan as apresentou. — Madison veio te mostrar como uma dama deve se portar.

As palavras pareciam estranhas, mas Jessica havia dito, desde o primeiro instante que o viu armado em seu quarto, de que não pestanejaria nem se amedrontaria.

Aquela raça maldita que vestia ternos caros e escuros, chapéus fedora , e sapatos de couro preto, era da laia de seu pai. Nenhum deles lhe acovardaria.

Dylan ergueu a saia de Madison, e Jessica foi capaz de ver a cinta liga escura. Nunca havia visto outra mulher em roupa de baixo, mas não se assustou. Não era muito diferente dela mesma.

— Você já viu um pau? — Dylan indagou, abrindo a braguilha da calça.

Se ele imaginou que ela fecharia os olhos e se esconderia em lágrimas, estava muito enganado. Ela só chorava pela mãe. De resto, a raça humana imunda e podre não lhe transmitia nada.

Então, ele pegou aquele pedaço de carne duro e ereto e o levou até as nádegas de Madison.

A mulher a observou. Viu as lágrimas. Percebeu que doeu quando ele enfiou-se nela (onde diabos ele havia colocado?), e ficou com pena.

Mas, não retrocedeu. Não transmitiu nada. Ficou firme e fria.

Que ele fizesse o que quisesse, porque dela não teria nada.

Todavia, o ato foi interrompido por um estrondo na parte inferior da casa.

Dylan logo puxou seu membro para dentro das calças e pegou o revólver do casaco.

— Fique aqui — ordenou a Madison, que ajeitava as calçolas e choramingava.

Estava com medo. De quê?

Quando Dylan sumiu, Jessica lhe chamou.

— Ei, Madison, não é?

A loira assentiu.

— Madison, preciso que me solte — pediu.

A mulher parecia em dúvida. Nitidamente, ela queria isso, mas sabia das consequências.

— Ele vai me matar.

— Talvez ele não volte do que quer que for que esteja ocorrendo lá embaixo. Mas, nós temos uma chance. Solte-me e eu cuido de você.

Era como se aquelas fossem as únicas palavras que Madison esperasse ouvir em toda a sua vida.

Puxando um pequeno canivete do sutiã, ela correu até as cordas.


Era um silêncio estranho depois de estrondos que lembravam tiros. Dylan preparou a arma e seguiu em passos vagarosos pelo corredor, aguardando pela emboscada. Desde que armara para sabotar o contrabando de Foster, aguardava retaliação, mas imaginou que ela viria mais rápida e na cidade. Poucas pessoas sabiam daquele refúgio próximo ao lado Michigan. Além disso, a emboscada ocorrera há semanas, e só então o velho vinha até ele?

Se só surgia agora, era porque alguém já delatara que ele estava com sua filha.

Subitamente, uma dor forte as costas. Caiu no chão. A arma voou longe, e ele tentou engatinhar rápido para chegar até ela.

Infelizmente, foi pego no caminho. Três chutes nas costelas e Dylan perdeu o ar.

— Esperei que aquele preto saísse com metade dos seus homens e então ataquei. — A voz era de David Foster, sobrinho de seu inimigo. — Acha que ficaria impune a vergonha que me fez passar diante do meu tio?

Então, o homem não estava ali por Jessica?

— E onde está Antony Foster? — indagou, gemendo. — É tão covarde que não veio pessoalmente reclamar sua mercadoria perdida?

— Ele não se preocupa com lixos como você — devolveu.

— Ou talvez ele não aprove seu ataque suicida. Sabe bem que estou praticamente sozinho na casa, e quando meus homens souberem que veio até aqui, você será o alvo perfeito de Harold.

Outros dois chutes.

— Filho da puta! Merece morrer pelo que fez a Família Foster!

Mais chutes. Dylan sentiu os olhos escurecerem. Iria desmaiar pela dor. O desgraçado talvez houvesse quebrado uma de suas costelas.

Mas, subitamente o ataque cessou. Percebeu David caindo diante dele. Só então a visão lhe confirmou Jessica com um martelo na mão. Atrás dela, Madison estava em choque.

— Então você é um Foster? — a mulher indagou.

Um tanto zonzo, David ainda teve tempo de perguntar:

— Sim, um Foster. E você, quem é?

— Aquela que vai banir seu sangue da face da terra.

Madison gritou quando as marteladas começaram a romper o crânio de David. Pedaços de pele e cérebro respingaram pela parede. O sangue escorregava, atingindo os ocupantes daquele corredor estreito.

Assombrado, Dylan foi adquirindo as forças, erguendo-se, enquanto via Jessica martelando a cabeça do primo.

E só naquele momento soube que Harold estava certo. Ela odiava Antony Foster mais que tudo.

Então, quando mais nada restava além de pedaços de um corpo estirado no chão, ela volveu seu olhar para ele. Estava coberta pelo tom rubro do sangue, mas o olhar azul estava mais vívido que nunca.

— E então? Acredita em mim agora?

 

Capítulo 05


“Olha, Chapeuzinho Vermelho,

que lindas flores!”

Irmãos Grimm

 

— Meu Deus do céu — Harold murmurou ao verificar o corpo.

Aquele era um ataque puramente emocional. Jessica Foster era praticamente uma psicopata quando se tratava da família. Ao descobrir o que ocorrera com sua mãe, ele conseguia entender os motivos.

— As demais pessoas da casa estão bem?

Dylan gemeu enquanto Madison apertava uma atadura em seu torso.

— Fala da cozinheira? Ela estava na horta quando aconteceu o ataque e não sabe de nada. Deu muita sorte.

— Como descobriram onde estávamos?

— Alguém deu com a língua nos dentes, mas isso não importa mais. Por que me preocuparei com o pai, se a filha é uma máquina de guerra afogada em raiva?

A frase seguiu-se de um riso irônico. Harold não gostou daquilo.

— O que pensa em fazer, agora?

— Ora, irmão. Vamos ver com Jessica qual é a vontade dela.

No fundo do corredor, Thomas, um dos seus capangas, surgiu.

— Livre-se desse lixo — Dylan ordenou ao homem, apontando o cadáver estripado. — E você — apontou Madison —, venha comigo.

Harold também os seguiu. Logo chegaram a um quarto. Quando entraram, depararam-se com Jessica nua, deitada em uma banheira, limpando-se do sangue que havia manchado todo seu corpo.

Harold quis sair do quarto, mas a voz feminina o interceptou.

— Não fique acanhado. Acredito que não sou a primeira mulher nua que você já viu.

O homem negro encarou o outro. Percebeu o sorriso de Dylan. Notou que estava deslumbrado.

— Não é adequado — murmurou.

— Seu amigo já me mostrou o pau dele — Jessica retrucou. — Bom, não sei se é esse o nome, mas foi assim que ele chamou o treco feio que tem no meio das pernas.

Uma gargalhada. Dylan parecia estar divertindo-se como nunca naquela experiência. E era realmente algo único. Jamais imaginariam que uma jovem criada entre feiras fosse tão avessa as formalidades sociais.

Contudo, o que ela disse enervou o negro.

— Você tentou...? — Harold começou, mas foi interceptado.

— Não, não a estuprei nem forcei. Estava apenas tendo um momento com nossa pequena e doce Madison. — Puxou a loira contra si. — Aliás, é por isso que está aqui, querida. — observou, acariciando um tanto agressivamente a face da loira. — Por que a soltou quando deixei claro que não devia fazê-lo?

Claramente, Madison ficou desesperada. O aperto das mãos masculinas em seu corpo deixou-a incapacitada de lutar por si. Até porque, de que adiantava? Mulheres como ela sempre eram mortas quando erravam ou quando não despertavam mais interesse.

— Acho melhor você soltá-la — ouviu a voz da outra mulher.

Seus olhos observaram Jessica Foster erguendo-se da banheira, nua, completamente inocente de sua sensualidade latente, mas enervada ao ponto de lutar por sua vida.

— Você sabe do que sou capaz — Jessica murmurou. — Me quer como inimiga? — Depois observou Madison carinhosamente. — Salvei sua vida, me deve isso. Dei-me a loira de presente.

Dylan mal conseguia respirar. Havia algo naquela mulher que eclodia nele. Era como um espelho. Havia a raiva, o ódio. Mas também havia uma gana especial que lhes permitia acordar toda manhã, e buscar seu propósito.

Atirou Madison contra Jessica, que a abraçou, consolando-a.

— Eu disse que cuidaria de você — A morena murmurou contra seus cabelos macios.

E tinha palavra, Madison percebeu.

— Agora saía, amor — Jessica ordenou. — Tenho que falar com os homens.

Enquanto a loira se afastava, Harold aproximou-se de uma toalha e a estendeu a Jessica. Eles a esperaram pacientemente secar-se e vestir-se.

O homem soube naquele instante que cada momento de suas vidas estaria interligado a vontade dela.


Jessica sugou a fumaça da piteira e aspirou pausadamente à sensação agradável do cigarro. Enfim, compreendeu naquele instante que gostava de fumar. E de beber. O amargor do álcool pareceu aquecer sua alma gélida.

— Então, essa é sua mãe — Dylan lhe estendeu uma fotografia.

Foi estranho vê-la, após tantos anos. Justine ainda era exatamente como em suas lembranças. Muitas das recordações de Jessica perderam-se no tempo, mas Justine permaneceu.

— Meu único amor — ela murmurou, buscando a foto e beijando-a gentilmente.

— Encontrei uma tia-avó sua — Harold contou. — Ela não tem interesse em conhecer você, mas ao menos contou-me sua história. O que sabe de si?

— Apenas que minha mãe era a mulher mais maravilhosa do mundo, e que foi tirada de mim muito cedo.

Harold assentiu.

— Justine, sua mãe, era filha de um empregado da fábrica. Pertencia a uma boa família cristã. Ela era uma moça muito decente e honrada, mas caiu na lábia de Antony Foster. Os pais a avisaram que o homem não prestava, mas, provavelmente pela pouca idade, não percebeu o risco. Foi deixada assim que ficou grávida.

Dylan observou Jessica. Naquele instante, curto e breve, ela não era uma fera ferida. Agora, era apenas uma garotinha ouvindo histórias que desconhecia.

— Os pais exigiram que ela tirasse o bebê, mas Justine se recusou. A sua tia-avó disse que ela preferiu limpar penicos e vender o corpo para sustentar a filha, a matá-la.

— Minha mãe era uma puta? — Jessica sorriu. — Não me surpreende. Eu lembro que, às vezes, eu tinha fome, ela saía por algumas horas e me trazia comida sem explicar como conseguiu.

— Minha mãe também era puta — Dylan a surpreendeu. Não esperava que ele fosse ser compreensível com ela. — Mas, era a mulher mais incrível do mundo.

Trocaram sorrisos. Almas se reconhecendo após tanto tempo.

— Mas, essa vida não é segura, e então um dia ela envolveu-se numa briga de gangues e...

— Isso é o que disseram a você? — Jessica o interrompeu.

Harold assentiu.

— É a história oficial.

Jessica riu.

— Meu pai a matou. Seus homens me matariam também, mas ele disse que eu era sua filha, e me levou da casa onde morávamos. Não me deixou sequer despedir-me de minha mãe.

Os dois ficaram chocados.

— Eu nunca soube direito porque ele fez isso, e também não me importa. Tudo que me lembro dele é o maldito dizendo que eu devia ser grata por ele ter me tirado daquela vida. Depois, algumas visitas curtas no convento onde exigia que eu lhe pedisse sua benção.

Ali estava, toda a razão para aquela raiva.

— E você pedia? — Dylan perguntou.

Não que importasse, mas estava curioso. Ela era estranhamente corajosa e inconsequente.

— Não.

— E o que acontecia por se recusar?

— Castigos — murmurou. — Castigos dados pelo padre por conta de minha alma perturbada. — Jessica tragou novamente. — Não importa mais. O padre não estava errado, eu sempre soube que havia algo maligno em mim. E tive muito tempo para marinar esse ódio no convento.

Dylan acreditava nela.

— Não sei o que planejam contra Antony Foster, mas estou dentro. Serei de grande ajuda, pode acreditar.

Dylan sabia. E mesmo que não o soubesse, ele já estava conectado a ela.


Ela havia arrumado os cabelos num coque baixo e bonito. Era elegante, naquela roupa socialmente discreta. Um bege claro que contrastava com os cabelos negros como a noite.

Os sapatos de saltos altos denotavam sua figura pueril. Dylan não evitou o suspiro ao vê-la vestida de forma impecável pela primeira vez.

Estavam numa área aberta, usada para treinamento de tiro. Se Jessica Foster faria parte de sua gangue, ela tinha que saber se defender sozinha.

— Eu gosto de navalhas — ela comentou, assim que ele lhe estendeu calibre ponto trinta e oito.

— E de martelos, eu reparei.

Não evitava mais sorrir em sua presença. Até porque, ela sempre retribuía seu sorriso com outro maior, mais afetuoso.

Volveu-se para o alvo. Apontou a arma.

Céus, estava louco por ela...

Apertou o gatilho. No alvo. Na mosca. Sempre foi bom de mira.

Volveu seu olhar à mulher. Percebeu sua admiração.

— Já atirou antes?

— Eu aprendo rápido — ela murmurou.

Pegou a arma. Recebeu as instruções mais básicas sobre preparo e repuxo. Por fim, disparou.

O estrondo doeu em seus ouvidos, mas ele percebeu que Jessica permanecia segura. Todavia, ela não havia sequer se aproximado do alvo.

— Imagine que é seu pai — murmurou contra seus ouvidos.

O corpo dela estremeceu. Sentiu-se mole e aquecida. O encarou. Houve alguns segundos em que os olhos ficaram um vidrado no outro, até baixarem, aos lábios.

Ela também o queria...

Mas, Jessica não estava ali para flertar. Ela tinha uma vingança para concretizar e sua raiva parecia maior que a dele.

Voltou-se novamente para o alvo. Respirou fundo.

Apertou o gatilho.

Na mosca!


— Nós não temos problema com a maioria das famílias de Chicago — Harold comentou, enquanto limpava o cano Submachine marrom. — A maioria fica restrita a sua área, e mantêm o respeito. Existe um código que todos seguem — ele comentou, repassando a ela a arma.

Jessica carregou a arma, e depois a entregou a Madison, que a colocou em uma caixa.

— Código?

— Uma linha de regras que faz com que possamos viver em relativa paz entre as gangues.

Ela riu. Viver em paz parecia algo muito longe de uma vida em Chicago.

— Seja franco — Harold começou. — Não prometa se não puder cumprir; Pagar as dívidas é tão importante quanto cobrá-las; Respeite a casa dos outros. — Depois, suspirou pesadamente. — Não guarde ressentimentos — murmurou, por último.

— Seu chefe não parece muito disposto a cumprir a última regra.

Harold assentiu.

— O velho Bennet sempre manteve sua família, sua casa, seus homens sobre essas regras; e sempre trabalhamos em sossego. Mas, Dylan... Ele não consegue seguir isso. Nunca terá paz se não obtiver sua vingança.

— Sorte a minha — ela riu. — E dele, também. Alguns dos homens da gangue poderiam querer a morte dele por causa disso, mas manteve a lealdade dos Bennet.

— Não de todos — Harold murmurou. — Essa casa em que estamos é um refúgio. Ninguém devia saber sobre sua existência. Contudo, seu primo a achou.

— Um traidor entre nós? — Harold percebeu a preocupação na voz feminina.

— Bom...

— Precisamos descobrir quem é, e matá-lo — ela advertiu. — Não podemos permitir que nada atrapalhe a vingança.

Céus, ela era uma versão feminina de Dylan. Ele assustou-se com a semelhança.

— Amor — Jessica volveu-se para Madison. — Vá preparar meu banho quente, por favor.

A mulher loira ergueu-se rapidamente, deixando-a a sós com Harold.

— Você a trata com muito carinho — o negro murmurou.

— Ela me ajudou num momento difícil arriscando a própria vida. E eu lhe fiz uma promessa. Eu cuidarei dela enquanto viver — objetou. — Mas, e quanto ao delator? Tem ideia de quem possa ser?

— Não.

— E aquele tal de Thomas? Achei-o um tanto estranho.

— Fiel como um cão — negou. — Todos da casa o são. Dylan pode ser um homem estranho, mas é justo e honrado com todos do clã. Ele morreria por cada homem daqui, e sei que todos também dariam a vida por ele.

Aquele tipo de unidade era estranho para Jessica. Depois da mãe, ela nunca teve nenhum vinculo.

— Agora, você é um de nós. Mataríamos por você, também — Harold murmurou, a fazendo rir.

Esperava que nunca fosse preciso.

 

 

 


Capítulo 06

 


“Que orelhas tão grandes tens!
- São para melhor te ouvir”.

Irmãos Grimm


— É sério, Bennet?

Dylan sorriu para John Brich, um capitão de navio pirata que lhe trazia bebida contrabandeada do México.

— Uma mulher?

O tom machista parecia não incomodar a dupla que o encarava com torpor.

— Invejei Al Capone por ter tido a brilhante ideia de colocar Virginia Hill como contadora. Mulheres são mais frias e honradas no andamento dos negócios.

— Mas a sua dama não parece disposta a mexer com números.

Jessica riu. Dylan não a observou, mas soube que ela estava muito confortável em estar ali, numa baía escura e perigosa, carregando nas mãos uma Lupara.

— Mas ela sabe mexer, pode ter certeza.

Depois disso, homens surgiram carregando caixas. Alguns dos homens de Dylan pegaram as mesmas, abriram algumas, verificaram o conteúdo e assentiram para o chefe.

Naquele instante, Dylan entregou uma maleta cheia de dólares a John.

— É sempre um prazer fazer negócio com você, Bennet — o outro sorriu diante do dinheiro.

Era uma tarefa simples, não fosse tão perigosa. Pegar a bebida em algum lugar secreto, encher caminhões com ela de forma discreta, e depois espalhar por bares clandestinos.

— Não é tão complicado assim — Jessica murmurou.

Enquanto os homens se afastaram, Dylan aproximou-se dela.

— Não há muitas mulheres no crime, não é? — ela brincou.

— Há sim, mas a maioria é namorada dos gângsteres. É raro uma que tem papel ativo sem precisar de um homem para protegê-la.

— Que fofo. E você estava me protegendo? — ela brincou.

— Temos objetivos semelhantes — ele concordou. — Ah, Jess... — murmurou seu nome entre os dentes. Era delicioso. Ele adorava cada parte dela. — Você é tão maravilhosa, sabia?

— Por que também quero a morte de Antony Foster?

— Exatamente. É tão raro encontrar alguém que entende minha raiva e me apoia. Mesmo Harold tem suas dúvidas sobre minha vingança.

A mulher sabia que aquilo era verdade.

— Ainda temos tanto a trabalhar no plano, não é mesmo? — indagou. — Sei que...

Sua fala foi interrompida por sirenes e apitos da polícia. Novamente, alguém os havia dedurado. Aquela rotina já estava incomodando Dylan demasiadamente.

Pensando rápido, Dylan ordenou aos homens que se espalhassem. Perderiam a mercadoria, mas não queria nenhum deles preso. O prejuízo ele calcularia depois.

Puxou Jessica pelo braço e a levou até o lugar mais escuro dali. Havia algumas salas pesqueiras abertas, e ele a encostou contra uma parede, enquanto protegia seu corpo com o próprio e observava ao redor, com a arma em punho.

— Eu não preciso que me trate como uma coitadinha — ela murmurou.

O hálito cálido fez seu sangue ferver.

— Ainda está em treinamento — disse, sua boca muito perto da dela. — Quando estiver pronta, será você a me proteger — brincou.

Houve uma gritaria. Ordens para buscas. Novamente, percebeu que precisava tirá-la dali. Não queria que a pegassem. Se ele morresse ou fosse preso, ainda teria a ela para concretizar a vingança. Um dos dois tinha que chegar até Antony.

Correram pelo labirinto de casebres até chegarem a um bairro de pescadores.

Estava muito frio e um dos saltos de Jessica havia quebrado. Estranhamente, ela não havia dito nada mediante isso e permaneceu ereta, com um dos pés erguido.

Era tão forte... Tão firme... Dylan teve a sensação que desconhecia o medo.

A chuva intensificou-se. A água estava gelada, então buscaram abrigo numa casa de pesca abandonada. Lá, havia apenas um amontoado de lenha e moveis velhos empoeirados.

Dylan limpou um dos vidros da janela e apoiou a pistola ali, à espera que fossem pegos.

Mas, não seriam. Não sabia, mas já haviam se afastado bastante de onde a emboscada policial ocorrera.

— Tem ciência de que alguém está nos delatando, não é?

Dylan sabia que Jessica estava insistindo no assunto com Harold. Ele mesmo estava incomodado com esse pensamento. Confiava a vida a seus homens.

— Entende que não posso arriscar minha vingança? — ela indagou.

— Quer sair do clã Bennet? — ele devolveu.

Nem mesmo havia percebido o momento em que Jessica deixara de ser sua prisioneira e tornara-se sua irmã de armas.

— Quero pegar o delator e matá-lo — ela respondeu.

Ele riu, baixo.

— É tão surpreendente seu vocabulário. Especialmente se levarmos em consideração que é uma mulher criada num convento.

— Já lhe disse que marinei por anos em ódio naquelas celas.

— Sim, você é perfeita — ele murmurou.

Lá fora, a chuva ficou mais forte. O ambiente estava gelado. Dylan baixou a arma e observou a madeira. Queria acender uma fogueira, mas a luz poderia atrair a atenção.

— Como sairemos daqui?

— Quando for seguro, iremos até uma das minhas casas na cidade.

— Espero que não morramos de frio até lá — ela gemeu. — Queria muito um cigarro.

— Você fuma demais.

— Acalma minha mente.

Ele podia entender aquilo. Também usava o tabaco como uma droga mental.

Tirou o casaco e colocou sobre os ombros dela.

— Pronto, Jess... Fique firme que logo estará numa casa quentinha e confortável — disse baixo.

— Jess? Por que me chama assim?

— Eu gosto — ele confessou. — Gosto de tudo em você.


O tempo parecia passar vagarosamente naquele cubículo sujo e fedido. Jessica observou os restos de peixe jogados em um lado, e algumas garrafas vazias de bebida em outro.

Largou a arma, e sentou-se em um banco que parecia prestes a ruir.

— Por que não nos pegam de uma vez? — reclamou.

— A vida no crime é um jogo de paciência, querida — ele brincou. — Teremos sorte se a policia desistir de nos caçar e escaparmos daqui.

— Tenho certeza que você tem bons advogados — ela ironizou a situação.

— Os melhores. Mas, não quero minha Jess numa cela cheia de vagabundas que podem querer tocar na sua pele. Isso é algo que eu quero exclusividade.

— Quer?

Dylan sabia que ela não se intimidava por desafios. Mas, quando agia assim, tão sedutora, ele quase perdia a razão. E amor não era exatamente algo que se podia vivenciar naquela vida maldita.

— Quando eu estava no convento, uma das garotas comentou-me que foi beijada por um namorado — Jessica contou. — Fiquei curiosa com a experiência.

Ele riu.

— Céus, você é uma tentação. Mas, ainda tenho um pouco de juízo na minha cabeça.

Jessica suspirou, como se zangada pela desfeita. Ora, ele a agradava. Era bonito de fazer as mulheres olharem demasiadamente em sua direção. Tinha os cabelos negros e o olhar intimidante. Fazia as pernas dela tremerem.

— Devíamos viver a vida com toda a intensidade que ela nos dá — Jessica avisou.

— Mesmo? Por quê?

— Porque é curta — foi direta e franca. — Estamos prestes a matarmos Antony Foster. Mesmo que sobrevivamos a emboscada contra ele, haverá represaria. Ou talvez a polícia nos pegue. Quem sabe nos pendurem em cordas, nos enforquem sem piedade, ou nos eletrocutem enquanto fumam charutos enormes e conversam sobre a missa de domingo.

Dylan sabia que ela tinha razão. Mas, sabia igualmente que, caso avançasse, era um caminho sem volta. Ela o faria perder a cabeça, esquecer sua racionalidade, arriscar tudo. Ele sequer a tocara e já não a tirava dos pensamentos.

— Não estou te pedindo em casamento — Jessica ergueu-se. Caminhou até ele. — Estou te pedindo um beijo. Sou tão feia assim?

— Jess — ele disse, não mais resistindo a aproximar-se. — Não entende? Gosto de tudo em você.

E então estendeu sua mão. Os olhos vidrados um no outro. Os dedos tocaram o rosto feminino, num carinho confortador. O polegar passeando pela bochecha até chegar aos lábios. A boca abriu-se.

Ele agachou-se um pouco e quase a beijou. Ouviu o gemido baixo dela, mas voltou atrás. Queria vê-la mais um pouco. Ainda a pura Jess. Porque sabia que depois que se fundissem, ele a corromperia como a tudo que tocava.

O dedo deslizou para o queixo. Os olhos cravaram na boca. Voltaram ao olhar azul. Subitamente, os dedos deixaram o rosto, e os dois braços fortes e másculos a cercaram na cintura.

Dylan a puxou forte contra si. Ela gemeu novamente. Estava trêmula. Ele tinha uma pegada muito forte, ela sabia que jamais escaparia dali.

Os dedos masculinos apertaram sua nuca e então ele a beijou. Não doce. Não delicadamente como se devia a uma virgem. Ele a sugou com toda a sua alma, apertando-a, deslizando a língua entre seus dentes, lambendo sua boca, gemendo enquanto sentia o próprio prazer feminino rebolando discretamente contra seu ponto viril.

Segurou o rosto de Jessica. Mordeu seus lábios. Marcou-a. Chupou-a. Queria que ela soubesse que era dele. Porque ele também era dela.

Mais sons sensuais. Os corpos esquentaram-se rapidamente. O frio, a chuva, o vento forte que batia naqueles vidros sujos ficou perdido nos gemidos carnais que ecoavam pelas madeiras podres.

Puxou-a para cima de si, a erguendo um pouco, fazendo com que o corpo feminino deslizasse pelo seu.

— Ah... — aquele som gutural escapou dos lábios de Jessica.

Ela queria. Ele sabia. Mesmo que não estivesse pronta, queria. E queria muito.

O casaco dela caiu no chão. As mãos geladas do homem tocaram sua espinha por baixo da blusa clara.

O beijo parou. Encararam-se.

Ele a analisou. O olhar febril fê-lo volver a boca. Um beijo gentil. Entretanto, Jessica queria mais e agarrou seus cabelos, fundindo suas bocas novamente.

Aquela mulher não era do tipo delicada, definitivamente.

— Delícia — ele murmurou, voltando a beijá-la.

Ele sentia os braços dela o apertando, suas mãos deslizando pelos seus cabelos, puxando.

Era uma agonia de prazer.

A camisa foi arrancada. Ele pode ver o corpete por baixo. Os seios bem firmes, lindos, perfeitos. Já a havia visto nua, mas agora era diferente. Agora havia marcas de seus chupões por toda a pele abaixo do pescoço.

As pernas vacilaram. Ambos caíram no chão, de joelhos, um diante do outro.

Dylan deslizou as duas mãos nas coxas femininas. Apertou-as, puxou-as contra si, abrindo-as e derrubando Jessica para trás.

Ali estava ele. No lugar que sempre quis. No meio das pernas da mulher pelo qual esperou a vida toda.

Deitou-se sobre ela, beijando mais. Acariciando com as mãos aonde a boca não chegava. Queria tudo. Queria a alma dela em suas mãos.

A saia subiu na cintura, e as calçolas desceram para os joelhos. Aquele ninho de cachos escuros o deixou louco.

Ele nem a ouvia mais. Os gemidos dela eram altos, e em algum lugar na mente masculina ele sabia que tudo que ela pedira fora um beijo, e não aquele sexo em pura agonia.

— Vem — ela o chamou.

Nem sabia pelo que clamava. Mas, queria. O que ele quisesse dar a ela, ela aceitaria.

Subitamente, contudo, o som de passos. Dylan travou.

— O que foi? — ela perguntou, quando ele ergueu-se um pouco. Beijou-o no queixo, puxando-o novamente para si.

— Alguém vem vindo — Dylan avisou.

Por que diabos naquela porra de vida do cacete alguém tinha que aparecer justo naquele instante?

Jessica vestiu-se rapidamente, enquanto Dylan corria para a arma.

— Fique agachada — ordenou.

Apontou para fora. Suspirou de alívio – e raiva – quando percebeu ser Thomas, um de seus homens.

 

Durante a madrugada, Thomas apareceu na casa de campo para informar que a retirada de bebidas da baía havia dado errado.

Nenhum dos homens Bennet foi preso, mas Dylan e Jessica estavam desaparecidos. No mesmo instante, Harold enviou alguns grupos para cercar aquele lado litorâneo, a fim de encontrar os dois.

Às seis horas, ainda sem notícias, Madison aproximou-se da cozinha, buscando por café.

Jessica era sua proteção. Ela sabia. Por conta da ex-noviça, ela desafiou Dylan. Não sabia o que o homem faria caso ela perdesse Jessica. Podia nada fazer, já que a antiga prisioneira agora era parte da gangue, mas... ela temia por si.

Quantas mulheres viu perderem a vida naquele emaranhado de conflitos em Chicago? Muitas amigas já não mais habitavam no mundo dos vivos.

— Você está bem?

Ali estava a doce Mary, a sorrir-lhe com gentileza. Harold Dayley estava encantado pela mulata bonita. Sabia que ele pretendia pedi-la em casamento assim que pudesse, e constituir família.

Harold sonhava em sair da vida de crimes. Madison poderia ter um destino semelhante?

— Moramos na mesma casa, mas praticamente não conversamos — a loira comentou. — Sequer lhe cumprimentei quando chegou.

— Oh, sei que foram dias difíceis.

— Mesmo assim foi muito descortês de minha parte.

Mary negou com a face e lhe serviu uma caneca de café. Era muito gentil e doce. Logo, sentou-se perto de Madison, a fim de lhe trazer tranquilidade.

— Preocupada com a Senhora da casa?

— Senhora?

— Achei que a mulher que sempre está com o chefe fosse sua esposa.

Madison não negou a informação.

— Eles estão sempre juntos, mas não sei se há algo além do que vemos.

Mary pareceu interessada.

— Você serve aos homens Bennet?

— Servia a todos. Mas, depois que Jessica veio morar aqui Dylan nunca mais me procurou, e os demais também se mantêm afastados. Acredito que seja por temê-la.

— Temê-la?

— Ela disse que eu lhe pertenço — falou, e não escondeu um sorriso enigmático ao dizer as palavras.

— Pertence? Quero dizer... Sei de algumas mulheres que gostam de estarem com mulheres.

— Oh, não... Não assim. Senhora Jessica nunca me tratou como amante. Ela é mais como... um anjo da guarda.

Mary sorriu.

— Espero ter a chance de conversar com ela algum dia.

— Oh sim, senhor Dylan e Harold a mantêm bem ocupada com o treinamento de armas. Quase não a vejo, também. Mas acredito que ela ficará feliz em conhecê-la.

Houve um barulho estranho na casa. Logo Harold surgiu diante das mulheres.

— Thomas os encontrou — avisou.

E apenas o sorriso de uma delas foi sincero.

 


Capítulo 07

 

“ Que mãos enormes tens!
- São para melhor te agarrar ” .

Irmãos Grimm

 


Talvez porque estivesse um tanto assustado com o furor dos sentimentos que Jessica provocara em si, naquele dia, naquele canto ao leste de Chicago, Dylan deixou-a ir sozinha com meia dúzia de homens a verificar um descarregamento de conhaque.

Era uma transação simples. Deixar algumas caixas num casebre discreto que mais parecia uma casa pobre, e pegar o dinheiro. Algo que normalmente Thomas fazia sozinho, mas que seria uma experiência válida para Jessica.

— Você tem um cigarro?

Thomas a observou. Impecável num terninho escuro, saltos altíssimos e cabelos escondidos por um chapéu de abas discretas.

Era muito bonita. Mas, sequer se atrevia a observá-la uma segunda vez. A filha de Antony Foster e a predileta de Dylan Bennet não era para seu bico.

Puxou um cigarro do maço que escondia nos bolsos e deu a ela. Assim que a viu colocando entre os lábios, levantou o isqueiro e acendeu.

O dono do bar aproximou-se, discreto. Thomas fez sinal para três dos homens que os acompanhavam, e eles começaram a descarregar as caixas e levá-las até o bar.

O procedimento foi rápido, já que não havia tempo a perder. A polícia estava apertando o cerco aos contrabandistas.

Logo, com a transação concluída, o caminhão dos Bennet se afastou e Thomas pegou a maleta de dinheiro.

O homem se afastou e eles aguardaram que ele entrasse na casa antes de darem as costas e andarem na direção do carro Buick preto que estava na esquina.

Subitamente, contudo, sirenes policiais. Jessica atirou o resto do cigarro no chão, enquanto sacava o revólver.

— Não! — Thomas antecipou. — Fuja agora.

Tão logo disse isso, foi acertado na perna por uma bala. Jessica o viu caindo e correu a fim de não ser o próximo alvo.

Chegou-se atrás de um barril e aguardou.

O que se fazia agora? Os policiais já se aproximavam de Thomas e ela soube que ele estava perdido. Não pareciam tê-la visto ou fazerem menção de irem atrás dela, mas um dos guardas ordenou que a frota fosse atrás do caminhão.

Apenas um deles ficou ali, a vigiar Thomas.

O companheiro estava sangrando e pelas caretas que fazia, devia sentir profunda dor.

Jessica decidiu permanecer quieta até saber para onde ele iria ser levado. Quando retornasse aos Bennet, queria levar consigo respostas.

Naquela noite aprendeu que nem tudo era fácil conforme o planejado.

 

— Não imagina como desprezo sua laia.

Thomas observou o homem em pé, a arma apontada para si.

— É mesmo?

— Vocês são os responsáveis por tudo de ruim que acontece em Chicago. Não respeitam a Lei Seca, introduzem álcool num país a beira do caos, piorando toda a situação.

— Sim, fomos nós os responsáveis pela Depressão.

Aquela ironia não foi bem vinda. O policial avançou e lhe chutou no rosto. Thomas gemeu de dor, sentindo que havia quebrado o nariz.

— Você é bem corajoso quando um homem está no chão — murmurou.

— Eu devia matá-lo! Poderia dizer que tentou fugir e eu tive que impedi-lo. Ninguém reclamaria pela morte de um lixo como você.

Thomas não recuou diante da ameaça. Bem da verdade, quem entrava naquela vida sabia que o destino era a cadeia ou o cemitério. Ambos, caso as acusações o levassem a pena de morte.

Percebeu o homem apontar a arma para sua cabeça. Pensou em tudo que não viveu, e imaginou o que teria feito diferente. Talvez, queria ter bebido uma última taça de vinho, dançado uma última vez num clube com a bela Francesca – uma prostituta que ele sempre pagava quando ia ao bordel – e dado uma última trepada.

Ouviu o estrondo. Imaginou que era o fim. Porém, a certeza desvaneceu ao perceber o policial cair no chão.

Atrás dele a figura sucinta de Jessica surgiu. Ela correu até ele e o ajudou a se erguer.

— Você matou um policial? — ele quase não conseguia acreditar.

— Ele iria te matar — ela apontou.

E era a primeira vez que alguém demonstrava àquele homem o mínimo de preocupação.

— Obrigado — murmurou.

Ela o ajudou a sentar no carro. Depois, foi até a maleta de dinheiro e a guardou no porta-malas.

— Como mexo nesse troço? — ela indagou sentando-se no lado do motorista.

Thomas riu.

— Abaixe o freio de mão. Coloque o pé na embreagem e...

Apagou. Jessica volveu a ele e o percebeu respirando. Ele estava perdendo muito sangue e ela teria que salvá-lo.

 

— Me ajudem! — ela gritou, entrando na casa. — Thomas está no carro.

Harold foi o primeiro que surgiu a porta. Tão logo o caminhão chegou até o depósito, um dos homens Bennet avisou da emboscada. Dylan enlouqueceu diante das palavras que Jessica e Thomas haviam ficado para trás.

Armado, partiu a procura deles, levando consigo os demais homens. Estava disposto a tudo, inclusive invadir a delegacia.

Apenas Harold e as duas mulheres ficaram para trás.

Naquele momento, Harold entrou na cozinha com o corpo de Thomas. O colocou em cima da mesa.

— Amor — Jessica chamou Madison. — Busque panos quentes e esquente água, por favor.

— Eu faço isso — a outra mulher da casa antecipou-se.

Jessica observou Mary correndo até o fogão. Não havia ainda trocado meia dúzia de palavras com ela, mas sabia por cochichos que Harold estava louco pela mulata.

— Obrigada — murmurou.

A bala estava encravada na perna, e poderia infeccionar se eles não a tirassem logo.

— Chame um médico — pediu a Harold.

— Não há tempo — o outro retrucou. Correu até o fogo e esquentou uma lâmina nele. — Como escaparam?

— Um policial iria matá-lo, então atirei antes — Jessica explicou. — Não queria matar ninguém além do meu pai, mas já tenho duas mortes nas costas — deu os ombros. Aquilo não importava. — Não é difícil sem a carga religiosa do convento em sua mente.

Madison voltou com os panos, e enquanto Harold prosseguia no trabalho de remover o projetil, a loira choramingou pelo outro.

— Ei amor... — Jessica a pegou nos ombros. — Está tudo bem.

Mary as observou a distância. Madison era doce e delicada. Frágil. Jessica era forte e aguerrida. Era um mistério porque a morena gostava da outra.

— Ele vai morrer?

— Se não aguenta uma bala na perna é melhor que morra mesmo — Jessica retrucou.

Naquele momento um riso baixo e fraco invadiu o ambiente.

— Ah, Jessica — Thomas murmurou. — Nem parece que acabou de salvar minha vida.

Deram as mãos. Irmãos de armas. Jessica Foster já era definitivamente Jessica Bennet.

 

Jessica deitou-se na cama, suspirando alto enquanto Madison arrancava seus sapatos e lhe massageava os pés.

— Foi muito corajosa hoje, minha senhora.

Sorriu. Gostava daquele tratamento, daquele carinho.

Repentinamente a porta do quarto abriu. Dylan Bennet entrou com ares de fim dos tempos. Parecia apressado e nervoso. Mas, relaxou ao vê-la tranquila.

— Saía — ordenou à Madison.

A loira nem piscou.

— Saía — repetiu.

Jessica sorriu, dando uma pausa no tempo para saborear aquele instante. Depois, sentou-se na cama e bateu de leve no ombro da loira.

— Pode ir, amor...

Só então Madison se levantou e seguiu para fora.

Dylan abriu a boca pasmo, diante da situação.

— Você é bem corajoso em invadir meu quarto e dar ordens a minha garota, chefe — Jessica o observou, um sorriso largo nos lábios.

Céus, ela o provocava de todas as formas que queria. Talvez porque sabia que ele não resistiria a nada vindo dela.

— Arriscou-se muito hoje.

— Na verdade, nenhum pouco. Estive escondida até ter a chance de pegar o tira .

— Não pensou nas consequências?

— Pensei que tive um primeiro beijo. Pensei que cheguei perto de vingar-me de Antony. De resto, não pensei em nada. Já te disse, a vida é muito curta.

Dylan avançou. Fincou os joelhos na cama, praticamente ficando em cima dela, mas sentado.

— Case comigo — ordenou.

Ouviu um riso debochado como resposta.

— Falo sério.

— Fala?

— Sim, eu te quero como minha mulher.

Só então o semblante de Jessica perdeu aquele ar risonho e irresponsável.

— Nunca mais peça isso.

— Por quê? Não quer ser a mãe de meus filhos?

— Porque não tenho futuro. Não vou sobreviver ao final dessa história.

Dylan levou as duas mãos a garganta da mulher.

— Teme a morte?

— Jamais. Mas, temo a vida — retrucou.

Curvando-se, ele substituiu as mãos pela boca.

 

— Dylan!

Ele se deitou sobre ela.

— Por que faz isso, Jess? — indagou. — Não vê que eu preciso tê-la? — A voz tornou-se um gemido forte, intenso. — Que você se tornou uma fome que nunca está saciada? Então você joga com as palavras, me provoca ao limite. O que espera? Que eu esqueça que é uma menina criada entre freiras? Que eu a tome como uma mulher da vida, sem uma aliança nos dedos? — A mão máscula acariciou seu ventre e suas coxas, depois entreabriu suas pernas para si.

Jessica não alcançava o que era tão difícil para Dylan entender. Ela tinha prazo de validade. E estava acabando. Quanto mais aprendia sobre armas e preparava-se para enfrentar Antony Foster, mais seu fim se aproximava. Mas, antes da aurora dos dias, ela exigia viver tudo que pudesse.

Se fosse ao lado dele... Seria ainda melhor.

Não sabia exatamente por quê. Nem como começou. Tudo que entendia é que, desde o primeiro olhar, ela era sua. Então, o guiou, o coração batendo forte no peito, o sangue correndo em suas veias, sua alma em fogo.

Seu corpo desejava Dylan ao ponto de os quadris se retorcerem, erguendo-se para ele, buscando-o.

— Venha para mim — pediu.

Depois sentiu, com uma excitação que percorreu todo o seu corpo, que ele também nutria a mesma coisa.

E que importância tinha o nome que dariam a aquele sentimento que parecia eclodir em seus corações?

Amor? Paixão? Desejo? Amizade?

O que importava denominações quando estavam juntos? Qual seria a diferença de se ter uma aliança nos dedos durante um momento sublime como aquele?

— Eu preciso tê-la...

As palavras saíram roucas. Ela podia sentir a urgência de Dylan. Assim, ergueu os quadris para recebê-lo. A magia explodiu dentro dela.

O sortilégio poderoso do sexo floreando de sua alma, fundindo seus corpos em sensações inexplicáveis. Não era apenas sua carne excitada e pulsante ao encontro de uma necessidade fugaz. Era a alma, abrasada, que enfim encontrava seu descanso junto a ele.

Jessica o buscou para um beijo urgente. Ele a mordeu. Havia fogo e calmaria naquele carinho.

— Eu te amo — ela disse. Por quê? Não sabia.

Todavia, a sensação era real.

E mesmo quando a dor da penetração veio, ela apenas respirou fundo e tentou relaxar, ao receber aquele mastro viril em si.

Dylan a preencheu de todas as formas que uma mulher podia ser completada. E ela gemia com a consciência de que seus corpos haviam se tornado um só, pulsando, batendo no mesmo ritmo, naquela dança louca e carnal, sexo contra sexo, pressionando e unindo, chegando e indo, afundando-se e afastando-se.

Dylan pareceu maior. Ela sentia que ele atingia a um lugar tão profundo em suas entranhas que a faziam gemer mais alto e gritar. Porque era dor e prazer, numa intensidade tão animalesca que tudo que restava a ela era isso: submeter-se.

— Jess...

Ela prendeu as pernas em torno dele, cada músculo contraído, e então uma onda poderosa os tomou.

Era tão intenso... havia algo molhado, algo lento, algo esguichado e, enfim, algo que a fez gemer mais alto, arqueando-se totalmente para ele, atingindo cada célula de seu corpo, enchendo sua consciência de Dylan Bennet.

E seria assim para sempre. Ele era único. Só ele. Nunca haveria outro.

Dylan gemia, ondulava, pulsava dentro dela. Maravilhada, percebeu que tudo que ela sentia, ele também desfrutava. Ela o ouviu arfar, gemer, e, enfim, gozar como se daquilo dependesse sua vida.

E depois, tudo que restou foi uma aura maravilhosa, uma calmaria após a tormenta, onde Dylan apenas cobriu seu corpo nu com o dele, e deixou-se descansar sobre os seios macios.

Ambos pareciam sem fôlego, corações ainda batendo fortemente em seus peitos. O pênis dele, em inércia, descansou na coxa direita de Jessica, e ela soube que aquele jamais seria o fim.

Eles ainda fariam aquilo muitas vezes. Nessa vida, e em outras. E talvez sequer fosse a primeira vez; quem sabe já não se maravilharam com aquela experiência em outros momentos?

Ah, o tempo nada mais significava. O que era o tempo diante da eternidade?

 


Capítulo 08


“Tendo assim satisfeito o apetite, voltou para a cama e ferrou no sono”.

Irmãos Grimm

 

— Sente dor?

A voz de Dylan parecia preocupada. Ela abriu os olhos.

Ele estava deitado ao seu lado, ambos cobertos por uma manta de lã, o quarto com as luzes apagadas, mas ainda claro por causa da lareira acesa. O frio daquele inverno exigia que a lenha queimasse dia e noite.

— Não, não estou.

Aquele leve desconforto no baixo ventre nada significava perto do momento mais sublime de sua vida.

— Fico imaginando se não devíamos ter ido mais devagar, Jess .

Devagar?

— Nós nos conhecemos há poucos dias e eu já não sei mais viver sem você.

Oh, ele estava assustado? Ela riu, achando fofo.

— Pela primeira vez na vida, penso se não posso ajuntar todo o dinheiro que conquistei nesses anos, e irmos para o México. O que acha? Comprarei uma fazenda, criaremos cavalos. Faremos amor sobre o feno, e depois teremos um monte de filhos.

Eram planos lindos.

— Você sabe que temos objetivos — ela negou.

Contudo, o objetivo de Dylan, agora, era ela. Apenas ela. Ele não conseguia mais colocar Antony Foster acima de tudo.

E quando a perdesse? O que faria? Jessica lidava com a vingança como uma missão suicida. Estaria certa? Ou era apenas pessimista?

Ou ele é que havia se tornado otimista demais e não conseguia ver a razão.

— Dylan — ouviu seu sussurrou, enquanto seus braços o envolviam por completo.

— Sim?

— Não importa. Nada importa. Apenas vamos viver o agora, está bem?

Ele passou a mão sobre a coxa macia da mulher. Não lhe restando mais nada a dizer, apenas assentiu e voltou a dormir.


Harold soube que algo havia ocorrido ao casal tão logo os viu naquela manhã. Era uma sensação estranha, como se agora não fossem mais dois indivíduos diferentes, e sim duas faces de uma mesma alma.

— Antony Foster está na sua mansão no norte de Chicago e não saiu de lá tem vários dias. Soube que iriam lhe fazer uma homenagem na prefeitura, mas cancelaram o evento.

— Está doente? — Jessica se preocupou.

Não! Ela não toleraria que aquele filho da puta morresse feliz e tranquilo em uma cama confortável. Ele tinha que pagar!

— Eu andei pensando em algo — o negro avisou. — Mas, precisa ficar apenas entre nós três. Temo que as paredes Bennet tenham ouvidos.

— Sim — Dylan concordou. — Alguém anda espalhando nossos planos para o desgraçado!

— Pois bem — Harold prosseguiu. — Andei vagando pelos bares clandestinos de Chicago. Pescando uma informação aqui, outra ali. Por fim, consegui descobrir que Bruce Steven está devendo uma boa quantidade de dinheiro aos Foster. E, pelo jeito, ele tem um prazo bem curto para pagar.

— O que sugere?

— Em troca de algumas informações, daremos ao homem uma boa quantia para que ele desapareça de Chicago. Eu acho que ele trairia Foster pelo dinheiro certo.

Dylan e Jessica se entreolharam. Era um bom plano e eles estavam dispostos a isso.

 

Algo comum a Antony Foster era a seriedade com que levava seus compromissos. Quando ele agendava um horário para entrega de bebidas, aquele horário era cumprido à risca. Por isso, quando Bruce lhe repassou as horas, o trio vingativo chegou lá meia hora antes.

Depois, deixaram as metralhadoras bem dispostas no beco onde emboscariam o caminhão.

Seria uma entrega pequena. Algumas caixas pagas antecipadamente que seriam deixadas nos fundos do bar.

Jessica aproximou-se da metralhadora e ficou fazendo a mira. Queria estar pronta.

— Depois que o alvejarmos, vamos até eles. Queremos a mercadoria.

A ordem de Dylan foi seguida com um sinal de aquiescência por Harold e Jessica.

— Acha que dará certo?

— Ninguém mais sabe que viemos emboscar o caminhão. Se não der certo, um de nós é o traidor — Harold constatou. Depois, volveu-se para Jessica. — Não contou a Madison, contou?

— Confio na minha garota, mas não... Nada disse.

— Bom...

Subitamente, o som de pneus cortando o ar. O pequeno caminhão com a carroceria em baú se aproximava lentamente.

Dylan deu o primeiro disparo. Logo, uma chuva de metal cortou o ar. Os homens de Foster não entregariam fácil sua mercadoria, mas inegavelmente estavam surpresos pelo atrevimento de alguém tentar roubá-los.

Ora, Foster dominava a cidade!

Logo, um dos entregadores foi atingindo. Os demais ergueram as mãos, em rendição.

— Isso não vai ficar assim — um deles disse para Bennet.

Dylan sorriu.

— É exatamente o que esperamos.

 

— Leve o caminhão — Dylan avisou ao amigo.

Harold assentiu. Era esse o plano. Não era um roubo. Era uma provocação.

Ele pegaria o veículo e o levaria as ruas próximas da morada de Antony. Destruiria a bebida ali, deixando claro que os Bennet não precisavam daquela porcaria.

— Coloque um bilhete — Jessica pediu.

— Um bilhete?

— Deixe uma caixa intacta e nela escreva: “ Com os cumprimentos de Jessica Bennet ”.

Dylan gargalhou diante das palavras. Os dois homens no chão, já desarmados, enojaram-se com a audácia.

— Você é Jessica? — um deles indagou.

— Conhece-me?

— Ficamos sabendo que a filha do chefe havia se tornado a putinha de Dylan Bennet. O chefe ficou arrasado por isso, já que te deu tudo, educação e bom ambiente para crescer e ser uma mulher exemplar. Mas, tornou-se uma Moll ... Isso é uma vergonha tremenda.

Jessica aproximou-se do homem. Com a coronha da pistola, desferiu um golpe forte na face dele.

— Está achando que eu sou a putinha de Dylan Bennet? — ela resmungou. — Não sabe de nada, vagabundo! Ele é que é meu putinho.

Depois disso, disparou. Os dois corpos ensanguentados foram abandonados naquela região.

Coisa comum em Chicago. Tudo respirava a criminalidade e sangue.

 


Capítulo 09

 

“...à tarde, retomasse o caminho de volta para sua casa, aí então ele a seguiria ocultamente para comê-la no escuro.”


Irmãos Grimm

 

— Sabe o que penso sobre tudo isso, querida?

Jessica gargalhou enquanto sentava-se sobre ele. Na obscuridade do Rolls-Royce negro e novíssimo de Dylan, eles já se aqueciam na ânsia do prazer.

— Diga-me, meu putinho — ela puxou o cabelo dele para trás, com força, denotando que estava extremamente excitada.

— Que isso não está certo.

Jessica travou. Ela havia acabado de ter matado dois homens e estava satisfeita pelo ato. Eram parte da gangue do Foster, e aquilo lhe deu a sensação de que se aproximava o tempo de chegar ao pai.

Mas, Dylan não parecia no mesmo clima.

— Esperei por isso minha vida inteira — ela murmurou, parecendo querer explicar-se.

Todavia, não precisava. Ele sabia.

— Não é o ato. É como você encara isso — ele insistiu.

Jessica queria que ele calasse a boca, então o beijou profundamente, as mãos escorregando para o mastro viril, forçando-o a excitação. Remexeu os dedos, para cima e baixo, bombeando, e quando o percebeu pronto, sentou-se nele com força.


A mansão La Belle foi uma das primeiras aquisições de Antony Foster, muitos anos antes, quando iniciara na sua vida de crimes.

Lembrava bastante o palácio de Al Capone em Miami, mas tinha algum ar mais europeu, devido à descendência italiana de Foster.

Apesar do sobrenome, a mãe era uma Bianchi, do norte da Itália. E ele gostava da mãe mais do que do pai beberrão e sombrio que pouco lhe ofereceu na vida além de surras e vergonha.

Contudo, como pai, Antony orgulhava-se de ser diferente. Ou, ao menos, tentara dar a filha um destino honroso.

Mas, ser uma cadela vagabunda estava no sangue de Jessica. Havia puxado à Justine, que sequer tentou resistir ao seu charme badboy .

Enquanto segurava o bilhete deixado pela desgraçada, ele pensou em tudo que fez por ela. Todas as doações a Igreja, ao Convento, todos os planos de lhe entregar a herança, toda a fortuna, e também um casamento bem planejado com alguém de sua confiança.

Mas, agora ela estava enredada com aquele fedelho dos Bennet. Andava dormindo com o homem, uma Moll , uma cortesã, uma amante sem valor.

— Meu senhor — um de seus homens chamou sua atenção. — Nos autoriza a irmos até os Bennet?

— Não. Apenas aguarde informações.

Aquela afronta não seria vingada? Todavia, o homem respeitava demasiadamente Antony para lhe questionar os métodos.


A loira observou sua protetora ao longe. Jessica Foster parecia absorvida em raiva enquanto fumava um cigarro e olhava para o horizonte através da janela oval de seu quarto.

— Minha senhora? — Chamou sua atenção. — Senhor Dylan mandou lhe avisar que o jantar está servido.

— Não tenho fome — ela murmurou. — Diga-me, meu amor — volveu-se para a loira. — Por que eles não vieram?

— Eles quem?

— Os Foster? Nós matamos dois de seus homens e destruímos sua mercadoria. Por que não vieram buscar vingança?

A loira não sabia o que dizer.

— Isso não é bom?

Jessica a encarou sombriamente. Todavia, em seguida, saiu da janela e chegou-se a ela. Acariciou seu rosto pálido com um dos dedos.

— Está com medo, amor?

— Sim, minha senhora.

— Não carece. Já não lhe disse que cuidarei de você?

Madison assentiu, com lágrimas nos olhos.

Por Deus, ela amava Jessica Foster mais que tudo.


Harold aproximou-se da cozinha. Mary estava envolvida em descascar batatas. Ela era muito meiga e gentil, e mesmo numa atividade cansativa, não murmurava reclamações.

Pegou uma faca e sentou-se ao lado dela, ajudando-a.

— Eu queria lhe falar — ele murmurou, baixo.

Tinha medo das palavras que se seguiriam, mas sabia que quanto mais perto Dylan e Jessica estivessem de Antony, mais ele se aproximava da aposentadoria.

— Eu tenho um bom dinheiro guardado — contou. — Mantenho-me com os Bennet por lealdade, mas... Enfim, Dylan sabe que, assim que concluirmos algo que está pendente, eu quero parar. Quero me mudar para o norte, Montana ou Dakota do Norte — explicou. — E quero que venha comigo como minha esposa.

O olhar de Mary estava assombrado. Percebeu lágrimas lá, camufladas, devotadas, e então ela assentiu, embevecida.

Naquele instante tão curto e frágil, Harold Dayley foi o homem mais feliz do mundo.

Segurando o rosto feminino, ele a beijou respeitosamente.

— Muito obrigado.

Era o sonho de uma nova vida.

 

 

Capítulo 10

 


“ - Ai que medo

eu tive! Como estava

escuro na barriga

do lobo!”

Irmãos Grimm


— A pergunta que não quer calar é: Como os homens de meu pai sabiam que eu estava com Dylan Bennet se eu matei David?

A loira a observava de um canto. Absorvida pela visão majestosa daquela mulher corajosa e linda andando de um lado para o outro no quarto.

— Outra questão que me incomoda é: Nossos planos contra Foster só deram certo quando ninguém soube deles. — Respirou fundo. — Há um espião entre nós, e essa é a prova — constatou.

Repentinamente, Jessica parou. O olhar dela cravou em Madison.

— Desconfia de mim, minha senhora?

A morena sorriu, suavizando a face. Caminhou até Madison e lhe acariciou a face com gentileza.

— É claro que não. Eu jamais desconfiaria de minha garota. Mas, irei precisar de sua ajuda.

— Minha ajuda?

— Amor, os homens sempre desprezam as mulheres. Eles não têm medo de falar de seus planos perto de nós porque nos consideram estúpidas demais para entendê-los. Então, eu tenho minhas próprias ideias sobre o que está ocorrendo aqui. Mas, para provar, preciso de sua cooperação. O que faria por mim?

A loira deslumbrada nem objetou.

— Eu faria qualquer coisa, minha senhora.


Dylan vestiu o sobretudo. Estava muito bonito naquela noite, em especial. Jessica sorriu diante da imagem aos pés da cama.

Ela definitivamente gostava dele. Muito. Talvez o amasse, apesar de não permitir-se pensar verdadeiramente no assunto. A verdade é que os sonhos de viver uma vida longe de Chicago e ter meia dúzia de meninos de cabelos escuros e olhos azuis a encantavam.

Contudo, aquela não seria a vida dela. Talvez fosse a dele. Quem sabe ele ainda realizaria aqueles sonhos pueris com uma boa mulher que cruzasse seu caminho.

— Espero ter boas notícias quando voltar — disse a ela.

Jessica remexeu-se nos lençóis. Estava nua, haviam acabado de fazer sexo. Um ato que sempre a deixava mole e agraciada.

— Você sabe que isso é um tanto perigoso — ela murmurou.

— Achei que não se importasse com o perigo.

— Não com aqueles que eu corro.

Dylan sorriu. Estava embevecido.

— Coloquei um homem infiltrado em Kenwood. Ele está trabalhando lá há algumas semanas, cuidando das cargas que chegam. Seu pai é bem discreto, traz a bebida e as drogas em meio a latas de mantimentos.

— Um homem sério de negócios, com certeza — ela riu.

Dylan voltou à cama e a beijou nos lábios.

— Me deseje boa sorte — pediu.

O toque gentil dos lábios femininos sobre os seus foi intenso e protetor.


Dylan abriu um mapa demonstrando toda a área da baía onde o descarregamento de bebidas de Foster poderia ocorrer.

— Quero homens em todo o cerco — disse a Thomas. — O descarregamento chegará à madrugada de sábado e eu não posso perder essa chance.

— É muita coisa?

— Muita coisa — confirmou.

Depois, dispensou Thomas com a mão. Jessica e Harold o observavam de um canto.

— Você pensou bem nisso? — Harold indagou.

— Foster não reagiu a nossa provocação. Nem sequer ao fato de termos a filha dele conosco. Ele não virá até nós, então teremos que ir à ele.

— E La Belle é bem protegida. Mas, ao armarmos um roubo a sua mercadoria em Kenwood, praticamente todos os seus homens terão que deixar a casa e irem até a baía — Jessica explicou.

— O que significa que ele ficará sozinho, ou quase... — Dylan completou.

Claramente, eles haviam planejado aquilo juntos. Harold, contudo, não estava convencido que o plano daria certo.

— Se os homens de Foster forem à baía... Eles estão mais bem armados e preparados...

— Ninguém dos Bennet irá se machucar. Vamos apenas provocar um alarme falso.

— Há um traidor entre nós — Jessica explicou. — Ao saber dos planos do roubo, ele avisará meu pai. Quando os Foster forem para lá, contudo, não encontrarão nenhum dos homens Bennet.

— E esse trajeto nos dará tempo de invadirmos La Belle e matarmos Foster.

Era aquilo, então. Um plano simples como os dois jovens. Todavia, bem focado. Eles estavam ansiosos e desesperados para cumprirem sua vingança.

— E depois? — Harold indagou.

A vida poderia seguir para ambos, mas de alguma forma, tanto o homem quanto a mulher sabiam que não sairiam inteiros daquela emboscada.

— A vida é curta — Jessica repetiu sua frase comum. — Vamos fazê-la valer a pena!


Naquela madrugada fria a porta que dava acesso à cozinha abriu-se.

Escondida na escuridão, a jovem e bela Mary adentrou seu local de trabalho, tirando o casaco e tentando ter cuidado para não causar barulho.

Não era de seu interesse que alguém soubesse que ela estivera fora durante algumas horas. Por melhor cercada que fosse a mansão dos Bennet, ela sempre conseguia se esgueirar e escapar por algum tempo.

O que fazia nesse tempo, não era da conta de ninguém. Mas, aliviava-lhe respirar fora da mansão.

E Mary era assim. Ela precisava de ar puro e da alma longe da pecaminosidade que dominava aquele lugar.

Mary também era do tipo racional e fria, nunca acreditou em fábulas ou contos de terror. Mas, naquele instante no escuro, ela sentiu que era observada por alguém.

Acendeu a luz, mas a cozinha estava vazia.

Respirou fundo. Boa parte dos contos de terror que vazavam de lábios crédulos era formado pela errônea ideia das pessoas de que não estavam sós num lugar.

E ela estava. Portanto, precisava apenas respirar e pôr a cabeça no lugar. Logo estaria livre daquilo tudo.

Volveu-se para a pia e encheu um copo com água. Enquanto sentia o líquido descer pela garganta, o ranger de um passo atrás de si fê-la volver-se rapidamente.

Não a tempo de ver seu assassino.

Um tiro certeiro a atingiu na face.

Morreu como viveu. Em uma cozinha simples.

 

Capítulo 11

 


“Chapeuzinho Vermelho dizia para si: " Nunca mais sairás da estrada para correr pela floresta, quando a mamãe te proibir! ”.

Irmãos Grimm


— “ A minha boca falará o louvor do Senhor, e toda a carne louvará o seu santo nome pelos séculos dos séculos e para sempre ”.

— Amém — respondeu Jessica.

Afinal, era a única que sabia o que se seguia. Os demais, homens acostumados à devassidão da vida, apenas mantinham o corpo ereto e respeitoso diante do túmulo aberto, onde um caixão bonito era abaixado para dentro da cova.

O padre católico – não Padre Tom, ainda bem! – benzeu o caixão e então o ato fúnebre encerrou-se.

Em um canto, Harold parecia num misto de choque e pesar profundo. Era como se apenas seu corpo estivesse ali, observando toda a cena terrível diante dele.

Mary, a jovem com a qual ele planejava construir um futuro fora assassinada dentro da Mansão dos Bennet. Quem se atrevera? E por quê?

— Eu penso em duas possibilidades — Jessica disse, mais tarde. Ela segurava seus dedos escuros com um carinho abrasador. — Ou foi uma provocação, uma resposta ao que planejamos fazer amanhã ou...

— Ou?

— Talvez o alvo não tenha sido Mary. Viram uma silhueta feminina e atiraram. Antony Foster deve estar revoltado pela filha estar se acostando com um Bennet. Provavelmente quis limpar sua honra.

Era coerente. Dylan mordeu o lábio.

— Amanhã o maldito vai pagar! — jurou.

Estavam ainda no cemitério. Harold e Jessica sentados em um banco embaixo de uma árvore. Dylan em pé, diante deles.

— Irei com vocês — avisou.

— Não — Dylan negou. — Jessica e eu não queremos envolver ninguém nesse plano de vingança...

— Agora é pessoal — Harold antecipou. — Eu vou — foi firme. — Eu quero ver aquele desgraçado queimar.

— Não concordo — Dylan persistiu.

— Não é sua escolha — Jessica retrucou. — Harold — volveu-se ao outro. —, se está certo disso, seja bem vindo. Eu sei exatamente como se sente e prometo fazer o possível para atingirmos quem matou Mary.


Madison adentrou o quarto e seus olhos cravaram na mala escura onde maços de dólares preenchiam o interior.

— Tem cinquenta mil aqui — Jessica disse a loira, que arregalou os olhos.

Ora, era dinheiro suficiente para comprar uma excelente casa e viver confortavelmente por alguns anos.

— Um tanto eu ganhei com meu trabalho para Dylan, outro tanto eu peguei dele — ela riu, maliciosa. — Um roubo justo, você merece.

Tão logo disse isso, fechou a maleta e a direcionou a Madison.

— Não, minha senhora — a outra negou.

— Tinja essas madeixas de preto — Jessica aconselhou. — No mais, duvido que alguém se lembre de você depois de alguns meses. Mas, pode ser que Harold queira vingança.

Madison sentiu os olhos nublarem.

— Eu quero que seja feliz — Jessica murmurou.

Enfim, a loira pegou a mala. Depois, aproximou-se lentamente da outra. Um beijo pueril nos lábios e enfim se afastaram. Era a última vez que se viam.


— Que horas o barco chegará à baía? — Jessica perguntou, pela terceira vez.

— Duas da manhã.

— E por que diabos ainda não saíram da casa?

Aquilo era mau. O plano partia do princípio de que os Foster fossem abandonar a base assim que o horário da entrega se aproximasse. Quando saíssem, o trio poderia entrar e chegar a Antony.

— Por que será que o chefe dos Foster não saiu da toca ainda? — Harold murmurou. — Por que ele não deu as caras na cidade desde que Jessica foi levada do convento?

— Será que está doente? — Dylan murmurou.

— Ele que não se atreva a morrer antes de eu matá-lo — Jessica forçou.

Subitamente, movimento. Um a um, os carros negros da gangue começaram a deixar a residência. Partiam destino ao litoral. Dylan sorriu.


Harold tentaria avançar pelos fundos de La Belle, mas Dylan e Jessica decidiram acessar a mansão por uma entrada lateral onde apenas um homem mantinha-se a escoltar o lugar.

Sabiam que ele estava armado. Era possível notar a pistola por baixo do casaco fino. Seu chapéu cobria-lhe metade do rosto, e eles podiam jurar que o homem cochilava em seu posto.

Caminharam naquela direção como um casal de namorados. Mãos dadas e risinhos infantis e apaixonados.

O homem ergueu a face e os observou. Ora, a lateral da casa era um passeio público e nem sempre ele tinha a sorte de ser um expectador de uma cena romântica.

O casal passou por ele e parou. Um troca de beijos, e o homem sorriu. Gostava de olhar.

Contudo, rapidamente, a mulher puxou uma pistola. Um tiro silencioso ecoou.

Não havia romantismo ali. Amor não tinha espaço quando se tratava de sentimentos engajados em ódio.


Não fora fácil acessar a La Belle pelos fundos. Havia dois homens montando guarda, mas Harold conseguiu desempenhar seu papel graças à técnica e treinamento adquiridos durante os anos.

Não quis matá-los, então não o fez. Assim como ele, aqueles homens eram apenas soldados do clã. Portanto, derrubou-os através de dois tiros não mortais com silenciadores.

Depois, bateu-lhes na cabeça até que desacordassem. Só então começou a se esgueirar para dentro da casa.

Passo a passo, ele ouviu o som característico de briga na ala superior. Pelo jeito, Jessica e Dylan haviam chegado a Foster antes.

Pé ante pé ele começou a subir as escadas. O lugar era deslumbrante e havia uma galeria de retratos em quadros ao longo do trajeto.

Repentinamente, travou.

Pegou um dos porta-retratos.

Lá estava alguém que ele conhecia bem abraçado a Antony Foster.

 

 

 

Capítulo 12

 


"- Eis-te aqui, velho impenitente! Há muito tempo, venho-te procurando!"

Irmãos Grimm


As razões pelas quais Antony Foster não havia dado as caras mesmo diante de tantas provocações tornaram-se claras ao par que agora encarava aquele velho decrépito sentado em uma cadeira de rodas.

Nem parecia o mesmo homem. Tanto Dylan quanto Jessica tinham a imagem de um desgraçado autoritário, de postura reta e olhar assustador. Mas, aquele homem ali era apenas um nada, alguém que eles matariam simplesmente se derrubassem da cadeira.

— Eu sabia que viria — o homem disse, seus olhos cravados na filha. Sua voz era fraca, mas ele ainda tinha aquele brilho hostil nos olhos. — Te criei com todo cuidado e agora te vejo uma Moll, puta de bandido, uma vadia! Quanta vergonha trouxe ao meu nome.

Jessica quase não conseguia se mover. Não era aquele ordinário sem forças que ela queria matar. Era o homem forte que havia destruído Justine.

— Eu não sou uma Moll — ela retrucou. — Mas, se fosse, ao menos teria decência, ao contrário de você.

— Decência é meu nome do meio, Jessica — ele murmurou. — Não sabe que toda a cidade me respeita?

Porque assim era o mundo. Idolatravam homens como ele por dinheiro e poder. Corações se corrompiam na mesma velocidade em que homens bons e honrados eram massacrados.

Jessica observou Dylan. Percebeu-o caminhando em direção ao velho. Ele parecia atônito, como se não acreditasse no que via.

— Eu a entendo — Antony deu os ombros. — Puxou a mãe, não tem honra nem dignidade. Mas, você — dirigiu-se a Dylan. — Por que um Bennet tentou de todas as formas provocar uma guerra?

— Você matou minha mãe — Dylan respondeu, da forma mais simples que conseguia.

— Então ela era uma puta também. Nunca toquei numa mulher honrada.

Repentinamente, um urro de ódio brotou no coração de Jessica. A visão de Justine, sua doçura, seu cheiro, seu carinho, surgiu em sua mente. Ela quase podia tocar a mãe, tamanha realidade com que a visão brotava em sua alma.

E tudo aquilo se desvaneceu por conta daquele filho da puta!

Não importava se agora era um velho acabado. O que ele fizera ainda ressoava na vida do par. E ele tinha que pagar por isso!

Puxou o trinta e oito do coldre e apontou na cabeça do pai. Engatilhou.

— Queime no inferno, filho da puta — ela murmurou.

E aquilo era tão sincero, tão real, que seu coração encheu-se de paz.

— Jess — a voz de Harold, contudo, a travou.

Volveu-se para ele. O homem negro surgia no quarto com um retrato nas mãos. Ela reconheceu a figura da tela.

— Há quanto tempo você sabia? — ele indagou.

Dylan, do outro lado do quarto, arregalou os olhos diante da imagem. Jessica, porém, apenas deu os ombros.

— Não foi Antony Foster que a matou, não é? — Harold indagou.

— Eu precisava de sua ajuda para invadir a casa. Eu sabia que teria homens na parte inferior, assim Dylan e eu não daríamos conta. Minha intenção é que você chamasse a atenção o suficiente para que pudéssemos entrar por outro lado.

— Foi você que a matou? — ele questionou, mais firme, erguendo a foto de Mary.

A mulata estava abraçada em Antony Foster. Vestida como uma Moll , era quase irreconhecível.

Jessica não respondeu. Voltou-se novamente para o pai. Ele tinha o olhar firme, não se amedrontaria no momento final. Então, ela curvou-se e murmurou nos seus ouvidos.

— Depois de te matar, vou colocar fogo em La Belle e destruir tudo que você tem. Inclusive seu sobrenome. Os Foster morreram comigo — avisou.

E então disparou.

O sangue respingou as paredes, enquanto a cabeça apenas pendia para frente. Dylan apertou os olhos, ciente de que havia outro monstro dentro do quarto.

Nunca foi assim que ele planejou acabar com tudo.

— Você tem que parar — Harold avisou.

Ele abriu os olhos. Jessica estava no meio do caminho entre ele e o irmão.

— É mesmo? — ela riu. — Então me pare — ordenou. — Sabe qual foi o outro motivo pelo qual eu estourei a cabeça de Mary? Além, é claro, de ela ser uma puta traidora infiltrada e tê-lo tornado um idiota? Eu me preparava para te contar à verdade quando o momento certo chegasse porque eu sabia que você poderia acabar com tudo.

Enquanto Harold abria a boca, pasmo, Jessica voltou-se para Dylan.

— Não me leve a mal, meu querido. Mas, você é fraco quando se trata da minha pessoa. Você não teria coragem, porque me ama.

Seu corpo girou novamente para Harold. Caminhou até o homem.

— Sou mulher. E sei que vocês homens ficam cegos diante de uma boceta. Então eu sabia que vocês falavam de qualquer assunto sem medo ou discrição diante das mulheres da casa. Eu não era a traidora, obviamente. Sobrava Mary ou Madison. Oh, a minha garota — referiu-se a Madison —, ela é loucamente apaixonada por mim. Eu sei. Finjo que não, faço aparentar amizade, mas vejo os olhos brilhantes de Madison. Ela deixaria matá-la, mas não me entregaria. Sobrava a outra, portanto. Ordenei que Madison ficasse de olho. Ela saiu algumas noites, encontrou-se com homens de Foster. Numa das noites em que voltava para casa, eu a espreitava. Nem viu quem a matou.

Harold secou as lágrimas. Era difícil para ele a constatação daquele fato.

— Você jurou vingá-la — Jessica provocou. — Então, a vingue! Seja homem, mantenha sua palavra!

Ela ergueu os braços. Queria que ele atirasse. Não desejava dar cabo da própria vida, então esperava que Harold o fizesse.

— E então? Não vai atirar? Não vai? — ela gritou. — O quão covarde você é?

 

 

Capítulo 13

 

“- Entra depressa, - disse a vovó; - fechemos bem a porta para que ele não entre aqui!”.

Irmãos Grimm


A questão era simples. Tão simples quanto os vestidos floreados que Mary costumava usar quando preparava o jantar.

Jessica queria morrer. Era perturbada demais. Era maquiavélica demais. Tinha o sangue Foster nas veias e planejara tudo, durante anos, para que, depois de matar Antony, ela fosse a próxima a desistir do mundo.

Mas, Harold acreditava em esperança. Inclusive para ela. Acreditava no amor do irmão por aquela mulher. Dylan poderia curá-la. Ambos, um remédio do outro. E viverem felizes.

Jessica e Dylan eram cravados em dor. Aquela cicatriz poderia nunca desaparecer, mas ainda assim poderiam encontrar a serenidade e construir uma vida.

— Eu não vou fazer isso — Harold guardou a arma.

Jessica parecia não acreditar. Seu olhar surpreendido estava carregado pelas lágrimas.

— Não vai...? — ela indagou, num murmuro tão baixinho que quase era inaudível.

Então a mulher ergueu a própria arma contra seu queixo feminino. Harold saltou, tentando impedi-la, quando um estrondo estourou seus tímpanos.

Jessica caiu no chão. Uma fumaça escurecida as suas costas deu-lhe a certeza de que não fora ela que havia atirado.

Encarou Dylan. Percebeu lágrimas escorrendo pela face do irmão.

— Você sabe onde está o dinheiro. Distribua entre os homens e ordene que cada um desapareça de Chicago. Não quero que sejam presos. Podem reconstruir a vida.

— Dylan...

O gângster aproximou-se de Jessica. Sentou-se no chão e puxou o corpo contra si. A abraçou fortemente.

— Ela era católica. Não falava muito de Deus, mas eu sabia que era. Sabe o que é para um católico o suicídio? Eu não queria que tivesse essa marca. Não queria que sua memória fosse manchada... — explicou, as lágrimas travando sua garganta, impedindo-o de prosseguir.

— Dylan... — Harold quis se aproximar.

— Dei ordens a você — o outro o lembrou. — Ainda sou o líder dos Bennet, ao menos nessa noite. Vá até os homens e organize tudo. Ainda existe uma saída...

Harold assentiu. Sabia que precisava de pressa.

Correu para fora do quarto, e então desceu as escadas. Quando chegou à parte exterior da casa ouviu o tiro, seco, denotando o fim.

 


Capítulo 14

 

“Mas tanto espichou o pescoço que perdeu o equilíbrio e começou a escorregar do telhado indo cair exatamente dentro da gamela, onde morreu afogado.”.

Irmãos Grimm

 

Momentos antes daquele disparo que selaria o destino do clã Bennet, Dylan apertou Jessica nos braços, beijando-lhe o rosto.

O sangue rubro escorreu da cabeça dela até a bochecha. Ele deslizou os dedos, molhando as madeixas negras com o tom vermelho.

— Chapeuzinho vermelho... — murmurou.

Sorriu.

— Jess, você sabia que, uma vez, uma graciosa menina — ele riu, antes de lhe beijar os lábios —, oh, e quem a via ficava logo gostando dela, assim como ela gostava de todos; — respirou fundo, puxando a pistola da cintura. — Particularmente, ela amava a avó que a presenteou com um chapeuzinho de veludo vermelho e, porque lhe ficava muito bem, a menina não quis usar outro e acabou ficando com o apelido de Chapeuzinho Vermelho.

Respirou pausadamente. Ergueu a arma.

— Eu realmente não sei se é uma história feliz, mas ao menos o lobo morre — ele contou.

E então disparou.

 

Capítulo 1 5

 


"Chapeuzinho Vermelho pôde voltar felizmente para casa e muito alegre, porque ninguém lhe fez o menor mal.”.

Irmãos Grimm


Ele não se chamava mais Harold Dayley. Com o fim do clã Bennet, trocou de nome, e agora era conhecido pela alcunha de George Cass.

Mesmo assim, a vida tinha dessas coisas, de sempre trazer traços do passado. E, assim como ela o reconheceu tão logo o viu, ele também soube que era ela, mesmo um tanto diferente, de cabelos escuros e olhar sereno.

Ela ergueu o livro. Depois da vida no crime, Harold tornou-se escritor. Sua primeira obra impressa foi logo um sucesso. Narrava à história “Romeu e Julieta” de dois bandidos que se uniram por uma vingança em comum.

Ao contrário do cenário criado por Shakespeare ou pelos protagonistas reais, Jessie e Dean – seus personagens – viveram felizes para sempre em uma fazenda no México.

— Madison... — ele murmurou, a convidando para entrar.

Era frio em Dakota do Norte. Mas, a casa de dois andares no interior de uma cidadezinha que nem constava no mapa estava confortável e aquecida.

— Como você está? — ela indagou.

— Eu me casei. Minha esposa deve logo chegar com os gêmeos – explicou. – Ela ficará feliz em conhecê-la. Já falei muito de você.

Madison, agora morena, sorriu.

— Gêmeos?

— Jessica e Dylan.

— É justo — ela suspirou. — Morreram juntos. Nascem juntos. É a vida que nunca deixa almas gêmeas distantes por muito tempo.


— Você sabe... — Madison bebericou o chá. — Até o final, eu aguardei. Fiquei em um carro na esquina dos Bennet. Tive esperanças...

— Esperanças?

— Tolas, eu sei. Mas, esperei que ela estivesse fingindo o tempo todo, assim como fingia para você... E então, no momento propício, desse um tiro em Dylan e voltasse para ficar comigo.

Harold sorriu, triste.

— É estranho, porque era amor, não é? — o homem comentou. Não havia julgamentos em seu tom. — Uma forma distorcida de amor, mas amor — exemplificou. — Dylan e Jessica ficariam juntos, não importariam as circunstâncias. Estava escrito.

— Eu sei disso. Tive muito tempo para pensar. Ela me deixou tudo que tinha porque queria me recompensar pela lealdade e desculpar-se por despertar sentimentos em mim dos quais era incapaz de corresponder. Com o dinheiro pude comprar uma mercearia e mudar de vida. Jessica me deu tudo. Doou-se para mim. Mas, o coração dela nunca foi meu.

A neve lá fora começou a cair com mais intensidade.

— Ainda acredita em finais felizes? — ela indagou a Harold.

O homem sorriu. O vento uivou anunciando uma noite barulhenta.

— Finais felizes existem — ele afirmou. — Dylan e Jessica tiveram o deles. Tudo depende da forma como você encara isso.


O telefone tocou naquela casa bonita no México. O homem atendeu a ligação com calma, enquanto bebericava conhaque e lia o jornal. Sentado em sua poltrona favorita, ele observava o bebê dormindo num bercinho perto da janela.

— Sim?

— Madison veio aqui — Harold comentou.

— É mesmo? Como ela te descobriu?

— O livro.

O negro quase podia ouvir um “Há” do outro lado da linha.

— E o que disse a ela?

— Nada importante. Pelo que Madison sabe, vocês estão mortos.

Jessica surgiu ao fundo. Caminhou direto para Justine, e a pegou no colo. Era hora de dar-lhe de mamar. Dylan sorriu diante da visão.

Naquela noite em que Antony Foster morreu, ele viu-se obrigado a atirar na mulher. Ou ele faria isso, ou Harold faria, movido pela piedade. Caso ambos falhassem, Jessica mesmo daria fim a sua vida.

Ela verdadeiramente queria morrer.

Então, ele engatilhou a arma e disparou. Porém, de raspão. O suficiente para machucá-la e desacordá-la.

Enquanto a tinha ensanguentada nos braços, percebeu que ambos precisavam morrer para que pudessem viver em paz com novas identidades.

Simulou seu suicídio. Harold cuidou do resto. Quando seus homens viram a cabeça ensanguentada de Jessica, a palavra sobre Dylan restou.

Eles morreram para o mundo, mas nasceram para uma nova vida.

— Agradeço por tudo, Harold — Dylan murmurou.

O outro apenas sorriu. Não precisava das palavras. Eram irmãos, fariam tudo um pelo outro.

Mais tarde, Dylan achegou-se a esposa. Jessica estava deitada, lendo um romance qualquer.

— Mi esposa — ele murmurou nos seus ouvidos, fazendo-a rir.

Jessica não ofereceu resistência. Ela gostava da mágica que acontecia em seu corpo sempre que Dylan a tocava.

— Oh, Dylan... — ela murmurou. — Estou cansada, Justine não dormiu durante a noite.

Ele sabia, havia a ajudado com a bebê de seis meses. Depois, ao amanhecer, foi para seu respeitável emprego em uma sapataria.

— Você é tão linda — ele mordeu o lóbulo de sua orelha.

— Acha mesmo que essa sedução barata vai funcionar?

Houve um breve silêncio.

— Acho — ele riu.

O riso dela seguiu-se ao dele.

— Então está coberto de razão, meu amor.

E afundaram-se embaixo das cobertas. Mais uma noite. Noites que se seguiriam até o fim de suas vidas.

 

 

                                                                  Josiane Biancon da Veiga

 

 

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