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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUENTE COMO O VENTO DAS ESTEPES 2 / H. G. Konsalik
QUENTE COMO O VENTO DAS ESTEPES 2 / H. G. Konsalik

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

QUENTE COMO O VENTO DAS ESTEPES

Segunda Parte

 

Enquanto isso, Sadojev se aproximara do vagão de Dunia. Bateu na madeira com um certo ritmo. Assim sempre batera na porta de Dunia quando a acordava de manhã. Com esse sinal ela crescera, exatamente como crescera ouvindo o assobio que Sadojev deu em seguida.

Nada se moveu dentro do carro. Sadojev repetiu batida e assobio, e de repente um medo cresceu nele. Os oficiais teriam levado Dunia para junto deles?

Sadojev sentiu calor, bateu os punhos um contra o outro e rilhou os dentes como um tigre raivoso.

Queria bater e assobiar pela terceira vez, quando a porta de correr rangeu e se abriu uma larga fresta. A cabeça de Dunia apareceu, envolta na gola de pele de lobo. Os cabelos louros desciam-lhe pelos ombros.

Uma verdadeira tempestade se desencadeou no íntimo de Sadojev. Os seus pensamentos se precipitavam em cambulhada. Dunia não é uma deportada, mas uma médica transferida por punição. Dunia estava lá... viva, com saúde... e aquilo bastava até o fim dos seus dias.

— Dunienka... — disse Sadojev baixinho. Abriu os braços e cambaleou de felicidade.

Dunia saltou do carro para os braços do pai. Ambos cambalearam na sombra e chocaram-se contra um vagão. Sadojev chorava alto, beijava Dunia sem parar, acariciava-lhe o rosto, apalpava-a como se pudesse descobrir ossos quebrados ou sinais de espancamento.

Mais tarde, sentaram-se num caixote, na noite mal iluminada pela lua pálida por detrás das nuvens que passavam. Não sentiram mais o frio e o gelo que lhes cobria os rostos, pois cada respiração que atingia o outro se depositava na pele como um póbranco e cintilante. Ninguém os estorvou... sentaram-se lá embaixo entre os trilhos, onde geralmente havia mecânicos trabalhando, soldando peças estragadas debaixo da máquina.

— Vou ficar com você, Dunienka — disse Sadojev. — Dei uma nova direção a minha vida. Sei que vai precisar muitas vezes de mim.

— E a mamuschká?

— Eu lhe mandei uma carta de Irkutsk. Ela vai se arranjar sozinha, mas toda a Issakova a ajudará.

— Sabe alguma coisa de Igor, paizinho? Sadojev olhou o céu.

— Não — respondeu. — Dizem que foi condenado a dez anos porque é um idiota e queria voltar para a Alemanha. Esqueça-o, filhinha.

— Nunca, pai, nunca! — Ela encostou a cabeça ao ombro do pai, cobrindo os olhos com as mãos.

— É possível que eu fique sabendo de alguma coisa — disse ele misterioso. — O trem dos homens veio do sul.

Dunia abraçou o pai, ele colocou os braços em volta dela e ficou embriagado de felicidade.

— Só uma notícia... um sinal... uma única palavra sobre ele... e eu poderei aquecer-me com isso em Vorkuta.

Sadojev prometeu procurar notícias imediatamente. Levou Dunia de volta ao seu vagão e partiu correndo na escuridão.

Para Marko o início da noite transcorreu um pouco mais complicado. Ele tirou Pjetkin da sua tepluschka, e deparou com Kolka, o assassino.

— Você já tomou conta dele, hem? — berrou o chefe. — Ele é nosso!

Postou-se diante da porta, e nem os dois soldados que Marko trouxera, pois apresentava a retirada de Pjetkin como oficial, o impressionaram.

— Calma, amiguinho — disse Marko indiferente. — Ele deve apenas fazer um diagnóstico, depois estará de volta. Além disso, vocês vão-se separar mesmo... o comboio será reorganizado. Os políticos de um lado e os criminosos do outro!

— Impossível — berrou Kolka. — É mentira! Isso nunca aconteceu!

— Todas as novidades têm uma primeira vez. Ordem de Moscou. — Marko acenou, os dois jovens soldados foram até a porta, golpearam o peito de Kolka com as coronhas, e gritaram:

— Pjetkin, fora!

Pjetkin saltou do carro com rosto imperturbável, e parou na neve. Fora preparado pelos seus camaradas. Nos bolsos do seu casaco acolchoado trazia quatro sacos de camisas costuradas, no peito um longo saco de couro. Até uma lista de encomendas: pão, açúcar, sal, chá, arenques, fumo, farinha, grão de milho, e notícias, para onde vai o comboio e o que anda acontecendo lá fora no distante mundo.

— Ainda vamos conversar sobre isso! — gritou Kolka na escuridão do carro. — Não vamos deixar que nos roubem o nosso doutor!

Com passos rápidos Pjetkin e Godunov se afastaram. Ouviram ainda como a porta se fechava de novo rangendo, e a grande tranca de ferro fechava a saída.

- Camaradas, escutem! — disse Kolka na treva malcheirosa. — Deve ter acontecido alguma coisa. Vamos tratar de pegar alguma doença contagiosa. Aí Pjetkin terá ordens de nos tratar. Quem sabe de uma boa doença? Espero sugestões...

Era uma boa ideia a de Kolka, pois não há nada no mundo que um russo tema mais do que uma doença contagiosa. Onde há um cartaz com a palavra “Sarasa” (Contágio), há paz eterna. O maior demónio fazia uma curva ao redor desse lugar.

— Venha comigo — disse Marko quando passaram pelo depósito e Pjetkin ficou parado. — Adiante...

— Calma! — disse Pjetkin e soltou-se. — A fuga já deve começar aqui?

— Quem sabe? — Marko deu uma risadinha zombeteira. Esfregou as mãos e dançou de alegria, saltando de uma perna para a outra. Um horrível espetáculo para quem visse Marko pela primeira vez. — As maçãs do paraíso também perfumam no inverno.

Marko apertou Pjetkin com as duas mãos nas costas empurrando-o para a frente. — Que sujeito cabeçudo. Está diante do paraíso, e treme...

Pjetkin foi andando devagar. Rodeou o vagão e viu na sombra, obscuramente, um vulto numa fofaika coberta de peles. Uma pequena mancha que não se movia. A neve cintilava nos reflexos do luar pálido, e a geada passava pelas botas e panos de lã, atingindo os pés e queimando os dedos. Apesar disso, Pjetkin começou a suar. Pigarreou e esperou para ver o que a sombra faria diante dele.

— O senhor tem alguma notícia sobre Igor Antonovitch Pjetkin? — perguntou a figura imóvel à parede do vagão. A voz era clara e melodiosa.

Pjetkin sentiu-se como que atingido por um punho. Deu alguns passos oscilantes, a figura levantou os braços, estendendo-se para ele, com os punhos fechados.

— Pare! — disse a voz clara, de repente cortante. — Tenho um punhal na mão. Se chegar mais perto, corto-lhe a cara.

— Dunia... — gaguejou Pjetkin. — Duniuschka... Dunia! A última palavra foi um grito. Então precipitaram-se um para o outro, chocaram-se como duas ondas selvagens, caíram no chão, abraçaram-se ainda na queda, e rolaram pela neve.

— Igoruschka! Meu Igoruschka! Vou morrer!

Mas não morreram. Ficaram deitados na neve beijando-se, afogando-se em seus olhares, balbuciando palavras desconexas, sentindo um ao outro, sufocados.

No outro lado do vagão, Marko enxugava os olhos, tirava as lágrimas congeladas das pálpebras. Ajoelhou-se na neve, persignou-se e rezou.

Marko saíra da Igreja quarenta anos antes. Até aquela hora, na estação de carga de Semipalatinsk, sempre afirmara nunca ter sentido nada de Deus. Mas naquele instante dizia:

— Ó Deus, eu Vos agradeço... e abençoai-os...

 

Só de manhã Pjetkin voltou à sua tepluschka.

As horas com Dunia foram menos uma embriaguez do que um dolorido esquecimento da realidade circundante. Marko os levara ao depósito, onde Ulanov arrumara seu quarto, ajeitando-se tão bem quanto possível sobre algumas caixas de conservas. Como senhor de todo o material, dispunha de cobertas, colchões e travesseiros, e um saco para esquentar os pés. Quando Marko foi verificar, estava deitado, gordo, de costas, roendo um pedaço de chouriço.

— Você é um cão maldito! — disse Ulanov a Godunov. — Agora estão fazendo um filho na minha cama. Na minha cama! Isso vai me dar sonhos torturantes.

— Quem sabe se isso faz parte da sua cura? — disse Marko com esperteza. — Pode ser que alguma coisa do ardor do meu médico fique nos teus travesseiros.

— Fora! — berrou Ulanov. — Se eu olhar para você mais tempo, vou me lembrar de que sou agente da polícia soviética. Não me provoque! Fora!

Assim Dunia e Igor ficaram sozinhos até o amanhecer. No compartimento do ”acompanhante técnico”, que Marko balizara assim, e que pertencia ao vagão de materiais II, Sadojev e Godunov ficaram a noite toda, juntos, jogando xadrez e vigiando.

Ninguém sabe o que Dunia e Igor disseram nessa noite, e não sejamos curiosos a ponto de importar-nos com isso. Cada um pode usar a imaginação, compartilhar os sentimentos-deles, se tem um coração um pouco terno e sabe o que é o verdadeiro amor. São sempre as mesmas palavras antiqüíssimas, os mesmos suspiros, as afirmações balbuciadas, e tudo acaba no divino você, palavra tirada diretamente do tesouro de Deus. Pode-se considerar isso antiquado, mas quando dois amantes estão deitados, lábio contra lábio, corpo contra corpo, a transpiração evaporando-se da pele, ambos fremindo e não podendo mais se separar, suspirando e protestando de boca a boca: ”eu o amo, Igorenka” e ”eu a amo, Duniuschka”, então não existe mais tempo nem espaço, nem limites, pois somos apenas seres humanos, e nem queremos ser mais que isso...

De manhã, Pjetkin voltou ao seu vagão. Sadojev acompanhou a filha à enfermaria do comboio das mulheres, banhando-se no sol dos olhos felizes de Dunia.

— Vamo-nos ver em cada parada, paizinho — disse ela, abrindo os braços como se quisesse abraçar o céu. — E ainda que Vorkuta seja o inferno... vamos encontrar um cantinho para o nosso paraíso particular.

Sadojev confirmou silenciosamente. Sentia a garganta congelada. O vento despenteava os cabelos de Dunia, espalhando-os sobre o rosto dela como um véu dourado.

Pjetkin trouxe cinco sacolas cheias ao seu vagão. Kolka colocou-as imediatamente atrás de si como uma galinha choca os seus ovos, erguendo os punhos. Os prisioneiros aproximaram-se de todos os lados — o anseio mudo da fome brotava em todos os olhos com uma ânsia assassina.

— Vamos fazer uma distribuição justa — disse Kolka ameaçadoramente. — Metade para Pjetkin e para mim. A outra metade para vocês.

— Trapaceiro! — berrou alguém dos fundos. — Vamos quebrar-lhe a cabeça!

Imediatamente formaram-se dois partidos, na divisão antiga do campo de concentração. Aqui os criminosos, ali os políticos... e como houvesse mais criminosos do que políticos, estes se retraíram, deitando-se cheios de ódio abafado nos seus catres. Kolka deu um sorriso maldoso. Limpou a sua cama e dividiu os tesouros que Pjetkin trouxera em diversos montinhos. Três criminosos robustos montavam guarda. Era preciso, pois a visão de comida às vezes perturba o cérebro dos famintos.

— Primeiro o açúcar — disse Kolka alto. — Meia colher para cada um... dêem um passo a frente, um por um.

Uma longa fila começou a fazer sua ronda no vagão. Uma serpente de corpos emaciados, em círculo, mãos estendidas, recebendo aquelas preciosidades em farrapos de camisa, pedaços de papel e até sapatos.

Açúcar, farinha, milho, chá, sal e pão, e até carne congelada. Kolka picava-a em pedacinhos, com uma faca feita de um pé do fogão.

Depois, um silêncio feliz desceu sobre aqueles sessenta mortos-vivos. Ficaram deitados nos catres, mastigando. Celebravam aquela refeição como uma unção benta.

A partir das dez da manhã começou o reagrupamento dos condenados. Com grandes listas na mão, os oficiais se puseram em posição, abriu-se novamente a estação fechada pelos militares, e comandos ressoaram pelas filas de vagões.

— Todos para fora! Em posição! Contagem! Quem for chamado, para a esquerda! Todos para a inspeção.

O trem esvaziou-se. Montes de cabeças enfiadas na neve como pedras de calçamento. Só a tepluschka de Kolka não saiu... havia ali sessenta homens deitados nos catres gemendo, revirando os olhos, com pontinhos vermelhos no rosto. Tudo fora muito bem organizado.

Dois oficiais espiaram para dentro, pararam estupefatos, saltaram para trás quando Kolka cambaleou até a porta, coberto de manchas.

— Uma epidemia! — balbuciou Kolka apoiando-se em Pjetkin, o único que não trazia marcas da doença — tinha de permanecer sadio para poder ajudar como médico. — O doutor a reconheceu. É... como é mesmo o nome?

— Escarlatina aguda — disse Pjetkin. — Cuidado, camaradas! É uma grave Scarlatina fulminante. Uma infecção pode causar a morte.

— Precisamos de ajuda! — berrou Kolka rouco. — Dêem os remédios necessários ao nosso doutor. Socorro! Ouviram, seus idiotas? Estamos mal... Não se aproximem, se têm amor à vida!

Os oficiais recuaram, e quando Pjetkin saltou para a neve, nenhum se atreveu a agarrá-lo. A notícia correu imediatamente de boca em boca... uma tropa de outros oficiais aproximou-se, vinda do vagão-enfermaria I. Três médicos que vinham com eles. até saudaram Pjetkin como a um colega.

— É mesmo? — perguntou o capitão-médico. — Escarlatina?

— Sem dúvida. O vagão inteiro.

— Obrigado. — O capitão-médico fez um aceno. — Fechem as portas e isolem!

— Não quer dar uma olhada nos doentes? — perguntou Pjetkin atónito.

— Sua palavra basta. Venha conosco, vamos-lhe dar bastante penicilina. Você ainda não foi atingido.

Pjetkin olhou para o seu vagão. A porta estava sendo fechada... a última pessoa a quem viu foi Kolka, que sorria e acenava.

Durante horas, os cinqüenta e nove homens do vagão 34 aguardaram a volta do seu médico. Ouviram a tranca ser fechada com o cadeado. Alguma coisa arranhou a parede e depois houve silêncio.

À noite, um abalo percorreu o carro, depois as rodas se puseram lentamente em movimento.

— Ah! — exclamou Kolka. — Agora a organização está funcionando. Vamos ser manobrados para a cauda do trem. Pjetkin vai voltar logo, aposto.

Mas Kolka estava enganado. Depois de alguns minutos as rodas pararam, a sacudidela da manobra esperada não aconteceu... o vagão ainda sacolejou por algum tempo sobre os trilhos, depois ficou parado, freado pelo próprio peso. Kolka encolheu os ombros. De repente, sentia frio apesar do calor do fogão. No reflexo das chamas trémulas os rostos desfeitos dos outros pareciam se aproximar dele.

— Estão é desligando o vagão do trem... — disse alguém. — Vão-nos deixar aqui parados. Deus do céu, estão-nos abandonando para apodrecermos aqui!

Isso teve o efeito de um sinal combinado. Uma onda de corpos chocou-se contra a porta, batendo os punhos e pés contra a madeira. Com as bocas escancaradas e os olhos cheios de puro horror, berravam contra as tábuas.

— Abram! Não estamos doentes! Socorro! Socorro! Piedade, irmãozinhos. Estamos todos com saúde... saúde... saúde...

Era um coro triste, que ressoava terrível e abafado pela parede do vagão dentro da noite de inverno.

—Saúde... saúde... saúde...

Ninguém se importou com isso. Isolado, longe do trem, o vagão ficou parado num desvio. Na porta, estava colado um grande cartaz rapidamente pintado.

Cuidado, perigo de infecção!

Um cartaz que fechava o vagão tão bem quanto a tampa de um ataúde.

Até as dez da noite os homens martelaram a porta com mãos e joelhos, atiraram-se em grupos contra ela tentando arrombá-la com os ombros. No seu desespero, esvaziavam o fogão e puseram fogo na parede. Mas o manto de gelo do lado de fora era mais forte do que a chama tímida do interior... ela apenas chamuscava a madeira e empestava o ar com um cheiro acre.

Às onze horas, mataram Kolka, o assassino. Quatro criminosos e um político — para guardar as proporções — puseram as mãos nele ao mesmo tempo, estrangularam-no, golpearam-no as têmporas com os punhos e deram-lhe pontapés no baixo-ventre. Kolka berrava terrivelmente, até que a dor foi forte demais, e sua voz falhou. Depois morreu entre dez mãos, e por segurança ainda lhe bateram o crânio umas quatro vezes no fogão de ferro.

Às três horas, um sacerdote disfarçado deu-se a conhecer. De repente, estava lá, parado no meio do vagão, uma estola de papel crepom no pescoço, abençoando os homens exaustos de gritar e agitar-se.

Pelas frestas entrava o gelo trazendo a morte. O fogão estava despedaçado, o fogo apagado, e eles sabiam que ninguém mais se importaria com aquele vagão abandonado. Nem hoje, nem amanhã... e nem seria necessário, pois blocos de gelo não contagiam ninguém...

Pela manhã ouviram o apito das locomotivas, os trilhos estremeceram, o comboio dos deportados seguiu caminho.

O sacerdote disfarçado ajoelhava-se no meio do vagão. Ao seu redor jaziam cinqüenta e sete seres humanos que se congelavam lentamente. Quatro homens trabalhavam com pedaços do fogão destruído, tentando arrombar o chão. Era de boa madeira antiga, grossos pranchões das florestas da taiga, derrubadas pelos deportados, cortadas em madeiras pelos deportados, pregadas pelos deportados, montadas pelos deportados. Vagões para durarem uma eternidade, como só se conhecem na Sibéria.

— Deus tenha piedade de nós — disse o sacerdote em voz baixa e trémula. — E perdoe os nossos pecados, por mais graves que tenham sido... nós pagamos por eles, Senhor do Céu...

Só depois de quatro dias o vagão foi aberto...

 

Quem quer conhecer a extensão da taiga, que viaje de Kasakstan até o Mar Ártico. Ou do Ural até cabo Dechnev. E se disser que já conheceu algo mais poderoso, podemos chamá-lo sem remorso de mentiroso, dar-lhe uma bofetada e jogá-lo na rua.

Durante quatro semanas o longo trem de carga sacolejou através da taiga. Seguidamente parava dois ou três dias, até cinco, em alguma estação isolada, os carros eram limpos, os canos de esgoto degelados, nova lenha jogada nos vagões, os mortos eram contados e colocados num carro especial. Era preciso levá-los também, para que as listas conferissem. Em Vorkuta deviam ser entregues tantas pessoas quantas se tinham apanhado. Vivas ou mortas, não era importante. Mas o número precisava estar correto.

Em cada estação, Dunia e Igor se encontravam, lançavam-se olhares secretos, e encontravam-se no vagão do secretário Ulanov, quando o trem parava por dois dias.

Na terceira semana, um eixo se quebrou, e quatro vagões saltaram dos trilhos. Houve muita confusão. Uma parada de quatro dias — o chefe da estação seguinte, Marlinkova, a quarenta verstas de distância, deveria mandar um vagão de consertos, o que o levou ao desespero, pois este vagão estava abandonado, desde que havia dez anos não era necessário — e nesses quatro dias Sadojev foi caçar e participou a Marko as possibilidades de uma fuga.

E subitamente Sadojev desapareceu.

Há muito ele tivera a ideia de ir caçar. Especialmente no dia em que recebeu pela quinta vez um mingau aguado como refeição, uma papa que, para o pessoal acompanhante, fora temperada com um pouco de banha derretida, enquanto os prisioneiros a engoliam de qualquer jeito, a sua paciência chegou ao fim.

— Que grude! — berrou ele no vagão de carvão. — Fim, irmãos! Vou caçar e trazer um pouco de carne!

— Ele quer caçar! — gritou o foguista rindo desabaladamente. — Com quê? Acha que um dos soldados vai-lhe emprestar a sua arma? Você já viu o comandante? É implacável. Conta cada bala, e de três em três dias faz uma chamada para conferir. Quer caçar com as mãos?

— Nós lá do Amur temos experiência dessas coisas — disse Sadojev com um gesto de desprezo. — Se me arrumarem um pouco de arame, e fizermos parada por dois dias em qualquer lugar, vou-lhes colocar um assado diante dos pés.

O arame foi conseguido depressa, e quando alimentara bastante a locomotiva, Sadojev sentou-se ao lado do carvão, num caixote, e começou a armar laços. Isso não é o melhor meio de caçar, mas estavam na Sibéria, não se podia esquecer, e as entranhas de Sadojev ardiam de fome. Nesse caso, um laço é como um seguro de vida e a relação entre homem e animal selvagem na Sibéria é diferente da que existe na Europa. Aqui todo mundo luta pela vida, com todos os meios, e um lobo que nos assalta por trás, nos morde logo na nuca para matar, pois não tem muita educação.

Mas onde havia dois dias de tempo para colocar as armadilhas? Por toda parte em que o trem de prisioneiros parava para receber água, renovar o carvão, apanhar provisões, contar os mortos, verificar os prisioneiros na chamada e limpar os vagões, em toda parte onde parava por alguns dias, não havia caça, pois essas paradas eram feitas em estações de carga ou de manobras.

Mas enfim tinham parado em campo aberto. O carro de consertos de Marlinkova só chegaria daí a dois dias, e era duvidoso que o eixo quebrado tivesse conserto. Uma sugestão foi violentamente discutida: virar o vagão defeituoso na neve e arrumar um vagão de Marlinkova como novo transporte. Isso também duraria dois dias, e era mais seguro.

Depois de muita gritaria concordaram em aceitar essa sugestão. O chefe de Marlinkova voltou com a sua darisine — um vagão elétrico, com o qual controlava a linha — para a sua estação, contente por não precisar entregar o vagão de reserva, totalmente imprestável pelo desuso.

Para encher o tempo, começaram um exercício em ziguezague no campo aberto. O comandante do trem ordenou que os condenados fossem contados no mínimo pela décima vez. Isso significava: para fora dos vagões, sentar-se na neve, marteladas na nuca e nas costas, berros e pontapés quando a coisa ia muito devagar, ofensas e castigo como o ”degelo da madeira”. Dois condenados tinham de esfregar as mãos muito tempo numa longa acha de lenha até derreterem o gelo da sua superfície. Marko aproveitou aquela parada para verificar as redondezas. Levara Dunia e Igor novamente para o quarto do gordo Ulanov. Os dois ficaram ali juntinhos como duas rolas.

— É certo que vamos para Vorkuta — disse Dunia. — Os oficiais receberam suas ordens de Sverdlovsk. O campo das mulheres é bem perto do dos homens. Vamos poder ver-nos, Igoruschka...

— Isso não é certo, Dunia. — Ele a puxou para perto de si e aspirou o aroma do seu corpo. — Agora estamos juntos, e temos de transformar essas horas em eternidade...

Ulanov estava sentado num caixote, junto deles, escutando. Nos intervalos das refeições, ele sempre vinha ao quartinho, e Dunia e Igor não se envergonhavam de ficar nus diante dele. Viviam fora do mundo normal, estavam a caminho do inferno, eram ”almas mortas”... Quem ainda sentiria vergonha?

— O senhor tem esperança de me curar, camarada doutor? — perguntava Ulanov frequentemente, olhando de esguelha para os seios túmidos de Dunia. — Existe remédio para isso?

— Vou tentar, Ulanov. — Pjetkin apontou para a bandeja de madeira que Ulanov trouxera consigo. O carro de depósito era uma fonte inesgotável de petiscos... manteiga, toucinho, ovos, carne, pepinos, cebolas, batatas, frutas cristalizadas, farinha branca, peixe, geléia... tudo aquilo com que os prisioneiros, com sua kacha rala ou o seu balde de kip atok, sonhavam. — Primeiro você precisa de uma rigorosa dieta, irmãozinho. Dê um basta a toda essa gordura! As suas glândulas ficaram comodistas demais — As glândulas, sim; são elas. — Ulanov colocou a bandeja na mesa. — Faça alguma coisa, camarada doutor.

Desde o desligamento do seu vagão, em Semipalatinsk, Igor vivia em outro carro, no qual havia só presos políticos. Lá imperava uma ordem severa e absoluta limpeza. O comando estava a cargo de um antigo general. Tinha sido condenado a dez anos por suas ”conversas subversivas”.

O vagão todo vivia das incursões de Pjetkin à cama de Ulanov. Quando ele voltava para as chamadas diárias, tinha os bolsos cheios de açúcar e pão, margarina e lingüiça, sal e batatas secas.

Todas as noites o general distribuía as rações. Dois outros condenados controlavam a distribuição e pesavam cada ração. Um mecânico no vagão construíra com arame e duas pedrinhas uma pequena balança... ela não indicava pesos mas o equilíbrio das porções.

Marko voltou após dois dias, com o novo vagão de Marlinkova. Estava coberto de crostas de gelo, e suas juntas estalavam de frio.

— Impossível fugir aqui — disse ele, sentando-se ao lado do fogão aceso. — Estamos entre Sverdlovsk e Perm, perto fica o rio Tchussovaia. Terra de colinas, afluentes do Ural, florestas e precipícios rochosos. Se fugirmos aqui, chegaremos em poucos dias à civilização. Isso é ruim, pois chamaremos a atenção. É mais fácil fugir no meio das florestas da taiga, pois lá os caçadores nos ajudarão. Eles têm pena dos deportados... os moradores da cidade não. Esperemos, meus caros... estamos indo para o Norte, sempre beirando o Ural. Onde a solidão devora toda a vida... lá desceremos. Onde não há ninguém, ninguém pode nos procurar. É lógico isso, não é?

— E onde não há nada também nós morreremos — disse Pjetkin cheio de dúvidas.

— Em toda parte vivem animais, irmãozinho. — Marko começava a degelar... da sua roupa saía um regato de gelo derretido e corria pelo chão. — Vamos aprender, dos animais, a encarar a Natureza como mãe. Podemos, Igorenka, pois um russo pode tudo...

Enquanto isso, Sadojev preparava suas armadilhas. Vagabundeara um dia inteiro. No velho sistema sibenano, fizera círculos em torno do vagão, primeiro estreitos, depois sempre mais largos, pelas florestas e ravinas. Os círculos finalmente se ampliaram tanto que no segundo dia teve dificuldade em encontrar o caminho de volta, pois o vento apagava depressa as pegadas. Só porque a locomotiva apitou algumas vezes para soltar vapor, ele se pôde orientar.

— Onde está o nosso assado? — perguntou rindo o foguista quando Sadojev voltou cansado. E o maquinista berrou: — Ele correu atrás de um coelho, está-se vendo! É mesmo muito difícil botar sal no rabo deles, irmãozinho...

— Esperem só — disse Sadojev, aquecendo-se na caldeira. — Amanhã ele estará estalando sobre o fogo. Procurem desde já lenha seca e pensem em como podemos disfarçar o cheiro do assado. Vão-nos matar por causa dessa carne. Preparei a minha armadilha... amanhã vou apanhar o que peguei.

— E o que vai achar lá dentro, hem? — disse o foguista. — Um ratinho magro, que não vai dar para encher o buraco do meu dente.

No terceiro dia, Sadojev partiu cedo, com um saco, um grosso porrete, largas sandálias trançadas para a neve, que um ferroviário de Marlinkova lhe emprestara, uma faca grande e muita confiança nos seus laços. O maquinista e o foguista deram-lhe adeus antes que desaparecesse no mato ao lado dos trilhos. Um ponto escuro no branco cintilante da neve.

— Sessenta e três graus abaixo de zero — disse o maquinista. — Ainda que ele seja apenas um idiota, tem a natureza de um boi. Estou contente por estar aqui atrás da minha caldeira.

Sadojev, antes de partir para ver sua armadilha, ainda trocara algumas palavras com Dunia e Pjetkin. Como fosse de manhã cedo, os dois estavam deitados na cama do gordo Ulanov, dormindo, quando Sadojev subiu ao vagão de material. Suspirou, debruçou-se sobre a filha, beijou-lhe os olhos e sacudiu-a. Ela acordou num susto, encarando-o até o reconhecer.

— Paizinho...

— Psiu... deixe Igor dormir. Filhinha, vou caçar. Prepare uma frigideira... vou trazer o melhor pedaço para você. Ainda vamos ficar por aqui pelo menos uns três dias, disse o chefe em Marlinkova. Até lá já terei voltado. Coloquei umas belas armadilhas, como nos velhos tempos...

Ele piscou os olhos astuciosamente, deu mais um beijo em Dunia, e saiu depressa do vagão. Lá fora, afivelou os largos sapatos de neve, à moda dos caçadores siberianos, para poderem vencer a neve de metros de altura, e foi andando feliz em direção às florestas.

À tardinha, ainda não tinha regressado.

À noite, uma tempestade de neve se pôs a uivar sobre a região. Massas de neve caíam sobre o trem como se estivessem desabando do céu. As árvores gemiam, o vento uivava, nas gargantas das montanhas. A noite era um mingau branco em torvelinho.

Os primeiros laços estavam vazios. Estavam na neve Imaculada, assim como os deixara. Nenhum animal se perdera por aquelas bandas. E Sadojev poderia ter jurado que por ali se arrastavam mais animais do que seria de esperar.

Praguejou, deixou os laços armados, e prosseguiu no seu caminho. Chegou à região das gargantas rochosas, dos grandes pinheiros e lariços que buscavam o céu e a luz. Ali havia caça... no dia anterior avistara os rastros. Lebres da neve, renas, pequenos veados. Também havia lobos, e, embora o homem odeie o lobo, naquele momento aquilo representava carne, nada mais. Gosto bom ou não, quem se interessa por isso desde que tenha o que meter entre os dentes, para mastigar, engolir e forrar o estômago?

Sadojev se rejubilou quando viu o quinto laço. Um coelho se estrangulara nele, um animalzinho magro, mas que dava para uma boa refeição. Sadojev tirou-o do arame, meteu-o num saco, e continuou. Marcara o caminho no dia anterior. Fizera marcas nas árvores, e agora seguia ao longo delas, num grande círculo em torno do trem parado.

Ao meio-dia, Sadojev ouviu ao lado um leve ruído de cascos na neve congelada. Parou e seus olhos de caçador brilharam. Tapou o rosto com as mãos enluvadas e ficou a escuta.

Veados. Perto dos seus dois últimos laços.

Sadojev era uma coluna de gelo. Depois ouviu em algum lugar um som de aviso, e a partida precipitada de todo o bando.

O laço! Por que estão fugindo? Um deles deve ter sido apanhado. Vocês vão se admirar, irmãozinhos, quando eu abrir o meu saco. Um coelho e o veado. E agora, seu foguista de boca grande, hein?

Sadojev correu tão depressa quanto lhe permitiam os largos sapatos de neve, tropeçou algumas vezes, até caiu, praguejou com expressões que podiam ter derretido a neve, orientou-se rapidamente pelos troncos marcados das árvores, e alcançou a clareira em que colocara os laços.

Mas veio de lado, o que foi um erro. Já de longe viu que estavam vazios, fechou os punhos e berrou na solidão gelada: ”Quem foi que os avisou? Será que o diabo anda por aqui? Saia do seu esconderijo... tenho tanta fome que sou capaz de comer o demónio!” — Depois correu adiante, deixou o seu caminho marcado, e se enfiou na floresta. O ódio o cegava.

Com um grito pisou nalguma coisa dura, algo lhe bateu na perna esquerda, mordeu firme através da sua bota, dentes aguçados se cravaram nos seus ossos, e a dor lhe correu como um foguete até o cérebro.

Por um momento tudo ficou escuro diante dos seus olhos. Sua boca se escancarou, ele gemeu alto, e agarrou a cabeça com as duas mãos e cambaleou.

Quando os círculos negros se afastaram de seus olhos, quando reconheceu de novo o mundo... árvores geladas com pesadas cargas de neve, a clareira, as gargantas de rocha, o céu azul e frio... sentiu o aperto férreo na perna esquerda. Não precisava nem olhar... sabia que pisara numa armadilha de ferro que cravara na sua carne as pontas afiadas, estava preso como um grande animal selvagem, seguro por aquelas garras de aço até que alguém viesse para acabar com sua vida.

Sadojev apalpou a perna. O sangue fluía pela calça acolchoada; quando se movia um pouco, os dentes de aço rangiam sobre seus ossos, e a dor o assaltava, como explosões, pelo corpo inteiro.

Sadojev tentou virar-se um pouco e afastar com as duas mãos aquelas mandíbulas de ferro. Mas já na primeira tentativa desistiu... qualquer movimento, cravado naquele ferro, era como o golpe dum raio de fogo. Gemeu, mordeu as luvas de dor, e ficou ali, ajoelhado na neve.

Eles hão de revisar a armadilha, pensou, e consolou-se com isso. Os caçadores que vivem por aqui hão de chegar até o anoitecer para recolher suas presas. Há gente por perto, isso é tranqüilizador. É preciso apenas cuidar para que o gelo não penetre na calça rasgada.

Esvaziou o saco, jogou o coelho morto na neve, enrolou o saco na canela. Isso também lhe provocou dores terríveis, ele mordeu os lábios até sangrarem, berrou uma vez para poder respirar fundo, e assustou-se com o som da sua própria voz, inumana.

À tardinha o vento se tornou mais forte, o gelo entrava pelas calças e casaco, o rosto se congelava. Sadojev pôs as mãos diante do nariz e da boca, soprou constantemente nelas, e sentiu a perna esquerda insensível, morta, uma massa inerte. Só quando se movia provocava um fogo que lhe queimava a pele e derretia o cérebro.

A escuridão chegou, e nada dos caçadores. Sadojev respirava mais depressa, o medo veio chegando com a noite. Se vierem só amanhã, estarei transformado num bloco de gelo. O gelo terá chegado aos ossos. Irmãozinhos, por que não vêm conferir as armadilhas?

Sadojev puxou a perna. Gritou ao fazê-lo, agarrou as mandíbulas de ferro e quis afastá-las. Mas depois de três tentativas caiu na neve chorando e reconheceu que suas forças não existiam mais. Por alguns minutos, pareceu que se banhava em piche derretido, a dor era tão grande que bateu a cara na neve e mordeu os cristais brancos. Depois o ardor diminuiu, ele ficou ajoelhado olhando fixamente o céu noturno e escutou, de longe, o rugido de uma tempestade que se aproximava. ”Socorro!”, urrou então. Não fazia nenhum sentido. A voz só chegava até as próximas árvores, mas ele gritava para se envolver nesse som como numa pele quente. ”Socorro! Socorro! Socorro!” Depois a tempestade chegou sobre ele, tapou-o com neve, ele se encolheu todo em torno de sua perna presa e começou a chorar. O pavor da morte o assaltou, soluçava nas próprias mãos. chamava por Dunia e por Anna, sua mulherzinha na distante Issakova, chegou a rezar, e lembrou-se repentinamente das orações que sua mãe fizera até que seu filho Dimitri Ferapontovitch se tornara um comunista que não acreditava mais em Deus.

Depois de três horas a tempestade passou, o céu parecia singularmente distante, claro e estrelado, de uma beleza opressiva... Sadojev jazia de lado, olhando fixamente a imensidão, esperando quase com ansiedade pela reação do próprio corpo nas próximas horas, pela sensação de morrer inteiramente consciente, de terminar a vida com um coração que batia forte no peito.

A pergunta teve resposta em breve.

Primeiro, foi uma sombra isolada, que se esgueirou entre as filas de árvores, e parou a uma distância segura. Uma sombra muda, redonda. Depois ela partiu e voltou com duas outras sombras. Elas formaram um semicírculo em torno de Sadojev, abaixaram-se, rastejaram sobre a neve. Depois, como a um sinal, as sombras saltaram, as mandíbulas abertas com filas de dentes pontiagudos, e dessas goelas brotava um uivo horrendo, que crescia e diminuía.

Sadojev endireitou-se de novo sobre os joelhos. Todo o medo passara. A luta entre homens e lobo, esse ódio antiqüíssimo que só um sobrevivente conhece, esse matar recíproco que existe desde que existe a Sibéria e, nela, homem e lobo, esse desejo de destruição cobriu todas as coisas.

Sadojev arrancou sua larga faca do casaco. Agarrou-a, tirou o saco da perna presa, enrolou-o na mão esquerda e fitou os lobos. O grande guia ergueu-se primeiro, rastejou mais perto, uivou para o homem, e ergueu o nariz, farejando.

Sangue! O sinal para matar. O cheiro da Vitória. Sangue...

— Venha! — disse Sadojev erguendo a lâmina. — Mexa-se, seu demónio caolho! Vou-lhe abrir a barriga até o queixo. Venha, seu maldito... venha... venha...

O lobo balançou a cabeça. Contemplava o homem, cheirou novamente o sangue, e rosnou abafado. Suas patas se firmavam na neve e ele bateu os dentes, e Sadojev sentiu o calor do seu hálito. O lobo saltou então agilmente. Por um segundo, pareceu suspenso no ar noturno e desabou sobre Sadojev. Ao mesmo tempo este ergueu a faca e acertou o peito do animal, rasgando-o.

O lobo deu um uivo terrível, rolou para o lado e ficou ganindo.

— Peguei-o! — gritou Sadojev triunfante. — Vocês aí! Venham! Venham! Aqui está Dimitri Ferapontovitch... que já aos sete anos andava caçando lobos! Venham, que não tenho medo... vou arrancar as tripas de todos!

O lobo guia cambaleou, mas ficou novamente de pé. Os outros dois separaram-se e vieram esgueirando-se dos lados. Sadojev sentia o sangue latejar nas têmporas. A perna dilacerada não lhe interessava... não tinha mais tempo para dar atenção à dor.

— Covardes! — gritou ele. — Vão atacar pelos três lados... Covardes e traiçoeiros!

Ergueu a faca quando os três lobos saltaram ao mesmo tempo. Não soube a qual deles tinha atingido... foi esmagado na neve por três corpos lanzudos, sentiu as dentadas nos ombros e nas coxas, os dentes agudos rasgaram a fazenda e o estofo de algodão, entrando-lhe pela carne.

Sadojev lutou até o último alento. Enfiou a faca nos corpos ofegantes que rosnavam e uivavam, enfiou a mão enrolada no saco nas goelas quentes escancaradas, o sangue lhe corria pelo rosto, e ele não sabia se era dos lobos ou dele próprio... Os dentes entravam por toda parte na sua carne, arrancando pedaços, e ele continuava lutando, cego pelo sangue que lhe corria nos olhos, batia com a faca ao seu redor, metia as unhas no pêlo lanzudo que estava por toda parte, e gritou ainda uma vez, um grito agudo, quando por um segundo sentiu um hálito quente sobre si, e dentes pontudos, fedendo a carniça, se lhe enfiaram na garganta.

Sentiu ainda a dentada, aquela dor a explodir-lhe no crânio... e nesse momento sua vida se apagou.

Quando os lobos lhe rasgaram o rosto, Sadojev já estava morto.

Procuraram por ele um dia inteiro. Os soldados afastaram-se, mas não o bastante. Depois desistiram de procurar. Não adiantaria, e além do mais ele não constava da lista de transporte, que teria de estar absolutamente exata em Vorkuta. Quem não está registrado na lista pode ser perdido sem dor na consciência. Sadojev simplesmente não existira.

Cinco dias mais tarde, o trem prosseguiu viagem.

O vagão fora trocado e se parecia com todos os demais vagões de animais. Primeiro, Dunia se negou a partir. Quando seu pai ficou desaparecido na floresta, suplicou ao comandante que mandasse procurá-lo e não desse o sinal de partida antes de o encontrarem. Quando as tropas de busca regressaram sem trazê-lo e a locomotiva foi preparada, Dunia deitou-se nos trilhos diante do trem.

— Ficou maluca — disse o comandante. — Que lhe interessa esse ajudante de foguista? O sujeito quer ficar vivendo no mato... que interessa isso à camarada Sadojeva? Vejam só, deitada aí nos trilhos... Diabos, ainda que haja cem belos corpos à frente... vamos embora. Tirem-na daí!

Foram precisos cinco soldados para erguer dos trilhos a moça que se debatia e mordia. Jogaram-na no vagão de Ulanov, no qual Pjetkin, condenado à inércia, a recebeu e levou para a cama.

— Paizinho! — gritava Dunia, louca de dor. — Vão deixar meu paizinho na floresta! Ele se perdeu, mais nada... se procurarem direito, vão encontrá-lo! Igorenka, Igorenka... eles vão deixar meu pai morrer na floresta!

Quando Pjetkin e Marko a seguraram na cama, debateu-se selvagemente, e resistiu com braços e pernas até que Pjetkim lhe deu uma injeção calmante.

Foi um período triste aquela última semana de viagem para o Norte. Dunia estava mudada, sentava-se silenciosa no vagão-hospital, fazia seu serviço com o rosto hirto, e não falava com ninguém. Não respondia, e quando o comandante lhe perguntou alguma coisa, fitou-o com olhos vazios e cuspiu no chão.

— Médica ou não — disse o comandante mais tarde no vagão dos oficiais, lutando com o seu orgulho — ela permanece uma suja camponesa do Amur. Eu queria saber que papel desempenhou na sua vida aquele foguista de pernas tortas, era seu amante? Não riam, camaradas, com as mulheres tudo é possível. Pensem em Rasputin. As mulheres mais finas faziam fila para dormir com aquele kulah fedorento. Ora, no campo de Vorkuta o mau humor dela desaparecerá.

Houve mais uma parada, pouco antes de Vorkuta. Os vagões foram novamente limpos, queriam chegar ao inferno mais ou menos em ordem. Pela última vez Dunia se juntou a Pjetkin no vagão de Ulanov.

Sabiam que aquilo era uma despedida por longo tempo; talvez para sempre. O amor os consumiu até a manhã seguinte. Depois, Pjetkin a levou ao vagão-hospital.

- Vou ficar sempre com você - disse ele, segurando-lhe as mãos. - E vou saber esperar dez anos. Se eles pensam que o arame farpado pode nos separar, são uns idiotas.

— Vou-lhe mandar notícias, Igorenka. Quem sabe o que vai acontecer? E se nunca mais nos virmos, permanecerei sua mulher. Juro. Adeus, meu amor...

— Adeus, Duniuschka... - A garganta dele estava apertada quando ela subiu ao vagão e fechou a porta sem se voltar novamente. Depois ele se virou e foi devagar pela neve ao seu carro. Marko o fez parar. Trazia notícias.

- Ouvi dizer que já existe uma ordem do hospital central do Campo de Vorkuta, para que o aproveitem como médico, os oficiais falaram nisso. Você vai ser apanhado no trem. Isso é bom, filhinho. Um médico tem mais liberdade... eu vou poder cuidar de você. Nunca houve uma fuga bem-sucedida em Vorkuta... mas eles não conhecem o talento de um Godunov!

— Cuide de Dunia, Marko. — Pjetkin pôs o braço no ombro do anão. — Prometa... fique perto dela. Nada de fugas, Marko... cuide para que não se interrompa a ligação entre Dunia e mim. Com isso já teremos conquistado meia liberdade. Você é agora o único fio a unir nossas vidas.

— Vocês hão de viver —disse o anão solenemente. — Confie em mim como um cavaleiro no seu animal.

À noite, o trem prosseguiu, e pela manhã, com um sol frio, fosco, filtrado pelas nuvens geladas, chegaram a Vorkuta.

 

Quem conhece Vorkuta faz três sinais-da-cruz ao pronunciar esse nome. Quem sobreviveu a Vorkuta tem razões para rezar e acender uma vela todos os dias. Quem saiu de lá com saúde é filho de Deus ou um bajulador refinado. Só quem não conhece Vorkuta pergunta: E daí? Um campo como qualquer outro. Cercas altas, filas de barracas, um hospital, uma casamata de castigo, depósitos, uma seção de quarentena, um cemitério, a cozinha, a lavanderia, a padaria, o açougue... uma cidade, essa Vorkuta, severamente regida, um dos maiores campos de concentração da União Soviética, um cantinho em que as opiniões e características, individualidades e pontos de vista são cozidos e transformados em tijolos iguais, com os quais se constrói o novo Estado.

Assim só pode falar quem arrota de garganta seca. Mandem-no para Vorkuta, deixem-no tremer ao vento que assobia dos lados do mar da Sibéria ocidental, atrelem-no diante dos trenós com os quais se tira madeira das florestas das montanhas de Tchernychev, ponham-lhe na mão o machado para que ele trabalhe no monte Pae-Jer, esse canto do Ural com 1.500 metros de altura, deixem-no rastejar pela tundra de Bolschesemelskaia ou quebrar pedaço de rocha nas pedreiras congeladas de Bajdaraskaia-Bay, nessa estrada milhões de vezes maldita através do chão eternamente congelado de Vorkuta, passando pelo Essva até Torovej junto ao mar, essa estrada que poderia ser asfaltada com ossos... ponham-se simplesmente no meio do Campo I, o campo central de Vorkuta, que ainda é o melhor de todos, e deixem-no ali sozinho. Ele dirá ”Vorkuta” como se tivesse areia entre os dentes, gelo no coração e pedra dentro do cérebro.

Vorkuta.

Aqui um ser humano deixa de ser humano.

O trem parou num trilho entre o Campo I e o Campo V. Alguns galpões formavam algo parecido com uma estação. Uma torre de rádio subia pelo céu de chumbo. Silos espalhavam-se como gigantes congelados na neve. Uma estrada de arames atravessava o ar, de poste de aço a poste de aço, até a própria usina geradora. Ao lado desses gigantes, as torres de vigia, de madeira, pareciam quase frágeis e tímidas.

— Saiam e sentem-se todos! — berraram os soldados ao longo do trem. As trancas afastaram-se rangendo, os deportados saltaram na neve e acocoraram-se. Já estavam treinados nisso. Assistiram insensíveis à remoção dos mortos. Corpos duros como quartos de gado congelados. Tinham sido transportados em três vagões sem calefação, refrigeradores naturais, conservados pelo frio siberiano. Foram deitados lado a lado diante dos vagões, numa fila, prontos para a entrega.

As listas de transporte estavam minuciosamente exatas; exceto pelos cinqüenta e nove homens deixados atrás no vagão da epidemia, em Semipalatinsk, ninguém faltava. O oficial do campo, que assumia o comando dos recém-chegados, contou os mortos e recebeu os relatórios dos chefes de cada comboio. Enquanto isso, os vagões com as condenadas eram desligados e rebocados para outro lugar.

Pjetkin seguiu com os olhos os poucos vagões gelados. Viu Dunia ainda uma vez... ela estava na janela do vagão-enfermaria, e procurava por ele na massa dos homens sentados na neve. Pjetkin ergueu a mão e acenou.

— Ei, levante-se — gritou-lhe um oficial, dando-lhe um pontapé que o acertou no lado, e sorrindo: — Você é o médico Pjetkin?

— Sim, sou eu.

— Levante-se, cachorro, quando falar com um oficial! — berrou o tenente. Antes que pudesse levantar-se, recebeu uma pancada com um pedaço de madeira na cabeça. Abalado, Pjetkin cambaleou, piscando os olhos para encarar o oficial.

— O pessoal aqui está -preparando algo especial para você. Por quê?

— Não sei, camarada — disse Pjetkin. A tontura estava passando. — Tenho amigos em Moscou.

— Em Moscou? Amigos? — O tenente olhou-o de esguelha, pensativo. — Venha comigo! Se tivesse amigos, você não estaria em Vorkuta agora.

— Amigos também às vezes se descuidam, camarada. Passaram pelos guardas, em direção às barracas, entraram num jipe fechado, e dirigiram-se pela estrada congelada até o Campo I. Marko seguiu-o até o veículo, ficou parado e empurrou o gorro de ferroviário sobre a nuca.

— Que significa isso? — perguntou a um dos guardas friorentos. — Esse porco político já vai ser liquidado?

— Quem sabe? — disse o guarda sorrindo. — Vá cuidar do seu vagão, anãozinho, senão vão fazer você nadar na sopa, lá na barraca da cozinha...

Riu alto e virou as costas para Marko.

Pjetkin passou por todos os controles, sem problemas. O seu acompanhante dizia apenas a palavra ”hospital”, e os guardas os deixavam passar. Só diante do portão do Campo pararam de verdade e desceram. A sede do comando era de pedra, parecia uma fortaleza, e era coroada por uma grande bandeira rubra que se desfraldava ao vento. Pjetkin foi levado por alguns corredores, até chegarem a uma sala na qual o coronel Baranurian estava sentado atrás de uma mesa larga, lendo o Pravda de Moscou, e tomando cerveja, ergueu o olhar quando o tenente se apresentou, dobrou o jornal e recostou-se na cadeira. Só o som da porta fechando-se revelou a Pjetkin que estavam sozinhos.

— Você é Igor Antonovitch Pjetkin? — perguntou Baranurian examinando Pjetkin como a um cavalo manco que se vendeu como cavalo de raça. — O médico de boca grande. Por que isso, meu rapaz? Conquistamos Stalingrado e enxotamos os alemães do Volga. Os alemães, meu rapaz, e agora o filho do herói Pjetkin aparece e afirma que é alemão! Reconhece a vergonha, seu animal?

— Não fui eu que fiz isso, e sim Moscou. Sempre me senti como russo, vivi como russo, sou filho de Pjetkin. Mas Moscou pensa de outro modo. Estou aqui em Vorkuta porque quero ser russo, porque, como russo, quero casar-me com uma russa. E isso me proibiram... Porque sou alemão.

— Mundo confuso este, Igor Antonovitch. — Baranurian sacudiu a cabeça. — Não devemos pensar muito nisso. E você deve esquecer essa tal moça. Não discuta. Você vai esquecê-la, pois não sabe o que o aguarda! Você foi requisitado pelo hospital central de Vorkuta assim que as listas de transporte foram conhecidas. É o único prisioneiro que pode trabalhar lá... como cirurgião. Mas esse negócio tem um obstáculo, rapaz. Você vai trabalhar sob as ordens de um médico-chefe que primeiro o fará cair de joelhos, arrastar-se por todo o Campo, e depois lhe porá o escalpelo na mão. Você é merda aos seus olhos. Eu lhe digo isso antes que vá ao hospital. Nunca tivemos um médico-chefe assim. E apesar disso os meus oficiais fazem fila para serem examinados. Vamos.

O hospital ficava perto da cerca. Era um grande conjunto de pedra com uma praça na frente, na qual se faziam as chamadas dos doentes. Pjetkin entrou cautelosamente no edifício. Os avisos do comandante pesavam-lhe no peito como chumbo.

— Vamos esperar aqui — disse o coronel. — Vou anunciá-lo ao chefe.

Pjetkin confirmou. Depois, ficou sozinho, parado junto da janela, olhando o campo lá fora.

Vorkuta.

Fim da linha.

Nevava de novo.

Uma porta bateu atrás dele. Pjetkin não se voltou. Pode-se ignorar, até mesmo, um demónio.

— Até que enfim. Aí está você, Igorenka... — disse uma voz baixa, cantante.

Pjetkin virou-se depressa. O sangue lhe subiu à cabeça, quase lhe estourando as veias.

Diante dele, de uniforme branco, estava Marianka Jefimovna Dussova.

Na Sibéria há um provérbio que diz: ”Ele está como uma raposa que persegue o próprio rabo.”

Pjetkin sentia-se exatamente assim, ali parado diante de Marianka Dussova, constatando que na verdade nada mudara, exceto o nome do Campo. Até o terror que a Dussova espalhava era o mesmo, e não importava quanto tempo já estivesse em Vorkuta... um dia bastava para se perceber, perto dela, que o inferno não estava por vir, mas já fazia parte do presente.

— Como foi que você veio até aqui? — perguntou Pjetkin caindo numa cadeira encostada numa parede de madeira do quarto. Sentia-se totalmente abalado, as pernas fracas.

— É uma história curta, Igorenka. — Marianka encostou-se na parede ao seu lado.

Pjetkin resistiu interiormente contra a pressão do corpo de Marianka, que lhe fazia bem, que lhe sugava o coração.

— É culpa sua, meu lobinho...

— Eu? Não passo de uma ”alma morta”.

— Mas antes disso você deixou o seu veneno em mim. O maldito veneno da verdade. Logo depois da sua transferência para Chelinogrado repeti o seu pedido na central de cuidados médicos. Mais remédios, higiene no hospital, um tratamento humano para os doentes, créditos correspondentes para os destacamentos de trabalho... uma lista longa e doida, Igorenka. Já depois de dois dias... ah, eles sabem trabalhar depressa quando se bota fogo debaixo das suas bundas gordas... apareceu uma comissão. Quem não conhece as comissões? Andam por aí, olham dentro da panela, apalpam as camas, cheiram as latrinas, farejam na cozinha, interrogam este ou aquele. E depois a comissão retorna à sede do comando, arma carrancas e pergunta: ”Afinal, o que foi mesmo que você escreveu, camarada Dussova? Este Campo é um verdadeiro veraneio! Estamos achando que lhe faltam meios de comparação. Sempre no mesmo Campo, isso perturba a visão. Vamos tratar de aumentar os seus conhecimentos.” E eu lhe respondi pensando em você. ”O Dr. Pjetkin verificou essas falhas eu apenas o apoio. O camarada Pjetkin chegou aqui vindo de um mundo onde a dignidade humana faz parte do programa do Partido...”

— Meu Deus, Marianka, você disse isso?

— Eu não tinha nada a perder. Você conhece minha vida, Igoruschka. Nasci na sombra, cresci na sombra, fiquei na sombra... quem ainda me pode assustar com sombras? — Marianka Dussova pôs as mãos nos cabelos louros de Igor. Seus dedos se moveram em círculos, como se quisesse massageá-lo. Uma sensação que descia até os dedos dos pés de Pjetkin. — Escrevi mais três vezes para Chabarovsk, e três vezes o camarada diretor da seção telefonou perguntando se eu estava doente. Era exatamente essa a pergunta que eu fazia a mim mesma. Sim, eu estava doente... Com olhos abertos, sonhava que você estava diante de mim, escutava sua voz: ”Sou um médico. Devo não só curar os doentes, mas defender a dignidade humana.” Eu repetia aquilo... era o meu único argumento... e três semanas depois me transferiram para Vorkuta. Depois disso fui até Moscou. O chefe da Seção de Saúde no Ministério do Interior me abraçou, apertou-me de encontro ao peito, chamando-me sua filhinha. ”Você dirigirá vinte e quatro médicos, Marianka Jefimovna” — disse radiante, como se o tivessem fritado na gordura como uma panqueca. ”Médica-chefe em Vorkuta, Seção I... isso é um prémio. Só os melhores o alcançam. Sei que não nos enganamos com esta escolha”. Viajei sem resistir. Que importa se me colocam no terceiro, quinto ou nono círculo do inferno... em toda parte estão os mesmos demónios!

— E mal você chegou aqui, já está espalhando terror — disse Pjetkin cheio de amargura. — Por que, Marianka Jefimovna?

— Já o avisaram? — Ela riu, um riso abafado e cheio, como se estivesse deitada nos braços dele. — O comandante? É um bode velho, com ciúmes dos oficiais novos que todas as noites param diante da minha janela miando como gatos.

— Ele era amigo do meu pai — disse Pjetkin, levantando se e indo até a janela. O olhar sobre a praça de inspeção lhe deu calafrios nas costas. Uma coluna de condenados estava limpando a praça do gelo. Com tábuas de cantos aguçados, cobertos de aço, com cabos longos, os homens afrouxavam o gelo, um trabalho terrível para o corpo que recebe por dia 200 gramas de pão e meio litro de sopa. Um trabalho fatal para pessoas que não têm mais músculos, mas apenas ossos cobertos de pele.

Pjetkin estremeceu. Os braços de Marianka cercaram-lhe o pescoço. Ele sentiu os cabelos negros dela fazendo-lhe cócegas na nuca, aspirou o seu doce perfume de rosas. O cheiro dos tártaros, do qual se diz que transforma um garanhão num cordeirinho.

— Sei em que está pensando — disse ela baixinho. Beijoulhe a têmpora esquerda. — Mas não faço mais a seleção dos doentes. Tenho nove médicos para isso. Você vai ser o décimo?

— Nunca!

— Quer trabalhar na pedreira de Pae-Jer? Na estrada para Bajdaraskaia-Bay? Na madeireira de Jevssjavan?

— Em qualquer lugar em que não precise vender minha honra.

— Em quatro semanas estaria diante de mim, na mesa de autópsia.

— E com os outros, você se interessa por isso?

— Você não é um outro. É Igorenka... — Ela beijou-lhe de novo a nuca, e acariciou seu peito com as duas mãos. Desabotoou-lhe a camisa grosseira, colocou os dedos no seu peito ossudo e apalpou para ver como emagrecera. Depois apertou a cabeça contra o ombro dele, e ficou comprimindo-se contra ele, por trás. — Eu pedi que o fizessem meu assistente cirúrgico.

— Então sabia que eu vinha para Vorkuta?

— Cuidei disso. — De novo aquele riso sombrio, que entrava pela alma. Um tom inexplicável, antigo como o mundo e assustador. — A administração é uma cabeça com mil cérebros, cada um pensando por si. Mandei vir de Moscou as listas dos novos condenados e deportados, e... o seu nome estava ali. Mas junto dele se lia: Ust-bereneck. ”Camaradas, que vai o Dr. Pjetkin fazer nesse buraco de Ust-bereneck?” — perguntei à administração em Moscou. ”Eu preciso dele aqui em Vorkuta!” Foi assim, bem simples, separar você da sua fêmea loura definitivamente... Entre Vorkuta e Irkutsk ficam o sol, a lua e as estrelas.

— Que engano, Marianka Jefimovna! — Pjetkin segurou as mãos dela, que deslizavam sob a camisa até os seus quadris. — Dunia está aqui em Vorkuta. Viemos no mesmo transporte.

As mãos dela se afastaram num repelão, cravaranvse nos ombros dele, e o viraram num arranco. Que olhos, pensou Pjetkin.

Que brilho louco de ódio. Ela é um milagre de destruição, — Mentira! — disse ela com o seu estado de espirito perigosamente aveludado.

— Dunia é a segunda médica-chefe da seção interna no Campo das mulheres.

— Esses idiotas! — Num arranco súbito ela o puxou para si, Pjetkin perdeu o equilíbrio, cambaleou contra ela, cujos braços o agarravam, apertando-o como tenazes firmes, e antes que ele pudesse desviar a cabeça, beijou-o na boca. Admirado, ele ouviu a voz de Marianka Jefimovna tão calma como se até ali estivesse apenas fazendo críticas inócuas. — Devia-se poder botar cabeças novas nas seções de planejamento. Mas que adianta isso, Igorenka? Você nunca mais verá a sua cabritinha loira. Nunca mais! O Campo das mulheres está tão distante para você quanto a lua.

Pjetkin sorriu, amargo.

— Uma comparação fatal, Marianka Jefimovna, quando estamos mesmo a ponto de conquistar a lua...

Depressa se comprovou que Marianka Jefimovna era mais temida no Campo Central do que a cólera e o tifo juntos. Embora ela nada fizesse senão escrever listas e relatórios, e aqui e ali algum exame, atribuíam-lhe tudo quanto os seus vinte e quatro médicos faziam.

Na verdade nada mudara desde a chegada da Dussova. A morte era companheira de cama nas barracas desde o início daquele Campo — talvez o maior da União Soviética, e certamente o mais famoso. Até ali houvera um velho médico-chefe, sempre bêbedo, que nunca se levava a mal porque era um idiota. Mas agora uma mulher era responsável por toda a medicina, uma bela, selvagem e perigosa mulher, pela qual a gente podia se deixar chicotear apenas pelo prémio de poder agarrar-lhe uma vez os seios. Uma mulher a quem se admirava quando passava em suas longas botas macias e calças justas pelo Campo, mas cuspindo às suas costas como se com isso se quisesse esconjurar o diabo.

Marianka mostrara o quarto a Pjetkin. Não ficava como os dos demais prisioneiros médicos, que eram dezenove, numa barraca ao lado do hospital, mas no próprio hospital, no mesmo corredor que o quarto dela.

Que luta vai ser isso aqui, pensou Pjetkin quando a Dussova lhe mostrou o quarto.

Uma cama branca, um luxo no inferno. Pjetkin teve um sorriso contrafeito.

— Nem o comandante tem um quarto melhor — disse ela, orgulhosa, e sentou-se na beira da cama. Atirou o saco de viagem dele no canto. — Talvez o perdoem depois de seis anos... então você será um sujeito forte, deixe isso comigo. Vou conservá-lo para a Medicina Socialista.

— Você é poderosa, Marianka Jefimovna. — Pjetkin foi até o espelho e assustou-se diante da própria imagem. Um fantasma o encarava... faces encovadas, barba revolta, olhos fundos e vermelhos, boca rodeada de rugas... a máscara da humilhação — Mas você está lutando contra um destino. Quem pode vencer assim? Eu só quero a minha volta para a Alemanha.

— Sem Dunia?

— Com Dunia!

— Deviam cortar-lhe a cabeça, Igor!

Marianka levantou-se de um salto, moveu-se em direção à porta. Baixou a maçaneta, abriu e fechou a porta depressa.

— Ela não tem chave, ficará sempre aberta.

— Pode-se colocar o armário na frente.

— Então vou mandar surrar você até ficar inconsciente e vou beijar suas feridas até que elas sarem... — Fitaram-se, ambos subitamente mudos pela tragédia que tinham de representar, querendo ou não.

— Meu lobinho, eu o amo... — disse Marianka, com voz abafada e pesada.

Mais tarde, a Dussova mostrou o Campo ao novo médico Dr. Pjetkin como se ele não fosse um prisioneiro e sim um funcionário importante que viesse fazer uma inspeção. Ele cumprimentou os colegas do hospital, da policlínica, da seção de acidentes, da seção fechada para doenças infecciosas e a seção de quarentena, e muitos olhares invejosos o seguiram.

Assim anoiteceu.

A primeira noite de Pjetkin em Vorkuta.

Ficou longo tempo acordado na cama. Vestido, orelhas à escuta, pronto a saltar, esperou por Marianka Jefimovna. Estava preparado para a luta. Como se espanta o demónio pronunciando o nome da Mãe de Deus, ele estava disposto a usar contra Marianka o nome de Dunia, como uma clava. Isso seria um golpe mais fatal do que com o punho.

Mas a Dussova não veio.

Estava no seu quarto, parada diante do espelho, acariciando os seios e balbuciando o nome de Igorenka. Dos olhos semicerrados, com a cabeça jogada para trás, observava-se, e quando sua boca se abriu soltando um gemido abafado, cuspiu na imagem do espelho e deixou-se cair para trás, sobre a cama.

Esperar, pensou ela, respirando pesadamente. Dar tempo ao tempo. A maior virtude de um russo também há de vencer Pjetkin: saber esperar.

 

A chegada de Dunia ao Campo das mulheres realizou-se de maneira menos dramática mas não menos interessante.

Depois de perder Igor de vista, ela ficou à janela do vagãohospital, fitando o longo conjunto do acampamento feminino.

Ficava espantosamente próximo do masculino... mas tão distante como uma estrela no céu. O sinal mais marcante era formado pelas duas altas chaminés da lavanderia... uma aldeazinha por si mesma, com casinhas de pedra em torno da grande construção da lavanderia. Uma fábrica de limpeza. Fora do Campo propriamente dito, mas dentro dos seus domínios, os dois blocos de pedra do hospital, seguidos das moradias dos guardas e dos oficiais. Na pálida luz do inverno e debaixo do céu plúmbeo, a visão era desoladora.

Os vagões chegaram à rampa. As portas de correr foram afastadas, numa onda de nuvens brancas de respiração congelada, apareceram no ar gélido as cabeças das mulheres, enroladas em lenços.

Primeiro olhar à estação final da vida. Último olhar que conservava um restinho de esperança, que se apagou definitivamente sob as ordens, berradas:

— Desembarcar! Sentem-se no chão! Mãos na nuca! Quietas! Todas sentadas diante dos seus vagões!

As mulheres acocoraram-se na neve revolvida, puxaram os lenços sobre o rosto, e baixaram a cabeça.

Mãe do Céu, deixe-nos sobreviver. Não nos deixe morrer aqui nesse deserto de neve, gelo e céu sombrio.

Dunia tinha muito que fazer nesses minutos. Cuidou do transporte dos enfermos, que durante a viagem não haviam recebido qualquer tratamento além de algumas palavras animadoras.

Com o último carro de doentes também Dunia entrou no Campo. O motorista não perguntou aonde ela queria ir... deixou-a parada na entrada do hospital.

Dunia esperou. Ninguém se importou com ela. Em algum lugar na administração deviam estar sendo entregues os seus papéis de transporte, um funcionário do KGB colocaria seu nome numa lista, e talvez já a viesse procurar.

As outras mulheres entraram no regulamento de qualquer recepção num campo de prisioneiros: chamada dos nomes, banho quente e despiolhamento, recebimento do uniforme do Campo, corte de cabelo, fila, espera, marcha para as barracas, saudação pelas mais antigas: ”Ah! Ar fresco do grande mundo! Venham cá, vocês ainda cheiram a homem...?”, arrumação da cama, distribuição dos últimos bens, pois no inferno não se precisa mais de posses privadas, algumas palavras, choro... E depois, naquele terrível primeiro dia, sempre a espera estupidificada: Que farão comigo? Onde vão me colocar? Construção de estradas? Destacamento de derrubada de árvores? Pedreira? Lavanderia, costura, cozinha? Quantas vivem aqui? Alguns milhares de mulheres. Se elas vivem, por que eu não sobreviverei também? Deixemos passar a primeira noite, a noite que encobrirá prantos silenciosos... Meu Deus, ainda não perdi a minha alma...

Dunia perguntou o caminho para o gabinete do médico-chefe.

Perguntou a algumas enfermeiras, entre elas três prisioneiras, falou com duas médicas com toucas brancas na cabeça, como se estivessem numa clínica de universidade, e chegou a um longo corredor, com bancos de madeira dos dois lados, nos quais, enfileiradas como galinhas, mas mais descoloridas e mais silenciosas, sentavam-se as mulheres, lado a lado, vestidas em túnicas cinzentas parecidas com sacos. Umas gemiam baixo e faziam caretas terríveis de dor, outras ficavam ali sentadas, imóveis, paralisadas de sofrimento, pálidas e escaveiradas, olhos molhados, consumidas, cheias de feridas, cheirando a pus... um batalhão de mulheres apodrecendo em vida.

A policlínica. Tratamento de ambulatório. Ou exame para tratamento nas diversas seções. Em quatro salas examinavam-se e tratavam-se as mulheres.

Dunia ia perguntando o caminho. Um jovem médico com um nariz de batata foi bastante cortês e a levou até a porta do chefe. Usava um guarda-pó manchado de sangue, e a cabeça estava rapada, o que lhe dava a aparência de um enorme filhote de pássaro.

— Você ainda tem ideais médicos? — perguntou antes “que alcançassem a sala do chefe.

Dunia sacudiu a cabeça com veemência.

— Sim.

— Sempre os mesmos problemas com os novos. Camarada... se você entrar naquela sala, desista de tudo aquilo em que até agora acreditou, esperou e pensou. Isso aqui não é mais um mundo humano...

Anatol Stepanovitch Dobronin, o médico-chefe do Campo de mulheres de Vorkuta, e ao mesmo tempo comissário do governo para assuntos de saúde dos campos de prisioneiros do Norte, fumava um papyross, tomava chá verde e perfumado, lia um livro e parecia esforçar-se para matar o tempo, quando Dunia entrou no quarto. Não houvera resposta às batidas, e Dunia simplesmente abrira a porta depois de uma breve hesitação.

Dobronin enrugou a testa. Olhou Dunia como um visitante de bordel que já procura avaliar as vantagens da aquisição através do vestido, depôs o cigarro num cinzeiro de cobre e fechou o livro com estrondo.

— Que foi? — perguntou.

Dobronin tinha uma voz aguda, e sofria muito por isso, pois orgulhava-se da sua masculinidade evidente, só a voz ficara de algum modo atrasada e parecia feminina.

— Quem é você? Quem é que a mandou aqui, afinal? Entra aqui como se fosse uma paciente particular de alguma família distinta de Leningrado. A madaminha quer tirar o casaco de peles? Mas quem é você?

— Sou a Doutora Dunia Dimitrovna Sadojeva — disse ela. — E se me perguntar o que quero aqui, camarada médico-chefe, nem eu mesma sei. Acho que o senhor pode me informar a respeito. Não recebi nenhuma resposta quando perguntei a Moscou.

— Ah, ela perguntou a Moscou! Realmente! E nada de resposta? Pobre passarinho... Decerto esqueceu de mandar o telegrama com resposta paga. — Dobronin riu com sua voz aguda, recostou-se e esticou as pernas debaixo da mesa. — Dra. Sadojeva. Você me foi recomendada como uma lutadora implacável. Agora provou-se que também é uma cómica.

Dobronin meteu as mãos nos bolsos do seu guarda-pó branco.

— É verdade que aleijou um colega, o Dr. Tchepka?

— Ele queria me levar para a cama.

— Rapaz de bom gosto. E por isso acabou com uma vida humana? Mas quanto valoriza o seu sexo?

— Ele é sagrado para mim, camarada. — Ela o disse com 1 orgulho que primeiro Dobronin silenciou. Olhou-a atónito, tirou uma fumaça do seu papyross, sentou-se ereto, apontou uma cadeira diante da sua mesa e pôs as mãos sobre o livro. Dunia sentou-se.

— Temos nove médicos no Campo das mulheres — disse Dobronin lentamente. — Comigo são dez. Quanto tempo levará até que você seja acusada por dez tentativas de assassinato?

Dunia torceu os lábios. A conversa não lhe agradava. Pronta para a luta, ela encolheu o queixo.

— Que pergunta! — respondeu. — Se vierem um atrás do outro, a luta levará o tempo de dez golpes. Era isso que queria ouvir, camarada?

Dobronin olhou o teto. Uma andorinha corajosa piando aí, pensou ele. Mas já hei de lhe arrancar as penas. É quase um crime chegar tão bonita a um campo de prisioneiros.

— Você também tem colegas no Campo — disse ele, evitando fitar Dunia. — Também transferidas por punição, como você. Fazemos um joguinho divertido com elas. Todas as noites jogamos três bilhetes com seus nomes num chapéu, e sorteamos três homens que vão tirar esses bilhetes. Admita que é uma distribuição justa, e um jogo divertido ainda por cima. Nunca se jogou tanto com dados. Você ainda não conhece nada disso, Dra. Sadojeva.

— São essas as únicas instruções que tenho a receber do senhor, camarada médico-chefe? — perguntou Dunia retraída. Seu rosto estava altivo. A neve derretida pingava dos seus cabelos louros e corria-lhe sobre os ombros.

Dobronin deu um suspiro.

— Você vai trabalhar na seleção — disse sorrindo maldosamente. — Sua colega Anna Stepanovna lhe mostrará como se faz isso. Cota maior de doentes, três por cento. Se houver mais doentes que isso, a culpa é dos médicos. Estamos entendidos, Dunia Dimitrovna? Eu já vi aqui um membro da Academia de Ciências carregando pedras para a construção de estradas... isso significa alguma coisa para você? Não temos medo de nomes nem de relações... em Vorkuta são todos iguais. Todos usamos a mesma camisa. Saia, apresente-se a Anna Stepanovna, e diga na administração que já se apresentou aqui a mim. Vão lhe entregar suas roupas, levá-la aos banhos... bem, você conhece tudo.

— Conheço, camarada médico-chefe. — Dunia ergueu-se, apertou sua trouxa debaixo do braço e deixou a sala sem cumprimentar. Dobronin acompanhou-a com o olhar. Era um conhecedor de formas femininas e apertou o nariz como se aspirasse o perfume do corpo de Dunia.

Uma bela pasta de documentos veio com ela, pensou, um relatório repleto de singularidades. Ama um médico russo, que na verdade é alemão. Mal dá para entender que exista tanta confusão. Uma mulher misteriosa com o corpo de uma ninfa. No cérebro, infelizmente, a nuvem azul das fantasias.

Mas Vorkuta vai curá-la.

Até agora, Vorkuta curou todos os idiotas.

O quarto que Anna Stepanovna deu a Dunia, depois de uma saudação efusiva, dava para a lavanderia.

Anna Stepanovna era uma mocinha rija de Kiev, especialista em urologia, médica em início de carreira, mas já alquebrada pelo sistema.

— A gente escorrega ligeiro para baixo — disse ela quando Dunia tinha tomado um chuveiro quente no banheiro dos médicos, lavando, camada por camada, a sujeira daquela semana de viagem de trem. Uma prisioneira cortou-lhe os cabelos compridos demais, encurtando-os um pouco; outra, uma mulher pesadona com imensos seios que lhe transbordavam do uniforme cinzento, esfregou no corpo de Dunia um óleo desinfetante de cheiro ruim.

— Participei de uma única demonstração de protesto, de estudante, marchei debaixo de uma faixa berrando ”Mais liberdade para a Ciência”, idiota que fui... É. agora tenho liberdade. Dez anos pelo crime de corrupção ideológica. Já estou no segundo ano. Mas vou ser perdoada, isso é certo. Vou para a cama com qualquer sujeito que seja importante. Que significa aqui a palavra honra? Quando sair daqui, vou lavar toda a sujeira, sentar-me horas a fio num banho quente e limpar tudo aquilo que os deixa tão loucos aqui, como galos excitados.

Mais tarde, Dunia ficou na janela do seu quartinho. Do outro lado ficava a lavanderia. Ali, os grandes fogões jamais se apagavam, a fumaça subia sem interrupção das duas altas chaminés, os destacamentos de lavadoras e passadoras marchavam em três levas pelo grande portão. A sujeira de milhares de prisioneiros era fervida aqui. A sujeira e o suor, as lágrimas e o sangue.

Anna Stepanovna dera esse quarto a Dunia de propósito. A vista sobre essa fábrica de limpeza, na qual como por ironia os semimortos cuidavam da higiene dos vivos, roía os nervos. Além disso, naquele quarto não havia cortinas nem venezianas, e a fechadura da janela tinha defeito. Podia ser facilmente aberto por fora... aquilo tinha valor quando o quarto ficava fechado por dentro.

— Até amanhã cedo você está livre — disse Anna Stepanovna. — À tardinha pode vir me ver. Vamos tomar um gole de boas-vindas. As outras colegas também são simpáticas. O que foi que Dobronin lhe disse?

— Ele é um porco — disse Dunia com dureza.

Anna Stepanovna riu alto. Estava sentada na cama de Dunia, e quando se jogou para trás ao rir, Dunia observou que a moça não tinha roupas sob o vestido. A nudez das pernas continuava no corpo.

— Todos nós somos porcos — disse a Stepanovna encolhendo as pernas. — Esta é a nova forma de sobrevivência. Você é cega, ainda não percebeu isso? Foi transferida para Vorkuta para se tornar médica-chefe. Isso está escrito nos documentos. Mas o que é que Dobronin vai fazer com você? Onde vai meter você, aquele grande Dobronin, rei de Vorkuta? Na seleção. Na pior de todas as funções, na mais baixa das iniqüidades, onde você terá de esquecer que é médica. Passará a ser um açougueiro que em lugar de um machado maneja um estetoscópio. Mas isso mudará quando você se tiver deitado na cama dele.

— Pois ele que espere até o Juízo Final.

— O Juízo Final é sempre o dia seguinte, irmãzinha. — Anna Stepanovna esfregou as suas pernas robustas de ucraniana. — Não seja idiota, Dunia. Você pode conquistar a vida com seu belo corpo...

O segundo grupo de lavadeiras havia entrado na lavanderia. Miseráveis figuras com casacos de algodão e calças acolchoadas, grossos sapatos de palha trançada nos pés. No lugar de mudar de roupa elas se despiram exaustas, embora tivessem dormido oito horas, corpos femininos sem idade, ossudos, peles amareladas e seios caídos.

Enfiaram os uniformes brancos, pegaram os sapatos de madeira nas prateleiras, amarraram os lenços nos cabelos muito curtos. Um uniforme,de limpeza sobre corpos que se desfaziam.

— Que é isso? — perguntou Marfa, uma mulher ainda bastante gorda. Amarrou o cinto do uniforme debaixo dos seios parecidos com sacos, e com a mão esquerda coçou o traseiro. — Quer que lhe dêem uma surra?

— Não posso mais, Marfenka. Não posso mais. — A mulher, chamada Galina Pavlovna Korolenka, ficou sentada no longo banco de madeira e não se mexeu. Era uma mulherzinha delicada com grandes olhos azuis., — Que quer dizer não posso mais? — Marfa, robusta, uma mulher da Rússia Branca, que tinham tirado da cozinha porque num momento em que não a vigiavam comera um quilo de batatas e uma enorme tigela de kascha, e nem ao menos caíra ao chão com cãibras de estômago, bateu os sapatos de madeira um no outro. — Faça de conta que pode. Que diabo, mude a roupa, eles vão dizer que é sabotagem se você ficar por aqui sentada revirando os olhos. Acha que isso vai ajudar? — Ela puxou Galina, tirou-lhe a roupa como se fosse uma criança, enfiou-lhe o uniforme e amarrou-lhe o lenço nos cabelos.

— Quantos filhos você tem? — perguntou Marfa.

— Três.

— Com esses peitinhos? Devem ter passado fome, os teus vermezinhos.

— Naquele tempo meus seios eram firmes e cheios. — Galina amarrou o lenço mais firme. Seus movimentos tinham algo de flutuante, como se já não estivesse entre os vivos. — Você pode entender isso? Eu não fiz nada além de dizer em voz alta: O planejamento do trabalho é uma desgraça! E é verdade. Todos só fazem aquilo que lhes foi determinado. Mas nada tem verdadeiro entusiasmo... quando é hora de arar, os tratores não vêm da seção das máquinas. Ou a semeadura... uma vergonha. A distribuição central das sementes nunca funciona direito, todos brigam por cada grão, e como não se entendem, fecha-se o depósito. Fica simplesmente fechado. Nada de sementes, camaradas, até que chegue a contagem exata. Como se os camaradas do kolkhose tivessem panelas enferrujadas em lugar das cabeças.

— E você disse isso?

— Bem alto. Na reunião do Partido.

— Tão delicada e tão bonita, e uma cabeça tão doida. — Marfa empurrou Calina na fila das mulheres. Das salas de lavagem voltavam as que seriam substituídas... ensopadas, inchadas e vermelhas dos vapores da lixívia, suadas, corpos intumescidos de calor, detritos como os das caldeiras ferventes. Caíram nos bancos de madeira, sem dizer palavra, aniquiladas pelo sabão e pelo vapor, deixaram os uniformes escorregar do corpo, e, nuas, respiraram o ar fresco.

A nova leva entrou pelo salão, correndo ao encontro de uma parede ardente, atravessando-a, e distribuindo-se pelos lugares de trabalho. Carrinhos de rodas com montanhas de roupa sacolejavam em trilhos estreitos, do lugar da coleta até às caldeiras. Em imensos recipientes fervia a lixívia misturada e despejada de um aparelho central. Atrás de paredes de vidro, separadas como inferno e céu, o destacamento de passadeiras trabalhava em longas ttesas brancas, com limpos uniformes brancos.

Eram mulheres escolhidas, como em quase todos os campos, criminosas. Vendo suas bocas, adivinhava-se que estavam cantando... riam, contavam-se anedotas e sacudiam os ferros de passar ao ritmo da música, sobre camisas e lençóis.

Também na lavanderia ressoava música, de três grandes alto-falantes. A música, alguém descobrira isso, estimula o desejo de trabalhar. Da manhã à noite a música era despejada sobre aquelas figuras famintas, como um dilúvio... a gente se acostumava, e só erguia a cabeça quando os alto-falantes subitamente silenciavam. O silêncio era então opressivo, estranho, perigoso, sepulcral. Enquanto se ouvia música, estava-se vivo... e aprendia-se a temer o silêncio.

Galina Pavlovna arrastou os pés até a sua cadeira. A porta estava aberta, um carro cheio de roupa suja ao lado, a caldeira seguinte já estava cheia, depois chegava a longa tina da primeira enxaguada, a segunda, o carro para a roupa lavada, que era transportada para a secadora... uma estrada de agonia. Seis fogões, goelas famintas e quentes, que devoravam tudo, mesmo as pessoas que enfiavam a roupa nelas.

Oito horas, pensou Galina Pavlovna. Oito horas desse vapor de sabão. Até o sangue se transforma em lixívia. Ela encheu a caldeira vazia, virou a tranca, abriu a torneira, e fitou a lixívia fervente que corria leitosa do misturador central.

Vamos, Galina, vamos. A caldeira 3 está pronta. Tire a roupa... isso, pegue o porrete de madeira, puxe a roupa das nuvens de vapor ardente, leve-a à tina de enxaguar... sempre para lá e para cá... caldeira — tina, caldeira — tina... uma camisa pesa tanto quanto um saco de farinha, um lençol pesa toneladas... e se torna mais pesado a cada trajeto, caldeira... tina... caldeira... tina... Galina, caldeira 3 esperando... caldeira 2 também... Galina Pavlovna... sua preguiçosa, sacudindo um porrete de madeira com uma ridícula camisa dependurada, que você carrega por aí como a bandeira do Partido ao vento do outono... a caldeira 4 estará logo pronta... Galina pegue das pernas... trate de ganhar sua colherada de mingau...

Galina Pavlovna deixou o porrete cair e encostou-se contra a tina de enxaguar. Apertou o coração com as duas mãos, tentou respirar. Depois escorregou pela parede da tina, e sentou-se no chão molhado e quente.

Estranhamente o ar ali era mais fresco... um vento frio saía das portas sempre abrindo e fechando que levavam para o quarto onde se escolhia a roupa suja. Galina fechou os olhos.

Eles não prenderam meu marido, pensou. Mas ele perdeu seu emprego de primeiro-tratorista. Como será agora o seu rosto? E as crianças? Michail deve estar grande e forte, e Stepan certamente permaneceu frágil. Ele queria ser professor. É Assia, a minha pequena Assia de olhos grandes, naquela ocasião ela mal começava a andar e cambaleava atrás de mim pela mão de Stepan, quando os soldados vieram me buscar... Naquela vez... há cinco anos...

Uma voz no alto-falante. Retumbante como um céu estourando. A camarada Sachonova, a diretora da lavanderia. Galina ergueu a cabeça.

— O número 3169 está descansando. Simplesmente sentada tirando uma soneca. Sua punição é de duas horas extras.

Galina ficou sentada. Só quando viu a figura maciça de Marfa aparecer no nevoeiro quente, entendeu o que se passara.

 

3169... isso era Galina Pavlovna Korolenka. Era ela. Duas horas de castigo. Duas horas mais naquele inferno fervente, sacolejante, impiedoso, que cuspia calor. Duas horas mais no vapor de lixívia, amolecida, inchada... duas horas mais de um lado para outro...

Marfa ainda não alcançara Galina quando esta de repente se atirou. Com um grito agudo que sumiu na música reiniciada, Galina arrancou o uniforme do corpo, saltou, nua, pelo vapor, e jogou-se de braços abertos numa tina de soda quente. Ali se deixavam de molho os macacões manchados de óleo dos maquinistas.

— Socorro! — gritou Marfa. Escorregou no chão liso, jogou os braços para o ar e caiu. — Socorro! Ela saltou na tina! — E como ninguém a escutasse, começou a uivar como uma sirena, arrastando-se de joelhos.

Foi uma visão terrível, quando tiraram Galina da soda cáustica. Deitaram-na no chão, e ficaram por ali paradas, sem saber o que fazer. Alguém telefonou ao hospital avisando de um acidente. E ficaram esperando...

Dunia correu pela praça, entre lavanderia e hospital, sob o vento gélido. Jogara sobre o vestido uma quente capa de pele de lobo, e na cabeça enfiara um gorro forrado de pele. O alarma assustara Dunia e Ànna Stepanovna quando elas mesmo se haviam sentado para uma xícara de chá.

— A lavanderia — disse a Stepanovna. — Queimadura. Sempre esses acidentes. Vá lá dar uma olhada. É o lugar certo para um começo, e aí você vai ver onde veio parar, queridinha.

Galina Pavlovna gritava e retorcia-se no chão de pedra quando Dunia se precipitou lavanderia adentro. Depois, começou a rezar alto, e só interrompia a sua ladainha para gritar alto os nomes do marido e dos filhos.

— Avaducha — gritava. — Adeus, adeus! Stepan, meu filhinho, oh... oh... estou queimando, estou queimando... Michail, meu amorzinho, eu o beijo, e abraço... Por que não me matam? Por que ninguém me mata? Assia, meu anjo, minha gatinha, você não tem mais mãe...

Dunia abriu caminho com os cotovelos pelo círculo de mulheres e ajoelhou-se ao lado de Galina. O corpo nu estava destruído, a pele soltava-se da carne.

— Cirurgia, imediatamente! — gritou Dunia segurando a cabeça de Galina que batia de um lado para o outro. — Por que estão aí paradas feito ovelhas, olhando? Uma tábua... tragam uma tábua... levem-na daqui... ligeiro... cubram-na com panos molhados...

Ela arrancou a capa e parou no meio desse gesto quando viu que ninguém se mexia. Uma mulher grande e magra, num uniforme branco, entrou no círculo de mulheres paradas. A camarada Sachonova. Todas a temiam. Em vez do coração tinha um pedaço de sabão no peito.

— Quem é você? — perguntou a Sachonova.

— A nova médica-chefe. — Dunia deixou sua capa de peles cair ao lado de Galina, que agora apenas gemia. — Trate do transporte dessa mulher, imediatamente.

— Não adianta mais. Quem cai nessa soda fica toda cozida.

— Mas ela ainda vive!

— E pode morrer nesse chão de pedra. — A voz da Sachonova estava fria e áspera. — Tivemos trinta e nove casos de queimaduras assim, e nenhuma sobreviveu.

— Porque vocês as deixaram morrer! — gritou Dunia. — Isso é um ser humano, não um pedaço de sabão! Onde está a tábua? — Olhou em volta. Seus olhos flamejavam. A massa compacta de mulheres vestidas de branco, suadas e mudas, se desfez. Só a gorda Marfa ficou, correu à tina de enxaguar, trouxe dois grandes lençóis frios e molhados, e jogou-os sobre o corpo queimado. Quatro mulheres saíram do nevoeiro carregando uma comprida tábua de passar roupa.

— Você vai escrever um relatório, camarada — disse Dunia a Vera Sachonova. — Um relatório exato sobre o acidente.

— Eu não vi nada. Nada.

— Isso é mau. — Dunia ajudou a colocar o corpo trémulo na tábua, enrolou-o nos lençóis, e cobriu-o com a capa de peles. — Para que está aqui, camarada? Para dormir? Ou tem os olhos fracos? Vou chamar a atenção do médico oculista para esse fato.

Ela se voltou e correu à frente da tábua de passar. Lá fora o vento gelado a assaltou, o frio lhe entrou até os ossos. Dunia abraçou o próprio corpo e correu até a seção de cirurgia.

As quatro mulheres com a tábua coberta pelo manto de peles corriam sob o vento. Dunia lhes acenou da porta da cirurgia

— Mais depressa, mais depressa...

No grande portão da lavanderia estava parada Vera Sachonova, atrás dela o nevoeiro quente, diante dela o vento gelado, e observava a corrida com a morte como se fosse um acontecimento esportivo.

O Dr. Andron Fiodorovitch Kutjukov, um médico jovem de Perm, enviado para Vorkuta por um destino inescrutável, para ali fazer a sua prática médica, recebeu Dunia com o desamparo de um bebê. Viu-se diante de uma mocinha azul de frio, seguida por quatro mulheres em uniformes brancos da lavanderia, carregando uma tábua coberta. Só pelo pequeno volume ele adivinhou que debaixo daquelas peles havia um ser humano sobre a tábua.

— Acidente... — disse, hesitando.

— Sim, naturalmente — Dunia ergueu os braços. — Por que me olha desse jeito? Quem é o senhor?

— Andron Fiodorovitch Kutjukov, médico em serviço.

— Pois então depressa, depressa! Preciso de ataduras para queimadura, um soro com glicose, oxigénio com máscara, e pele, pele fresca. Avise o comandante, para que dê o alarma no Campo. Quem der voluntariamente da sua pele, receberá por uma semana uma ração extra de comida.

O Dr. Kutjukov nem se mexeu. Olhava Dunia fixamente, depois olhou para a tábua de passar.

— Mais nada? — perguntou.

— Por enquanto não.

— Não quer que eu também mande vir o bom Deus? Dunia, que já dera alguns passos em direção da sala de operações, virou-se. O rosto do Dr. Kutjukov estava tão vazio que qualquer coração compassivo tinha de ter pena dele.

— Acaso somos médicos? — perguntou ela em voz alta. Kutjukov ergueu os ombros, baixou o olhar e saiu. Chamou o Dr. Dobronin, do telefone do corredor. Quando ouviu a voz dele, pôs-se em posição de sentido como no pátio da caserna.

— Camarada médico-chefe, a Doutora Sadojevna está na OP I — disse. — Com um acidente. Ela quer soro, máscara com oxigénio, transplante de pele. Não, camarada, não estou bêbado. Ela quer que eu avise o comandante de que os voluntários...

— Vá para o seu quarto, Andron Fiodorovitch — disse Dobronin com benevolência quase paternal. — Não se admire. Eu mesmo vou dar uma olhada nesse caso.

E assim foi. Dobronin apareceu na OP I quando Dunia afastava as peles soltas e cobria o restante da pele queimada com pó refrescante. Galina estava num desmaio profundo, e isso dispensava anestesia.

— Bravo — disse Dobronin a certa distância da mesa de operações. — Bravo.

— Foi Deus — Dunia fez-lhe um aceno. — Onde está o oxigênio?

— No ar, camarada.

— O senhor não tem- aparelhagem respiratória?

— Nossos doentes não estão na primeira classe, e sim na classe da sepultura. Ainda não temos uma clínica universitária em Vorkuta, nem teremos nos próximos trezentos anos.

— Mas como vou salvar essa mulher, sem oxigênio?

— E pergunta a mim? — Dobromn meteu as mãos nos bolsos da calça. — Pois eu não disse há pouco: bravo, bravo? Você acredita mesmo que poderia fazer aqui um transplante de pele?

— Sim.

— Dunia Dimitrovna, onde você vive agora não existe mais nada. Dignidade humana, temor a Deus, sensatez e lógica. Deixe essa pobre mulher queimada morrer... e vai-lhe fazer com isso um enorme favor. Por que salvá-la? Para que continue vivendo, toda enrugada e deformada, apenas para respirar e amaldiçoar a vida?

Dunia não respondeu. Continuou cortando grandes pedaços de pele, fazendo curativos, colocando pó, deu uma injeção para o coração, e calculou que porcentagem de pele estava destruída, e se havia possibilidade de morte por sufocação.

A verdade era deprimente.

Dobronin acompanhou Dunia até o quarto no qual deitaram Galina Pavlovna numa cama branca. Um quarto pequeno, superaquecido, com duas camas. Na outra estava deitada uma mulher velha, amarela, boca aberta, gemendo em arrancos.

— Câncer no peito — disse Dobronin. — Amputação da mama. Veja, fazemos isso também. Não ficamos só bebendo e fornicando. Não capitulamos. Mas os limites são estreitos, Dunia Dimitrovna. E você sempre quer passar dos limites. É preciso que aprenda isso: viver com os fatos.

Galina Pavlovna Korolenka morreu à tardinha. Dunia, sentada ao seu lado, segurando-lhe a mão, só o percebeu quando os dedos amoleceram. Tão silenciosa, imperceptível, humilde foi essa morte.

Dobronin, a caminho do quarto de Anna Stepanovna, onde devia começar logo a festinha pela chegada de Dunia, olhou para dentro do quarto no momento em que Dunia puxava o lençol sobre o magro corpo, já rígido.

— Venha, Duniuschka — exclamou alegremente. — Vamos beber um copinho pela sua chegada a Vorkuta.

— Agora?

— É o costume.

— E a morta?

— Temos encarregados para isso. Será que também nos devemos incomodar com os corpos vazios? Dunia, por Deus, você tem lágrimas nos olhos. Chora assim por todos os seus pacientes?

— Estou envergonhada — Dunia enxugou as lágrimas com um gesto brusco, veemente. — Em Irkutsk, Galina Pavlovna teria sobrevivido.

— Em Irkutsk. Mas isso fica em outra estrela.

No quarto da Stepanovna já estavam sentadas duas outras médicas e cinco médicos, fumando cigarros feitos por eles próprios, tomando cerveja e vodca, com as pernas sobre a mesa. Kutjukov trouxera uma balalaica.

— Viva a beleza — exclamou Nikolai Michailovitch Wyntok, um sujeito grande, com cabelos escuros e hirsutos, e um forte nariz aquilino. Tinha uma voz de baixo, e quando ria as vidraças tilintavam. Dizia-se que tivera a felicidade de ser examinado por professoras. O único ponto que sabia bem sobre Anatomia ficava debaixo das saias. Assim teria examinado as professoras, e venceu os exames de Medicina. Era o diretor da seção de seleção em Vorkuta, um homem temido, pois o seu ”apto para o trabalho!”” significava tormento desde o nascer do sol até o anoitecer. Era muito querido pelas mulheres, pelas jovens bem entendido. A que pudesse balançar melhor os quadris era chamada para exame no hospital. Lá ficava alguns dias, era alimentada, montada por Wyntok como uma égua selvagem, e voltava ao Campo com a esperança de ter engravidado e com isso receber trabalho mais leve. Geralmente tais esperanças se desmoronavam... mas depois de algum tempo apresentaram-se realmente três grávidas dele, e salvaram a sua reputação de homem integral.

Assim era Nikolai Michailovitch. Ergueu-se de um salto, abriu os braços, e fez menção de abraçar Dunia.

— Que beleza! — gritou e o jovem e envergonhado Kutjukov arranhou algumas dissonâncias ferozes na sua balalaica. — Amigos, os camaradas de Moscou têm afinal um coração para conosco, que vegetamos aqui no reto do mundo: mandaram-nos um pedacinho de beleza! — Não lhe dê atenção, Dunia Dimitrovna — disse Dobronin metendo-se entre ela e Wyntok. — Ele tem de fazer jus à sua fama de machão, é tudo — ergueu a mão direita como se cuidasse do trânsito numa esquina, e riu juvenilmente. — Saudemos nossa nova colega. Ergam os copos! — E virando-se para Dunia: — Minha cara, é indiferente onde vivemos, desde que vivamos! Isto é uma frase simples, mas contém toda a filosofia da nossa maldita existência. Deixe-me abraçá-la.

Puxou a atónita Dunia, beijou-a nas duas faces, e passou-a para o seguinte. Primeiro as médicas beijaram, depois Kutjukov ficou à sua frente, fez uma pequena mesura como um adolescente encabulado numa aula de dança, agarrou-lhe os ombros quase timidamente, e soprou sua saudação nas faces dela. O grande Wyntok agiu de modo bem diverso. Ele investiu com a brutalidade masculina que estranhamente encanta as mulheres — quem pode ver o que se passa dentro delas? — e alcança mais sucesso do que a delicadeza, puxou Dunia ao seu encontro, pôs a mão esquerda sobre os seios dela, deixou a direita estalar-lhe nas nádegas. Os outros riram, mesmo Dobronin, pois todos conheciam as piadas de Wyntok.

— Você não tem educação, camarada — disse Dunia com uma frieza que teve o efeito de uma ducha fria. Depois bateu bem no meio do rosto altivo de Wyntok. Um golpe daqueles, e imediatamente brotou sangue das narinas, correndo pela boca de Wyntok. Espantado, ele deu uns passos saltitantes para trás, encolheu a cabeça e apoiou-se na parede.

— Que coisa — disse, surpreso. — Mas que coisa! Você viu isso, Dobronin? Agora ela vai me matar a mim. Fora das horas de serviço ela devia ficar algemada!

Os outros médicos sorriram constrangidos, ficaram longe de Dunia. Fizeram apenas menção de lhe dar beijos de boas-vindas, e ergueram seus copos com a vodca transparente.

— Seja bem-vinda! — exclamou Dobronin. Na sua voz havia um tom que não combinava com aquela pretensa alegria.

Mas aquela ainda se tornou uma noite alegre, até mesmo uma noite louca. Kutjukov tocou danças selvagens na balalaica, Anna Stepanovna dançou com o médico Ivan Ivanovitch Semjev, uma dança como só se vê nos cabarés mal-afamados, depois caiu com ele na sua própria cama, e, na sua embriaguez, guinchava como uma serra, erguendo a saia e puxando a calça de Semjev. O grande Wintok há muito puxava para o colo a sua colega baixinha e gorducha, que lhe limpara o sangue do nariz, e amassava os seios dela como um padeiro amassa o pão. Ela suspirava ritmicamente, revirava os olhos saltados, batia as pernas. Havia ainda uma terceira médica, um delicado tipo mongol, com os cabelos negros em duas longas tranças, com a qual Dobronin se ocupava como se recuperasse sua prática de Anatomia. Os demais médicos bebiam como baldes furados. Um depois do outro caíram, escorregando para o chão, esticando-se ali e adormecendo. A médica baixinha e robusta também caiu no sono da embriaguez... Wyntok a levou para a cama onde a Stepanovna estava deitada com Semjev, que roncava horrivelmente, atirou-a sobre as costas do inconsciente Semjev, e voltou-se para Dunia.

— Aí estão eles — disse Nikolai Michailovitch cruzando elegantemente as pernas. Contemplou Dunia com os olhos baixos. Ela estava sentada num tamborete sob a janela, olhos claros e vigilantes. Os cabelos dourados brilhavam como se fossem tecidos de seda. — É a isso que chamam vida, Dunia Dimitrovna.

— Você não, Nikolai Michailovitch?

— Eventualmente. Quando se tem escolha entre vomitar e fornicar... o que se pode escolher? — Wyntok acendeu um papyross, bebeu um gole de vodca, e apontou Dobronin, que estava deitado sobre sua mongol de tranças, com braços e pernas em volta dela.

— Um pobre-diabo, o nosso médico-chefe. Temido como um rei, o diabo, mas quando está sozinho escreve poemas, joga xadrez sozinho e uma vez por semana chora sobre o seu próprio destino. Se ele não tivesse Gõrjõ, a nossa doninha mongólica, já se teria enforcado. Você ainda vai aprender tudo isso, Dunia. Nós, russos, temos fama de ser cordatos como ovelhinhas, e ainda lambermos as mãos dos nossos matadores antes que nos apunhalem. Mas não é assim. Olhe para mim. Eu faço três seleções por dia. Determino quem trabalha, quem não trabalha. Nas minhas mãos estão desgraça e repouso. Posso mandar mil pessoas para a tempestade de neve, onde terão de construir linhas férreas, ou posso ocupá-las no serviço interno. Como me aprouver. Tenho poder. Mas o que é poder? Terá um gosto doce como vinho de bétula? Embriaga? Traz vertigens? Satisfaz como um coito espiritual? Nada disso. Estou cada manhã diante das doentes, bato nelas com os dedos e digo: ”Apta para o trabalho!” E quando elas choram, suplicam um exame, caem de joelhos, beijam minhas botas, mostram suas feridas, abrem os vestidos e me mostram seus corpos famintos... eu sigo adiante. Apta para o trabalho. As maldições me seguem como a névoa da minha respiração. Você acha que me alegro com isso? Já observou que é o medo que nos impulsiona a fazer coisas que ninguém entenderá se estiver junto de um fogão quente, achando o mundo em ordem? Você também há de sentir esse medo.

— O sistema tem de ser mudado.

— Que inteligente! Que inteligente! O sistema é bom... mas o que fizemos dele? Às vezes penso que nós, russos, somos um tipo diferente de gente. Se nos dão liberdade, tornamo-nos imediatamente anarquistas e quebramos tudo. Por isso, estão sempre nos dando pontapés, e temos ocupação bastante tendo pena de nós próprios. A grande pergunta é: como pode um russo viver decentemente? Quem há de finalmente encontrar o sistema certo?

— Wyntok pisou o cigarro com o salto da bota. Usava botas curtas, de pele de lobo, com grossas solas feitas de borracha de pneu. O sapateiro do Campo as fizera, eram as melhores botas de Vorkuta. — Dunia, esta é uma conversa para fantasistas. Sejamos realistas... vamos fazer amor.

— Wyntok... — disse Dunia em tom de aviso. — O seu nariz...

— Eu também não gosto dele. — Teve um riso áspero e ergueu-se. Dunia também se levantou cerrando os punhos.

— Você devia sair agora, Wyntok — disse ela. Ele riu.

— Parece que acabei de chegar. — Deu dois passos em direção a ela, que ergueu os ombros e agarrou o tamborete atrás de si.

— Deixe disso! — disse uma voz dura. — Nikolai Michailovitch... tenho uma faca na mão, e suas costas estão bem diante de mim.

Wyntok imobilizou-se. Ficou ali rígido, com os dedos encurvados.

— Kutjukov... — Wyntok fungou como um touro puxado pela argola do nariz. — Não me lembrei de você. Pensei que estivesse dormindo como os outros. Por que ainda está acordado, Andron Fiodorovitch?

— Vá-se embora!

— Ah, não! Um camundongo dando ordens ao elefante.

— Estou com a faca na mão. Vamos, Nikolai Michailovitch... para a porta, e sem se virar. Sente a ponta da faca?

Dunia não podia ver o que Kutjukov tinha atrás de Wyntok. Mas este, como um urso furioso, colocou-se em movimento, foi até a porta e abriu-a. Virou-se mais uma vez, sorrindo sarcasticamente.

— Kutjukov nunca dormiu com uma mulher — disse. — Acho que e tem o direito de ser iniciado por você agora. Depressa, Dunia... parece que ele tem pouco tempo de vida. Como está apaixonado esse rapaz! — Wyntok riu maldosamente e cuspiu na parede. — Seleção às sete horas, colega.

Dunia deixou o quarto com um gosto nojento na boca. No seu quartinho pobre com vista para a lavanderia eternamente fumegante, sua coragem se desfez. Caiu na cama, e pôs as mãos diante do rosto. A desolação a cobriu como uma gosma. Ela se sacudiu, enfiou os dedos nos cabelos e entregou-se à sua dor.

 

Marko, o anão, também apareceu de novo.

Durante dois dias vagabundeou pelo grande complexo do Campo, pedindo trabalho aos capatazes das serrarias e pedreiras, carpintarias e construtoras, até que começou a se tornar tão incómodo que o olharam de olhos apertados, perguntando-lhe: ”De onde é que você vem afinal, hein? Que anda fazendo por aqui? Seu diabo caolho! Está com vontade de acabar atrás das paliçadas?”

Marko sabia de coisas mais agradáveis para fazer. Suspirou como um fole furado, chamou os capatazes de nomes desagradáveis e tentou a sorte na cidade.

À noite escondia-se em celeiros, rolava debaixo de tratores, cobria-se com panos sujos de óleo e jornais velhos, mas durma alguém a quarenta graus abaixo de zero numa situação dessas! Por duas noites bateu os dentes como um moinho bem lubrificado, depois decidiu não se submeter mais a tal humilhação.

Lavou-se perto de um tratorista que primeiro se assustara com o aspecto do anão, mas depois se convenceu aos poucos de que realmente havia gente que tinha uma figura daquelas. Fechou a sua trouxa, e se pôs a caminho na estrada de Vorkuta.

Quem pensa em Vorkuta pensa sempre apenas no campo de trabalhos forçados. Poucos se interessam pelo fato de que Vorkuta é também uma cidade, uma legítima cidade da Rússia do norte, com casas sólidas, calçadas, ruas e praças, um Palácio da Cultura, uma casa do Partido e um Palácio de Casamentos. Lá existe um estádio de futebol, uma sala de música, uma pista de patinação, um imenso depósito de máquinas e material para construção de estradas, e uma estação meteorológica. AS pessoas que ali vivem estão habituadas à piedade dos outros, mas não entendem isso. Então Norilsk não fica ainda mais ao norte? E Tala e Olenek, ou ainda Ambarlschik? Ah, então Vorkuta chega a ficar ao sul, meus caros.

Marko teve sorte naquele dia. A sorte era uma compensação para o seu aspecto apavorante. Até então, onde aparecera, sempre despertara nojo ou compaixão, como um gerador provoca corrente elétrica, mas isso fazia com que o tratassem de maneira diferente do que a pessoas normais, isto é, melhor.

Na Rússia os marginais estão sempre em primeiro plano. Há séculos, a Rússia ama seus loucos, os loucos sagrados, como os chamam.

Marko tivera uma boa ideia. Foi até o Palácio de Casamentos e fez-se anunciar ao camarada Diretor. A secretária que o recebeu contemplou-o com repulsa e perguntou:

— Certamente quer saber se pode se casar?

— E por que não? — perguntou Marko.

— O senhor tem uma noiva?

— Não pense que pretendo me casar com meu colchão.

A secretária deu um pulo e foi anunciar Marko ao diretor.

— Um sujeito horrível está aí fora — disse ela e tapou o narizinho com o lenço. — Quer casar e tem noiva.

O diretor, um camarada comprido e magro, chamado Ippolit Lukanovitch Oblomov contemplou sua secretária com interesse científico.

— E que mais poderia ele querer de nós? — indagou. — Você está doente, Nadesna?

— Mas o senhor ainda não viu essa criatura. Como poderia ter noiva?

A curiosidade de Oblomov foi despertada.

— Mande entrar.

Marko não se importou com a impressão que causava — crescera com ela. Oblomov ficou honestamente espantado, pois um exemplar daqueles pensava em casar, e imaginou com alegria como seria a noiva. Ou é cega ou é tarada, pensou divertido. Uma pessoa de sensibilidade normal não pode amar um inseto.

— O senhor está apaixonado? — disse Oblomov esfregando as mãos. — Quer se casar? Ter muitos filhinhos parecidos com o pai? Que atitude louvável! Sente-se, camarada. Vamos logo anotar o seu pedido.

Marko ficou de pé, refletindo. Posso quebrar-lhe a espinha, pensou. Tem um esqueleto comprido; na Anatomia de Kichinev nós o teríamos mandado para a fábrica de sabão. Não se teria onde cortar e estudar nesse corpo.

— Não quero me casar — disse Marko cortesmente.

— Não? Então veio dar na porta errada.

— Quero um emprego.

Oblomov esticou o lábio inferior, pensou nos seus casais de noivos, e fechou os olhos, horrorizado. Como apresentar, nesse dia de beleza, um retrato da feiúra?

— Trabalho...? — perguntou devagar. — Mas em que está pensando, camarada?

— Aceito qualquer coisa — disse Marko.

— Isso não. — Oblomov recusou com um gesto das duas mãos. — Como sabe que Vassia está doente?

— Mas eu não conheço o seu Vassia, camarada.

— Sujeito trabalhador. — Oblomov recostou-se na cadeira. Na conversa, o anão vencia. Sua voz era boa, tornava-o interessante. — Hoje ele mandou seu filho mais velho com um recado: ”Não vou trabalhar”. Pela primeira vez em nove anos, dizendo que não vem trabalhar. Que aconteceu com o bom Vassia? Gripe intestinal! Que coisa! Os líquidos lhe saem por cima e por baixo. Quem assume um compromisso para toda a vida quer festa, música e flores. Esse era o trabalho de Vassia, mas agora ele está de cama.

— Camarada, eu também poderia fazer esse trabalho — disse Marko depois que Oblomov, exausto, pegara uma garrafinha com cem gramas de vodca debaixo da mesa e tomara um bom gole. — Experimente-me. Em outros tempos lidei com cadáveres, por que motivo hoje não poderei consolar sogras?

Aquela observação agradou muito a Oblomov, que riu alto e acenou várias vezes a cabeça.

— Vamos tentar, camarada. Como se chama?

— Marko Borissovitch Godunov.

Marko recebeu o cargo de decorador no Palácio de Casamentos em Vorkuta. Ocupou um quartinho no sótão, que não tinha aquecimento, mas Oblomov lhe emprestou quatro cobertores de lã, do depósito, e na primeira noite Marko suou debaixo deles como um queijo fresco. De manhã, recebeu um terno escuro, que lhe ficava grande, mas que espantosamente o transformava num ser humano quase normal. Cobriram-lhe a calva com um gorro, e Oblomov disse satisfeito:

— O que importa é a fachada! Vamos, caro Godunov. Temos nove casamentos hoje...

E assim Marko correu pelo Palácio cuidando dos casais de noivos. No segundo dia, já eram vinte e quatro casais, pois aproximavam-se as grandes festas de ”Papai Frio”, desencadeando ímpetos casamenteiros e um borbulhante desejo de amar. Marko excedeu-se a si próprio. Puxava cadeira, fazia guirlandas de papel, ornamentava mesas com flores artificiais, manejava o gramofone no qual girava o disco com a Marcha Nupcial, de Lohengrm (música que atingia os corações fazendo as mães soluçarem), dava aos comovidos parentes copos de água e outras bebidas tónicas como chá com vodca (apreciada especialmente por pais e tios), distraía, durante as cerimónias, os casais que aguardavam a sua vez lá fora, contando histórias de Kichinev e Chelinogrado, animava as noivas nervosas aconselhando-as a tomarem mais tarde um comprimido para os nervos, pois nenhum noivo gosta de ter uma mulherzinha desmaiada na cama.

Oblomov só ouvia comentários elogiosos sobre Marko. Todos o louvavam, exceto a enorme viúva Anastasia Blodvenovskia, que viera a um casamento como tia e a quem Marko dissera:

— Posso também dar parabéns ao seu esposo?

— Sou viúva — dissera aquela torre de mulher.

— Deus teve pena dele.

Aquela observação desagradou à viúva, que se queixou, e Oblomov mais tarde riu junto com Marko por um minuto inteiro.

No quarto dia, casou-se um oficial do Campo de Prisioneiros I, um tenente Zablinsky. Orgulhoso, levou sua noiva, a filha de um meteorologista da estação meteorológica de Vorkuta, diante do funcionário encarregado.

Para Marko bateu a grande e desejada hora. O destino aparecia sob a forma de acaso.

Marko se grudou nesse casamento como um grão de pó numa roupa. Brincou com flores de papel, cantou junto com o gramofone a melodia da marcha nupcial, mostrando ter uma voz sonora e com timbre até. Em resumo, Zablinsky o levou para a festa de casamento, como curiosidade, como bobo da corte, como boneco falante, assim como na Rússia os loucos sempre foram o brinquedo mais estimado pelos seres normais.

Marko ofereceu tudo o que o seu cérebro tão rico podia produzir. Contou anedotas até que os convidados gastaram as úvulas de tanto rir, dançou uma krakoviana nas suas perninhas finas e todos ficaram com lágrimas nos olhos de tanto se divertir.

Era ele o único que ainda estava de pé quando ZabMnsky levou sua jovem esposa para a cama nupcial. Marko andou à frente deles, uma vela na mão, tudo muito festivo e romântico, e na porta do quarto Zablinsky o abraçou dizendo:

— Você é um amigo de verdade, Marko. Mas agora, saia... tenho muito que fazer.

No dia seguinte Zablinsky mostrou a sua estima ao novo amigo — levou Marko com ele para o campo de prisioneiros.

Marko chegara em casa de Zablinsky antes que este entrasse em serviço. A jovem esposinha ainda estava na cama. revolvendo-se em bem-estar, tomava chá de uma taça de porcelana chinesa, roía biscoitos sobrados da festa de casamento, e passava a manhã lembrando-se daquela noite. Eram bons pensamentos e ela o chamou com vozinha doce:

— Antonuschka, meu maridinho, venha cá, dê-me um beijo... venha, meu selvagem, estou aqui, caidinha do céu... — e Zablinsky sentiu uma pressa histérica.

— Vamos de uma vez! — disse baixo para Marko. — Faça de conta que já saímos! Feche a porta sem ruído! Não deixe bater, cuidado! Meu caro Marko Borissovitch, meus ossos estão vazios. Tenho de me agarrar ao cinturão do meu próprio uniforme.

Deixaram a pequena moradia na ponta dos pés, fecharam a porta com cuidado, e na escada ainda escutaram a voz aflautada do desejo.

— Seu felizardo — disse Marko tirando com os dedos ágeis alguns grãos de poeira do uniforme de Zablinsky — Você tem razão, Marko Borissovitch; sou um sujeito de sorte. Por isso, vou-lhe mostrar agora o Campo. Temos aqui uma atração especial.

— Estou curioso, camarada tenente.

Andaram pela neve recente, até o grande portão do Campo. O vento soprava do mar trazendo uma neve como poeira sobre a terra. À direita, grossa fumaça brotava das três chaminés altas, no céu pálido e incolor. A lavanderia do Campo das mulheres.

O guarda no portão saudou, contemplou Marko com ar crítico, mas não disse nada. Os destacamentos de trabalho já tinham partido... largas trilhas na neve revolvida mostravam isso. Um exército de formigas operárias, sem nome, passara por ali. Dez horas de trabalho de partir os ossos, dez horas rebentando os pulmões, os membros tremendo, num revolver das últimas forças.

Pedreira.

Carvão.

Construção de estradas.

A morte tem nomes muito normais...

Dentro do amplo terreno do Campo, o serviço interno estava em grande movimentação. Os chefes berravam, batiam com porretes nas costas abaixadas, faziam os vultos de uniforme cinza saltar de um lado para outro. Diante do hospital estavam parados na neve, cabeça descoberta, gorros na mão, crânio raspado sem proteção no vento e na neve, os doentes que tinham passado pela seleção matinal e agora aguardavam algum tratamento.

Em toda parte a mesma coisa, pensou Marko, mas fez como se tudo aquilo fosse novidade para ele. Com grandes olhos infantis olhou ao redor, como se visse um mundo novo. Zablisnky lhe deu uma cotovelada.

— Não vá se engasgar de espanto — rosnou. — Nossa atração é o novo médico.

— Ah! — disse Marko, com o coração a dar um doloroso salto. — Não diga, camarada tenente. Um médico? Como?

— Ele está aqui como condenado, mas todos o agarram com cuidado como se estivessem escovando veludo. A antena dele de algum modo alcança Moscou. Isso nos faz ter cuidado, entende? Além disso, o médico-chefe imediatamente o seqüestrou. Você já vai entender o que isso significa. — Zablinsky dirigiu os passos para o depósito. Marko seguiu-o hesitante, afastava-se do hospital. — O novo médico opera como numa grande clínica. Os outros médicos ficam parados ao redor dele, admirando-o como a um bezerro com três cabeças, e não entendem mais o mundo. Ele faz operações de câncer, imagine. Num campo de concentração! Tira os tumores, e exige que os operados sejam tratados num instituto de radiologia.

Meu Igorenka, pensou Marko contente. Aí! Quiseram espezinhar você no chão, esconderam-no no fim do mundo, e o que faz você, maluco Pjetkin? Sopra-lhes tanto nas orelhas que a cera estala! Bravo, meu lobinho... meu coração dá cambalhotas...

Só com meia atenção Marko visitou, ao lado de Zablinsky, as oficinas e o depósito, cozinha e padaria, a stolowaja e a grande bcnja central, a seção de quarentena e o açougue. Ali, vendo os quartos de boi e os pedaços de carne pendurados nos ganchos, Marko lembrou-se da Anatomia de Kichinev.

Isso seria um caminho, pensou. Minhas relações com a carne morta são o meu destino. Vou tentar mais tarde.

Correu ao lado de Zablinsky como um cãozinho, deixou-o explicar tudo, espantou-se com grande naturalidade de coisas que há muito lhe eram conhecidas como a coluna de trabalhadores que varria a praça diante do hospital retirando a neve, voltando no fim da praça e marchando novamente com a vassoura, porque o vento mais uma vez cobrira tudo de neve, um trabalho realmente insensato o daqueles dez homens agasalhados, mas era feito com uma seriedade semelhante àquela com que fariam uma varredura de diamantes. Zablinsky explicou:

— Eles brigam por esse trabalho. O mais leve do campo. Na pedreira ninguém canta. E agora, vamos ao hospital.

Marko meteu as mãos nos bolsos. Tremiam tanto que até ele sentia receio por isso.

No corredor havia novamente condenados esperando tratamento. Um homem estava deitado contra a parede, gemendo. Num grande aposento trabalhavam três médicos, de porta aberta.

Marko procurou Igor, mas todos os rostos eram estranhos. Zablinsky empurrou-o para a frente.

— Não, não, o maluco não está aí! Já está operando. Pri meiro ele devia fazer a seleção. Mas depois o médico-chefe... — Zablinsky sacudiu as mãos como se espantasse um bando de moscas. — Quando encontrarmos o chefe... vamos continuar e cumprimentar. Deus não permita...

Marko enfiou-se ao lado de Zablinsky. Por uma fresta da porta espiou a sala de operações. A imagem familiar... uniforme branco, mesa estreita com um corpo coberto, lâmpadas por cima. Não como numa verdadeira clínica, colocadas sobre espelhos, verdadeiros holofotes, mas apenas quatro lâmpadas pendentes em fios compridos, sem quebra-luz, tristes como tudo ali no Norte.

Marko viu Igor Antonovitch imediatamente... Estava diante da mesa, o avental de borracha, a máscara, o gorrinho na cabeça, e operava um grande ferimento na coxa. Um médico mais moço assistia, quatro outros estavam ao redor como mulheres curiosas numa feira, com as mãos às costas. Diante de Igor, e Marko fez assustado o sinal-da-cruz quando a reconheceu, estava uma mulher robusta, avental de borracha apertando-lhe as formas redondas, cabelos negros transbordando no gorrinho de OP.

Zablinsky fechou a porta depressa.

— Vamos — disse abalado. — Se a Dussova nos enxergar, uma tempestade de neve parecerá um ventinho de primavera. Não imagina como ela sabe berrar. É um negócio desses é mulher...

Marko fez como se compreendesse. Enxugou a testa com as mãos. Estavam pegajosas de suor quando as limpou nas calças.

Ó céus, ajudem, pensou. Marianka em Vorkuta! Um verdadeiro demónio, bem no lugar onde pertence: o inferno. E Igorenka está entregue a ela, sem poder reagir.

Oprimido, continuou atrás de Zablinsky, que agora tinha pressa. Era hora de fazer a chamada das tropas de guarda. A segunda companhia estava sob as suas ordens, e havia meia hora esperava por ele diante da cerca.

— Dê uma olhada por aí, Marko Borissovitch — disse apressado. — Depois do serviço eu o apanharei. Espere por mim na guarda. Olhe tudo... hoje é um dia especial para você.

E é mesmo, pensou Marko. Encostou-se à parede do hospital, esperou alguns minutos, olhando os doentes que se dirigiam lentamente para o exame, cobertos de neve como homenzinhos de biscoito cobertos de açúcar, refletiu na maneira de ajudar Igor Antonovitch, e assim passou o tempo até a hora do almoço. Durante o descanso do meio dia desapareceu no açougue.

— Onde está o capataz? — perguntou ao primeiro açougueiro. Este estava sentado na beirada de uma enorme tina de zinco cheia de ossos, e comia um pedaço de chouriço que tinha na mão. Esticou-a, segurou o delicioso pedaço de comida debaixo do nariz farejante do anão, e disse:

— Quarta porta à direita.

Era um sujeito pouco educado. Marko castigou-o arrancando-lhe o chouriço e enfiando-o imediatamente na boca. Antes que o roubado pudesse dar um som, Marko engolira tudo.

O açougueiro ficou olhando o anão, de boca aberta. Depois meteu a mão na tina de zinco, tirou um grosso fémur e jogou-o atrás de Marko. O osso passou assobiando pelo crânio pelado dele e deslizou depois pelo corredor.

O capataz do matadouro do Campo, o camarada Jevronek, um homem gordo com olhos empapuçados, como se carregasse debaixo dos olhos uma provisão de emergência, baixou a cabeça de touro quando Marko entrou no quarto. Jevronek estava deitado na cama fazendo a digestão, lendo o Pravda e tentando com o indicador tirar um fiapo de carne que se lhe metera entre os dentes.

— Só um minuto, camarada — disse Marko polidamente. — Disseram-me que o camarada Jevronek tem um bom coração.

O gordo se ergueu, contemplou Marko detidamente, torceu sua cara de boi e riu alto, batendo na coxa e rugindo:

— Não parece possível... até as baratas agora pedem audiência! — Jevronek bateu com os pés no assoalho e cuspiu o fiapo de carne.

Levantara-se num salto, fez rolar os músculos, estendeu para Marko um punho enorme.

— Devemos refletir — disse Marko — que vivemos na era atómica...

Jevronek parou no meio de um passo, como se desse contra uma parede. Desanimado, ficou olhando o anão.

— Como? — murmurou. — Mas como?

— Usamos ou não usamos força atómica?

— Sim, claro.

— Estamos ou não voando pelo espaço? Quer renegar Gagarin?

— Por Deus, não. Gagarin é a coroa do progresso socialista! Mas que tem Gagarin a ver conosco?

— Tudo. camarada! O símbolo do progresso! O trunfo do pensamento! A obrigação de atingir o máximo com a aplicação da inteligência.

Jevronek começava a suar. Sentia-se superestimulado, embora não soubesse o que aquele estranho ser que falava como gente queria dele. De onde viera? Como passara pelo portão do Campo?

— Inteligência... é isso! — disse alto. — Mas não dirijo um centro de matemática e sim um matadouro!

— Que engano! — disse Marko, erguendo os braços. Isso foi tão repentino que Jevronek recuou assustado. — Será que um matadouro é apenas um lugar onde se bate na testa dos animais,, cortam-se suas partes e serram-se seus ossos? Diga, camarada, nunca pensou que na era atómica tudo é supérfluo exceto um matadouro?

— Isso é um pensamento espantoso — gaguejou Jevronek. — Quem é você, camarada?

— Meu nome é Godunov. Marko Borissovitch.

Jevronek acenou a cabeça, meio vencido. Se um negócio desses se chama Godunov, só na Lua se encontra refúgio.

— Qual é sua missão aqui, camarada Godunov?

— Corte anatomicamente exato da carne! Isso se faz por aqui?

— Que pergunta! Tenho trinta e quatro carniceiros no meu destacamento. Fazemos duas vezes a nossa quota! Cortamos como robôs.

— Isso é que é! Como robôs! Robôs são máquinas, computadores que são programados. Quem os programa? O camarada Jevronek? Mas... estará programando certo? Isso tem de ser examinado. Eu gostaria de ver. Vamos à sala de trabalho e eu lhe provarei que lhe falta o conhecimento necessário para o corte da carne. Qualquer idiota pode cortar com uma faquinha... mas cortar a carne com a faca da beleza, essa é a arte. Quem a domina?

Jevronek resolveu ficar quieto e aguardar.

O que sabe um sujeito desses, que aparece assim de repente? De que ponto de serviço veio? Toda essa história de era atómica e Gagarin... que tem Gagarin a ver com carne de gado? Tudo isso pode apenas ser um truque, uma conversa mole para esconder a sua verdadeira missão.

Jevronek vestiu o casaco e calculou depressa quanta perda escondera nas anotações dos livros, quanto deixara secretamente de lado, quanto seu sogro levara com a carroça de cavalos, debaixo da palha, e quanto era o peso que Jakob Hitch Numunov apanhava todas as semanas com seu caminhão, pagando bons rublos por isso. Depois, calculou o gasto pessoal, os presentes de filés que fazia a Marenka, a sua costureira na cidade de Vorkuta, e não é de admirar que Jevronek, apesar do seu tamanho, começasse a ficar bem pequeno e seguisse obedientemente Godunov como um urso de circo na correia.

— Ah! — disse Marko chegando à sala de trabalho. Em longas mesas de madeira com grossas pranchas de madeira maciça empilhavam-se os quartos de boi e os animais esquartejados. Os carniceiros, quase todos criminosos que nos diversos campos mudavam de profissão, de assaltante para açougueiros, desfrutavam ainda o intervalo do meio-dia, e sentavam-se em banquinhos diante das sangrentas massas de carne.

— Olhem só isso! — exclamou Marko, para que todos ouvissem. — Que barbaridade! Camarada Jevronek... isto aqui é um peito. Se você quisesse tirar daí um assado suculento, com fibras curtas, como faria?

Jevronek pegou a grande faca, curvou-se sobre o pedaço, e, com segurança e rapidez, cortou um bom peso, depondo-o diante de Marko.

Este olhou sério para Jevronek, e afastou a carne. Jevronek empalideceu.

— Muito bem, camarada — disse Marko com grande seriedade. — Mas eu vejo que lhe falta o conhecimento anatómico. — Os demais carniceiros aproximavam-se, rodeavam Marko e o capataz, olhavam as mãos do anão. — Cada corte é como uma dissecação. É preciso conhecer os músculos, os nervos, as artérias, os ossos, as peles internas, as misteriosas relações interiores. Prestem atenção.

O que agora aconteceu foi uma culminância de palavrório que assaltou Jevronek, como uma onda salgada do mar. Marko pegou da faca, puxou com incompreensível força um quarto de boi, e apontou com a faca aquela montanha sangrenta.

— Isso aqui é o musculus trcnsparentus — disse ele com absoluta seriedade. — Ele está em relação de reciprocidade com o musculus infernalis. O nervo specificum tarentium l:ga os dois. Se o corte segue de modo que o musculus transparentus seja separado cuidadosamente do musculus appendarium caesarum que lhe fica debaixo, e não se machuca a venapeniscellum, consigo um pedaço de assado como naquele quadro... lembra-se, camarada? em que Ivan, o Terrível, come um pedaço de carne.

Os outros confirmaram, cheios de admiração. Jevronek fitava o pedaço de carne que Marko cortara. Um peso tão magnífico que ele se curvou para Marko e sussurrou:

— Se o senhor permitir, camarada... isso não é para o senhor coronel... vamos comê-lo nós mesmos.

Marko confirmou dignamente, mostrou uma artéria, e acrescentou despertando franca admiração com essa última observação:

— A artéria subfelicitas hodenensis. Quem a atinge deixará gosto amargo na carne. Deve ser sempre retirada, antes...

Jevronek apertou o pedaço de carne debaixo do braço e deixou a sala com Marko. Estava abalado. Agora é que a coisa vai, pensou. Aquilo fora apenas uma demonstração de conhecimento do anão. Se ele agora controlar os livros... entradas e saídas — vou-me deitar na mesa e implorar que me disseque conforme todas as regras da Anatomia.

Mas os temores de Jevronek se diluíram num imensurável espanto. Marko falou-lhe ainda largamente de Kichinev, da Universidade, do porão de cadáveres, dos seus amados mortos e suas peculiaridades físicas... Depois de todas aquelas histórias, que provocaram náuseas mesmo no calejado Jevronek, que em todo aquele dia não comeu carne, tornou-se claro que aquele homúnculo perigoso nada mais queria além de um emprego no matadouro.

Jevronek logo reconheceu o problema. Estão-nos enfiando um piolho na carne. Preciso colocá-lo no lugar certo. Um ouvido, um olho, voz secreta de alguém que vigia. Camaradas do matadouro. os tempos gordos se foram. Comam ainda uma vez, fiquem médios e redondos... a partir de amanhã haverá um olho posto em nossa nuca.

— Que motivo deveremos dar? — perguntou Jevronek cauteloso.

— Empregue-me como ajudante.

— Mas, camarada, com seus conhecimentos...

— Vou influir positivamente sobre os demais.

— Sem dúvida, quem duvidaria disso? Vamos ser o melhor açougue em todo o Norte. — Jevronek sentou-se na cama. — Quer repartir o quarto comigo?

— Mas, por favor! O senhor leva todos os ajudantes para a cama?

Aquela ideia era tão horrível que Jevronek sacudiu a cabeça com força.

— Eu só teria lugar no quartinho de ferramentas atrás do depósito de ossos. Mas não é possível.

— Tudo é possível quando o homem o suporta. Bom, vou dormir lá.

— E o pagamento? Quem regulamentará isso?

— Trabalho sem pagamento. Só comida, bebida, e essa cama no depósito dos ossos. Mais simples não pode ser.

— Isso é o cúmulo da racionalização. — Jevronek estava convencido agora: tratava-se de um espião. — Se desejar, tudo será como planejou. Mas pense, camarada Godunov: lá onde o senhor vai dormir há algumas toneladas de ossos, que fedem...

— Tanta coisa fede neste mundo — disse Marko com sabedoria e acenou com a mão — que o fedor dos ossos parece quase legítimo em nossa sociedade.

Jevronek não entendeu aquilo... os limites da sua inteligência tinham sido ultrapassados. Mas ostentou um largo sorriso.

Jevronek não exagerara... o depósito de ossos tinha um cheiro terrível. A podridão pairava como uma nuvem sobre o monte de lixo pois havia ali também couros de vaca, cabeças, cascos; tudo o que é inútil num animal e não comestível jazia em montes de metros de altura de massas escorregadias. Gordos vermes brancos rastejavam pelo chão de cimento. Jevronek tapou o nariz e olhou de esguelha para Marko.

— O quarto fica ali atrás, camarada.

— Realmente, higiénico não é.

— Faça algo contra isso! Só de dois em dois meses eles vêm pegar as sobras. Uma fábrica de cola em Vorkuta. Poderíamos enterrar os ossos, mas não... eles têm de ficar depositados até que os homens da cola apareçam.

Marko dominou o nojo que fechava a garganta até de alguém como ele, a quem nada impressionava, foi até o seu quartinho, amassou um exército de vermes, e ficou espantado ao ver que o aposento era limpo. Enxadas, machados, serras, facas, tinas pendiam da parede em pregos, limpas, como se tivessem sido compradas no dia anterior.

— Muito bem, camarada — disse Marko metendo o dedo na barriga do gigante. — As ferramentas estão cuidadas. Isso me alegra.

Feliz, Jevronek deixou o depósito de ossos. Acreditava ter um camarada desconhecido do seu lado. Pessoalmente trouxe cobertas e dois travesseiros para Marko, um lampião de óleo, uma cadeira, uma mesa, um espelho, um fogãozinho de ferro e carvão de pedra. Correu incansavelmente de um lado para outro até tornar o quarto confortável. Só não podia afastar o mau cheiro.

E finalmente Marko ficou sozinho. Sentou-se na cama de ferro, o fogão chiava, o quartinho estava aquecido, mas com o calor também o mau cheiro entrou mais penetrante por todas as frestas. Isso não o perturbava.

Estava no Campo... estava perto de Igor.

Meu Deus... podia agora rever Igor.

Para isso teria dormido até debaixo das mesas de corte, entre as metades de boi, na tina de sangue, em qualquer lugar.

 

Só pelo meio-dia, Marko apareceu no Palácio de Casamentos. Oblomov estava exausto na sua poltrona, tomava chá com água de melissa, e lamentava intimamente o seu duro destino. Quando viu Marko, saltou como se o tivessem espetado.

— Godunov! — gritou. — Marko Borissovitch, você chegou! Que felicidade. Já estava com medo de que também estivesse com as tripas nas calças! — Rodeou a mesa, apertou Marko ao peito, deu-lhe dois beijos, e arquejou comovido. — Que manhã esta! Sete casais! Por que será que estão todos tão loucos para casar? Olhe para mim, Marko Borissovitch. Sou solteiro, não tenho pressão alta, tenho todo o ordenado no bolso, e vou até os cem anos. Mas não, não... os jovens querem casar como os carneiros correm para o matadouro. Às dez horas, esteve aqui um camarada de sessenta e quatro anos, querendo casar. ”Mas então”, eu lhe disse, ”você quer mesmo, irmãozinho? Então vá primeiro ao médico, mande que lhe soprem ar no cérebro.” E sabe o que o sujeito me disse? ”Camarada diretor... este é meu quarto casamento!” O quarto! E ainda sorria maliciosamente, totalmente tarado era esse camarada. Aí eu perguntei: ”Mas por que quer casar, meu caro?” E sabe o que ele me respondeu então? ”Irmãozinho, eu tenho um curtume. Três mulheres morreram por causa das emanações do curtume. Não me olhe assim... claro que elas têm de trabalhar comigo. E aí eu fiz a conta: um ajudante me custará 120 rublos por mês. Uma mulher trabalha pela comida e bebida, e ainda tenho as noites de graça! Serei um idiota se não me casar! A única coisa incómoda é que as perco graças às emanações do curtume. Provavelmente em breve estarei de novo aqui.” Disse isso, assinou o pedido de casamento, e saiu assobiando. Meu caro Marko, como estou contente por você estar de volta!

Marko contemplou-o tristemente, pegou-lhe a mão, apertou-a e disse solenemente:

— Meu caro Ippolit Lucanovitch... meu coração se parte porque tenho de ir-me embora!

— Não! — Oblomov cambaleou, e encostou-se na beira da mesa. — Marko, você vai me destruir...

— Tenho outro bom emprego.

— Você perturba a ordem do Estado! Está sabotando a célula básica da nossa sociedade: a família.

— De hoje em diante vou trabalhar num grande matadouro. Assegurar a alimentação é uma tarefa social ainda mais importante.

— Marko... eu lhe dou três rublos a mais por semana. O seu jeito para consolar parentes comovidos é genial! — Oblomov ergueu as mãos e sentiu um ataque de fraqueza. — Você não pode me deixar sozinho agora.

— Estive com o camarada Secretário do Partido, e perguntei. E sabe o que ele me disse? ”Meu caro Godunov... sua ação é excelente. Mas comer é mais importante do que casar! Eu o colocarei no matadouro do campo de prisioneiros. Aquele é o front mais avançado da luta social!” E eu me deixei convencer por essas palavras patrióticas, Oblomov.

Oblomov sentou-se pesadamente, enterrou o rosto nas mãos e não se moveu nem quando Marko deixou a sala. Mas mais tarde mandou um mensageiro para Vassia, que estava doente dos intestinos, com a ordem de ficar imediatamente bom da sua diarreia. O mensageiro encontrou Vassia sentado num balde, pálido e magro, com olhos fundos e lábios arroxeados.

Durante dois dias, Marko trabalhou como retalhador de carne, nas longas mesas de -madeira! Era um trabalho terrível, que causava suor e sangue. No aposento ao lado, matavam-se bois e porcos, seus mugidos e guinchos, seus gritos de morte ressoavam-lhe nos ouvidos. Marko tinha de se acostumar com aquilo... Cortar carne, seja de bois mortos ou de gente morta, era coisa corriqueira para ele, mas na Anatomia os corpos ficavam à sua frente pálidos e quietos, e não lhe eram colocados na mesa quentes, com o sangue ainda correndo, os ganchos cintilantes nos tendões dos pés, com os quais eram transportados adiante depois, já esquartejados.

Jevronek, o capataz, foi dar várias olhadas naquele aposento, chamou seu auxiliar Jevsey num canto escuro e perguntou baixo:

— Então, que é que ele está fazendo? Que disse? Pergunta muitas coisas?

Jevsey sacudiu a cabeça.

— Ele corta, mais nada. Não diz uma palavra. Como se não tivesse boca.

— Sujeito bem perigoso, meu caro. Tem olhos vigilantes. Tratem-no bem, ouçam o que digo!

Assim sucedeu que Marko não era observado nem incomodado por ninguém. Retalhava a carne, serrava ossos, entregava a Jevronek, que o aborrecia com uma conversa fiada, um esplêndido pedaço de carne que era aceito com hesitação, pois suborno é sabotagem contra a riqueza do povo, e nunca se sabe como esses espiões depois torcem a história, e observou também que o matadouro cada dia preparava um suprimento de carne fresca e lingüiça para o Campo das mulheres.

Isso era importante. Jevronek designava cada dia para o serviço outros carniceiros, naturalmente sempre criminosos, e dizia com um piscar de olhos:

— Já que não se pode agarrar... a visão de uns verdadeiros seios de mulher pode ser um dia de festa... Camaradas, há sujeitos superexcitados que roubam tetas de vaca no açougue e as levam para a cama...

— Será possível — perguntou Marko já no segundo dia — que eu acompanhe um suprimento até o outro Campo?

Jevronek entendeu logo. Não sorriu, mas ficou pálido. Esses transportes eram a melhor ocasião para fazer negócios secretos. Fora do Campo, mais ou menos numa terra de ninguém, encontravam-se os bons amigos de Jevronek, que pegavam a carne anotada como ”perdas” no relatório do matadouro, e deixavam os rublos rolar nas mãos calosas.

— Amanhã à tarde vamos entregar de novo lingüiça, carne e ossos para sopa. Dois caminhões. Se quiser acompanhar o comboio, camarada Godunov,..

— Com muito gosto — disse Marko, afiando sua longa faca de retalhar. De um gancho pendia meio boi sobre sua mesa. — Saia do caminho, irmãozinho. O trabalho não dá tempo para conversas inúteis.

Jevronek enrugou o gordo nariz, inchou o pescoço de touro e saiu. Tinha medo. Ali havia dois olhos que viam tudo, dois ouvidos que escutavam tudo, um cérebro que era superior a todos eles. Camaradas, quem gosta de ter alguém assim no seu destacamento?

Naquela tarde, antes do término do trabalho, uma grande gritaria se levantou no matadouro. Jevsey, homem de confiança de Jevronek e antigo especialista em assaltos a lojas, entrou no Quarto de Jevronek, sem poder respirar.

— Ele se feriu — gritou. — Cortou-se no polegar esquerdo. Está lá sentado, falando em envenenamento do sangue.

Jevronek pensou em Moscou, no misterioso serviço de controle, na importância daquele anão e deu um salto.

— Uma catástrofe! Por que não avisaram o hospital?

— Só porque alguém cortou o dedo? — perguntou Jevsey estupidamente.

— Alguém? — berrou Jevronek. — Se vocês cortarem as suas cabeças haverá apenas os nomes de vocês riscados na lista... mas com Godunov todos podemos acabar na casamata de punição, se lhe acontecer qualquer coisa.

Jevronek correu para fora. No matadouro encontrou Marko, pálido e de olhos arregalados. Enrolara um pano no dedo ensangüentado, e contava com voz abafada um fato acontecido em Kichinev.

— Como eu dizia... o escalpelo escorregou e deixou um cortezinho no polegar esquerdo. E o que fez o idiota? Chupou durante alguns minutos o ferimento e não ligou mais para aquilo. A tardinha já estava com febre, de noite a mão ficou grossa como uma pata de urso. Latejava como mil martelos. No fim, ele caiu num marasmo profundo. chorava como um bebê e de manhã morreu. Ó céus, será que isso vai acontecer comigo? Sabem quantas bactérias de veneno de cadáver já estão nesta carne? Por Satanás, já estou sentindo o braço latejar...

— Uma tábua! — berrou Jevronek chegando à porta. — Deitem-no numa tábua! — Freou sua corrida diante de Marko, curvou-se para ele, olhou-o com olhos arregalados, e acenou a cabeça, com a garganta apertada, quando Marko indagou:

— Está vendo o brilho nos meus olhos? Isso é febre... a febre da morte...

— Calma, camarada — sussurrou Jevronek. — Conserve a calma, como se diz, camarada. Nada de pânico. Faremos tudo para salvá-lo. Mandei avisar o melhor médico, o camarada Pjetkin. Ele o salvará.

Marko acenou com gratidão, revirou os olhos e desmaiou. Quatro carniceiros com aventais brancos sujos de sangue carregaram-no, correndo pelo frio e pelo vento de neve até o hospital.

 

Pjetkin acabara sua visita e berrara com o chefe da seção V porque três pacientes estavam deitados no próprio excremento — naturalmente eram políticos que se queria humilhar assim — quando os carniceiros chegaram correndo com a sua tábua. Um mensageiro já anunciara aos gritos:

— Um envenenamento, camarada doutor. Todo o braço... E antes que Pjetkin pudesse perguntar mais alguma coisa, o homem saíra.

— Quarto 4 — chamou Pjetkin no corredor, quando os carregadores apareceram. — Irei imediatamente!

O quarto 4 era uma sala recém-arranjada para operações de infecção. Era a primeira ação de Pjetkin depois do seu reencontro com a Dussova. ”Vamos cultivar a septicemia?”, perguntara num dia em que feridas, costas infeccionadas, enormes furúnculos e uma vesícula cheia de pedras foram colocados na mesma mesa.

A Dussova rangera os belos dentes, mas dois dias mais tarde o quarto 4 estava livre à disposição de todos os casos com infecção.

Os quatro carniceiros depuseram Marko, um enfermeiro arrancou o capote de pele, descobriu uma figura que parecia um inseto com cara de gente, assustou-se e saiu correndo. Os carniceiros seguiram.

O meu Igorenka não poderá dizer uma palavra de tanto espanto, pensava Marko. Estamos de novo juntos. Como se houvesse poder além da morte que nos pudesse separar...

Pjetkin entrou no quarto. Visto de baixo, pois Marko estava deitado, parecia enorme, uma torre branca.

— Onde está a septicemia? — perguntou na porta. Depois reconheceu Marko. Fechou a porta com um pontapé, correu para Marko que saltou como um sapo da sua tábua e abriu os braços, e os dois se abraçaram, e silenciaram um momento, cheios de emoção.

— Seu maluco — disse Pjetkin e colocou Marko na mesa de operação. O anão tinha lágrimas a correr pelas faces. Ficou ali sentado, olhando o seu Igorenka através daquela cortina líquida e tentando sorrir. — Seu sujeito maluco, amaldiçoado... de onde vem você? Por que o entregaram aqui? E a infecção?

Marko ergueu o polegar. Um corte que se cobria com uma crosta de sangue.

— Estou novamente com você — disse com voz fraca. — Consegui. Estou trabalhando aqui no Campo como retalhador de carne. Meu caminho mais difícil até aqui... até a granja de galinhas de Chelinogrado era brincadeira diante disso... mas estou aqui. Uma coisa não vai lhe acontecer mais: morrer de fome.

Pjetkin olhou o corte no dedo, pegou um esparadrapo do armário e colou-o por cima. Quando um enfermeiro abriu a porta, virou-se num arranco e berrou:

— Fora! Durante uma hora não posso ser incomodado! O infeliz fechou de novo a porta.

— Soube alguma coisa de Dunia? — perguntou Pjetkin. — Tentei tudo... para nós o mundo acaba naquela cerca. O que acontece ali atrás é pleno mistério.

— Dunia é médica no Campo das mulheres. Vou vê-la amanhã.

— Você? Vai vê-la e falar com ela? — Pjetkin olhou pela janela. A neve turbilhonava lá fora.

— Falar... isso não sei. Mas vou vê-la e se ela me notar, saberá que você está perto.

— E como é que você vai entrar no Campo das mulheres?

— Com dois caminhões de carne. É simples! De repente vou sentir dores no polegar e Dunia me examinará.

— Outra médica poderia fazer o exame.

— Então dará certo na próxima entrega de carne. — Marko saltou da mesa e bateu com os braços no corpo magro. Apesar das peles o frio era como uma faca no seu corpo. — Haverá muitas possibilidades conforme a gente souber aproveitar a situação. Escreva uma carta para ela.

— E se a encontrarem...

— E quem haveria de me examinar, hein? Eu sou açougueiro, dou-lhes algo para meterem entre os dentes, e se alguém chegar dizendo: ”Pare, -canalha, levante os braços para que o revistemos!”, vou responder: ”Venha, seu diabo. Mas vou tomar nota da sua cara achatada. Na próxima entrega, você vai receber veneno na lingüiça! E só vai perceber quando estiver deitado debaixo da mesa!” — Marko sorriu, saboreando o poder de ser açougueiro. — Ninguém vai me agarrar, Igorenka. Escreva algumas palavras...

Pjetkin concordou. Procurou papel e lápis, e como não houvesse nada disso naquela sala de operações, alisou duas folhas de celulóide e escreveu com uma espátula fininha molhada em tintura de iodo.

”Meu amor, meu coração.

Estou vivo. Trabalho. Espero. Sonho com você. Beijo-a em pensamentos. Acredite na sobrevivência... Teu Igoruschka.”

Pjetkin enrolou a mão de Marko no celulóide, pôs o braço numa tipóia e ficou radiante de felicidade.

Alguém bateu à porta. Pjetkin reconheceu que não podia mais ficar sozinho com Marko no quarto 4 sem despertar suspeitas.

— Mais três minutos! — gritou. — Quem está aí?

— O Dr. Kalanenkov tem de cortar um carbúnculo.

— Já vai! — Pjetkin pegou Marko debaixo dos ombros. — Se você falar com Dunia, não conte nada sobre Marianka Jefimovna. Ela também está aqui.

— Eu sei. Eu a vi. Na verdade, arranjaram aqui um inferno completo. É preciso admirar tanta organização.

— Até agora consegui tudo o que queria da Dussova. Está mansa como um coelhinho.

— E bateu de novo à sua porta, Igor?

— Ainda não.

— Aguarde, Igorenka, aguarde. O coelhinho vai perder a sua pele macia...

— Eu sei que ela está impaciente. Quando fica do meu lado, em qualquer lugar, seja na mesa de operações, diante das camas dos doentes, em qualquer lugar sinto um sopro ardente que vem dela para mim...

Marko fitou Pjetkin pensativamente. Depois disse devagar:

— Você não vai poder fugir dela, Igorenka. Foi plantada na sua vida, e você vai ter de regá-la. Quer morrer queimado no seu hálito de fogo? Leve-a para a cama...

— E Dunia?

— Você não vai ser infiel a Dunia, filhinho. Tudo o que for necessário para sobreviver será perdoado. Marianka faz parte disso, como comida e bebida... ela faz parte do solo que o alimenta, portanto, passe o arado nela! Não se defenda mais, Igorenka.

— Você vê tudo de um modo tão simples, Marko. Gostaria de ser assim...

— E é simples. Atingimos aqui o cume da simplicidade humana. Só temos uma coisa ainda: a vida. Para conservá-la, nada é demasiado caro, vil, ignominioso e terrível. O que significa, diante disso, uma Marianka Dussova?...

Jevronek respirou visivelmente aliviado quando Godunov reapareceu no matadouro, com o braço na tipóia, mas de ânimo contente.

— Um golezinho me faria bem agora — disse ele, e Jevronek encarou essa observação como uma prova de que aquele repulsivo anão também estava informado das suas reservas de vodca.

— Você foi salvo? — perguntou evasivo tirando de debaixo da cama uma garrafa chata e enchendo dois copos pela metade.

— Depende... a fase aguda passou. Mas, salvo? Quem pode dizer que tem esperanças dessas? Já tenho nove milhões de Bactérias no polegar.

— Nove milhões! E o doutor as contou?

— Se não tivesse contado, como é que eu saberia?

— Que médico genial!

Jevronek fez um brinde com Marko e bebeu. Estava profundamente impressionado.

— Quando se pensa que uma única bactéria basta para matar uma pessoa, e que eu tenho nove milhões... — disse Marko.

Jevronek sentiu um frio na espinha. O medo de todos os russos diante de infecções apertava-lhe o coração. Respirava audivelmente, esvaziou o copo e afastou-se de Marko.

— O senhor não pode mais trabalhar, naturalmente? — perguntou cauteloso.

— Não posso trabalhar diretamente na carne. — disse Marko e ergueu os ombros largos aparentemente penalizado. — Vou ter de trabalhar nos transportes, camarada. Quer que lhe conte como sei dirigir carros?

— Não, obrigado. Acredito em você, camarada.

Jevronek teve um sobressalto. Ele vai descobrir tudo, pensou torturado. Tem um cérebro de raios X. Sabe de tudo! Deus tenha piedade de mim...

 

Na noite após o reencontro de Marko e Pjetkin, a porta do quarto de Igor se abriu sem ruído e a Dussova entrou deslizando como uma sombra. Pjetkin acendeu a lâmpada da cabeceira, uma espécie de iluminação de emergência, uma luz pobre e fosca, mas clara bastante para ajudá-lo a encontrar suas roupas.

Como no Amur, Marianka usava um pijama chinês. Os dragões dourados cuspiram fogo. Um hálito de chamas artisticamente bordadas soprava sobre seus seios túmidos, apertados na seda.

Ela ficou parada na porta, fitando Igor. Esperou por alguma coisa, depois passou as mãos pelos cabelos negros, magníficos e lustrosos.

— Você está tão quieto... nenhuma pergunta, não me vai expulsar? Você me assusta. Está doente?

— Você tem algum problema, Marianka Jefimovna?

— Ó Deus, ele ainda pergunta se tenho um problema! Igor, você é mesmo tão infantil? — Ela riu, uma voz em que ressoavam dobres fatais. — A lista dos meus problemas é mais longa do que um drama de Gorki.

— Eu penso muito em você, Marianka.

— É verdade?

— Sim.

— Problema número sete eliminado. Achei que você me encarava com repulsa.

— E por quê? Conheço a sua vida até aqui. Você mesma me contou.

— Só lhe mostrei uma pedrinha desse mosaico selvagem. Não espere que uma mulher seja tão simples, tão sem complicações. Nada numa mulher é normal, previsível, calculável, nada segue um processo lógico. Posso me sentar?

— Claro, Marianka.

— Na sua cama, do seu lado...

— Sim... — Ele se afastou, Marianka sentou-se e cruzou as abas do pijama sobre os joelhos. Estava nua debaixo do traje chinês. Igor compreendeu isso vendo os bicos dos seios contra a seda leve. Aquilo o deixou vigilante. Ela mesma dissera que nada numa mulher é previsível.

— Você tem um papyross? — perguntou ela.

— Naturalmente. — Ele curvou-se e pegou um maço na mesa de cabeceira. Estendeu-o para Marianka sobre o ombro. Ela pegou o cigarro, riscou o fósforo, e a fumaça passou pelo rosto de Igor.

Marianka fumou silenciosa por alguns segundos, brincando com os cabelos dele. Respirava alto, devagar, profundamente.

— Igorenka...

— Sim?

— Você já pensou em como vai continuar a sua vida?

— Já me convenci de que ela será regida por Moscou. Vorkuta é estação final... em que mais devo pensar?

— Vorkuta pode também ser apenas um aviso, Igor. Como você é bobo! — Ela deitou a cabeça nas costas do rapaz, continuou fumando e envolveu-o na fumaça acre. Não era um bom fumo, cheirava a madeira, mas podia-se fumar. Isso era o principal.

— Eu sei mais do que você, Igoruschka.

— Então fale.

— Você foi colocado na lista daqueles que um dia deverão ter fama na Academia de Ciências de Moscou. Está até na lista dos futuros assistentes do Prof. Demichov... Sabe o que isso significa? Fama internacional. Liberdade de pesquisa. Prémios especiais. Ordenado especial. Talvez o prémio Lenine. Você está na rampa de subida para conquistar o céu soviético.

— Como alemão?

— Eles vão esquecer isso.

— Eu me lembro do camarada Plumov, de Chabarovsk. ”Quando a gente mete um carneiro numa pele de bezerro, o que ele é?”, perguntou-me ele com a altivez do mais forte. Será que agora pensam que um carneiro tosquiado se transforma em bezerro?

— Plumov é um pequeno funcionário, Igoruschka. Uma gota de suor numa cadeira de autoridade. Em Moscou vão-se rir de tais comparações.

— Que vida maluca! — Pjetkin abraçou seus próprios joelhos. Encolhera as pernas e fitava as formas que o refletor provocava na escuridão do quarto. — Afinal o que sou? Russo ou alemão?

— Como você sente isso?

— Nunca deixei de responder a essa pergunta: sou russo. Meu nome é Pjetkin. Sou comunista. Sou médico soviético. Que mais querem de mim?

— Obediência.

Pjetkin sacudiu a cabeça. Marianka o tinha entre as mãos, ele se libertou.

— A natureza me deu um cérebro que sabe pensar. Professores soviéticos o educaram para pensar logicamente.

— Agora você é adulto, tem uma profissão, e tem de esquecer que é um indivíduo. Você é uma parte do grande povo russo. Tudo quanto fizer é para bem desse povo. Você vive para a pátria, não para si mesmo. Mas viver para a pátria significa: obedecer! Todo o resto é burguês, é capitalista!

— Acredita mesmo no que está dizendo?

— Obrigada...

Pjetkin olhou para trás. Os olhos dela estavam bem próximos. Grandes, brilhantes, olhos predatórios, um pouco oblíquos e dominadores.

— Obrigada por quê?

— Por conversar assim comigo. Estamo-nos aproximando. Igorenka, estamos nos encontrando... em algum lugar... mas ainda estamos procurando onde...

Ela o abraçou por trás. Os seios duros comprimiam-lhe as costas. O abraço foi tão forte que lhe cortou a respiração e ele teve de respirar fundo.

— Obediência significa esquecer Dunia...

— Sim. Mas isso é apenas um ponto da trama de que estão fazendo o seu traje, Igor.

— Que mais?

— Mil coisas. Retirada daquele pedido idiota de ser mandado para a Alemanha.

— Que mais?

— Ser um bom médico.

— Sou um médico ruim?

— Você é um médico que faz críticas.

— Ser bom e ser crítico não podem combinar?

— Podemos cruzar um cavalo com uma coruja?

— Isso é conversa fiada.

— Olhe aí a crítica! Igorenka, acorde, acorde! — Ela o sacudiu, beijou-lhe a nuca e o puxou para trás. Ele ficou meio deitado sobre ela. As pernas dela do seu lado, nuas, fortes, com a pele lisa e brilhante. Ele pôs as mãos na carne firme e fria, e os músculos tremeram debaixo dos seus dedos. — Lembra-se do que eu lhe disse em Sergejevka? Bote um esparadrapo nessa boca, pegue a bandeira e marche ao compasso da música. Você não o fez... e onde está agora? No vestíbulo do inferno.

— E você, minha menina esperta, onde está?

— Junto de você... — A voz dela desfez-se de ternura. — Acaso tive problemas? Nunca quebrei a cabeça para saber o que é a vida e o que poderia fazer com ela. Um homem que não conheci me gerou, uma mulher que se dizia minha mãe me deu à luz e, no nascimento, quatro quilos de sua carne. Assim vivi. Como todos crescem, eu também cresci. Fui à escola, e fui médica, sem a minha intervenção. O Estado pagava tudo, eu fui levada, mandada, empurrada, levantada, os funcionários faziam pagar a generosidade do Estado usando meu corpo como depósito da sua luxúria, fui chamada, montada como uma égua, e nos meus documentos só existem louvores... e ninguém até agora entendeu que estavam criando apenas um invólucro vazio, que eu estava morta antes de começar a viver. Até que um dia... um dique estourou em mim, a vida jorrou no vazio. Vida cheia de felicidade e desejo. Foi quando você chegou a Sergejevka. Finalmente eu tinha um objetivo, o único da minha vida inteira: você! E se encararmos desse modo, pela primeira vez na vida consegui alguma coisa: estou ao seu lado. Em Vorkuta! Forcei as autoridades a me transferirem para cá. Reencontrei você, não espero mais da vida. — As mãos dela acariciavam o peito de Igor, deslizaram pelo seu corpo abaixo, entraram como cobras entre as suas coxas. Ele não deteve essas explorações, nem fechou as pernas... ficou como que paralisado diante do reconhecimento de que Marianka Jefimovna tinha razão.

— Eu o amo, Igorenka... — disse Marianka em tom abafado. Ela despira o traje chinês e Igor sentia o seu corpo nu. Era a atração e a submissão da sua vontade, de que Marko falara.

Igor jogou a cabeça para trás e ficou entre os seios de Marianka, um estofo redondo, perfumado, macio como veludo. Uma sensação confortável de abrigo o inundou, a sensação de uma criança que busca proteção junto ao corpo da mãe. Ele virou o rosto para o lado, a pele quente e lisa deslizou debaixo dos seus lábios, até que o duro mamilo lhe chegou à boca. O coração lhe batia doloridamente. Sentia uma vertigem, como se o mar o envolvesse... Pense em Dunia, gritava algo dentro dele, mas era uma voz fraca, que desaparecia na embriaguez, reaparecia como um farrapo, que no começo ainda tinha sentido... Dunia ama você, jurou fidelidade, ela espera... lute, lute, seja um herói, morra com a sua honra mas conserve-a... Igor Pjetkin, filho de um herói, herói... mas aquela coisa se tornava sempre mais ínfima, balbuciante, até desaparecer por completo na vertigem do sangue. Até o último pensamento — Dunia — rebentou como espuma contra um rochedo, quando as mãos de Marianka encontraram a sua virilidade.

— Assim é que a vida tem sentido... — sussurrou ela junto ao seu pescoço.

Então ela lhe mordeu o ombro, rebolou-se sobre ele, e tornou-se a onda que inundava todas as coisas...

 

O primeiro transporte de carne para o Campo das mulheres depois do aparecimento do repulsivo, misterioso e certamente perigoso anão Godunov obrigou o gordo Jevronek a efetuar algumas modificações. A carne de ”perdas”, roubada aos prisioneiros que tanto precisavam dela para viver, em vez de acabar no fundo do caminhão foi dar na cozinha, provocando ali um grande espanto. O capataz da cozinha pendurou-se imediatamente no telefone chamando seu colega Jevronek.

— Camarada, pense no que provocou! Estou obrigado a fazer a contabilidade, malditos sejam os céus! O que vai parecer se de um dia para o outro surgirem dezessete quilos de carne a mais? E não temos novas baixas no Campo, só altas. Ah, você contou junto os mortos, vão dizer os controladores. O velho truque: a gente carrega consigo uma boa lista de altas, e embolsa porções duplas. Comigo não, Jevronek, comigo não. Sou um sujeito honesto, um bom comunista...

Jevronek desligou com a cara torcida, e limpou o grande rosto achatado.

— Um conversador, esse cozinheiro — disse ele. — Pode ser que saiba mexer a kascha com uma colher de pau, mas não sabe fazer contas. Cada macaco no seu galho. Se aqui constar um número, temos de ser exatos e manter esse número. Pode confirmar isso, Marko Borissovitch, não pode?

— Um problema são as perdas naturais — disse Marko inocentemente. O coração de Jevronek bateu em falso. Ele empalideceu e encostou-se na parede. Aí estava a armadilha! O anão jogou a palavra ”perdas” tão indiferentemente pelo ar, uma palavra na qual centenas de capatazes haviam tropeçado. Agora esse laço cai no meu pescoço; Mãe de Deus, não permita que esse anão me estrangule.

— Pois é um problema esse negócio das perdas — respondeu jevronek amassando as palavras no céu da boca. — Tentamos evitá-las.

— E conseguem?

— Nem sempre. Acontecem algumas coisas misteriosas, camarada. Os quartos de boi e porco diminuem quando ficam pendurados nos ganchos. É difícil de acreditar como o sangue pesa, e quem não acreditar que entre no matadouro, veja por si mesmo como a carne encolhe quando o sangue vai pingando. A gente fica sem poder fazer nada. Mas depois as contas têm de estar certas, e quem pode explicar ao funcionário de Moscou, cuja mulherzinha compra satisfeita o seu peso de carne na esquina, no açougueiro Rollakov, que os 200 gramas de lombo que ele devora há dois dias eram 210 gramas... ele nunca acreditará. Perdas, isso é um caso de bruxas.

Marko assentiu várias vezes com a cabeça diante dessa preleção. Quando Jevronek perdeu a respiração e o jorro de palavras cessou, Marko disse com uma reserva aniquiladora:

— Entendi o camarada. E nesse fenómeno não sobrará um quilo para mim?

Jevronek fitou o anão, sem poder falar de espanto, pegou o telefone da mesa e discou a cozinha do campo.

— De volta com os dezessete quilos! — berrou sem dar explicações. — Eles são daqui! Em dez minutos devem estar diante de mim! — Respirando pesadamente, desligou, baixou a cabeça, apertou o queixo poderoso contra a garganta, e tentou sorrir com a timidez de um menino. — Falou em dois quilos, camarada Marko?

— Sim, você ouviu bem, Jevronek. Às vezes, pronuncio mal as palavras...

Daquele dia em diante as relações de Marko e Jevronek se modificaram. Ainda que fosse um espião, coisa de que o capataz continuava a suspeitar, era um espião de bom coração. E o que pode suceder melhor a um russo do que um controlador que é cúmplice? Só aí a vida começa a ser suportável e de certo modo livre...

O transporte para o Campo das mulheres partiu. Três caminhões, cada um com um motorista e três acompanhantes. Quinze quilos de carne desapareceram debaixo do assento do motorista Boris Issarovitch Lupikov. Olhou para Marko por baixo das sobrancelhas hirsutas, depois que Jevronek lhe sussurrou algumas palavras ao ouvido.

— Devo perder esse inseto no meio do caminho? — perguntou.

— Pelo amor de Deus, não! Ele é uma personalidade importante. Tem três olhos, vê tudo, mas fecha quatro olhos em compensação. Uma pessoa assim não se pode perder. Enquanto ele for nosso amigo não prejudicará o nosso trabalho. Diga ele o que disser, concorde sempre. E se fizer perguntas, pense bem em cada resposta.

— Vou colar a minha língua. Quanto você recebe hoje?

— Cinqüenta rublos.

— Isso é uma vergonha, Jevronek.

— Nesses cinqüenta rublos está grudado um litro de suor, horas de susto e medo, rouquidão de tanto falar... você não pode entender, Boris Issarovitch. Quando se pensa no que- os juizes dirão quando nos tiverem à sua frente...

O escuro Lupikov pagou, guardou o saco e subiu mal-humorado para a sua boleia. Os prisioneiros começaram a carregar o caminhão. Transportaram metades de porco e quartos de boi nas costas até o carro, e um chefe corria ao lado deles cuidando para que não mordessem pedaços de carne e a devorassem crua mesmo.

Montanhas de carne! Três caminhões cheios.

Marko ficou parado entre os caminhões, contemplando aquele jogo cruel. Estava condenado a apenas olhar, ele próprio tinha na sacola de pão dois quilos da melhor carne, um para Igor, outro para Dunia, quando se encontrasse com ela. Agora se tornara cúmplice, roubava carne daquelas miseráveis figuras, roubava-lhes o direito de comerem e de assim poderem viver. Só dois quilos... mas eles representavam para vinte pessoas, durante um dia inteiro, uma sensação de saciedade.

Marko engoliu, pensou no seu Igorenka, e suportou aquele peso na consciência. Contemplou um dos carregadores que levava pela quarta vez um enorme pedaço de boi, cambaleando ao peso, com olhos vidrados e pernas bambas. Estava chorando ao jogar o pedaço de carne fria no caminhão, contemplando-o enquanto era puxado para dentro e colocado na pilha. Os caminhões eram forrados de lata, o sangue corria pelo chão, pingando na neve. E o velho — Marko calculou que tinha quase setenta anos — olhou em torno rapidamente, o chefe estava afastado, a oportunidade era favorável. O velho na sua fofaika rasgada, cem vezes remendada, abaixou-se, apanhou o sangue na mão em concha, bebeu-o, precipitou-se então sobre o chão de lata do carro lambeu o sangue que havia ali. Depois voltou-se num arranco, com os olhos brilhando de prazer. O corpo magro endireitou-se como se lhe tivessem enfiado um pau nas costas, piscou os olhos para Marko que baixara os olhos constrangido, e correu de volta para a barraca da carne.

No sexto pedaço de boi, Marko segurou o velho.

— Morda — disse depressa, quando o kapo ficou de costas.

Vamos, não me olhe assim... morda a carne, arranque um pedaço e esconda-o na bochecha. Meu Deus, não seja tão idiota...

O velho virou a cabeça, meteu os dentes na carne e mordeu um pedaço. Não era muito, os dentes estavam desabituados a morder, e não se imagina como é difícil arrancar um pedaço de carne crua com os dentes, de um bloco maciço. Mas era suficiente para inchar a bochecha esquerda. Um naco de vida.

— Deus o abençoe — balbuciou o velho, lágrimas correndo dos olhos. — Ainda há seres humanos na Rússia.

Depois, tropeçou adiante, descarregou seu quarto de boi no caminhão número dois, e ao correr de volta mastigou o pedaço de carne. Estava tão contente que quase saltitava.

Pensativo, Jevronek seguiu os três caminhões com o olhar, enquanto rolavam devagar estrada abaixo, deixando o Campo através do grande portão. Eu devia avisar o colega do Campo de mulheres, pensou. Ele também é um pobre coitado que tem problemas com as perdas. Mas para ele é ainda mais duro. A carne que recebe foi pesada por nós já com desconto, e se continuar encolhendo lá, precisará ser muito inventivo com suas explicações. Sabe Deus o que aquele nojento anão vai fazer com ele!

Assim sucedeu que Marko já não era um desconhecido quando entraram ruidosamente no Campo das mulheres. O Campo em si lhes era fechado, apenas adivinhavam atrás das altas paliçadas de madeira que ali viviam algumas centenas de mulheres. Todos os serviços, incluindo cozinha, oficinas, depósitos e padaria, nos quais se ocupavam homens, ficavam fora desse Campo. Isso era bem sensato, pois imagine-se como reagiriam quase mil mulheres se de repente houvesse homens perambulando entre elas.

Os únicos homens que havia no Campo já tinham trabalho bastante. O comandante, os guardas, os médicos... onde apareciam, eram assaltados pela feminilidade. Defendiam-se através da brutalidade. Com pequenos chicotes batiam em torno de si e seguidamente lhes parecia que estavam condenados a domesticar um rebanho de animais ferozes.

Tudo aquilo quase não acontecia, ou só de raro em raro. Em geral, as mulheres corriam por ali de costas encurvadas, no verão com longos blusões descoloridos, no inverno acolchoadas nos seus vestidos de algodão, com botas cheias de palha. A fome e o desespero as oprimiam, mas a natureza dentro delas continuava viva, subterrânea, invencível, aparecendo nas conversas do catre a catre, na auto-satisfação entre gemidos, nos ardentes abraços mútuos.

As longas noites de inverno tornavam-se infernos de desejo, O amor aprisionado agigantava-se. Assim, há anos circulavam ali membros masculinos artificiais, artisticamente esculpidos em lisa madeira de freixo. Obras admiráveis de exatidão anatómica, trabalhadas com amor exasperado até o mínimo detalhe. Eram alugados por altos preços. Seguidamente as mulheres economizavam semanas a fio o seu açúcar, sal, batatas, pão, milho, farinha e peixe salgado, para poderem pagar por uma noite. Uma noite de coxas abertas, em que se podia sonhar que aquela magnifica dureza no ventre era Igor, Domia, Sergei ou Oleg.

Sejamos honestos... era sábio conservar os homens afastados daquele Campo. Marko ficou infeliz com aquela situação. Ao chegar vira a construção de pedra do hospital — mas entre eles ficavam a parede de madeira, arame farpado, a faixa da morte, as metralhadoras nas torres de vigia, as instalações de alarma. Em compensação o chefe do depósito, que era responsável pela compra de carne, o saudou como a um velho amigo. O aviso de Jevronek o deixara animado.

— Eu sou Vassolio Konstantinovitch Skopeljeff, camarada! — exclamou quando Marko desceu do caminhão. — Pare, fique em cima, o senhor está machucado, camarada! Vou ajudá-lo. Não faça esforços. Vou colocá-lo no chão. — E realmente Skopeljeff pôs mãos à obra, agarrou Marko e carregou-o alguns passos na neve antes de depositá-lo no chão.

— Jevronek telefonou, não foi? — perguntou Marko. Skopeljeff confirmou, pois assim não se cumprimenta a um desconhecido. Ao contrário, são sempre prisioneiros que vêm com os caminhões para descarregá-los, e a esses se dá um pontapé no traseiro, quando se percebe que estão por ali. — Que foi que ele disse?

Aquilo era o tipo da pergunta que todos odiavam. Que se podia responder? O que o outro queria ouvir em resposta? De modo algum a verdade, pois ela é o mais insuportável de tudo. Skopeljeff fez o que faria qualquer outro em seu lugar. Primeiro, sorriu. Depois piscou os olhos, olhou para todos os lados e perguntou por sua vez:

— Eu tenho aqui uma pombinha loura. Está trabalhando no registro, está bem alimentada e bem cuidada. Vinte e quatro anos. camarada Godunov. Eu lhe prometi uma galinha. Se quiser dar uma olhada na doce Jevsja...

Marko pensou na situação. Além da utilidade de aceitar a oferta de Skopeljeff, o que certamente teria sido bem divertido e ajudaria a sua circulação, com isso não entraria nem um pouquinho mais no Campo. O tempo voaria nos suores do amor, ele voltaria vazio e com as costas doloridas ao caminhão, carregando tudo de volta ao Campo principal: carne, carta de Igor no curativo, a ponte do amor e da esperança.

Skopeljeff assustou-se quando de repente Marko se retorceu todo, cambaleou contra a parede da barraca, apertando o braço ferido e gemendo horrivelmente, com os olhos revirados.

— Que foi, camarada? — gaguejou Skopeljeff e saltou para amparar Marko. Este teve um estertor, apertou com a mão sadia o braço amarrado, e bateu os dentes como uma cegonha diante de uma rã.

— Minha mão — gemeu Marko. — Ó Deus, minha mão. Arde e lateja, está-se desmanchando toda. Com certeza está se desmanchando. Eu sempre disse... é uma septicemia! E agora vou morrer... ó Deus, ó todos os santos, a mão vai cair do pulso...

Skopeljeff descabelava-se, pensou nos relatórios e interrogatórios, se um sujeito tão importante morresse nos seus braços.

— Que foi que disse o médico que lhe amarrou o braço, camarada? — gaguejou Skopeljeff. Abraçava Marko como a uma criança, segurando-o enquanto este gemia baixinho.

— O médico! Um idiota! Especialista para barrigas e tripas... mas de mãos não entende nada! Hoje só há especialistas, é isso que acontece. Antigamente um médico sabia: quando a bunda arde, é porque se andou a cavalo demais... hoje tem de se mostrar a bunda ao dermatologista! Camarada Skopeljeff, eu lhe pergunto: se alguém passa a vida remexendo em barrigas, pode entender alguma coisa sobre mãos? Eu estive com o Dr. Pjetkin, ele olhou minha mão, amarrou um pano com pomada e fez este curativo. Isso é tratamento, hein? Não, não... está tudo acabado. Vou morrer. Septicemia... sabe o que é isso?

Skopeljeff ouvira falar nisso vagamente, e foi dominado por um terrível medo. Agarrou Marko, arrastou-o até o portão principal, berrou com o guarda, ordenou que viessem dois soldados da guarda, e que estes carregassem o anão para o Campo das mulheres e para o hospital. Nos últimos metros, Marko recomeçou a gemer, como se estivesse enfiado num espeto, mas debaixo das pálpebras semicerradas contemplava o ambiente com muita atenção e esperava o encontro com Dunia.

No hospital do Campo das mulheres, fazia-se, exatamente naquele momento, o grande exame matinal, a seleção dos casos de doença. Todos os médicos estavam ocupados... até o médico-chefe Dobronin, pois Dunia Dimitrovna lhe dera uma pilha de radiografias e pedira uma opinião. Aquilo era novidade... até então ninguém se interessara em tirar radiografias das prisioneiras, e agora aparecia essa magnífica loura maluca, com manias clínicas. Dobronin pegou as radiografias, sentou-se diante da luz e admirou-se até de ainda saber interpretar aquelas fotografias.

Assim estavam as coisas quando Skopeljeff e os dois soldados da guarda levaram Marko gemendo para o hospital. Dunia trabalhava na OP II, fazendo curativos. Em geral, furúnculos operados, queimaduras ou acidentes de trabalho. Skopeljeff entrou impetuosamente na sala, sacudiu os braços, quando Dunia quis gritar com ele, e disse muito excitado:

— Camarada doutora, uma emergência! Um homem importante do transporte de carne diz que está atacado de septicemia. Foi tratado no Campo dos homens, mas deve haver um médico idiota por lá, um tal de Dr. Pjetkin... só entende de tripas, mas aqui se trata de corte na mão...

Dunia ouviu o nome de Pjetkin e ficou preparada para tudo. E quando os soldados trouxeram Marko, ela sentiu que sobre Vorkuta se abria um céu azul.

Curvou-se sobre o anão, olhou rapidamente no seu rosto, e disse muito séria:

— Realmente, ele está em estado crítico. Imediatamente na mesa ao lado! E saiam todos, pois no momento isso é muito contagioso!

Skopeljeff saltou para trás e saiu correndo da sala. Os soldados seguiram-no. Contágio, infecção!

Skopeljeff continuou correndo, precipitou-se para o telefone na sua barraca e chamou o matadouro central. Jevronek atendeu logo... estava vigiando junto ao telefone, pois alguma coisa deveria acontecer com Godunov no Campo das mulheres, adivinhava isso. Aquele anão sempre preparava surpresa.

— Nós o levamos para o hospital — berrou Skopeljeff quando ouviu o baixo profundo de Jevronek. — Uma septicemia! E você me manda um troço desses! Quer que eu morra também? Já estou tonto, minha cabeça arde como uma maçã assada, minhas pernas estão tremendo...

— Nada de nervosismo, irmãozinho — disse Jevronek, rindo com estrondo. — Você vai ver. Dentro de duas horas, o camarada Godunov vai estar sentado no caminhão, com curativo novo, passando muito bem. Sua natureza é tão inumana quanto a sua aparência. Nem o diabo ganha dele! Então que foi que ele disse?

— Parece bem informado. — Skopeljeff respirou aliviado. A despreocupação de Jevronek o contagiara. — Ele fala de um jeito tão culto que tenho de me esforçar para compreendê-lo. É preciso tratá-lo bem.

— Não foi isso que eu disse? Dê-lhe um casaco de pêlos e um gorro forrado aí do depósito, isso o deixará de bom humor. Enquanto ele estiver em Vorkuta, temos de rir cada vez que ele arrota.

— Pode ser que ele morra mesmo dessa maldita septicemia — disse Skopeljeff amavelmente. — A médica daqui fez uma cara bem desesperada e pareceu não saber o que fazer com ele. Espero que não me tenha contagiado. Vou tomar imediatamente um banho bem quente e tirar os micróbios suando bastante.

E foi o que Skopeljeff fez. Sentou-se na banja, deixou-se aquecer bem, tirou da administração a moça Ljuba, de vinte anos, que lhe esfregou o corpo, o acompanhou à sauna, despejou tanta água nas pedras ardentes que as nuvens de vapor subiram enormes, e Skopeljeff, ofegante, suava em regatos. Depois disso deitou-se na cama, Ljuba o massageou, excitou-o com suas mãos e com seu corpo, e quando ele caiu para trás, exausto, depois desse último esforço, sentindo-se flutuar entre as nuvens, fizera todo o possível para expulsar os bacilos do seu corpo.

Na sala de curativos para infecções, que Dunia introduzira ali tão energicamente quanto Pjetkin o fizera no Campo dos homens, Marko deitou-se na mesa revirando os olhos até ficar sozinho com Dunia. Depois sentou-se e olhou-a radiante como um pai que reencontra o filho depois de longa separação.

— Aqui estamos nós de novo — disse depois que Dunia lhe dera um beijo. — Eu não disse sempre que para Marko não há portas cerradas?

— E como vai Igorenka? O que está fazendo? Como está sua aparência? — Ela abraçava Marko, a voz lhe falhava. De repente começou a chorar e encostou-se ao ombro do anão, soluçando alto. Todo o tormento acumulado naquelas semanas despejava-se dela como uma onda por um dique estourado.

Marko ficou sentado quieto na mesa de operações, abraçara também Dunia e deixou-a chorar. Só ao ver que os soluços não pareciam parar mais, ele lhe acariciou os cabelos dizendo:

— É um luxo, filhinha, perder o melhor do tempo chorando. Preciso voltar dentro de uma hora. Até lá temos muito a contar, e minha mão também tem de ser tratada.

Dunia acenou a cabeça. Jogou-a para trás, limpou as lágrimas com as costas da mão e respirou fundo.

— O que está acontecendo com Igor?

— Ele vai bem. Dentro do possível, naturalmente. Não passa necessidade alguma, está botando o hospital de pernas para o ar.

Já conhecemos isso, está conquistando mais inimigos que amigos, mas que diferença faz? Ele lhe escreveu uma carta, filhinha... abra depressa o curativo. Tenho uma septicemia lá dentro.

Deu uma risadinha, estendeu a mão e Dunia afastou as ataduras com os dedos trémulos. Encontrou o celulóide e leu as poucas palavras escritas com iodo.

— Que notícias... — balbuciou. — Ó Deus, se não fosse você, Marko Borissovitch.

Dobrou o celulóide, meteu-o debaixo do uniforme, sentou-se numa mesinha. Num pedaço de papel escreveu para Igor, e eram as mesmas antiqüíssimas palavras, velhas como a própria humanidade.

”Eu amo você — não me esqueça — espere por mim — seja forte — um dia vamo-nos encontrar de novo.” Depois contou em breves palavras o seu dia-a-dia, como morava, como trabalhava, quem estava com ela. Mas as frases se interrompiam sempre e então ela escrevia só três palavras, monótonas mas cheias de música: ”eu o amo, o amo, o amo...”

Enrolou a carta na mão de Marko, e pôs ao redor um novo curativo.

— Quando volta de novo?

— Daqui a dois dias. A cada transporte de carne eu virei junto. Você precisa avisar a guarda de que devo voltar a vê-la para mais tratamentos, pois não posso desmaiar sempre no pescoço daquele nojento Skopeljeff.

Por mais um quarto de hora, Marko falou do Campo dos homens e de Igor. Depois, estava na hora, um soldado entrou no hospital para ver o camarada Godunov.

— Tratem bem dele — disse Dunia ao soldado. — O camarada precisa ser poupado. Eu lhe dei três injeções. Por enquanto está fora de perigo.

 

O plano de Godunov correu otimamente.

Jevronek ficava contente quando Marko saía sacolejando nos caminhões com o transporte de carne, Skopeljeff suportava o castigo de Deus com humilhação e secreto ranger de dentes, a ferida -na mão se tornara um problema com o qual se ocupavam dois médicos, o Dr. Pjetkin no Campo dos homens e a Dra. Sadojeva no das mulheres, e como ninguém se atrevia a duvidar de ordens médicas, pois todos um dia podem precisar de médico, Marko andava indiferente e seguro entre Dunia e Igor. Era a ponte da sua felicidade, sua força, sua confiança, sua última esperança.

Em pouco puderam dispensar o esconderijo na mão para a sua correspondência... Ninguém controlava Marko. Ele se tornara um arranjo firme ao qual os guardas dos dois Campos se acostumaram.

Também a distribuição de carne de Marko funcionava de modo excelente. Meio quilo para Dunia, meio quilo para Igor, de dois em dois dias... Com isso, já se pode até engordar. Os problemas eram apenas como assar ou cozinhar a carne sem que os outros notassem ou cem pessoas ficassem postadas junto à janela com água na boca.

Também para isso, Marko achou uma solução tão simples quanto imaginosa. Picou a carne com uma machadinha, misturou-lhe cebolas, sal, pimenta e uma gotinha de azeite, para ser comida como um bife tártaro.

As cartas que levava eram comoventes, resumidas ao mais essencial, o amor. Quando Igor e Dunia conversavam por intermédio de Marko, não mais existiam o inferno de Vorkuta, as tempestades de neve, a luta diária contra a sujeira, a indiferença, a desumanidade, a doença e a morte inútil.

Dunia escrevia:

”Igoruschka, eu o amo, sinto a sua proximidade e lhe abro os braços. Está em mim e ficará em mim, crescemos juntos e somos um corpo, um sangue, uma vida...”

E Pjetkin escrevia:

”Dunia, meu anjo, meu desejo, minha vida inteira... Marko me conta que está bem. Como as pessoas são tolas... queriam nos separar e só nos aproximaram ainda mais. Tenho força para esperar, toda essa maravilhosa força que o seu amor me dá. O infinito é pequeno diante do meu amor...”

Mal tinham lido as cartas, queimavam os papéis. Mas com isso elas não ficavam esquecidas... pois eles decoravam cada palavra, repetiam-nas em silêncio, rezavam com elas antes de adormecer na escuridão.

Ninguém o percebia, nem mesmo a Dussova, que todas as noites se deitava na cama de Pjetkin, com sua nudez plena, perfumada, sensual, uma montanha de luxúria, que se satisfazia quando ele apenas a acariciava, beijava, ou permitia que ela se apertasse ao seu corpo e adormecesse nesse abraço como uma criança feliz. Às vezes também faziam amor, o que para Pjetkin não era uma traição a Dunia mas apenas a aceitação de uma tempestade que o assaltava. A Dussova então se tornava um animal feroz que o mordia com força, que sufocava nos travesseiros apertados contra a boca os gritos ardentes, e queimava dos dedos dos pés até os cabelos esvoaçantes e negros. Aquelas eram as horas que Pjetkin temia... nelas se tornava um homem arrebatado pela violência do corpo magnífico de Marianka. Quem uma vez agarrasse aqueles seios, quem entrasse naquele ventre chamejante, submergia num vulcão. Depois, ficavam deitados ali, como lava expelida, vazios e fracos, fumando um cigarro e bebendo conhaque que a Dussova recebia de seu tio de Moscou.

E então aconteceu — quatro semanas depois da primeira carta para Dunia — que Marianka indagou:

— Você teve alguma notícia dessa tal Dunia Dimitrovna, Igorenka?

Pjetkin fitou a fumaça do seu cigarro. Sentiu como provocação aquela pergunta sobre Dunia.

— Não — respondeu. — Nem uma palavra. Isso me deixa doente...

— E também não vai mais ouvir falar nela. Foi transferida. — Marianka deu uma risada. — Transferida para Omsk... Lá vão deixá-la apodrecer...

Pjetkin acenou a cabeça tristemente. Suspirou e achou que parecia muito natural e pesaroso. No fogão estavam as cinzas da última carta de Dunia, que Marko trouxera seis horas antes do Campo das mulheres.

Pjetkin disse com voz trémula:

— Que diferença faz, Marianka? Em Qinsk ou Jakutsk, Odessa ou Vladivostok? Podem mandar Dunia através do mundo... ela sempre estará comigo. Quando à noite olhamos o céu, nós nos encontramos nas estrelas. Esse lugar ninguém pode roubar de nós...

— Pode sim, pode! — gritou a Dussova. Agarrou a cabeça de Igor, ergueu a, e forçou-o a olhar para ela. Os olhos fuzilavam, um esplêndido rosto cheio de violência. — O que é que você está vendo? Existe uma estrela aqui? Onde a encontrará agora? Nos meus olhos? Diga o que está vendo...

— Destruição...

Ela gemeu alto, puxou os cabelos de Pjetkin, apertou-lhe a cabeça entre os seios perfumados, beijou-o até que lhe faltasse a respiração, mordeu seu corpo imóvel, com pequenos gritos, do pescoço aos dedos dos pés. Então repentinamente ergueu-se de um salto, jogou o manto de seda chinesa nos ombros, e fugiu do quarto.

 

Pouco antes da festa de ”Papai Frio” com que os russos terminam o ano, apareceu um fotógrafo no Campo das mulheres. Todos se admiraram, mas era verdade: ele tinha uma licença de Moscou, da administração central dos campos de prisioneiros, e podia fazer retratos de ”pessoas escolhidas”.

Aquilo era mais uma chicana de Moscou, que deixava furiosos os diretores dos campos. Eles gemiam, praguejavam, desejavam poder mandar o fotógrafo trabalhar nas pedreiras.

Então na administração em Moscou existe um certo funcionário, cansado de tanto ficar sentado, olhos úmidos de tédio, e apenas porque tem de fazer alguma coisa em troca dos rublos que recebe, imagina alguma coisa, qualquer coisa, como esse negócio de fotografias, e esfrega as mãos diante dessa ideia. Nem reflete que com essas fotos cria documentos que um dia podem ser usados contra o Estado. Documentos da miséria da qual até ali poucos sabiam, sobre a qual não se fala, que se abafa no silêncio, se desmente, se denomina de revanchismo. Mas não, não se pensa nisso.

O ”escolhidas” é que era a chicana. Também o médico-chefe Dobronin, que refletiu por duas horas com o administrador do Campo, chegou à conclusão: primeiro, os meus médicos são pessoas escolhidas. Depois os camaradas oficiais, os capatazes, depois as camaradas ”comandadas”, entre as quais estava também Vera Sachonova, a chefe da lavanderia, por fim os prisioneiros eminentes, como a professora de matemática de Kiev, a bióloga de Novgorod, a cientista atómica de Ulan Ude, e três escritoras a quem se dera a escolha: ou se faziam de loucas e iam para um hospício, ou escolhiam Vorkuta. As três se decidiram por Vorkuta.

O fotógrafo não dava a mínima importância às discussões internas da direção do Campo. Armou o seu aparelho no saguão do depósito. Skopeljeff andava ao seu redor, como um cão ronda uma cadela, mandou vir uma cadeira, e sacudiu a cabeça quando o fotógrafo estendeu uma tela branca na parede.

— Um fundo decente é importante — disse o homem de Moscou. — O seu depósito, camarada, é um chiqueiro. O meu sentimento estético se revolta.

Skopeljeff engoliu a resposta, alegrou-se por ter comido feijões, soltou um sonoro vento e deixou o lugar.

O médico-chefe Dobronin mandou primeiro o médico Wyntok indagar da situação. Nikolai Michailovitch rodeou o fotógrafo, contemplou o aparelho, e postou-se diante da tela.

— Pode começar, camarada — disse. — Sou o Dr. Wyntok. Ninguém se interessa pela minha cara. Ela também nunca foi importante. A parte mais fotogênica do meu corpo é o baixoventre. Espero que tenha uma chapa de tamanho suficiente. E quero pelo menos cinqüenta reproduções. Vou distribuir fotos como condecorações...

Deu um riso retumbante, mas não foi ao ponto de deixar cair as calças. O fotógrafo não se dignou dispensar-lhe um só olhar, apagou de novo o refletor e ficou olhando o teto. O Dr. Wyntok deixou aquele atelier improvisado e relatou ao chefe Dobronin:

— É um sujeitinho sem senso de humor. No resto, tudo em ordem. Um profissional, bem aparelhado... mais uma piada de Moscou. Vamos participar. Ele quer cinqüenta copeques por uma foto... isso é um roubo, mas o sujeito sabe o seu valor como raridade...

Meia hora depois, o fotógrafo tinha tanto trabalho que o suor lhe pingava no colarinho.

Primeiro, todos os médicos isolados, depois fotos de grupo dos homens, das mulheres, finalmente misturados, quando Wyntok pôs as mãos nos seios de Anna Stepanovna.

— Senão ninguém vai acreditar que sou eu! — exclamou ele.

O segundo grupo foi constituído pelos oficiais e suboficiais. Marcharam para o depósito como numa manobra, ficaram em posição de sentido diante da tela, fazendo uma cara séria ou sorridente. O fotógrafo — chamado Timbaski — esforçava-se por animar um pouco os soldados.

— Será que estou fotografando monumentos? Façam uma atitude natural, camaradas. Mais relaxados, mais relaxados... olhem só. Será que engoliram um cabo de vassoura? Sejam humanos

Aconteceu que exatamente naquele dia chegou ao Campo um transporte de carne vindo do Campo dos homens, e Skopeljeff, em cuja casa se realizava aquela grande sessão de fotografias, queria fazer algo de especialmente bom para Marko Borissovitch.

— Camarada, venha comigo! — exclamou quando o pequeno comboio de caminhões parara e começara a descarga. — Aconteceu algo completamente inexplicável... temos um fotógrafo no Campo. Com permissão do Ministério do Interior. Ele está tirando retratos de todos os que foram ”escolhidos”. Você está nessa categoria... depressa, depressa... antes que ele desmonte os seus aparelhos... tire uma fotografia, Marko Borissovitch.

— Para que as suas lentes estourem? — perguntou Marko. — Quem vai pagar o prejuízo?

Skopeljeff não sabia o que responder a essa piada, assim recorreu a um sorriso amarelo e sacudiu várias vezes a cabeça.

— Vamos experimentar, irmãozinho. Um fotógrafo está acostumado a muitas coisas.

Não se diga que ser fotógrafo é uma profissão fácil. Espiar pela lente, apertar o botãozinho, e clic... pronto o trabalho. Fotografar é antes de tudo uma profissão artística, depois é preciso ter nervos, pois o que aparece diante da câmara, meu Deus, às vezes dá vontade de chorar. Todos querem aparecer bonitos na foto, uma imagem ideal, uma carinha de anjo, mas na verdade quem é realmente bonito?

Quando Timbaski viu Marko chegar, suspirou fundo, pôs as duas mãos nos olhos e amaldiçoou sua profissão. Skopeljeff, contente de ter entregue o anão, despediu-se com algumas desculpas. A entrega da carne, camarada... isso é coisa que a gente tem de vigiar...

— Deseja um retrato, camarada? — perguntou Timbaski resignado. Apontou a cadeira diante da tela branca. — Sente-se, olhe para mim, com toda a naturalidade, relaxado, um sorriso... ó Deus... — Timbaski revirou os olhos e segurou o tripé. — Dá valor à naturalidade?

Marko sentou-se na cadeira, cruzou as pernas e juntou as mãos no colo. Os dois refletores destacavam impiedosamente cada ruga da sua feiúra. Timbaski procurou palavras delicadas, mas a voz lhe falhava.

— Camarada — disse, rouco — uma foto é mais do que um espelho... devo avisar que a semelhança absoluta não é uma ofensa da parte do fotógrafo...

— Poupe o seu filme, meu caro.

Marko acenou com a mão. Trémulo, Timbaski apagou o refletor.

— Quantas fotos recebe cada fotografado?

— Uma cópia. O papel para fotografias está racionado, camarada. As encomendas só chegam depois de meio ano.

— E se alguém pede duas cópias?

— Impossível.

— Uma perguntinha só: o que é mais raro: uma cópia de fotografia ou meio quilo de carne?

— A balança estaria equilibrada, irmãozinho.

Timbaski prestou atenção. Quem oferece carne tem mais. E um fotógrafo é um sujeito incorruptível — Mais dois rublozinhos.

— Um quilo de carne seria melhor.

— Pois então, um quilo, seu vigarista — disse Marko e saltou da cadeira. — Por duas fotos da doutora Dunia Dimitrovna. Não pergunte... você deseja aquela carne? Pois uma foto é para ela própria, a outra recebo eu. Tudo em silêncio, entende? Quando estarão prontas?

— Amanhã à tarde. — Timbaski fitava o anão, perturbado. Como a natureza pode se enganar, pensava. Aquela linda mocinha loura, e esse sapo está apaixonado por ela. Mas um quilo de boa carne basta para apagar tais pensamentos.

Marko ficou olhando sombriamente ao lado da câmara, mordendo o lábio inferior, e procurando uma saída. O transporte da carne só vinha ao Campo das mulheres de dois em dois dias, e não havia outra possibilidade para Marko.

— Depois de amanhã, a esta hora — disse.

— Estarei em Ust-Vorkuta, então. Sinto muito, camarada— Que diabo, você estará aqui para me dar a fotografia.

— Eu tenho um plano determinado. O Centro de Progresso Cultural me deu um roteiro preestabelecido, e tenho de cumpri-lo. Em cada lugar preciso mandar carimbar os meus papéis. Dois dias no Campo de mulheres de Vorkuta, nada mais.

— Você tem automóvel, camarada?

— O primeiro que fabricaram na Rússia — suspirou Timbaski.

— Pois então deixe o motor congelar aqui, camarada. — Marko sacudia a cabeça, ansioso. — É isso. Esta noite certamente vai cair neve. Ninguém vai querer que o senhor empurre o seu carro pelos montes de neve. Será que faz parte das obrigações de um fotógrafo morrer congelado? Então, está vendo? Depois de amanhã eu voltarei aqui trazendo-lhe um quilo e meio de carne. Em troca de uma foto em tamanho postal.

— Você pede muita coisa camarada. — Timbaski encostou a testa na máquina. — Mas um quilo e meio de carne também é muita coisa... O seu conselho é bom... meu carro vai-se congelar.

Satisfeito, Marko deixou o lugar. É preciso ser convincente, pensava orgulhoso. Esse é todo o segredo, também na política: dizer o impossível de modo a torná-lo crível e concretizável.

O céu veio em seu socorro.

Nevou por dois dias e duas noites, Vorkuta afogou-se na neve, a única estrada da cidadezinha aos Campos de prisioneiros só conservava transitável apenas em emergência, graças ao trabalho dos limpadores de neve, todos os indivíduos aptos no Campo ficavam em longas filas cinzentas enfiando as pás naquelas montanhas brancas, que caíam sem cessar, silenciosamente, do céu.

Timbaski não usou de truques para ficar no Campo das mulheres. Pediu ao comandante um papel do qual constava a impossibilidade de partir, que representaria uma tentativa de destruir os bens do povo.

No segundo dia, Marko reapareceu com o transporte de carne. Trazia no bolso uma carta para Dunia, e num saco um quilo e meio de carne. Jevronek não hesitara quando Godunov lhe pedira aquela grande porção. Veja só, pensara de si para si, os camaradas de Moscou também dão suas escorregadelas. Quem pensaria uma coisa dessas? Mas ele que fique por aqui... enquanto beliscar nos meus montes de carne, estou tão seguro quanto um filhote de canguru na bolsa.

Timbaski avaliou primeiro a carne, apertou-a, cheirou-a, e raspou um pouco com a faca.

— Não estou vendendo merda pintada de vermelho — disse Marko de mau humor. — Esse é o melhor pedaço do quarto traseiro.

— Excelente — disse Timbaski. — Hoje em dia, a gente tem de ser crítico. Há tanto logro, que um negócio normal quase parece pervertido. — Riu, pegou uma pasta e tirou o retrato aumentado de Dunia. — Um cartão-postal, um pouco encurvado pelo calor da secagem... Timbaski alisou-o contra a mesa. Marko olhava com ar sombrio.

— Se você estragar a foto... nem mesmo sua mãe o reconhecerá.

— Aí está! Uma obra-prima! Diga você mesmo, camarada... isso aí podia ser exposto num museu de arte contemporânea em Moscou. Que cabeça! Que jogo de sombras! Esses tons delicados. Um anjo!

Marko arrancou-lhe o retrato das mãos e olhou. Timbaski não exagerara. Dunia parecia mesmo um anjo. Os cabelos louros brilhavam à luz dos refletores, os olhos pareciam vivos, a boca atraía, a pele era luminosa como se tivesse uma luz interior. Dunia estava tão viva que Marko se assustou.

— Então? — Timbaski raspou de novo um pouco de carne e enfiou-a na boca. — Isso lhe tirou a fala, camarada! Como vai poder agüentar as suas noites? Dunia Dimitrovna pessoalmente me elogiou... ela também queria mais uma cópia, mas infelizmente não tinha carne para oferecer. Ataduras não iam matar a minha fome.

Aquele foi um dia em que o sol brilhava para Marko, ainda que a neve estivesse caindo. Apresentou-se novamente diante de Dunia. Com sua mão enfaixada, já era conhecido no hospital.

Dunia só apareceu depois de meia hora. Parecia cansada, no seu guarda-pó branco ainda havia respingos de sangue. Tinha estado operando.

— Marko... — disse, sentando-se exausta na mesa de operações. — Como vai Igorenka?

— De noite ele declama as palavras das cartas que você lhe manda.

Era mentira, mas como é que Marko poderia dizer: de duas em duas noites ele se deita com a Dussova? Dunia ainda não sabia que existia uma Marianka Dussova no Campo dos homens... As notícias que corriam de um campo para o outro por canais misteriosos tratavam de outras coisas. Além disso, eram notícias para os prisioneiros, não para médicos e guardas. Trocavam-se notícias pessoais, saudações, recém-chegados contavam dos conhecidos em outros campos, mulheres ficavam sabendo onde agora viviam seus maridos, e homens pela primeira vez em meses tinham notícias de suas mulheres, dos filhos, dos pais, da aldeia natal. Vorkuta ficava no fim do mundo, mas o mundo chegava gota a gota até ela.

— Tenho uma carta para ele — disse Dunia. Meteu a mão entre os seios, o melhor esconderijo excetuando o espaço entre as coxas, mas isso dificultaria o andar.

— Eu também tenho uma. — Marko entregou a carta de Igor, ela abriu o envelope, leu rapidamente e chorou de alegria.

— Fomos fotografadas — disse ela. — Infelizmente recebi só um retrato, eu queria dar um a Igor pelo Natal, mas o fotógrafo não cedeu. Não posso mandar a minha própria fotografia, pois Dobronin exige que cada um carregue a sua como identificação. Ofereci ao fotógrafo tudo o que poderia conseguir, mas ele é um sujeito malcriado e arrogante. Sabe o que ele me pediu?

— Um quilo e meio de carne — disse Marko.

— Sim! — Dunia ergueu a cabeça, os olhos azuis e molhados arregalados de espanto. — Mas como sabe disso?

Marko pôs a mão no bolso e tirou o cartão-postal.

— Está aqui, Duniuschka. Sempre há gente que pode conseguir um quilo e meio de carne. O diabo carregue esse vigarista maldito...

— Oh, Marko, Marko... — Dunia apertou o retrato,abraçou e beijou o anão. — Se existe um Deus no sétimo céu, você um dia haverá de estar aos seus pés.

Marko voltou ao Campo dos homens com outra carta, contendo uma fotografia.

”Agora estou com você...”, escrevera Dunia atrás do retrato, ”sempre, sempre estarei com você... Igorenka, não haverá mais separação.”

Era a primeira vez que Marko retinha uma carta. A correspondência de Pjetkin esperaria até o Natal... e faltavam ainda cinco dias.

 

Todos os anos, tudo se repetia: velas ardiam nas barracas, galhos de pinheiro enfeitados, os prisioneiros cantavam hinos religiosos.

Natal!

Os comandantes mudavam os guardas, a direção do Campo, os chefes, os capatazes... mas o inconcebível permanecia, e ultimamente era tolerado porque não havia poder que pudesse vencê-lo: o sentimento humano de viver ao menos um dia em paz. Era indiferente o lugar onde se estava, uma aldeia da Ucrânia, o gelado Ob, uma cabana das montanhas, os pântanos ou as margens do Don, uma mina de carvão ou a planura da estepe, ou ali em Vorkuta, o ponto de reunião das almas mortas — havia um dia que surgia das profundezas do ser e crescia até o céu como um milagre de paz interior: Natal.

Era espantoso o que se juntava num ano para enfeitar aquele dia. Papel de estanho, papel colorido de embrulho, restos de tinta com que se pintavam recortes, fitas coloridas, guirlandas de sacos de papel, trapos tingidos, palha trançada, girassóis secos... de cem esconderijos apareciam de repente aquelas preciosidades, os interiores despidos e malcheirosos das barracas se transformavam em salas de festa, nos olhos dos prisioneiros brilhava uma alegria perigosa, perigosa porque primeiro os chefes das barracas proibiam os enfeites, arrancavam as primeiras guirlandas, e sentiam, com as pernas fracas, que mesmo os seus amigos, os blatnys, os criminosos, ladrões, tarados sexuais e assassinos se sentavam ao redor dos ramos de pinheiro enfeitados com fitas, bolas de papel de estanho e algodão, e começavam a cantar. Mesmo os ssuki, os ”cadelas”, os homens de confiança do KGB, retraíam-se, mas anotavam os mais zelosos entre os que festejavam, anotavam tudo o que conseguiam ver.

Que adiantava? O Natal era mais forte do que o medo. Na noite santa, havia paz sobre o Campo, uma paz que dominava a todos. Só no Campo das mulheres a lavanderia continuava funcionando, com apenas metade do pessoal, mas a lixívia soltava seus vapores, as caldeiras borbulhavam. Um símbolo do poder.

Dunia e as outras médicas e médicos sentaram-se no cassino com os oficiais, tomando vinho da Criméia e vodca. Ninguém falava em Natal, aquela palavra estava morta... mas, seguindo aquele obscuro impulso invencível, haviam-se reunido, sentados pensativamente diante de seus copos. Dobronin chamava aquilo ”reunião social”, mas o único que não sentia uma íntima sensação festiva era o Dr. Wyntok. aquele homem cruel e desbragado. Em voz alta, contava anedotas picantes, de fundo obsceno, rindo mais do que os outros, e só ficou quieto quando Dobronin disse com ar sombrio:

— Nikolai Michailovitch, cale a boca. Você está nos respingando com essa sua masturbação espiritual...

Foi o jovem Dr. Kutjukov que pegou a balalaica e trouxe uma nostalgia palpável ao cassino e aos corações. Tocou canções populares havia muito esquecidas, e de repente todos sentiram o aroma dos campos lavrados, das flores de bétula, o perfume doce do trevo, o junco à beira do rio... viam os campos ondulantes de girassóis e milho, as florestas infindas da taiga, o mar de flores da estepe ao sol de junho, os telhados de junco das casas junto do Don, o nevoeiro violento das manhãs, quando o sol bebia o orvalho cintilante da relva da estepe, o marulho dos grandes rios siberianos e a solidão rochosa do Ural...

— Toque mais, Andron Fiodorovitch — disse Dobronin quando Kutjukov se debruçou sobre a balalaica, respirando pesadamente e parando de tocar. Ele lutava contra as lágrimas, pensando na sua mãe que agora se ajoelhava sozinha no ”canto sagrado”, fitando a lamparina perpétua e o ícone, rezando pelo filho distante. — Conhece a canção do Cavaleiro Solitário”!

— Sim. camarada.

— Pois então cante.

Kutjukov tocou as cordas. E cantou. Sua voz era juvenil e clara, como de um menino de coro, e entrava pelos corações, despertando de tal modo as lembranças que Dobronin esqueceu a sua pose e cobriu o rosto com as mãos.

Há quanto tempo acontecera, e o que ele se tornara enquanto isso?

Comandante de Vorkuta... Médico em Vorkuta... Administrador do Campo de Prisioneiros de Vorkuta...

Vorkuta!

Palavra que todos odiavam naquela noite, todos sem exceção... Até o Dr. Wyntok sentia-se miserável e embebedava-se.

Naquela noite, Dunia chegou de novo à janela do seu quarto e pensou em Pjetkin.

Igor lhe mandara um presente por Marko: um coração esculpido na casca rugosa de uma bétula. Ele mesmo o esculpira, desajeitado, com um escalpelo, com formato infeliz, um aborto de coração... mas para Dunia era a escultura mais bela do mundo, e se podia comparar com qualquer obra de arte. Igor escrevera: ”É casca de uma bétula. Você se lembra daquela noite em que estávamos deitados à beira do Amur, num grupo de bétulas, cheios de planos? Pois esse coração de bétula deve-lhe recordar isso... Lembranças, é a única coisa que agora lhe posso dar...”

Dunia ficou parada na escuridão, o pedaço de casca de bétula nas mãos, entregue aos pensamentos sobre Igor. Era uma entrega sem igual, um êxtase mudo e imóvel.

Foi Wyntok quem a perturbou. Inteiramente embriagado, passou cambaleando pela praça, deu duas voltas sobre si mesmo e ficou parado debaixo da janela de Dunia. Pareceu refletir, coçou o nariz de falcão e contemplou o depósito de madeira aberto.

Oscilando de um lado para o outro, tropeçou até a parede da casa, encostou-se exatamente debaixo da janela de Dunia, e fumou um cigarro. Ela ouvia o roçar das suas botas, o raspar do seu corpo na parede dupla de madeira. Pronta para lhe quebrar o crânio, Dunia ficou na escuridão, ao lado da janela.

Mas Wyntok mudou de ideia. Continuou seu caminho, cambaleando, até o hospital. Um súbito pé de vento o escondeu num turbilhão de neve. Quando este se desfez, não havia mais ninguém na praça vazia.

Natal.

Na lavanderia, as caldeiras sibilavam.

Marianka Dussova presenteara ricamente Igor. Um pijama de seda com listras douradas sobre fundo preto, um par de pantufas bordadas de Kasan e um relógio de ouro com pulseira de couro.

A distribuição dos presentes teve lugar no quarto dela, depois das visitas a todas as seções do hospital. Por toda parte em que Dussova fizera o seu controle, os homens respiravam aliviados, tirando os ramos enfeitados de seus esconderijos. Agora, ela não viria mais, finalmente aquele demónio negro os deixaria em paz. O Natal podia começar. Assim também os doentes tiveram a sua noite santa, deitados nas camas, sentados na beirada ou no peitoril das janelas. Para espanto geral um homem andou de quarto em quarto, apoiado em dois outros doentes, pois tinham-lhe amputado o pé esquerdo esmagado por uma pedra na pedreira. Esse homem magro, consumido, miserável e sem forças, com seu coto de perna, apareceu em cada porta, anunciando o nascimento de Cristo e abençoando a todos.

Um padre... na festa do amor ele se dava a conhecer.

A Dussova amontoara os presentes no seu quarto. Pjetkin não tinha nada para lhe dar. Ergueu as palmas das mãos vazias e disse amargamente:

— Isto é tudo que tenho para você, Marianka.

— Você está comigo... e todas as noites são sagradas para mim. Venha, Igoruschka, olhe os presentes. Venha cá! Mobilizei todos os meus conhecidos de Moscou para conseguir tudo isso.

Ela o puxou para junto da mesa enfeitada, comportando-se como uma meninazinha, animada e fora de si de alegria, estendeu-lhe o pijama, obrigou-o entre beijos a tirar os sapatos e experimentar as pantufas bordadas. Igor teve de colocar o relógio no pulso, dizer que funcionava bem, depois ela correu para a peça ao lado, uma espécie de quartinho de vestir, trouxe uma bandeja com carne fria, salada Demidov, batatas e cebolas e uma torta camponesa de milho, abriu uma garrafa de vinho e deixou-se cair, feliz, na poltrona de vime.

— Está contente, Igorenka? — perguntou, o rosto iluminado, opressivamente belo, no seu selvagem prazer feito de alegria e de amor. Ela estendeu as pernas à frente, e abriu os braços. Usava longas botas macias, em que enfiara as calças largas de seda azul-escura. Uma blusa vermelha e lustrosa cobria-lhe os seios. Os longos cabelos negros caíam por cima dela como um xale. Uma mulher feita de céu e fogo... quem não perdesse a respiração diante dela não era homem.

— Nem sei o que fazer diante de tantas surpresas.

— Venha cá. querido... beba, coma, pegue tudo... é tudo seu... Venha, beije-me!

Ela bateu as pernas, pendurou-se ao seu pescoço, puxou-o para junto de si, recebeu seus beijos como se fossem raios de fogo, embora na verdade fossem apenas carícias superficiais.

Pjetkin deixou o amor de Marianka jorrar sobre ele como uma cachoeira, mas enquanto ela o acarinhava e beijava, ele pensava em Marko e na sua resposta estereotipada: ”Não. Nenhuma carta de Dunia. Não pude encontrá-la. Estava operando.” E quando ele ficou furioso, Marko fez uma cara terrivelmente infeliz dizendo: ”Só fico durante uma hora no Campo das mulheres. Você acha que os motoristas vão esperar por mim? Devíamos dar-nos por felizes por termos inventado esse truque”.

Pjetkin dera-lhe razão, abraçando-o e dizendo: ”Estou nervoso, Marko, a inquietação me devora. Será possível que tenham transferido Dunia? Você precisa descobrir, senão meu coração não vai suportar.”

Agora era Natal, e Dunia continuava desaparecida por trás das paliçadas de madeira do Campo.

— Temos de ir ver o comandante — disse Pjetkin quando Marianka começou a despi-lo com dedos ágeis. Ele ergueu-se depressa, despiu o casaco do pijama, enfiou-se no grosso casaco acolchoado, que Marianka trocara pela fofaika demasiado fina, que ele recebera um dia no depósito de roupas. — Ele nos convidou, não devemos ofendê-lo.

— Para o diabo com todos! — gritou ela arrancando o manto de peles do gancho. — Quando vamos finalmente ficar sozinhos? — Tomou o resto do vinho, ergueu o copo sobre a cabeça e jogou-o contra a parede. — Este é o meu único desejo de Natal: que o mundo fosse feito só de nós dois!

A festa da sede do comando durou até tarde da noite. Marianka Jefimovna estava embriagada quando Pjetkin a levou ao quarto dela, cheia daquela alegre seriedade que torna a pessoa infantil.

— Tire a minha roupa — disse ela. — Beije-me e cubra-me. Meu queridinho... seu rosto parece uma nuvem fina... eu adoro as nuvens sobre rios e florestas...

Pjetkin despiu-a, cobriu-a, beijou-a e deixou seu quarto. Quando chegou ao seu próprio aposento, parou junto da porta como se tivesse topado com uma parede.

Sobre a mesa ardiam duas velas, e entre ambas Dunia lhe sorria.

Pjetkin emitiu um som abafado, como um urso apunhalado de morte. Precipitou-se para a mesa, caiu de joelhos, agarrou o retrato e apertou-o ao rosto.

— Duniuschka... — balbuciou — Duniuschka, você veio. Ó Deus, eu não resisto.

Cambaleou até a cama, caiu sobre ela, escondeu o retrato de Dunia debaixo do próprio corpo, e chorou como nunca chorara em toda a sua vida.

 

No dia seguinte, Marko Borissovitch apareceu trazendo a Pjetkin um suculento assado de Natal. Orgulhoso andou pelo hospital, pois o tenente Zablinsky lhe dera um casaco de peles e um par de botas de feltro. Marko retribuiu com duas grossas lingüiças.

Pjetkin recebeu-o com o olhar sombrio. Distraído, contemplou o estojinho achatado, de couro que Marko lhe trouxera, e que parecia uma moldura.

— Eu mesmo o costurei — disse Godunov. — Exatamente na medida de um cartão-postal. Você pode pendurá-lo ao pescoço com um barbante.

— Alguém está falando aqui no quarto? — Pjetkin olhou em volta como quem procura. — Ouvi uma voz por aí...

— Filhinho — disse Marko, triste. — Não fique zangado, porque eu menti antes do Natal. Mas queria fazer uma surpresa. Uma verdadeira festa...

— Quem foi que fotografou Dunia?

— Um fotógrafo ambulante. O retrato me custou um quilo e meio de carne. Ela não parece um anjo, a nossa Duniuschka? É médica-chefe no Campo das mulheres. Finalmente aquele idiota do Dobronin a colocou em seu devido lugar. Ela está dirigindo a seção cirúrgica, e você devia ver tudo o que ela faz! Delicada, mas de mãos fortes como um homem. Os outros médicos ficam parados ao redor dela admirando-a. Ela abre barrigas, peitos e rins. Dobronin senta-se todos os dias gemendo à sua mesa, reunindo listas de encomendas de Dunia: novos remédios, instrumentos cirúrgicos modernos, um novo aparelho de anestesia e de oxigênio, até um fibrilador. Contemple bem o retrato dela... a nossa Dunienka está cheia de força e de esperança.

Pjetkin tirou o retrato de debaixo do colchão. Era o único lugar em que estava seguro de Maríanka Dussova. Carregou-o até a janela como um ícone sagrado, e contemplou-o.

— Como os olhos dela parecem vivos... — disse em voz baixa. — Falam comigo.

Marko limpou as lágrimas.

— Nunca vi Dunia tão bonita como nesse retrato.

— Mas ela é mais bonita, muito mais bonita! Quando está feliz, seus olhos são pedaços do céu...

Pjetkin pegou na mesa o estojo de couro, enfiou nele o retrato, e, como Marko dissera, a moldura servia exatamente. Abriu a camisa, amarrou a bolsinha ao redor do pescoço, e apertou-a contra o peito nu. Depois abotoou novamente a camisa e vestiu por cima o uniforme de médico.

— Foi uma boa ideia, Marko. Nunca mais vou deixar Dunia sozinha.

— E quando esse demónio da Dussova tirar a sua roupa? — Marko olhou de esguelha para Pjetkin não se admirando com o constrangimento dele, que começou a andar pelo quarto. — Como estão as coisas com ela?

— Quando lhe dá vontade, ela vem até aqui e me violenta — disse Igor em tom abafado.

— E acredita que você a ama?

— Sim.

— E você tem poder sobre ela, não é? Ela se desmancha como cera derretida nas suas mãos.

— Ela faz como Dobronin. Exige da central de saúde tudo aquilo que eu peço. — Pjetkin teve um sorriso amarelo. — Já tenho um fibrilador e um novo aparelho de raios X. É quase um milagre. Nada de perguntas, nada de recusas, nada de adiamentos. Fazemos a encomenda, e no próximo transporte de material vêm os caixotes que pedimos.

No caminho de volta ao matadouro, aconteceu o que há muito era de se prever. Marko topou com a Dussova. Ela saiu correndo de uma sala de curativos, e ficou parada, como que atingida por um raio, quando viu o anão vindo contente pelo corredor.

— Eu bem que deveria ter imaginado — disse com sua voz de contralto, na qual se podia ouvir os rumores da taiga. — Onde está Igor também se encontra o seu cão de guarda.

A Dussova fitou Marko com olhos apertados, sinal de perigo. Ela tampouco perguntou pelo mais lógico: como é que você sabia que eu estou aqui em Vorkuta? Como entrou no Campo? Com que deslavadas mentiras consegue viver aqui, cheio de saúde e todo contente, entre as almas mortas? Não. Ela apenas retorceu os belos lábios cheios, dizendo:

— Se eu o encontrar mais uma vez, você será tratado como um inseto daninho. Fora daqui, nojento!

— Que loucos são os caminhos do amor — disse Marko passando por ela. E apressou-se a desaparecer. Ela é capaz de tudo, pensou, saindo em disparada. Aquele cérebro satânico está cheio de maldade. Tenho de falar com Jevronek, para o caso de que ela investigue a minha vida no Campo.

Pensativo, Marko Borissovitch passou pela grande praça da inspeção, dirigindo-se às barracas da administração. Não sabia que a Dussova o observava da janela da farmácia, cabeça baixa, testa enrugada, muito pensativa e mergulhada num medo crescente.

Ele não está aqui por acaso, isso ela sabia. Ele é o olho e o ouvido de Pjetkin, sua mão e sua fala. É o prolongamento do corpo de Pjetkin. Por mais altos que sejam os muros, através de Marko Igor se torna livre.

Dunia! Marko seria a ponte para o Campo das mulheres? Será que oscilava de um lado para o outro, como a abelha que leva o pólen de um lugar a outro?

Marianka Dussova bateu os punhos, jogou a cabeça para trás e passou pelo hospital com seus passos firmes. Quem a via de longe, desaparecia logo no primeiro quarto. Todos conheciam aqueles passos, o som das suas botas altas. Encontrar-se com ela era um golpe do destino.

Ela dirigiu-se à OP I, onde Pjetkin estava removendo um cálculo renal. Todas as cabeças se voltaram quando a porta bateu. Pjetkin ergueu a mão num gesto de quem repele.

— Você não está esterilizada, Marianka Jefimovna! — exclamou ele.

— Quantas vezes tenho de dizer que sempre estou esterilizada? — gritou ela em resposta. — Saia daí, Pjetkin, quero falar com você!

— Estou operando.

— Essa pedra idiota pode ser removida pelo Dr. Tarrasov. O Dr. Tarrasov, um jovem médico de Kiev, estremeceu e fitou Pjetkin, em busca de socorro. Nunca operara sozinho. O cálculo renal lhe dava medo. Os flancos abertos, o rim já cortado, as muitas pinças e ligaduras... sentia-se como um camponês diante de um computador.

— Tarrasov não pode fazer isso — disse Pjetkin com calma. — Em meia hora estarei à sua disposição, Marianka Jefimovna.

— Agora! — gritou ela, seu rosto ardia. — Que me interessa Tarrasov? Quero falar com você agora, Igor Antonovitch!

Pjetkin depôs a longa pinça curva com a qual pretendia retirar o cálculo do rim. À sua frente, curvada sobre a incisão aberta, estava a jovem médica Dra. Pladunevja. Uma moça feia, com curtos cabelos castanhos e boca muito grande. Mas tinha alma, e muitas vezes fitava Pjetkin em muda gratidão quando este mais uma vez salvava um ser humano.

— Continue, Vanda Nikolaievna — disse ele. — Você pode, sei disso. Coragem. Você vai conseguir...

Afastou-se da mesa, tirou o avental de borracha, enxugou o suor da testa, atirou as luvas de borracha num balde e passou pela Dussova, que tinha um olhar sombrio, saindo da sala de operações. A Dussova o seguiu, rilhando os dentes quando ele se dirigiu ao quarto dela e não aos seus próprios aposentos.

— Estou pronto, camarada médica-chefe — disse ele, formalizado, quando ficaram sozinhos no quarto. — Você dá as ordens aqui, mesmo se com isso uma vida humana correr perigo. Pode falar.

— Eu é que estou em perigo de vida! — gritou a Dussova, e seu corpo, que a natureza devia ter criado de um sonho, tremia. — Eu vi Marko!

Pjetkin sentiu uma calma gelada descer sobre o seu coração.

— Sim, ele está aqui — disse indiferente.

— Você nunca o mencionou.

— Por quê? Ele será tão importante assim?

— Ele traz notícias de Dunia...

— Mas como poderia? Dunia foi transferida para Omsk...

— Foi mesmo?

— Foi você quem disse. — Pjetkin teve um sorriso maldoso. — Ou acaso você mentiu, Marianka?

— Ela foi-se embora! Foi-se embora para o inferno! Igorenka... — Apoiou-se em Pjetkin com os braços em seu pescoço. A boca parecia um vulcão escancarado. — Vou matar a nós dois se você continuar pensando em Dunia. Vou ficar sabendo de tudo... não pense que pode guardar segredo. Eu sei ler nos seus olhos, ouvir na sua respiração, sentir nas carícias das suas mãos... Mas hei de cortar o perigo, simplesmente cortar como um fio podre — disse ela em voz baixa. — Vou destruir Marko Borissovitch... e você não o poderá impedir, meu querido traidor.

Ela saiu correndo do quarto, antes que Pjetkin pudesse responder. Com um gemido abafado, ele se precipitou atrás dela e seguiu-a rapidamente pelo corredor. O medo do que pudesse acontecer a Marko lhe cortava a respiração.

Não foi Marko quem teve de morder o pó, e sim o grande Dr. Wyntok, com seu nariz aquilino e sua paixão pelas mulheres. Certa manhã, ele apareceu morto numa poça de neve, o crânio esmagado, e não parecia mais desejável e sim sujo de sangue, com o rosto retorcido de dor. Quem o encontrou foi exatamente Skopeljeff... que soltou um grito agudo de horror, deu um salto no ar e saiu em disparada.

Duas horas mais tarde uma comissão especial começou a trabalhar.

Dobronin assumiu a tarefa de pesquisar a causa da morte de Wyntok. Depois de fotografarem o morto de todos os lados, o lugar foi isolado e o cadáver foi transportado para o hospital. Lá, todos os médicos se reuniram em torno dele, contemplando-lhe o rosto retorcido, sem sentirem qualquer compaixão.

— Vamos começar — disse Dobronin e atirou um avental de borracha para Dunia. Ela o apanhou e enfiou com o rosto rígido. Kutjukov amarrou-o por trás e ajudou-a a colocar as luvas.

— Dunia Dimitrovna, você tem os melhores nervos. Resistiu a Nikolai Michailovitch enquanto vivo... agora não terá medo dele na morte.

Dobronin lavou o crânio coberto de sangue seco, e o quadro apareceu claramente. O crânio fora golpeado como se um bloco de pedra caísse no meio da cabeça de Wyntok.

— Que golpe! — disse Dobronin horrorizado. — O assassino deve ter usado um cano de ferro.

— Um simples sarrafo de madeira. — Dunia tirou alguns pedaços dos cabelos do morto e ergueu-os. — Com o golpe, o sarrafo deve ter-se partido.

— Mas pode-se matar um sujeito como Wyntok com um sarrafo de madeira? — Dobronin contemplava os pedacinhos de pau como se fossem diamantes brutos. — Ele tinha um crânio normal. Não era uma casca de ovo que se partisse com uma colherinha.

— Mas se virar o sarrafo, batendo com a quina...

— É isso! — Dobronin sentou-se num tamborete ao lado da mesa de operações. — Dunia Dimitrovna, você tem um extraordinário conhecimento de como se mata uma pessoa.

— No Amur, quando no inverno os lobos saíam da taiga, nós matávamos as feras com sarrafos desses. Podíamos tê-los matado a tiros, mas a munição era demasiado preciosa. O que é bom para um lobo, basta também para um Wyntok...

— Louvai as mulheres, pois elas têm uma alma sensível... — disse Dobronin solenemente. — Sou filho da cidade, e só conheço lobos do zoológico. Mas que gente são vocês na Sibéria! Aí está o pobre Wyntok, com o cérebro escorrendo da cabeça, e uma delicada mocinha nos conta tranqüilamente como se podem matar lobos e homens.

Dobronin cobriu Wyntok com um lençol depois da autópsia, deixou-o deitado na mesa de operações, por mais que Dunia protestasse.

— Isso é errado! — exclamou ela. — Uma mesa de operações não é necrotério! Além disso, às dez horas vou precisar dela. Tenho uma operação de vesícula.

— Errado é matarem o nosso colega! — gritou Dobronin em resposta. — E as suas pedras de vesícula podem chocalhar na barriga por mais um dia! Você sabe acaso o que vai acontecer agora? A comissão especial de Perm chegará dentro de meia hora com um caçador de pista. Naturalmente Moscou foi avisada há muito tempo. Não vamos mais ter um minuto de sossego aqui. Ó céus... — Dobronin fitou Dunia. — Você não matou um médico em Irkutsk, com um sarrafo?

— Com uma garrafa, camarada. E ele ainda está vivo.

— Por acaso. Está paralítico. — Dobronin fungou audivelmente. — Garrafa ou sarrafo... aqui há paralelos. Dunia Dimitrovna, acaso Wyntok tentou aproximar-se demais de você esta manhã?

— Não.

— Onde estava quando ele foi morto?

— Na banja.

— Meu Deus! Wyntok foi achado a trinta metros da banja!

— Puro acaso.

— Explique isso à comissão especial de Perm!

— Não há o que explicar. Anna Stepanovna estava comigo na banja.

— Exato. — A robusta médica com cara de camponesa saiu do círculo de aventais brancos. — Estávamos lado a lado nas tinas. Entramos juntas e saímos juntas de lá.

— E não viram Wyntok deitado na neve?

— O caminho para o hospital fica do outro lado, camarada. Dobronin revolveu os cabelos. O telefone tocou. O Dr. Kutjukov levantou o fone.

— A comissão especial chegou — disse ele.

— Obrigado, Andron Fiodorovitch. — Dobronin limpou a testa com um pano. Enfiara-se na sua aflição como num manto muito largo. — Dunia Dimitrovna, você tem experiência nessas coisas... uma mulher poderia ter matado Wyntok? Suas histórias com mulheres são incontáveis. Seria ação de uma mulher?

— Por que não? — disse Dunia desamarrando o avental de borracha. — Havia bastantes mulheres desejando a morte dele. E todas tinham possibilidade de pegar um sarrafo. A comissão especial também pode se enganar. Acho que nunca vão achar o assassino...

A comissão especial examinou durante dez dias a morte misteriosa do Dr. Wyntok. Interrogou sessenta e sete mulheres, até que o dirigente da comissão, camarada Burachevsky, fechou a pasta gemendo.

— Esse tal de Wyntok deve ter sido um garanhão — disse abalado. — Sessenta e sete mulheres, e ainda não são todas. Fornicava com todo mundo! Com dezenove realizou abortos. Como é que conseguia isso, de onde lhe vinha a potência? Que diabo, vou encerrar o caso. Será que terei de ouvir durante mais dez dias o relato das suas façanhas na cama?

No décimo primeiro dia, o Dr. Wintok foi cremado. Até ali tinham conservado o seu corpo, deixando-o na neve durante a noite, e guardando-o depois no depósito, duro como um pau.

Depois de três horas, Dobronin e Kutjukov trouxeram Wyntok de volta numa urna.

— O melhor de tudo era a sua dentadura — disse Dobronin sacudindo a urna. Algo chocalhou audivelmente no interior. — São os dentes molares, iguais aos de um javali. Camaradas... vamos enterrar dignamente esse caro colega...

Naquele mesmo dia, Marko visitou Pjetkin outra vez. Nada sabia das intenções da Dussova de matá-lo. Pjetkin conseguira impedi-lo da outra vez. Alcançara Marianka, agarrando-a por trás. E quando as mãos dele pousaram nos seios da mulher apertando-os, ela se abrandou, suspirou, e deitou a cabeça para trás.

— Venha... — dissera ele com voz rouca. — Venha ser o meu vento da estepe. Devíamos brigar só na hora do amor...

Desde então, Marko encontrou a Dussova mais duas vezes. Ela não tomou conhecimento dele. Passou por ele como se fosse uma bolha de ar, e quando ele disse: ”Que o diabo a carregue, irmãzinha!” ela lhe cuspiu na cara. Aquilo não era muito feminino, mas tinha seus efeitos. Marko nunca mais lhe dirigiu a palavra.

No dia em que incineraram o Dr. Wyntok, Marko estava sentado no quarto de Pjetkin, mostrando-lhe as palmas das mãos.

— Você vê alguma coisa? — perguntou sombrio. Pjetkin contemplou as mãos do anão, como médico.

— Não.

— Eu as lavei todos os dias. Três vezes. Nos primeiros dias eu as escovava com areia, até esfolar a pele. Agora deveriam estar limpas.

— Claro. Você ficou maluco, Marko?

— Não, Igorenka... tornei-me um assassino. — Marko fitou as mãos que tremiam um pouco. — Eu nunca achei possível, mas matei um homem com estas mãos. Um tal Dr. Wyntok. Ele espiava Dunia na banja, pela janela, enquanto ela estava lá dentro nua. Depois, continuou seu caminho, esgueirando-se como um gato.

— Suas mãos estão limpas. — Pjetkin baixou os braços de Marko, e segurou-os. Os dois se entreolharam, pensando na mesma coisa. — Vamos esquecer esse Wyntok... vou-lhe dar pomada para as mãos, paizinho...

 

O inverno agarrou a terra com suas tenazes de gelo. Nevava, depois a neve congelou, voltou a nevar, empilhando-se camada sobre camada, as casas na região plana sumiram, só as chaminés fumegantes subiam daquelas massas brancas, e os trenós passavam sobre os telhados sem perceber.

Às vezes havia também dias bonitos. Por algum milagre o céu de chumbo abria-se e o sol parecia dependurado ali por um fio. O gelo cintilava azul e violeta, transparente como cristal, lembrando a pele delicada de uma mulher ruiva. Pela manhã havia um brilho sobre a tundra, como se alguém tivesse derramado laranjada. Ao meio-dia, tudo ficava dourado, à noite as sombras não vinham do céu mas brotavam do gelo. Então aquela terra solitária, maldita, forrada de cadáveres, tornava-se bela, a gente ficava tentado a passear por ela cantando... mas vinha o dia seguinte, o céu uma papa leitosa pingando destruição branca, soterrando todo aquele encanto.

Assim como o tempo, mudavam os humores da Dussova. Num dia, podia escrever para Moscou fazendo os pedidos mais absurdos — como o último, exigindo um aparelho de radiografia com tela de televisão, para recompor fraturas complicadas e colocar pinos, e no outro dia aparecia na seleção apontando o seu temido chicote de couro para as cabeças raspadas de olhos suplicantes, dizendo impiedosamente; ”Apto! Apto!”

Primeiro, isso não era de estranhar. Os miseráveis classificados como sadios marchavam em bloco para o trabalho, mas rodeavam o hospital, paravam atrás dele, na saída do porão. Lá eram recebidos por Pjetkin e por dois enfermeiros, examinados de novo, e mandados de volta para as barracas.

Serviço interno.

Salvos por um dia.

Deus abençoe o novo médico.

Isso funcionou bem até que um dos ”cadelas” delatou o truque de Pjetkin. A Dussova fez um barulhão, mas na seleção seguinte marchou ao lado dos homens, e os pobres realmente tiveram de sair para o trabalho. Depois, ela apareceu na entrada do porão, sozinha, com um riso abafado.

— Examine-me, Igor Antonovitch! — exclamou. — Nem você consegue me enganar.

Mais tarde aquilo passou. O amor suavizava Marianka, e quando estavam em meados de março ela acreditava que Pjetkin esquecera Dunia.

Nunca descobriu o retrato. Pjetkin o guardava no seu velho esconderijo, debaixo do colchão. Para ele, era uma sensação estranha fazer amor com a Dussova, sabendo que ali embaixo estava a fotografia de Dunia. Marianka rebolava-se sobre o rosto da outra, conquistava o corpo de Igor, ardia nos seus braços. Quando ela saía, Igor tirava o estojinho de couro, punha a foto sobre a mesa, e sentava-se diante dela.

— Isso não é traição, Dunienka — dizia baixinho acariciando aquele rosto. — Uns roubam para sobreviver, eu tenho de fazer amor. Entenda-me... é apenas o meu corpo que é usado...

As cartas de um para outro continuavam. Marko se tornara parte dos dois campos... não o controlavam mais, nem o olhavam, e os guardas abriam o portão, os oficiais sorriam, Skopeljeff o aceitava como a um dia sombrio, só as chefes do Campo às vezes falavam com Marko, acenavam, piscavam, sorriam, esfregavam os seios debaixo dos uniformes grosseiros e sussurravam-lhe: ”Venha para um canto, paizinho. Na soleira da porta... não banque o bode aleijado! Você não vai-se desiludir...”

Marko tinha trabalho para se livrar daquelas mulheres ardentes. Mas elas o espreitavam, erguiam as saias na sombra de pilhas de caixotes ou nos cantos das barracas, e atraíam-no com tudo aquilo que a sua fantasia superexcitada conseguia produzir.

Um homem! Ainda que fosse um anão, feio como um sapo... era um homem. Tinha aquilo com que sonhavam há meses, e que só recebiam de aluguel em forma de escultura de madeira, depois de uma longa espera.

Jevronek começou a achar aquilo sinistro. Olhava Marko sempre com ar mais crítico, e não chegava a nenhuma decisão. Uma comissão — bem. Ela fica alguns dias, e se vai. para escrever seus longos relatórios. Essa é a sua tarefa. Preencher documentos... um esporte russo. Um homem de confiança introduzido no Campo... também estava bem. Ele ficava um mês ou dois... mas quando vira tudo, sabia tudo, podia fazer seus relatórios. Mas nunca alguém vira Marko Borissovitch diante de uma folha de papel. Nem ao telefone. Então como levava seus relatórios para fora do Campo?

Jevronek também já examinara o quarto de Marko enquanto este estava no Campo das mulheres. Não achou nada, nada mesmo. nem rádio, nem plano, nem endereços, nem desenhos, nem anotações, nem mesmo notas sobre as perdas de carne, o que seria normal num controlador secreto. Era compreensível que Marko parecesse sinistro para Jevronek. Este mudava de opinião como um junco que oscila ao vento. Ou ele é um sujeito muito sabido, esse Godunov, ou é um vigarista genial. Nos dois casos, Jevronek era o tolo. Uma situação incómoda.

Ele decidiu apertar o cerco. Marko não podia mais do que morder.

Um acontecimento que caiu sobre Vorkuta como uma avalancha desfez o plano de Jevronek, e deixou um medo terrível no seu coração.

Uma comissão de Moscou se fizera anunciar.

O comandante do Campo, o coronel, chamou imediatamente os oficiais, médicos e capatazes para uma reunião.

— Um bom amigo me telefonou — disse o coronel, esforçando-se para não parecer nervoso. — Ele soube por acaso que a comissão deverá vir de surpresa, inesperadamente, sem razão maior. O camarada encarregado da saúde nos campos virá pessoalmente. Só o diabo sabe o que o traz a Vorkuta! Mas agora estamos a par da sua vinda. Minhas senhoras e meus senhores — de repente o coronel falava como num cassino czarista — dentro de dois dias, o Campo será um modelo! Terei de dizer mais?

Jevronek cambaleou para o seu matadouro, fitando Marko com olhos opacos. Isso tinha mesmo de ser, irmãozinho?, perguntava aquele olhar. Agora sabemos o que está se passando por aqui.

Jevronek recolheu-se ao quarto e fez os seus cálculos — até onde podia verificar no passado — de quantos quilos de carne tinham sumido. As cifras o deixaram tonto. Isso não podia mais ser explicado, não havia desculpas lógicas para tanta coisa... ele reconhecia, roía as unhas e encolhia-se todo de pavor.

No Campo limpavam-se as barracas até que brilhassem como que untadas com banha. Até três colunas de trabalhadores externos ficaram no Campo, e começou a loucura que já acontecera em Sergejevka: a praça da inspeção foi limpa, a neve varrida, o gelo partido e coberto de areia até parecer um oásis naquela paisagem de Pólo Norte.

Também entre os prisioneiros, as coisas mudaram. Os famintos, os acamados, os distróficos, os furunculosos e os tuberculosos, os cadáveres vivos com seus olhos fundos, a ponto de não se reconhecer mais a cor da íris, todos eram ”despachados”. Caminhões os apanhavam, carregando-os como montes de ossos para Ust-Vorkuta, num outro Campo.

O hospital brilhava de limpeza como uma clínica universitária. Tornou-se uma propaganda de comoventes cuidados dedicados aos condenados nos campos de concentração. A Dussova corria de um quarto a outro, berrava, esbofeteava os ajudantes, por toda parte ainda achava pó e sujeira, metia a bota no traseiro dos destacamentos de limpeza. Até a parte posterior dos armários foi escovada.

Um dia antes da visita do camarada da inspeção, chegou o encomendado aparelho de raios X com tela de televisão, e foi montado na sala de operação. Pjetkin, os demais médicos e Marianka rodearam-no sem conseguirem entender mais nada do mundo.

— Ou é um engano ou em Moscou há um doido na seção de distribuição de material — disse a Dussova falando em nome de todos. — Nem as grandes clínicas têm um aparelho desses... mas nós aqui em Vorkuta o recebemos de graça. Pjetkin, você sabe lidar com esse negócio?

— Sim, Marianka Jefimovna. Com ajuda de um aparelho desses meti pinos em fraturas de coxa em Kichinev. É um instrumento quase insubstituível para um cirurgião, especialmente na cirurgia de acidentados. — Pjetkin fez uma demonstração naquela tarde ainda, embora a Dussova não quisesse deixar sujar de novo a sala tão limpa. Trouxeram um homem das pedreiras. Fratura de coxa, com muitas lascas de osso.

— Vou ajeitar essa fratura agora — disse Pjetkin quando o acidentado ficou debaixo do aparelho. Antigamente o cirurgião tinha de refazer esses ossos fraturados às cegas, baseado nos seus dedos, e depois constatar pelas radiografias se fora bastante hábil e muitas vezes isso era problema de sorte. Um jogo com ossos tortos. Agora via-se tudo tão claro como se os ossos estivessem expostos à luz do dia. Pjetkin começou a juntar as partes quebradas, atravessou-as por segurança com quatro arames, e engessou a perna, sempre debaixo do aparelho até o fim.

— Ele vai ficar aleijado — disse quando desligou o aparelho. — Em Moscou bem que devem saber por que nos mandam um aparelho desses. Com ele conservaremos a plena força de trabalho do povo.

Os médicos aplaudiram, mas fora apenas um trabalho de rotina, a correção de uma fratura, degradada ao plano de uma intervenção simples, pela moderna técnica.

— E agora, todos para fora! — comandou a Dussova depois que o acidentado foi levado da sala. — A sala tem de ficar brilhante!

O camarada de Moscou deve ver que também no Mar Ártico reina o mesmo método soviético.

À tardinha, o hospital estava esterilizado. Um cheiro de desinfetante saía de todos os quartos. Os doentes estavam barbeados e lavados. Para o jantar distribuiu-se uma kascha de feijões grossos, havia até nacos de carne boiando dentro. Os doentes se alegraram, mas a Dussova berrou furiosa com a cozinha ao telefone:

— Idiotas! Por que feijões grossos? Querem que os doentes fiquem peidando enquanto a comissão anda pela casa? Não tinham outra coisa para cozinhar? Por que será que a maior parte da humanidade pensa pelo traseiro?

Não havia mais nada a fazer. A Dussova mandou os enfermeiros de quarto em quarto ameaçando com os piores castigos se alguém se atrevesse a soltar-se enquanto o camarada de Moscou estivesse fazendo a sua ronda. Os doentes concordavam divertidos, e punham-se a vigiar as próprias entranhas.

A grande pergunta, se o sujeito de Moscou era um funcionário pachorrento ou um acurado cão de carreira, qual a sua aparência, foi respondida na manhã seguinte. Com um carro especial ligado ao trem de material, o poderoso camarada chegou ao Campo. Como o tivessem anunciado oficialmente havia três horas, o comandante pôde recebê-lo oficialmente na estação. Com algum talento teatral, fingiu grande surpresa... e não foi difícil quando avistou o homem que descia do vagão especial.

Há pessoas bonitas (até belas), cujo rosto se esquece depressa, e feias, que são lembradas porque, estranhamente, a feiúra fascina mais do que a beleza.

O homem no longo manto de peles, que agora saltava na neve em Vorkuta, era a imagem da feiúra. Tudo aquilo que as outras pessoas recebem em doses equilibradas, em partes isoladas, ele trazia reunido pelo corpo. Era pequeno e magro, pernas tortas, pé esquerdo mais curto. O rosto parecia de um sapo, boca larga que parecia estar sempre sorrindo, por cima um nariz chato, como se sua mãe o tivesse alguma vez confundido com uma camisa ao passar roupa a ferro. O braço esquerdo também era mais curto, e o sujeito ainda por cima era míope, usava óculos de lentes grossas, cuja simples visão já provocaria lágrimas num homem normal. Era um mistério como aqueles óculos se sustentavam sobre o nariz achatado.

O homem de Moscou sorriu para o coronel, tirou seu gorro de pele de raposa, expondo duas orelhas vermelhas e achatadas.

Deu a mão ao comandante, saudou os demais oficiais, contemplou com evidente interesse a Dussova que, como médica-chefe, também fora à estação. Disse apenas:

— Bom dia, camaradas. Dia aborrecido, este. Viagem cansativa, três agulhas tinham congelado e tivemos um atraso idiota.

Depois subiu no carro do coronel Baranurian, e se dirigiu para o Campo dos homens.

— Deixemos as recepções oficiais de lado — disse durante o trajeto. A voz era o melhor que havia nele, cheia, autoritária, assustadoramente saudável. — Eu gostaria de inspecionar um complexo em particular. Vi na lista de prisioneiros que aqui há um Dr. Pjetkin...

— Sim, no hospital central. — O coronel encarou o homem de Moscou, incrédulo. — Foi por isso que veio até aqui, camarada? Será um teste para a libertação de Pjetkin? Ele bem que o mereceria. O senhor conhece os seus documentos?

— Segui a sua carreira minuciosamente. — O homem de Moscou recostou-se no estofamento do carro. — Igor Antonovitch tem uma grande carreira pela frente. Depois vamos nos ocupar mais intensivamente dele.

O coronel Baranurian silenciou por algum tempo. Só quando viram o grande portão do Campo aparecer na neve e na cerração, achou de seu dever falar novamente em Pjetkin.

— Igor Antonovitch é uma bela pessoa — disse ele. — Um grande caráter.

O homenzinho de Moscou esfregou as orelhas compridas e feias.

— Ele poderia ser hoje médico-chefe de alguma grande clínica — disse com um estranho ronco. Já fizera isso ao descer do vagão, um ronco oco e sonoro, como se tivesse engolido um chocalho. Baranurian fingiu não perceber. Com tanta feiúra, o homem podia também ter um modo peculiar de respirar. Mas ali, no ambiente fechado do automóvel, parecia duplamente desagradável. — Sabe que, logo após o exame final, Pjetkin escreveu um trabalho sobre pancreatectomia?

— Não — respondeu Baranurian, profundamente impressionado com a palavra. Não sabia do que se tratava, mas tinha de ser algo muito importante.

— Um génio, camarada coronel. Mas um animal vestido. Quer ir para a Alemanha.

— Conheço os documentos. Um caso especial. Acho que Moscou nunca teve uma coisa assim para decidir.

— Mas vamos decidir.

— Estou certo disso. O caso precisa de um esclarecimento. Cá entre nós, camarada... Pjetkin afinal é russo ou alemão?

— Não se pode responder a sua pergunta com ”sim” ou ”não”. — O homem feio deu um ronco audível, pegou no peito, sacudiu a cabeça, e sorriu de novo. — Desculpe... estou com um resfriado idiota. Um aperto no peito, como se tivesse chumbo no pulmão. Não admira! Como poderia me cuidar? E ainda por cima com um tempo desses! Sempre essas mudanças de temperatura: no escritório, superaquecimento, os fogões em brasa, depois a gente sai para o frio que congela as orelhas, volta ao escritório, onde se gostaria de andar de cuecas... eu lhe pergunto, quem pode agüentar isso sem ficar doente do peito? — Ele fez novo ruído com seus pulmões, e lembrou-se do assunto central daquela conversa. O portão interior do Campo apareceu... via-se o alto edifício de pedra do hospital e da sede do comando.

— Pjetkin... bem, o que será ele afinal? Ainda não chegamos a um acordo sobre isso. Como membro da Academia, o que ele se pode tornar, seria naturalmente russo... como prisioneiro, ao menos enquanto está aqui no Campo, gostaríamos de considerá-lo alemão. Como vê, um caso complicado. Por isso quero falar com ele, a sós. Posso dispor da sua sala, camarada coronel?

— Mas que pergunta! Interessa-me muito o destino de Pjetkin.

— Piedade?

— Não. Espírito de camaradagem. O pai dele foi meu amigo em Stalingrado.

— Que mundo pequeno este. — O homem feio desceu do carro. Não olhou para os prisioneiros que varriam a neve no serviço interno, um trabalho insensato, pois estava nevando de novo. O Campo estava limpo como uma seção esterilizada de hospital. Nas janelas das salas de administração — no depósito, oficinas, cozinha, matadouro, garagens — os capatazes olhavam o visitante de Moscou como um animal estranho. Jevronek olhou de esguelha para Marko, que estava ao seu lado.

— É seu irmão, camarada? — perguntou. Tanta feiúra em duplo só pode ser parentesco, pensou.

— Conhecido apenas... — disse Marko cuidadosamente. É preciso manter as costas livres. — Por quê?

— Ele ganhou a minha simpatia ao primeiro olhar. — Jevronek meteu as mãos nos bolsos. — Acha que ele também vai visitar o matadouro?

— Nunca se sabe. Vou perguntar.

— Nossas perdas são catastróficas.

— Sei disso.

— Devíamos ter uma explicação para isso.

— Não tenha medo — disse Marko sorrindo. — Se houver algum controle, vou cortar um boi para ele. Vai-se admirar ao ver quantas partes de um animal não são comestíveis. Fique de bico calado, Jevronek...

No quarto do coronel Baranurian, o homem de Moscou tomou primeiro duas vodcas transparentes e comeu algumas pirogas quentes com fígado de galinha. Quando, saciado, se recostou na cadeira e pegou um papyross, seus pulmões roncaram de novo. Guardou o cigarro e disse com rosto azulado:

— Não se deve provocar nada. Vamos esquecer o fumo. Onde está Igor Antonovitch?

— Já mandamos chamar o Dr. Pjetkin.

— Ele sabe do que se trata?

— Não — Baranurian deixou a garrafa de vodca e dois copos na mesa e foi devagar até a porta. — A conversa deverá esclarecer tudo.

— Espero. Nossa boa vontade é evidente.

O coronel deixou o quarto. O homem de Moscou levantou-se da poltrona, pegou a garrafa de vodca, desarrolhou-a e levou-a aos lábios. Tomou avidamente alguns goles, depois arrolhou-a de novo e colocou-a de volta na mesa. Esperava que aquela sua maldita respiração passasse, mas os roncos continuaram, ocos, sinistros, como o gorgolejar de água num cano meio entupido.

Entrementes, Pjetkin chegara à sede do comando. Naturalmente sabia que o diálogo seria ali travado, e estava preparado para tudo. Marianka Jefimovna acompanhou-o pronta para a luta, com os olhos negros ardentes, uma adversária perigosa. Seu amor por Pjetkin já não era segredo... em cada olhar, cada gesto, cada palavra dirigida a ele, borbulhava a sua paixão.

— Vou ficar aqui parada — disse ela quando Pjetkin pôs a mão na maçaneta. — Vou esperar aqui. Todos estamos com você... esse sujeito vai rebentar a cabeça, nada mais. — Ela o beijou, sem se incomodar com o comandante e três outros oficiais que estavam atrás deles, assistindo. Acariciou-o nos cabelos, e a sua ternura era tão comovente que Pjetkin pegou as mãos dela e as beijou.

Baranurian deu um passo em sua direção quando Marianka o soltou.

— Pense no seu pai, Igor Antonovitch. Ele não era apenas um herói... era um grande homem. E tinha orgulho do seu único filho...

Pjetkin acenou com a cabeça, apertou a maçaneta e entrou no quarto.

 

O sujeito feio de Moscou estava novamente sentado na poltrona de Baranurían e respirava cautelosamente para não assustar Igor com os estertores no seu peito.

Pjetkin parou no meio do quarto. Por um instante os dois se encararam, sem dizer palavra, como dois habitantes de estrelas diferentes que de algum modo se encontram no espaço.

Um coitado, pensou Pjetkin. Feio, aleijado, e cardíaco. Cianose. Devia fazer um minucioso exame médico. Ninguém pode levar a mal um sujeito desses se ele odiar o mundo inteiro. Na verdade, esse homem é ainda mais feio do que Marko. A feiúra de Godunov é proporcionada, é uma feiúra lógica. Não fere a simetria... mesmo se for uma simetria distorcida como a desses quadros modernos. Mas esse coitado é fundamentalmente feio. Um pé de elefante, uma perna curta, braço curto, orelhas como panos caídos, corcunda, o nariz, a boca de peixe... é digno de piedade.

Aí está ele, pensava o homem de Moscou. Os maiores cargos lhe estão abertos, as maiores honras, poderia ter uma moradia no melhor bairro da cidade, uma datcha no Mar Negro, um peito coberto de medalhas, todos os privilégios dos funcionários mais graduados... e o que foi feito dele? Um miserável. Médico em Vorkuta. Quando aperta o estetoscópio nos ouvidos, escuta as risadinhas do diabo... Que sujeito besta, esse génio da Medicina!

— Você parece mesmo mal — disse de repente o homem feio. Sua voz era bem tranqüila. — Horrivelmente mal mesmo. Como naquele tempo em que nos vimos pela primeira vez... Não me reconhece?

Pjetkin encarou-o. Os anos corriam no seu cérebro... mas não encontrava mais uma figura como aquela.

— Quem é o senhor, camarada? — indagou pensativo.

— Os anos apagam muita coisa. — O homem de Moscou curvou-se, desarrolhou a garrafa de vodca, encheu dois copos e acenou para que Pjetkin pegasse o seu. Beberam vodca em silêncio. mas nada disso ajudava. Pjetkin não se lembrava.

— Faz muito tempo — continuou o feio. — Igor Antonovitch... vamos trazer de volta as lembranças dos dias mais cinzentos... 1945! O asilo de órfãos em Moscou. Um antigo mosteiro. Órfãos de guerra, cujos pais tinham sido assassinados pelos alemães na Grande Guerra. Boris Igorovitch Komorov, o diretor do asilo... aliás, ele morreu no ano passado, de câncer na bexiga. Komorov o trouxe ao nosso quartinho. Você era um menino pequeno, magro, assustado, um corpinho miserável. Só sabia algumas palavras em russo, mas conhecia uma porção de pragas decoradas. Um enfermeiro as ensinara. Rimos de você, na saudação dada a todos os novatos. Primeiro são humilhados, depois aceitos. Mas naquele tempo você já era muito especial. Defendeu-se, por mais magrinho que fosse, e até puxou uma faca. Então Komorov entrou no quarto, e não lhe tirou a faca, mas deu-me uma bofetada, em mim! Soubemos que você se chamava Pjetkin... Pjetkin, um russo que não falava russo! Por muito tempo ficamos sem entender aquilo tudo. — O homem de Moscou debruçou-se para a frente. — Então, Igor Antonovitch, lembrou-se?

Pjetkin confirmou com a cabeça. Sua infância aparecia obscuramente... sim, o asilo de órfãos de guerra. O sujeitinho pequeno e torto, deitado na cama à sua frente, insultando-o, ameaçando, cuspindo, que certa noite rasgara a foto do major Pjetkin jogando-a na latrina. O feio demónio com o qual tivera de conviver por quatro anos, cheios de brigas, até transferirem aquele diabo para outro quarto.

— Agora sei quem você é — disse Pjetkin. — Você é Jakov. No orfanato nós o chamávamos ”Njelep”, o feio. Desculpe se recordo esse nome... mas ele apenas deve mostrar que agora o estou reconhecendo.

— Njelep. — Jakov Andreievitch Starobin pôs as mãos sobre a mesa. Mãos de sapo, percebeu Pjetkin então. — Não me tornei mais bonito com os anos.

— Mas você fez carreira. Diretor dos campos de trabalhos forçados, na Central de Moscou...

— Menos carreira do que você teria feito se não fosse tão estúpido. Eu sempre fui massacrado pelo destino. Feio como um sapo, burro e preguiçoso. No asilo, eu o admirava, Pjetkin, mais tarde também, e sempre o odiei. Um ódio sem fundamento, pois com isso não se desfazia o meu pé de elefante, o braço curto, e todo o resto. Mas quem pode pensar com lógica quando tem a minha aparência?

Starobin pôs as mãos no peito. Tossiu, seu rosto ficou azulado, ele sufocava. O ronco nos seus pulmões soou de novo. Pjetkin o contemplava preocupado, sobrancelhas erguidas, mas não se moveu. Cuidado, disse de si para si. O que será que Njelep quer de mim?

Starobin recuperou-se, só ficara a pontada no peito e um estranho terror. Uma espécie de sensação de aniquilamento apoderava-se dele, como se fosse esmagado por uma gigantesca tenaz.

— Eu era feio demais para ser apresentado ao público — disse com voz rouca. — Meu pai foi um herói como o seu, minha mãe uma guerrilheira que recebeu a medalha de bravura. Tornei-me um bom comunista, esforcei-me, descobri minha inteligência, desenvolvi grande talento para a propaganda. Mas de que adiantava? Não posso aparecer como representante do grande povo soviético. Que me restava? Tornei-me um funcionário público. Atrás de uma escrivaninha e de uma pilha de documentos, rodeado pelo bafio de arquivos, um funcionário pode se permitir a minha aparência. Cheguei ao Ministério do Interior, seção de Campos de Concentração. Lá a feiúra nada significa. Ao contrário, pode-se tornar um cartaz de propaganda. — Starobin apoiou a cabeça nas mãos e encarou Pjetkin quase com amor. — Em todos esses anos persegui o seu nome. Seu brilhante exame final, seu trabalho sobre o pâncreas, o desejo de fazer cirurgia do coração, o plano do Ministério da Saúde, de mandá-lo como assistente ao Prof. Demichov, todo o caminho de uma carreira quase impossível... e de repente leio o seu maldito nome numa lista de transporte. Primeiro Chelinogrado, e depois, mais maluco ainda... Vorkuta... Não pude impedir mas cuidei de que você pudesse trabalhar como médico, e não nas pedreiras. Sim, eu sempre o admirei, Pjetkin.

”No Natal eu estava de bom humor. Comi bem, bebi vinho, brinquei com meus filhos... você não vai acreditar, mas tenho uma esposa, até uma mulherzinha bem amável, engenheira radiotécnica, que me deu dois filhos, e eles são bonitos, compreende, eretos e altos, harmoniosos, todo mundo fica parado quando vou passear com eles, são toda a minha felicidade, o meu orgulho, e me abrem o céu. Pois então, no Natal eu estava de bom humor, pensando em você como tantas vezes fazia, e disse a mim mesmo: vá nesses feriados até Vorkuta, fale com ele. Recompense-o de alguma forma pelos tempos do orfanato, em que você era ruim como um demónio. Explique a Pjetkin que o mundo lhe está aberto, se ao menos uma única vez curvar a cabeça e permitir que lhe dêem um pontapé no traseiro, sem abrir a boca. Ceder uma só vez, baixar essa cabeça dura... não queremos mais que isso. Igor Antonovitch, você quer ser russo... mas um russo se reconhece porque sabe suportar sem queixas, porque beija a bota que se enfia no seu traseiro. Igor Antonovitch, porte-se como um russo soviético: obedeça! Mais nada. Obedeça. Será assim tão difícil?

— Disseram-me que sou alemão.

— Agora você é. De resto, isso está mal expresso. Podemos mudá-lo com uma penada. Para sempre.

— E poderei casar-me com Dunia?

— Não.

— Por que não?

Jakov Andreievitch Starobin, o Njelep, olhou o teto. Sua respiração roncava de novo, dessa vez mais forte, como se lhe tivessem juntado um segundo chocalho. E a sensação de estar sufocando também piorou. Não devo ficar nervoso, pensou Pjetkin, seu animal, você não percebe que estou construindo uma ponte dourada...

— As perguntas são os tumores da obediência — disse Starobin lentamente. — Seja russo sem Dunia. Há princípios que simplesmente não podem ser postos de lado.

— Como o princípio de que o casamento entre um alemão e uma médica russa não é bem visto?

— Você está de novo pensando com uma lógica idiota, Igor.

— Então não sou alemão?

— Estamos dançando em círculo. — Starobin sacudiu a cabeça. Um zumbido inusitado começava a latejar nas suas têmporas. — Mas tem de ser Dunia? A Rússia está cheia de moças bonitas! E se tiver de ser Dunia... por favor, somos tolerantes... junte-se com ela! Durmam juntos quanto quiserem, mas nada de filhos. Isso significa que teremos de esterilizá-la.

— Você está maluco, Jakov Andreievitch...

— Estou-lhe jogando uma corda sobre o abismo...

— Mas é curta demais. Eu amo Dunia como amo a minha própria vida. E hei de me casar com ela. E teremos filhos, porque o nosso amor deve continuar vivo neles...

— Seu maldito utopista! — Starobin fitou Pjetkin subitamente com olhos saltados. Sua respiração vinha aos arrancos, o ronco no seu peito era assustador, o rosto ficou cor de púrpura. Sem uma palavra mais, escorregou da poltrona, caiu no chão, ergueu-se de joelhos, apertou as mãos no coração, rastejou para junto de Pjetkin, e abriu de modo horrível a sua bocarra de peixe. Um medo mortal gritava nos seus olhos, o suor frio lhe corria dos poros, a respiração era agora um arquejar furioso.

— Igor... — estertorou. — Igor... o que é isso... estou rebentando... rebentando... que dor... que dor... me ajude!

Pjetkin saltou para junto dele. Starobin queria deitar-se de costas, mas Pjetkin o impediu com violência, arrastou-o até a escrivaninha e apoiou-o nela, com o tórax erguido.

— Fique sentado, Jakov — disse. — Não se mexa. Fique sentado! Vou mandar levá-lo para o hospital imediatamente!

— Essa dor... Igor... estou sufocando...

Pjetkin correu para a porta e abriu-a num arranco, chocando-se com Marianka, que quase recebeu na cabeça o impacto da porta, — Uma padiola! — berrou Pjetkin. — Marianka... chame o hospital. Preparem o OP I para uma intervenção no tórax! Toda a equipe na OP! Depressa, depressa... não fiquem aí parados...

— Vou cuidar disso — exclamou o coronel Baranurian, disparando para o quarto ao lado. Pjetkin voltou para junto de Jakov. Marianka seguiu-o, viu o purpúreo Starobin sentado no chão, recostado na escrivaninha, revirando os olhos.

— Mas o que foi? — perguntou ela ajoelhando-se ao lado dele.

Starobin contorceu-se, fitou a Dussova, ofegou, o estertor no seu peito ressoou horrivelmente, repuxou a boca e tentou falar, mas não conseguiu. Da sua boca saíam apenas sons terríveis.

— Ele se engasgou? — perguntou a Dussova, segurando Starobin desamparadamente pelo ombro, olhando para Pjetkin que corria de um lado para outro. — Bata-lhe nas costas, Igorenka..

— Pelo amor de Deus, não! Onde está essa maca? Parecem umas lesmas! Você não vê que ele está com embolia pulmonar?

Pjetkin curvou-se sobre Starobin segurando-lhe a cabeça que oscilava. O estertor era terrível.

— Você está-me ouvindo, Jakov Andreievitch? — disse Pjetkin bem alto. — Dentro de alguns minutos você estará morto.

O moribundo ergueu a mão direita até o ombro de Pjetkin e agarrou-o fortemente. O rosto estava violáceo e horrivelmente desfigurado.

— Igor... — arquejou. — Igor... socorro.

— Vou fazer tudo, você sabe disso. — Pjetkin ouviu o coronel Baranurian berrar no corredor:

— A maca está a caminho!

Depois ele apareceu na porta, mas não entrou.

— Injeções não adiantarão mais nada — disse Pjetkin. — O coágulo de sangue está preso. Reze, Jakov, mesmo se por trinta anos só deu pontapés no culto divino! Reze! Só temos uma possibilidade... a operação! A operação de Trendelenburg. Ela só foi tentada cinco vezes com sucesso até agora. Está-me ouvindo, Jakov? Não há cirurgião que não a receie. Mesmo Trendelenburg não conseguiu realizá-la, apenas desenvolveu o método. Vou tentar com você...

Pjetkin segurava a cabeça de Starobin. Se existe um Deus, pensava, esse Deus que afastaram de nós, mas que parece mesmo existir, então que Ele me perdoe agora, e me compreenda, pois se criou todas as coisas também criou o amor, e agora estou agindo por amor. Que todos me perdoem... todos os médicos do mundo, que fizeram um juramento de ajudar a todos os doentes sem pensar em posição e nome, porque são seres humanos e irmãos. Eu também jurei, e sempre agi conforme o juramento... mas agora, neste quarto, estou negociando com a morte.

— Escute, Jakov Andreievitch — disse a Starobin, que já tinha a morte nos olhos. — Vou operá-lo. — Estava certo de que Starobin entendia cada palavra, a perigosa coma da qual ninguém mais o tiraria ainda não havia chegado. — Mas antes que eu comece, vou-lhe apresentar a minha conta: se você sobreviver, vai fazer com que eu chegue à Alemanha. Quero apenas ir para a Alemanha, mais nada. Esse será o meu único pagamento.

— Ele que morra! — gritou a Dussova. — Morra! Igorenka... não vou deixar que você fuja pela segunda vez! Você me pertence, a mim, não a essa distante Alemanha. Eu o amo. Starobin, trate de morrer de uma vez. Cuspa essa sua maldita alma. Pelo demónio, morra! Quero conservar Igor! Ele é a minha vida! — Sacudiu o moribundo. Pjetkin a afastou com violência e brutalidade. Ela pôs as mãos diante do rosto, soluçando alto, em soluços profundos. O coronel Baranurian cerrou os punhos junto à porta, e afastou os outros oficiais.

— Jakov... você está-me ouvindo — perguntou Pjetkin mais uma vez em voz baixa. Falava junto do ouvido do outro, e pelo movimento das suas mãos viu que ele o entendia. — Posso... posso ir para a Alemanha? Njelep... se eu puder, hei de salvá-lo!

E o homem de Moscou confirmou com a cabeça.

Sete minutos depois, Starobin estava na mesa de operações debaixo das grandes lâmpadas espelhadas. Estava despido, lavado e o anestesista começava a preparar-se. Pjetkin e os demais médicos ensaboavam mãos e braços na pia. Os enfermeiros esperavam, com luvas, gorros, máscaras e aventais de borracha. Eram todos deportados... médicos e enfermeiros. Mas a atmosfera era a de uma grande clínica universitária, com a moderna mesa de operações, excelente iluminação, instrumentos modernos, um aparelho de anestesia atualizado, um fibrilador, uma pequena máquina de coração e pulmão e um oscilógrafo que marcava numa tela os impulsos do coração.

O tubo estava colocado, a anestesia começava, apareciam os primeiros dados. ”Respiração superficial. Taquicardia 160”.

Nos suportes de metal reluzente esperavam as conservas de sangue. Panos esterilizados cobriam o corpo de Starobin, deixando livre apenas o campo operatório. A confusão de mangueiras da máquina de coração e pulmão, perturbadora para um leigo, estava preparada. Pjetkin ainda se lavava.

Marianka Dussova e o coronel Baranurian estavam sentados bem atrás, junto da parede, suficientemente afastados para não atrapalharem. Diante deles as sombras vestidas de branco se moviam sem ruído ao redor da estreita mesa de operações.

— Quando se pensa que foi Starobin quem, nos últimos meses, mandou para cá todos esses complicados aparelhos médicos, todos os que Pjetkin exigiu, por mais doidos que fossem os seus pedidos... Podia escrever o que quisesse, e mandavam tudo! E agora aí está ele, esse mesmo Starobin necessita de tudo para a sua própria vida. O destino às vezes tem um humor macabro. Se ele tivesse recusado tudo isso, agora morreria na certa.

— E vai morrer mesmo — disse a Dussova sombriamente. — Essa operação é o terror de todos os cirurgiões. Agora estão abrindo o tórax. — Marianka olhou para Pjetkin. Ele estava enfiando as luvas, alguém lhe prendia a máscara. — Ainda que ele salve Starobin... Moscou vai esquecer essa promessa. Moscou não se deixa subornar! — Ela apertou as mãos entre os joelhos. O seu magnífico rosto selvagem estava branco como uma máscara.

Pjetkin passou por eles. O seu olhar e o de Marianka encontraram-se, como dois corpos nus que se chocam.

— Ele vai morrer! — disse ela em voz alta. — Você vai ficar comigo.

— Ele vai-se salvar! — disse Pjetkin.

— Eu o amo.

Pjetkin prosseguiu até a mesa de operações. O Dr. Schelkovsky seguiu-o e foi até a máquina de coração e pulmão. O pulsar do coração apareceu no oscilógrafo, brilhando, eletronicamente visível. Aviso grave.

O tórax estava aberto, as costelas afastadas, o sugador trabalhava sibilando, deixando livre de sangue o campo de operação. Os grampos estavam firmes, as ligaduras impediam novas torrentes de sangue.

O grande milagre começara. A corrida com a morte. Apesar de toda a claridade, o ambiente era fantasmagórico.

Uma Trendelenburg no Mar Artico. Haveria algo mais paradoxal? Na sala, pairava profundo silêncio. Só o tilintar dos instrumentos interrompia esse silêncio, o bombear rítmico do balão de respiração, alguns chamados, os estalos do oscilógrafo, o gorgolejar do sugador, o sibilar do bisturi eletrônico quando cortava e cauterizava ao mesmo tempo.

Pjetkin reviu tudo mais uma vez em pensamento. Todos os medicamentos tinham sido aplicados. 25.000 I.E. Herapina, -2 ampolas PH 203, espasmolíticos...

— Preparem o sangue para a transfusão... — disse ele a meia voz. — Cânulas preparadas. Samsolov, Nurajev... cuidado. Quando eu cortar a artéria, ponham o sugador e dêem sangue. Introduzam-no por cima do coágulo. — Apontou com uma tesourinha pontuda a artéria pulmonar inchada e as duas ramificações. O sangue se interrompia parcialmente ali, só um jorro muito fino continuava a correr. Era coisa de segundos, até que a trombose se consolidasse, fechando a veia e entrando pelo coração como uma lança de sangue coagulado. Nos dois casos, Starobin estaria morto.

Ao lado de Pjetkin estava o Dr. Schelkovsky, segurando uma tenaz com sulcos internos.

— Ele vai perder — disse a Dussova baixinho, tremendo no corpo todo. — Já é tarde demais...

A cânula com o sangue fora inserida. O coração batia mais depressa, mais regular. O sangue fresco passara a correr por cima da trombose para dentro do coração e os pequenos vasos empobrecidos enchiam-se novamente.

— Pulso regular — anunciou o anestesista.

Os impulsos do coração elevavam-se no oscilógrafo.

— Cuidado! — Pjetkin respirou fundo. O corte. Só cinco vezes ele fora conseguido desde 1907! Em duas gerações inteiras, só cinco vezes.

Pjetkin abriu a veia. O sangue saltou em arco sobre suas mãos, o sugador roncava, o Dr. Samsolov pinçava... era o momento da verdade, da rapidez, da sorte.

Pjetkin prosseguiu, enfiando a tenaz com sulcos no tronco principal, agarrou o coágulo, puxou-o, lentamente, fê-lo deslizar para fora da artéria, um bloco de sangue preto avermelhado, de dez centímetros de comprimento em forma de lança, que nenhum anticoagulante mais teria desmanchado. A morte sob forma de sangue coagulado... Quando se estatelou no fundo da bacia de esmalte, como um feio vómito nojento, parecia tão ridículo que se tornou inconcebível.

— Aspirador! — disse Pjetkin com voz tensa. — Rápido!

O aspirador teve a sua mangueira enfiada na artéria. Pela parte de controle, de vidro, viam-se pedacinhos de coágulos afastando-se, grãozinhos que podiam grudar-se produzindo novamente a morte.

Pjetkin retirou a mangueira. O sangue novo da transfusão correu imediatamente e a circulação pôde voltar a se processar normalmente. O Dr. Nurajev pinçou imediatamente a artéria, a hemorragia cessou e a última fase da operação começava: costurar a artéria com seda muito fina.

Pjetkin costurou com tal perfeição que, ao se soltar uma pinça para prova, nenhum sangue passou pelos pontos.

Exausto, ele ficou parado ao lado da mesa, depois dessa costura, enquanto os médicos Samsolov e Nurajev começavam a fechar o tórax. O Dr. Schelkovsky aproximou-se de Marianka Dussova com a bacia na qual estava o longo coágulo. A morte vencida.

— Nunca vi uma coisa assim — disse ele com voz comovida. — Nunca. Essas mãos de Igor Antonovitch... deviam ser beijadas...

A Dussova fitou o coágulo de sangue. O coronel Baranurian engoliu em seco diversas vezes. Sentia-se mal, mas era soldado e controlou-se. Conseguiu até dizer:

— Você perdeu, Marianka Jefimovna.

— Mas há também problemas pós-operatórios.

— Ainda acredita nisso? Ou melhor, ainda espera isso?

— Eu odeio o génio de Igor Antonovitch...

— E eu gostaria de venerá-lo. Venha, vamos esvaziar uma garrafa inteira...

Marianka ergueu-se, Pjetkin olhava para eles, da mesa de operação. O seu olhar e o de Marianka cruzaram-se de novo, como se algo se partisse, como se esse olhar caísse de um rochedo num abismo escuro. Ela baixou a cabeça e pôs-se a chorar. Baranurian puxou-a pela mão, para fora da sala, como a uma criança.

Na manhã seguinte, Jakov Starobin ainda vivia. Seu coração impulsionava fortemente o sangue, que corria, rico de oxigênio, pelo seu corpo feio.

 

Milagres se espalham depressa, e mais depressa ainda se crê neles quando se vive à beira do inferno.

Foi Marko quem trouxe a novidade para o matadouro. De lá, ele correu como fogo de palha por todo o Campo: o Dr. Pjetkin salvou o homem de Moscou, no último segundo. Uma operação que ninguém mais teria ousado fazer.

Os prisioneiros entendiam essa sensação na Medicina, mas não entendiam por que o Dr. Pjetkin a realizara logo com esse homem. Gente como Starobin se deixava morrer... pois assim estavam-se dizimando as fileiras do diabo. Cresceriam sempre novos depois, mas quem sabe se seriam como os antigos? Todos sabiam o que esperar de Starobin... sua morte seria um benefício geral. Mas Pjetkin o salvara, quando já estava praticamente morto. Aquilo era um erro... não como médico, mas como prisioneiro.

A notícia da operação correu até o Campo das mulheres. O médico-chefe Dobronin não acreditou, indagou pelo telefone e recebeu a confirmação.

— Incrível — disse à noite no cassino dos médicos. — No outro Campo eles têm um Dr. Pjetkin, que faz operações de embolia pulmonar. Um condenado. Dunia Dimitrovna, você que também é uma idealista... faria essa operação aqui?

— Não. — Dunia escondeu sua excitação sob a máscara da indiferença. E Igor Antonovitch estava agora tão perto dela.

— E por que não?

— Não conheço essa operação, nunca a vi fazer.

— Nem eu. — Dobronin olhou em volta. — Ninguém de nós viu. Mas esse sujeito a fez. Aposto que não ficará aqui no Campo por muito tempo.

O medo que inundou Dunia era como um mar selvagem, que não se podia mais esconder. Pretextou dor de cabeça, correu para o quarto, e jogou-se na cama.

— Não... — disse ela. — Não pode ser! Ó Deus, não me tireis Igorenka... e dessa vez seria uma separação definitiva. Não, não...

Escreveu uma carta desesperada, cheia de gritos, e aguardou o mensageiro, Marko.

O anão apareceu dois dias depois, com carne, uma carta de Pjetkin e a notícia de que Starobin estava fora de perigo. Já tomava caldo de galinha com macarrão fino, e discutia a moderna música soviética com Pjetkin.

— Ele vai ser transferido? — perguntou Dunia quando Marko contara tudo. — Vão levar Igor embora daqui?

— Por quê?

— Agora já sabem que ele é bom demais para ficar em Vorkuta.

— E que adianta reconhecerem isso? Ele foi condenado a dez anos... Para o tirarem daqui, terá de ser perdoado. E isto aqui não é a administração central de campos de prisioneiros, em Moscou. Como nenhum funcionário presta um favor a outros funcionários porque se julga perfeito, vai levar muito tempo até que a façanha de Igor chegue ao lugar certo em Moscou.

O bom Godunov podia falar assim. Não sabia nada do trato que Pjetkin fizera com o quase moribundo Starobin. Pjetkin ainda não lhe contara... e Starobin ainda tinha crises, respirava na tenda de oxigénio (outro aparelho que causara espanto, e que agora beneficiara Jakov Andreievitch), e tinha perturbações no ritmo cardíaco. Marianka chegava diariamente junto da cama, encarava-o furiosa, e dizia:

— Por que é que você não morre, seu aborto? Eu devia fechar o oxigênio.

Starobin, debaixo da tenda de oxigénio, não compreendia suas palavras, sorria-lhe fracamente e acreditava que estava sendo especialmente bem tratado.

No sexto dia, pôde levantar-se e deu os primeiros passos... para a janela e de volta à cama. O coração se fortalecia de modo excelente. Ele até se sentia forte. Não tinha dores, o sangue circulava normalmente, a incisão sarava bem, a fraqueza geral o abandonava. À noite já sonhava com sua mulher, e tinha desejos tão fortes que se envergonhava de si próprio.

— Igor Antonovitch — disse na manhã seguinte — a comida é boa demais. Estou estourando num certo lugar. Se você sabe fazer operações dessas, também lhe deve ser possível desligar esse negócio enquanto eu ficar aqui.

— Vou amputá-lo — disse Pjetkin sorrindo.

— Seu canalha! — Starobin riu e apertou as duas mãos no baixo-ventre. — Não sou feio bastante? Essa aqui é a única coisa em mim que parece normal e bonita.

— Então vou-lhe mandar Marianka Jefimovna.

— Deus me livre! Quer que eu morra pela segunda vez? — Starobin sentou-se na cama. Estava mais animado do que Pjetkin teria esperado. — Seja honesto, meu amigo... ela é sua amante. Você vai para a cama com ela?

— Vou.

— Um prisioneiro com uma médica-chefe. Igor, que aborrecimentos você causa por toda parte! Como funcionário do governo, eu devia denunciá-lo. Isso significaria mais dez anos para você e uma condenação para a Dussova. Mas com você eu sou humano. Ela deve ser como a tempestade da taiga na cama, não é verdade?

— Pior ainda. Não há com que comparar.

— E como é que você agüenta?

— Por amor a Dunia.

Starobin olhou Pjetkin como se esse cuspisse fogo feito um faquir.

— Você ama Dunia e por isso vai para a cama com Marianka? Isso é esquizofrênico, meu caro.

— É legítima defesa, Njelep.

— Mas uma defesa doce. Cuidado, um dia ela vai lhe quebrar a espinha. Essa mulher tem força. Enquanto você estiver deitado em cima dela, ela o quebrará como a um pedaço de madeira seca.

Starobin riu, fez outras piadas sobre as cavalgadas noturnas de Pjetkin, falou da sua mulher, Jekaterina Pavlovna, afastou a coberta, e disse apavorado:

— Olhe só para isso. Ele está ficando independente.

— A partir de amanhã, você poderá tomar banho. Primeiro frio, depois quente. — Pjetkin cobriu Starobin de novo. — Eu lhe prometo... em três semanas você estará com a sua Jekaterina Pavlovna...

Na cozinha do hospital, ele organizou um plano de dieta para Starobin. Muita verdura, poucos temperos, pouca clara de ovo, mais hidratos de carbono, batatas, pepinos em conserva. Quando Starobin conseguiu andar sozinho pelo quarto e pelo corredor, Pjetkin contou a verdade a Marko.

— Eu tirei a minha liberdade do fundo do peito de Starobin. Tenho a sua promessa de me deixar ir para a Alemanha.

Marko silenciou. Não demonstrou que aquilo o atingira como um soco.

— E Dunia? — perguntou, porque via que Pjetkin queria alguma resposta.

— Vou mandar buscá-la.

— Da Rússia para a Alemanha? Você acaso pode tirar o Ural do lugar?

Marko desistiu de mais fantasias. Recolheu-se ao seu quarto e tratou Jevronek distraidamente, o que este interpretou como sinal de perigo, enchendo-se de medo. Sentou-se na cama e ficou olhando as tábuas do assoalho.

Que fazer? Ele vai mesmo para a Alemanha. Como é sensível uma mulher apaixonada. Dunia pressentia tudo.

Para a Alemanha.

Nessa terra gorda, estuante de saciedade.

Nessa terra em que Igor Antonovitch Pjetkin não vale um níquel. Enquanto aqui, na Rússia, não há rublos que paguem o seu valor.

Para a Alemanha, que não espera por ele, não precisa dele, que o olhará de esguelha, como russo, e o deixará atirado em qualquer canto.

Marko não achava saída para esse labirinto. Tinha perdido o fio condutor. Só lhe restava uma coisa, a virtude dos russos: esperar.

A ela recorrem todos os que estão perplexos.

O tempo é um milagre...

Starobin recobrava a saúde como uma planta à qual apenas faltara água. Pjetkin o examinava diariamente, a Dussova uma vez por semana.

— Por que o senhor ainda está vivo? — perguntava-lhe ela cada vez deixando Starobin confuso.

— Ela não gosta de mim — disse um dia a Pjetkin. — Mas por que será? Sempre atendi a Vorkuta, por mais loucos que fossem os seus pedidos. Quanto mais eu me recupero, e cada vez que ela verifica isso, parece ofendida. Quando poderei voltar a Moscou para não ver mais essa cara queixosa?

— Daqui a quatro dias.

— E estou curado?

— Perfeitamente. Exceto por um detalhe.

— Ah! Então há realmente um problema! Quanto ainda posso viver?

— Até os cem anos, Njelep. Mas há três coisas que não deve fazer: beber demais...

— Nunca fiz isso.

— Nada de excitações selvagens...

— Conselho idiota para um funcionário soviético que comanda campos de prisioneiros...

— E nada de acidentes em que não haja sangue. Starobin fitou Pjetkin desanimado.

— Você está bêbado, amigo.

— Deixe-me explicar, Jakov Andreievitch. Você tem tendência para a formação de coágulos, por motivos insignificantes. Quando cai e aparece uma mancha roxa, quando bate em algo, quando escorrega na neve ou tropeça... pode-se formar de novo um bolo de sangue coagulado no seu organismo e entupir uma veia. Há pessoas que têm essa tendência. Você é uma delas. Nenhum médico jamais lhe disse isso?

— Não. E nada mais pode acontecer?

— Um automóvel pode atropelar você...

— Quero dizer, com o meu coração.

— O coração está bom, você nunca teve nada no coração.

— Nos últimos dias eu pensava que fosse gripe.

— Pois com um coágulo desses numa artéria principal, qualquer outro sujeito estaria morto. Você é uma sensação na Medicina.

Starobin andava pelo quarto.

— O meu caso deve ter-lhe mostrado o quanto a Rússia precisa de você.

— Então deixem-me casar com Dunia!

— Que cabeça de pau! Quero um machado para o almoço, assim na hora da visita vou lhe quebrar o crânio.

Nunca mais falaram naquilo... mas ficou entre eles, como um campo minado. Starobin tinha de novo a sua vida, estava mais sadio que antes... mas o preço era o cumprimento da promessa, a liberdade de Igor... uma promessa que ele tinha de participar a Moscou, sem qualquer esperança de sucesso.

A correspondência entre Dunia e Pjetkin tornava-se cada vez mais patética. Marko dissera a verdade... estava tão impotente quanto Dunia, quebrava a cabeça imaginando como reter Igor na Rússia. A Alemanha... aquilo era uma fuga que terminava no infinito. Não era um novo começo, era a morte.

- Marko falou no assunto até com Starobin. Aproveitou um dia em que Pjetkin tinha seis operações, e não saiu da sala. Todos os médicos estavam trabalhando, até a Dussova.

Starobin arregalou os olhos quando Godunov entrou no quarto e disse ”Bom dia, camarada Comissário”.

— Isso me tranqüiliza enormemente — respondeu Starobin. Saltou da cama e rodeou Marko.

— O que o tranqüiliza, camarada? — perguntou este, comportado.

— Que existem pessoas mais feias do que eu. Sempre pensei que eu era invencível. O Dr. Pjetkin o mandou? Boa terapêutica... Renova-me espiritualmente. Como se chama?

— Marko Borissovitch Godunov.

— O grande czar! — Starobin riu alto, sua boca de peixe ocupou-lhe a metade da cara. — Que manhã divertida!

— Tenho um pedido — disse Marko, sem se impressionar com a alegria de Starobin.

— Pode falar.

— Esqueça o que prometeu a Pjetkin. Não permita que ele viaje para a Alemanha.

— Mas que pedido! — Starobin estava tão perplexo que perdeu a alegria. — Como se permite tais insolências, camarada?

— Sou amigo de Pjetkin.

— Não está cometendo um enorme engano?

— Sou como um pai para ele.

— Quem conheceu o herói nacional Pjetkin — Starobin torceu o rosto feio tornando-o ainda mais pavoroso — achará que Igor Antonovitch fez uma péssima troca.

— Mas o exterior conta, camarada? O senhor deve saber melhor que eu. Somos irmãos marginalizados, devíamo-nos entender melhor. Por que Pjetkin tem de ir para a Alemanha?

— Mas ele não tem de ir... ele quer ir!

— Isso é outra teimosia dele.

— Eu sei. Mas que posso fazer?

— Não o deixe fugir.

— Então ele continuará lutando, alto e forte, com aquela cabeça dura, pelo casamento com essa Dunia. Pois jamais desistirá dela.

— Não, nunca.

— Nesse caso, a Alemanha ainda é o melhor para ele.

— E se fizessem uma exceção, deixando-o ficar com Dunia? Starobin sacudiu a cabeça.

— Não sou eu quem decide isso... é o Ministério do Interior. E lá está o problema. Dunia e Pjetkin já é um caso encerrado nos documentos. Você sabe... o que está num documento fechado está enterrado, mais fundo e mais seguro do que qualquer caixão num cemitério. Camarada... o seu pedido não pode ser atendido.

— Então deixe Igorenka no campo de prisioneiros. Meu Deus... ele é russo, não é alemão, todos sabem disso! Nomeie-o médico-chefe do Campo, mas em liberdade. Por mim, podem deixá-lo com a Dussova, esse esplêndido demónio... é possível que com o tempo o seu amor obscureça todas as lembranças de Dunia.

— Vamos pensar nisso.

Starobin refletia na sua promessa. Sentia-se preso entre dois muros.

Marko deixou o hospital intranqüilo. Esse Starobin é um sujeito poderoso, pensou. Mas na Rússia os homens poderosos sempre têm sobre si outros homens mais poderosos... é difícil ter esperanças, fazer prognósticos, acreditar em sucesso.

Com o próximo transporte para o Campo das mulheres, Marko levou a triste notícia a Dunia.

— Tudo ainda parece uma nuvem fantástica. Acho que nem Igor sabe mais aonde deve se dirigir. Mas seu navio está em alto-mar... ele não pode mais voltar atrás...

Exatamente depois de quatro semanas, Starobin regressou a Moscou. Estava perfeitamente curado, um exame minucioso com eletrocardiograma e radiografias mostrara que sua circulação era normal, o coração batia forte e não havia prejuízos pós-operatórios. A operação de Trendelenburg, feita em Vorkuta, já legendária, fora um absoluto sucesso. Em Moscou, já se sabia disso. O Professor Demichov dissera que gostaria de conhecer esse tal Pjetkin. Um desejo fatal, pois atrás do nome Pjetkin havia, nos documentos, uma pequena cruz vermelha, que proibia tudo.

Pjetkin levou Starobin até a estação. Como era prisioneiro, dois soldados o acompanhavam. Um quadro perturbador para os conhecedores da situação. Starobin se despedira, no Campo, do coronel Baranurian, de Marianka Dussova, e dos outros médicos. Agora estava sentado no seu vagão especial, dera a mão a Pjetkin, e desejava que o trem partisse de uma vez. Despedir-se numa tal situação era um sentimentalismo estúpido, que se devia abafar.

As portas se fecharam, Pjetkin pôs a mão pela última vez no ombro de Starobin.

— Boa viagem, e cumprimente por mim Jekaterina Pavlovna e as crianças.

— Obrigado, Igor Antonovitch.

— Está lembrado da sua promessa, Njelep?

— Vá para o diabo! — Starobin comprimiu-se contra o estofamento, puxou o gorro de peles sobre o rosto e ficou quieto.

Quando o trem partiu, não olhou para fora nem para trás.

 

Seis semanas passaram-se e Starobin silenciava em Moscou. A neve já começava a derreter-se na Rússia Central, transformando as ruas das aldeias em lama. No Don e no Volga, as flores da primavera começavam a perfumar o ar, bem como os doces brotos de freixo. Os ratinhos da estepe saíam de suas tocas, e nas baixadas desabrochavam as flores das campinas... Em Vorkuta porém a neve continuava firme, e só o céu aberto mostrava que se iniciava um novo ano, o inverno passara, em breve os musgos e liquens da tundra também estariam em flor.

Pjetkin já não acreditava na promessa de Starobin, mas pôs-se a mentir a si próprio, e a viver principalmente da sua ilusão.

Começou a aprender alemão.

Aproveitava cada momento livre para enfiar-se nos livros. Tomara-os por empréstimo da escola de Vorkuta. A administração do Campo os conseguira para ele, depois que o coronel Baranurian dera o visto à permissão. Muitas coisas voltavam à lembrança de Pjetkin, o Hans Kramer de Kõnigsberg não estava inteiramente morto, mas era difícil revivê-lo, pois a língua alemã agora era estranha para ele. Estudou gramática com obstinação, dizia em voz alta as frases alemãs, para acostumar-se ao som e recordar.

Marianka lhe tomava o vocabulário. Primeiro atirara os livros na parede, e pisara em cima deles... mas Pjetkin os apanhava de novo, com uma paciência que finalmente a dobrou.

— Muito bem — disse ela. — Você é mais forte. Pois aprenda essa maldita língua... vou aprendê-la também.

As semanas corriam.

Lentamente, a esperança foi desaparecendo em Pjetkin, como uma gota de água na areia do deserto. Starobin esquecera-se dele, estava claro agora.

— Implorei ao céu — disse Dunia a Marko naquelas semanas. E foi isso também o que escreveu a Pjetkin. ”Nunca mais, como pessoas livres, estaremos tão unidos como agora. Sei que esperanças você deposita na Alemanha... mas não serão utopias, Igorenka? Quem jamais conseguiu tirar uma mulher da Rússia, se as autoridades não quiserem? Meu amado, a Rússia é sua pátria. Somos jovens, e em algum lugar nessa nossa magnífica terra havemos de nos reencontrar. Na Alemanha... jamais!”

Pjetkin começava a entender isso. Quase agradecia a Starobin por tê-lo esquecido.

”Vou ficar com você”, escreveu a Dunia. ”Ó meu Deus, por que é que o amor fere tanto...”

Quando tudo voltara ao normal, chegou uma ordem de Moscou.

Um breve escrito, cuja clareza eliminava qualquer reflexão posterior:

”O médico Dr. Igor Antonovitch Pjetkin, de momento no Campo de Prisioneiros I de Vorkuta, deve apresentar-se imediatamente no Ministério do Interior, Seção VI, Sala 162. Pode viajar sem acompanhante. Este escrito vale simultaneamente como passaporte e para que lhe seja concedida uma passagem.”

A assinatura era ilegível. Um documento que mudava a vida de Pjetkin.

— Você conseguiu mesmo, Igor Antonovitch — disse o coronel Baranurian, que lhe entregou o papel com um sorriso contrafeito.

Imediatamente, dizia a ordem de Moscou.

Que significa imediatamente?

No mesmo dia? Amanhã? Dentro de uma semana? Pode-se interpretar ”imediatamente” como político, e haverá sempre outros resultados.

Igor Antonovitch começou a empacotar suas poucas posses e pensou no que devia deixar ali, isto é: um hospital moderno, progressista, limpo, um modelo de organização e vontade firme, e pediu ao coronel Baranurian que chamasse o Ministério do Interior, avisando que o médico Dr. Pjetkin iria a Moscou imediatamente depois de ter ordenado tudo em Vorkuta.

— Isso foi muito bem pensado — disse Baranurian com admiração. — Assim você pode encompridar esse ”imediatamente” à vontade. — Marko tornou-se um verdadeiro atleta. Corria incessantemente entre o Campo dos homens e o das mulheres, trazendo as dolorosas cartas de Dunia e levando os escritos persuasivos de Pjetkin, desesperados e cheios de esperança ao mesmo tempo.

Eram sempre as mesmas afirmações: ”Vou levar você um dia para a Alemanha, Duniuschka. Acredite em mim! Haverá possibilidades, deixe-me primeiro chegar à Alemanha. Aproveitemos agora aquilo em que ninguém pode imitar a nós-russos: esperar! Meu anjo, vamos exercitar essa virtude com amor e desespero, vamos suportar tudo, vamos aprender o mais difícil: paciência, paciência, paciência... Meu amor, eu tenho certeza absoluta: o futuro nos pertence!”

Belas palavras essas, mas eram como flores que murcham logo. Dunia as soletrava entre soluços, e Marko as analisava com uma perspicácia que tirava Pjetkin da sua segurança protetora mais frágil.

— Concretamente... — disse Marko. — Que vai acontecer?

— Primeiro tenho de chegar à Alemanha. Como posso saber tudo de antemão?

— E onde devo ficar eu? Em Vorkuta? Como posso conservar a ligação com Dunia? Você acha que uma única carta sua jamais chegará às mãos dela? Eu também terei de deixar a Rússia.

— Marko, isso é loucura. Aí vamos perder Dunia de vista...

— Se eu ficar aqui, com toda a certeza. Mas se eu sair...

— E como pretende ir para a Alemanha?

— Quem está falando em Alemanha, seu bobo, meu filhinho? Vou-me estabelecer na Finlândia.

Pjetkin desistiu de interrogar Marko. Os planos de Godunov eram sempre enigmáticos. Restava apenas admirá-los. Se Marko pensava na Finlândia, devia ter também uma ideia que só era possível no seu cérebro.

”Marko manterá a ligação entre nós. Que seríamos sem ele? Está cheio de planos que ninguém entende, mas podemos construir sobre eles como o melhor alicerce. Que milagre de homem! Duniuschka, meu amor, minha única estrela no céu... seja forte. Deixo a Rússia com o coração despedaçado, pois amo este país e me sinto como russo. Nunca entenderei por que estão fazendo de mim um alemão, apenas por eu ter nascido em Kõnigsberg. Que significa isso afinal? Russo, alemão, francês, inglês, italiano, americano, chinês, árabe, esquimó... são apenas nomes. Mas todos somos seres humanos. Quando é que a humanidade vai entender que é feita de seres humanos?”

Palavras... palavras... palavras...

Só uma coisa era real: a ordem de Moscou.

Imediatamente!

Marianka Jefimovna tinha uma interpretação inteiramente diferente dessa palavra. A carta de Moscou fora para ela um raio no coração. Quem poderia entender aquela mulher? Pela primeira vez, Vorkuta via uma Dussova completamente fora de si. Aceitava todos os que se apresentavam como doentes, e assim como antigamente gritava o seu odiado ”Apto!” berrava agora, correndo ao longo das filas de homens: ”Doente! Doente!”

A fila de miseráveis parou, incrédula, de bocas abertas, até que a levaram, debaixo de porretadas, ao hospital, do mesmo modo pelo qual antes os tinham enxotado. Aquilo se repetia cada manhã, e pela primeira vez Pjetkin assumiu pessoalmente a seleção. Defrontou-se com uma multidão de simuladores, sacudiu tristemente a cabeça e disse em voz alta:

— Irmãos, isso não se deve fazer. Isso é camaradagem? Estão tirando o lugar dos verdadeiros doentes...

Quem jamais se atrevera a segurar a Dussova quando ela explodia feito um vulcão?

— Há cem maneiras de suicidar-se, e eu vou escolher a mais espetacular! — gritou ela, que ninguém mais reconhecia, pois o seu tom quente se perdera. — Eles têm de deixar você comigo, Igorenka! Alemanha? Isso fica na Lua! Ó céus, se nada ajudar, então que vá tudo para o inferno! Vou matar a nós dois. Ninguém mais nos possuirá!

Pjetkin não levou a sério aquelas ameaças, mas Marko levou. Pela primeira vez na sua amizade com Igor, Marko estava condenado a ser mero espectador. Não se podia mais suster aquilo que ocorria no hospital.

Marianka lutava como contra uma sentença de morte. Telefonou até para Moscou, chamou todos os camaradas que davam ordens, até mesmo o Primeiro-Secretário do Ministério do Interior, o chefe do KGB, alguns altos funcionários do Partido. No fim dessas conversas, um homem importante do Ministério lhe disse grosseiramente:

— Camarada Dussova, cale a boca! Isso é uma decisão política. Há coisas que você não entende! E não temos necessidade de lhe dar explicações, mas podemos fazer uma coisa: condená-la conforme o parágrafo 58!

— Pois enforquem-me no mastro da bandeira de Vorkuta! — berrou Marianka em resposta, dando socos na mesa, que o homem de Moscou escutou perfeitamente. — Se Pjetkin for mandado para a Alemanha, não sou mais gente.

Ela não obteve resposta: Moscou tinha desligado.

— Você ama mesmo Pjetkin tanto que seria capaz de se destruir por ele? — perguntou o coronel Baranurian. Ele não saíra enquanto a Dussova falava ao telefone na sua sala. Sabe Deus o que ela poderia berrar ao telefone, naquele seu desespero, e depois alguém diria a Baranurian:

— Você podia ter evitado isso, pois o telefone fica na sua sala!

Com Moscou, era preciso ter cautela, e deixar a valentia de lado.

— Que sabe você sobre amor? — A voz dela estava cheia de veneno. Fumava com dedos trémulos, um cigarro após o outro, e bebia a vodca que Baranurian lhe servia, como se fosse água, fitando sempre o telefone. A quem mais poderá chamar, pensava Baranurian. O próprio Brejnev? Kossygin? Podgorny? Será que vai mobilizar os jornais? Que loucura! Quem haveria de escrever sobre uma coisa dessa? Quem se atreveria a publicar uma só palavra sobre Vorkuta e os problemas da Dussova? Todos amam sobretudo a sua própria cabeça. Todos covardes, lambedores de botas, bajuladores, kulaks como há cem anos, quando se agradecia pelas chicotadas com beijos nas mãos dos carrascos. Nisso a Rússia era imortal, eterna, jovem como nenhum outro povo na terra: seus filhos gostavam de rigorismo.

— Amor? — O coronel Baranurian fitou o teto. — Sou viúvo há dezesseis anos. Tenho quatro filhos crescidos. Também eu um dia fui jovem, é claro, e corria atrás das saias como um gato segue as gatas. Mas nunca me entreguei inteiramente a uma mulher. Há muitas delas por aí, foi o que sempre disse a mim mesmo quando um caso terminava. O mundo está cheio de belos seios, quadris e coxas. Eu me punha a andar sem destino pelas ruas, e praças, e olhe só: elas pululavam por ali, belas mulheres, bastava estender a mão. Marianka Jefimovna, você também devia pensar desse modo. Pjetkin pode ser substituído.

— Assim fala um homem referindo-se a outro homem — disse ela e esvaziou mais um copo de vodca, e Baranurian se perguntou quando ela cairia da cadeira, e teriam de levá-la dali, inteiramente bêbeda. — Igor Antonovitch é a minha estação final, coronel Ou o meu nascimento... Com ele começa a vida ou o nada Que tive até hoje desta maldita vida? Até um percevejo tem mais oportunidades... ao menos pode-se acasalar e sugar sangue. Entendeu?

— Só em parte. Você pensa de modo muito unilateral. Isso não adianta nada, Marianka Jefimovna. Pjetkin será despachado para a Alemanha, conforme quer. E vai esquecer que, no fundo, deseja ser russo. Mas você será exilada para o deserto. Existem campos de concentração ainda mais isolados do que este. Diante deles, Vorkuta é uma cidade grande. — Baranurian pegou a mão de Marianka, tirando-a do telefone. — Na verdade, Pjetkin se chama Hans Kramer.

— Sei disso. Vi nos seus papéis. Mas Igor Antonovitch Jamais será um alemão.

— Está tão certa disso? Eu não, Marianka. O que é que esse rapaz conhece do mundo? Orfanato, escolas, universidade, sul da Sibéria, e, mesmo aqui, só Chelinogrado, Sergejevka e agora Vorkuta. Realmente, uma vida desoladora. A existência no decadente Ocidente será, para ele, como um rio de vinho doce que ele vai beber e com o qual nos próximos anos ficará totalmente embriagado. Fato bem natural, aliás. Mais tarde, então, vai acordar dessa bebedeira, certamente, e sentirá uma grande miséria, mas não terá mais forças para beber da água da Sibéria... aquela doçura toda o terá consumido. Portanto, não espere que Pjetkin, o grande, o santo Pjetkin, seja sempre o herói, o anjo. Dê um fim nesse capítulo da sua vida, Marianka.

— Vou dar um fim em tudo — disse ela, sombria. — Para que estou vivendo, afinal?

— Você é médica.

— Ó céus... uma péssima médica!

— Isso é conversa. Você odeia a si mesma, e por isso está matando suas qualidades. Bem sei o que realizou na mesa de operações, ao lado de Pjetkin.

— Ao lado de Pjetkin, sim. Sempre Pjetkin! Sempre ele! Está vendo em que se resume a minha vida?

— Pois mobilize seus conhecimentos!

— Em campos de concentração? Qual foi a minha tarefa até hoje? Juntar elementos aptos para o trabalho. Conservar a quota das doenças. Desprezar moribundos. Tornar-me o demónio dos deportados. Para isso estudei seis semestres de Medicina!

Marianka sacudiu a cabeça. Sentava-se à mesa, encolhida, agarrando o copo de vodca, e o álcool pairava como uma névoa nos seus olhos.

— Não quero mais, Baranurian. Que sentido tem tudo isso? Quando Igorenka tiver partido, vou enlouquecer. Não sorria, sou uma péssima médica, mas minha capacidade de diagnóstico ainda alcança até ali, posso prever isso. Vou ficar doida, inteiramente doida. — Ergueu-se pesadamente, e foi devagar até à porta. Ereta como um pedaço de pau sobre rodas. Na porta, virou-se mais uma vez. — Quando é que Igor vai para Moscou?

— Se conseguir, amanhã.

— Então, depois de amanhã estarei louca. Baranurian, encomende para depois de amanhã um caixão para mim. Você conhece as minhas medidas. Um caixote de pinho basta.

O coronel Baranurian não a reteve mais, mas também não encarou suas palavras com leviandade. A ameaça era legítima, fundamentada, e até plausível. O começo da loucura já estava no seu olhar. Era estarrecedor reconhecer uma coisa dessas.

Finalmente, Baranurian ainda tentou com seus amigos de Moscou. Telefonou como não se telefonava em Vorkuta durante um mês inteiro. Mas que conseguiu? Os militares naturalmente não podiam ajudar. Assim, mandaram-no adiante, e ele finalmente topou com os camaradas que já tinham sido levados ao desespero pela Dussova.

— O senhor também, camarada coronel? — berrou alguém.

— Existe alguma epidemia aí em Vorkuta? A febre Pjetkin, hein? Não queremos mais intervenções de qualquer espécie nesse caso. Mas uma coisa podemos fazer: livrá-lo da Dussova, coronel!

É espantoso com que rapidez Moscou pode trabalhar quando se cospe nas pessoas certas e se lhes dá um pontapé em partes sensíveis. Ainda antes que Pjetkin partisse, um avião aterrisou num pequeno aeroporto militar perto de Vorkuta, e uma comissão do KGB desembarcou. Um major cumprimentou o coronel Baranurian formalizado apesar da sua patente inferior, de modo quase insultante, e perguntou secamente:

— Onde está ela?

— No hospital, onde mais?

A Dussova estava preparada para tudo. Em três horas o trem de Pjetkin deixava Vorkuta. Marko estava com ele e, secretamente como sempre, trazia-lhe as últimas palavras de Dunia. Pjetkin dobrou a breve carta e enfiou-a com o retrato de Dunia no estojo de couro que agora trazia no peito, pois Maríanka não o tocaria mais... Na última noite ela fora como um incêndio na estepe, e ele tivera medo de que o dilacerasse como um tigre, e lhe mordesse a jugular. Pela manhã, ela chorara, saltara da cama, pusera-se mais uma vez diante dele em toda a sua perfeita e magnífica nudez e dissera:

— Leve essa imagem com você, Igorenka. Amanhã ela estará destruída. A razão está saindo da minha cabeça como o suor sai dos poros.

Ele a fitara longamente, mudo, e, estarrecido como Baranurian, reconhecera no olhar dela a loucura que se avolumava.

— Eu também não vou esquecer... — dissera ele, rouco.

— Você é a Rússia na sua imagem mais perfeita...

Quando ele saíra do quarto, também a vida nela se desmoronara. Agora estava lá sentada, pronta para a última grande aparição. Um declínio com raios e trovões, como convinha a uma Dussova.

O major de Moscou, cujo nome não importa, contemplou-a com olhos maus. Ela respondeu ao seu olhar como uma gata pronta para o salto.

— Uma pergunta — perguntou ele. — Você está doida?

— Estou.

— Está nos obrigando a tomar medidas drásticas. Vamos levá-la para um lugar calmo, onde poderá se recuperar.

— Que modo delicado de descrever um hospício, camarada. A Dussova deu um riso sombrio.

— Temos sanatórios para doentes especiais. Pensamos em Sotschi para o seu caso.

— Uma mansão com grades nas janelas. Um inferno entre palmeiras. A gente vê o sol, o céu, ouve o murmúrio do mar e o sopro do vento, cheira as rosas e as algas que chegam boiando. mas está morto! É lá que me querem botar? Idiotas!

De repente, ela saltou, atirou um vaso de vidro na cabeça do major, que não teve mais tempo de se abaixar... o vaso de flores acertou em cheio na sua testa, abrindo-a, e o sangue lhe jorrou pela cara.

Foi essa a última ação de Marianka Jefimovna. Quatro soldados a agarraram, dobraram-lhe os braços para trás, e arrastaram-na para fora do quarto.

Ela ria. O seu rosto selvagem era ao mesmo tempo um grito e um riso, um sol que estourava e morria.

Pjetkin costurou a ferida do major. Para ele, aquela era também uma última ação. Meia hora mais tarde, os soldados tiraram Marianka Jefimovna Dussova do Campo, num caminhão. Ela carregava uma trouxa, usava seu longo manto de peles, um lenço sobre os compridos cabelos negros. Subiu no caminhão, sentou-se atrás, na caixa, a lona caiu, e com isso a vida da Dussova havia na verdade chegado ao fim. O caminhão partiu depressa para a cidade de Vorkuta, para a estação ferroviária. O major do KGB deixou o hospital logo depois, puxando o gorro sobre o rosto com o curativo.

Baranurian recebeu-o na sede do comando.

— Que será feito de Marianka Jefimovna? — perguntou formalizado. Tomara alguns copos para ter coragem de perguntar.

— Não sei, camarada coronel. — O major saudou-o com indiferença.

— como? O senhor a leva daqui e não sabe de nada?

— Temos uma ordem de Perm, e Perm tem uma ordem de Moscou. Texto: A médica Dussova deve ser imediatamente retirada do serviço no Campo...

Retirada... essa palavra não agradou nada a Baranurian. ”Transferida” seria melhor, mais tranqüilizador. Mas ”retirada”? Quem conhecesse o jogo de palavras dos russos, adivinharia que ali acontecera algo definitivo.

— O senhor veio apanhar Marianka Dussova... preciso de uma confirmação por escrito.

— Moscou confirmará por mim. — A voz do major era sarcástica.

— Sujeito repulsivo — disse o coronel quando o major partiu. — Dá vontade de lhe cuspir na cara!

Pjetkin estava à janela quando levaram Marianka. Não podia ajudar, mas quase se sentia esmagado porque a sua ruína era o último resultado do seu amor por ele. Ele sempre desejara a construção, o progresso, as realizações... e deixava ruínas atrás de si.

Nunca mais se ouviu falar em Marianka Jefimovna Dussova. Não apareceu mais em nenhum campo, pois a novidade teria aparecido. O serviço de notícias de campo em campo é perfeito. Todos os que são transferidos, e sempre há gente sendo transferida, descarregam um saco cheio de novidades consigo. Assim, sempre se sabe o que aconteceu em outras partes.

Se a Dussova tivesse aparecido, seria a notícia número um. Mas permaneceu sumida... a Sibéria a engolira.

 

A partida de Pjetkin de Vorkuta foi comovente. Apesar dos berros dos chefes, dos golpes de martelo e dos pontapés, a praça da inspeção encheu-se com os homens do serviço interno. Os doentes que podiam andar saíam dos quartos e juntavam-se a eles. Dos depósitos e oficinas, da cozinha e do matadouro, até um destacamento da seção de quarentena conseguira ficar na praça, embora afastado.

Quando Pjetkin saiu da casa acompanhado pelo comandante Baranurian, todos tiraram os gorros. Era um cortejo de miséria, mas também de indizível gratidão.

— Deus te abençoe... — escutou várias vezes num murmúrio. — Deus te acompanhe...

ele baixava a cabeça, a garganta apertada, carregando sua trouxa de viagem. Este é o purgatório, pensou. Se eu passar por ele, deverei estar limpo, purificado pelo fogo. Mas a pergunta sempre ficará: será que agi direito... ou sou um porco, um covarde, um fugitivo?...

Diante do grande portão, a Companhia II estava em posição de sentido. O tenente Zablinsky segurava a porta do carro. Pjetkin olhou em volta várias vezes... Marko não estava à vista, desaparecera uma hora antes. O gordo Jevronek estava pendurado à janela do matadouro e sorria.

— Suba... — disse Baranurian empurrando Pjetkin de leve. — Agora você está fora do Campo. Um homem livre. Não olhe mais para trás...

Seguiram lentamente pela estrada ainda congelada, até a estação, onde os aguardava o trem normal para Moscou.

Pjetkin e Baranurian ficaram parados na estação, enquanto um funcionário da linha férrea guardava a pobre bagagem. Adiante e atrás do vagão de passageiros, havia vagões de carga... Poucas pessoas viajavam, em Vorkuta. Mas muitos chegavam ali, não naquela estação, e sim na rampa da estação particular do campo de prisioneiros.

— Sensação estranha essa — disse Baranurian, andando de lá para cá com Pjetkin. — Você é filho do meu amigo, do meu companheiro de guerra... posso tratá-lo por você? Seu nome é Pjetkin, mas apesar disso é alemão. Você está abandonando a Rússia, na qual cresceu, que fez de você um homem, um médico, um ser apaixonado. Quando pensa em Anton Vassilievitch Pjetkin, pensa no seu pai. Mas ainda assim, não pode ser um russo. Que mundo complicado este. E vai ser mais complicado ainda, meu rapaz, quando estiver na Alemanha. Tudo lá é diferente daqui. Quase uma outra estrela. Sabe disso?

— Para ser franco, nunca me interessei pela Alemanha. Li algumas coisas apenas, em jornais, revistas, livros...

— Sempre através das mesmas lentes, Igor Antonovitch. Essas lentes só vêem imperialistas, revanchistas, exploradores do operário, inimigos da classe operária, promotores de guerra, inimigos do socialismo, gordos, pançudos, depravados, mentirosos, traidores... tudo isso pode estar correto. Mas você também vai encontrar, entre eles, seres humanos. Gente de valor. Eles existem por toda parte, também no Ocidente. E aí vão começar as dificuldades. E virão as indagações: qual é o meu lugar? Que devo escolher? Sou Pjetkin ou Kramer? Você vai necessitar de muita força, Igor Antonovitch.

Pjetkin estava parado no degrau da escadinha do vagão, olhando a amplidão por sobre a cabeça de Baranurian, e julgou ver no céu as nuvens de vapor da lavanderia do Campo das mulheres. Atrás das casas da cidade começava a solidão, a estrada para os campos, o complexo do campo de prisioneiros, o mundo entre cercas altas, sobre o qual jazia uma cúpula de gemidos congelados.

Olhou o relógio da estação. Agora Dunia estava na mesa de operação ou fazia suas visitas, pensava nele e sabia que em alguns minutos o trem sairia de Vorkuta.

Dunia. As suas últimas palavras estavam no estojo de couro sobre o coração de Pjetkin.

”Deus esteja com você, meu amor. Espero... espero... espero.” Nada de assinatura. Apenas uma mancha úmida.

Uma lágrima.

— Por favor, cuide de Dunia — pediu Pjetkin em voz baixa. Baranurian arregalou os olhos. Nas suas sobrancelhas e pálpebras havia flocos de neve.

— Se eu a encontrar...

— Ela é médica no Campo das mulheres...

— Igor Antonovitch, seu cachorro... você me enganou todo o tempo! — Baranurian juntou as mãos. Abraçou Pjetkin beijou-o nas faces. O Administrador da estação assobiou. — O filho do velho Pjetkin! Boa sorte, meu rapaz...

— Por favor, não esqueça Dunia...

— Vou fazer o que puder. O Campo das mulheres tem um comandante idiota, e o médico-chefe Dobronin é um porco. Mas vou fazer o possível para ver Dunia. Será que você poderá escrever a ela, do Ocidente, como homem livre?

— Vou poder, sim. Mas será que as cartas chegarão?

— Mande-as para mim.

— Serão censuradas também.

— O estranho amigo Marko...

— Marko desapareceu. Não veio se despedir, é um sujeito estranho, que sempre aparece quando se precisa. Mas agora sumiu. Não queria que eu deixasse a Rússia.

A locomotiva apitou. Portas foram fechadas, um funcionário berrava na estação, como todos os funcionários de linha férrea do mundo:

— Subam! As portas serão fechadas! Para trás!

Mas ali aquilo era absurdo, pois não havia mais ninguém para subir ao trem. Só Baranurian estava lá. Pjetkin fechou o trinco da porta, baixou a janela do vagão, e curvou-se para fora.

— Boa sorte, Igoruschka — disse Baranurian apertando as mãos de Pjetkin. Era a primeira vez que usava aquele nome carinhoso. — Quer um conselho final? O conselho de um velho gasto?

— Sim, Lew Dementievitch.

— Não esqueça a Rússia.

— Nunca... nunca!

— Então você será sempre um doido... um doido sagrado. O trem partiu, rangeu nas rodas e nos freios. Pjetkin dava adeus pela janela descida. O coronel Baranurian fez a saudação militar, em posição de sentido, mão no gorro. Pjetkin sentiu um calafrio. Lembrou-se de repente do seu pai, que também fizera aquela saudação numa estação de trem, despedindo-se dele, em Kichinev. Fora a última vez que o vira.

Pjetkin recolheu a cabeça e levantou o vidro da janela.

Procurou seu compartimento, abriu a porta e surpreendeu-se.

Diante do seu lugar à janela estava Marko Borissovitch Godunov, rodeado de vidros e latas de conserva, um enorme pedaço de carne assada e um cesto trançado cheio de ovos. Estava sentado ali em meio aos seus tesouros, mordendo gulosamente um grande pepino salgado. Um vidro redondo de pepinos balançava-se sobre os seus joelhos pontudos.

— Marko... — disse Pjetkin. Não devo chorar agora, pensou. — Achei que você ficaria com Dunia.

— É preciso pensar com a cabeça, filhinho. Entre a Alemanha e Vorkuta há uma grande distância. É melhor ter uma estação no meio desse trajeto. Eu não lhe falei na Finlândia? Pois estou fazendo turismo para Helsinque. Para Jevronek, estou regressando a Moscou. Ele deve estar-se embebedando de alegria. — O anão sorriu e bateu no assento à sua frente. — Venha, sente-se, Igorenka. Pegue um pepino, pão com lingüiça, um golinho de vinho de bétula. Vamos, filhinho... não vai ver comida russa por muito tempo...

 

Em Moscou, Pjetkin não encontrou seu colega de orfanato, Starobin. Ele se escondia, era claro, pois na verdade estava sentado atrás de uma daquelas cem portas, um homem poderoso, que comandava da penumbra.

Marko separara-se de Pjetkin na estação. Rápido, com poucas, palavras, como se quisesse apenas comprar cigarros. Era certo que ia à estação de Leningrado pegar um trem para a Finlândia.

Pjetkin apresentou-se ao Ministério do Interior, conforme as ordens, entregou o seu bilhete, foi levado através de algumas salas e acabou finalmente diante de um homem parecido com Béria na juventude. Usava um pincenê antiquado no nariz, e fungava depois de cada palavra, como se tivesse um resfriado crónico e incontrolável.

— O senhor viaja depois de amanhã — disse ele. Tinha uma voz sentimental como um cantor de igreja. Contemplava Pjetkin compassivo, folheou alguns papéis, ajeitou o seu pincenê e recostou-se. Cruzou as mãos sobre o estômago, como se quisesse cantar um aleluia. — Receberá sua passagem na sala 67. Que diabo, que aparência a sua! O senhor não pode viajar assim para o Ocidente. Quer que passemos vergonha? Um médico com esse traje! E esse capote!

— O coronel Baranurian me arranjou ambos em Vorkuta. Era o mais moderno que havia por lá. — Pjetkin sentiu-se bem, dizendo aquilo. — Se me tivesse visto uma semana atrás, camarada.

— Bem, quem vive num campo de concentração não é um homem fino — respondeu o outro azedo.

— Mas agora sou um homem fino?

— Agora, é um homem livre. Compre na loja GUM um terno decente, um capote leve, roupa razoável, bons sapatos. Os rublos, os cartões e os nomes dos diretores do GUM a quem pode se dirigir serão também entregues na sala 67. Vamos telefonar ao GUM, para que preparem tudo. Mais alguma coisa?

— Estou reclamando até hoje os meus ordenados de Chelinogrado — disse Pjetkin. O homem do pincenê abriu a boca, fitou Pjetkin, e respirou fundo.

— Está maluco, Igor Antonovitch?

— Pergunte ao camarada Starobin se posso receber os ordenados.

— Naturalmente não tem de receber nada. Nada! Acha que pagamos os serviços dos nossos prisioneiros?

— Eu trabalhei como médico.

— Mas podia ter sido enviado para as pedreiras, Pjetkin!

— Pergunte a Starobin.

Ele está por aqui, pensou Pjetkin, está sentado em alguma sala, escondido, talvez bem aqui ao lado. Não me quer agradecer, nem quer que eu lhe diga o quanto me surpreendeu. Se este homem com sua coriza crónica agora pegar o telefone, é porque Starobin está na casa.

O homem pegou o fone. Discou um número, esperou, falou com jeito muito respeitoso, costas encurvadas. Ouviu as respostas do interlocutor, fitou o teto algumas vezes, contemplou Pjetkin com os olhos arregalados de um homem indizivelmente atónito, e desligou.

— O senhor vai receber três meses de ordenado, Dr. Pjetkin. Na mesma sala 67.

— Muito bem. Não estamos mesmo vivendo num estado justo? Para cada trabalho, o pagamento adequado. Que mais disse o camarada Starobin?

— Nada.

Pjetkin teve um sorriso fraco. Então era isso. Meu pobre Jakov Andreievitch, com sua artéria remendada, você tem medo da gratidão. No fundo todos os russos de algum modo temem alguma coisa. Eu também. Nossa alma nos sai pela garganta, mas nos esforçamos continuamente para provar que não temos coração. Será essa a explicação do enigma de logo mais no café da manhã bebermos o nosso complexo de inferioridade em relação ao mundo ocidental? Esperam que sejamos os bichos-papões da Terra... nós sorrimos, estendemos a mão amiga, dizemos que somos todos irmãos... e logo afirmam que somos especialmente perigosos, que planejamos algo de muito ruim, que queremos aniquilar o mundo, pois nenhum russo jamais pode ser generoso ou humanitário...

Que maldita imagem temos neste século! Esse cliché se grudou em nós como lama.

Pjetkin pensava ”nós”. Pensava como russo, sentia como russo, para ele só existia a Rússia. E agora estava de partida para a Alemanha, para sempre.

— Essa foi a parte técnica — dizia o camarada da coriza, remexendo os seus papéis, e aparentemente encontrou a folha certa. Alisou-a com a palma da mão, embora não tivesse rugas, leu as poucas palavras, e esticou o lábio inferior. — O senhor um dia se chamou Hans Kramer, não é?

— Sim. — Pjetkin encheu-se de cautela. O passado começava a pesar sobre ele.

— Nascido em Kõnigsberg?

— Mas quao isso já é sabido.

— Sabe-se ainda mais.

— Mais ainda?

— O camarada Starobin ordenou que lhe disséssemos que antes da fronteira russa se chamará Pjetkin... depois se tornará novamente Hans Kramer. Receberá dois passaportes. O soviético pode ser destruído na fronteira, como nós aqui eliminaremos a sua identidade soviética.

Pjetkin baixou a cabeça. Alguma coisa quente, inexplicável, atordoante, percorreu-lhe o corpo. Não existe mais Pjetkin. Nunca fui Pjetkin. Nunca tive um pai Anton Vassilievitch nem uma mãe Irena Ivanovna. Vinte anos de minha vida simplesmente não existiram.

— Impossível... — disse ele, muito baixinho. Mas o homem do pincenê tinha bons ouvidos, que não pingavam como o seu nariz.

— É muito possível até. Estamos apenas corrigindo um erro que era possível naqueles tempos confusos depois da guerra ou durante ela. Portanto... Gospodin Kramer, vamos continuar.

— Meu nome é Pjetkin! — gritou Igor erguendo-se. Tremia no corpo todo. — Onde está Starobin? Tenho de falar com ele! Sou russo. Russo! E permanecerei russo! Mesmo na Alemanha!

— Isso não pode ser. O senhor mesmo fez o pedido de...

— Pois eu renovo o pedido, mas com uma modificação: quero poder partir para a Alemanha como russo.

— Loucura! Absurdo! Isso é fuga da República... isso lhe valerá vinte anos em Vorkuta. Gospodin Kramer...

— Pjetkin! — berrou este.

— o senhor poderá viajar apenas como alemão. Este é o caso, não podemos modificar nada. Acha então que estamos aqui sentados num carrossel brincando com o senhor feito malucos? E se me escutar mais um pouco, gospodin Kramer...

— Pjetkin!

— terá outra opinião sobre a sua nacionalidade alemã. Aqui temos tudo preto no branco. — Bateu com o punho fechado na folha de papel. — Seus pais se chamam Peter Kramer e Elisabeth Kramer, nascida Reiner?

— Chamavam-se. Num tempo antigo para mim.

— Engano seu. Chamam-se. Eles vivem atualmente em Lemgo. Pjetkin estava sentado, imóvel. Sua cabeça baixou lentamente, apoiando-se nas duas mãos. O homem do pincenê esperou um pouquinho. Seja como for, pensou, Pjetkin é um maluco, mas um pouco de compaixão agora vai bem.

— A Cruz Vermelha alemã está procurando pelo senhor até hoje, gospodin Kramer. Temos aqui uma cópia da lista de busca. Quer dar uma olhada? O senhor está em nono lugar na lista. Seus pais nunca deixaram de acreditar que estava vivo. Estamos seguindo esse caso desde 1946.

— Ó Deus... — murmurou Pjetkin nas próprias mãos. — ó Deus. Por que não me mandaram de volta quando eu era criança? Por que fizeram de mim um russo?

— O herói do povo e da Grande Guerra, Coronel Pjetkin, o adotou. A União Soviética permitiu isso em parte como presente ao grande homem. Pjetkin o amava como a um filho, o senhor era mesmo seu filho, mas permanecia alemão. Eu sei, eu sei, tudo parece tão confuso, além de qualquer lógica, o homem pode ser apenas uma coisa, e o senhor é alemão. Nós não fizemos os povos, as fronteiras, as línguas, as peculiaridades. Ao contrário... quando falamos em fraternidade, em igualdade de todos os homens, riem-se de nós, dizem que somos perigosos, que queremos conquistar o mundo. — O camarada da coriza sorriu de leve. — Uma pequena digressão filosófica. Minha ocupação nas horas de lazer.

— Onde fica Lemgo? — A voz de Pjetkin estava alquebrada, atrás das grades de seus dedos.

— Em algum lugar da Vestfália. Quando estiver na Alemanha, qualquer pessoa lhe dirá onde fica Lemgo. Mas a família Kramer é apenas a primeira parte do que nos interessa.

— Seus papéis ainda me reservam mais surpresas? — Pjetkin ergueu o rosto, pálido, com fundas marcas. O homem do pincenê tirou-o do nariz depressa, e limpou-o com um lenço. Os olhos dele estão vermelhos, pensou. Pjetkin chorou por trás das mãos. Isso é bem russo... Os sentimentos têm de sair, a alma precisa de lugar, senão sufocamos.

— Nada de surpresas, mas um desejo, gospodin Kramer.

Igor Antonovitch desistiu de berrar de novo ”Pjetkin”. Recostou-se bem na cadeira e fitou o teto. Anos de fumaça de tabaco o tinham tingido de marrom-amarelado.

— Moscou deseja algo de mim? Não ordena mais?

— É isso. Mais ainda: estamos construindo para o senhor uma ponte dourada, e se o senhor passar por ela, vamos até mesmo cobri-lo com pé de ouro, Igor Antonovitch... temos uma sugestão a fazer.

— O senhor disse Igor Antonovitch. Meu nome é Hans Kramer.

— Quando falamos em sugestões, o seu nome ainda é Pjetkin. Toda a sua miséria nasceu do seu amor por Dunia Dimitrovna. Todos sacudiram a cabeça, até nos mais altos postos. Tentaram desviá-lo, mas nada adiantou. Toleramos suas relações com Marianka Dussova... ou acha que todos são cegos? Chelinogrado, Sinaida apaixonou-se pelo senhor. Infelizmente morreu antes de conquistá-lo. Como pode um homem ignorar tanta beleza? Tem de ser Dunia Dimitrovna!

— Sempre, e eternamente.

— Um juramento que envolve o céu. Entendemos tudo isso. Seu problema se tornou nosso problema... e veja só, tivemos então uma ideia. Oferecemos a Dunia uma viagem livre à Alemanha e uma permissão para casar...

Pjetkin saltou da cadeira. Passou as mãos pelos cabelos.

— Isto aqui é um hospício? Não estou entendendo mais nada.

O homem do pincenê fungou e sorriu amavelmente, como um pai que vê o filho brincando na areia.

— Só uma pequena retribuição, Igor Antonovitch. É preciso conhecer as circunstâncias políticas. A guerra passou há muito, os povos mudaram, só velhos políticos ou escritores ainda falam na guerra passada, esperando ganhar com isso algum dinheiro; numa guerra futura só fala um grupo de revanchistas e sonhadores. Tudo isso não muda o fato de que, apesar do desejo de paz, os povos vivam hoje espionando-se mais que nunca. Todos desconfiam de todos. agora, imagine só: o senhor vai para a Alemanha! Um alemão que em criança foi levado por um capitão soviético, e cresceu como russo. Um médico russo que é alemão. Que história! Vão recebê-lo com grandes gestos, a imprensa vai comentar seu caso, o rádio e a televisão vão entrevistá-lo. Os revanchistas o farão seu herói, os conhecedores da Rússia vão transformá-lo numa prova viva da desumanidade do nosso sistema, os políticos vão mostrar no senhor a sua própria imagem, vão carregá-lo como a uma bandeira, e cantar canções patrióticas. Em suma... o senhor será muito conhecido por algum tempo. E deve aproveitar-se disso. Nossa sugestão: esforce-se para de algum modo introduzir-se nas defesas alemãs.

— Querem fazer de mím um agente soviético? — disse Pjetkin em voz baixa.

— Sabemos que em Munique, na divisão principal do Ocidente, procuram-se homens que conheçam a Rússia tão bem como o senhor, que falem perfeitamente russo, até dialetos... e o senhor fala cinco dialetos, sabemos disso... que ainda têm ligações com a Rússia, e que por motivos pessoais a odeiam...

— Eu amo a Rússia — disse Pjetkin respirando pesadamente. O homem do pincenê fez um gesto.

— O senhor vai passar a odiar a Rússia. Esperamos isso do senhor. Não lhe será difícil fazer acreditar isso. As pessoas na Alemanha acreditam simplesmente em tudo o que lhes disserem de mal da Rússia. Isso é uma base para o senhor, Igor Antonovitch... construa sobre ela as suas terríveis fábulas, e com isso estará entrando aos poucos na defesa alemã. Claro que isso não pode ser tão depressa como tomar chá ou fazer um filho... nós lhe damos dois anos de prazo.

— Tudo isso é uma loucura... uma loucura total... — murmurou Pjetkin. Ele não entendia mais nada.

— Garantimos que Dunia Dimitrovna passará esses dois anos sob os melhores cuidados. Vamos tratá-la com a uma orquídea na estufa. Movimente-se na Alemanha, com toda a calma, camarada. Sabemos que vai se enjoar, que vai vomitar diante daqueles capitalistas. Nesse momento, o nosso contato irá procurá-lo, e se você disser: está bem, camarada, vou colaborar... A partir desse dia Dunia Dimitrovna deixará Vorkuta, será médica-chefe, e poderá esperar pelo senhor. Poderá também encontrá-lo, passando pela fronteira da Tchecoslováquia. O que mais deseja? E antes de tudo, o senhor continuará a ser Pjetkin para nós.

— Um agente! Eu, o médico Pjetkin, espião! Que estão fazendo comigo? — Pjetkin sentou-se novamente. Os seus joelhos se dobravam. — Será que não valho nada?

— O senhor está novamente interpretando mal os fatos, Igor Antonovitch. Estou apenas dizendo o preço de Dunia Dimitrovna. É um negócio. O senhor devia saltar de alegria porque, apesar de tudo, ainda lhe fazemos uma proposta. Vamos entregar-lhe Dunia livremente. Que mais deseja? Acha que lhe teríamos permitido um único passo fora da linha se não tivéssemos previsto a possibilidade sem par de um dia mandá-lo de volta à Alemanha com uma tarefa paga, um serviço para a sua pátria, a UniãoSoviética? Não esqueça, Igor Antonovitch: Dunia espera pelo senhor... e pode ser sua! Seu pai foi o coronel Pjetkin, um herói da pátria com altas condecorações, cujo nome está gravado no monumento de honra de Stalingrado. Ele teria orgulho do filho.

Pjetkin baixou a cabeça. Estava tonto. Alemão, russo, passaporte, pátria, médico, espião, herói de guerra, Dunia livre, só dois anos, Kramer, Pjetkin... meu Deus, que sou eu afinal? Que devo ser? Que posso ser?

— Assinarei tudo, camarada, tudo, se Dunia e eu pudermos nos casar — disse ele. — Mas quem me garante...

— Eu. E Starobin. Se quiser, o próprio Brejnev. Nossa palavra de honra... Isso basta?

O homem do pincenê ergueu-se. Só agora se via que era de estatura média, e corcunda. A cabeça chegava ao queixo de Pjetkin. Estendeu solemente a mão a Pjetkin.

— Farei tudo, depois de uma prova. — Pjetkin pegou a mão do outro e segurou-a. Era um aperto que fez tremer o pincenê no nariz dele. — Quero que Dunia seja libertada imediatamente, e receba um cargo de médica-chefe numa clinica. Logo... não daqui a um ou dois anos.

O homem sorriu, um sorriso amarelo. Tirou a mão e sacudiu-a no ar como se estivesse esmagada.

— O camarada Starobin esperava isso do senhor. Tudo já está preparado, Pjetkin. Em quatro dias, Dunia Dimitrovna deixará o campo de Vorkuta e assumirá o posto de médica-chefe numa nova clínica de Leningrado. Satisfeito?

— Gostaria de abraçá-lo, camarada... — gaguejou Pjetkin. A realidade da vida desaparecia diante dele. Apenas, estava feliz.

— Assim procede a Rússia com o senhor. E o senhor, que fará por ela? Aceita a nossa proposta?

— Sim!

— Então nada mais impede sua partida para a Alemanha, Igor Antonovitch. Pegue suas coisas na sala 67. Até à partida, morará no hotel Pequim. Há um quarto reservado. Como Pjetkin, naturalmente, não como Kramer.

O homem do pincenê tirou o mesmo do nariz, e acenou com ele para Pjetkin. Era um sujeito alegre, notava-se agora.

Pjetkin foi de táxi ao hotel Pequim. Na sala 67 do Ministério do Interior tinham-lhe dado tudo: dinheiro para a viagem, três meses de ordenado como cirurgião-chefe, cartões que lhe permitiam um enxoval na loja GUM, as passagens, os dois passaportes... um para Pjetkin, outro para Hans Kramer de Kõnigsberg.

No hotel, o porteiro-chefe já estava instruído. Pjetkin recebeu a chave do quarto, não entregou sua identificação na recepção, como tinham de fazer os turistas estrangeiros, a camareira do décimo segundo andar, no qual ficava seu quarto, recebeu-o como a um filho, acompanhou-o até a cama e apontou pela janela.

— Um bom quarto, camarada. Moscou inteira está aos seus pés.

Pjetkin agradeceu com a cabeça, não tinha nenhum desejo, não, nem chá, nem biscoitos, nem água, só paz, paz. Depois deitou-se na cama, a cabeça virada para o lado, fitando o céu de Moscou.

Amanhã compras na loja GUM. Depois de amanhã, partida para a Alemanha.

Que lugar da Alemanha?

Procurou seus papéis e leu: Berlim.

Isso é -bom, pensou. Berlim. O front avançado... não fora Starobin quem dissera isso? Berlim, onde ele morara num porão com o coronel Pjetkin, antes que o transportassem para Moscou. O pequeno Hans Kramer, o menino com um terno feito do uniforme soviético, com a mancha de sangue de um morto nas costas...

Pjetkin adormeceu. Uma sacudidela o acordou. A camareira estava diante da cama.

— Lá embaixo no café alguém espera pelo senhor. Chama-se Godunov. Está lá há três horas, mas pediu que o deixasse dormir.

Pjetkin vestiu-se rápido, passou pelo barbeiro do hotel, deixou-se barbear e aparar os cabelos, e saboreou o perfume que lhe esfregavam no queixo.

— Mais uma vez, amigo, por dez copeques — disse baixo, O barbeiro esfregou-o mais uma vez com perfume e enxugou-lhe o rosto.

— O senhor vem de muito longe? — perguntou.

— Sim. Venho do inferno.

O barbeiro entendeu, e não fez mais perguntas. Só quando Pjetkin ia saindo, devolveu-lhe os dez copeques pelo perfume.

— Um presente meu, irmãozinho — disse. — Mas não fale nisso...

O café ficava numa espécie de sobreloja do enorme saguão do hotel Pequim onde Pjetkin descobriu Marko sem dificuldade. Bastava seguir as exclamações gerais. Marko estava no meio de uma grande discussão com o garçom de olhos oblíquos.

— Mas que burro castrado! — berrava Marko. — Será que todos aqui se sentam com a cabeça e pensam com o traseiro? Faz duas horas que espero por um ovo cozido com pão, e o que me dizem? Que não podem voar! Mas não pedi um ovo de cozinheiros voadores, pedi um simples ovo de galinha.

O garçom quis dar uma resposta áspera, mas como Pjetkin se aproximasse da mesa, ficou calado olhando o novo hóspede com ar crítico.

— O senhor é amigo desse brutamontes aí? — perguntou.

— Marcamos um encontro aqui — Pjetkin sentou-se diante de Marko e teve o prazer de pedir algo como homem livre. — Um bulezinho de chá, biscoitos e mel. e...

— um ovo duro com pão! Talvez agora eu consiga! — exclamou Marko.

— O chá virá imediatamente — disse o garçom.

— Ah! — gritou Marko. — Cuidado, Igor Antonovitch, os biscoitos virão só na Páscoa!

O garçom afastou-se rilhando os dentes. Pjetkin curvou-se sobre a mesa. Marko estava mudado, mais civilizado, mais humano.

— Pensei que você estivesse em viagem — disse Pjetkin.

— É preciso pensar sempre com a cabeça, filhinho. Ninguém ainda sabe o que aconteceu depois da sua saída de VGorkuta. Vá para a Alemanha... eu esperarei por Dunia. Primeiro fiz de mim um ser humano. Que trabalho até que me vendessem um terno! na sapataria as mocinhas fugiram quando mostrei os meus pés. Por toda parte aparecia o gerente e me olhava espantado. ”Camaradas”, disse eu, ”a indústria de vestimentas não tem consideração com as pessoas que não são retas como uma árvore. Também existem árvores tortas, gente. O planejamento vai mal. Veja só o gerente desta seção... a parte de trás dele precisa de duplo espaço nas calças. Mas não, a calça dele é normal, e ele parece mais uma lingüiça.” aí me atenderam depressa.

— Como sabia que eu estava morando no Pequim?

— Lógica. Onde metem os turistas alemães? No Ucrânia ou no Moscou. Lá certamente não iriam botar o meu filhinho, pensei. Por isso, perguntei primeiro no Pequim, e veja só... aquele aborto de porteiro disse sim, ele vai morar aqui. Mas só me disse quando ameacei com o camarada Starobin. Aí me sentei aqui, avisei que, quando você acordasse, dissessem que eu esperava, e desde então espero pelo meu ovo com pão.

As quatro últimas palavras foram berradas, os outros hóspedes se assustaram, o garçom sumira. Mas uma mocinha de longos cabelos pretos e olhos de amêndoa trouxe o chá de Pjetkin e os biscoitos.

— Obrigado, meu cisnezinho — disse Pjetkin bem-humorado. — Este paciente camarada aqui pediu um ovo duro.

— Eu sei. — A doce pombinha sorriu, aquecendo-lhe o coração. — Estão discutindo sobre isso na cozinha.

— Já é um progresso. — Marko cruzou as mãos resignado. — Quando tocarem o hino nacional na cozinha, ele deverá estar cozido.

Pjetkin tomou rápidos goles do chá doce e quente, mordeu um biscoito e mastigou com o prazer de um gourmet.

— Estou feliz — disse.

— Com esses biscoitos, não admira. Se eu tivesse o meu ovo... — gritou Marko, de modo a partir o coração, para horror dos demais. Depois debruçou-se para Pjetkin. — Quando é que você parte?

— Amanhã. Hoje vou fazer compras. E Dunia vai ser libertada.

— Adivinhei. Adivinhei. Vão transferi-la para Alma-Ata, hein?

— Não. Leningrado. Médica-chefe numa nova clínica.

— Leningrado. — Marko fez um ar pensativo. — Bom, Igorenka. Muito bom. Leningrado é o portão da Rússia para o Ocidente. Os caras do Ministério devem ter gravetos na cabeça em vez de cérebro. Pôr Dunia logo em Leningrado! Da Finlândia para lá é um pulo, e a Finlândia é um país livre, onde cada um pode fazer o que bem entende. Não foi certa a minha ideia?

— E de que pretende viver na Finlândia?

— De ovos duros com pão! — berrou Marko de novo. A ninfa de cabeleira negra deslizou até a mesa, balançava uma bandejinha com duas fatias de pão e um ovo solitário. Colocou tudo na mesa e até disse:

— Sirva-se, camarada. — E estava radiante como se estivesse servindo o melhor caviar do Mar Cáspio.

— Milagre! — Marko pegou a faca, partiu a casca do ovo e olhou tristemente a gema amarela que escorreu fininha. — Devia ser um ovo duro. Tenho nojo de ovos moles. Mas que posso fazer? Diga ao cozinheiro, minha pombinha, que ele fez mais do que seria de esperar.

Pjetkin ficou calado enquanto Marko se ocupava com o ovo e o pão. Tomava o chá pensando em Dunia, que agora já sabia que poderia deixar Vorkuta.

— Marko, mais uma vez — disse ele quando o anão limpou a boca. — Do que pretende viver?

Godunov fitou-o quase severo.

— Filhinho, não há nada no mundo que me assuste. Deve haver uma ocupação para um homem na Finlândia, ainda que seja limpar latrinas. Afinal, elas fazem parte da civilização... todos os trabalhos são dignos.

— E como manteremos contato?

— Nada mais simples. Na Alemanha, os jornais falarão em você. Assim, sempre saberei onde você anda. O Ocidente não é nada mais que uma grande boca aberta.

— E quando parte?

— Amanhã.

— Eu também.

A conversa mudou, cobrindo-se de tristeza. Ambos remoíam o mesmo pensamento: Amanhã deixo a Rússia. Minha terra natal ficará para trás e o que está diante de mim é o desconhecido, o estranho animal selvagem que terei de domesticar sem saber nem como lhe dirigir a palavra.

Como podem os outros saber o que significa deixar a Rússia? Um russo sem Rússia é uma árvore sem raízes.

— Vou fazer compras no GUM — disse Pjetkin, rouco. — Tenho cartões de roupas para um homem inteiramente novo.

— Vou à estação comprar uma passagem para Helsinque na Intourist. — Marko fitava a mesa. — Não vamos chorar, Igorenka...

— A minha única alegria é saber que Dunia vai para Leningrado. — Pjetkin pensou na combinação feita com o homem do pincenê. Agente do KGB na Alemanha, pelo preço da saída de Dunia. Envergonhava-se tanto desse negocio que ocultou tudo a Marko.

— Seja para onde for que você vá, Igorenka — disse Marko — dê entrevistas aos jornais. Essa será a melhor notícia para mim. — Saltou da cadeira, depôs um rublo na mesa pela conta, e fitou Pjetkin, respirando pesadamente. — Deus esteja com você filhinho, e o abençoe...

— Isso é a despedida final, Marko? — A garganta de Igor se fechava. — Se não nos virmos mais...

— Por isso vamos nos separar depressa, sem sentimentalismo, sem que nossas almas chorem... Igorenka... eu... Meu Deus, não posso mais...

Virou-se e saiu correndo. Pjetkin seguiu-o com o olhar, viu-o descer aos saltos pela escada, correr pelo imenso saguão do hotel, e sair sem se virar para trás.

Pjetkin pagou seu chá com biscoitos e foi para o quarto. Lá havia algo à sua espera. A camareira do décimo segundo andar, corredor E, saiu imediatamente do seu quartinho sempre aberto no começo do corredor.

— Um pacote do Ministério do Interior! — exclamou ela. — O senhor é famoso, camarada.

O pacote era de Starobin. Trazia fotos do orfanato, fotos da classe de Pjetkin tendo à frente Njelep, o feio, Dolgoratí, o de mãos compridas, e o Boca-Grande. Atrás dele, como se tivesse de defender a todos contra todos, estava Komorov, o seu educador. Eram fotografias que Pjetkin jamais vira. Havia ainda no pacote duas lingüiças, um vidro com frutas cristalizadas, outro com pepinos em conserva, e um pedaço de carne defumada.

”De parte da minha esposa”, escrevera Starobin num bilhete. ”Ela diz que sou um homem novo. Boa viagem, seu idiota...”

Nada de assinatura... mesmo Starobin parecia ter medo de mandar tais presentes.

Pjetkin contemplou longamente o bilhete, dobrou-o e meteu-o no bolso. Há documentos que não têm ar de documentos...

Uma hora mais tarde falava com o gerente da seção masculina na loja GUM. Pjetkin foi tratado como um membro do Soviete Supremo.

 

Igor Antonovitch Pjetkin deixou Moscou como um viajante privilegiado. Tinha um lugar reservado na janela da seção de primeira classe no expresso Moscou-Berlim. O condutor o levou à sua poltrona, e disse:

— Deste lado o senhor tem a melhor vista, camarada. — Um garçom trouxe do carro-restaurante, que ainda não abrira, um grande copo da melhor limonada russa, o Pravda, e a revista Nova Rússia.

Pjetkin admirou-se, sentou-se cautelosamente, como se tivesse calos no traseiro, e repetidamente disse para si mesmo: ”Você é um homem livre! Realmente, você é um ser humano. É assim que o estão tratando... mas você está tão desabituado que a cortesia lhe causa medo...”

Ele próprio nem se reconhecia. O terno novo, o belo sobretudo, firmes sapatos marrons, uma camisa azul-claro com uma gravata azul-marinho, um chapéu cinza e macio, com a aba descida, duas malas de couro, não tão luxuosas quanto as da Dussova, que ele deixara em Vorkuta, numa delas roupa de baixo, dois pijamas, duas camisas, dois pares de meias, um casaco de tricô, duas calças, lenços e um barbeador elétrico. Tudo novo. Tudo da loja GUM. Starobin lhe dera cartões para tudo aquilo.

O trem não estava lotado. O compartimento de Pjetkin ficou vazio. Talvez fosse intencional... o condutor sempre levava os outros viajantes pela frente da porta de Pjetkin, colocando-os em outros compartimentos. Pouco antes da partida, ele sentou-se exausto diante da porta e enxugou o suor da parte de dentro do boné.

— Deseja mais alguma coisa? — perguntou a Pjetkin. Este sacudiu a cabeça.

— Partimos logo?

— Sim.

— Você faz sempre o mesmo trajeto, de Moscou a Berlim?

— Não. Só até Brest-Litowsk. Ali muda o pessoal. Entram poloneses. Até Frankfurt sobre o Oder. Lá entram os alemães.

— Nunca tem vontade de ir até Berlim?

— Não. Para quê?

— E de ficar em Berlim? No Ocidente livre? O condutor olhou Pjetkin de esguelha.

— O Ocidente será realmente livre, camarada? Lá as pessoas também são mandadas de um lado para outro como bonecos, só que não são manejados por simples arames, e sim por fios dourados. A única diferença.

— Não conheço o Ocidente. Estou indo para lá agora.

— Eu sei.

— E se lhe dessem dez mil rublos dizendo que deixasse a Rússia, você iria?

— Nunca! Nem por um milhão de rublos. Que faria eu na vida sem a Rússia?

Uma resposta bem russa... Pjetkin olhou fixamente pela janela. A estação estava quase vazia. Viajar com o expresso Berlim era realmente uma coisa especial.

— Nem por causa de uma mulher você não faria isso?

— Aí mesmo que não faria! A Rússia tem bastantes mulheres bonitas... por que vender a pátria por causa de uma mulher? — O homem deu um sorriso amplo. — Quando a gente está deitado no meio das coxas delas, todas são iguais... louras ou morenas, magras ou gordas. E deixar a minha pátria por uma coisa dessas? Que pergunta, camarada!

Pjetkin ficou calado. Assim só pode falar quem não conhece Dunia, pensou. Eu deixaria a terra com ela, se no espaço houvesse algum ponto em que pudéssemos viver juntos.

O condutor saltou, correu para a porta, fechou o compartimento de Pjetkin e desapareceu pelo corredor.

Mais um minuto para a partida.

O minuto antes da execução...

Pjetkin fechou os olhos quando o trem arrancou, deixando a estação. Um sol frio pairava sobre Moscou, a neve brilhava nos telhados, as fachadas dos grandes edifícios pomposos refletiam a luz e cegavam os olhos. Assim termina a metade da minha vida, pensou Pjetkin recostando-se no assento. Mas a segunda metade não começou ainda. O novo homem precisa nascer primeiro. Sentimento estranho esse de não ser nada...

O condutor abriu novamente a porta. Empurrara o boné para trás. Seu largo rosto de camponês era como um símbolo da terra quê o formara.

Pjetkin estava sozinho. Uma sensação nova e opressiva. Em toda a sua vida anterior nunca estivera sozinho, sempre houvera alguém perto dele, sempre tinham querido dele alguma coisa... e agora estava solitário no assento estofado de um vagão de trem. Moscou passava pela sua janela afastando-se a cada rolar daquelas rodas, e ninguém se importava com ele, podia ter ido até o corredor, precipitar-se do trem em movimento... Até que notassem a sua falta podiam se passar horas...

Estar sozinho quase o sufocava. Ergueu-se, quis abrir a janela, mas ela estava trancada com uma fechadura. Assim, não lhe restou senão ficar parado, rosto colado à vidraça, tomando contato com a paisagem que passava voando.

Casas, campos lavrados, regatos, capões de mato, carroças, pessoas agasalhadas contra o frio, granjas, aldeias com os jardins rodeados de cercas trançadas, amplidão, um céu que se casava com a terra.

A Rússia.

Passava deslizando por ele, que não a podia mais agarrar. Fora expulso e era apenas um observador estranho.

Depois de meia hora, o garçom meteu a cabeça no compartimento. Parecia ter falado com o condutor — era cortês como sempre, mas mais reservado.

— Mais uma limonada?

— Não. Uma boa garrafa de vodca. No mínimo 200 gramas.

— Camarada, só podemos fornecer copos.

— Então me forneça dez copos.

— Um só.

— Consiga-me uma garrafa, amigo.

— No trem? Impossível.

— Como se chama a próxima estação?

— Moschaisk.

— Então salte do trem quando chegarmos lá e compre uma garrafa. Eu lhe darei dez rublos. — Pjetkin jogou a nota no assento ao lado. O garçom pegou o dinheiro e ergueu os ombros.

— Só temos três minutos de parada. Vou correr como um campeão olímpico. Se em Moschaisk não der, resta ainda Wjasma.

Mas em Moschaisk deu certo. Duas garrafas de duzentos gramas. Um consolo claro como a água. Esquecimento ardente. Alma enevoada. Pjetkin esvaziou uma garrafa colocando-a nos lábios. O garçom observou com olhos arregalados, como se assistisse a um suicídio.

Mas a Rússia ainda estava lá. Fora da janela, a infância cantava. Florestas, florestas, florestas... Campos e mais campos... as aldeias como torrões de argila caídos da pá de um gigante... Pjetkin bebeu da segunda garrafa. O álcool a que não estava habituado o derrubou. Escorregou no assento, deitou-se e; adormeceu. No seu cérebro entrou o atordoamento que apagaria todo o resto. Só assim ele podia deixar a Rússia para sempre,

Pouco antes de Minsk, Pjetkin acordou. O sol da manhã brilhava pálido em Beresina. No corredor estava o condutor barbudo mas alegre.

— Foi um pouquinho demais, camarada? — perguntou.

— Quanto tempo estive dormindo?

— Até a manhã seguinte. Agora é amanhã. Minsk está perto.

— Minsk. — Pjetkin cambaleou até o banheiro, contemplou sua imagem no espelho, e achou que assim parecia um homem que confundira ontem e amanhã.

No vagão-restaurante tomou chá, comeu dois pãezinhos com manteiga, e conheceu os outros passageiros. Os de primeira classe. Para os demais, o vagão-restaurante era muito caro... levavam bolsas e cestas com a sua alimentação, e transformavam o seu compartimento numa choupana de camponeses.

O garçom debruçou-se sobre Pjetkin.

— Mais vodca em Minsk? — sussurrou. Pjetkin sacudiu a cabeça.

— Não. Não adianta. Ao acordar tudo fica pior ainda. Como Pjetkin achasse que todos o olhavam, saiu depressa do vagão. Naturalmente, ninguém se importava com ele. N Em Minsk, saiu do trem, andou pela estação, parou, olhou em volta para ver se alguém o observava. mas não havia ninguém. Era um homem livre. Comprou um jornal, rasgou-o e jogou-o no meio da estação.

Agora tem de vir alguém, pensou. Meu Deus, estou sentindo falta da opressão.

Mas apareceu apenas um velho com um saco, ergueu o rasgado e meteu-o no saco. Olhou Pjetkin severamente... sentiu-se feliz por ter provocado ao menos esse olhar aborrecido.

E o trem partiu de novo. Para o Ocidente.

Florestas, planícies, pantanais, solidão.

Baranovitch. A locomotiva recebeu água. Pjetkin teve vontade de gritar de solidão. Ninguém lhe dava importância. Voltou ao seu compartimento, comeu um pedaço de lingüiça que Starobin lhe mandara, e pensou na operação de Trendeímburg. Aquilo o ocupou por algum tempo, depois ficou entregue aos seus devaneios.

À noite, o trem parou em Brest-Litowsk.

Estação da fronteira. Agora os poloneses tomavam conta do trem. O condutor e o garçom vieram despedir-se de Pjetkin.

— Talvez o senhor ainda volte, camarada — disse o o condutor. — A maior parte dos russos morre de saudade.

— Talvez. Adeus...

Pjetkin estava vazio como uma casca de ovo a que se tirou o conteúdo. Quando o trem prosseguir viagem terei deixado a Rússia. O portão estará fechado. Não o poderei mais abrir nem ” com punhos, nem com dentes. Só como instrumento do KGB... aí sempre haverá um túnel na escuridão.

. Pjetkin quis ir ao corredor para observar melhor a estação, quando dois oficiais soviéticos embarcaram e o fitaram, inspencionando-o. Um capitão e um tenente. Seus uniformes encantaram Pjetkin... representavam a pátria.

— Igor Antonovitch? — perguntou o capitão cumprimentando-o.

O coração de Pjetkin estremeceu de alegria.

— Sim, sou eu. Entrem, camaradas. — Entrou no seu compartimento e apontou os assentos. — Se quiserem sentar-se...

— É só um momento. — O capitão falava de modo muito profissional, mas para Pjetkin aquilo soava como música. — Seus papéis russos, por favor.

Pjetkin tirou-os do paletó. O passaporte, a licença especial do Ministério do Interior, a passagem. O capitão examinou-os minuciosamente.

— Seus papéis alemães?

— Aqui.

— Hans Kramer, de Kõnigsberg?

— Igor Antonovitch Pjetkin.

— Só até este momento. — O capitão pegou os papéis russos e rasgou-os tão depressa que Pjetkin não o pôde mais impedir. — Desejamos uma boa viagem para casa, gospodin Kramer.

O capitão saudou de novo e deixou o compartimento com o tenente.

Pjetkin cambaleou, segurou-se na prateleira das bagagens, apoiou a testa no braço direito.

O condutor polonês bateu no vidro da porta. Falava alemão, e Pjetkin pensou, assustado, que de repente parecia tão alemão que todos reconheciam a sua nacionalidade.

— Passagem, por favor.

Pjetkin obedeceu sem perguntar nada, mostrou seus papéis alemães, as ordens em alemão, as passagens. Isso se repetiu no controle do passaporte. Os funcionários poloneses o trataram como a um ovo cru — não fizeram perguntas, mas tiraram a tranca do seu compartimento. Três poloneses embarcaram ainda, acenaram amavelmente para Pjetkin, sentaram-se e desapareceram atrás de seus jornais.

Pjetkin olhou mais uma vez pela janela, quando o trem se pôs em movimento. Viu os dois oficiais soviéticos junto dos funcionários poloneses, e sua boca tremeu como sob choques elétricos.

O uniforme de Baranurian.

O uniforme da Dussova.

O uniforme de seu pai.

Dirigiu-se devagar para o vagão-restaurante, as mesas estavam cobertas com toalhas brancas, três garçons poloneses o receberam como num hotel de luxo.

— Jantar, senhor?

De novo alemão. Basta um nome alemão para se ter fedor de alemão?

Pjetkin ergueu a cabeça. Preciso agüentar, pensou. Preciso rasgar a parede da minha alma. Entrei no amanhã.

— Sim, por favor — respondeu também em alemão. Sentou-se, afastou o cardápio, e olhou o garçom polonês com certa soberba.

— O que tem para oferecer?

— Pernil de carneiro assado, temperado com rosmaninho, senhor.

— Vinho.

— Húngaro, austríaco, alemão, francês.

O segundo garçom queria afastar-se, mas Pjetkin o segurou com um gesto.

— Nenhum vinho russo?

— Não. — Os rostos poloneses tornaram-se gélidos. — Não temos nada russo, senhor.

— Vinho do Reno?

— Naturalmente. Um Niersteiner 66. Meia garrafa, senhor?

— Sim.

— O pernil de carneiro?

— Sim.

— Com batatas?

— Sim.

— Verduras? Temos excelentes vagens com vinagre. Ou pepinos?

— Vagens.

— O senhor vai gostar.

Pjetkin comeu e bebeu como um autómato a que se alimenta com óleo e graxas. O vinho alemão — bebido pela primeira vez — o deixou atónito. Era azedo para o seu gosto, habituado ao sabor de moscatel dos vinhos caucasianos, mas ele o tomou todo, encomendou mais uma garrafa, ficou com azia e lavou o estômago com uma magnífica e suave vodca polonesa.

Não viu Varsóvia... dormiu de novo a sua ressaca. Acordou em Posen, porque os três companheiros de compartimento desembarcaram e deixaram cair uma maletinha na sua cabeça ao pegar as bagagens. Os três se desculparam com muitas palavras, sua cortesia deixou Pjetkin paralisado.

De Posen a Frankfurt sobre o Oder, ficou novamente só no compartimento, assistiu ao nascer do sol, e viu com obscura emoção que estava entrando pela primavera adentro.

Com o coração trémulo, Pjetkin aguardava seu primeiro encontro com os alemães. Com funcionários da alfândega alemã, condutores alemães, garçons e passageiros alemães. Um som familiar o atingiu em Frankfurt... um sujeito de uniforme berrava. Não berrava ”Dawai, dawai” mas ”Peguem seus passaportes!”, abriu as portas dos compartimentos num arranco, precipitou-se para dentro como se tratasse de enforcar um assassino. Estava tão imbuído do poder do seu uniforme que gritou impaciente para Pjetkin que procurava sua papelada:

— Depressa, vamos!

— Paciência é a bebida dos sábados — disse Pjetkin em russo. O atónito uniformizado olhou os papéis que Pjetkin lhe estendia e esticou o lábio inferior.

— Deixe dessas besteiras! — disse grosseiramente. — Hans Kramer? Kõnigsberg? Até agora vivia em Vorkuta? Para onde quer ir?

— Está na passagem — respondeu Pjetkin em alemão.

— Eu sei disso. Quero ouvir do senhor pessoalmente.

— Por quê?

Nada confunde mais do que a simples pergunta: por quê? Experimente — fite com olhar penetrante alguém a quem deseje confundir, e pergunte apenas: por quê? E verá o seu interlocutor capitular.

O sujeito de uniforme atirou os papéis de volta a Pjetkin, e desistiu de mais explicações. Mas pela janela Pjetkin viu-o falando com o condutor e o funcionário da alfândega. Entraram no trem e Pjetkin os aguardou com impaciência.

A Alemanha começava a se tornar interessante.

Na Rússia, Pjetkin era posto contra a parede, na Alemanha Hans Kramer o era.

O que na verdade distingue um povo do outro?

O controle da alfândega era muito exato, agia conforme os parágrafos. Pjetkin abriu as malas e mostrou seus poucos tesouros.

— O senhor vem de Vorkuta? Pjetkin assustou-se:

— O senhor sabe disso? — perguntou em resposta.

— E lá no campo de concentração se usam coisas como essas que o senhor tem nas malas?

— Em Moscou. — Pjetkin sorriu tristemente. — É o meu enxoval de libertação.

— Nunca usado! Tudo novo em folha.

— Claro. Comprei tudo na loja GUM.

— O senhor tem notas?

— O que, por favor?

— Recibo de compras.

— Não houve recibos. Eu tinha um cartão do Ministério do Interior.

O funcionário da alfândega ficou inseguro. Ministério do Interior. Moscou. Viajando para Berlim.

— Muito bem. — O funcionário fez um gesto. — Boa viagem e boa chegada a Berlim.

— Obrigado, camarada.

Pjetkin ficou na janela do seu compartimento, olhando para fora. O trem estava partindo, deixou a estação, entrou no outro país, quase num outro mundo. Fascinado, ele ficou parado junto da janela, registrando tudo o que passava à sua frente. Aqui era primavera... pela primeira vez, tomou consciência disso. As árvores frutíferas estavam cheias de botões ainda fechados, a relva perdia o verde apagado do inverno tingindo-se de uma cor mais clara. Nos telhados vermelhos das casas brilhava o sol

A paisagem ampla. Granjas extensas, aldeias com telhados pontudos, jardinzinhos cercados, tudo de uma limpeza absoluta, estradas asfaltadas por toda parte, até nos caminhos para os campos e bosques; ao lado da estrada de ferro, um burburinho de automóveis e caminhões, pessoas em trajes claros e leves, mocinhas de saias curtas, mostrando as pernas bem acima do joelho... que mundo aquele!

Eram impressões que Pjetkin via passar como quadros vertiginosos, dos quais retirava alguns para metê-los na cabeça.

Gente alegre... limpeza... bem-estar geral... uma pequena piscina num jardim... uma jovem mãe com seu filho num carrinho de bebé de rodas altas... lojas, vitrinas nas quais as mercadorias se empilhavam... um açougue, montanhas de lingüiças de todos os tipos, pedaços de carne em bandejas cintilantes... uma padaria, tortas e mais tortas na vitrina... e ninguém parado em gigantescas filas, esperando pacientemente horas a fio, nada de mulheres com lenços na cabeça, homens com gorros amassados... todos simplesmente entravam nas lojas para comprar... ninguém esperava, não havia centenas de pessoas comprimindo-se, empurrando-se para a frente...

Como entender aquilo? Vestidos nas vitrinas, magníficos vestidos, qualquer um pode entrar numa loja dessas e comprar um, dois, até dez, se puder pagar...

Um novo mundo.

A Alemanha.

Essa é sua pátria. Você tem de amar, a partir de hoje, esse país estranho, inteiramente diferente. Você conhece o Amur, Kichinev, Kasakstan e Vorkuta, Moscou e a Sibéria... e por toda parte de algum modo você foi feliz, à sua própria maneira russa, a sensação de infinitude o assaltava, a ligação com o céu, que torna todos os russos tão humildes e pacientes... E agora de repente, atrás de uma barreira pintada, onde ninguém mais o compreende se você falar russo, onde é preciso falar alemão, onde não se chama mais Pjetkin e sim Hans Kramer, começa esse outro país assustador, belo, rico, e pedem que você de repente se sinta em casa.

Que é isto: estar em casa?

Pjetkin ficou inquieto. Andou pelo trem, sentou-se no vagãorestaurante, numa mesinha bem do canto, pediu uma xícara de café e obrigou-se a não olhar mais para o lado, pela janela.

A duplicidade em seu interior aumentava, despedaçava-o lentamente, dividia-o em duas metades! O russo Pjetkin e o alemão Hans Kramer. Assustado, apavorado, mas ainda assim fascinado, ele reconheceu que as duas partes do seu ser se entreolhavam, se espiavam, desconfiavam uma da outra. De repente, um arame farpado o dividia ao meio, separando Oriente e Ocidente.

Um garçom berlinense andou algumas vezes perto de Pjetkin, ajeitou saleiro e açucareiro, varreu umas migalhas para o chão, e puxou a toalha branca.

— O senhor é o homem de Vorkuta? — perguntou finalmente em voz baixa, curvando-se como se quisesse limpar alguma coisa no peitoril da janela.

— Sim. — Pjetkin sorriu de leve. — Isso se espalhou tão depressa?

— Alemão, não é?

— Sim. — Pjetkin disse aquele ”sim” sentindo sua metade russa erguer o punho cerrado. — Sou alemão.

— Mudou de lado?

— Fui prisioneiro de guerra. Um capitão russo me encontrou num cemitério em Kõnigsberg. Naquele tempo eu ainda era uma criança.

— E desde então o senhor esteve...?

— Sim, desde então.

— Que merda, não é? Cá pra nós... E só agora o senhor está escapando! Para onde pretende ir? É verdade que o senhor é médico? Um doutor de verdade?

— Sim, sou médico.

— E para onde vai?

— Primeiro, Berlim.

— Ocidental.

— Que quer dizer, ”ocidental”?

— Bom... Berlim Oriental e Berlim Ocidental...

— Não sei — Pjetkin sentiu-se inseguro. Na sua passagem constava apenas Berlim. Que significa Oriental e Ocidental? — Existe uma diferença? — perguntou.

— Homem! O senhor caiu mesmo da lua, hem? — O garçom arrumou as coisas na mesa. Remexeu na xícara de Pjetkin. É preciso ter motivo para ficar junto de uma mesa. — O senhor não sabe de nada, não é?

— Não. Vivi na Sibéria, no Mar Ártico... lá tínhamos bastante ocupação com as nossas próprias coisas.

— Que coisa estranha! — O garçom apoiou-se na mesa. — O senhor vai chegar agora em Berlim Oriental. É a capital da DDR. (República Democrática Alemã.)

— Alemanha, portanto.

— Sim e não. Existe também a BRD. (República Federal da Alemanha.) Capital, Bonn.

— Também é Alemanha.

— Claro. Mas agora vem! De Berlim Oriental não se pode ir para Bonn.

— Por quê? Quero ir até Lemgo.

— De jeito nenhum. Como ainda não tem sessenta e cinco anos, não receberá passagem para Lemgo.

— Mas estou na Alemanha.

— O senhor podia ir de Moscou para Odessa?

— Sim, a qualquer momento. Até voar.

— Então não sei por que veio para a Alemanha. Homem, antes tivesse ficado por lá. Aqui é tudo uma porcaria, batida no liquidificador! — O garçom pôs o punho fechado na mesa. — Aqui é Oriente, ali Ocidente. Entre os dois, um limite feito de arame farpado, faixa da morte, campos minados, torres de vigia, patrulhas, e atiram quando alguém quer atravessar.

— Dentro da Alemanha? Não entendo!

— Mas isso ainda não é nada. Aqui é Berlim. Oriental e Ocidental. E aqui construíram um muro, através de Berlim, para que ninguém possa atravessar.

— Mas por quê?

— Política! Homem, doutor! Aqui estão os comunistas, ali os capitalistas. Aqui olhamos para a Rússia, ali para a América. Há dois blocos, entende? Bloco Oriental e a OTAN. Um não confia no outro.

— Acho que estou entrando numa vida bem complicada — disse Pjetkin.

Agora estava na Alemanha, mas a Alemanha não era a Alemanha, Berlim não era Berlim, Bonn não pertencia a Dresden, um muro atravessava Berlim, arame farpado e faixa da morte cortavam a Alemanha no meio, não se podia ir de Leipzig para Hamburgo, nem de Jena a Munique, sem ter permissão, sem passar por uma fronteira — dentro da Alemanha — sem correr de uma repartição a outra, explicando por que se queria ir a Hamburgo, Munique ou Colónia. Se ali havia um funcionário dizendo ”não”, a gente tinha de ficar onde estava. Um alemão na Alemanha, fora da Alemanha.

A cabeça de Pjetkin estava tonta.

Se alguém quer ir de Vladivostok para Kiev, compra uma passagem de avião, entra no aparelho, e vai para Kiev. E se um camarada de Charkov precisa ir a Irkutsk de trem, o que leva alguns dias, ou de avião, que vai depressa. Mas ninguém vai segurá-lo e dizer: ”Mostre o passaporte! Onde tem a sua permissão para ir a Irkutsk?” E não há fronteira que se tenha de ultrapassar, nada de muro ao longo do Ural ou através da Sibéria, nada de faixa da morte entre Moscou e Nowgorod... a Rússia é Rússia. O país imensurável. A terra da fraternidade. Russos brancos ou kirgineses, kasacos ou enwekos, grusinos ou kalmucos... todos são russos. Irmãos.

E essa Alemanha? Cortada, dividida, inimizada, regulamentada, tapada por proibições, envenenada com paixões políticas, dominada por partidos, o grande capital, as ligas de interesses, circundada por pactos militares, prostituta que dorme com chavões e promessas.

Liberdade!

Pjetkin pensou no Amur, o rio dourado da fronteira chinesa, os barcos de pesca, o capim alto das margens, as florestas da taiga, o falcão que circula no céu azul, luminoso, os dias que correm como as ondas do rio, sem tempo, vividos e aquecidos mas depositados na alma com um mel doce e denso...

Quem poderá contar, a um homem que viveu assim, o que é liberdade?

Pjetkin também começava a entender o que todos tinham querido dizer com ”lá do outro lado”. Lá não era a Alemanha (que nem existia mais), mas a Alemanha Ocidental. A metade de um animal esquartejado, que se chamara Alemanha em outro tempo. Ali seria a sua missão, como Moscou a entendia, e pela qual pudera trocar Dunia. Atravessar essa metade do animal como um verme, cavar buracos nela, estragá-la até que apodrecesse, e fosse jogada, malcheirosa, no balde de lixo da História.

— Vou chegar a tempo — disse Pjetkin quando o garçom tirou o prato de bolo.

— Não acredito.

— Eu sei que sim.

— E por quê?

— Porque sou um verme...

— Ah, sim...

O garçom afastou-se depressa, olhando Pjetkin de longe, cheio de compaixão.

— Esse também fundiu a cuca em Vorkuta - disse baixo. — Pena. ”

Desde então não lhe deu mais atenção.

Pouco depois, Pjetkin avistou as primeiras casas de Berlim.

 

Na manhã seguinte, começou o nascimento oficial de Hans Kramer. Na sala de uma repartição em Pankow, Pjetkin defrontou-se com um pequeno exército de repórteres, câmeras estalavam, máquinas de filmar zumbiam, flashes eletrônicos feriam-lhe os olhos. Um homem, que se apresentou como camarada Haberlandt, e falava um alemão singularmente suave — era da Saxônia, mas Pjetkin não podia saber disso — fez um discurso sobre a vida do menino Hans Kramer, da Prussia Oriental, uma vida que só era possível nos tempos em que vivemos. Pjetkin não precisou falar muito, pois o camarada Haberlandt parecia amar as palavras e despejava-as sobre os presentes.

— Sim — disse Pjetkin diante de algumas perguntas diretas.

— Alegro-me por estar na Alemanha. Sou médico e coloco meu conhecimento e minha capacidade a serviço de todos os homens.

— Palavras que Haberlandt lhe soprara, adequadas à imagem que desejam construir. — Vou para Lemgo, visitar meus pais, e talvez fique morando com eles nos primeiros tempos. Não sei ainda. Meu regresso, minha contribuição para a grandiosa reconstrução da Alemanha, tudo isso caiu sobre mim... é preciso que entendam

Todos entendiam. Suas palavras atingiam o coração dos presentes, eram as palavras que todos queriam ler e ouvir. O simpático rapaz de Kõnigsberg, que voltava depois de 22 anos, arrebatado pelos novos tempos dos quais, na Sibéria, apenas tivera uma leve noção.

— Muito bem, excelente — disse Haberlandt depois da entrevista à imprensa. — O senhor é muito bem dotado pela Natureza, doutor. O jeito como disse aquilo sobre seus pais em Lemgo. Sabe o que se passou em Lemgo, não é?

— Não. — A pele das costas de Pjetkin repuxou-se. — O que se passou por lá?

— Não lhe disseram nada? — Haberlandt pigarreou constrangido. — Pensei que os camaradas em Moscou... Bem, caro doutor, seus estimados pais faleceram há pouco tempo.

Pjetkin ficou calado. Não mostrava nenhuma emoção... Hiberlandt o fitava estarrecido. Por que ele não reage? pensou assustado. Todo sujeito com coração se altera com a notícia da morte dos pais. Um repuxa os músculos da face, outro empalidece, alguns choram sem nenhum pudor, mas ninguém espera isso de Kramer... contudo, ele apenas fica aí parado, olhando a parede, sem dizer palavra.

— Mentiram para mim em Moscou — disse Pjetkin finalmente. Uma frase que não agradou nada a Haberlandt. Moscou nunca mente!

— Informações falsas... — Haberlandt corrigiu a escolha dos termos.

— Mentiram. O camarada Starobin mandou dizer que meus pais viviam em Lemgo.

— Certamente um engano de audição.

— Não ouço mal. — Pjetkin olhou em volta. Os repórteres tinham partido. Só alguns funcionários do serviço de segurança do Estado estavam por ali. — Quais são as próximas mentiras?

— Camarada Kramer... — Haberlandt puxou Pjetkin pela manga, levando-o para um canto. — O senhor está nervoso, excitado. Tudo está desabando sobre a sua cabeça de vez, o senhor disse isso muito bem há pouco. Reflita, por favor: precisamos de Lemgo para lançá-lo no Ocidente com grandes gestos e com decência. O senhor é um exemplo de degelo. Saindo da Rússia, entrando na Alemanha Ocidental, com esses encargos que Moscou coloca nos ombros de todos nós. Se isso não for uma prova de abertura para a solidariedade com todos os alemães...

— Então sou apenas um boneco. Primeiro um verme, agora um boneco...

Haberlandt fitou Pjetkin como o garçom no vagão-restaurante de Frankfurt.

— O senhor é o Dr. Kramer, regressando da Rússia. Temos mais uma surpresa para o senhor. Nossa Universidade reconheceu imediatamente o seu exame de Medicina em Kichinev, mudando o seu diploma para o nome alemão de Hans Kramer. O senhor poderá trabalhar em qualquer parte, sem dificuldade. Na Alemanha Ocidental, lhe teriam jogado um porrete no meio das pernas. Eles não reconhecem nem os estudos feitos nos Estados Unidos, que dirá na Rússia. Mas isso está arranjado. O senhor tein um diploma alemão de Medicina. — Haberlandt pôs o braço nos ombros de Pjetkin. — Que mais deseja?

Starobin ou quem quer que tivesse as mãos naquele jogo, era um mestre. O foguete Pjetkin fora avistado, em todos os jornais apareciam relatos e fotografias dele, a televisão lhe dedicou meia hora de programação, que reconstituía a vida do pequeno Hans Kramer: o cemitério de Kõnigsberg, o capitão Pjetkin, que levava a criança em prantos, a educação em Moscou, a adoção por Pjetkin, os estudos de Medicina... até ali tudo estava correto. Mas então começava algo que Pjetkin não compreendia. O curso da sua vida continuava: Médico em Kichinev, médico em Chabarovsk, médico em Irkutsk, lá, notícia de que seus pais ainda viviam, pedido de saída, imediato consentimento, regresso para a Alemanha... Grande dose: um radiante Hans Kramer dizendo: ”Admiro essa nova Alemanha...”

— Mas tudo isso é mentira! — disse Pjetkin, erguendo-se de um salto, quando o programa terminou. Haberlandt ficou sentado — estavam sozinhos no quarto de hotel de Pjetkin, onde haviam colocado a televisão. — Meu primeiro emprego de médico foi no Campo Sergejevka, o segundo como médico semi-interao em Chelinogrado, meu terceiro como prisioneiro em Vorkuta... E por que não dizer uma palavra sobre Dunia? Dunia... isso é o principal. Não a Alemanha, a bela Alemanha que querem que eu admire. Dunia!

— O senhor tem de ser apresentado como um ideal, doutor — disse Haberlandt, satisfeito. — Um bom programa, que foi passado também no Ocidente. É assim que querem vê-lo, doutor. Esse é o homem que também precisam lá do outro lado. Que quer dizer ”verdade”? Verdadeiro é sempre aquilo em que se acredita... os políticos vivem disso. E a sua verdade foi brilhantemente oferecida, o senhor bem viu. Quando chegar do outro lado, milhões vão derramar lágrimas, a imprensa revanchista o festejará — é exatamente isso que queremos — só as repartições vão praguejar porque terão de se ocupar do senhor.

— Vou dizer a verdade.

— Não se esqueça de Dunia. — De repente Haberlandt ficara muito sério. — Nosso colega, o major Plochov, do KGB, tem todos os seus passos controlados, doutor.

Pjetkin fitou Haberlandt sem palavras, longamente, com olhar sincero e franco, até que o outro sentiu um calor no cérebro. Depois, saiu do quarto deixando Haberlandt sozinho, desceu até o bar do hotel, e sentou-se numa das cadeiras altas.

— Conhaque — disse. — Qualquer marca. Tenho um gosto de podridão na boca...

Tomou seis conhaques, e ignorou deliberadamente que Haberlandt saíra do hotel passando às suas costas.

 

Em Helmstedt, Pjetkin passou três dias, depois, o solo da Alemanha Ocidental.

Viajava como um cidadão normal, no trem Berlim-Colónia, depois de embarcar em Potsdam. Haberlandt não o levara até o trem, e sim o misterioso e temido major Plochov. Apanhou Pjetkin no hotel, levou-o num Volga fechado para Potsdam. Estavam sozinhos, Plochov dirigia o carro, e falava russo com Pjetkin, o que lhe fazia bem, embora Plochov o chamasse de Kramer.

— Se o senhor agora disser ”Pjetkin” será meu amigo, camarada major — disse Pjetkin depois de dez minutos.

Plochov deu um sorriso amplo.

— Para agradá-lo... então: Pjetkin. Até Potsdam... depois será novamente Kramer. — Iam depressa, por uma paisagem que de hora em hora florescia mais na primavera. Se na saída, em Pankow, os botões ainda estavam fechados, em Potsdam as magnólias já floriam generosamente. — Conhece bem a sua tarefa?

— Sim.

— Não há pressa, Igor Antonovitch. Primeiro ganhe pé firme, conquiste a confiança, introduza-se... isso leva muito tempo.

— E Dunia? Starobin disse que dois anos são o máximo que terei de esperar.

— Dunia Dimitrovna já está a caminho de Leningrado.

— Eu gostaria de lhe dar um abraço, camarada major. — Pjetkin recostou-se no assento... depois de vários dias sentia-se novamente feliz. — Quando ela poderá viajar para vir ter comigo?

— Depois das três primeiras informações que o senhor nos entregar, do serviço de notícias da República. Nada de pepinos azedos, Pjetkin... informações verdadeiras. Starobin já imaginou o caminho de saída para Dunia, o mais rápido.

— Pela Tchecoslováquia, eu sei.

— Isso deve estimulá-lo e ao mesmo tempo servir de aviso. Não precipite nada. Na Alemanha Ocidental um dos meus camaradas o procurará e lhe dará os meios, avisos, fará contatos. — Plochov olhou depressa para o lado, depois novamente para a estrada. — Sabe que fui contra esse plano? Ele tem demasiadas possibilidades de erro! Espionagem, ou... digamos de modo mais brando... serviço de informações é um negócio duro. Nada para sonhadores. O senhor é o tipo do antiespião. E só faz isso para conseguir Dunia. É assim, Igor Antonovitch?

— Exatamente, major Plochov.

— Talvez eu seja o único que espera complicações com o senhor. Todos os outros, especialmente os de Moscou, estão entusiasmados com esse plano de lançá-lo como grande número no serviço de informações da República. Eu, não. Desista de Dunia...

— Não continue, Plochov. — Pjetkin pôs as mãos nos ouvidos. — Cada palavra sobrecarregará inutilmente a sua garganta.

— Bem... mas se mais tarde quiser cair fora, vamos caçá-lo pelo mundo inteiro até o pegarmos! E o céu vai desabar sobre você, Pjetkin.

— Já sei. Aprendi a viver no inferno.

Aquilo fora de manhã... Algumas horas mais tarde, Pjetkin “tava diante de uma turma de fotógrafos, respondendo perguntas numa floresta de microfones. Dois homens do serviço de informações da República esperavam, um pouco de lado, até que a entrevista terminasse. Três auxiliares da Cruz Vermelha rodearam-no com copos de café quente e pães com patê, como se Pjetkin viesse do deserto. O trem já prosseguira viagem. Os dois homens ao lado agora cuidariam de Pjetkin. As câmeras estalaram — como em Berlim Oriental — a televisão zumbia.

As mesmas palavras, só agora na versão alemã ocidental, com outro som, outro sentido: ”Estou feliz por estar de novo em casa. Admiro a nova Alemanha. Nem consigo entender ainda...”

A sensação estava feita. Uma criança da Prússia Oriental, desaparecida, retorna à pátria antiga como médico soviético. Teve de lutar por isso durante vinte e dois anos. Que sistema desumano! Pjetkin sorriu tristemente e ficou calado.

Jornais e televisão estavam saciados. Quem tivesse ouvidos para escutar perceberia o seu mastigar ruidoso. Os dois senhores da BND puseram-se dos lados de Pjetkin e levaram-no dali.

A liberdade começara. Liberdade?

O primeiro interrogatório teve lugar numa casa dentro dos altos muros do quartel da BND em Munique — Pullach.

Pjetkin ficou admirado. Imaginara algo bem diverso de um centro de informações, algo aventuresco, excitante. O que via agora eram grupos de casas em belos jardins, à beira de uma floresta, separados do mundo exterior por muros e passagens secretas, mas nada mais que uma minúscula cidade com praças, veredas, bancos, canteiros floridos e um silêncio que era agradável, pois não era o silêncio da morte, tão conhecido de Pjetkin.

Tinham-lhe dado um quarto naquela casa em que agora o interrogavam. Um quarto simples, com cama e pia, banheiro e chuveiro, de onde se podia avistar um gramado com pinheiros esguios, e do outro lado um escritório atrás de cujas janelas havia mocinhas sentadas diante de máquinas de escrever, enchendo folhas e folhas de papel.

Depois da chegada a Pullach, ele comera e dormira, um sujeito amável o apanhara para o lanche, que tomaram numa sala com sete mesas, tinham conversado sobre a Rússia, mas só sobre a sua cultura, ballé, ópera, esporte e finalmente sobre Medicina. Depois Pjetkin ficou no andar térreo da sua casa, sentado diante de um velhote jovial, que se apresentou:

— Von Bargent. Coronel. Sou diretor na seção principal do Oriente. Se quiser conversar comigo, doutor... estou as suas ordens.

— Conversar... — Pjetkin pegou o cigarro que von Bargent lhe estendia num maço. Depois deu algumas tragadas, olhando a tampa da mesa. — O que espera de mim?

— Não sei. Talvez apenas me conte como viveu até agora.

— Em vinte e dois anos?

— Eu sempre terei tempo para o senhor, doutor. Sem limites. Podemos realmente desenrolar uma vez a sua vida anterior... se quiser.

— Não é uma vida interessante. Igual a milhões de outras. A vida de um russo.

— Por que o deixaram viajar para a Alemanha Ocidental? — A primeira pergunta concreta. Jogada de leve, mas para Pjetkin era uma pedra no pescoço.

— Eu quis viajar — respondeu.

Von Bargent acenou várias vezes com a cabeça.

— Muitos já quiseram isso, mas nunca os deixaram sair. Querer visitar seus pais, doutor, e ficar com eles, não é motivo suficiente. Sabemos isso tão bem quanto os próprios soviéticos. Não nos devem julgar tolos. Seguimos minuciosamente a campanha de imprensa na DDR... nunca se faz todo aquele trabalho quando um homem sozinho tem permissão de sair da Rússia. O que existe por trás disso tudo?

— Dunia — disse Pjetkin baixinho. Fumava ansiosamente, em tragadas rápidas e curtas. Von Bargent ergueu-se, pegou conhaque e dois copos num armário, encheu-os e empurrou um para Pjetkin.

— Uma mulher, então.

— Sim. Médica.

— Que mais?

— Queríamos casar, mas de repente me disseram que eu não era russo, e sim alemão. Então, como última conseqüência, eu quis vir para a Alemanha.

— E Moscou aceitou isso?

— Veja: estou na Alemanha.

— De certa forma como uma gota do anunciado degelo. — O coronel von Bargent, nascido no Báltico, criado num solar, falando russo tão bem quanto Pjetkin, sacudiu a cabeça. — Qual é a sua missão, Pjetkin? — perguntou no dialeto de Leningrado. Pjetkin estremeceu e agarrou-se à beirada da mesa.

— Dunia. Apenas Dunia. Quero trazê-la para cá.

— Mas isso é besteira, Pjetkin.

— Não!

— Só em romances alguém consegue tirar outra pessoa do meio da Rússia. A realidade é terrivelmente clara. De vez em quando, sim, se ouve falar numa fuga. Pelo Báltico, pela fronteira do Ira... a aventura do século!

— Pensei que iriam ajudar-me.

— Mas como?

— Publicando o meu destino, conclamando a humanidade a protestar contra essa repressão, talvez interessando o embaixador alemão... não sei, agora sou alemão, tem de haver alguma coisa que possam fazer por mim... Tenho o direito de amar e de ser livre. Estou aqui agora e peço ajuda.

— Então acha que os jornais do Ocidente deviam dizer aos russos como esses foram injustos no tratamento que deram ao senhor, a Dunia e ao seu amor?

— Sim.

— E o russo... com perdão da palavra... vai simplesmente cuspir em cima disso. Meu Deus, o senhor se sente como russo, cresceu lá, é médico soviético, esteve em Vorkuta... também sabemos disso, veja só!... e fala uma besteira dessas! Como reagiria, na qualidade de russo, diante de protestos desse tipo no exterior?

Pjetkin calou-se, abalado. Ele tem razão, pensou. Tem mesmo razão. Que interessam a Starobin os jornais do Ocidente? Ainda que milhões andem por aí com cartazes, em Hamburgo, Paris, Roma e Nova York, exigindo a liberdade de Dunia, Starobin tomará o seu copinho de vodca, fumando um papyross, brincando com seus filhinhos, e pensando: podem gritar até rebentar os pulmões... Aqui é Moscou, aqui mando eu! Amanhã tudo estará esquecido.

Von Bargent esperou alguns segundos, antes de prosseguir.

— O seu silêncio é uma resposta suficiente, Pjetkin. Ou devo dizer novamente ”Dr. Kramer”?

— Tudo isso não faz sentido, eu sei. — Pjetkin esmagou o cigarro num cinzeiro de propaganda, no qual estava escrito ”Dirija bem com pneus Simplex”: — Escute, coronel... vou-lhe contar tudo.

Foram necessárias quatro horas até que Pjetkin atingissse, com seu relato, aquele mesmo quarto em Pullach. Von Bargent não o interrompera... Pjetkin não sabia que em algum lugar daquele aposento um gravador funcionava silenciosamente. Quando parou, exausto, von Bargent também estava visivelmente cansado.

Tomaram em silêncio dois copos de conhaque e fumaram um cigarro inteiro, também sem dizer palavra. Só depois Von Bargent disse:

— Doutor, isso é uma história fantástica. Naturalmente o senhor trabalhará para nós e para seu chefe soviético. Nós lhe daremos material falso, que o senhor passará adiante.

— Que é material falso?

— Documentos legítimos, que em alguns lugares foram retocados de modo totalmente imperceptível. Com isso tornaram-se sem valor, mas a oposição não o perceberá.

— Não subestime o major Plochov.

— Plochov também aceitará o material. Vou-lhe dar assuntos quentes, infelizmente superados, mas totalmente desconhecidos para os soviéticos. E naturalmente, como disse Plochov, vamos calcular tempo, muito tempo. No mínimo em meio ano o senhor poderá estar tão adiantado no seu trabalho conosco a ponto de entregar material aos soviéticos. Mais cedo chamaria a atenção, pois antes que o senhor possa chegar ao material secreto entre nós, terá de passar normalmente por um exame imperceptível e completo da sua pessoa. Naturalmente, os do outro lado sabem de tudo isso. Portanto, vamos brincar.

— E o senhor acha que vão libertar Dunia?

— Não.

— Eles prometeram.

— Meu caro Pjetkin ou Dr. Kramer... sejamos brutalmente honestos. O seu amor por Dunia é inteiramente sem esperanças. O senhor se salvou a si próprio do laço, até com bravura, e eu o cumprimento por isso... mas devia desistir de uma vez do sonho de Dunia. Quando os soviéticos não querem, não há qualquer possibilidade. Sabe disso melhor que eu. Acredita na palavra de honra de Starobin?

— Sim.

— Homem de Deus... como poderemos ajudá-lo?

— Acredito na sinceridade de Starobin.

— Loucura!

Pjetkin ergueu-se abruptamente.

— Mas que é que ainda estou fazendo aqui? O senhor não me pode ajudar, na sua opinião Starobin não me ajudará, ninguém irá por mim às barricadas, o russo vai cuspir em tudo, como o senhor mesmo disse, o mundo não dá a mínima importância ao meu destino... pois então passe bem! Vou lutar sozinho.

— Nunca ouvi coisa mais maluca. — Von Bargent também se ergueu. — Trabalhe para nós, doutor.

— Contra a Rússia? Não!

— Para a Alemanha.

— Que absolutamente não se interessa por mim?

— Mas o senhor odeia a Rússia.

— Não! Eu amo a Rússia.

— Seu doido!

— Já ouvi muitas vezes essa expressão. Para viver uma vida própria neste mundo a gente tem de ser doido.

— Então recusa-se a colaborar?

— Sim. Para os dois lados. Vou tirar Dunia de lá sozinho. Tenho tudo o que preciso para isso. Estou no Ocidente. Vivo em liberdade. Aqui existe liberdade, não é?

Von Bargent olhou para o teto.

— Liberdade é algo relativo. Ela não é tão simples assim, Dr. Kramer. Como o senhor vem do outro lado, deve primeiro passar pelo campo dos refugiados, esperar que lhe dêem um passaporte, apresentar-se na Secretaria do Trabalho, na Secretaria do Bem-Estar Social, na Polícia, e quando então estivesse reconhecido como alemão... só então poderia procurar trabalho. Enquanto isso, ficaria no campo de refugiados.

— Um campo! — Pjetkin riu amargamente. — De campo em campo. Da Rússia para a Alemanha. O que, na verdade, os impede de confraternizarem?

— O senhor é comunista?

— Sim. Nunca fui outra coisa.

— Então isso é a primeira coisa a que terá de renunciar.

— Por quê? Acaso os comunistas têm mau cheiro? O coronel Von Bargent fez um gesto.

— Para que discutir? Habitue-se primeiro ao Ocidente... depois o senhor mesmo responderá a essa pergunta. Para provar que não somos como pensa: está tudo arranjado para o senhor.

Amanhã receberá sua identificação de alemão, as repartições estão instruídas. A partir de amanhã será um alemão imaculado, lavado com sete detergentes. Temos até um emprego à sua espera: Médico-assistente na clínica Lindenberg, em Colónia. Seção cirúrgica I, médico-chefe Dr. Weberfeld. O senhor terá um pequeno apartamento na residência dos médicos, que pode ocupar imediatamente. Então, vamos trabalhar?

— E por que logo Colónia?

— É uma excelente clínica, temos um escritório em Colónia, além disso na cidade fica a Missão Comercial Soviética. Três pontos importantes.

— O senhor se esquece de que não vou colaborar. Nem com os alemães, nem com a União Soviética.

— Sabemos disso. Portanto, cuide de sua profissão de médico. O resto acontecerá quer queira quer não. A primeira visita virá dos seus parentes russos.

Dois dias mais tarde, Pjetkin deixou de carro, totalmente despercebido, o BND em Munique-Pullach e foi levado à estacão ferroviária de Munique. Estava mudado. Um novo terno, novo corte de cabelo, camisa moderna e gravata de estampado alegre. Também trocara as malas... agora eram leves, de material sintético com engastes de couro.

Parecia-se com qualquer um na rua.

— Ele está indo para Lemgo agora — disse alguém num transmissor de ondas curtas. O major Plochov, em Berlim Oriental, recebeu a transmissão por escrito em três minutos. — G II avisa que ele recebeu um cargo de médico em Colónia. Colónia está instruída. Fim.

— Parece que vai ser tudo um sucesso — disse Plochov pensativo. — Mas vocês podem me devorar vivo, camaradas, não consigo me libertar de uma estranha sensação. Pjetkin não é um agente... da sua madeira se fazem crucifixos, não coronhas de armas!

 

Marko Borissovitch Godunov trilhou um caminho mais simples. Para ele não houve dificuldades, e se alguém pensasse em lhe colocar um obstáculo aos pés, ele simplesmente saltaria por cima.

Assim, no dia da partida de Pjetkin, apareceu no Escritório Central moscovita da empresa russa de viagens Intourist, e disse para a mocinha que o fitou com nojo por cima do balcão:

— Minha pombinha de olho arregalado, dê-me uma passagem para Helsinque. Quero espiar as mulherezinhas nas saunas finlandesas.

A mocinha, chamada Natalia, respirou fundo, sumiu por uma porta, e chamou o gerente. Esse sujeito, grande, magro, de olhos tristes, veio imediatamente ao saguão, contemplou o feio anão e pigarreou.

— Passagens para animais só são concedidas pelo Ministério de Exportação.

— Sei disso, camarada. — Marko encostou-se ao balcão. — O senhor traz a sua marca para gado na anca. Por isso, o estou tratando amigavelmente, em vez de lhe cuspir na cara. Que tal a minha passagem para Helsinque?

— Como turista?

— Que mais? Não vou caçar pulgas!

— De avião?

— Será que sou Stroganoff, o Grande? De trem, depois de barco sobre o mar, se não houver passagem por terra. A rota mais barata. Economizei durante dez anos para fazer essa excursão.

— E por que logo a Finlândia?

— Por causa das meninas, camarada. Sou um esteta. Um corpo nórdico e louro me arranca gritos de felicidade.

— Ó céus! — O gerente da Intourist desistiu de maiores conversas com Marko. Folheou um grosso livro, apertou o queixo no colarinho macio. — O senhor tem uma sorte desavergonhada, camarada. Em quatro dias parte um grupo de viagem para Helsinque. Há um lugar vago. Quatorze dias de viagem: Helsinque, Tampere, Turku, Pori, Rovaniemi... uma bela viagem.

— Muito bem. — Marko pôs um pacote de rublos no balcão. — Algo de especial que deseja me recomendar?

— Sim. Afaste-se do grupo de viagem. Os finlandeses poderiam pegá-lo como animal raro, e levá-lo ao zoológico.

— Camarada, louvo a sua amabilidade.

Depois de uma hora — esperar faz parte do russo como o cheiro faz parte do excremento — Marko recebeu suas passagens, cartões para a alfândega, passaporte, e tudo o que se precisa para viajar para outro país. Agradeceu a Natalia, chamou-a de cabritinha redonda, e saiu alegre do escritório da Intourist. Não é preciso relatar a viagem a Helsinque, que nada de aventuras trouxe a Marko. Este só se animou quando pisou no solo finlandês.

Lá desapareceu do modo mais simples: entrou num banheiropúblico, esperou que os outros companheiros de viagem entrassem no ônibus, e saiu do pequeno mictório pelo outro lado. Sentou-se num depósito, atrás de um caixote, no qual estava escrito em inglês ”parafusos”, esperou até o anoitecer, e seguiu de táxi para a cidade.

Achou um hotelzinho, alugou o quarto mais barato, com vista para um pátio no qual se empilhavam caixotes e os gatos se amavam.

Nessa noite a tristeza assaltou Marko, que se pôs a soluçar. Era como um pai chorando secretamente por seu filho. Mas pela manhã o impulso de ação o dominou novamente. Fez uma boa refeição, pediu alguns endereços ao porteiro do hotel, com o qual falou num difícil inglês.

Todos conhecem as profissões que ninguém deseja mas que em toda parte continuam se expandindo, como: coveiro, lixeiro, lavador de cadáveres, carregador de caixões de defunto, limpador de esgotos. São atividades dignas, certamente, e onde iríamos parar se ninguém nos cavasse a última cova ou nos levasse o lixo? Mas mesmo os mais famintos davam uma grande volta em torno de tais trabalhos, preferindo carregar caixotes no porto, abrir estradas ou misturar cimento e areia.

Marko pensava diferente. Procurava uma atividade que o tornasse indispensável, ignorado, invisível.

Passou toda a manhã apresentando-se a chefes de pessoal. Mas também a Finlândia não se conquista tão depressa — um lugar como em todas as partes, a lei estava contra Marko.

Como não tivesse sorte com as autoridades, tentou com empresas particulares. E havia lá, numa ruela lateral, uma funerária chamada Piedade, cujo chefe era um sujeito gordo com queixo triplo, que até falava russo.

— Aprendi na guerra — disse orgulhoso. — Eu era segundo sargento. Quando vi todos aqueles mortos, pensei: isso seria uma boa profissão no tempo de paz. Dignamente embaixo da terra... isso faz falta na guerra, e aprende-se a entender os parentes que desejam enterrar solenemente seus mortos. Mas o senhor quer trabalhar? Qualquer coisa? Como russo disfarçado? Meu caro, é um risco para nós dois. Eu não lhe devo dar trabalho nem esconderijo, o senhor não pode ficar aqui na terra mais que três meses. Que vamos fazer?

— Ocupe-me no serviço interno — respondeu Marko. — Em Vorkuta, na cidade, trabalhei como decorador nos casamentos... por que não posso agora decorar os mortos? Consolar sogras ou herdeiros... trata-se apenas de achar as palavras certas. Experimente-me. E se não tiver nenhum quarto para mim posso dormir no depósito de caixões. Até já morei atrás de um depósito de ossos.

Vaiiko Halunáàm, dono da Piedade, pensou por dez minutos, refletiu na falta de pessoa, e venceu seus receios.

— Comece amanhã — disse. — Vou apresentá-lo como um conhecido ao interior, de um lugar agora dominado pelos russos. Um conhecido para uma visita demorada. Pode dormir no depósito de caixões. Vou lhe mostrar logo o que deve fazer.

Era um trabalho de muita responsabilidade.

Vaiiko Halunàáin foi com Marko até o cemitério, onde dois mortos esperavam. Não pareciam muito festivos ali nos seus caixões: um homenzinho enrugado e uma mulher gorda.

— Vamos transformá-los em belezas — disse Halunàáin entusiasmado. — Quando os parentes chegarem perto dos caixões, ficarão iluminados pela majestade da morte...

Naquele dia, Marko aprendeu a preparar mortos, Halunàáin pôs mãos à obra com visível amor, vestiu os mortos com camisas de brocado, que na verdade eram feitas de papel, barbeou o velhinho enrugado, maquilou um pouco a mulher gorda, penteoulhe os cabelos como um cabeleireiro, enfeitou os corpos com flores ao redor, e enfiou um pequeno crucifixo entre os seus dedos cruzados. E lá ficaram os dois mortos como se tivessem tombado no meio de uma festa.

— Que me diz disso? — exclamou Vaiiko Halunàáin. — Despedir-se deles assim até levanta a Ima. Essa última impressão permanecerá.

Marko louvou o trabalho de Halunãáin, prometeu imitá-lo, até desenvolver ideias próprias, e ajudou a arranjar guirlandas em torno dos caixões.

— Você tem jeito, Godunov — disse Halunáàin após três horas. — Está empregado. Espero que fique muito tempo comigo.

À noite, Marko dormiu dentro de um caixão de carvalho de primeira qualidade, confortável, estofado de seda. Dormiu feliz e sem sonhos.

O pilar da ponte entre Igor e Dunia estava firmado na terra.

Agora seria construída a ponte.

Anatol Stepanovitch Dobronin levou Dunia para o trem de Leningrado. Ela se despedira de todos os médicos do Campo, a robusta Stepanovna chorara como se a quisessem crucificar na parede, um destacamento de prisioneiras trouxe a Dunia um crucifixo de bétula esculpida, e quando ela entrou no carro de Dobronin, foi como com Igor Antonovitch: as mulheres do serviço interno formaram uma ala, mas não só se persignaram como também caíram de joelhos rezando.

— Vão lembrar-se de você como de um anjo — disse Dobronin depois de certo tempo. — Lutei por você em Moscou, telefonei onze vezes, supliquei a esse repugnante camarada Starobin que a deixasse no Campo. E o que me disse esse cretino? ”É uma decisão política. Portanto, cale a boca!” Entende isso, Dunia Dimitrovna?

— Não. — Bafijou as próprias mãos, que seguravam o manto de peles. Lá em Vorkuta ainda estava frio, soprava um vento gelado, a neve que se derretia transformara-se numa crosta de gelo.

— Leningrado — disse Dobronin. — Que transferência! A mais bela cidade da Rússia, ainda mais bonita que Moscou, ou Novgorod. Quase uma vida de Paris. Você deve estar doida de alegria.

— Vai ser uma tarefa interessante.

— Sem você vai tudo ser cruel de novo aqui em Vorkuta. Dunia Dimitrovna... estou apaixonado por você.

— Loucura, Anatol Stepanovitch.

— Sei disso, mas queria lhe dizer antes da partida. Odiei o Dr. Wyntok porque ele a perseguia tanto, e se aquele desconhecido não o tivesse assassinado... eu o teria feito algum dia. Quero que saiba disso antes de nos separarmos para sempre.

— Eu lhe agradeço, Dobronin. Você se transformou. Quando cheguei a Vorkuta, não passava de um porco.

— Se você o diz, não me ofende, Dunia. Mas acaso se pode ser algo diferente em Vorkuta?

Dunia viu a estação se aproximando, viu o trem que a levaria do inferno, e uma torrente de alegria a dominou.

— Mais depressa, Dobronin! — exclamou. — Mais depressa! Dobronin acenou com a cabeça, sem palavras. Ela nos odeia a todos, pensou. Todos os minutos em Vorkuta são minutos perdidos... ela não terá razão? Se alguém me dissesse que posso ir a Leningrado, eu andaria a pé pela tundra, e quando meus pés estivessem esfolados, andaria nas mãos.

Duas horas mais tarde, o trem saía de Vorkuta. Dois dias levou Dunia até entrar em Leningrado.

O porteiro da clínica não queria deixá-la entrar, tão esfarrapada parecia segundo os padrões de Leningrado. Só quando ela pediu para falar com o primeiro médico-chefe e foi atendida, conseguiu entrar pela ampla porta de vidro.

— Médica — gaguejou o porteiro. — Jesus Cristo, estamos tão mal que as tiramos do monte de lixo?

— Estávamos esperando pela senhora — disse o primeiro médico-chefe a Dunia. — Terá dois dias livres para poder vestir-se. A camarada Dra. Faluna a levará e aconselhará por toda parte. Aqui é o seu quarto. Como se sente?

— Cansada... como se tivesse chegado a uma praia estranha. — Dunia sentou-se na beira da cama. Onde estará Igor agora, pensou. Como o terá recebido a Alemanha? Será feliz agora? — Qual será a minha seção? — perguntou.

— Na segunda clínica médica, seção de doenças do tórax. O chefe é o Dr. Vinnolovsky. Moscou a recomendou a nós como segunda médica-chefe. O Professor Vinnolovsky a receberá esta noite pessoalmente.

Depois, ela ficou sozinha, naquela imensa casa com centenas de janelas, rodeada de uma limpeza esterilizada, na qual se sentia ela própria como um montinho de sujeira. Despiu-se, amarrotou as roupas jogando-as todas no balde de lixo, que estava debaixo da pia. Parou debaixo do chuveiro, deixou a água cair sobre seu corpo, primeiro quente, depois fria, e escovou a pele com escova e sabonete. Depois jogou também isso fora... as últimas lembranças de Vorkuta exceto a cruz esculpida e a foto tirada por Timbaski. Havia ainda a capa de pele de lobo... Dunia queria dá-la de presente a alguma mulher pobre da rua. Apague Vorkuta da sua vida, disse a si mesma. Arranque-a do seu corpo.

O telefone tocou. Nua, ainda pingando água, andou pelo quarto e pegou o fone.

— Esqueci uma coisa — disse o médico-chefe. Chamava-se Julian Ivanovitch Zaranov, um homem orgulhoso, que estava escrevendo um importante trabalho científico e tinha um futuro de muito sucesso à frente. — Chegou ontem um telefonema para a senhora, da Finlândia. Um camarada Godunov perguntou pela senhora. Conhece-o?

— De passagem — disse Dunia. Seu coração bateu doloridamente, e, tão alto que afastou o fone do corpo e se curvou ao falar. — Um conhecimento muito superficial, Julian Ivanovitch. Nada de importante... — Então Marko já estava em Helsinque.

Era como se chovesse ouro das estrelas.

 

Também a vida de Pjetkin se normalizava depressa, e tão perfeitamente que ele se sentia uma gota dágua absorvida por uma imensa esponja.

Viajou para Colónia, apresentou-se ao Professor Weberfeld, ocupou seu apartamento na residência dos médicos, e antes de assumir o cargo pôde visitar Lemgo.

Lá, parou diante das sepulturas de seus pais, fitando os nomes escritos em pequenas tabuletas de pedra. Leu-os como nomes de estranhos, e não sentiu a menor emoção. Eram realmente estranhos para ele, mas quando de repente, diante desses túmulos, começou a se lembrar de uma sepultura dupla em Kichinev, com os nomes de Irena Ivanovna e Anton Vassilievitch, seu coração estremeceu e pôs-se a doer.

Por cortesia, colocou uma coroa de flores primaveris na sepultura do casal Kramer, e partiu. Não rezou, pois não tinha vontade de falar com Deus. Sabia que era terrível, e queria forçar-se a chamar Elisabeth Kramer de mãe e Peter Kramer de pai... mas não lhe saía da boca.

Quando deixou o cemitério, cambaleava um pouco. Carregava em si um vazio que o atemorizava. Na saída do cemitério virou-se, e voltou para junto das duas sepulturas.

— Perdoem-me, Elisabeth e Peter Kramer — disse — não posso mentir para mim e para vocês. Sou filho de vocês... mas minha pátria é a Rússia. Sou mais Pjetkin do que Kramer. Nascer não é tão importante... a vida é tudo.

O caso do Dr. Kramer foi mais uma vez levantado pelos jornais e televisão, quando Pjetkin assumiu seu cargo em Colónia. Essa agitação era desagradável para o Prof. Weberfeld.

— Não queremos formar uma estrela — disse à sua mulher. Não lia os jornais com relatos sobre Pjetkin. — Além disso, o rapaz primeiro precisa mostrar o que sabe. Formação soviética... minha cara, sou muito crítico em relação a isso.

As autoridades de saúde toleraram seu diploma de médico soviético apenas porque a BND assim ordenara. O diploma, copiado em Berlim Oriental, nem foi contemplado, e quando olhavam, era só para sorrir dele. O Prof. Weberfeld expressou-se assim no jantar em sua vila de Lindenthal:

— Um diploma exótico... como se se diplomasse um trabalhador de canavial apenas porque sabe manejar a machadinha. Exame estadual e promoção em Kichinev... Meu Deus, isso soa como As Mil e Uma Noites. Matilde, dê-me o mapa. Vamos ver onde fica essa tal Kichinev. Provavelmente treinam suas cirurgias nas ovelhas...

E assim também trataram Pjetkin nas primeiras semanas. Observavam-no como a um médico singular, que antigamente tratava seus doentes com métodos de curandeiro. Só quando mostrou que sabia fazer uma injeção sem matar o paciente, fazer um curativo sem sufocar o ferido, que sabia até segurar um escalpelo para abrir um furúnculo sem degolar o paciente, puseram-no como ajudante do médico Dr. Bromer, que o recebeu com um:

— Bom dia, colega.

Depois riu sozinho por cinco minutos encantado com a sua secura.

Pjetkin tolerava tudo. O Dr. Bromer ocupava-o com pequenos serviços, que chamava ”fundamentos da Medicina”. Assim Pjetkin se tornou atendente de enfermagem: lavava os doentes, penteava-lhes os cabelos, cortava-lhes as unhas.

Mas numa coisa conquistou logo a estima dos colegas: assumia sem queixas todos os serviços noturnos.

Isso durou dois meses, até que, certa noite, o Prof. Weberfeld foi chamado para atender um caso de derramamento de bílis. Pjetkin fizera a radiografia diagnosticando ruptura da vesícula, e imediatamente mandou chamar o chefe, e preparar a sala pequena de operações para a cirurgia.

Weberfeld apareceu vinte minutos mais tarde, com grandes gestos, bancando o médico acordado no meio de um bom sono.

— Tem certeza de que é ruptura, Kramer? — perguntou. — Conhece isso?

— Não quero me antecipar ao seu diagnóstico, mas acho que a vesícula rebentou.

— Onde está o paciente?

— Na mesa de operações. Já está anestesiado — Você ficou maluco? — O Prof. Weberfeld respirou fundo. — Anestesiado? E quem o anestesiou?

— O Dr. Bertram.

— O quê? Ele, como anestesista, participou de toda essa estupidez? Onde estão os doutores Falcke e Hanselmaier?

— Na cama, suponho...

— Kramer... uma coisa dessas pode ser possível na Rússia, em Kichinev ou Bumsibeff... não aqui comigo! O paciente na mesa, e eu sozinho! Quem vai me assistir? — Weberfeld começava a berrar. Gostava disso, provava seu poder na clínica.

— Temos de começar, professor... — disse Pjetkin calmamente. — A bílis está correndo incessantemente...

— Sozinho? — Weberfeld rolava os olhos. — Seu... seu... seu idiota!

— Se permitir, farei a operação sozinho.

— Você? Sozinho? Com seus exames feitos em Kichinev? Você devia fazer um exame psiquiátrico.

— Pois há pouco tempo fiz uma operação de Trendelenburg...

— O quê? — O Prof. Weberfeld piscou incrédulo na luz do teto. — Uma Trendelenburg? Você? E...?

— O paciente vive e é chefe de seção no Ministério do Interior soviético.

— Venha!

Foi uma operação em que Pjetkin operou, removendo a vesícula, e o Prof. Weberfeld assistiu. Uma operação rápida, com dedos de artista. Quando o enfermeiro retirou o paciente da sala, o Prof. Weberfeld tirou as luvas e jogou-as no chão de pedra. Estava impressionado e tentava não mostrar isso. Um professor de cirurgia nunca se impressiona.

— Onde aprendeu essa técnica de cortar? — perguntou. Pjetkin lavava as mãos.

— Em Bumsibeff — respondeu — Obrigado. — Prof. Weberfeld enrubesceu. — Entendo... Em casa, ainda naquela noite, pegou o mapa escolar de seu filho Holger e um lápis vermelho, e desenhou um círculo em torno da cidade de Kichinev.

— Que é isso, pai? — perguntou-lhe a esposa olhando sobre seus ombros.

— Uma condecoração para Kichinev. Devíamos mandar nossos jovens médicos estudar lá dois semestres de clínica.

Pjetkin tornou-se médico de seção, ajudou o Prof. Weberfeld nas grandes operações, e com isso ganhou automaticamente o desagrado de todos os médicos e assistentes.

Pjetkin ia sendo isolado. Nem o percebia. Já vivia no seu próprio isolamento, do qual apenas saía para ajudar algum doente. Três meses tinham bastado para que conhecesse o seu novo mundo.

O dourado Ocidente.

A terra prometida.

Dava-lhe vontade de vomitar.

No começo do quarto mês — era julho — chegou a primeira carta de Marko, de Helsinque.

A ponte estava lançada.

Marko escrevia:

”Meu Igorenka, meu filhinho amado, Deus o abençoe!

Eu o perdera de vista, mas agora sei onde vive. Em Colónia, sei pelos jornais, e aconteceu assim: sou decorador de cadáveres, enfeito-os, apresento os queridos mortos aos parentes, esses ficam comovidos e entusiasmados, por ver como o paizinho ou o titio estão bonitos. Há um mês enterramos um comerciante de jornais, e quando a viúva o viu deitado entre flores, mal o reconheceu, e quis protestar que lhe tinham dado um falso morto, mas acalmou-se, contemplou o marido e disse-me: Nunca na sua vida o vi tão bem barbeado. Como posso lhe agradecer?” E eu respondi: Mãezinha, se me deixar ler os jornais alemães, que vende no seu quiosque, tudo estará recompensado.” Era um pagamento legítimo. E assim fiquei sabendo, num jornal alemão, que você está em Colónia. E que me diz agora?

Estou em constante ligação com Dunia. Escrevo-lhe sob o nome de Heiko Nappalainen, assim se chama o primeiro carregador da nossa firma. Duniuschka é segunda médica-chefe na clínica de Leningrado. Vai muito bem, e se for possível pode escrever-lhe por meu intermédio.

Meu filhinho, cuide-se bem. Não perca a paciência. Aperto-o ao meu coração. Você não está mais sozinho no estrangeiro... Dunia e eu estamos de novo com você... mais uma pergunta, filhinho: como vai continuar isso tudo?”

Pjetkin fazia-se a mesma indagação. Leu a carta incontáveis vezes, sentou-se diante do retrato de Dunia, e sentiu uma saudade sufocante. Pelo telefone, passou um telegrama para Marko em Helsinque: ”Obrigado. Diga a Dunia que acharei um meio. Beijos para ela.” Mas também esse telegrama era uma gota de água que se desfazia num mar de fogo.

Posso alcançar Dunia, pensou Pjetkin correndo de um lado para outro no quarto. ”Tenho de agir agora, alguma coisa tem de acontecer. Leningrado pode ser atingida. Onde o braço comprido que alcance até lá?”

Ele lhe foi oferecido numa forma que Pjetkin não podia aceitar. Recebeu a visita de um homem de aparência comum, chamado Leonid Arkadievitch Wolkin, que se apresentou como membro da Missão Comercial Soviética de Colónia.

Wolkin levou Pjetkin de carro à cidade, e lá, numa antiga cervejaria junto ao Reno, sentaram-se num canto, pediram dois copos, e contemplaram-se mutuamente com grande interesse.

— É Plochov quem o envia, não é? — perguntou Pjetkin.

— Não. Plochov tem outras tarefas. Correspondemo-nos diretamente com Moscou, e Moscou não está satisfeita com o senhor, Igor Antonovitch.

— Por quê? Disseram-me que tomasse tempo.

— Não tanto tempo! Você não está bastante ativo. Está decepcionando. Que possibilidades deixou fugir, possibilidades incríveis! Seu contato com aquele velho idiota do Von Bargent... Que fez dele?

— Nada.

— E por que nada? Não lhe fizeram uma oferta?

— Até duas... — disse Pjetkin com reserva.

— E?

— Recusei.

— Seu idiota! Estava bêbado? Estava sentado na fonte e mijou em cima dela... pode-se entender isso?

— O senhor não vai mais entender muita coisa, Leonid Arkadievitch. Nunca estive mais em meu juízo do que naquela hora, e me tornei mais ainda, esvaziado, lavado, simplesmente limpo.

— Que significa isso? — perguntou Wolkin perturbado.

— Sou médico e não espião. Não nasci nem fui criado para isso. É preciso que tenham paciência em Moscou. Não me podem transformar como se desliga uma máquina e se liga para outro fim.

— Pense em Dunia!

— Dia e noite.

— Isso não basta. Faça algo por ela...

— Quando? Starobin me deu dois anos.

— Starobin está morto.

— O quê? — Pjetkin agarrou o encosto da cadeira. — Não é possível.

— Há três dias. Morreu por causa de uma espinha de peixe que lhe ficou presa na garganta. Gostava tanto de comer esturjão. Até chegar o médico, já tinha morrido sufocado. Uma morte nada bonita, mas sabemos como havemos de morrer um dia? — Wolkin pigarreou. — Logo, o que Starobin disse está superado. O novo homem em Moscou chama-se Vasnolov e não partilhou de nenhum orfanato com o senhor... Pense nisso Igor Antonovitch.

— Vou pensar, Leonid Arkadievitch. Reconheço que tenho de agir depressa...

Satisfeito, Wolkin voltou com Pjetkin à residência dos médicos, naquela noite. Tinham bebido, abraçaram-se e beijaram-se à moda russa ao se despedirem.

O mundo fica cada vez mais solitário, mas Moscou não esperará mais. Igor Antonovitch Pjetkin, você tem de fazer alguma coisa...

E fez algo. Lutou em Berlim Ocidental por um cargo no Hospital Robert Koch, que fora anunciado numa revista médica, um cargo de assistente na seção de cirurgia de acidentados. Policlínica incluída.

Foi aceito e apresentou sua demissão ao Prof. Weberfeld. Como ainda estava com contrato provisório, tiveram de deixá-lo ir.

— A contragosto... — disse Weberfeld. —- Queria que se aperfeiçoasse comigo, Dr. Kramer. Não às pressas... mas continuamente, entende? Talvez um pensamento falso, mas quem lida sempre apenas com assistentes alemães envolve-se em desconfiança. Desejo-lhe muita sorte. Tenho o pressentimento de que ainda ouviremos falar no senhor. Vou recomendá-lo muito ao Prof. Limbach em Berlim.

E de repente Pjetkin desaparecera. Wolkin, que o procurou três vezes, recebeu sempre a mesma resposta: mudou-se para lugar desconhecido.

Wolkin tentou de tudo, inclusive uma intimação judicial, pois a justiça sabe onde mandar suas intimações... Não deixou de usar nenhum truque. Mas sempre dava com a cabeça contra uma parede indestrutível. Nenhuma pedrinha se soltava ali.

— Agora ele saiu da frente da janela — disse em Pullach o coronel Von Bargent satisfeito. — O KGB deve estar rilhando os dentes, posso ouvir até aqui.

Realmente, o KGB perdeu Pjetkin de vista. Ao menos por enquanto.

— Adivinhei algo assim — disse, em Moscou, Jakov Starobin, que não morrera sufocado por uma espinha de peixe, mas gozava da melhor saúde e engordara dois quilos e meio. Além disso, sua mulher esperava de novo uma criança, que Starobin chamaria de Igor se fosse menino. Refletiu rapidamente como poderia agora salvar Igor e Dunia da destruição, e achou uma frase simples, lógica, que salvou Pjetkin de planos de vingança:

— É isso: quando ele viu as meninas ocidentais, esqueceu-se de Dunia. É espantoso com que rapidez a decadência absorve um homem, mesmo um Pjetkin...

 

Quem fica pela primeira vez junto do muro de Berlim, olhando para um outro mundo por cima do concreto e do arame farpado, e pensa que esse outro mundo também se chama Alemanha, é dominado por uma sensação opressiva. Sente algo das monstruosidades de que são capazes os homens quando a ideia política substitui a razão no seu cérebro. A última guerra mundial custou mais de 55 milhões de mortos, mas nada mudou entre os homens.

O primeiro passeio de Pjetkin em Berlim levou-o até o muro. Andou de um lado para outro, parou seguidamente, olhando os telhados das casas daquele outro país fechado.

Mandara um telegrama a Marko. ”Estou em Berlim Ocidental. Hospital Robert Koch. Que sabe de Dunia?”

E na outra noite ouviu a voz de Marko pelo telefone, de Helsinque, aquela voz familiar, um pouco rouca, sempre pronta para brigar.

— Filhinho, ela vive como uma princesa. Todos a adoram. Tentou todo o possível, mas por mais livre que viva, um anel invisível se fechou em volta dela. Recusaram-lhe uma viagem de férias à Finlândia. Telefonar para mim seria suspeito... assim nos escrevemos, em longos intervalos, cartas bobas que só têm sentido quando as traduzimos como para outra língua. Igorenka, o que planeja fazer? Por que está em Berlim? Colónia ou Berlim. Leningrado é inatingível. Alguma coisa lhe -ocorre?

— Vai-me ocorrer — disse Pjetkin. — Vou trazer vocês para cá.

— Comigo não há problema. Posso pegar o próximo navio para Liibeck. Mas Dunia? Deve nadar pelo Báltico?

Eram conversas tristes, que nada continham senão a grande esperança. A fé num milagre. Mas milagres no século vinte...?

No hospital, Pjetkin trabalhava na cirurgia de acidentados. O Professor Limbach não cometeu o erro do seu colega Weberfeld, avaliando mal Pjetkin só porque este tinha um diploma soviético. Deixou-o operar, examinou sua atividade, e disse:

— Caro Dr. Kramer, eu lhe darei a seção III. O colega Schuller nos deixará em quinze dias... O senhor pode cuidar da seção a partir de agora.

Pjetkin estava feliz. Tratou de fraturas, costurou corpos rasgados, consolou os parentes dos feridos. Dormia num quarto minúsculo no corredor da sua seção. Trabalhava dia e noite, quieto, sem chamar a atenção, tão rápido na sala de operação que seus colegas que o assistiam começavam a suar já com os preparativos.

— Isso não é um cirurgião, é um artista — disse o Dr. Danner, um jovem assistente. — Diabos, eu trabalhei com Thimburg, ele era um perito na mesa... mas este Kramer costura antes que o fio esteja enfiado na agulha...

À noite, seguidamente Pjetkin ia de quarto em quarto. Havia pacientes que, apesar dos calmantes, não podiam dormir... sentava-se junto deles na cama, e contava aquelas maravilhosas histórias da Sibéria, do caçador congelado, do ladrão do vento, da virgem da neve. Sentava-se junto dos moribundos e jogava cartas com os convalescentes, estava sempre lá, conhecia todos, e tornou-se o confessor de suas aflições ocultas.

Numa dessas noites conheceu o estudante Heiner Stapelhorst, que tivera um pequeno acidente de carro, entrara no hospital com alguns ferimentos na carne, e fora costurado por Pjetkin. Estava agora na cama, lendo um romance policial debaixo do cobertor, com uma lanterna de pilha, fingindo dormir, quando repentinamente Pjetkin entrou no quarto.

— Um truque antiqüíssimo — disse Pjetkin baixo sentando-se na cama. — Mostre... o que anda lendo? — Pjetkin pegou o livro de bolso. — A Aranha Vermelha... É interessante?

— Mais ou menos. Sua vida é mais interessante, doutor.

— Minha? — Pjetkin encolheu-se interiormente. Construía uma couraça ao redor de si mesmo, invisível mas intransponível. — Um leigo sempre pensa que a vida de um médico é algo grandioso. É um duro trabalho com ossos, nada mais.

— Não diga isso. — Stapelhorst curvou-se. — Eu o reconheci logo... os retratos daquela vez... o senhor é o médico de que todos os jornais falaram há alguns meses. Russo e não russo. Criança da Prússia Oriental, perdida e libertada e assim por diante... Não é?

— Sim — disse Pjetkin. — Sou eu.

— Achei sua história bárbara.

— Não era uma história. Era uma vida maldita mas ainda assim bonita. Durma agora, Stapelhorst. Deixe a sua ”aranha vermelha” fazer suas teias...

— Não vá, doutor, por favor. — Stapelhorst sentou-se na cama. A luz da lanterna iluminava o curativo na sua barriga. — Não pense que sou um sujeito que apenas procura uma sensação nova. Nem me julgue insolente, doutor. Não houve uma Dunia com um papel muito importante nessa coisa toda?

— Sim.

— Ainda existe?

— Sempre existirá — disse Pjetkin olhando para a janela. Lá fora, uma clara noite de verão se estendia como um lenço de seda sobre Berlim. Quente e terna. Dunia, pensou Pjetkin. Verão em Issakova. A lua se banha no Amur. Haverá palavras para tais noites? — Ela agora vive em Leningrado, como médica-chefe numa clínica.

— E o senhor a quer aqui, não é?

Pjetkin hesitou. As perguntas do estudante o aborreciam mas o instigavam a responder.

— Claro — disse. — Se leu tão bem os jornais, sabe por que vim para o Ocidente.

— O que mais me admira, doutor. — Stapelhorst pôs o romance na mesa de cabeceira. — O senhor sai, tem o objetivo de mandar buscar essa Dunia. Espera que alguém o ajude. Que o mundo se levante e anuncie seus direitos, que os soviéticos se amansem e mandem Dunia atrás do senhor? Perguntei-me se isso era só um truque ou um sonho maluco?

— Sonho.

— Ah! Ninguém o ajudou?

— Não.

— E não adivinhava isso?

— Não. Não em Vorkuta. Mas agora sei... devagar, bem devagar vou-me acostumando. Como no Mar Ártico ou no Kasakstan, estou de novo sozinho e tenho de continuar tateando meu caminho. Você tem razão. Ninguém me ajuda. A pintura dos seus automóveis vale mais para as pessoas do que o destino de um homem.

— Há exceções.

— Não tenho um vidro de aumento tão enorme que me permita achá-las.

Heiner Stapelhorst mexeu-se mais na cama e apoiou-se no cotovelo. Seu rosto de rapaz, disfarçado de homem por uma leve barba, brilhava. A luz da lanterna de pilha grudava-se no seu queixo barbudo.

— Doutor, o senhor ganhou minha simpatia — disse ainda mais baixo que antes. Os demais feridos dormiam. No canto, alguém roncava como uma serra a motor. — Sabe por quê? Porque não fez sermões moralizantes como seus colegas. Bom, admito que tive culpa no acidente. Dirigi muito depressa, e em ziguezague. Os outros ficam acusando a gente o dia inteiro... mas o senhor não disse nada, me remendou todo, e pronto. Isso me agradou. Doutor, uma pergunta, mas não vá cair. Quer que a gente traga a sua Dunia para o lado de cá?

Pjetkin virou-se. Até ali olhara pela janela. A pergunta o atingiu como uma punhalada no coração. Esqueceu-se até de respirar. Depois, respirou fundo, num suspiro.

— Bobagem — disse rouco. — De Leningrado...

— De Berlim Oriental. Se a sua Dunia puder vir até Berlim Oriental, então... — De repente Stapelhorst estendeu a mão a Pjetkin. — Tenho de lhe dizer uma coisa, doutor. Mas primeiro, sua palavra de honra.

— Dou-lhe a minha palavra.

Stapelhorst parecia lutar consigo mesmo. Fitou Pjetkin, apagou a lanterna e sentou-se de novo, encostou-se na guarda da cama, e virou a cabeça para a janela. A noite morna não tinha ruídos.

— Doutor... — disse ele, muito sério. — Confio no senhor. Faz quatro meses estamos construindo um túnel debaixo do muro. Nós, nove estudantes com parentes no lado oriental. É um túnel muito seguro, debaixo da estrada de Dresden. Só podemos trabalhar à noite, e carregamos a terra retirada em carrinhos de mão para lugares de aterro. Por isso demora tanto. Mas em oito semanas estaremos prontos. Vamos avisar do outro lado, e trazer os parentes. A sua Dunia podia se juntar a eles, até agora são trinta e quatro pessoas. Mas tem de achar um jeito de trazê-la de Leningrado para Berlim Oriental. E ela tem de ser corajosa...

— Um túnel... meu Deus, um túnel debaixo do muro. — Pjetkin esfregou os olhos. — É isso... um túnel! Debaixo da fronteira, como uma toupeira em busca da liberdade! Coragem? Quem está falando em coragem? Viveram na Sibéria, conhecem Vorkuta? Nós respiramos coragem na taiga... Lá ela pende como cachos de frutos nos arbustos.

— Se o negócio falhar poderão todos cantar o seu amém. Os caras do outro lado não têm piedade em casos de fuga... — Heiner Stapelhorst pôs o dedo no peito de Pjetkin. Este estremeceu... voltava de um outro mundo. — Tem ideia de como podia trazer Dunia para Berlim?

— Ainda não. Vamos falar de novo nisso, Stapelhorst — disse Pjetkin numa voz abafada, sufocada pela excitação. Um túnel! Um túnel. — Eu... eu lhe agradeço pela sua grande confiança. Oito semanas, você disse?

— No máximo. Meus amigos estão continuando também sem mim. Quando posso sair daqui?

— Em dez dias.

— Antes não?

— Vou deixar você sair o mais depressa possível.

Pjetkin saiu do quarto com passos inseguros. No corredor, com a fraca iluminação noturna, encostou-se na parede. Oito semanas. rápido como um bater de cílios. Oito semanas apenas... e a grande, a única chance terá passado.

Pjetkin começou a tremer. Nada de pânico, pensou. Não se deixe aniquilar pela premência do tempo. Que horas são? Duas da manhã. Marko, levante-se. As horas fogem entre os nossos dedos. Você tem de achar um caminho... estamos construindo um túnel, você vai trazer Dunia para Berlim Oriental.

Do seu quarto, pediu uma ligação para Helsinque. Depois de uma hora, o telefone tocou novamente, uma hora em que Pjetkin amaldiçoou cada minuto que passava no relógio.

— Está maluco, filhinho? — disse Marko claramente como se estivesse diante de Pjetkin. — Estou deitado num caixão que vale mil marcos finlandeses, sonhando com um campo de girassóis, e a campainha toca. Levantei-me assustado dos travesseiros e procurei os parentes dos meus mortos, que sempre têm tanta pressa de enterrar o paizinho. Mas ninguém diante da porta, e a campainha sempre tocando. Quem iria pensar no telefone? Corri para o escritório, bati em três quinas de caixões, derrubei dois candelabros. e quem está aí? Que é que há, Igorenka?

— Dunia tem de vir imediatamente para Berlim Oriental — exclamou Pjetkin. — Imediatamente!

— E por que não para o Rio de Janeiro? Você está bêbado?

— Estamos construindo um túnel debaixo do muro. Vamos trazer Dunia para o lado de cá. Mas ela terá de estar em Berlim Oriental. No máximo em quatro semanas.

— Era uma vez uma pobre camponesa meio fraca da cabeça, que pegou barro, amassou-o e assou com ele um pão. Até comeu o pão, não tinha gosto ruim para ela, mas quando quis defecar, as tripas tinham virado concreto. Você quer fazer de mim essa mulher, filhinho?

— Oito semanas, Marko — gritou Pjetkin. — O tempo está contra nós. Você tem de ter alguma ideia!

Por uma semana Pjetkin não ouviu notícias de Marko. Telefonou três vezes para Helsinque... Vaiiko Halunããin sempre estava ao telefone, avisando num duro alemão que infelizmente o senhor Godunov estava fora. Infelizmente para a loja Piedade... ninguém sabia consolar tão bem quanto o senhor Godunov, que também era um mestre na maquilagem dos mortos.

Pjetkin deixou Heiner Stapelhorst sair prematuramente, ainda com os curativos, e as feridas a se fecharem.

— Vou avisar em tempo, doutor — disse o rapaz ao despedir-se. — Que soube de Helsinque?

— Nada. Nada absolutamente. Tenho de meter a cabeça na água fria para que não rebente.

Depois de uma semana, Marko se manifestou. Não de Helsinque, mas de Lapperanta, perto da fronteira soviética, chegou um telegrama que jogou Pjetkin na cama, e quem lesse o compreenderia:

”Transferência para Berlim Oriental possível só em oito semanas. Dunia noivou com um engenheiro de Leningrado, a meu conselho, ele será transferido em oito semanas para Berlim Oriental como conselheiro numa fábrica de microtécnica. Grande e súbita paixão. Segue carta. Marko.”

Pjetkin corria como um bêbado. Pela primeira vez perdeu a concentração, pediu um instrumento errado numa operação, e o Prof. Limbach se aproximou dele ao lavarem as mãos.

— Que foi, Dr. Kramer? — perguntou.

— Estou ficando louco, professor. — O rosto de Pjetkin estava emaciado, pálido, parecia faminto depois de poucos dias. — Dunia estará em Berlim Oriental em oito semanas. Não sei de nada certo, mas a notícia é de confiança.

— Quer trazê-la por cima do muro?

Por baixo, pensou Pjetkin, por baixo! Mas não posso falar, professor.

— Vamos acreditar em coincidências felizes, e aguardar — respondeu aos arrancos. — Imagine... ela vem até o muro, eu estou do outro lado, nós nos avistamos, acenamos, gritamos os nossos nomes...

— Você vai sentir um ódio frio, meu caro. O sentimento da impotência o dominará de tal maneira que você não poderá mais pensar claramente. Esse muro vive disso, a política vive disso... Meu caro Pjetkin... eu o estou chamando conscientemente pelo seu nome russo... para nós, alemães, tudo o que vem do Oriente é sinistro. A Rússia é o trauma dos alemães, como a Alemanha é o trauma dos franceses. Nada se modifica nisso... nem apertos de mão, nem acordos, nem abraços, nem conversas fiadas... Onde uma vez a loucura se instala num cérebro, nada a poderá tirar. Nem carícias nem bisturi. Se encararmos a política do ponto de vista da Medicina, o mundo está paralítico. Conhece algum remédio concreto contra paralisia?

— Não.

— E ainda tem esperanças? — O Prof. Limbach secava as mãos. — Quer umas férias, Dr. Kramer?

— Não, professor. Talvez em oito semanas.

— Quando fizer doo para Dunia? Ainda falaremos nisso. Agora, vá ao clube dos médicos e tome um conhaque.

A carta que Marko anunciara chegou em três dias. Veio também de Lapperanta, e era grossa, dez páginas com a letra grande de Marko.

”Foi uma ideia súbita”, escrevia Marko entre outras coisas, ”um raio que me cortou ao meio. Você sabe, filhinho, sabe como é. Tentei telefonar de Helsinque para Leningrado como Nappalainen. Demorou muito até a pombinha loura atender, e eu sabia que eles estavam escutando também, pois o que tem Dunia Dimitrovna a ver com a Finlândia? Então eu lhe disse: Deus a saúda, filhinha, quero transmitir-lhe beijos e saudações do seu distante tio Vanja. Encontrei-o em Helsinque com perfeita saúde. Estava todo espantado por saber que você quer noivar, e lhe manda seus mais emocionados votos. É verdade que pretende viajar para Berlim Oriental? Com seu noivo? Em oito semanas? Quê, é engano? Mas veja só como os boatos se espalham! Assim falei por algum tempo, e Dunia, aquela cabecinha brilhante, logo entendeu tudo. Filho... as mulheres têm o diabo como padrinho. Durou mais uma semana, depois ela me escreveu como feliz noivinha. Conheceu-o no hospital, ele visitava a irmã, de quem cortaram um pedaço das tripas, e os dois se encontraram diante da cama dela, olharam-se, parece ser um sujeito fino, chamado Pavel Urbanovitch Schulkov, disse que era engenheiro, e que infelizmente não podia acompanhar por mais tempo a convalescença da irmã, pois fora transferido para Berlim Oriental... Igorenka, que posso dizer mais? Foi amor à primeira vista. Ao segundo olhar, tornou-se mais concreto, Dunia, aquela diabinha, impôs condições, e o sujeito cego e apaixonado (deveríamos ter pena dele, pois é sincero) queria logo abraçar o mundo, e correu de uma repartição para outra berrando com a excitação de todos os apaixonados a quem acenam com a cama: Só irei para Berlim Oriental com Dunia! Lá vamos nos casar! Tratem de mandar Dunia comigo ou não vou mais, podem engolir lá em Berlim os aparelhos de micro, como pílulas contra prisão de ventre!” Agora o pedido está correndo, e como precisam muito do camarada Schulkov, certamente haverá um acordo.

Filhinho, não bata a cabeça na parede... você terá Dunia de novo, assim como a deixou. Não estará usada, pois Pavel Urbanovitch sabe que só terá sua pombinha na cama na noite de núpcias nem uma hora mais cedo. Ela lhe disse isso, é um pássarinho de muito bons costumes, temos de admitir.

Espero novas notícias. Descobri um amigo, assaltante e vigarista, que sabe um caminho para a Rússia. Vamos nos esgueirar pelas florestas. Tenha paciência. Filhinho, mando-lhe um abraço.”

Aquela foi a última carta. A ligação com Marko se interrompeu.

Esperar... esperar... quatro semanas... seis semanas... silêncio. Prova de que Marko estava grudado nos calcanhares de Dunia

Pjetkin ficou mais nervoso do que era permitido a um médico. O Prof. Limbach o entendia... deixou-o fazer apenas serviços de ambulatório. Dispensou-o das operações.

— No seu estado, acabará costurando um dedão num nariz — disse ele, e fez um gesto de recusa quando Pjetkin quis dar explicações. — Nada de grandes palavras, Dr. Kramer. Imagino como seria se eu fosse trinta anos mais novo e minha noiva estivesse no lado Oriental. Já tem um plano para trazer a moça?

— Já. — Pjetkin hesitou e o Dr. Limbach logo percebeu.

— Não quer falar nisso?

— Não, professor. Isso me deixa louco.

— É perigoso?

— Sim.

— Não estará arriscando demais. Dr. Kramer?

— Estou jogando tudo... mas também quero ganhar tudo: Dunia.

— Ela deve ser uma mulher maravilhosa.

— Não pode ser descrita... — disse Pjetkin baixo. Virou-se e saiu disparado. Era impossível aborrecer-se com isso.

Às vezes nos perguntamos como acontecem coisas que na verdade são impossíveis. Assim era com Pjetkin e Dunia... uma repartição permitiu a viagem de Dunia com seu noivo para Berlim Oriental. Tinham-lhe arranjado até um emprego de médica: assumiu a policlínica e o tratamento de ambulatório do hospital militar soviético de Karlshorst.

Em começos de outubro Heiner Stapelhorst procurou Pjetkin no hospital ao anoitecer. Encontrou um homem cujas mãos tremiam de nervosismo.

— Doutor, estamos diante dos últimos metros, depois entraremos no porão da casa na Rua Dresde. Tudo está saindo bem. Teve notícias de Dunia?

— Nada — disse Pjetkin com olhar esquivo. — Nada. Ainda estou esperando. Esperar! Quem disse que esperar é uma virtude devia ser apunhalado!

— Uma semana pode estar na hora, doutor. — Stapelhont tinha compaixão pelo médico, mas o túnel não estava sendo cavado para Dunia e sim para trinta e cinco pessoas. Mulheres, crianças, homens, velhos... trinta e cinco pessoas que iriam arrastar-se como toupeiras em direção à liberdade.

Mais uma semana.

Pjetkin estava magro como se tivesse tuberculose. Mal falava, refugiava-se junto de seus doentes, envolvia-se nos sofrimentos deles, para esquecer o próprio. Tudo será diferente, pensava quando perambulava pela noite, de um quarto ao outro, pelos corredores, pelo jardim onde o outono entrava e o vento varria as folhas das árvores. Tudo diferente. Dunia vai desposar o seu engenheiro, e desaparecer na Rússia. Nunca virá a Berlim, nunca! Eu a perdi, na hora em que deixei Vorkuta. Fiz tudo errado, tudo.

Ó Dunia, Dunia... vou enlouquecer...

E de repente surgiu uma carta. Remetente: Marko Godémann. Berlim-Karlshorst, Birkenstrasse 15, família Puschke.

Pjetkin não abriu logo a carta. Correu para a cantina, pegou uma garrafa de conhaque, bebeu quatro copos, e só então sentiu a tranqüilidade necessária para abrir o envelope.

Marko Godemann... Marko em Berlim Oriental. Deus do céu... eles conseguiram.

A carta era inofensiva. Um pai preocupado escrevia:

”Caro senhor doutor:

Minha filhinha Dunia apresentou com o correr do tempo uma estranha doença. Corre à noite pelo quarto. São os nervos, dizem os médicos, prescrevem pílulas e supositórios, mas nada adiantou até agora. Ouvi dizer que o senhor é especialista em tais sintomas. Poderá ajudar-me? Por favor, dê-me um conselho. Cordialmente, agradeço-lhe, senhor doutor. Seu Marko Godemann, Birkenstrasse 15.”

Pjetkin apertou a carta ao rosto e ficou assim, sentado imóvel, por alguns momentos.

Dunia em Berlim... distante apenas alguns quarteirões...

Pjetkin respondeu imediatamente.

”Caro senhor Godemann. A doença da sua filha é curável. Conheço um colega, somos amigos, ele lhe dará auxílio. Mora na Rua Dresde, a casa logo junto ao muro. Esqueci o número da casa, mas não vai errar. Desejo a sua filha uma rápida melhora. Seu Dr. Kramer.”

— Eles estão aí — disse Pjetkin fraco e pálido quando Heiner Stapelhorst apareceu de novo, cinco dias depois. — Com Marko, eu lhe falei nele. Esse homem é uma maravilha de Deus, uma verdadeira maravilha. Dunia e Marko já devem ter mantido contato com as pessoas da Rua Dresde. Dunia em Berlim... ainda não consigo entender.

— Deve ser uma mocinha e tanto, doutor. Parabéns, — Stapelhorst tirou um esboço do bolso e estendeu-o na mesa. — Estamos cavando aqui agora. Esta noite vamos atravessar o chão do porão. Estamos bem certinhos... os sinais de batidas estão sobre nós. Amanhã à noite pode acontecer... Vão atravessar trinta e nove pessoas...

— Trinta e nove? Isso não chama atenção?

— Começarão a ir para a casa a partir de amanhã cedo. Se o ar estiver pesado, vão aguardar. Mas por que alguém haveria de notar qualquer coisa? Trinta e nove pessoas, entre mulheres e crianças, numa rua, no decurso de um dia... isso não chama atenção. Vou contar ao nosso pessoal do outro lado, no nosso radiozinho, sobre a sua Dunia e esse tal Marko. Ela fala alemão?

— Da escola. Um pouco.

— Mas entende o corriqueiro? Pare, ou descanse, ou coisa assim?

— Certamente.

Stapelhorst dobrou de novo o seu plano.

— Então, amanhã de noite às duas. Vamo-nos encontrar na Praça Oranien.

— Amanhã à noite...

Pjetkin acenou com a cabeça, como um boneco.

 

O túnel escancarava-se no porão da casa junto ao muro, preto, baixo, a goela do perigo. Tinham passado por montes de terra e entulho. Agora, Stapelhorst e dois outros estudantes estavam na entrada, amarrando lâmpadas de bolso em tiras na testa. Usavam trajes de ginástica, sapatos firmes e uma pistola no cinto.

— Só para emergência — dissera Stapelhorst quando o olhar de Pjetkin passou pelas armas.

Pás e picaretas eram alcançadas de trás. Os três homens as pegaram e dirigiram-se à entrada do túnel. Alguns automóveis esperavam lá fora no escuro diante da casa. Uma patrulha de quatro estudantes passava constantemente pela rua.

— A entrada está tão bem escorada quanto é possível. Mas nunca se sabe o que pode cair. Vamos! Apertem os polegares...

Pjetkin adiantou-se. Atrás dele tinham aparecido agora mais quatro homens, encostados na parede úmida do porão. Parentes dos fugitivos, que se queria trazer do outro lado. Do buraco saía um fedor de mofo e cloaca.

— Leve-me junto — disse Pjetkin. Stapelhorst virou-se. Já dera um passo no túnel.

— Impossível.

— Um médico poderia ajudar numa emergência.

— Se aqui houver uma emergência, nenhum médico mais poderá ajudar. Ou a coisa funciona... ou todos vamos pelos ares. Só vamos saber quando estivermos do outro lado. Se os Vopos estiverem na saída, vocês ouvirão os tiros. Aí os seus esparadrapos não ajudarão mais, doutor. Só poderão fazer uma coisa: Derrubem as escoras! Destruam tudo, fechem a passagem. Não fará mais sentido esperar. Agora vamos!

Stapelhorst deslizou primeiro naquele buraco negro. A passagem era tão alta que ele podia andar abaixado. Os outros dois seguiram-no de perto... por algum tempo só se ouvia o leve bater das pás e picaretas, e um ruído escorregadio.

Água no túnel. Não muita, uma camada fina. Saía do chão, pingava das paredes. Chovera por dois dias, a terra estava ensopada.

E novamente esperar... esperar... na escuridão, no silêncio total, martirizados pelos próprios pensamentos e terrores.

Pjetkin sentou-se num caixote e ficou olhando o buraco negro. O nervosismo o deixara, a partir do momento em que entrara no porão. Admirou-se da própria calma, dos pensamentos claros com que agora enchia a sua espera. Atrás e ao lado, os homens arrastavam os pés inquietos... ele pensava se Dunia poderia também trabalhar no hospital Robert Koch. O Prof. Limbach certamente ajeitaria isso com a Diretoria, e Marko podia ser empregado como atendente de enfermagem. Faziam falta em todas as seções. Ficariam todos felizes por conseguir um auxiliar igual a Godunov. Um futuro seguro... só não se devia falar na saudade, quando se pensasse nas estepes e florestas do Amur...

Um arrastar bem ao longe, batidas distantes e leves. Uma inquietação quase palpável saía daquele buraco escancarado.

— Estão vindo... — gaguejou um homem atrás de Pjetkin. E de repente pôs-se a chorar, as mãos diante do rosto, apertando-se contra a parede do porão, e soluçando. — Eles conseguiram. Estão chegando... ouçam... estão aqui...

Uma cabeça apareceu no buraco, uma cabeça de mulher com um lenço... os homens agarram-na retirando-a dali... seguiu-se uma criança, uma mocinha, carregando nos braços uma grande boneca, com uma toalha enrolada no corpo da boneca... depois um menino com um carro de bombeiros de madeira debaixo do braço... três homens com canos de ferro nas mãos, cujos rostos tensos se desfizeram em sorrisos desamparados quando ficaram ali parados à luz das lâmpadas. Jogaram longe as barras de ferro, abraçaram os homens do porão, depois a mulher e as crianças.

— Que sensação... — disse um deles. — Gustavo, não tenho mais aquele aperto na nuca...

— Façam lugar — comandou alguém do buraco. — Os outros também querem sair! Vão para cima! Aqui não é sala de espera! Para o saguão da casa! Só Mànni e o doutor ficam aqui...

Passos na escada de madeira, vozes abafadas. Depois novamente o silêncio, tão repentino que tirava a respiração. E outra vez um arranhar distante no túnel.

— Já estão aí... — disse o homem que os outros chamavam de Mãnni. — Doutor, ilumine lá para dentro...

A lanterna de Pjetkin trouxe novas cabeças para a luz. Dois homens as ergueram para a liberdade. Corpos sujos, molhados, trémulos.

Um casal com três crianças. Lágrimas, soluços, beijos.

— Saiam! — gritou Manni. — Subam a escada!

Uma mulher em estado adiantado de gravidez. Atrás, o seu marido. Um jovem gigante empurrava um saco de roupas e outras coisas à sua frente. Depois um velho, que metera um lenço na boca para não tossir. Estava perto de sufocar, respirou fundo com o rosto vermelho guando arrancou o pano da boca. Pjetkin fez exercícios respiratórios com ele, até que se sentisse bem, e empurrou-o- para a escada.

Um casal de apaixonados, de mãos dadas arrastando-se pela passagem. Mais uma família. Um bebé, enrolado num cobertor, dormindo no braço da mãe, de chupeta na boca. Uma criança chorava... o pai andava atrás dela segurando-lhe a mão larga sobre a boca... falava sussurrando com a criança, e só soltou a cabeça da menina quando a luz de Pjetkin a atingiu.

Duas mulheres idosas... uma delas mancava com uma bengala, rezando a cada passo.

Pjetkin contava... são trinta e nove ao todo... agora mais sete... quatro... mais duas... onde estava Dunia? Deus do céu... onde estava Dunia?

Stapelhorst apareceu. Sujo, mas feliz, encostou-se na parede. Seus dois amigos também se arrastaram para fora do túnel, figuras de lama, malcheirosas, irreconhecíveis como criaturas de fábula.

Um tremor percorreu Pjetkin. Precipitou-se para Stapelhorst e agarrou-o pelos ombros.

— Onde está Dunia? — gritou. Sua voz ressoou pelo pequeno porão. — O que aconteceu? Onde está ela? Por que não veio junto?

Stapelhorst ficou calado. Respirava pesadamente e com esforço tirou as mãos de Pjetkin de seus ombros. Sem palavras, apontou para a passagem.

No buraco negro apareceu uma cabeça, envolta num lenço amarrado como as camponesas russas prendem os cabelos antes de ir para os campos.

— Duniuschka... — gaguejou Pjetkin — Ó Deus... Duniuschka...

Caiu de joelhos diante da passagem, puxou Dunia para fora, abraçou-a, beijou-lhe a terra do rosto e a umidade dos olhos.

— Dunienka... meu amor.

A voz lhe faltou. Escutou-a balbuciar: ”Igorenka, oh, Igorenka”,depois agarraram-se de novo, como se ainda houvesse algo que os pudesse separar. Stapelhorst deixou-os ajoelhados na entrada do túnel, acenou para os outros e subiu a escada para a casa.

— Esperaremos pelo senhor, doutor — disse na escada. — Não precisa se apressar...

— É você mesmo... — disse Dunia. Suas mãos pegaram a cabeça de Pjetkin. A lanterna de bolso estava no chão, a luz cada vez mais fraca. As pilhas estavam gastas. Pjetkin respirava como quem sufoca. O mundo para ele estava perfeito. Seria um mundo particular, uma ilha no meio de um mar que rugia de ódio, suspeita, ganância, desejo de fama, logro e mentira, fraqueza e jactância, fingimento e sacrilégio. Uma vida própria, três pessoas num paraíso que haviam cavado com as próprias mãos.

Três...

Pjetkin afastou Dunia um pouco e curvou-se de novo para o buraco negro. Escutou a passagem subterrânea, esperou o ruído dos passos. Devagar, cautelosamente, como se pudesse arrancá-la. Dunia puxou sua cabeça de volta.

— Por quem está esperando?

— Marko... Ele deve chegar logo.

— Marko não virá.

Quando Pjetkin estremeceu, ela o agarrou depressa, puxou-o para junto de si, pôs as mãos no rosto dele e acariciou-o. Ele sentia-lhe os dedos trémulos, deitou a testa no ombro de Dunia e escutou-a.

Sentia-se nauseado.

— Tentei convencê-lo, até o fim — dizia ela. — Ele me ajudou a entrar no túnel, veio comigo por um trecho, talvez até a metade, mas depois parou e me fez um sinal, dizendo: ”Abrace-o por mim. Agora ele tem tudo para ser feliz no mundo.” Depois, ainda ouvi seus passos... iam voltando.

— Mas por que não veio também? — Pjetkin abraçou Dunia. Pôs-se de repente a chorar, alto, como uma criança. Procurava apoio nela, mas seus soluços a abalavam também, ela o sustentava como se quisesse empurrar-lhe a cabeça para fora da água. — Por que Marko fez uma coisa dessas?

— Ele me disse: ”Não posso, pombinha.” — Dunia beijou as lágrimas do rosto trémulo de Pietkin. Este jogou a cabeça para trás como um lobo que uiva. ”Entendam-me. Como poderia viver fora da Rússia? Eu sou russo...”

 

                                                                                Heinz G. Konsalik  

 

                      

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