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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUINZE DIAS EM SETEMBRO / Ryoki Inoue
QUINZE DIAS EM SETEMBRO / Ryoki Inoue

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

QUINZE DIAS EM SETEMBRO

 

O dia amanhecera bonito e, como era de costume, o senhor Henriques vestiu o calção de banho e rumou para a piscina de sua casa.

Fernando Henriques era um homem rijo e cuidava com muito ca­rinho de sua forma física. Com quase cinqüenta e cinco anos, tinha um corpo de fazer inveja a muitos jovens, e ele, claro, orgulhava-se disso. Havia mais de cinco anos que deixara de fumar e limitara seu consumo de álcool a apenas uma ou duas doses de conhaque por dia, sempre após o jantar. Dizia que pretendia viver até os cem anos, e com saúde. Tinha a convicção de que só valeria a pena ter uma vida longa se esta fosse saudável, se ele pudes­se aproveitar até o último instante tudo o que conseguira conquistar.

E ele, realmente, tinha conquistado muita coisa. Nascera de fa­mília humilde, trabalhara como um mouro escravo para poder estudar, uma vez que seus pais jamais teriam tido condições de lhe proporcionar mais do que o curso primário e, além de tudo, ainda precisavam de sua força de trabalho para completar a parca renda familiar. Começara, po­dia-se dizer, do nada. Ainda moleque, engraxara sapatos para ter alguns trocados no bolso sem ter de pedi-los ao pai, pois sabia que este nunca podia dispor de um centavo sequer sem que isso não viesse a fazer falta nos gastos obrigatórios do dia-a-dia. Mais tarde, já no ginásio, trabalha­ra fazendo entrega para um armazém e, nessa época, além de um pequeno salário, levava para casa boa parte dos mantimentos que a família consumia. Manuel, o proprietário do armazém, bem depressa descobriu que Fernando seria muito mais útil ajudando-o com as escritas da firma do que entregando, de bicicleta, as encomendas que recebia. Foi assim que o rapaz, de repente, se viu guindado a uma posição mais nobre: a de escriturado. Daí para se inclinar a fazer um curso técnico de con­tabilidade foi um pulo. E, da Escola de Comércio para a Faculdade de liconomia, foi apenas um passo conseqüente a muitas e muitas horas de dedicação ao estudo e a uma imensa força de vontade.

Durante o curso, conhecera Marialva, moça boazinha, mas sem-graça, com quem se casou um ano antes de se formar. Os dois lutaram muito, mesmo porque Marialva, ao subir os degraus do altar, já tinha em seu ventre o resultado de uma imprudência, numa noite em que ela e Fernando tinham ficado sozinhos no pequeno apartamento onde ela vivia com a mãe.

Desde sempre, a vontade férrea que Fernando tinha de prosperar e de, um dia, ser alguém na vida, fez com que ele vencesse todos os obs­táculos. Marialva ajudava bastante, claro, e jamais pedira uma emprega­da para ajudá-la na labuta doméstica, jamais desperdiçara um só grão de arroz e deixara de lado toda e qualquer vaidade, sempre pensando que o mais importante era juntar dinheiro. Juntar o máximo possível e o mais depressa que o casal pudesse.

Foi quando nasceu seu terceiro e derradeiro filho, Carlos Fernando, que a estrela da sorte brilhou sobre o lar dos Henriques.

Já fazia algum tempo que Fernando vinha dizendo à esposa que seu sonho era montar um escritório de comércio exterior. Ele vinha acompa­nhando a evolução dos relacionamentos comerciais do país com outras nações e pressentia que esse seria o caminho da fortuna.

Entre ficar trabalhando como um escravo, desenvolvendo ne­gócios para que outros fiquem ricos, é melhor pensar em fazer algo por mim e para mim mesmo — dizia. — E esse negócio, com certeza, está relacionado com o comércio exterior.

Uma bela manhã, ao chegar ao escritório, foi chamado por seu patrão.

Fernando, tenho uma má notícia. Vou ser obrigado a fechar a firma, e isso não demorará nem mesmo uma semana.

Na realidade, essa notícia não foi nenhuma surpresa para Fernan­do, que, absolutamente a par do que estava acontecendo na empresa, já previa que o senhor Goldmann saísse do mercado. Havia muito que o patrão estava fazendo gordos investimentos em outras áreas e enviando dinheiro para uma conta na Europa. Fernando já vinha percebendo que a empresa estava encolhendo, diminuindo seus investimentos, e o patrão estava preparando alguma coisa nefasta.

— Mas não fique preocupado, Fernando — dissera-lhe ele. — Você e todos os outros vão receber tudo o que têm direito.

De fato, Goldmann foi correto, acertou as contas, e Fernando, uma semana após aquela conversa com o patrão, viu-se com um cheque signi­ficativo nas mãos.

Era a oportunidade que estava esperando para abrir o próprio negócio.

Como, durante o tempo em que trabalhara para Goldmann, ele conseguira juntar uma porção de nomes de clientes e sempre se relaciona­ra bem com todos eles, Fernando não encontrou dificuldade em montar uma carteira própria e, muito rapidamente, passou a derivar suas atenções para o campo que sempre o atraíra, ou seja, o comércio exterior.

Graças à interferência de um desses clientes, conseguiu come­çar a intermediar importações de matérias-primas para a indústria química e exportações de produtos acabados ou semi-acabados. O trabalho passou a aumentar e o dinheiro entrava em quantidades cada vez maiores.

De um apartamento pequeno e humilde na Casa Verde, em São Paulo, a família Henriques mudou-se para uma casa em Perdizes e, de lá, para uma mansão na Granja Viana, transformando a casa de Perdizes na sede paulistana da Fernando Henriques Import & Export.

E era na piscina dessa mansão da Granja Viana que o respeitável senhor Fernando Henriques tinha acabado de mergulhar para dar as suas braçadas matinais.

Fernando nadou por cerca de trinta minutos e saiu da água, ves­tindo o roupão que a empregada, Marcy, tinha deixado sobre uma das espreguiçadeiras.

Entrou na casa pela porta do jardim-de-inverno e, vendo Marialva diante da televisão, começou a falar:

Tenho uma reunião importante em Campinas ao meio-dia... E já passa de dez e...

Marialva, com um gesto, interrompeu-o e, apontando para a tele­visão, disse:

Olhe... Olhe o que está acontecendo em Nova York...

Fernando pôs os óculos e o que viu fez com que a cor de suas faces, habitualmente coradas, tendesse para uma palidez quase cadavérica.

O repórter estava dizendo:

—Vocês podem observar no replay, o segundo avião entrando, prati­camente entrando, no terço superior da torre sul do World Trade Center, um dos principais símbolos da cidade de Nova York! Poucos minutos depois de o primeiro avião ter entrado na torre sul, vemos agora outro golpe aos edifícios! Com isso, a suposição de que poderíamos estar diante de um acidente aéreo não parece ser mais razoável...

Fernando olhou o relógio. Eram dez horas e quinze minutos.

Meu Deus! — exclamou. — Meu Deus!

Marialva olhou estarrecida para o marido e disse, a voz sumida:

Ele tinha uma reunião na torre norte do World Trade Center às oito horas da manhã, horário de Nova York... E os outros dois já estavam no escritório...

Ele nunca foi de horários... Pode ter se atrasado...

Mas Tony e os outros jamais se atrasariam... — balbuciou Marialva.

Lutando para conter as lágrimas, Marialva meneou negativamente a cabeça e murmurou:

Ontem à noite, quando ele me telefonou, disse que não poderia perder essa reunião de jeito nenhum... E disse que sua namorada já tinha pe­dido ao serviço de telefonia do hotel para que o acordassem às sete horas...

Fernando correu para o telefone e discou um número. Enquanto ele aguardava a chamada se completar, o repórter, na televisão, fazia um retrospecto dos acontecimentos:

...Às oito horas e quarenta e cinco minutos, horário local, nove horas e quarenta e cinco minutos, horário de Brasília, um Boeing 767-200 da empresa americana United Airlines, que havia decolado de Boston às 7h59 com destino a Los Angeles, com nove tripulantes e 65 passageiros, foi desviado de sua rota e chocou-se com a torre norte do World Trade Center, em Nova York. Era o vôo 175. Exatamente 18 minutos depois, às nove horas e três minutos, outro Boeing 767-200, da empresa American Airlines, que partiu de Boston às 8h10 no vôo 11, também com destino a Los Angeles, com 92 pessoas a bordo, atingiu a torre sul do World Trade Center, diante das câmeras de TV...

Fernando desligou o telefone e disse à mulher:

Está caindo na caixa postal... Ele não está atendendo... Vou ligar para o hotel.

Entretanto, a telefonista internacional avisou que nenhuma ligação estava sendo possível para a cidade de Nova York...

Meu Deus... — reforçou Marialva. — Tomara que eles tenham se atrasado!

E, não mais conseguindo se conter, Marialva começou a soluçar. Vendo o estado de nervosismo da esposa, Fernando passou-lhe o braço pelos ombros e disse:

Vamos aguardar... Eles certamente vão nos ligar...

Nesse momento, a empregada entrou no jardim-de-inverno trazen­do o desjejum, e o casal, muito mais para tentar disfarçar a angústia do que por apetite, sentou-se à mesa.

Começaram a comer em silêncio, ouvindo ansiosamente a repor­tagem. Fernando estava levando a xícara de café aos lábios quando o repórter disse:

A caba de desmoronar a torre sul do World Trade Center! É impressionante a quantidade de poeira e fumaça cobrindo tudo, impedindo enxergar qualquer coisa com nitidez'. Essa nuvem de pó certamente está sufocando as pessoas! Muitos dos bombeiros e policiais que estavam junto à torre devem ter sido soterrados!

Fernando olhou o relógio. Eram onze horas e cinco minutos.

Tudo era na torre norte... — murmurou. — A reunião... O nos­so escritório...

Olhando para Marialva, indagou:

Em que andar era a reunião, ele lhe disse?

Marialva balançou negativamente a cabeça e, com muito esforço, reprimiu um soluço.

Não, Fernando... Ele não disse nada. Disse apenas que tinha de estar na torre norte do World Trade Center às oito da manhã. Impreterivelmente.

Os dois continuaram em silêncio. Fernando ainda tentou ligar mais uma vez, porém sem qualquer resultado. O número do celular não aten­dia, e as ligações convencionais para Nova York estavam bloqueadas.

Eram exatamente onze horas e onze minutos quando o repórter anunciou que a torre norte do World Trade Center também tinha aca­bado de desabar.

Marialva rompeu num pranto convulso, e Fernando, tentando consolá-la, disse:

Fique calma, querida... Não podemos pensar no pior... Eles vão telefonar, você vai ver. Daqui a pouco eles vão telefonar...

 

João Antônio Dorini, naquela terça-feira, chegara ao escritório muito mais cedo do que habitualmente, tanto que o guarda surpreendeu-se ao ver que faltava um pouco para nove horas da manhã e ele nunca vira o patrão entrar antes do meio-dia. Preocupado, ele perguntou se ha­via acontecido alguma coisa.

— Não, Jeremias... Não aconteceu nada. Eu é que vim mais cedo para cá. Estou esperando um telefonema importante.

Subiu para seu gabinete, pegou o jornal que acabara de comprar e abriu-o no caderno de lazer. Não era seu hábito ler notícias políticas e muito menos as financeiras. Quanto a esse aspecto da vida, ele ti­nha — e pagava bem — quem o assessorasse. Já a parte de lazer era a sua área, a sua especialidade. Fazia já bem mais de dez anos que ele se dedicava a isso, e a cadeia de boates que controlava era prova cabal de seu sucesso.

João Antônio sorriu consigo mesmo, lembrando-se de como ini­ciara, com um barzinho absolutamente inexpressivo nas proximidades de uma faculdade particular das mais caras. Vendia cerveja, uma ou outra dose de uísque ou de vodca, alguns sanduíches e trabalhava como um condenado das nove horas da manhã às duas da madrugada, sem ver, realmente, uma compensação digna por tanto suor.

Até que um dia, perto da hora do almoço, aquele homem aparecera.

Era um indivíduo simpático, de boa aparência, e tinha desembar­cado de um automóvel de luxo, deixando-o aberto, sem fechar as janelas. Sentou-se numa mesa mais ao fundo, pediu uísque importado e, depois de alguns minutos, como o bar estava praticamente vazio, puxou conversa com o proprietário, falando sobre as dificuldades do comércio e a luta diária pela sobrevivência. Exatamente nessa manhã, João Antônio estava num daqueles péssimos momentos, em que parecia que todos os cobra­dores tinham escolhido para aparecer, e não pôde se furtar de expressar o seu desânimo:

Quando abri o bar, pensei que essa molecada cheia de dinheiro fosse me trazer algum lucro. Porém, eles vêm aqui, sentam-se, pedem uma cerveja para dividir entre quatro pessoas, ficam horas jogando conversa fora e nem sequer têm coragem de pedir um tira-gosto!

Conversaram mais algum tempo sobre as dificuldades de João An­tônio, até que o homem soltou:

Acho que você está vendendo a mercadoria errada...

João Antônio não era nada bobo e logo percebeu o que o com­panheiro de conversa estava querendo dizer. Menos de quinze minutos depois, eles já tinham combinado um esquema de fazer passar, para os estudantes, papelotes de cocaína e trouxinhas de maconha.

Não precisa se preocupar com nada. É só não vender demais abertamente — disse o homem. — A polícia já está controlada e, se alguma coisa acontecer, eu aviso antes, para você ter tempo suficiente de limpar a área.

Nos meses que se seguiram, João Antônio pôde perceber claramen­te que seu caixa estava muito melhor. O dinheiro entrava todos os dias numa quantidade que, por vezes, chegava a assustá-lo, e ele estava conse­guindo, pela primeira vez na vida, fazer um pé-de-meia.

A ambição, porém, é uma característica do ser humano, e a am­bição sem medida é característica daqueles seres humanos cujos escrú­pulos não estão muito bem cotados em suas escalas de valores. João Antônio não era diferente e, percebendo que ele era quem ganhava menos naquela cadeia de narcotráfico e quem corria, na realidade, os maiores riscos, começou a pensar seriamente em arrumar um esquema diferente e mais seguro.

Ora, ele sabia muito bem que, nesse ramo de atividade, os negócios não são nada convencionais, e as coisas funcionam de maneira diversa da­quela em que, por exemplo, a mercadoria transacionada é pão ou hambúr- guer. Nesses casos, quando se acha por bem, basta trocar de fornecedor. No narcotráfico, não é assim. Não se abandona um barco sem mais nem menos.

Era preciso encontrar quem lhe fornecesse a droga um pouco mais diretamente, ou seja, sem tantos intermediários, de forma que ele pudesse ganhar mais na venda ao consumidor.

Por causa da amizade que tinha conquistado com a rapaziada que lhe comprava a droga, não foi difícil saber onde mais encontrar a mer­cadoria e a preços muito mais convidativos. E, menos difícil ainda, fazer com que os novos fornecedores, por interesse próprio, dessem um fim ao primeiro intermediário, aquele que o iniciara no negócio. Assim, menos de seis meses depois daquela conversa discreta após a qual João Antônio tornara-se mais um dos incontáveis passadores de drogas em São Paulo, ele estava investindo na compra direta da mercadoria, em conjunto com um grupo pesado da região norte da cidade.

E o primeiro, o iniciador, simplesmente desaparecera do mapa.

Também foi por uma sugestão desse grupo que João Antônio de­cidira abrir sua primeira boate. Teria de ser uma boate tipo danceteria, bem popular, cuja principal fonte de renda seria a venda de drogas, e não qualquer outra coisa.

Daí à cadeia de boates se formar e ele se transformar num dos reis da noite pop de São Paulo, o passo foi extremamente curto. Assim como foi curto o passo que o levou de passador de drogas a fornecedor, respon­sável pelo abastecimento de crack, cocaína e maconha de muitas outras casas noturnas, bem como de incontáveis clientes, até mesmo da alta sociedade, que o procuravam para esse fim.

Obviamente, teve um respaldo absolutamente seguro da chamada banda podre da polícia.

Com o passar do tempo, as mercadorias que ele mandava vir para seu depósito passaram a ser mais sofisticadas. Quando surgiu o ecstasy, ele foi um dos primeiros a adotá-lo. É bem verdade que tive­ra alguns problemas com essa droga. Um fornecedor estrangeiro, por exemplo, cujo nome ele nem podia ouvir e que acabara por lhe dar o fim merecido, vendera-lhe um carregamento no qual metade dos comprimidos era composta de farinha e açúcar. Mais recentemente, a onda era heroína...

E era justamente sobre um carregamento de heroína cristalizada — uma forma hiperconcentrada da droga — o telefonema que ele estava esperando naquela manhã.

Olhou o relógio, viu que já eram quase dez horas e, ligando a tele­visão unicamente para encher o tempo, murmurou:

A esta hora, ele já entregou o dinheiro, e a encomenda estará sendo providenciada...

Foi nesse instante que ele percebeu que toda a programação televi­siva estava em rede e transmitindo o terrível atentado às Torres Gêmeas do World Trade Center.

Vendo as imagens, João Antônio empalideceu, suas mãos treme­ram de tal forma que ele mal conseguiu acionar o botão de volume do controle remoto.

Meu Deus! — exclamou ele. — Mas ninguém poderá escapar de uma tragédia dessas! E o meu dinheiro! Meu dinheiro está lá!

 

A noite tinha sido de loucuras, e ela estava exausta. Sentia todo o corpo dolorido pelos excessos praticados com ele e, ainda no torpor agra­dável do pré-despertar, sentira seu beijo de despedida, o carinho que ele lhe fizera nas costas nuas e, muito vagamente, lembrava-se de ter dito: — Não demore, meu amor... Quero você o dia inteiro, hoje... E ele saíra. Parecia apressado, falara qualquer coisa a respeito de estar atrasado, mas como poderia, se ela mesma tinha pedido à recepção do hotel para acordá-lo às sete da manhã?

Samira deu de ombros, virou para o outro lado e voltou a ador­mecer. Queria, realmente, poder descansar, queria estar em plena forma quando ele voltasse...

Não imaginava ser tão bom estar apaixonada, ainda mais quando só descobrira essa paixão pouquíssimo tempo atrás.

Foi arrancada de seu sono brutalmente por um barulho enorme, algo que parecia um estrondo de explosão imediatamente seguido por um inacreditável som de vidros se partindo, de coisas caindo...

Abriu os olhos, olhou pela janela aberta do quarto e, então, viu a fumaça.

Deu-se conta de que aquilo estava acontecendo a uns mil metros dali, exatamente numa das Torres Gêmeas do World Trade Center.

Correu para a janela.

Uma das torres estava pegando fogo, e a jovem, já completamente acordada, lembrou que ele estava indo para lá. Olhou o relógio e sentiu o coração bater descompassadamente. Eram oito horas e quarenta e cinco minutos. Ele já deveria estar lá havia algum tempo!

Não! — exclamou Samira. — Ele já saiu! Tem de ter saído! O que ele teria tanto a fazer por lá?

Com os olhos pregados na torre que ardia, ela começou a escutar o som das sirenes, o vozerio das pessoas, a confusão que se formava. Ligou a televisão e voltou a olhar pela janela, inconscientemente preferindo ver ao vivo e escutar o que se falava.

Foi nesse instante que ela ouviu o som do avião acelerando suas turbinas.

E viu. Viu o enorme Boeing literalmente entrar no terço mais alto da outra torre.

Meu Deus! — exclamou ela, sentindo um princípio de desfalecimento. — Meu Deus!

Segurou-se à borda da janela para não cair, seus joelhos ameaçando dobrar, seu coração parecendo querer saltar do peito. Controlando-se, murmurou:

Ele deve estar vindo para cá... Não é possível que não esteja!

Samira esperou. Cada segundo que passava parecia um século, cada notícia que escutava, na televisão, acabava um pouco mais com sua esperança.

E, quando ela viu as torres desabar, primeiro uma e depois a outra, entrou em completo desespero.

Sabia que não havia mais esperança alguma. Mais de duas horas depois de o primeiro avião ter batido na torre norte, ele não havia chega­do. E, por fim, as duas torres tinham vindo abaixo.

Não havia mais esperança. Com certeza ele estava morto. Assim como milhares de outras pessoas.

 

Hafez Skandar olhou para o prato de mijadra que estava à sua frente e, voltando-se para Amina, disse:

Isto não é comida para o café-da-manhã...

É o que temos — respondeu a moça, com um erguer de ombros. — Se não quiser comer...

Hafez resmungou qualquer coisa e, mesmo a contragosto, pôs um pouco de mijadra sobre um pedaço de pão.

Daqui a pouco este inferno vai acabar — consolou-o Amina. — Nós estaremos longe desta cidade e poderemos viver normalmente.

Pode estar certa disso — murmurou Hafez. — E não vejo a hora. Já estou muito cansado de tudo isso.

Amina suspirou e, acariciando os cabelos muito negros de Hafez, murmurou:

Não fique nervoso. Como você mesmo me disse, meia hora de­pois que Al-Kayed enviar o sinal, você estará definitivamente liberado.

Fez uma pequena pausa e, com expressão preocupada, falou:

Só o que não entendo é por que eu tenho de ir embora agora, antes de você. Se é por uma questão de poucas horas, por que não pode­mos ir embora juntos?

Hafez balançou a cabeça negativamente e respondeu:

Foram essas as ordens que eu recebi. Você deve partir imediata­mente para Paris e eu irei à noite. Nós nos encontraremos lá.

Pôs na boca outro pedaço de pão e perguntou:

Está com tudo? Pegou o dinheiro, seus documentos, o passapor­te? Sua mala está pronta, pegou tudo o que vai precisar?

Está tudo certo e pronto, Hafez — respondeu Amina, com um sorriso. — Só acho que você poderia ficar com mais dinheiro... Não...

—- Não vou precisar — interrompeu o árabe. — Além do mais, vou receber de Al-Kayed. E é melhor que você viaje com o dinheiro.

Amina não retrucou. Se era assim que Hafez desejava... Sentando-se à mesa, junto a ele, observou-o comer.

Ela gostava muito de Hafez. Com vinte e cinco anos de idade, era um árabe bonito, alto, musculoso, sem um grama sequer de gordura supér­flua. Lembrou-se da noite, das loucuras que ambos tinham feito, e sentiu, novamente, aquele calor a lhe tomar conta das entranhas. Numa tenta­tiva de afastar esses pensamentos — ela sabia muito bem que não era o momento adequado para uma reprise —, perguntou:

Você recebeu alguma outra mensagem?

Não e nem teria por que receber. As coisas já estão definidas. Sei o que é preciso fazer... Assim que tiver o sinal, terei de agir. Por isso, é melhor que você parta agora. Você não pode perder o vôo.

Estou preocupada, Hafez — confessou a moça. — Se pelo me­nos soubéssemos qual vai ser esse sinal...

O árabe sorriu e, segurando a mão de Amina por cima da mesa, falou:

Segundo a mensagem de Al-Kayed, o mundo inteiro perceberá esse sinal. Eu apenas terei de seguir as instruções que ele me deu.

Com uma súbita expressão de seriedade, ele juntou:

Minha responsabilidade é muito grande, Amina. Al-Kayed dis­se, em sua última mensagem, que dependerá de mim a continuidade de seu plano, principalmente agora que estou sozinho, que Al-Kayed afastou Ibrahim, enviando-o para outra missão.

O árabe dissera essa última frase com ênfase, embora em seu íntimo não fosse isso o que desejava que acontecesse. No entanto, depois de tudo ter dado tão errado, ele não poderia esperar outra coisa. Afinal, como Al-Kayed poderia ainda confiar nele? E a única maneira que Hafez tinha de pôr Amina em segurança — ou, pelo menos, em relativa segurança — era exatamente aquela.

Procurando não dar a perceber esses pensamentos, Hafez olhou o relógio e comentou:

Só não sei por que Al-Kayed disse que eu deveria estar com tudo pronto antes das sete horas da manhã e que precisaria estar assistindo à televisão. Nada acontece nesta cidade antes de nove horas!

Certamente o sinal de que ele falou será transmitido pela televi­são — arriscou Amina. — O terrível é não sabermos do que se trata!

Preparando o café, ela indagou:

Teremos alguma confirmação desse sinal? Quero dizer, alguma mensagem que nos mostre que, realmente, era esse o tal sinal?

Al-Kayed falou que o mundo todo perceberá o sinal, Amina. Imagino que nós também o percebamos muito claramente. Por isso, não estou esperando nenhum tipo de confirmação.

E essa continuidade do plano de Al-Kayed? — perguntou Ami­na. — Você nunca me falou nada a respeito! Do que se trata?

Hafez olhou torvamente para a moça e resmungou:

Isso é um segredo muito importante, Amina. Não me foi permi­tido contar a ninguém, nem mesmo a você.

Tomaram o café em silêncio e, ao terminar, Hafez ordenou:

Vá se vestir. E não esqueça que deve usar roupas simples. Nós não podemos chamar a atenção de maneira nenhuma. E apresse-se. Você ainda tem de passar em seu apartamento e deixar seu carro na garagem.

Amina sorriu, ergueu-se da cadeira com movimentos sedutores — ela estava usando apenas roupas de baixo — e perguntou:

Tem certeza de que você quer que eu me vista?

Hafez deu uma risada, acariciou os seios fartos da moça e respondeu:

É preciso, Amina. Por mim, você ficaria assim para sempre. Po­rém, a grande causa exige...

Com um murmúrio de frustração, ela se retirou e foi para o quar­to. Vestiu-se em dez minutos, abraçou ternamente Hafez, apanhou a mala e disse:

Você sabe que eu preferiria ficar aqui com você, querido. E ain­da há tempo para desistir...

Não, Amina... — insistiu Hafez, beijando-a com paixão. — Você não pode ficar. Logo estaremos juntos outra vez e, então, sem ne­nhuma outra preocupação.

O árabe viu a moça se afastar pelo corredor do prédio e entrar no elevador.

Com um grande e triste suspiro, fechou a porta do apartamento e, apanhando mais um café, sentou-se diante da televisão.

Ele detestava televisão. E sabia que Al-Kayed condenava vee­mentemente esse aparelho e o que ele trazia para as pessoas. Como e por que ele dissera que teria de estar assistindo à TV justamente naquele horário?

Certamente Amina tinha razão. O sinal seria transmitido pela te­levisão. Mas... Qual seria esse sinal?

Levantou-se, foi até a cozinha pegar mais um café e, retornando para a sala, olhou o relógio e pensou:

-— Só mais uma hora e meia. Amina estará voando para Paris e para a segurança. Depois disso...

Acendeu um cigarro e, olhando para a tela do aparelho distraidamente, deixou-se levar pela imaginação, sonhando com a vida que poderia ter, na França ou em qualquer outro lugar. Seria uma vida maravilhosa...

Mergulhado nesses sonhos, nem sequer se deu conta do tempo que passava. Foi arrancado desses pensamentos pela voz de um jorna­lista que dizia:

Não há dúvida de que se trata do maior desastre jamais ocorrido nos Estados Unidos! Um golpe que cada americano está sentindo no corpo e na alma! Prestem atenção ao replay! O avião entrou no terço superior da torre sul do World Trade Center!

O sinal! Aí está o sinal! — exclamou Hafez.

Ouviu o repórter dizer que aquele replay era a imagem do segun­do atentado, o segundo choque contra as Torres Gêmeas e que ocorrera exatamente dezoito minutos após o primeiro. Isso significava que o sinal tinha ocorrido havia pelo menos vinte minutos e que ele teria apenas mais dez para desempenhar seu papel.

Apressado, Hafez apanhou uma valise que estava debaixo da cama, abriu-a e olhou para os explosivos que estavam ali dentro.

Com um suspiro, apressadamente, começou a se preparar.

Enquanto isso, já num táxi a caminho do aeroporto, Amina ainda estava arrependida de ter aceitado partir sozinha. Ela queria que Hafez estivesse ali, ao seu lado, devidamente convencido de que a vida seria muito melhor sem aqueles idealismos radicais, sem fanatismos... Ele ti­nha se adaptado tão bem e tão rapidamente às boas coisas que o dinhei­ro podia trazer...! Seriam felizes, sem dúvida nenhuma! E ele prometera que, depois de cumprir sua missão, não deveria mais nada a Al-Kayed. Por isso, somente por isso, ela aceitara ir sem ele, partir cerca de doze horas antes.

Nesse instante, no momento em que ela sorria intimamente so­nhando com uma nova vida ao lado de Hafez, o motorista do táxi aumen­tou o volume do rádio e, olhando pelo retrovisor, exclamou:

Ouça! Explodiram o World Trade Center!

Amina sentiu o coração bater descompassadamente. Na verdade, em seu íntimo, ela não acreditara que aquilo pudesse vir a acontecer e que, de alguma maneira, Hafez pudesse estar ligado a algo tão grande, tão monstruoso! Ao que tudo indicava, tinha sido aquela a missão que Al-Kayed destinara a Hafez! Mas não era possível! Desde sempre, ela achara que aquilo tudo não passava de um certo exagero por parte de Hafez, Ibrahim e Mohamed... Coisas de estudantes, animação juvenil, fantasias, enfim. Os acontecimentos dos últimos dias, porém, acabaram por convencê-la de que não se tratava apenas de mais uma estudantada. E, de repente, ela se dava conta de que ninguém estava exagerando e muito menos brincando. Ela acabara de ouvir, no rádio do táxi, o relato sobre o maior ato terrorista de todos os tempos.

Eles tinham começado a guerra, não havia dúvida nenhuma. Exa­tamente como Al-Kayed — que nem ela nem seus companheiros jamais tinham visto — dissera na última mensagem que Hafez a deixara ver:

Nós os destruiremos a começar por seus maiores valores: o poderio econômico e a hegemonia militar. Nós mostraremos ao mundo inteiro a sua fragilidade. Mostraremos e provaremos que eles não são invulneráveis!

Prestou um pouco mais atenção e soube que o atentado tinha sido cometido com a utilização de dois Boeings como se eles fossem mísseis. Hão fora usado explosivo. Portanto, o seu Hafez nada tinha a ver com aquilo. Pelo menos, não diretamente.

E, se ele teria alguma outra missão de demolição, o que ela sabia ser o mais provável, era sua obrigação tentar impedir.

Procurando manter a voz mais calma possível, ela disse para o motorista:

— Não vou viajar mais... Vamos para o Saint Lucas Hospital. Sou traumatologista. Acho que vão precisar de mim.

O motorista, já emocionado com o que tinha acabado de escu­tar pelo rádio e comovido com o espírito de dedicação profissional que aquela moça estava demonstrando, tratou de se livrar do trânsito e, por caminhos e ruas secundários, rumou o mais velozmente que podia para o Saint Lucas.

Enquanto ele virava esquinas, desviava-se de carros mais lentos e literalmente furava o tráfego que já começava a se engarrafar por toda a cidade, Amina pegou seu celular e discou um número.

 

Donovan não poderia estar mais feliz. Naquela sua segunda noite com Anne Marie ele confirmara que nenhuma outra mulher no mundo jamais haveria de conseguir substituí-la. Anne Marie parecia ter sido fei­ta para ele e — o melhor — ela lhe dissera o mesmo várias vezes durante as últimas horas.

Sorriu, pensando se conseguiria levantar da cama para ir trabalhar, tal o estado de exaustão em que se encontrava. Contudo, era um estado delicioso, talvez fosse exatamente assim o Nirvanah de que os budistas falam... Sentia dores musculares, sem dúvida. Não poderia esperar outra coisa depois de tudo o que fizera durante a noite...

Olhou para o lado, acariciou de leve o rosto de Anne Marie, bei­jou-a delicadamente, e pensou: "Minha vida não terá mais sentido sem esta mulher...".

Nesse instante, Anne Marie abriu os olhos e sorriu. Espichou os lábios pedindo um beijo e agarrou o pescoço de Donovan, puxando-o novamente para si.

Venha, Steve — sussurrou ela com a voz morna e aveludada — Quero senti-lo outra vez...

Steve Donovan suspirou e, desvencilhando-se dela, saiu da cama.

A mulher, na verdade, é sempre a vitoriosa. Depois de uma noite como aquela, Anne Marie ainda tinha disposição e... condições de querer mais. E ele... Bem, ele mal conseguia se agüentar de pé!

Tenho de ir trabalhar — falou Donovan, como uma desculpa. — E já estou um pouco atrasado...

Você bem que poderia ficar comigo — murmurou Anne Marie com entonação de criança mimada e contrariada. — Você não é o único agente do FBI em Nova York, sabia?

Sei disso, querida — retrucou Donovan. — Mas cada um tem seu serviço e suas obrigações. Eu também. Por isso, tenho de ir para o escritório.

Debruçou-se sobre a mulher, beijou-lhe os seios perfeitos e disse:

Bem que gostaria de ficar, você sabe disso... Mas vou pedir uma licença e, então...

Beijou-a apaixonadamente sobre os lábios e acrescentou:

O FBI dá quinze dias de licença matrimonial, sabia?

Anne Marie arregalou os olhos e, antes que ela pudesse dizer qual­quer coisa, Donovan disse:

A menos que você não queira se casar comigo...

A mulher abraçou-o com força e, rindo, perguntou:

E quem disse que não quero? Quis isso desde o primeiro momen­to em que o vi! E mesmo naquela situação horrível!

Saltando da cama, sem se preocupar em esconder sua maravilhosa nudez, Anne Marie juntou:

Vá tomar um banho, querido. Vou preparar seu café.

Donovan olhou para o relógio, na cabeceira da cama. Eram oito e vinte da manhã.

Não sei se dá tempo, querida... Eu sempre tomo café na rua...

Tomava, Steve — replicou Anne Marie, com energia. — Agora, eu estou aqui. E faço questão que você tome o café-da-manhã em casa.

Donovan sorriu, feliz como um adolescente, e foi para o banho. Saiu menos de dez minutos depois, enxugando-se e pensando que, ainda naquela manhã, passaria por uma joalheria e compraria um anel para Anne Marie. Vestiu-se e sentou-se à mesa, enquanto ela, a essa altura já vestida apenas com uma das camisas de Donovan, servia-lhe sua primeira refeição do dia.

Eram exatamente oito horas e quarenta minutos.

Donovan pegou o controle remoto da televisão e ligou-a para, en­quanto comia, assistir ao noticiário matinal.

E foi no instante em que estava passando geléia e manteiga em sua terceira fatia de pão que ele ouviu o jornalista confirmar, com voz altera­da, o primeiro choque contra a torre norte do World Trade Center.

Tanto ele quanto Anne Marie ficaram ali, estáticos, paralisados pela surpresa, ouvindo o jornalista e vendo as primeiras imagens do desastre.

E, então, veio o segundo ataque, muito mais impressionante do que o primeiro, mesmo porque foi transmitido ao vivo... O Boeing entrando na torre sul...

Donovan se levantou, acendeu um cigarro com as mãos trêmulas, olhou para Anne Marie e balbuciou:

Meu Deus... Isso é terrível! Não pode estar acontecendo!

Num gesto instintivo, Anne Marie abraçou-se ao agente e, sem desgrudar os olhos da televisão, começou a chorar.

Foi nesse momento que o celular de Donovan tocou.

 

Em seu apartamento no vigésimo segundo andar em TriBeCa, Mathew Jackson podia dizer que era um homem feliz. Na véspera, en­tregara ao editor do The Wall Street Journal a extensa reportagem sobre o estado da economia da Argentina e suas implicações nos investimentos programados para o Brasil, recebera o cheque do pagamento e as felici­tações pelo trabalho.

E o maior motivo de sua felicidade era Natalie estar ali, deitada ao seu lado, nua como viera ao mundo vinte e cinco anos atrás. Nua e bela, sensual, ardente, sedutora.

A natureza tinha sido pródiga para com Natalie — disso Mathew não tinha a menor dúvida. Primeiro, ela a fizera nascer na França, fruto de uma miscigenação ancestral de bretões, hispânicos — provavelmente mouros — e germânicos, que resultou numa morena de formas exuberan­tes, curvas maravilhosamente harmônicas, seios rijos e fartos, pernas bem torneadas e um rosto angelical, porém transparecendo permanente ma­lícia. Depois, fizera-a ir se desenvolver, criar essas formas e cor no Brasil, sob o sol límpido das praias e ao som do mar, do samba, do frevo. Além disso, dera-lhe uma carga de sensualidade e desejo que Mathew jamais vira em outra mulher. E, não satisfeita, dera-lhe uma inteligência privi­legiada, uma memória de computador e uma formidável capacidade de trabalho. Tanto que, apesar de formada em jornalismo havia apenas um ano, ela conseguira ser contratada pelo jornal O Estado de S. Paulo para fazer a cobertura de um importante evento que se realizaria na sexta-feira, na Bolsa de Valores de Nova York.

Assim, ela viera uma semana antes para aproveitar um pouco da vida nova-iorquina e, é claro, ficar com Mathew.

Acordado desde as sete horas da manhã, depois de ter despertado Natalie com mais carícias e ter sido devidamente retribuído, ainda ofegante por causa do esforço despendido nos exercícios amorosos, Mathew permaneceu deitado de costas, sentindo a cabeça da moça repousando sobre seu peito e ouvindo sua respiração compassada, suave, típica da mulher plenamente satisfeita.

Com um sorriso nos lábios, ele deu graças aos céus por ter aceitado, naquela noite em São Paulo, o convite para um jantar de confraterniza­ção de jornalistas correspondentes internacionais.

Foi nesse jantar que ele conheceu Natalie.

Conversaram bastante, e ela lhe contou que estava trabalhando como freelancer para um dos maiores jornais paulistanos e que havia rece­bido a tarefa de fazer uma grande reportagem sobre a crise na Argentina. Era uma coincidência das mais promissoras, e Mathew não perdeu tempo. Uma semana depois, ambos trabalhavam juntos no mesmo tema, trocan­do informações e... sentimentos. Daí até passarem a estar sempre juntos, dia e noite, foi uma conseqüência natural.

No entanto, Mathew tinha sido obrigado a voltar para Nova York havia quinze dias e, atabalhoado com a redação e a montagem de seu trabalho, nem sequer tivera tempo de telefonar para Natalie. Como ela, por seu lado, também fizera silêncio, ele acabara por se conformar e classi­ficar o caso como uma aventura inconseqüente que ela tinha vivido com ele. Nem mesmo se preocupou em perceber que, para ele, não tinha sido nada inconseqüente, tanto que não conseguia pensar em outra mulher. Portanto, foi indescritível sua satisfação e felicidade quando, na manhã de domingo, ela o chamara pelo celular e dissera:

— Estou em Nova York pelo menos por uma semana e pouco. E quero ver você.

Daquele momento em diante, Mathew passou a viver em função de Natalie e, até mesmo para levar o trabalho ao jornal, na segunda-feira à tarde, ele a arrastara junto.

E, naquele instante, depois de uma semana de autênticas loucuras de amor, vendo o céu muito azul pela janela aberta de seu apartamento e sentindo materialmente a presença de Natalie, ele tentava encontrar uma maneira de convencê-la a uma vida realmente a dois, casados, com a perspectiva de formar uma família, os dois juntos para sempre, ali em Nova York.

Seria a coroação de sua felicidade e o início de uma vida que sem­pre tinha desejado, mas jamais tinha encontrado alguém que mexesse dessa forma com seu coração.

E com seu corpo.

Olhou preguiçosamente o relógio, viu que já era bem hora de se levantar. Queria ele mesmo preparar o desjejum e, depois, levaria Natalie para passear pela cidade, uma vez que, desde que ela chegara, só tinham saído do apartamento para ele poder entregar sua reportagem na sede do The Wall Street Journal. Além do mais, a moça queria procurar uma amiga, uma modelo que conhecera em São Paulo havia já bastante tempo e com quem perdera contato.

Será bom reencontrar Samira — dissera Natalie. — Estou pen­sando em preparar uma matéria sobre a vida das top models e acho que ela tem muitas histórias para contar.

Assim, um dos programas para aquela terça-feira seria tentar en­contrar essa moça.

Estava pondo os pés para fora da cama quando ouviu o estrondo.

Pôs os óculos, correu para a janela e viu, paralisado pela surpresa, a torre norte do World Trade Center pegando fogo.

Natalie! — gritou. — Venha ver! Aconteceu um acidente terrível!

Com os olhos esbugalhados, eles viram a fumaça, as grandes laba­redas subindo, o terror acontecendo.

Abraçados junto à janela, dezoito minutos depois, o segundo avião atingiu a torre sul.

Não era mais possível pensar em acidente.

É a guerra... —- murmurou Mathew. — Estamos sendo atacados...!

 

Carolina, a dona da festa, estava radiante. Todos os convidados tinham comparecido. Havia até mesmo várias pessoas que não tinham sido cha­madas, mas que, nem por isso, estavam atrapalhando. Muito pelo contrá­rio, entre esses inúmeros penetras, a maioria constituída por rapazes, ha­via muita gente simpática e interessante. Como aquele baixinho, magro, de olhos muito azuis e cabelos escuros e rebeldes, que parecia polarizar as atenções de todo um grupo, ao lado da churrasqueira.

"Pena que ele seja tão pequenininho...", pensou ela, enquanto cumprimentava um jovem casal que acabara de entrar.

Não poderia deixar de vir, Carol — disse a moça recém-chega­da, beijando as faces da anfitriã. — Deixei de lado o estudo para o MBA e pedi para o Roberto, meu irmão, me trazer...

Pois fez muito bem! — exclamou Carolina. — Está cheio de gente bonita e interessante aqui! Aposto que é muito melhor do que ficar em casa, numa sexta-feira à noite, estudando marketing e coisas assim!

Levando o casal até a grande mesa de frios, mostrou, com um gesto discreto, o rapaz de olhos azuis e perguntou:

Você o conhece, Amanda? Ele parece ser muito simpático...

Acho que já o vi lá na faculdade — respondeu a moça. — Mas não sei quem é.

Amanda deu um sorriso malicioso e acrescentou:

Mas não será nem um pouco difícil descobrir...

Do jeito que você é, tenho certeza disso — falou Roberto, apa­nhando um copo de uísque com o garçom e afastando-se.

Carolina, permanentemente interessadíssima no irmão de Amanda, acompanhou-o, dando uma piscadela significativa para a amiga.

Amanda aceitou a taça de vinho que o garçom lhe ofereceu e, ven­do um conhecido no grupo onde estava o rapaz que despertara a curiosi­dade da amiga, dirigiu-se para lá.

Quando a moça se aproximou, o rapaz, que naquele instante estava falando sobre o curso de pós-graduação que estava fazendo, calou-se.

Continue — disse Amanda, com um sorriso — É interessante o que você estava contando...

O conhecido de Amanda, depois de cumprimentá-la, fez as apre­sentações:

Amanda, este é o Fefê, um colega de curso.

E, voltando-se para o amigo, explicou:

Amanda também está fazendo MBA lá na faculdade. Só que ela está fazendo em marketing.

Fefê sorriu, apertou a mão que Amanda lhe estendia e, esticando- se um pouco — a moça era pelo menos cinco centímetros mais alta —, beijou-lhe as faces, dizendo:

Muito prazer...

Bem que ele gostaria de falar algo mais, talvez dizer-lhe que, se a tivesse conhecido antes, com certeza teria mudado de curso, ou qualquer outra coisa do tipo. Entretanto, não o conseguiu e, a despeito de tentar se controlar ao máximo, sentiu que suas faces ficavam vermelhas.

Isso sempre lhe acontecia... Bastava precisar se dirigir a uma moça, ele corava, emudecia e parecia outra pessoa. Aquela vivacidade, aquele aspecto desinibido que mostrava junto aos amigos de­saparecia por completo, e Fefê ficava ali, quieto, ouvindo os outros falar, somente de quando em quando resmungando alguma coisa em assentimento.

Geralmente, nessas ocasiões, ele jamais discordava do que fosse dito: se discordasse, teria de falar, teria de expor suas idéias. E ele sabia que, na frente de uma moça, especialmente se a moça fosse bonita — e Amanda era muito bonita, com quase um metro e setenta de altura, cabelos loiros compridos, corpo escultural e um rosto que ficava entre a ingenuidade angelical e a malícia de uma mulher experiente —, ele não conseguiria sequer abrir a boca.

Naquele instante, como ele estava sendo, até então, o centro de atenções de todo o grupo, com seu súbito silêncio, criou-se um ambiente de ligeiro mal-estar e, depois de uma ou outra frase sem importância ter sido dita por outros participantes, cada um foi para um lado dando uma desculpa qualquer, e Fefê se viu sozinho com Amanda.

Mais para não ficar sem dizer nada, num silêncio constrangedor, o rapaz mostrou para Amanda um casal que estava a alguma distância, e perguntou:

Quem são eles? Não parecem brasileiros...

Ela é francesa, mas mora aqui no Brasil. É jornalista, está traba­lhando como correspondente de um jornal brasileiro, em Buenos Aires. Chama-se Natalie. Ele eu não sei. Mas parece que os dois estão juntos... Veja só como se olham...

E, com um sorriso que não escondia certo despeito, Amanda comentou:

Ela é bem bonita, não é mesmo?

Fefê apenas fez um gesto afirmativo com a cabeça e continuou a olhar para Natalie. De fato, ela era lindíssima. Dificilmente veria uma mulher mais bonita. Contudo... bastava ver o homem que a acompanha­va para perceber que Natalie jamais seria peixe para seu anzol. Nesse momento, a moça desviou o olhar de seu companheiro e fixou-o em Fefê. Este, como sempre muito tímido, rapidamente voltou a olhar para Aman­da e, com um movimento de cabeça, jogou para trás uma inexistente mecha de cabelos que, se existisse, estaria lhe caindo sobre a testa.

Um garçom passou com sua bandeja de bebidas e a jovem apa- uhou outra taça de vinho, enquanto Fefê aceitava mais uma generosa dose de vodca.

Não sei como você consegue tomar isso — comentou ela. — É álcool puro! Queima a boca e a garganta...

Não tomo outra coisa — disse Fefê, balançando a cabeça.

Mas é muito forte! — insistiu Amanda.

Até que nem tanto assim... — murmurou Fefê.

E, mais uma vez, apesar de querer continuar falando, não conseguiu e ficou quieto, remoendo a raiva que sentia de si mesmo, por ser assim.

Amanda, percebendo a timidez do rapaz e, querendo saber um pou­co mais sobre ele, falou:

Gostei dessa sua camisa... Combina com você, com seus olhos...

Um sorriso iluminou o rosto de Fefê. Aquele era um assunto que ele dominava e que jamais o inibiria. O esmero que tinha em se vestir, as roupas de marca que comprava mereciam ser comentadas, e ele ficava realizado quando alguém percebia que aquilo que estava usando era de boa e caríssima procedência.

E ele tinha realmente se produzido para aquela festa... Não conhe­cia Carolina, a anfitriã, mas ouvira alguns de seus amigos dizer que era uma moça riquíssima, finérrima e extremamente exigente consigo mesma e com os outros. Era uma dessas que são chamadas maldosamente de patricinhas, e ele sabia que, se quisesse ser ao menos considerado, teria de estar vestido de acordo. Ou seja, teria de ser um autêntico mauricinho. Assim, quando foi convidado para a festa, dez dias atrás, ele fora a uma das butiques mais caras de São Paulo e comprara tudo novo, desde a rou­pa de baixo até os sapatos.

Portanto, ele estava vestido com um traje cujo preço daria folgadamente para uma família inteira comprar mantimentos para seis meses...

Comprei na Daslu, como sempre faço... — admitiu ele, com fin­gida naturalidade, como se comprar roupas na butique mais cara do país fosse uma rotina até mesmo enfadonha.

Durante alguns minutos os dois ficaram conversando sobre moda e modelos, ou seja, futilidades sobre as quais Fefê conseguia conversar.

Em dado momento, o assunto se desviou para as baladas da noite paulistana, e Fefê comentou:

Sexta-feira que vem haverá uma bela festa no Gallery. Você vai estar lá?

Não — respondeu prontamente a moça. — Teria de mandar fazer um vestido branco e não vai dar tempo...

Ora! Compre um modelo prêt-à-porter — sugeriu Fefê. — Com o corpo de modelo que você tem, não encontrará dificuldades, e aposto que nem mesmo precisará de qualquer ajuste!

Amanda sorriu, agradeceu o lisonjeio e disse:

Um vestido assim, para ser bom, sai muito caro, Fefê... Eu não teria condições... Vivo do meu trabalho; meus pais não me dão essa liber­dade financeira.

Também vivo do meu trabalho — replicou o rapaz. — Sou sócio de uma empresa de exportação e importação.

Então, você deve ganhar bem. Para poder se vestir na Daslu...

É... — concordou ele. — Não posso me queixar...

Olhou o relógio de pulso, um caríssimo relógio suíço, de ouro, e acrescentou:

Ainda não é meia-noite, e eu estou morrendo de fome... E essas coisinhas que estão servindo não me agradam nem um pouco...

Juntando toda a coragem do mundo, convidou:

O que acha de irmos jantar? Depois, até podemos voltar...

Amanda olhou para ele com uma expressão maliciosa e, desejosa de conhecer mais a fundo aquele rapaz, respondeu:

Se você esperar eu encontrar meu irmão e lhe dizer que não preciso dele para voltar para casa...

Fefê, sentindo o rosto em fogo e as pernas um tanto quanto trêmu­las, mal conseguiu balbuciar um "fique à vontade, estarei aqui esperando por você".

Ele viu a moça se afastar, mexendo sensualmente os quadris e, pe­gando mais uma dose de vodca capaz de pôr abaixo a resistência de um cossaco, pensou: "Tenho de levar essa mulher ao Gallery! Desta vez não vou ficar sozinho numa festa!".

 

Afastando-se de Fefê, Amanda não foi apenas procurar o irmão, mesmo porque sabia que não havia nenhuma necessidade disso: Rober­to já estava mais do que acostumado a levar a irmã às festas e deixá-la voltar em companhia de algum amigo ou amiga. Na verdade, ela queria era encontrar Carolina.

Encontrou a amiga no meio de uma roda e, chamando-a para um canto mais isolado, disse:

O Fefê me convidou para jantar...

Ah, é? — exclamou Carolina, com expressão de surpresa. — E quando?

Agora...

Agora?! Mas... e a minha festa? Você mal chegou e já vai embora?!

Nós vamos voltar... Acho. Pelo menos, eu vou tentar voltar.

E, em voz mais baixa, indagou:

Soube mais alguma coisa sobre ele?

Carolina, que não achara graça nenhuma em ver a amiga se retirar tão depressa, respondeu:

Eu não deveria lhe contar, amiga-traíra... Mas, como não sou rancorosa...

Não sou traíra, Carol — defendeu-se Amanda. — Só estou curiosa... E é uma oportunidade, não é mesmo?

E muito boa, querida — afirmou Carolina. — Esse rapaz é podre de rico, bem-educado... De excelente família! Vale a pena o investimento!

Mas ele é tão baixinho...! Tão tímido...! Na verdade, não faz o meu gênero de jeito nenhum!

Carolina deu de ombros e disse:

Você é quem sabe, amiga... Se eu não fosse a dona da festa e não estivesse tão interessada no seu irmão...

Amanda deu uma risada e, beijando as faces da outra, falou:

Está bem. Você me convenceu. Vou jantar com ele e, quando voltarmos, eu lhe conto como foi.

Se você voltar... — murmurou Carolina — Coisa que eu acho que não vai acontecer.

Já lhe disse que ele não faz o meu gênero, Carol. Nós vamos voltar, sim. Pode acreditar.

De qualquer jeito, vou dizer para o Roberto não se preocupar com você. E, se você quiser dormir aqui, amanhã, peço ao motorista para levá-la em sua casa. Assim, nós poderemos conversar à vontade.

Amanda sorriu, soprou mais um beijo para a amiga e afastou-se, ru­mando ao encontro de Fefê, que, naquele instante, estava vendo Natalie e seu acompanhante saindo, também se despedindo de Carolina.

"Bem...", pensou Amanda, avistando-o com mais um copo de vodca na mão, "pelo menos acho que vou jantar bem. Ele tem razão... Essas coisinhas que estão servindo não valem nada. Nem sei como o Roberto, que come como um leão, ainda não se manifestou!"

 

Amanda já se impressionou ao ver o carro de Fefê, uma BMW do ano. Sentando-se e ajustando o cinto de segurança, ela perguntou:

Você não tem medo de andar com um carro desses? Não tem medo de ser assaltado?

O carro está no seguro — respondeu o rapaz, ligando o motor.

E eu acho que essa história de assalto é meio lenda.

Arrancando, ele completou:

E este carro é blindado. Estamos mais seguros aqui dentro do que em qualquer outro lugar do mundo.

Vendo que Fefê não punha o cinto de segurança, ela perguntou:

Você não usa o cinto?

Não gosto. Ele me incomoda e, de mais a mais, acho mais pe­rigoso usar essa porcaria do que não usar. Você não se lembra daquele acidente em que o motorista morreu enforcado no cinto?

Amanda lembrava. E lembrava também que o rapaz não se enfor­cara com o cinto, mas sim que ele, baixinho demais para o carro, tinha espremido a traquéia contra o cinto. Por causa da estatura do motorista, o cinto tinha ficado alto demais, pegando-lhe o pescoço.

E era, provavelmente, por esse motivo que Fefê se recusava a usar o cinto de segurança.

Falando sobre as vantagens de confiar apenas nos air bags do auto­móvel e em sua estrutura bem dimensionada e rígida, Fefê dirigiu-se para o restaurante Fasano, um dos mais caros e tradicionais da cidade.

Gosto daqui — disse ele, deixando o carro com o manobrista. — Venho sempre. Por isso, tenho certeza que não vamos ter de esperar vagar uma mesa.

De fato, assim que o casal entrou, o maitre se aproximou, cheio de sorrisos e mesuras, dizendo:

Boa noite, doutor Carlos. Vai jantar ou só vai tomar um drinque?

Vamos jantar — respondeu Fefê.

E, olhando o restaurante cheio, o bar repleto de pessoas aguardan­do mesas, juntou:

Quer dizer... Talvez... Parece que você não tem nenhuma mesa vaga...

O maitre inclinou-se um pouco, a fim de lhe falar ao ouvido, e disse:

Não é o seu caso, doutor... Sempre temos algumas mesas reser­vadas para personalidades...

Fefê sorriu, satisfeito, disfarçadamente pôs na mão do maitre uma nota que Amanda viu ser de cem dólares e, guiando a moça pelo braço, falou:

Vamos atrás dele, Amanda... Nossa mesa está esperando.

Para iniciar, pediram um coquetel de lagostas e uma garrafa de Chablis, safra especial e reservada.

Pensei que você só tomasse vodca — comentou Amanda.

Durante a refeição seria mal-educado — disse Fefê com um sorriso. — E eu também tomo vinho. Só que precisa ser um vinho muito bom!

E caro! — exclamou a moça. — Conheço esse vinho e sei que ele não é nada barato...

Isso jamais seria o problema — assegurou ele. — O prazer não tem preço. E o que é de bom gosto jamais é caro!

Amanda teve vontade de dizer que a vida não pode ser encarada apenas por esse prisma e que muita coisa que dá muito prazer custa quase nada... Mas preferiu ficar quieta e não entrar nesse campo de discussão, o que poderia até trazer alguma desarmonia para a mesa.

Mais desinibido por causa da quantidade de álcool que já ingerira e, naquele instante, misturando com o vinho, Fefê falava sem parar de sua vida, dos lugares que freqüentava, das festas a que ia, enfim, de seu mundo pleno de futilidades. Várias vezes Amanda teve de se controlar para não tecer comentários do tipo "mas isso é muito caro; esse seu modo de vida deve custar uma fortuna; você realmente deve ganhar muito bem; poucos podem fazer o que você faz...". Mas se conteve. Não queria mostrar surpresa com o que o rapaz lhe contava — achava até que já o tinha feito demasiado — e, também, não queria deixar transparecer curiosidade quanto ao modus vivendi de Fefê.

Pediram o prato principal — Fefê sugerira um javali com trufas, mas Amanda, que não estava disposta a ter de misturar vinho branco com vinho tinto, preferiu um haddock à beurre noire — e, enquanto aguarda­vam sua chegada, o rapaz disse:

Gostaria que você fosse à festa do Gallery!

É impossível — retrucou Amanda. — E já lhe expliquei o motivo.

Mas você não gostaria de ir? — insistiu Fefê. — Não gosta des­ses lugares?

É claro que gosto! — exclamou a moça. — E é claro que eu iria ao Gallery nessa tal festa. O problema é que, realmente, não vai dar.

Nesse momento o garçom veio servir o peixe, e o assunto entre eles mudou, recaindo sobre a festa de onde tinham acabado de sair.

Aqui está bem melhor, não é mesmo? — perguntou ele.

Não tenha dúvida — concordou Amanda. — E nós podemos conversar bem mais à vontade... Sem o perigo das línguas fofoqueiras.

Por um breve instante, passou pela mente de Fefê que ele bem justaria de estar na festa, polarizando a presença de Amanda ao seu lado, com todos os demais vendo-o acompanhado por aquela mulher tão bonita e desejável, com todos se mordendo de inveja... No entanto, ele estava plenamente consciente de que, lá na festa, ele jamais teria essa oportuni­dade. Primeiro, porque ele sabia que sua inibição acabaria por impedi-lo de segurar a moça ao seu lado e, segundo, porque ela, certamente, haveria de se interessar por outros ali presentes, mais altos, mais fortes, mais in­teressantes do que ele.

Aliás, ele ainda não conseguira descobrir de onde arranjara a cora­gem para convidá-la para jantar!

Por sua vez, Amanda já estava mais do que satisfeita quanto a ma­tar a sua curiosidade e não via a hora de voltar para a casa de Carolina. Já vira perfeitamente quem era Fefê; percebera que, definitivamente, ele não era o seu tipo e, por mais dinheiro que tivesse, jamais a interessaria a ponto de vir a acontecer alguma coisa além de um jantar.

Fefê, porém, não dava mostras de querer ir embora. Pediu sobremesa, depois café, depois um licor... E ficou ali, morgando uma conversa já meio sem pé nem cabeça, em que os assuntos morriam depressa, nenhum tema conseguia se expandir por mais do que meia dúzia de frases curtas e vazias.

Por fim, entregando os pontos, Amanda disse:

Estou começando a ficar com sono, Fefê... Vamos...

Interrompeu-se a tempo. Por pouco não ia dizendo "vamos voltar

para a festa da Carolina", mas, se falasse isso, não estaria justificando o sono e, pior, estaria, no mínimo, confirmando que a conversa e a compa­nhia de Fefê não a estavam agradando. E, isso, ela não queria fazer. Sua educação jamais permitiria maltratar, ou humilhar, quem quer que fosse. E até mesmo o pernóstico rapaz que se encontrava à sua frente era mere­cedor de alguma consideração.

Vamos... — continuou ela. — Você me leva para casa?

Mas... já?! — protestou o rapaz. — A noite ainda é uma criança!

Estou cansada, Fefê. E amanhã eu preciso estudar. Na verdade, esta noite eu não deveria ter saído de casa...

E, depressa, acrescentou:

Ainda bem que o conheci. Compensou de sobra eu ter deixado de completar meu trabalho de formatura... Você me proporcionou uma noite maravilhosa!

E, enquanto Fefê simplesmente assinava a nota que o maitre lhe trouxera, Amanda pensou:

Amanhã cedo eu ligo para a Carol e explico o que aconteceu. Ela vai me entender...

Amanda morava no Morumbi e, durante o trajeto até sua casa, os dois trocaram poucas palavras. Ela, porque de fato já não tinha mais nada a dizer para o rapaz, e este, porque seus pensamentos voavam longe dali.

Ele imaginava Amanda nua, ao seu lado, numa cama de motel... Imaginava-a carinhosa, enroscando-se a ele, ardente de desejo...

Entretanto, Fefê sabia muito bem que era um sonho impossível. E impossível principalmente porque ele jamais teria coragem de propor alguma coisa para aquela mulher.

Uma mulher tão linda, tão desejável... Não era peixe para seu anzol.

"É areia demais para o meu caminhãozinho...", pensou, cheio de tristeza, ao encostar o carro diante do magnífico prédio de apartamentos onde residia a moça.

Cavalheiro, ele desceu do carro para abrir a porta e, ao se despedir com dois castos e tímidos beijos no rosto, Fefê falou:

Farei contato durante a semana, Amanda. Para combinar a festa do Gallery.

Amanda queria dizer que não iria àquela festa, queria repetir os motivos que a impediam de comparecer a esse evento, mas desistiu. Se tentasse explicar mais uma vez tudo o que já tinha dito a Fefê, isso seria motivo para ele segurá-la um pouco mais, e ela já estava mais do que farta de sua presença. Assim, entrando no prédio, ela disse, apenas:

Está bem... A gente se fala, então... Boa noite, Fefê!

Boa noite, Amanda... Até amanhã!

Ele esperou até que ela entrasse no elevador e só então voltou para seu automóvel.

Olhou o relógio digital do painel e, com certa raiva, disse:

Ainda são três da madrugada... E, para variar, estou sozinho...

Do lugar em que se encontrava, no Morumbi, seria muito fácil ele pegar a rodovia Raposo Tavares e rumar para sua casa, na Granja Viana. Não era isso, porém, que Fefê tinha em mente. Ele estava agitado, excita­do, sabia que não conseguiria dormir. Pensou em voltar para a festa, mas chegar lá sozinho, depois de ter saído com Amanda, não seria de boa polí­tica. Certamente alguém perguntaria pela moça, e ele haveria de se sentir muito mal, explicando que ela teria voltado para casa porque precisaria estudar na manhã seguinte.

Assim, ainda com a imagem de Amanda gravada em sua retina, ele rumou para o bairro do Itaim, onde certamente encontraria um desses bares do tipo "fim-de-noite" aberto, para tomar mais uma dose de vodca e, quem sabe, encontrar alguém.

Estacionou diante do Rabo de Peixe, famoso ponto de encontro dos "desiludidos na noite". Como era de esperar, àquela hora tardia da madrugada, o bar estava praticamente deserto, com apenas três ou quatro mesas ocupadas por casais que ainda não tinham, certamente, decidido onde haveriam de terminar a noitada.

E havia aquela mulher sentada a uma mesa, sozinha, olhando com indubitável tristeza para um copo de uísque à sua frente.

Fefê ocupou uma mesa quase em frente à dela e pediu sua dose de vodca.

A mulher ergueu os olhos do copo e fitou o rapaz. Sorriu para ele. Ele, como sempre um pouco encabulado, retribuiu o sorriso. Ela não se fez de rogada. Levantou-se, pegou o copo e veio sentar ao seu lado.

Mas que noite fraca, benzinho... — disse ela. — Nenhum fre­guês até agora...

Fefê suspirou. Para ele, também, a noite não tinha valido a pena. Concordou com a mulher, resmungando:

Pois é... Tem noites em que a gente não devia sair de casa...

Olhou para ela com um pouco mais de atenção. Via-se claramente que era uma prostituta, uma dessas mulheres que as almas mais românticas chegam a chamar de "amantes profissionais". Não poderia dizer que era feia, embora mostrasse na fisionomia a vasta milhagem rodada, traduzida por al­gumas rugas, que a pesada maquiagem já não conseguia disfarçar, e pelo olhar cansado, desiludido, entristecido e, ao mesmo tempo, duro e frio.

Mas talvez ainda haja alguma esperança para nós dois... — disse ela, acariciando as costas da mão direita de Fefê.

Num primeiro instante, a reação do rapaz foi de tirar a mão, de impedir aquela manifestação de intimidade. No entanto, não o fez. Bem ao contrário, até achou excitante e agradável o contato. Percebendo que não houvera recusa, a mulher fez seus dedos subir pelo antebraço de Fefê, enquanto dizia:

A vida é uma troca, benzinho... Você salva a minha noite e eu salvo a sua... Garanto que não vai se arrepender...

E, enquanto roçava o joelho na coxa do rapaz, ela completou:

Pode estar certo que eu vou deixá-lo muito mais feliz do que se você fosse passar este resto de noite com uma dessas patricinhas com quem certamente está acostumado!

As palavras da mulher pareciam para Fefê que vinham do fundo ile um poço, de tanto que sua mente já estava embotada pelas inúmeras doses de vodca. Ele não discutiu, não argumentou, não disse nada. Pagou a consumação e foi embora, acompanhado pela mulher.

Acordou com o dia já alto, numa cama de motel, sentindo — além da língua saburrosa e uma formidável dor de cabeça — a desagradável sensação de ter alguém dormindo ao seu lado.

Teve de fazer algum esforço para se lembrar quem era aquela mu­lher que ali estava, ressonando, os cabelos desgrenhados espalhados pelo travesseiro, o hálito acre de alguém que, como ele, tinha bebido demais na véspera.

Notou que tinha dormido vestido, o que, em resumo, queria dizer que nada, absolutamente nada, acontecera entre eles dois.

"Melhor assim, apesar de tudo", pensou ele, levantando-se com cuidado para não acordá-la. "Pelo menos não vou ter de ficar preocupado com alguma doença venérea ou, pior ainda, uma possibilidade de ter contraído aids..."

Sempre sem fazer qualquer ruído, deixou sobre a mesinha de cabeceira duas notas de cem dólares e saiu. Ela que se arrumasse para ir embora.

Já a caminho de sua casa, lembrou-se de Amanda. Como era bonita aquela mulher! Como ele desejaria ter terminado a noite ao seu lado...

"Mas hei de conseguir!", pensou. "Amanda ainda há de ser minha!"

 

Haveremos de conseguir! — dizia a mensagem de e-mail recebida por Hafez Skandar. — Já estamos com nossa rede atuando em mais de sessenta países e contamos com recursos tanto financeiros quanto operacionais suficientes para alcançarmos a vitória! Nossos aliados também estão prontos e, de um momento para o outro, levaremos aos inimigos do Islã o terror e a desgraça. Portanto, fiquem alertas, mais do que nunca.

Hafez já recebera centenas de mensagem idênticas e estava ciente de que aquelas palavras eram dirigidas a todos os milhares de componen­tes da imensa rede do terrorismo islâmico. E cada um desses e-mails vinha de um remetente diferente, localizado numa cidade diferente, até mesmo de países diferentes.

Este, por exemplo, estava sendo remetido por alguém cujo nome era César Khalid, do Paraguai. Quanto ao e-mail ter sido enviado do Para­guai, era certo, pelo menos viável. Que seu remetente tivesse aquele nome, porém, Hafez sabia muito bem que a probabilidade era mínima, uma vez que os emissários de Al-Kayed sempre usavam identidades falsas.

A mensagem continuava por mais alguns parágrafos, exortando to­dos os muçulmanos a se juntar para combater os inimigos do Islã, numa verdadeira guerra santa e, ainda que Hafez já soubesse de cor todas aque­las palavras, ele as leu integralmente.

Por fim, vinha a parte da mensagem diretamente relacionada com ele:

Você receberá dentro deste mês as instruções relativas à sua festa. De imediato é necessário que você faça provisões de malfuf, homus, bourgol, kshak e kafta. Teremos muitos convidados e, assim, compre o su­ficiente para cem pessoas. Comunique aos outros que vão ajudar a orga­nizar o evento e diga que o dinheiro necessário já está sendo transferido para sua conta.

Hafez sentiu um súbito frio no estômago. Então, o grande dia se aproximava! O dia em que o Ocidente haveria de tremer diante do Islã!

Releu aquela parte da mensagem, anotou o que era preciso comprar e deletou o e-mail do computador, seguindo as ordens que, havia muito, recebera: ler a mensagem, memorizar seu conteúdo — se necessário, ano­tar com muita cautela — e deletá-la imediatamente.

— Vamos começar a agir! — disse para si mesmo, em voz baixa. — Afinal, vamos começar a fazer alguma coisa concreta!

De fato, Hafez já estava se aborrecendo com a lentidão das ações programadas contra os Estados Unidos e, especificamente, contra a ci­dade de Nova York, para onde ele tinha sido enviado havia já quase um ano. Durante esse tempo todo, ele seguira à risca todas as ordens vindas de Al-Kayed: matriculara-se num curso de química, permanecera discre­to, desempenhara o papel de bom cidadão, arrumara um emprego como auxiliar de laboratório numa fábrica de plásticos e — o que era parte im­portante da missão que lhe tinha sido atribuída — procurara, entre outros árabes, pessoas que pudessem ser úteis à grande causa.

Nesse aspecto, Hafez tivera muita sorte. Logo no segundo mês em que chegara a Nova York, conhecera Ibrahim Shehri e Mohamed Jarrahi, ambos técnicos em informática e apaixonados pela causa árabe. Conse­qüentemente, tomara conhecimento da existência de Jamile Haznawi, namorada — ou noiva — de Ibrahim. Simpatizara com o grupo, conver­saram bastante sobre religião e política e, em pouco tempo, Hafez ficara convencido de que eles poderiam ajudar a grande causa. Enviou, por e-mail, uma mensagem a seu chefe imediato sugerindo Ibrahim e Mohamed como parceiros e, após uma investigação que ele não tinha a menor idéia de como teria sido feita, recebera a aprovação. A partir daí, os três pas­saram a estar sempre juntos, logo se estabelecendo a linha hierárquica, com Hafez sendo o mais importante, imediatamente seguido por Ibrahim e Mohamed.

Ibrahim sempre estava acompanhado por Jamile e, no início, isso causava em Hafez certo constrangimento. Muçulmano radical, ele não achava que as mulheres pudessem, de alguma forma, participar das reu­niões entre homens, especialmente daquelas em que surgiam assuntos de religião ou política. As mulheres deveriam estar sempre afastadas do convívio masculino, estar cobertas com o xador. Entretanto, esse seu con­ceito teve de ser bastante alterado a partir do momento em que Jamile lhe disse que a ela também tinha sido atribuída uma missão, ou seja, a de servir aos homens que estariam lutando e dedicando a própria vida ao Islã. Justamente por essa razão — e por outras, bastante mais estratégicas, uma vez que estavam nos Estados Unidos —, ela se dispensava o uso do xador e se dava o direito de estar presente e participando de tudo quan­to Ibrahim tinha de fazer. Hafez reagira, achara ruim, dissera que assim não seria possível. Mas, ao perceber que perderia Ibrahim se decidisse ser rígido demais, acabou cedendo. E Jamile passou a fazer parte integrante e participativa do grupo. Hafez logo vira que não havia motivos de arre­pendimento. Jamile era inteligente, simpática, prestativa e, a despeito de ser muçulmana, morava em Nova York desde pequena e era formada em biotecnologia. Talvez tenha sido essa sua capacitação que fizera com que o próprio Kayed tivesse dito, numa mensagem, para Hafez aceitá-la no grupo, sem nenhuma restrição.

E foi justamente quando Hafez fora obrigado a aceitar a presença de Jamile, que esta lhe apresentara Amina.

— Você vai gostar dela — dissera a moça. — Além de muito bo­nita, ela é médica, especialista em traumatologia. Poderá ser muito útil à nossa causa.

Jamile estava coberta de razão — em parte. Amina era, de fato, muito bonita. Alta, esguia, com um corpo escultural, curvas perfeitas, um rosto de fazer sonhar até mesmo Harum Al-Rachid, gestos e fala cheios de sedução e uma inteligência muito acima da média, a moça tinha, con­tudo, um defeito: não era uma muçulmana fanática. Ou seja, ela não aceitava a maior parte dos preceitos do Islã, pelo menos nos pontos em que estes se referiam ao sexo feminino.

Assim, por exemplo, ela não achava que as mulheres tinham de estar sempre inteiramente cobertas — ao contrário, deveriam cobrir-se o mínimo possível —, não aceitava que elas não pudessem estudar ou trabalhar fora de casa — ela era médica e trabalhava num hospital como estagiária — e, principalmente, não aceitava que a mulher não tivesse direito aos prazeres físicos da vida, especial e principalmente aos prazeres sexuais.

Evidentemente, essas suas características de personalidade iam ab­solutamente contra tudo que Hafez pensava.

No entanto, Amina era tão linda...! Tão sedutora...! E Hafez era um homem tão carente, com a sexualidade tão à flor da pele...!

Logo no dia em que eles se conheceram, depois de uma tarde in­teira de conversa — durante a qual Hafez se convencera de que Amina jamais poderia fazer parte do grupo —, ela se deixara levar para o aparta­mento dele, e lá...

A moça não teve nenhuma dificuldade em convencê-lo de que a vida sem ela não teria a mínima graça e que ela, Amina, seria perfei­tamente capaz de se dedicar integralmente a um homem — não a uma causa. E ele sentia ser esse homem.

Portanto, no dia seguinte, quando Hafez enviou sua mensagem diária para o chefe, dando conta de suas atividades, não mencionou Amina. Não queria correr o risco de ver vetada a presença dela junto ao grupo.

Amina nem mesmo voltara para sua casa; apenas passava por lá para apanhar uma mala de roupas e... começara a fazer parte de sua vida, a ser um pedaço de si mesmo e, quanto aos preceitos do Islã... Ora! Ele es­tava nos Estados Unidos, muito longe de sua terra e, portanto, dos olhos fiscalizadores dos islamitas mais radicais.

De mais a mais, ele não sabia o que Al-Kayed lhe tinha programa­do. Talvez viesse a exigir que ele se transformasse num dos mártires da grande causa. Assim, ele se via no direito de aproveitar ao máximo toda e qualquer oportunidade que a vida, nesta dimensão, pudesse lhe oferecer. Também, em seu íntimo, não acreditava muito que o muçulmano mártir, aquele que morre na luta pelo Islã, vai diretamente para o céu, um céu maravilhoso com leitos feitos de ouro e com pedras preciosas, onde mui­tas jovens lhe dariam o amor carnal de todas as formas, embora permane­cessem eternamente virgens.

Mesmo não sendo tão radical assim sobre alguns preceitos do Corão, Hafez não deixava de ser um fervoroso adepto da grande causa. Para ele, era fundamental que os Estados Unidos fossem combatidos porque, em primeiro lugar, apoiam Israel. Em segundo, porque mantêm tropas no território santo da Arábia Saudita, o verdadeiro berço do islamismo. E havia, acima de tudo o mais, seu espírito aventureiro, o gosto pelo perigo e por coisas arriscadas. Ora, nada mais arriscado do que ser um terrorista árabe no seio dos Estados Unidos!

Só que, no entender de Hafez, seus chefes estavam demorando muito para tomar a decisão de uma ação qualquer. Ele já estava começan­do a ficar entediado com aquela espera, com aquelas mensagens de exor­tação e o eterno esperar. Por isso, quando recebeu o e-mail ordenando que "preparasse a festa", se sentiu aliviado. Finalmente, iria acontecer alguma coisa! Finalmente, entrariam em ação.

Deitada no sofá ao lado da mesa onde Hafez trabalhava com o lap-top, Amina percebeu sua excitação. Não era bem exatamente a excitação que ela gostaria que ele manifestasse, uma vez que, desde o instante em que chegara do hospital, já estava nua em pêlo, exibindo suas formas per­feitas e sedutoras. Passou os braços em torno do pescoço do companheiro e perguntou:

Alguma boa notícia?

Sim... A festa vai começar! E eles querem que eu organize algu­ma coisa... Até me mandaram comprar alguns materiais e já estão depo­sitando o dinheiro para isso.

A moça beijou-o, passou a ponta da língua no lóbulo de sua orelha esquerda e sorriu ao perceber que ele se arrepiava inteiro. Sim., era esse tipo de reação que ela queria, e não aquele entusiasmo por uma causa que — ela bem o sentia — não era a dela. Na verdade, ela estava ali por causa de Hafez, porque se apaixonara por ele, por sua maneira de amá-la e de lhe dar prazer. Por isso, quando o rapaz disse que a festa iria começar, ela sentiu uma pontada em seu coração. Evidentemente, disfarçou o melhor que pode, mas não conseguiu deixar de se preocupar. Entretanto, logo que Hafez, já não mais resistindo às suas carícias, enlaçou-a em seus braços, mais uma vez ávido pelos prazeres que Amina sabia lhe proporcionar, ela pôs de lado essas preocupações, pensando: "Ora... Será, novamente, algo que não levará a nada... Eles não são loucos de tentar alguma coisa aqui em Nova York!".

 

No almoço, o senhor Fernando, pai de Fefê, estava de cara amarrada. Fazia apenas meia hora que o filho chegara — ele escutara o cano dele entrar - e estava à sua espera à beira da piscina. Entretanto, Fefê não apareceu e só desceu de seu quarto quando Marialva foi chamá-lo para almoçar.

Por que não veio dormir em casa? — perguntou o pai.

Fiquei naquela festa até tarde e não quis pegar a estrada de ma­drugada — respondeu o rapaz. — Dormi na casa de um amigo.

Fernando não teve o que dizer. Ele mesmo já havia recomendado muitas e muitas vezes, tanto para Fefê quanto para seus outros dois filhos, Marina e Gilberto, que evitassem ao máximo voltar para casa muito tar­de e, quando isso se tornasse imprescindível, que procurassem dormir na cidade, nem que para isso tivessem de ir a um hotel.

No entanto, havia outros motivos para que ele estivesse de mau humor. E, com voz rascante, falou:

Ontem eu recebi os extratos dos seus cartões de crédito. E acho que as coisas estão indo muito mal...

Fefê olhou para o pai e resmungou:

Você não tem o direito de abrir a minha correspondência...

Foi o suficiente para Fernando explodir:

Como?! Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas?! Então você acha que eu não tenho o direito de saber como e onde você anda gastando dinheiro?!

O dinheiro é meu! — retrucou Fefê, no mesmo tom. — Ganho com o meu trabalho! E eu tenho o direito de gastá-lo como bem entender!

Fernando respirou fundo. Parecia estar se controlando ao extremo e, depois de alguns segundos, disse:

Não é bem assim, Fefê. Você sabe muito bem que seu trabalho, na empresa, não mereceria mais do que dois salários-mínimos. Aliás, para levar documentos e apanhar recibos nas firmas dos clientes, eu poderia contratar um office-boy... Você recebe uma participação, um pró-labore, até elevada demais para o que você faz por nós. Portanto, filosoficamente, você recebe uma mesada! Nada mais do que uma mesada! E, como sou eu, no frigir dos ovos, quem lhe dá essa mesada, tenho todo o direito de saber como e onde você esbanja o que ganha!

Voltando a encarar o filho com expressão de raiva, acrescentou:

Não tem nenhum cabimento você gastar mais de mil dólares numa só noitada! Numa noite de boate com os amigos! E, na mesma semana, gastar outro tanto comprando roupas na butique mais cara do Brasil! E o mesmo aconteceu na semana anterior! E na outra!

Muito vermelho, Fefê ia abrindo a boca para se defender, mas o pai, com um gesto enérgico, acrescentou:

Você não tem argumento nenhum, Fefê! Pelo menos, tenho certeza de que nada do que você possa me dizer será bastante para me convencer! Você está errado e eu tenho a obrigação de colocá-lo na linha!

E, encerrando, Fernando alertou:

Este mês, acabou! E provavelmente o mês que vem também! Você já sacou da empresa muito mais do que o seu pró-labore! Portanto, nem pense em mais dinheiro! Secou a fonte, entendeu?

Furioso, o rapaz levantou-se para abandonar a mesa de almoço, mas o pai, segurando-o pelo braço, vociferou:

Fique aí! Nós estamos almoçando! E você vai ficar na mesa! E quieto!

 

Ainda com as palavras do pai ressoando em seus ouvidos, Fefê espi­chou-se sobre sua cama. Estava revoltado; não admitia ser tratado como criança; não suportava ouvir reprimendas de ninguém, nem mesmo de seu pai. E, para piorar as coisas, para derrubar ainda mais seu estado de es­pírito, tivera de ficar quieto — exatamente como ordenara Fernando — e ver que seus dois irmãos mal disfarçavam a satisfação de terem assistido àquela deplorável cena durante o almoço.

Fefê jamais conseguira esconder o ciúme que sentia dos dois ir­mãos. Para ele, o pai os protegia por serem mais velhos. Confiava neles e não acreditava no filho caçula.

Sempre serei a criancinha da casa! — resmungou para si mes­mo. — Posso fazer o que for, sempre serei considerado um moleque!

O que ele não conseguia enxergar, porém, era que tanto Marina quanto Gilberto trabalhavam, de fato, com o pai e não desempenhavam, como ele, apenas o papel de um office-boy de luxo. Gilberto cuidava de toda a área contábil da empresa, e Marina era a responsável pelo setor de relações públicas.

Certa vez, numa outra discussão pelos mesmos motivos, essa dife­rença de atividades e de importância de trabalho lhe fora jogada na cara. E Fefê, para se defender, alegara que tinha sido ele o responsável pela informatização da firma. Gilberto dera uma gargalhada, ressaltando:

Ora, moleque! Papai deixou você brincar com os computado­res durante uma semana. Depois, você disse que tudo estava pronto e funcionando. Daí, sumiu para Campos do Jordão. Lembra-se? Ninguém conseguiu usar o seu sistema, e tivemos de chamar um técnico para pôr tudo em ordem! Será possível que você se esqueceu disso?

Vocês é que não souberam usar as máquinas! — replicara o ra­paz. — São todos uns burros, incompetentes, incapazes de lidar com a modernidade! E eu não tenho culpa se não foram capazes nem mesmo de me achar! Não sabem nem usar um telefone celular! Não deixaram reca­do no correio de voz, não fizeram nada! O que estavam tentando era me prejudicar, fazendo aquela imagem bonita de mim para nosso pai! É fácil esconder a própria incompetência jogando a culpa em cima dos outros! E é isso o que vocês fazem o tempo todo comigo! Sou eu, sempre, o culpado de tudo, sou eu que faço as coisas erradas, não é mesmo? E vocês ficam aí, bonitinhos, recebendo os elogios, enquanto eu sou crucificado!

No entanto, ele sabia muito bem que a verdade não era essa, mas sim o que Gilberto lhe dissera. Fefê não tinha conseguido instalar o sis­tema corretamente, e deixara apenas uma das máquinas funcionando — ainda assim, parcialmente — então tratara de se fazer ao largo, indo para Campos do Jordão. Sabia que seu pai, não podendo ficar com a parte de informática do escritório parada, haveria de chamar um técnico e, depois...

Bem... Depois, Fefê simplesmente diria que eles foram incompe­tentes, que eles não conseguiram usar o sistema que ele instalara e mais uma porção de outras coisas. Como sempre, ele saberia enganar e se sair bem da enrascada.

Essa discussão, entre muitas outras, passou pela mente de Fefê en­quanto ele estava ali, deitado, as mãos cruzadas atrás da cabeça, remoen­do a raiva e o despeito. Sim... Ele era sempre a vítima, era sempre quem recebia os golpes. Tudo caía em cima de suas costas!

— Não consigo entender por que meu pai sempre defende esses dois e sempre me ataca! — rosnou. — Aposto que, se ele tiver de escolher um entre nós três, o último da lista serei eu!

Não lhe passou pela cabeça, naquele instante, que Marina e Gil­berto estavam sempre em casa, participavam intensa e ativamente dos problemas da empresa, mesmo porque de fato trabalhavam lá e levavam a vida de uma maneira muito mais próxima aos ideais e princípios dos pais. Não que eles não fizessem o que a maioria dos jovens faz, ou seja, ter seus momentos de diversão, freqüentar lugares, ir a festas, namorar... Ali­ás, Marina estava praticamente noiva de um americano que conhecera numa festa... Só que, para esses dois, assim como para Fernando e Ma­rialva, a diversão vinha depois da obrigação. Se eles tinham algo a fazer, primeiro cumpriam o dever e, depois, tratavam de se divertir.

Já Fefê era o oposto. Parecia-lhe que o mundo iria acabar no ins­tante seguinte e que, se ele não fizesse imediatamente o que queria, ja­mais teria qualquer oportunidade semelhante pela frente. A vida de Fefê era o imediatismo absoluto. O ter acima, muito acima, do conquistar. Ele precisava ter. Custasse o que custasse. Para o rapaz, vida era equivalente a diversão. E diversão não era mais do que esbanjar.

Fefê sentia uma necessidade doentia de estar rodeado por pessoas, de estar sempre polarizando as atenções. Precisava se sentir querido; não conseguiria admitir a possibilidade de, até mesmo, não ser uma presença desejada por aqueles que constituíam sua roda de amigos.

E era justamente essa necessidade que o fazia gastar tanto dinheiro. Aliás, ele se habituara a gastar e não via como continuar a ser o mesmo se, de repente, lhe fosse tirada essa possibilidade.

Ter dinheiro disponível... Esse era um diferencial muito importan­te para Fefê. Poder arcar com despesas inusitadas, gastar com extravagân­cias, isso fazia do rapaz aquele para quem não existia a palavra "impossí­vel" ou a locução "não posso".

Se ele tinha vontade de ir a algum lugar caro e queria a companhia dos amigos, simplesmente pagava a conta. Não se incomodava e não se restringia absolutamente com nada.

Vamos para a inauguração da boate do Juca, em Catanduva? — convidara, certa vez.

Mas é amanhã! — alguém do grupo argumentara. — E Catan­duva é longe!

E daí? Vamos de avião...

Ficou louco? Já viu quanto custa uma brincadeira dessas?

E você está incomodado com isso? — perguntara Fefê. — Se estou falando que vamos de avião, é porque nós vamos de avião. Eu pago.

E, assim, o grupo fora para Catanduva: Fefê, três amigos e as namoradas desses amigos. Ele, sem nenhuma moça como companhia.

Aliás, isso já era uma verdadeira rotina... Uma rotina que ele fazia questão de esconder de si mesmo.

Naquela tarde de revolta, porém, a lembrança da viagem a Catanduva batera-lhe na alma como uma chicotada. Ele acabara por se sentir terrivel­mente mal vendo os amigos se divertindo, trocando carícias com as namoradas, e ele — como Sempre — com um copo de vodca na mão e... sozinho.

Percebera, ainda que apenas subliminarmente, que os amigos ape­nas tinham ido para Catanduva. E, na verdade, não tinham ido para Ca­tanduva com ele. E tinha sido ele, Fefê, com sua carteira e seus cartões de crédito, que lhes havia proporcionado aquele fim de semana.

Se eu não os tivesse levado, jamais teriam podido ir... — mur­murou. — Foi graças a mim que eles passaram dois dias tão bons!

E era justamente essa sensação que fazia apagar todas as más re­cordações de Fefê. A sensação de ter sido mais do que os amigos, de ter podido mais. Era isso que lhe dava estímulo e que fazia o rapaz esquecer que era mais baixo, mais magro e menos atraente que os amigos, que não conseguia se aproximar normalmente de uma garota, que não conseguia fazer outra coisa, em festas e reuniões sociais, do que ficar isolado, toman­do copos e mais copos de vodca, até sentir coragem suficiente para come­çar a conversar — quase sempre com as mesmas pessoas, com o mesmo grupo — sobre o único assunto que apreciava: ele mesmo, as coisas que tinha, que fazia, que podia fazer. E que os outros não tinham, não faziam e que não podiam fazer.

E, mais uma vez, o pensamento imperativo do que ele teria de fazer durante a próxima semana fez com que sua mente bloqueasse qualquer possibilidade de maior lucidez quanto à sua vida e à maneira como a estava levando. Para ele, não havia nenhuma irresponsabili­dade em se comportar assim; não havia nada de ruim em querer viver da maneira como gostava, incluindo-se aí a presença dos amigos e sua hegemonia financeira.

Sim, ele tinha muito em que pensar, já a partir de segunda-feira! Havia, por exemplo, a festa do Gallery... E Amanda! Ele tinha de dar um jeito de levá-la!

Com um suspiro, olhou para o relógio, constatou que já eram quase cinco horas da tarde e, de um salto, levantou-se, apanhando o celular. Precisava combinar alguma coisa para a noite de sábado, era inadmissível ficar em casa!

Gustavo? — perguntou quando atenderam do outro lado da linha. — Vamos fazer alguma coisa esta noite? Como? Está duro? E isso tem alguma importância? Está certo... Nós nos encontramos na casa da Eliana... Tudo bem. Às nove da noite, assim dá tempo para um papo.

Passava um pouco de nove horas da noite quando Hafez con­seguiu se desvencilhar da insaciável Amina e, erguendo-se da cama, murmurou:

Preciso avisar Ibrahim e Mohamed...

Deixe para amanhã — disse a moça, estendendo os braços para ele e tentando agarrá-lo novamente. — Temos coisas melhores para fazer...

O árabe sorriu, acariciou de leve os seios de Amina e retrucou:

Não... Por hoje chega... Se deixar por sua conta, ficamos na cama a vida inteira!

Não me diga que você não gosta...

Não falei isso. Mas acontece que tenho coisas importantes para fazer. Preciso entrar em contato com Ibrahim e Mohamed ainda hoje.

Afastando-se dela, Hafez concluiu:

Se você quiser ir comigo, trate de se vestir.

Amina saiu da cama e, enquanto ligava as torneiras do chuveiro, ouviu seu companheiro marcar com Ibrahim um encontro no restaurante de Abdo Farid.

"Bem...", pensou ela, enquanto se ensaboava, "pelo menos vou co­mer alguma coisa boa... Terrível é ter de agüentar a conversa. Não suporto mais ouvir falar de Corão, de grande causa, atos terroristas e coisas assim! Principalmente por que tudo isso, para mim, não passa de conversa-fiada, de coisas de estudantes..."

Sentindo a água escorrer agradavelmente por seu corpo, lembrou do dia em que decidira ser médica. Sua família, apesar de não ser islâmica xiita, não achara nenhuma graça naquela sua decisão e, depois de uma séria discussão com o pai, Amina resolvera sair de sua casa. E assim o fizera. Deixara a casa paterna no Oklahoma e fora morar sozinha num apartamento em Nova York. A princípio, tudo lhe parecia impossível, até mesmo conseguir um emprego numa lanchonete, e ela muito depressa descobrira que, se queria trabalhar, não poderia mostrar ou mesmo dizer que era uma muçulmana. Assim, abandonara os trajes típicos, o modo de se comportar e, também muito depressa, percebera que, na realidade, jamais tinha sido feita para seguir a religião dos pais.

No entanto, sentia saudades da família e guardava dentro do cora­ção o desejo de, um dia, retornar. E ela, ainda que apenas subconscientemente, sabia que, se quisesse voltar a ver os pais, teria de estar unida a um muçulmano.

E essa, talvez, fosse uma das razões de se ter deixado apaixonar por Hafez Skandar. Obviamente, havia também o outro lado, o lado do prazer carnal que ele sabia tão bem lhe proporcionar...

Entretanto, também havia as manifestações de fanatismo islâmi­co que o rapaz tinha, principalmente quando estava junto dos amigos Ibrahim e Mohamed. Aí ele chegava a ficar insuportável, pois nenhuma conversa começava antes de falarem sobre religião por pelo menos quinze minutos. Era um quarto de hora de sacrifício para ela — assim como para Jamile, ela bem o sabia —, mas Amina considerava esse tempo perdido como o preço que tinha de pagar pelo privilégio de, um pouco mais tarde, ter Hafez entre seus braços.

Assim, ela suportava com a maior paciência possível ouvi-lo falar sobre a necessidade de defender o Corão contra o imperialismo norte-americano, sobre pegar em armas para difundir sua fé, de levar alívio para a miséria da maioria dos muçulmanos, nem que para isso tivessem de tirar à força esses recursos dos Estados Unidos e de outros países ocidentais ricos.

Apenas uma vez ela tentara, durante um jantar no restaurante de Abdo Farid, argumentar contra a teoria que Hafez expunha e di­zer que os povos muçulmanos estavam sendo traídos pelos próprios governantes que tinham abandonado os preceitos islâmicos por pura ambição pessoal. O resultado era a fome grassando nesses países, o subdesenvolvimento, o desamparo tecnológico e tudo o mais que a economia globalizada pede nos dias atuais. Amina tentara dizer que países islâmicos onde a religião não era levada ao fanatismo, estavam se desenvolvendo muito bem, controlando uma fatia importante da economia mundial — como é o caso dos países árabes produtores de petróleo — e que aqueles que estão realmente na miséria são os gover­nados por fanáticos, como é o caso do Afeganistão, dominado política e militarmente pelo Talibã.

Ela percebera a expressão de ódio e de desprezo no rosto de Hafez e ouvira um "cale-se!" tão intimidativo que nunca mais abrira a boca para contestar o que quer que ele, Ibrahim ou Mohamed dissessem.

"Será mais uma noite que terei de ouvir e calar...", pensou ela, en­quanto se enxugava. "Mas, um dia, ele cairá em si. Descobrirá que esteve enganado e, então, Hafez será só meu. Não terei mais de dividi-lo com a religião e a política!"

Vestiu-se — com roupas ocidentais, uma vez que se recusava a usar o xador — e, indo para perto do companheiro, disse:

Estou pronta, meu amor...

Hafez olhou para Amina e sorriu. Ela estava muito bonita, usando aquele vestido escuro que lhe moldava tão bem as formas. E não pôde deixar de pensar que ele a preferia assim a estar envolta num xador que só servia para escondê-la de todos, até dele mesmo.

Procurou afastar de si esses pensamentos pecaminosos e, apanhan­do as chaves do automóvel, murmurou:

Então vamos, Amina. Além de ter de falar com Ibrahim e Mo­hamed, estou morrendo de fome.

 

Ao contrário do que Fefê imaginava, seu pai estava de ótimo humor naquela segunda-feira. Tanto que nem mesmo reclamou quando o filho chegou ao escritório já quase uma hora da tarde.

O que houve com ele? — perguntou o rapaz para a secretária, Clara, uma bela e elegante mulher, cerca de dez anos mais jovem que Fer­nando e que o acompanhava desde que ele abrira seu primeiro escritório, sendo, por isso mesmo, quase como se fosse da família. — Será que ele viu algum passarinho verde?

Clara deu uma risada e respondeu:

Seu pai recebeu um telefonema de Nova York agora há pouco. O negócio do escritório de lá está feito. Ele e sua irmã seguem amanhã para os Estados Unidos.

Em todos os sentidos, era uma boa notícia, inclusive e principal­mente para Fefê.

O escritório em Nova York, mais precisamente na torre sul do World Trade Center, em Manhattan, havia vários meses vinha polarizan­do as intenções e os investimentos de Fernando Henriques. Ciente da ne­cessidade de expandir seu campo de ação e aproveitando que o noivo de sua filha, Marina, era um americano cujas atividades estavam justamente focadas em comércio exterior, Fernando decidira montar a sucursal nova-iorquina e deixá-la sob os cuidados da filha e do genro.

Será ótimo — dissera ele para a esposa. — Marina vai se casar dentro de dois ou três meses e, com certeza, ficará muito feliz com a idéia.

Marialva concordara. Mesmo porque sabia que Tony, seu futuro genro, não tinha a menor intenção de se mudar para o Brasil e que Mari­na estava muito entusiasmada com a perspectiva de viver em Nova York. Fazer com que o jovem casal estivesse profissionalmente amarrado aos negócios da família era uma maneira simples e eficiente de mantê-lo sob suas asas. Mesmo com dez mil quilômetros os separando.

Entretanto, as negociações tinham sido um pouco mais compli­cadas do que Fernando imaginara. Adquirir um espaço no World Trade Center — e ele queria que fosse lá, nenhum outro local serviria — foi uma tarefa difícil que implicou inúmeras viagens de Marina aos Estados Unidos, duas das quais acompanhada por ele mesmo, para poder negociar o melhor preço e o melhor lugar. Depois disso, o local já devidamente em sua posse e domínio, era preciso cuidar da decoração e, o mais compli­cado de tudo, da regularização da empresa nos Estados Unidos. Durante lodo esse tempo, Tony desempenhou muito bem o papel de futuro e in­teressado genro, conseguindo evitar burocracias, apresentando pessoas, arrumando papéis e até mesmo levando Marina para comprar móveis e equipamentos em lugares bons e econômicos. Em resumo, o americano mostrou-se absolutamente digno do carinho e da consideração que Fer­nando e Marialva tinham por ele.

Teve sorte a Marina — comentara, certa vez o pai. — Tony é um rapaz excelente! Mostra possuir um alto nível de responsabilidade e, pelo menos até agora, só posso elogiá-lo.

Para Fefê, no entanto, Tony não tinha essa imagem. Em sua opinião, o cunhado não era senão mais um no âmbito familiar e na empresa. Mais um que ocuparia seu lugar. Bastava ver como seus pais o tratavam quando ele vinha ao Brasil. Só faltava o tapete vermelho para recebê-lo! E seu pai, todo cheio de atenções para com o americano, não tinha escrúpulos em discutir negócios com ele, nem mesmo se vexava em chamar a atenção dele — Fefê, seu filho! —, quando, no meio de uma conversa, ele arriscava um palpite:

Não fale isso, Fefê! Você está mostrando que não entende nada de negócios!

E, para azar do rapaz, o americano falava português muito bem, pois linha crescido no Rio de Janeiro...

Assim, a notícia que Clara acabava de lhe transmitir era excelente. Com o escritório de Nova York funcionando, a irmã e o cunhado ficando por lá, certamente ajudariam muito no progresso da empresa e, o que era melhor, não mais representariam uma ameaça ã sua posição junto ao pai. Além disso, sob uma perspectiva mais imediatista — e era justamente essa que deixava Fefê mais entusiasmado —, seu pai teria de viajar para o exterior no dia seguinte. Isso significava, nada mais e nada menos, que ele não teria de enfrentar a carranca de Fernando durante alguns dias. E, é claro, não estaria sob seu rígido controle financeiro.

Mas... havia o irmão, Gilberto. E, com certeza, seria ele que ficaria à testa da empresa durante a ausência de Fernando.

Fefê estava pensando em qual artimanha utilizar para poder en­ganar o irmão quanto às suas contas, quando o pai abriu a porta de seu escritório e disse:

Clara, providencie uma passagem também para o Gilberto. Vou precisar que ele assine alguns documentos lá em Nova York.

E, voltando-se para o filho caçula, acrescentou:

Vamos ficar fora só até sábado. Até lá, a Clara vai cuidar de tudo e vou deixar para você uma lista com as coisas que precisará fazer.

Fefê poderia, nesse instante, ter se insurgido contra o pai, recla­mando do fato de ele deixar o escritório nas mãos de uma secretária, preterindo-o a um segundo plano. Entretanto, a possibilidade de ficar sozinho durante uma semana — justamente aquela semana, quando ele tinha tanta coisa para fazer — fez com que ele ficasse quieto. Afinal de contas, seria muito mais fácil lidar com Clara do que com Gilberto, prin­cipalmente porque ela o vira crescer e, desde sempre, tivera um carinho maior por ele.

 

Fefê fez questão de levar o pai e os irmãos ao aeroporto e, assim que o avião em que eles estavam decolou, respirou aliviado. Teria quase uma semana de férias! Estaria sozinho, teria apenas uma pequena lista de obrigações que o pai lhe entregara na última hora e que ele ainda não se dera o trabalho de ler e, para completar sua alegria, só precisaria controlar a mãe e Clara. Coisa fácil de fazer.

Em vez de voltar diretamente para o escritório, como seria sua obri­gação, ele se dirigiu para a butique Daslu. Ainda era cedo, com certeza a loja estaria vazia e ele poderia fazer a compra que quisesse sem ter de se preocupar com possíveis comentários posteriores.

Tinha razão. A butique estava deserta; apenas duas vendedoras ali se encontravam, uma delas já era uma velha conhecida.

Do que você precisa hoje, Fefê? — perguntou a moça, anteven­do a comissão que ganharia, uma vez que ele era o típico freguês mão-aberta. — Vai levar um blazer para combinar com a calça e a camisa que eu lhe vendi na semana passada?

Não — respondeu ele. — Hoje eu preciso comprar uma roupa feminina.

Para sua mãe? — quis saber a vendedora. — Temos algumas coisas lindas para senhoras...

É para uma amiga — disse Fefê, imediatamente sentindo o sangue lhe subir às faces. — Quero comprar um vestido branco. Bem bonito.

A moça sorriu e, fazendo-o acompanhá-la a outra seção da loja, falou:

Tenho uns modelos exclusivos... Simplesmente lindos! E, como disse, únicos! Não tem perigo de a sua namorada, de repente, encontrar outra usando a mesma coisa.

Fefê, por muito pouco, não deixou escapar que o vestido não era para namorada nenhuma. Que namorada, se ele jamais tivera uma?! No entanto, como sempre acontecia quando o assunto era esse, ele se calou.

Veja este, por exemplo — disse a vendedora, mostrando um modelo de tafetá. — O tecido é importado e a assinatura é de Gurani...

Apanhando um par de sapatos, acrescentou:

Estes sapatos foram feitos para acompanhar o vestido. E esta bolsa também.

Fefê, fingindo-se de entendido, perguntou:

Mas esse vestido não é muito... fresquinho? Am... Ela pode sentir frio, assim, com os ombros de fora...

A vendedora, esperta, mostrou-lhe um xale feito à mão e disse:

Pois é para isso que serve este xale. Na hora de sair, sua namora­da joga-o sobre os ombros e, você pode imaginar, o efeito é maravilhoso!

O rapaz mandou embrulhar tudo para presente; não discutiu o va­lor da compra — algo que passava longe dos dois mil dólares — e deu o endereço de Amanda, dizendo:

Entregue para mim, por favor. E mande avisar que, se precisar trocar ou ajustar...

Não se preocupe com isso, Fefê — interrompeu a moça. — É claro que sua namorada pode ficar à vontade quanto a algum problema desse gênero.

E, com um sorriso, juntou:

Mas... eu duvido que ela queira trocar... Com o bom gosto que você tem...!

Da lista de obrigações que Fernando deixara para o filho, este con­seguiu, ainda naquele mesmo dia, resolver boa parte. Dois ou três docu­mentos para serem assinados, alguns papéis para desembaraçar cargas na alfândega, alguns poucos pagamentos. Fefê, às cinco horas da tarde, deci­diu encerrar seu dia. Estava cansado e tinha razões de sobra para isso. Suas tarefas fizeram-no ficar praticamente o tempo todo no trânsito e, por mais que seu carro tivesse ar-condicionado, um bom som e câmbio automático, poucas coisas são mais cansativas do que dirigir no trânsito caótico, sem­pre congestionado, de São Paulo. Pelo celular, Fefê ligou para Gustavo, convidando-o para um drinque no Pandoro. Gustavo recusou, alegando que estava do outro lado da cidade e que, depois do dia que tivera, não via a hora de chegar em casa e ligar para a namorada. Os outros três para quem o rapaz ligou deram desculpas semelhantes e, desistindo, Fefê resol­veu tomar o drinque sozinho.

— Azar deles! — exclamou, com uma ponta de decepção — Vou sozinho e está acabado! E, de qualquer maneira, com o trânsito que está, vou demorar mais de uma hora para chegar em casa.

Isso era uma verdade. Nas horas de rush, aqueles que moram em bairros mais afastados do centro — ou mesmo em cidades vizinhas, como era o caso de Fefê — preferem fazer um pouco de hora em seus escritórios ou em algum happy hour a enfrentar o martírio do final do expediente. Com isso, são inúmeros os bares e restaurantes finos que dedicam duas a três horas do fim do dia, normalmente entre cinco da tarde e oito horas da noite, para essas famosas e agradáveis horas de fim de dia, quando exe­cutivos se encontram num ambiente mais informal, para uma dose de uís­que ou uma cerveja, acompanhada de tira-gostos que, na verdade, fazem o diferencial entre um estabelecimento e outro. Assim, por exemplo, no Pandoro, na época um tradicional restaurante dos Jardins, os pasteizinhos sortidos eram o carro-chefe.

"Eu não deveria estar comendo isso", — pensou Fefê, enquanto metia na boca um pastel de queijo. "Com a gastrite que eu tenho..."

Entretanto, na verdade, ele jamais estivera preocupado em con­trolar essa tal gastrite. Para ele, era mais um motivo de chamar a aten­ção sobre si quando estava na roda de amigos, pois achava interessante queixar-se de dor no estômago e ouvir o comentário dos outros:

Também, com a quantidade de vodca que você toma... Não há ligado ou estômago que agüente!

E ele sorria, mudava o assunto e deixava a impressão de que era o exemplo do desprendimento, o tipo de homem que nada podia impedir de fazer o que bem entendesse. Nem mesmo a saúde.

Tomou um gole de vodca e, nesse instante, seu celular tocou.

Fefê adorava quando seu celular tocava em algum lugar público, r deixava sempre o sinal de chamada bem alto, para todos à sua volta ouvirem. Daí, ao atender, ele procurava falar baixinho ou se afastava, dando sempre a impressão de que o assunto era extremamente importante e confidencial.

Atendeu e ficou um pouco surpreso ao reconhecer a voz de Clara. Aquela hora, ela já deveria até ter ido embora do escritório e, no entanto, ali estava a boa e fiel secretária chamando por ele.

Acabo de receber uma ligação do gerente do banco — disse ela, com um tom de preocupação na voz. — Ele me pediu para avisá-lo que seu cheque especial está estourado e que você precisa fazer um depó­sito amanhã.

O rapaz fez uma careta de desagrado. Quantas vezes ele já tinha dito àquele gerente que não ligasse para o escritório, que não dissesse para ninguém a quantas andava sua conta!

Como se já adivinhasse o que passava pela cabeça de Fefê, Clara continuou:

Ele disse que tentou falar com você pelo celular hoje de manhã cedo várias vezes. O telefone estava desligado, e você não respondeu ao recado que ele deixou no correio de voz. Amanhã é o último dia. Se você não fizer o depósito, ele será obrigado a devolver um cheque que você deu...

Ela fez uma pausa e completou:

Na butique Daslu, na semana passada.

Ele deve estar de brincadeira comigo! — exclamou o rapaz. — Mi­nha conta está em ordem, não pode ter estourado!

Mas estourou, Fefê. Não esqueça que seu pai não mandou trans­ferir dinheiro para a sua conta ontem. Ele alegou que você já tinha sacado muito mais do que tinha direito...

Fefê mordeu o lábio inferior, com raiva, e, depois de alguns instan­tes, disse:

Está certo... Amanhã falo com ele.

Desligou o telefone, furioso, engoliu de um só trago a vodca que estava em seu copo e pediu para o garçom trazer mais uma dose.

Esse gerentezinho de merda! — resmungou. — O que ele está achando que é para me devolver um cheque?!

Entretanto, aquilo era um grande problema, e ele sabia disso. Não teria como arrumar o dinheiro para o dia seguinte e não poderia, jamais, permitir que um cheque seu fosse devolvido por falta de fundos. Ainda mais um cheque que ele dera na Daslu!

A Daslu! De repente, ele lembrou do cheque que tinha assinado naquela manhã. Outro cheque de valor alto! Não podia deixar que o apresentassem!

Ligou para a butique, mandou chamar a vendedora que o atendera de manhã e perguntou:

Aquela compra que eu fiz hoje cedo... Vocês já a entregaram?

Já deve ter sido entregue, Fefê! — respondeu a moça. — Man­damos despachá-la logo depois do almoço. Mas só posso confirmar ama­nhã à tarde, quando o entregador prestar contas. Por quê?

Por nada, só queria saber...

E, depois de uma breve pausa, criou coragem e indagou:

E o cheque que eu dei, era do Bradesco ou do Banco do Brasil?

Do Banco do Brasil, lembro bem — respondeu a vendedora.

Ai, meu Deus! — fez ele. — Vocês já depositaram?

Não. Isso vai ser feito amanhã.

Fefê ficou alguns momentos em silêncio e, com um suspiro, disse:

Bem... Não tem importância... Vou dar um jeito.

Com um tom preocupado na voz, a moça perguntou:

Aconteceu alguma coisa, Fefê? Você quer que eu segure esse cheque?

Era exatamente o que ele estava querendo ouvir. Sabia muitíssimo bem que ele tinha dado um cheque do Banco do Brasil — sua conta do Bradesco já havia mais de dois meses que estava no limite do cheque es­pecial —, mas ele tinha de manter as aparências.

É que eu me enganei de talão — respondeu o rapaz. — Deveria ter dado um cheque do Bradesco... Agora, vou ter de fazer uma transfe­rência e, com esse valor, a esta hora...

Você pode dar uma passadinha aqui e trocar o cheque, não tem problema nenhum. Ficamos abertos até dez da noite, você sabe disso.

Hoje será impossível. Tenho uma reunião importante agora à noite e, como meu pai está nos Estados Unidos, tenho de representá-lo.

E, antes que a moça dissesse qualquer coisa, acrescentou:

E amanhã estarei ocupado o dia inteiro... Se você puder segurar até quinta-feira, me faria um grande favor.

A vendedora pediu-lhe para aguardar um instante e foi consultar Mia gerente. Esta, quando soube de quem se tratava, imediatamente man­dou a jovem dizer que não haveria problema nenhum. Afinal de contas, Fefê já tinha feito mais de uma dezena de compras, nunca uma compra pequena, na butique e jamais acontecera qualquer tipo de problema.

Está certo, Fefê — confirmou a vendedora, retornando ao tele­fone. — Só vamos depositar na sexta-feira. Fica bem assim para você?

Fica ótimo. Na verdade, o depósito poderia ser feito na quinta... Mas sabe como são os bancos... De repente acontece um atraso. Sexta é bem melhor. Obrigado.

Desligou e, sacudindo a cabeça para afastar a imaginária mecha de cabelos de seus olhos, pensou: "Amanhã vou falar com esse gerentinho... E, se ele quiser criar caso, vou lhe dizer que, sendo assim, encerro a conta da empresa em sua agência!".

O banco mal tinha aberto as portas e Fefê já se encontrava diante da mesa do gerente, nervoso, torcendo as mãos.

Mas você não pode fazer isso comigo, Sansão! — disse ele, com expressão angustiada. — Tenho sido um bom cliente, nunca lhe dei trabalho...!

Sansão, um homem cuja reputação era de extrema severidade, re­trucou, com frieza:

Não é bem assim. Seu pai e sua empresa sempre foram ex­celentes clientes. Você é uma conseqüência. A partir do instante em que seu pai deu ordem de não transferir mais qualquer numerário para sua conta...

Mas uma coisa nada tem a ver com a outra! — protestou Fefê. — Eu sou uma conta, meu pai é outra, e a empresa é outra! Para o banco somos três contas diferentes, e você sabe disso!

Tem razão — falou o gerente. — Teoricamente, isso é verdade. Mas, pode acreditar, na prática a teoria muda.

Fefê teve vontade de dizer tudo aquilo que pensara na véspera. Ameaçar com o encerramento da conta da empresa, fazer um escân­dalo... Mas nada disso saiu de sua boca. Apenas conseguiu emitir um murmúrio súplice:

Por favor... Segure esse cheque que está pendurado por mais dois dias... Prometo que vou arranjar o dinheiro.

Sansão olhou para ele e, depois de refletir por alguns segundos, nquiesceu:

Está certo. Vou dar um jeito até quinta-feira ao meio-dia. Nem um minuto a mais.

O rapaz deixou o banco com os nervos à flor da pele e avistando apenas um horizonte negro à sua frente. Como poderia solucionar aquele problema? De onde arrancaria tanto dinheiro?

Entrando no carro, resolveu continuar as tarefas que o pai lhe ti­nha passado. Havia mais duas entregas de documentos e uma cobrança. Imito com essa cobrança, um bilhete de Fernando avisava que aquela importância deveria ser passada integralmente para Clara.

Fefê conhecia a empresa. Era uma metalúrgica idônea, na Lapa, mas que, vez por outra, era obrigada a fazer algumas importações... não muito regulares. E seu pai, amigo há muitos anos do proprietário, ajuda­va o nessas operações.

O rapaz viu que o valor que deveria receber era de mais de dez mil dólares. Uma importância significativa e perigosa de transportar assim, em dinheiro vivo.

Foi nesse momento que lhe surgiu a idéia. Aquela cobrança era a solução de todos os seus problemas!

Sem pensar duas vezes, arrancou rumo à Lapa, já telefonando para o doutor Mário, o proprietário da metalúrgica, avisando que estava indo receber o dinheiro.

Pode vir, Fefê — disse-lhe o homem. — Desde segunda-feira esse dinheiro está na minha gaveta esperando.

O rapaz, de tão entusiasmado ficara, nem mesmo percebeu o trânsi­to que teve de enfrentar até chegar à metalúrgica, bem no centro da Lapa, um bairro movimentado e, em muitos locais, perigoso.

Não teve qualquer dificuldade em receber o dinheiro e, quando disse que iria dar um recibo para o doutor Mário, este falou:

Este tipo de negócio não admite recibo. Esse dinheiro não existe, não pode ter nem mesmo aparecido; você já deveria saber disso.

Fefê se desculpou, alegou que estava distraído, que tinha falado do recibo automaticamente, apertou a mão de Mário e saiu.

Sabia muito bem que Mário, naquele instante, estaria ligando para Clara e avisando que já tinha dado o dinheiro para o rapaz e, assim, fez o mesmo. Ligou do celular para a secretária e disse:

Estou com o dinheiro do Mário na mão. Estou indo diretamente para o escritório, mas o trânsito está muito ruim. Pode ser que atrase um pouco e, por isso, é melhor você me esperar, não sair para o almoço.

No meio do congestionamento, e aproveitando que tudo estava paralisado, ligou para Gustavo.

Falou de banalidades, queixou-se do trânsito, disse para o amigo que ele tinha perdido por não ter ido ao happy hour do Pandoro na véspera.

Tinha duas meninas lá, rapaz... — mentiu ele. — De fechar o comércio! Se você estivesse comigo, nós poderíamos ter feito alguma coi­sa. Mas sozinho... De qualquer maneira, marquei com a Beatriz, uma das duas, de encontrar com ela hoje à noite. E ela vai sozinha.

Por que não marcou para encontrar com as duas? — perguntou Gustavo, em tom de protesto. — Eu iria com você!

Ora! Você estava cansado ontem à noite... Certamente também estaria hoje e eu não estou querendo perder outra oportunidade. Se você inventasse de não aparecer, eu iria ficar outra vez com as duas e daí...

O trânsito começara a fluir novamente, e Fefê, sempre segurando o celular, disse, desviando um pouco a boca do aparelho, como se estivesse se dirigindo a outra pessoa:

O que é? Você está pr...

Interrompeu-se, para logo em seguida gritar:

Mas assalto? Assaltar o quê, não tenho nada aqui comigo!

Do outro lado, Gustavo escutava as palavras do amigo, angustiado.

Alô! — exclamava ele. — Fefê?! O que está acontecendo? Você está. sendo assaltado?! Pelo amor de Deus, não reaja! Dê o que o assaltante quer!

Fefê sorriu, desligou o telefone e, aproveitando uma brecha no trá­fego, dirigiu-se para um posto de gasolina.

Desceu, caminhou até um telefone público e, discando a cobrar, ligou para Clara.

Clara, aconteceu uma desgraça! — disse ele, quase gritando, a certeza de ter sua voz abafada pelo ruído dos automóveis que passavam na avenida e, assim, ninguém poder ouvir o que ele estava falando. — Fui assaltado! Roubaram todo o meu dinheiro e o meu celular!

Ele pôde perceber a respiração ofegante da mulher e, com voz trêmula, ela perguntou:

Roubaram tudo? Mas como foi isso?

O trânsito está muito ruim, como eu lhe disse. Eu estava numa esquina. Estava falando com o Gustavo no telefone. Aí uma moça en­costou perto do vidro e bateu, para chamar a minha atenção. Estava bem-vestida e parecia estar aflita. Baixei o vidro para perguntar o que ela queria, ela podia estar em alguma dificuldade... Aí apareceu um homem segurando um revólver e disse que era um assalto! Ainda tentei dizer que não tinha dinheiro comigo, que estava duro... Mas o homem encostou o revólver na minha orelha e disse que queria a pasta. A pasta e o celular. Não tive outro jeito...

Mas... e o carro, eles levaram o carro, também? — perguntou Clara, aflita.

E, em seguida, disse:

Espere um instante. O outro telefone está tocando.

Fefê esperou e pode ouvir a secretária dizendo:

É... Parece que sim... Estou com ele na outra linha, e ele está me contando exatamente isso... Está certo... Ele fala com você depois. Obrigada, Gustavo.

Mais uma vez, o rapaz sorriu. Aquela ligação do amigo para Clara tinha sido providencial. Era a confirmação. E, conhecendo bem Gustavo, Fefê sabia que seu tom de voz e a maneira como tinha falado com a secretária jamais deixariam qualquer margem de dúvida.

Clara voltou ao telefone, dizendo:

Era o Gustavo. Disse que você estava falando com ele no mo­mento do assalto. Ele tentou ligar no seu celular, mas não conseguiu. E você não me respondeu. Roubaram também o carro?

Não, o carro não. E nem adiantaria, eles não iriam a lugar ne­nhum com o trânsito que está...

Fez uma pequena pâusa e perguntou, com desespero:

E agora, Clara? O que eu faço?

Venha imediatamente para cá. E trate de vir por outro caminho, tranque o carro, não abra a janela para mais ninguém!

Não tem mais o que roubar...

Tem você, idiota! — gritou a mulher. — Será possível que você nunca pensa num seqüestro?!

Mas não acha que eu deveria ir à polícia?

De jeito nenhum! O que é que você vai dizer? Que lhe roubaram dez mil dólares? Como é que você vai explicar a origem desse dinheiro?! Nada disso! Venha para cá e, depois que você chegar, vamos ver o que é possível fazer.

Fefê concordou e, com um sorriso de satisfação a lhe bailar nos lábios, voltou para o carro e tomou o rumo do escritório. Olhou para o relógio. Ainda teria tempo de fazer o que precisava.

Dirigindo com cuidado, foi para a agência do Bradesco onde ti­nha uma conta particular, tão particular que o seu cheque especial era pequeno e o banco não mantinha o menor contato com o escritório. Na verdade, o rapaz tinha certeza que seu pai nem mesmo se lembrava que ele ainda tinha aquela conta.

Depositou o dinheiro, reservando apenas o necessário para cobrir a conta do Banco do Brasil e o que precisaria para recuperar o cheque dado no dia anterior, para a butique Daslu. Do banco, voltou para o escritório sentindo a alma leve, ciente de ter resolvido seus problemas mais imedia­tos e de ainda ter deixado, na conta, uma reserva significativa.

Acabei de falar com seu pai — disse Clara, assim que Fefê en­trou no escritório. — Ele disse para não fazer nada. E nem mesmo para comentar com o doutor Mário que o dinheiro foi roubado.

Como ele ficou? — quis saber o rapaz. — Ficou muito bravo?

Não. Ele ficou preocupado com você, queria saber se realmente não aconteceu nada além do que você contou.

Como pode ver, não aconteceu nada — repetiu ele. — Fora o dinheiro, a pasta com documentos e o celular...

Graças a Deus! — exclamou Clara, erguendo os olhos para o alto. — Você correu um perigo imenso! Se tivesse reagido...

Discando um número ao telefone, ela falou:

Tome. Fale com seu pai. Ele me pediu que fizesse você ligar assim que chegasse.

Deu uma risadinha e acrescentou:

Para você ver como ele se preocupa... Disse que só sossegaria quando ouvisse a sua voz.

Fefê conversou o com pai por alguns minutos, tranqüilizou-o e, quando desligou, tinha a certeza de que seu golpe funcionara. Tanto que seu pai dissera que ele pegasse dinheiro na empresa e fosse comprar outro celular.

Naquela noite, na rodinha de amigos desta vez reunida por Gusta­vo, o rapaz teve muito que contar. E, é claro, fantasiou um bocado, inventou episódios adicionais. Repetiu tantas vezes a mesma história — conta­va tudo outra vez a cada um que chegava — que, quando se despediu dos amigos, já estava acreditando em sua mentira.

Evidentemente, nada falou sobre o dinheiro roubado; disse apenas que seu dinheiro tinha sido levado, bem como a pasta e o celular.

Mas são coisas materiais — disse ele. — Compra-se uma nova pasta, o celular já estou com outro e, quanto ao dinheiro... ganha-se outra vez!

Foi na manhã seguinte, depois de ter acertado a conta com Sansão, gerente do Banco do Brasil, ao passar na Daslu para resgatar o cheque, que ele teve uma péssima notícia.

Entrou na loja todo sorridente, já pondo a mão no bolso para tirar o dinheiro com que pretendia recuperar o cheque, quando a vendedora lhe pediu para acompanhá-la até o escritório.

Não sei como lhe dizer isso, Fefê — começou ela, cheia de cerimônia.

O que foi? — perguntou ele, já preocupado. — O cheque já foi depositado, é isso? Vocês não o seguraram como prometeram?

Não — disse a moça. — Não se trata disso.

Olhou para ele com uma expressão de pena e murmurou:

Ela nem abriu seu presente... E telefonou pedindo que lhe de­volvêssemos o dinheiro.

Fefê sentiu algo parecido com uma facada no coração.

C-co-como assim? — gaguejou ele. — O que está querendo dizer?

Respirando fundo, a moça respondeu:

A sua namorada... Ou sei lá... A moça chamada Amanda... Ela não quis receber a encomenda. Recusou-se terminantemente e disse para que devolvêssemos o seu dinheiro.

Apanhou o cheque de Fefê, que estava sobre a mesa, e, já inutiliza­do, entregou-o para o rapaz, dizendo:

Não faço idéia do que tenha acontecido, Fefê... Mas acho que ela precisou ter muita coragem para recusar um presente tão bonito e tão valioso!

O rapaz nada disse. Apanhou o cheque, rasgou-o, jogou os pedaci­nhos de papel na cesta de lixo e, em silêncio, deixou a loja.

Por que Amanda tinha feito aquilo? Por que recusara o vestido?

Pensou em ligar para ela, mas... Na verdade, não teria o que dizer e, depois dessa atitude da moça, seria muito pouco provável que ela o atendesse.

 

Recusou? — perguntou Hafez, contrariado — Mas qual o mo­tivo dessa recusa? Nós estamos pagando à vista, não estamos pedindo nenhum favor!

É, mas a empresa recusou — respondeu Ibrahim, um pouco sem jeito, como se a culpa fosse integralmente dele. — Apesar de tudo, ela re­cusou. Disse que não poderia fornecer esse material sem uma autorização expressa da Secretaria de Defesa.

Hafez respirou fundo, tentando conter sua raiva e decepção. Aqui­lo na um imprevisto com que não contava, absolutamente. Afinal, não poderia ser complicado comprar um pouco de ácido nítrico, tolueno e mais algumas outras substâncias, todas elas comumente encontradas no mercado de varejo.

Acho que cometemos um erro — comentou Mohamed. — E foi por causa disso que não quiseram fornecer as mercadorias.

Hafez olhou interrogativamente para o companheiro, e este, de­pois de refletir por alguns instantes, explicou:

Essas substâncias, separadamente, são perfeitamente inocentes. Porém, quando juntas, podem ser a base para a fabricação de explosivo plástico. Seria mais ou menos evidente que não queiram vender e, o que é pior ainda, acho que essa tentativa de compra serviu bem para levantar algumas suspeitas sobre Ibrahim...

Acho que isso não — contradisse este. — Não estive lá pesso­almente, fiz a consulta por telefone e tive o cuidado de usar um telefone público.

Com expressão ofendida, Ibrahim acrescentou:

Não sou tão estúpido assim, Mohamed! Não cometeria um erro desses!

Os três ficaram em silêncio por alguns instantes e, por fim, Hafez disse:

Bem... Não há o que fazer. No mínimo, a esta altura, essa empre­sa que você foi procurar já avisou o FBI que alguém está tentando adquirir material para a produção de explosivo plástico. Portanto, não devemos mais tentar por esse caminho. Não podemos correr riscos.

Como sempre, eles estavam numa mesa dos fundos no restaurante de Abdo Farid, acompanhados por Amina e Jamile, que, afastadas da conversa, comentavam entre si amenidades, tais como novas marcas de sabonetes e lingerie. As duas, contudo, não deixavam de prestar atenção ao que os homens diziam e, quando eles calaram, pensativos, tentando encontrar uma solução para aquele problema, Jamile esperou por alguns instantes e sugeriu, dirigindo-se diretamente a Hafez:

Por que vocês não compram o material já pronto?

Hafez olhou para ela com desprezo. Ele detestava que as mulhe­res dessem palpites na conversa dos homens; achava que elas deveriam permanecer quietas e em seus lugares, ainda que fosse obrigado a tolerar sua presença para não chamar demais a atenção. Sim, pois, se eles fossem sempre vistos num restaurante ou em outros lugares públicos, permanen­temente sozinhos, ou seja, sem companhia feminina, ele achava que isso poderia chamar a atenção. Assim, procurava fazer com que as duas esti­vessem o mais possível presentes, dando a impressão de que eles eram dois casais absolutamente normais. Árabes, sim, pois não havia como disfarçar esse fato, mas não muçulmanos radicais.

Sem se deixar impressionar pelo olhar de Hafez, Jamile continuou:

Há quem venda esse material. E pode apostar que esse vendedor terá total interesse em não denunciar ninguém. Ele estará tão incrimina­do quanto o comprador se, por acaso, a transação vier a ser descoberta.

Hafez foi obrigado a concordar com o que Jamile estava dizendo. Na realidade, a recomendação que recebera por parte de Al-Kayed era exatamente esta: comprar o explosivo pronto, quando recebera a ordem de providenciar toda aquela lista de materiais. Ninguém falara para ad­quirir os componentes e fabricar, ele mesmo, o explosivo. Isso tinha sido uma idéia sua, como químico que era, como forma de economizar alguns dólares, que, em vez de serem gastos com material comprado no câmbio negro, poderiam muito bem ser usados em outras coisas. Coisas como, por exemplo, um vestido novo para Amina...

Pode ser que você tenha razão — admitiu ele. — Só que não tenho a menor idéia de quem possa nos fornecer isso já pronto...

Não será difícil, Hafez — interferiu Mohamed. — Conheço um engenheiro especialista em demolições. Talvez, por ele, consigamos che­gar ao fornecedor. E tenho certeza de que poderemos encontrar alguém que nos venda o material sem fazer muitas perguntas...

Então, cuide disso — decidiu Hafez, dirigindo-se a Mohamed. — E com urgência. Precisamos estar com tudo pronto o mais breve possí­vel, pois não sabemos quando virá a ordem para agir.

Sentada ao lado de Hafez e acariciando sua coxa por baixo da mesa, Amina perguntou:

E onde você pretende guardar tudo isso? É perigoso deixar em casa, não acha? Perigoso em todos os sentidos. Primeiro, é material ex­plosivo, e não podemos afastar a possibilidade de um acidente. Segundo, porque basta uma denúncia, uma revista em casa, e todos nós estaremos limito bem arranjados...

Nunca tive intenção de deixar isso em casa — respondeu Hafez, com mau humor. — Não sou louco a esse ponto. Vamos alugar um armário público num desses guarda-volumes de estação e pronto. Lá ele estará em segurança.

Amina deu de ombros. Tinha dito aquilo pelo simples prazer de pôr mais um empecilho no plano de Hafez, mesmo porque ela não con­cordava nem um pouco com aquilo e, principalmente, porque gostaria ile ver o amante desistir de tudo por causa das complicações que esta­vam surgindo.

E não eram poucas as complicações e dificuldades que Hafez esta­va tendo de enfrentar desde que recebera aquele e-mail. Fazia já algum tempo que a mensagem chegara, e eles não tinham conseguido absoluta­mente nada da lista solicitada, e isso estava deixando o árabe a cada dia mais nervoso.

Amina, por diversas vezes, sugerira que ele passasse a obrigação para Ibrahim ou Mohamed e fosse com ela para um outro lugar qualquer, afastando-se definitivamente daquela história de terrorismo. Entretanto, Hafez respondera que aquela era sua vida, que ele não era nada além de um soldado do Islã e que jamais abandonaria a grande causa. E, na última vez que insistira sobre esse assunto, acabara por ouvir o que não queria:

Se você não quiser me acompanhar, nada a impede. Pode tratar de desaparecer. Durante muito tempo estive sozinho com meus ideais e posso muito bem voltar a ficar assim. Não preciso de ninguém, muito menos de alguém que fica tentando enfiar na minha cabeça que estou agindo errado. Eu sempre agi de acordo com as leis do Corão. Não vou trair minha fé por nada deste mundo! Nem mesmo por você!

Amina não insistira mais. Intimamente, porém, ela estava sempre torcendo para que as coisas não dessem certo, para que um dia Hafez per­cebesse que tudo aquilo jamais haveria de levar a alguma coisa.

"Não passa de entusiasmo juvenil", — pensava ela. "Eles estão um pouco velhos para isso, mas, no fundo, não passa de coisa de adolescente."

 

A abertura do escritório da empresa em Nova York, como não poderia deixar de ser, tornou-se um marco na história, não apenas da firma, mas principalmente na história da família. Conseqüentemente, na his­tória de Fefê.

O senhor Fernando voltou dos Estados Unidos sozinho: Marina ficara — como já estava decidido — e Gilberto também, uma vez que ha­via muita coisa para fazer; e a irmã, preocupada também com o casamen­to que se aproximava e que seria lá, não daria conta de tudo sozinha.

Gilberto terá de ficar pelo menos três meses por lá — avisou Fernando. — No mínimo até Tony e Marina voltarem da lua-de-mel. Enquanto isso...

Olhou para o filho caçula e disse:

Você vai precisar assumir o lugar de seu irmão.

Na verdade, o rapaz não sabia se ficava ou não feliz com a notí­cia. De fato, sempre quisera ficar com a cadeira de Gilberto, com uma posição de chefia, com a importância que ele mesmo julgava merecer. Entretanto, ao mesmo tempo, isso significava que teria muito mais res­ponsabilidades, muito mais trabalho e... logicamente, menos tempo para si mesmo.

Suas saídas, fazendo o papel de office-boy de luxo, sempre lhe per­mitiam uma liberdade de ação fantástica. As desculpas que encontrava no trânsito carregado, nas esperas a que seria obrigado em cada firma que visitava, proporcionavam a Fefê várias horas de ócio, que ele apro­veitava para encontrar os amigos, tomar um drinque, almoçar com toda a calma, ou seja, coisas que nem mesmo um executivo de altíssimo nível se dá o direito. Com a alteração no esquema, com a permanência de Gilberto nos Estados Unidos, por, no mínimo, três meses, isso mudaria. Ele teria de ficar por mais tempo no escritório, precisaria estar mais perto do pai e aprender muito da rotina com que até então jamais tinha se preocupado.

E havia, no final das contas, um pormenor que, ainda que muito rapidamente lhe tivesse passado pela cabeça, não deixara de atormentá- lo: Gilberto acabaria por voltar dos Estados Unidos... E, já simplesmente pelo fato de ter estado por lá, negociando, treinando seu inglês e apren­dendo muito mais do que se tivesse ficado no Brasil, regressaria preparado para assumir definitivamente o lugar do pai.

Fato, aliás, que já vinha sendo comentado havia algum tempo. Fer­nando estava começando a ficar muito cansado de tanto trabalho e estava querendo se aposentar. O casamento da filha no estrangeiro, Gilberto apto a gerenciar completamente a empresa e a idade que começava a se lazer notar estimulavam-no a apressar um pouco o tão desejado dia de parar de trabalhar.

Vou comprar uma casa na praia e ficar deitado na rede o dia inteiro! — brincava Fernando.

Assim, com a perspectiva de ter de trabalhar mais e se divertir menos, Fefê acabou por não achar muito boa a idéia de ficar no lugar do irmão.

E o velho sentimento de revolta ressurgiu com toda a sua força quando ouviu o pai dizer para a secretária:

Com o Fefê tendo de ficar mais tempo aqui dentro, vamos pre­cisar contratar um office-boy...

Fefê sentiu um aperto no coração, o orgulho mortalmente ferido. Então era essa a sua função, realmente! Para que ficar tentando disfarçar, tentando dizer a si mesmo que seu cargo era de diretor de informática e comunicações? A verdade, nua e crua, era essa: ele não passava de um menino de recados, de um office-boy de luxo...

Entretanto, ele nada falou, nada manifestou. Em seu íntimo, a amargura de sentir-se eternamente relegado a um plano inferior vinha se transformando em ódio. E ele já escutara de alguém — jamais haveria de lembrar quem — que quem odeia sabe esperar.

Fefê estava esperando. E talvez estivesse chegando o momento de mostrar quem, realmente, ele era.

Vendo que o rapaz começava a arrumar suas coisas na mesa de Gil­berto, Clara deu uma risadinha e falou:

Você vai se assustar, Fefê... Se achava que seu irmão não fazia nada, vai perceber bem depressa que estava enganado!

Isso não me mete medo, Clara — retrucou o rapaz, empinando o nariz. — Nunca tive medo do trabalho. Acontece que nunca me deram oportunidade de mostrar do que sou capaz!

Pois a oportunidade está diante de você, Fefê — disse Clara. — E pode ir se preparando. Como o Gilberto ficou por lá, tem uma mon­tanha de serviço atrasado que precisa ser posta em dia. E rápido, se você não quiser ouvir seu pai gritar!

O rapaz fingiu não ter ouvido e, com toda a pachorra, continuou a arrumar a mesa.

"Vocês estão rindo...", pensou ele. "Mas não vão rir por muito tem­po. Daqui a pouco vão ver como as coisas estarão mudadas e como vocês terão de me tratar com respeito!"

A maioria dos seres humanos tem a característica de se adaptar a situações adversas. Fernando não era diferente e, assim que percebeu que o filho caçula, realmente, não conseguia dar conta nem da me­tade das coisas que o irmão mais velho fazia, foi transferindo tarefas para outros funcionários, foi assumindo pessoalmente outras tantas e, em menos de duas semanas, Fefê estava praticamente de volta à sua antiga função.

Evidentemente, ele percebera muito bem o que estava acontecen­do, mas, esperto, conseguia agir de uma maneira que chegava a despertar a piedade tanto do pai quanto de Clara.

— Tenha dó, Fernando! — dizia esta. — O menino não está acostumado. Ele ainda não sabe. Dê alguma coisa mais simples para ele fazer. Que diabo!

Fernando, a princípio, achara descabido esse tipo de protecio­nismo, mas, vendo o filho atabalhoado, parecendo perdido diante de uma pilha de documentos, acabava ficando com pena, e, é claro, Fefê se aproveitava.

À noite, o rapaz continuava a se encontrar com os amigos, conti­nuava a trocar a sala de aula, onde deveria estar cursando o MBA, pelas mesas dos barzinhos da moda e os restaurantes caríssimos.

E, obviamente, continuava a gastar a rodo, talvez até confiante de que o saldo que lhe tinha sobrado na conta jamais terminasse.

Ficou extremamente satisfeito ao perceber que tanto seu pai quanto Clara nunca tocaram no assunto do dinheiro roubado. Era um dinhei­ro que não poderia ser contabilizado e que, portanto, era melhor que fosse esquecido. A empresa assumira o prejuízo e nem mesmo o doutor Mário ficaria sabendo do ocorrido.

No entanto, tudo o que sai, sem que haja algum tipo de reposição, acaba chegando ao fim. E, algumas semanas depois, Fefê viu que, se não providenciasse com urgência uma entrada de recursos, ficaria sem dinhei­ro outra vez. Principalmente porque?, desde aquela discussão com o pai e com o conseqüente bloqueio de suas retiradas da empresa, ele deixara de usar seus cartões de crédito, e tudo quanto gastava — e não era pouco! — era pago em dinheiro ou, no máximo, em cheques do Bradesco, conta à qual somente ele tinha acesso.

Fefê não era estúpido a ponto de ignorar ser impossível aplicar outro golpe semelhante no pai. Assim, estava descartada a possibilidade de alegar que tinha sido assaltado e sumir com outra bolada. Também era absolutamente impossível uma retirada de numerário do caixa da empre­sa sem que isso fosse imediatamente percebido pelo rigoroso sistema de controle que existia.

O rapaz começou a ficar nervoso outra vez. Precisava dar um jeito e não sabia como fazer. A única coisa que realmente sabia e que o atri­bulava o tempo inteiro era que não poderia deixar transparecer aos seus amigos que estava em dificuldades financeiras e que não mais poderia continuar a arcar com as formidáveis despesas a que estava acostumado. E deixar de lado o seu esquema de vida, isso Fefê jamais faria.

Num fim de tarde, reunido com os amigos num happy hour, que pai a ele não estava sendo nem um pouco happy, pois acabara de verificar seu saldo no banco, e este se encontrava já num nível perigosamente baixo, ele foi apresentado a um holandês.

A princípio, deprimido e preocupado como estava, Fefê não lhe deu maior atenção do que a que a boa educação obriga: cumprimentou-o, sorriu e trocou algumas palavras com o recém-chegado. Estava tão distraído e ensimesmado, que nem mesmo percebeu que o homem falava perfeitamente português, apenas com um leve sotaque.

Foi cerca de quinze minutos mais tarde, quando o holandês per­guntou a Gustavo se este conhecia alguns proprietários de boates ou casas noturnas badaladas — e ele usou esse termo, badaladas —, que Fefê se viu obrigado a participar mais da conversa.

Quem conhece todo mundo nesse meio é o Fefê — disse Gustavo.

O holandês voltou-se para o rapaz e repetiu a pergunta:

Você conhece proprietários de casas noturnas e boates aqui em São Paulo?

Fefê olhou, um tanto quanto intrigado, para Erik. Era um homem de cerca de quarenta anos, simpático, com aparência séria. Na verdade, ele até deveria estar meio deslocado naquela mesa, composta de jovens, tendo o mais velho deles menos de trinta anos. No entanto, Erik parecia estar perfeitamente à vontade, conversando e rindo com todos e como todos.

Já com quatro doses de vodca na corrente sangüínea, além de todas as suas preocupações com o estado de sua conta bancária, Fefê não conse­guia lembrar como aquele indivíduo tinha chegado à mesa.

Entretanto, como ele estava lhe perguntando sobre um assunto que realmente era de seu domínio e, como aquela era uma excelente oportu­nidade de mostrar sua importância, o rapaz relegou para segundo plano os motivos que teriam trazido o holandês para seu grupo e respondeu:

Não só em São Paulo, meu amigo... Mas conheço gente no Bra­sil todo. Sei quem possui as melhores casas noturnas e boates de Porto Alegre a Manaus!

É mesmo? — fez o holandês, mostrando-se impressionado. — Você é do ramo?

Não — respondeu Fefê. — Tenho uma empresa de exportação e importação. Conheço essas pessoas porque sou um bom freqüentador...

O interlocutor assentiu com um sinal de cabeça, molhou os lábios no copo de uísque que estava à sua frente e indagou, como se o fizesse apenas para continuar a conversa:

E sua empresa faz que tipos de importação? Ou de exportação?

Trabalhamos principalmente com produtos químicos — disse o rapaz. — Importamos matérias-primas para a indústria química e expor­tamos produtos acabados, principalmente para a Europa.

Um sorriso iluminou o rosto de Erik, e este, entregando-lhe um cartão, falou:

Posso procurá-lo amanhã? Acho que teremos negócios a tratar...

Fefê arregalou os olhos, surpreso. Era a primeira vez que ele via acontecer, com ele, aquilo que sempre ouvira dizer ser uma das razões principais para a existência dos happy hour, ou seja, o encontro de execu­tivos com a possibilidade do surgimento de negócios.

De fato, era também a primeira vez na vida que alguém se dirigia a ele considerando-o um verdadeiro executivo...

Fefê não tinha cartão de visitas pessoal. Andava sempre com al­guns cartões da empresa, mas, com seu nome, jamais tivera algum. Para quê, afinal de contas? Jamais ele precisara! Pelo menos, não até aquele momento.

Um pouco desenxabido, pegou um desses cartões, rabiscou seu nome e seu celular no verso e entregou-o ao holandês, dizendo:

Prefiro que me ligue no celular. É difícil me encontrar na empre­sa, com todas as reuniões a que sou obrigado a comparecer...

Não quero atrapalhá-lo — alegou Erik. — Mas podemos... Tal­vez seja mais fácil para você se almoçarmos juntos, amanhã...

- Ótimo! — exclamou Fefê. — Podemos marcar à uma da tarde, aqui mesmo no Pandoro.

Erik se levantou, estendeu a mão para Fefê e disse:

Então está marcado. Amanhã, aqui, à uma hora.

Despediu-se de todos os demais e saiu.

Um breve silêncio pesou sobre a mesa, até que Fefê perguntou, sem se dirigir especificamente a nenhum dos amigos:

Quem é ele? De onde surgiu?

Foi Gustavo que respondeu:

Eu o encontrei ontem à noite, no Piola. Passei por lá para comer alguma coisa antes de dormir e o conheci por acaso. Pareceu-me simpático, tinha uma boa conversa. Foi também por acaso que comentei que a gente sempre se encontra aqui, no happy hour. E ele veio!

Deu uma risadinha e acrescentou:

Parece que você deu sorte, Fefê! Vai ver que você vai conseguir alguma coisa com esse holandês!

Fefê, sempre pessimista, balançou a cabeça, jogando para trás sua imaginária mecha de cabelos sobre a testa, e murmurou:

Sei lá! Ele me perguntou sobre o pessoal da noite... O que ele pode estar querendo com donos de boates?

De repente é um grande investidor — falou um dos outros que estavam à mesa. — E pode estar procurando onde despejar alguns mi­lhões de dólares!

Por muito pouco, Fefê não argumentou que, nesse caso, o holandês jamais viria procurar alguém como ele ou qualquer outro daquela turma. Entretanto, ele sentia que aquela era, realmente, uma oportunidade de se posi­cionar num pedestal ainda maior do que aquele em que habitualmente fazia questão de se colocar e, com um sorriso cheio de superioridade, falou:

Se for essa a intenção do gringo, ele achou a pessoa certa... Nin­guém conhece a noite melhor do que eu!

Clara estranhou ver Fefê chegar ao escritório antes das dez horas da manhã, sendo que ele jamais aparecia antes do almoço, mesmo depois que assumira as obrigações do irmão.

O que foi? — perguntou ela, surpresa. — Caiu da cama ou seu pai lhe arrancou as cobertas?

Fefê não respondeu. Aquela pergunta era mais uma manifestação evidente do conceito que todos faziam dele e, se fosse responder, cer­tamente acabaria se irritando. Assim, limitou-se a esboçar um sorriso e começou a trabalhar.

Por volta do meio-dia, ele avisou que iria almoçar com um amigo e, sem maiores explicações, saiu.

Dirigiu-se para o Pandoro, lá chegando quinze minutos antes da hora marcada.

Mal conseguia esconder, de si mesmo, o nervosismo. Era o seu pri­meiro almoço de negócios! Era a primeira vez que alguém, mais velho e com aspecto respeitável, o tratava como um executivo, dando-lhe a importância que sempre quisera ter!

Sentando-se a uma mesa do terraço, ele pensou em pedir uma vodca, mas logo afastou essa idéia. Não, ele não poderia dar mostras de qualquer tipo de irresponsabilidade. Beber num happy hour era normal e permitido. Entretanto, um almoço de negócios devia ser diferente; as pessoas envolvidas tinham de estar donas de todas as suas capacidades de raciocínio, de reflexos, de atenção. Pediu um suco de laranja.

Erik apareceu exatamente à uma da tarde, e Fefê não pôde dei­xar de imaginar que o holandês tivesse ficado escondido em algum lugar ali perto, de maneira a mostrar a pontualidade, chegando em cima da hora.

Como passou a noite? — perguntou ele. — Muito trabalho esta manhã?

Sim... — respondeu o rapaz, com expressão fatigada. — Essas reuniões me matam... É uma atrás da outra e raramente são produtivas.

Erik deu um sorriso e, contrariando a decisão que o rapaz se impusera pouco antes, de não tomar bebidas alcoólicas durante um almoço de negócios, pediu ao garçom que se aproximava uma dose de uísque.

Pois pode acreditar que nossas reuniões jamais serão improdu­tivas! — falou o holandês. — E também acredite que esta é somente a primeira, meu amigo! Tenho certeza que seremos parceiros!

Fefê olhou intrigado para o homem que estava à sua frente. Como ele podia afirmar aquilo assim, com tamanha certeza? O que ele estava querendo propor? O que estava querendo dizer quando falava de parceria?

O garçom trouxe o uísque encomendado por Erik, e Fefê, achando que também poderia beber, já que o companheiro estava tomando álcool, pediu sua já tradicional dose de vodca.

Trabalho com produtos químicos — disse Erik. — E o fato de você ter uma empresa de importação e exportação intimamente ligada ao meu ramo, pode ser muito interessante para nós dois.

Aquela frase foi como um balde de água fria sobre Fefê. Então, o ho­landês estava interessado, no final das contas, no trabalho da empresa e não nele, pessoalmente. Seria mais um negócio para seu pai, não significaria nada para ele além de, no máximo, um elogio vindo de Fernando, surpreso pelo fato de o filho caçula ter, afinal, feito alguma coisa que implicasse re­ceita para a firma e não apenas em despesas, como era a rotina.

Antes que Fefê pudesse dizer alguma coisa, Erik prosseguiu:

E o fato de você conhecer o meio empresarial da noite vem a calhar.

O rapaz olhou para seu interlocutor e perguntou:

Mas como assim? Como uma empresa de produtos químicos pode se interessar pelos empresários da noite?

Isso, ainda não posso dizer — replicou o holandês. — Mas, den­tro em breve, você saberá. Por enquanto, o que preciso saber é se seria possível sua empresa fazer uma importação pequena, coisa de cem quilos, de um produto químico que venha da Holanda.

Não creio que haja dificuldades — falou Fefê, procurando as­sumir uma aparência de quem detém o conhecimento. — Dependendo do valor, cem quilos de uma mercadoria pode ser equivalente a muitas toneladas.

Tomou um gole de vodca e prosseguiu:

Por outro lado, também depende muito de como essa mercado­ria vai chegar ao Brasil, se de avião ou por via marítima.

Terá de ser de avião. Há muita pressa no recebimento — dis­se Erik. — A empresa importadora precisa desse componente dentro de quinze dias.

Por mais alienado quanto à essência dos negócios da família, Fefê tinha, ao menos, uma mínima noção do que era imprescindível para tra­zer alguma mercadoria, legalmente, do exterior. Assim, ele falou:

Bem... Se já existe o comprador aqui no Brasil, as coisas ficam muito mais fáceis. Principalmente, se esse comprador estiver em São Pau­lo ou no Rio de Janeiro.

A empresa importadora é de São Paulo. Assim, o que vai, real­mente, influir é a agilidade no desembaraço da mercadoria no aeroporto.

Isso será o mais simples — afirmou o rapaz, categoricamente. — Nós conhecemos muitos agentes alfandegários e poderemos agilizar essa burocracia.

Erik sorriu, assentiu com a cabeça e Fefê perguntou:

Qual é a mercadoria? Trata-se de um produto químico perigoso?

De forma nenhuma! — exclamou o holandês. — É um deriva­do polimerizado, imprescindível para a produção de plásticos especiais. Trata-se de um produto muito caro, pois apenas cem gramas dele possibilitam a produção de mais de uma tonelada de produto acabado.

O rapaz continuou olhando interrogativamente para Erik, e este prosseguiu:

Esses cem quilos de material valem cerca de duzentos mil dólares. E é claro que, uma vez que esta primeira importação seja feita com êxito e sem reclamações, teremos muitas outras. No mínimo, uma por mês.

Fefê não pode deixar de pensar que, sem dúvida nenhuma, seria um bom negócio para a empresa de seu pai. Mas e ele? Como poderia ganhar alguma coisa em cima da transação?

Como se estivesse lendo os pensamentos do rapaz, Erik continuou:

Haverá, evidentemente, a comissão de sua empresa e... a minha gratidão pessoal a você.

Deu uma risadinha e completou:

E pode acreditar que eu sempre soube manifestar adequadamen­te essa gratidão.

A esta altura da conversa, um verdadeiro executivo e sócio — de fato e não apenas de direito, como era o caso de Fefê — teria dito que não haveria o que agradecer, pois sua empresa já estaria ganhando com as comissões de praxe. Entretanto, o rapaz calou, e seus olhos brilharam já imaginando o que Erik haveria de lhe oferecer.

Espero que você não esteja ocupado demais esta noite — falou o holandês, enquanto o garçom servia o almoço que tinham pedido. — Gostaria de convidá-lo para um programa.

Sorriu, maliciosamente, e acrescentou:

Acho que será, no mínimo, um programa diferente.

Fefê não parecia estar nem um pouco satisfeito ou entusiasmado. Ele fora buscar Erik no Hotel Maksoud Plaza, e este lhe dera um endereço no Morumbi, ao entrar na BMW do rapaz.

É uma casa particular — falou. — A proprietária, uma conter­rânea minha amiga, organiza umas festas espetaculares.

Dando uma risada, juntou:

Aposto o que quiser que dentro de pouco tempo você terá dei­xado de lado essa cara de Quarta-feira de Cinzas...

Fefê se defendeu, alegando que só estava um pouco cansado por causa do dia corrido que tivera e que sua expressão não era nada mais do que o reflexo de todas as preocupações de alguém como ele, obrigado a lidar com situações de altíssimo nível de responsabilidade.

Como você queria que eu estivesse, Erik? São milhões de dóla­res em negócios, toneladas e mais toneladas de mercadorias chegando e partindo... Acho que tenho o direito de estar cansado, não?

Claro que tem — contemporizou o holandês. — E é claro, tam­bém, que tem o direito de se divertir um pouco.

Durante a tarde, depois que Erik lhe tinha dito a respeito de fazer um "programa diferente" naquela noite, Fefê ficou um pouco preocupado.

Afinal, mal conhecia aquele homem; sabia apenas o que ele contara e, assim mesmo, sem nenhum motivo maior, sem qualquer intimidade que justificasse o convite para uma noitada... E diferente... O que ele estava querendo dizer com esse adjetivo? Por algum tempo, o rapaz pensou se­riamente em telefonar para Erik e dizer que havia surgido um imprevisto e que não poderia ir. Acima da curiosidade, porém, havia o receio de que uma recusa pudesse pôr abaixo o conceito de homem independente e maduro que o holandês parecia fazer dele. E isso era algo que Fefê não podia admitir! Erik o havia tratado como um igual, e ele era, no mínimo, quinze anos mais velho, era estrangeiro e parecia ser extremamente bem preparado no campo de comércio exterior. Isso o rapaz pudera perceber pela conversa durante o almoço.

Não! Ele não desistiria! Iria em seu carro e, se algo o desagradasse, aí sim, seria político o bastante para arrumar uma desculpa e se retirar.

E, naquele instante, sentado no carro ao seu lado, Erik estava di­zendo que o tal programa diferente era uma festa numa casa particular...

Fefê conhecia muito bem esse tipo de festa; já tinha ido a várias e sempre se desiludira.

Esses eventos, organizados por alguém e para uma lista de convi­dados "muito especiais", não passavam de orgias disfarçadas, nas quais, além de muitas mulheres disponíveis, muito álcool e muitas drogas cir­culavam livremente. Ora, Fefê não era adepto de drogas. Experimentara, muito mais por espírito de imitação do que por qualquer outro motivo, maconha, cocaína e ecstasy. Não gostara. A maconha tinha de ser fu­mada, e ele não conseguiu engolir a fumaça, que lhe ardera na garganta, engasgara-o e o fizera passar um grande vexame. A cocaína deixara-o com o coração parecendo que queria sair pela boca; sem contar que, no dia seguinte, ele teve vontade de morrer. Já o ecstasy não lhe fizera nenhum efeito. Disseram-lhe que o tal comprimido iria despertar desejos incríveis, estimular-lhe a libido de forma fantástica... Pois nada disso acontecera, além de uma sede de andarilho do Saara e uma dor de cabeça homérica algumas poucas horas depois.

Com base nessas experiências frustrantes, Fefê decidira que não usaria drogas. Preferia ficar com seu copo de vodca e... sua inibição. Aliás, esse era o motivo principal de ele não gostar daquele tipo de festinha: sua inibição e timidez faziam-no ficar isolado de todos os outros, vendo-os participar da orgia, vendo-os rir e se divertir, e ele, enquanto isso, ficava apenas bebendo, encostado no balcão do bar ou em um canto de parede. Fefê não conseguia se aproximar de ninguém, não conseguia ficar com nenhuma das muitas mulheres que ali se encontravam. No máximo, con- ' seguia beber. Sempre a bebida, a vodca e nada mais.

Arrependeu-se de ter aceitado o convite de Erik. Seria mais uma noite perdida, mais uma frustração e, possivelmente, ao ver como ele se comportava durante a festa, o próprio holandês poderia se desinte­ressar de qualquer tipo de relacionamento, até mesmo um relaciona­mento comercial.

"Um farrista depravado jamais consegue se relacionar com um puritano, e é exatamente isso que ele vai imaginar que eu sou...", pen­sou o rapaz.

Ele estava tentando arrumar uma desculpa que justificasse sua ma­neira de agir — dizer que estava tomando remédios, que estava muito cansado, ou qualquer coisa do gênero —, quando Erik adiantou:

— Chegamos. Pode entrar pelo portão, o manobrista cuida do carro.

Como muitas outras casas do Morumbi, essa também era espetacu­lar. Situada na parte mais elevada de um terreno de mais de um hectare, a mansão dominava o panorama. O jardim era iluminado por inúmeras lanternas japonesas, cuja luz diáfana permitia enxergar os canteiros de flores e alguns caramanchões de buganvílias e brincos-de-princesa. Um pequeno lago, atravessado por uma ponte de madeira em arco, ficava ao lado esquerdo do corpo principal da enorme casa em estilo neoclássico.

Fefê parou junto à porta de entrada, e um manobrista, uniformiza­do e de luvas brancas, apressou-se em abrir-lhe a porta, lembrando:

— Pode deixar comigo, doutor.

Outro empregado, este vestido com um uniforme que lhe dava um aspecto de general latino-americano, tal a quantidade de galões e penduricalhos, abriu a porta de Erik e fez sinal para que os dois o acompanhassem.

Fefê e Erik subiram os três degraus de mármore do alpendre, e a porta se abriu, com outro empregado. Este — com uniforme e aspecto de marechal — sorriu-lhes, exclamando:

Sejam bem-vindos! E divirtam-se!

Exatamente como o rapaz já vira em outras festas do gênero, jun­to à chapelaria, havia um grande vaso de porcelana onde os convidados punham dinheiro. Ninguém estava ali para conferir quanto cada um punha e, provavelmente, jamais o funcionário grandalhão que estava de pé a pouco mais de dois metros de distância, haveria de chamar a atenção de algum mais mesquinho que pusesse no vaso menos do que o mínimo esperado. Certamente, depois de entrar no recinto da festa e de ver o que estava acontecendo ou por acontecer ali, esse convidado seria gentilmente escoltado até a saída ou, quem sabe, convencido a ser um pouco mais generoso.

Fefê já ia pondo a mão no bolso para tirar pelo menos duzentos dólares, quando Erik o impediu com um gesto, acrescentando:

Não se preocupe com isso. Você é convidado, e já está tudo cer­to com a proprietária. Aqui, você não terá nenhuma despesa.

Fefê deu de ombros e, já começando a sentir a famosa inibição a lhe corroer as entranhas, acompanhou o holandês em direção ao amplo salão de festas.

Via-se perfeitamente que a mansão — que outrora deveria ter sido a residência de um grande milionário — tinha sido completamente refor­mada para bem se adaptar à finalidade de destino. Praticamente todas as paredes divisórias do andar inferior tinham sido abertas de maneira a for­mar vários ambientes. Portas, somente duas: uma que dava acesso à copa e outra, discretamente oculta atrás de um imenso biombo de plantas, por onde se ia aos banheiros.

A decoração era esmerada, com móveis antigos, poltronas confor­táveis em cantos com iluminação suave e indireta, muitas plantas e várias obras de arte.

Fefê estava admirado. As outras festas especiais a que tinha comparecido nem de longe se assemelhavam àquela. Pelo menos, no que dizia respeito ao ambiente.

E, quanto às mulheres que estavam por ali, então...

Era cada uma mais linda do que a outra, todas mostravam uma classe fora do comum. Ele viu uma modelo famosa passar abraçada a um senhor de meia-idade, calvo, cuja fisionomia não lhe era estranha, viu uma garota-propaganda, cujo rosto já aparecera em incontáveis outdoors pela cidade, viu dois políticos famosos, vários executivos que ele conhe­cera — mas que, evidentemente, jamais se lembrariam dele — e... muita gente bonita, bem-vestida, bem-educada.

Uma jovem loura passou por eles, sorriu e continuou. Um garçom se aproximou trazendo bebidas e, logo depois outro, com uma bandeja de canapés de fazer páreo com os de qualquer banqueteiro da cidade.

Fefê aceitou um copo de vodca, pescou um canapé e, olhando abis­mado ao seu redor, comentou:

Formidável, Erik! Estou realmente impressionado!

O holandês riu e, guiando o rapaz para uma das mesas, sentou-se e falou:

Ainda é cedo, Fefê. A festa, realmente, ainda não começou. Você vai ver daqui a pouco, quando as luzes baixarem um pouco e a mú­sica começar...

Baixando um pouco a voz, ele disse:

Como eu lhe disse, você não vai se arrepender de ter vindo!

Talvez fosse verdade, se Fefê fosse outra pessoa. Entretanto, ele já de antemão sabia que tudo seria um desastre. Ele ficaria ali, sentado e se enchendo de vodca, enquanto as outras pessoas estariam dançando e se divertindo de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Erik, inclusive, era óbvio.

Mas ele... Ele veria as mulheres se aproximar, ficaria vermelho como um pimentão, não saberia o que dizer, não teria a menor idéia de como entabular uma conversa, ou de como começar um relacionamento. Ali, naquela festa — e aliás como nas outras parecidas em que estivera —, as moças não eram movidas pelo dinheiro do cliente; o que vale di­zer que elas não estavam desempenhando à risca o papel de prostitutas.

Assim, a única arma de que poderia dispor, o dinheiro, não poderia ser mostrada. Não era possível agir como nos cabarés da boca-do-lixo em que costumava ir depois de passar uma noite inteira sozinho. Não poderia mostrar uma nota de cem dólares para uma garota e fazê-la vir sentar-se à sua mesa. Não... Ele sabia muito bem que aquelas mulheres receberiam da dona da festa uma porcentagem sobre o lucro do evento e não poderiam cobrar um centavo do homem com quem ficassem como companhia. Aliás, companhia para o que desse ou viesse.

Foi com esse pensamento na cabeça que Fefê viu as luzes começarem a baixar, e uma música suave e romântica tomou conta do ambiente.

Alguns pares começaram a se formar no meio do salão e logo uma vistosa morena se aproximou da mesa em que eles se encontravam e, sem a menor cerimônia, chamou Erik para dançar.

Fefê não conseguiu esconder uma expressão de desagrado e, to­mando um gole de vodca, pensou: "Pronto! Agora ele vai ficar com essa morena a noite inteira, e eu..."

Foi interrompido em seus pensamentos pela aproximação de uma jovem ruiva que, com um sorriso, perguntou:

Posso lhe fazer companhia? Você parece tão sozinho...

Sem esperar pelo consentimento, a moça sentou-se ao lado de Fefê e acrescentou:

Não queremos ver ninguém desacompanhado, aqui...

O rapaz, imediatamente, sentiu o sangue lhe subir às faces. Era automático, terrível, desmoralizante. E era inevitável. Bastava que uma mulher se aproximasse, bastava que ela lhe dirigisse a palavra, e pronto! Ficava imediatamente vermelho, as mãos começavam a suar, a dor de estômago aparecia...

Fefê quis dizer para a moça que ele estava com um amigo, mas as pala­vras não saíram. O desagradável silêncio que se seguiu foi intenompido pela chegada do garçom, que serviu vinho branco à moça e mais vodca a ele.

É a primeira vez que vem aqui, não é? — perguntou a jovem.

Com muito esforço, ele conseguiu balbuciar uma resposta afirmati­va. Logo em seguida, porém, recuperando-se um pouco, sacudiu sua ima­ginária mecha de cabelo da testa para trás, e adiantou:

Já estive em outras festas como esta...

Experiente e esperta, ela não perdeu a oportunidade e, mostrando-se interessada, passou a fazer perguntas a Fefê, querendo saber onde ele tinha ido, com quem tinha ficado, se as festas a que ele se referia tinham o mesmo padrão daquela.

O rapaz, na medida em que conseguiu falar de si e das coisas que fazia, começou a se desinibir um pouco. Tanto que, em determinado mo­mento, a jovem achou que era chegada a hora de levá-lo para a pista de dança.

Vamos dançar? — convidou.

Mais uma vez, o castelo de Fefê desmoronou.

Rubro como um tomate maduro, ele resmungou:

Não danço. Não gosto de dançar

E, em voz baixa, olhando para o copo de vodca, disse:

Prefiro ficar conversando...

Quantas vezes, ao ouvirem essa frase, as moças com quem estivera levantaram-se e, dizendo "pois eu prefiro dançar; vim aqui para dançar", já o deixaram plantado...!

Mas, desta vez, aquela ruiva simpática e bonita não agiu assim. Com um sorriso meigo, ela segurou a mão de Fefê e concordou:

Então vamos conversar, querido... O que importa é que você se sinta bem.

Nesse momento, Erik e a morena com quem estivera dançando aproximaram-se, e esta pediu à ruivinha que a acompanhasse até o toalete, com a tradicional desculpa de retocar a maquilagem.

O que foi? — perguntou Erik ao rapaz. — Por que você está tão vermelho? Será que foi excesso de vodca?

Fefê ficou ainda mais vermelho e, embora tentasse arrumar uma desculpa, foi em vão. Erik deu-lhe uma palmada no joelho e, em meio a uma risada divertida, confortou-lhe:

Não fique assim, rapaz! Isso é absolutamente natural!

Inclinando-se na direção do companheiro de noitada, admitiu:

Quando eu era jovem e tinha a sua idade também me atrapalha­va com as mulheres muito bonitas... Só que, naquela época, eu não podia contar com nenhum auxílio, e você, pelo menos hoje, pode!

Fefê franziu as sobrancelhas, intrigado, e Erik, tirando do bolso um tubinho de alumínio, destampou-o, pôs na palma da mão um diminuto comprimido azul e continuou:

Tome um. Com vodca. Vai ver como tudo muda...

Fefê fez um gesto de recusa, alegando:

Obrigado... Não uso drogas.

Não é uma droga, meu amigo. É um... aditivo. Um potencializa­dor. Tome! Não vai se arrepender!

E, com expressão séria, insistiu:

Você não pode imaginar que eu, que vou fazer negócios tão im­portantes com você, haveria de querer lhe impingir uma droga, não acha? Temos todo um futuro de grandes transações pela frente!

E, para dar mais confiança ao rapaz, engoliu o comprimido que estava oferecendo para ele. Pondo outro diante de Fefê, disse:

Tome logo, antes que as moças cheguem... E, depois, faça a ruivinha engolir um também...

O rapaz não teve mais forças para recusar. Apanhando o comprimi­do, meteu-o na boca e, com a ajuda de um gole de vodca, engoliu-o.

Erik sorriu, satisfeito. As coisas estavam sendo mais fáceis do que imaginara. Fefê estava caminhando a passos largos para sua mão, e ele, por sua vez, não poderia se queixar da sorte.

Era bem verdade que o holandês tinha forçado um pouco essa sorte. Fefê não aparecera por simples obra e capricho do acaso, mas sim por­que Erik tinha pesquisado e procurado no ambiente certo. Ele precisava de alguém, de um jovem exatamente como Fefê, e esse tipo de pessoa só poderia ser encontrado em determinado meio.

Queimado como o holandês se encontrava entre os proprietários de casas noturnas — por causa de alguns golpes que aplicara, por exem­plo, entregando mercadoria sem qualidade — ele jamais conseguiria novos negócios. Assim, necessitava de um intermediário. E esse inter­mediário precisaria ser alguém que quisesse sempre parecer ser mais do que os outros, alguém ambicioso, alguém como Fefê, que acreditava ser o que não era.

Assim pensando, Erik fora buscar esse intermediário entre um grupo de jovens de classe média alta e procurando colimar aqueles mui­to adequadamente classificados como novos ricos. Estes seriam seus al­vos prediletos, uma vez que gostavam de ostentar, sentiam necessidade de se impor pelo dinheiro e — o mais importante — dificilmente teriam preparo de vida suficiente para perceber que estariam sendo vítimas de uma armadilha.

E, se o alvo fosse um rapaz complexado, melhor ainda.

Foi justamente nesse aspecto que a sorte do holandês se manifestara.

Ele encontrara Gustavo por acaso — de fato, esse acaso já tinha sido bastante dirigido, pois Erik sabia que o Piola era um restaurante fre­qüentado por jovens do tipo que ele buscava. Trocara algumas palavras com Gustavo e, percebendo que este, especificamente, não seria o ver­dadeiro alvo de suas buscas, resolveu investigar um pouco mais a fundo o grupo com que se relacionava. Tinha a esperança de que, entre os amigos de Gustavo, pelo menos um poderia ser manipulado por ele.

Por isso, no dia seguinte, apareceu no happy hour do Pandoro, local onde Gustavo dissera que sua turma habitualmente se encontrava.

E foi assim que ele descobriu Fefê, um rapaz que aparentava grande poderio econômico, que mostrava total independência de ação, mas que, no fundo, dependia intrinsecamente do pai, de uma mesada e das aparên­cias. Não tinha sido nem um pouco difícil para Erik, homem experiente e esperto, perceber que Fefê era um autêntico poço de complexos.

Daí a alimentar um pouco mais o ego do rapaz, fazer com que ele se imaginasse um grande e respeitado executivo, fora um passo muito curto e rápido. Depois, perceber que um dos maiores complexos de Fefê era justamente com relação às mulheres fora uma banalidade. Bastava ver a maneira como o rapaz falava e confrontar com seus modos no instante em que uma mulher se aproximava.

Para cumular, Fefê possuía — ou melhor, sua família possuía — uma empresa de exportação e importação que lidava principalmente com produtos químicos. Era juntar a fome com a vontade de comer! Erik tinha encontrado sua mina de ouro e não a desprezaria por nada no mundo.

Bastaria, apenas, fazer com que Fefê, de um momento para o outro, passasse a depender dele muito mais do que de qualquer outra pessoa.

E um dos caminhos mais fáceis para conseguir isso seria exatamen­te aquele que estava trilhando naquele instante — fazendo o rapaz ingerir aquele estimulante para, dentro de alguns minutos, estar se sentindo um verdadeiro super-homem...

 

Não foi preciso mais do que cinco minutos, e Fefê começou a sentir uma incrível e deliciosa euforia. Tudo para ele parecia ser maravilhoso; tudo ao seu redor era fantástico; qualquer coisa que Erik ou as moças dis­sessem era engraçado, divertido, agradável de ouvir.

E o melhor era que, a cada vez que a ruiva lhe tocava o braço, parecia que um choque elétrico passava por seu corpo, um choque cuja sensação era deliciosa e erotizante. E ele estava perfeitamente lúcido, até parecia que seu raciocínio estava mais rápido, suas palavras mais espirituosas.

Por seu lado, Erik apresentava um comportamento semelhante. Grandalhão e divertido, seus gestos eram sempre amplos, sua voz, de um baixo profundo, ressoava sem, contudo, desagradar.

As duas moças, imediatamente, perceberam que seus companhei­ros não estavam agindo normalmente, e a morena perguntou:

Mas o que foi que vocês tomaram? Andaram cheirando pó?

Em vez de responder, Erik lhe deu um de seus pequenos comprimi­dos e entregou outro para a ruiva.

Tomem, meninas — ofereceu ele. — E verão que esta noite será inesquecível!

As duas mulheres não vacilaram e engoliram os comprimidos.

Nesse exato momento, a música parou, os pares que estavam na pista de dança voltaram para suas mesas e, de repente, tudo ficou escuro.

Ouviu-se um rufar de tambores, como acontece nos circos antes de uma apresentação especialmente arriscada dos trapezistas, e um foco de luz se acendeu iluminando o meio da pista.

Ali, uma mulher lindíssima, vestida de odalisca, começou um show de strip-tease.

Enquanto ela, com movimentos sensuais que imitavam uma dança do ventre extremamente erótica e excitante, tirava um a um os véus que constituíam sua já reduzida indumentária, Fefê perguntou a Erik:

O que são esses comprimidos?

Por que quer saber? — indagou, por sua vez, o outro. — Não está se sentindo bem?

Pelo contrário! — exclamou o rapaz. — Acho que nunca me senti tão bem quanto agora! Por isso quero saber. Para poder comprar mais!

Você não precisa comprar nada — disse o holandês. — Posso lhe arrumar quanto quiser.

E, quase cochichando ao seu ouvido, confidenciou:

É um comprimido que só existe, por enquanto, na Holanda. Nós o chamamos de superecstasy.

Pois é maravilhoso! — afirmou Fefê. — Estou me sentindo um verdadeiro leão!

O holandês deu uma risada e explicou:

O ecstasy normal, esse que é vendido em qualquer lugar, apenas faz com que você fique excitado, com todos os sentidos mais alertas. Este, além de ter esse efeito, proporciona uma excitação sexual intensa. E você vai poder comprovar o que estou dizendo daqui a pouco...

Mas não faz mal à saúde? — quis saber Fefê. — Há vários casos registrados de morte por causa de ecstasy...

Este não faz nada além de deixá-lo alegre, sensível e... um verda­deiro touro! Pode acreditar! Você acha que eu tomaria se fizesse mal? E olhe que já não sou nenhum moleque...!

O rapaz não teve o que dizer. Na verdade, não teve nem mesmo tempo de pronunciar mais qualquer coisa, pois a ruiva, ronronando como uma gata no cio, já o estava agarrando, beijando-o com volúpia e arrastando-o para fora da mesa, seduzindo-o:

Venha, benzinho... Venha apagar esse fogo que você acendeu em mim...

 

Fefê ficou agradavelmente surpreso, na manhã seguinte, ao acor­dar bem-disposto, apenas com mais sede do que o habitual. Ao contrário do que acontecera quando experimentara um comprimido de ecstasy, em outra ocasião, e quando sentira-se mal no dia seguinte, parecia-lhe desta vez que o mundo era todo cor-de-rosa... Nem mesmo estava com dor de cabeça, apesar de todo o álcool que ingerira.

As três horas da tarde, Erik telefonou dizendo que gostaria de en­contrá-lo para combinar a importação.

Estou com pressa — disse-lhe o holandês. — A empresa im­portadora está me pressionando; eles precisam dessa mercadoria o mais rápido possível.

O rapaz anotou os dados burocráticos que Erik lhe forneceu e ga­rantiu que, no final do expediente, tudo estaria pronto, e só precisaria que o representante legal da empresa importadora assinasse os papéis.

Depois disso, é só uma questão de agilizar as coisas — garantiu Fefê. — E, em menos de uma semana, estará tudo pronto, bastando pro­videnciar a remessa da mercadoria e o desembaraço aqui no Brasil. E isso, pode acreditar, será a parte mais fácil.

E como você está? — indagou Erik, com um tom de sorriso na voz.

Melhor do que nunca! — respondeu o rapaz. — Aquele troço é sensacional! Você precisa me arrumar um pouco mais...

Não se preocupe quanto a isso. Já lhe disse que você terá quanto quiser.

Fez uma pequena pausa e finalizou:

Mas, por enquanto, a prioridade é essa importação. Você pre­cisa conseguir resolver tudo o mais depressa possível. Dessa sua agilidade vai depender a continuidade das operações e, como conseqüência, muitos grandes negócios que teremos pela frente!

Garantindo, mais uma vez, que isso não seria problema, Fefê des­ligou.

Foi nesse momento que ele começou a sentir o cansaço pela noite de extravagâncias que tivera.

Levantou-se, tomou um café, caminhou um pouco pelo escritório e, controlando-se para não se debruçar sobre a escrivaninha e dormir, tratou de cuidar da documentação que a importação exigia.

Evidentemente, ele não poderia fazer tudo sozinho, primeiro por­que não tinha conhecimento de todo o processo — ele jamais se pre­ocupara em aprender — e, segundo, porque as assinaturas tinham de ser de seu pai ou de seu irmão, Gilberto, que se encontrava nos Estados Unidos — e ele não tinha uma procuração da empresa para poder assi­nar em seu nome.

Assim, depois de ter preenchido todos os formulários, foi levar para o pai assiná-los. Fernando olhou surpreso para o filho caçula e perguntou:

O que é isso? Não me lembro de ter iniciado qualquer negocia­ção com essa firma!

É um cliente novo, que eu consegui — respondeu Fefê. — Um bom negócio, mas que precisa ser feito depressa.

Fernando avaliou toda a documentação que o filho lhe trouxera, deu um sorriso e disse:

Está tudo certo, Fefê! Parece que você, finalmente, está vestin­do a camisa de nossa empresa!

O rapaz nada respondeu, e o pai prosseguiu:

É uma importação pequena, mas de bom valor. Se houver continuidade...

Assinou os papéis, devolveu-os para o filho e disse:

Peça para a Clara lhe dizer o que é preciso fazer de agora em diante.

Já sei, pai. Daqui a pouco vou apanhar as assinaturas do repre­sentante da empresa e, amanhã cedo, já estarei cuidando do restante.

Fernando anuiu com a cabeça e, com um sorriso feliz, admitiu:

Fico muito satisfeito vendo esse seu progresso, Fefê. É muito bom ver que você também é capaz de captar clientes para nós!

Ao contrário do que se deveria esperar, o rapaz não deixou a sala do pai entusiasmado com suas palavras. Muito pelo contrário, ele teve de se controlar para não manifestar qualquer sentimento da revolta que, mais uma vez, sentia.

"Então, ele achava que eu jamais seria capaz de fazer alguma coisa mais séria...", pensou Fefê, ao dar as costas para o pai. "Mas ele não perde por esperar... Não perde mesmo!"

O início da reunião com Erik foi um imenso sacrifício para Fefê. Sentia-se cansado, com muito sono, parecia-lhe que o holandês falava com ele de muito longe, suas palavras chegando-lhe aos ouvidos como se viessem do fim de um túnel. Já tinha sido difícil chegar dirigindo ao Pandoro, e por vários momentos quase adormecera nos momentos em que o trânsito, sempiternamente pesado e engarrafado, se estagnava.

Pediu um café bem forte e, quando o holandês chegara, estava qua­se dormindo.

É o efeito do comprimido — explicou Erik. — Nas primeiras vezes em que se toma, ele faz isso. Depois, você aprende a combater esse efeito colateral e se acostuma.

Pediu para o garçom trazer uma dose de vodca para o rapaz e um uísque para ele, aconselhando:

Neste instante, o melhor remédio é um bom copo de álcool. Você vai ver como melhora.

Erik estava certo. Dez minutos depois de ter tomado, de um só tra­go, a dose de vodca, Fefê já estava bem melhor, mais desperto e conseguiu entregar a papelada para o holandês, explicando-lhe onde o representan­te da importadora tinha de assinar.

Para sua surpresa, foi o próprio Erik que assinou os papéis.

A empresa é minha — explicou ele. — Tanto aqui como na Holanda.

E, entregando-lhe os documentos, perguntou:

Você estará livre amanhã à noite? Temos um programinha, se você quiser...

Fefê sorriu. Mesmo que estivesse comprometido até a raiz dos cabelos, ele daria um jeito. Já fazia uma idéia do tipo de programa que o novo amigo proporcionava e não perderia aquela oportunidade de jeito nenhum!

O que você tem em mente? — indagou, com o intuito de não se mostrar ansioso.

São duas amigas — respondeu Erik. — Chegaram anteontem dos Estados Unidos e...

Fez uma expressão bastante significativa, e Fefê adiantou:

Tudo bem... Darei um jeito de estar livre. Apanho você no seu hotel.

Não estou mais no hotel. Com a chegada das meninas, estou no apartamento delas.

No guardanapo, escreveu um endereço e entregou-o para Fefê, complementando:

Chegue cedo. Marquei com as meninas às nove da noite. Samira, a que mora nos Estados Unidos, quer preparar o jantar. E ela é uma grande cozinheira. Pode acreditar!

Na verdade, Fefê não estava nem um pouco interessado nos dotes culinários da moça, mas sim em outras "habilidades" dela.

O que ela faz nos Estados Unidos? — perguntou.

Ela é modelo fotográfico — respondeu Erik. — Não teve muito sucesso; você sabe como as coisas são. Para sobreviver, ela se apresenta como dançarina em night clubs. Conheço melhor a amiga dela — já tra­balhou para mim, na Holanda. Atualmente, ela está vivendo no Brasil e, como representante de vendas, às vezes precisa ir aos Estados Unidos. O apartamento é dela.

Então a tal Samira é dançarina... — indagou o rapaz, com ex­pressão sonhadora, já imaginando a moça. — Ela é bonita?

Muitíssimo! Aquele tipo de árabe que tem uma sensualidade à flor da pele... Você precisa vê-la apresentando a dança do ventre ou a dos sete véus...!

Fefê sorriu. Ele bem podia imaginar, e a imagem de uma odalisca volteando ao seu redor surgiu em sua mente.

Guardou o endereço na carteira e garantiu:

Estarei lá, Erik. Você já conseguiu me deixar muito mais do que curioso!

O holandês se levantou e, estendendo a mão para o rapaz, salientou:

Estou um pouco apressado, hoje. Preciso chegar cedo ao aparta­mento, pois tenho algumas coisas a tratar com Helen...

Helen? — indagou o outro, com expressão interrogativa. — É esse o nome da amiga da Samira?

Sim — respondeu o holandês. — E eu não devo deixá-la espe­rando. Você entende, não?

Fefê sorriu maliciosamente. Sim, ele entendia. Ou, pelo menos, pen­sava que entendia. E sentiu, em seu íntimo, uma grande inveja de Erik. Ele, pelo menos, tinha alguém que o estava esperando, alguém que lhe abriria a porta de seu apartamento e, possivelmente, as portas do coração. Deveria ser muito agradável essa sensação de ser esperado, de chegar em casa e al­guém beijá-lo, abraçá-lo, mimá-lo... Erik era um homem feliz.

E ele? Quem o esperaria? Algum dia teria alguém a esperá-lo, com saudades e carinho?

Fefê pagou a conta e, começando outra vez a sentir cansaço, foi para casa, onde ninguém, nem mesmo sua mãe, o estaria esperando.

"Também, ela já está tão acostumada com as minhas chegadas de madrugada... Esperar por mim para quê?", pensou ele, já se dirigindo para a rodovia Raposo Tavares. "Hoje, até é bem capaz que ela se assuste ao me ver chegar para o jantar!"

Nesse momento, o telefone celular tocou. Era Marialva, mãe de Fefê, que o elogiou:

Seu pai me contou do novo cliente que você conseguiu, meu filho. Fiquei muito feliz! Eu sempre soube que você, um dia, haveria de ser um grande executivo!

E, sem dar tempo para que o rapaz dissesse qualquer coisa, ela completou:

Eu gostaria que você viesse jantar em casa, hoje. Estou pre­parando aquela peixada que você gosta tanto, e seu pai quer abrir uma garrafa de champanhe...

Fefê aquiesceu, sorriu intimamente, embora a idéia daquele jan­tar, no fundo, o desagradasse. Mais uma vez, seus pais estavam mostrando que era absolutamente surpreendente o fato de ele ter conquistado um cliente para a empresa. Tão surpreendente que seu pai comentara em casa, e o fato merecera um jantar especial, regado a champanhe.

Explicando à mãe que ele já estava a caminho de casa, desligou o telefone e pensou: "Só espero que esse entusiasmo todo possa repre­sentar algum dinheiro a mais para o meu bolso... Estou quase a zero outra vez e, se amanhã eu precisar gastar alguma coisa, terei de entrar no cheque especial!".

 

O jantar transcorreu às mil maravilhas, e Fefê chegou a se surpreen­der com o apetite que sentia. Fazia, realmente, muito tempo que ele não comia com tanta vontade e, melhor ainda, conseguindo apreciar o sabor. É verdade que estava mais do que acostumado a pratos finos, a verdadeiras obras de arte de chefs de cozinha dos melhores restaurantes de São Paulo. Entretanto, era pouco provável que, efetivamente, conseguisse sentir o paladar daquilo que comia. Havia sempre aquela gastrite para atrapalhar, havia sempre um senão qualquer que o irritava e, no fundo, sempre esti­vera muito mais preocupado com o preço — quanto mais caro, melhor — daquilo que mandava vir para a mesa, do que com o verdadeiro prazer de comer. Já aquela peixada, feita com carinho e temperada com o orgulho da mãe, pareceu-lhe um manjar dos deuses.

Só houve um momento, durante toda a refeição, que o decepcio­nou. Foi quando Fernando, muito sério, disse:

— Quando recebermos a comissão sobre essa transação, mandarei depositar em sua conta bancária o valor de sua parte no negócio. É assim que acontece com seus irmãos e é assim que será com você.

O rapaz nada disse. Sabia que seria inútil argumentar e que, afinal de contas, o pai até estava sendo bastante magnânimo. Ele poderia ter dito que lançaria essa importância em sua ficha de conta corrente na empresa, o que significaria que ela desapareceria de imediato na subtração de seu débi­to. E ele tinha dito que depositaria o dinheiro em sua conta. Logo, seria um dinheiro que o próprio pai estava considerando extraordinário.

Com isso, portanto, sua situação financeira não se resolveria, pelo menos de imediato. E ele estava precisando tanto de dinheiro!

Fefê disfarçou um suspiro de desalento e, para mudar o assunto, perguntou:

E o Gilberto? Quando vai voltar?

Ele vai demorar um pouco mais do que prevíamos — respondeu o pai. — Marina só vai se casar em dezembro, e ele precisa estar lá para ajudar a pôr em ordem o escritório e a carteira de clientes. Com isso, você terá de ficar no lugar dele por mais algum tempo.

Sorrindo, deu uma palmada amistosa no ombro do filho e acres­centou:

Mas isso não tem importância nenhuma! Você está desempe­nhando bem, agora! E tenho certeza de que ainda vai ficar bem melhor!

Servindo mais champanhe para si e para o rapaz, indagou:

Como você conheceu esse holandês?

Fui apresentado a ele num happy hour — explicou Fefê. — Disse-lhe que trabalhava com importação e exportação.

Modificando um pouco a verdade, a seu favor, o rapaz continuou:

Ele estava com dificuldades para realizar essa importação em tempo hábil e eu lhe disse que, para nós, seria fácil conseguir o prazo que ele precisava.

O pai assentiu com a cabeça e ressaltou:

Mas é realmente difícil conseguir tudo em tão pouco tempo. Graças a Deus que nós temos uma porção de conhecidos na alfândega e na Receita Federal... Se não pudéssemos contar com essas pessoas, certa­mente estaríamos nas mesmas condições das outras empresas.

E, olhando intensamente para o filho, disse:

Para que as coisas andem mais depressa, será preciso que você ajude, Fefê. Você terá de ir pessoalmente levar a documentação e destravar a máquina burocrática. E é uma coisa que dá bastante trabalho e aborrecimento...

Não se preocupe, pai — retorquiu o rapaz. — Essa conta é mi­nha. Sei que haverá muitas outras transações a serem feitas com o Erik. Vou cuidar de tudo; pode deixar.

E foi, efetivamente, o que ele fez. Já no dia seguinte, bem cedo, Fefê estava de pé, engravatado e pronto para iniciar a peregrinação, por incontáveis departamentos e repartições públicas, necessária à agiliza­ção de um processo que, normalmente, levaria cerca de um mês para estar pronto.

Ao vê-lo assim vestido e arrumado à mesa do café-da-manhã, coisa que jamais acontecia, pois Fefê não costumava acordar antes de onze ho­ras da manhã, Marialva sorriu e disse:

— Você está bonito, Fefê! Até parece um alto executivo!

O rapaz mordeu com raiva o lábio inferior, mas não retrucou. Ape­nas esboçou um sorriso, tomou seu café e, explicando à mãe que teria um dia muito cheio, saiu.

Trabalhou — talvez, realmente, pela primeira vez na vida — com uma dedicação surpreendente e, no fim do dia, ao voltar para o escritório, sentia-se bem, com a sensação do dever plenamente cumprido.

Durante todo o tempo, porém, seu pensamento não se afastou da combinação que tinha feito com Erik. Não deixou de pensar no programinha especial que deveria começar um pouco antes do jantar e não deixou de sonhar com Samira dançando só para ele...

O prédio em que se localizava o apartamento de Helen era um edi­fício antigo e bonito, em Higienópolis, um dos bairros residenciais mais sofisticados de São Paulo, um desses edifícios tipicamente de classe média alta, no qual seria difícil imaginar a existência de um apartamento onde se pudesse fazer uma farra.

— Só falta essas duas serem duas meninas daquele tipo que não faz nada... — murmurou Fefê, já no elevador.

Sacudiu a cabeça, naquele seu gesto de jogar para trás a imaginária mecha de cabelos, e tentou afastar de si esses pensamentos.

"Absurdo pensar isso! Só o fato de serem amigas do Erik já teria de ser suficiente para que eu soubesse quem elas são e o que podem fazer!"

Mais uma vez, a imagem de uma odalisca dançando passou por sua mente, e ele respirou fundo quando o elevador parou no décimo segundo andar.

Não precisou tocar a campainha, pois Erik já estava abrindo a por­ta do apartamento e exclamando, com seu vozeirão:

Entre, Fefê! Sinta-se em casa!

Justamente o que era extremamente difícil para ele... Assim que transpôs a soleira da porta, o rapaz começou a sentir aquele característico calor no rosto, a voz que parecia presa na garganta e as pernas um tanto quanto trêmulas.

E ficou ainda mais inibido ao ver, sentadas no sofá, as duas moças.

Erik apresentou-as, mencionando:

Helen, amiga de muitos anos, companheira de muitas venturas e desventuras... E Samira, a nossa dançarina...

Muito vermelho e encabulado, Fefê cumprimentou-as e sentou-se na poltrona próxima do canto do sofá onde estava Samira.

Enquanto Helen ia buscar as bebidas, ele procurou observar me­lhor a moça que estava ao seu lado, inclinada para a frente, arrumando espaço na mesa de centro.

Era, realmente, muito bonita. Morena, com longos cabelos negros e lisos emoldurando um rosto de linhas suaves e harmoniosas, Samira não disfarçava suas origens árabes. Seus olhos, escuros, grandes e profundos, pareciam ler os pensamentos que estavam passando pela cabeça de Fefê. E esses pensamentos tornaram-se ainda mais libidinosos quando o rapaz desviou o olhar para o corpo da jovem, mal escondido sob uma roupa marroquina, semi-transparente.

Samira percebeu para onde se direcionavam os olhos do rapaz e, com um sorriso, esclareceu:

Esta é a roupa que eu uso, em Nova York, nos meus números de dança do ventre...

Se Fefê já estava vermelho, ao ouvir aquela frase, ficou mais rubro ainda. Gaguejou alguma coisa elogiando a indumentária da moça e, nesse instante, Helen entrou na sala, acompanhada por Erik, trazendo a ban­deja com uma garrafa de vodca, outra de uísque, um balde de gelo, copos e... o tubinho de comprimidos do holandês.

Fefê teve de se controlar para não estender a mão em busca da droga. Entretanto, procurando a todo custo manter uma aparência comedida, ele não o fez. Foi Erik que, com um sorriso, depois que Helen tinha servido bebida para todos, apanhou o tubo e entregou um comprimido para cada um, anunciando:

A noite promete ser boa... E, com o nosso aditivo, será melhor ainda!

Erik, Fefê e Helen tomaram, mas Samira deixou o comprimido que o holandês lhe tinha dado num cantinho da mesa e, sentando-se no chão, perto de Fefê, perguntou-lhe:

Já tinha tomado isso antes?

Sim — respondeu ele. — E achei maravilhoso!

Pode ser maravilhoso — disse a moça. — Só que apresenta um grande perigo...

Fefê olhou para ela, olhou para Erik com uma expressão interrogativa e surpresa, e este se apressou em explicar:

O superecstasy pode despertar paixões... E as paixões sempre tra­em perigos e problemas...

O rapaz sorriu, já começando a sentir a euforia provocada pela dro­ga, e disse:

Pois eu acho que uma paixão, de vez em quando, até que é muito bom!

Olhando para Samira, completou:

Principalmente quando a paixão é por uma mulher bonita...

Samira sorriu, pousou a mão sobre o joelho de Fefê e provocou:

No meu caso, por um homem tão simpático e atraente...

Em seguida, levantou-se, pegou o comprimido na mão e, puxando fefê pelo braço, convidou:

Venha comigo... Vou acabar de preparar o jantar e será bom tê-lo ao meu lado.

Com um olhar, mostrou Erik e Helen, que estavam se beijando, e concluiu:

E, assim, podemos deixar esses dois sozinhos por um momento.

Fefê acompanhou Samira de bom grado. Primeiro, porque estava se sentindo terrivelmente atraído por ela e, segundo, porque, se ficasse na sala, o máximo que conseguiria fazer seria ficar olhando o outro casal trocando carícias na sua frente. E, de cenas desse tipo, ele já estava mais do que farto.

Chegando à cozinha, Samira mostrou-lhe o fogão, sobre o qual, em fogo brando, as panelas trepidavam na fervura. Aproveitando que o rapaz estava olhando o interior das panelas, disfarçadamente ela jogou, no ralo da pia, o comprimido que ainda estava segurando e abriu a torneira.

Já comeu um cuscuz marroquino? — perguntou ela.

O rapaz fez que não com a cabeça, e Samira explicou:

É um prato árabe típico, à base de semolina, temperos e carne de carneiro. Eu trouxe os ingredientes principais de Nova York porque, na última vez que quis prepará-lo aqui, não consegui encontrar semolina pura, de boa qualidade.

Fefê estava muito perto dela, ouvindo-a falar sobre culinária, vendo-a mexer nas panelas com uma colher de pau. Samira percebeu seu olhar, virou-se, deu-lhe um rápido beijo sobre os lábios e arriscou:

Você nunca cozinhou nada em sua vida, não é mesmo?

E, antes que ele pudesse responder, ela completou:

Pois você vai ver que um prato como esse, que já por natureza pode ser bastante afrodisíaco por causa do tempero forte, fica ainda me­lhor quando é feito a dois...

Samira tinha razão. Depois do cuscuz, de alguns doces carregados de gergelim e mel e da dança do ventre magistralmente executada pela moça, durante todo o resto da noite, até o amanhecer do dia, Fefê sentiu-se um verdadeiro sultão de uma só odalisca. No entanto, era uma odalisca que valia por uma dúzia delas ou mais.

Você é o meu sultão... — disse Amina, abraçando-se a Hafez, novamente cheia de desejo. — E eu serei sempre a sua odalisca...

Um sultão tem direito a mais de uma esposa — brincou o árabe.

Lá nas Arábias! — exclamou a moça, beijando-o. — Estamos nos Estados Unidos e aqui a poligamia é proibida!

Afastou-se um pouco de Hafez para poder fixar seu olhar e acrescentou:

E, comigo, mesmo que estivéssemos em Bagdá, você seria só meu, e eu não admitiria que houvesse outra mulher!

Não é assim que reza o Corão — replicou Hafez, sério. — E você tem de ser uma mulher muçulmana. Uma esposa muçulmana!

Amina suspirou e nada disse. Sabia que havia chegado o momento de agir, em vez de responder, pois Hafez contra-argumentaria durante a noite toda, e essa conversa não levaria a lugar nenhum. Era melhor apro­veitar o tempo, e ela bem sabia como fazê-lo.

Puxando o árabe mais uma vez para si, ela murmurou:

Está certo, meu amor... Mas, por enquanto, estamos na América, e você está cansado de saber que eu sou muito mais americana do que muçulmana... E o engraçado é que eu tenho certeza de que você gosta de mim justamente por causa disso!

Hafez não teve o que dizer. Era bem verdade que ele adorava as liberalidades de Amina, apaixonara-se pela sua maneira de fazer amor e dificilmente haveria de trocá-la por qualquer outra mulher no mundo. Entretanto, também sabia que não deveria se deixar levar por essas fra­quezas. Ele tinha de ser um muçulmano, e um bom muçulmano, radical, seguidor dos preceitos do Corão.

Isso, porém, estava se tornando a cada dia mais difícil. Mesmo completamente contra sua vontade, ele estava percebendo que se americanizava, que passava a apreciar o famoso american way of life e que seus ideais religiosos estavam sendo substituídos por outros, muito mais ocidentais e mais consumistas.

Não tinha sido justamente por causa de uma idéia consumista que ele tentara economizar produzindo ele mesmo o explosivo plástico? E qual tinha sido essa idéia consumista? Simplesmente comprar um vestido — obviamente ocidental e bastante indecente — para Amina... E ele acabara por comprar o tal vestido, já pensando que daria um jeito de lançar o valor na relação de despesas obrigatórias com os preparativos para o ato terrorista que ele imaginava ter de praticar dentro de pouco tempo. Inventaria qualquer coisa, afinal de contas todo aquele material que estaria sendo adquirido não teria qualquer espécie de recibo!

Era bem verdade que os emissários ou intermediários de Al-Kayed, com quem ele mantinha contato, principalmente por e-mail, jamais lhe tinham solicitado uma prestação de contas. Tudo era na base da confiança e nem poderia ser de outra maneira. Al-Kayed sabia que poderia confiar em seus homens, mesmo porque eles não tinham outra coisa em mente que não fosse a guerra santa. E ele era um dos homens de Al-Kayed. Um dos homens de extrema importância para seus planos, segundo imagina­va, uma vez que lhe tinha sido dada a missão de encontrar correligioná­rios e, por fim, a de preparar o material para um ato terrorista.

Até encontrar Amina, ele tinha cumprido à risca seu papel. Depois que a moça surgira em sua vida, contudo, as coisas começaram a se mo­dificar um pouco, e Hafez passou a ponderar sobre a validade de alguns dos preceitos que ele vinha tão ferrenhamente defendendo. Assim, por exemplo, questionava a história de a mulher não poder se mostrar e não poder sentir prazer. Ora, uma das coisas que mais o realizava era justa­mente sentir os olhares de todos se voltando para Amina e, conseqüente­mente, para ele mesmo, o felizardo que a estava acompanhando. E a outra coisa era sentir o quanto Amina conseguia ter prazer com ele.

Exatamente como tinha acabado de acontecer naquele instante.

Hafez acariciou os seios de Amina, sorriu ao vê-la se aproximar novamente, e murmurou:

Não adiantaria ter outra mulher, Amina... Você nunca deixa sobrar nada de mim para mais ninguém!

Nesse exato momento, o telefone tocou, e Hafez, com uma expres­são de profundo desagrado, atendeu.

Localizei o homem do explosivo — contou-lhe Mohamed do outro lado da linha. — Deu trabalho, precisei ter muita paciência, mas consegui. Ele pode se encontrar conosco amanhã às duas horas da tarde.

Hafez refletiu por alguns instantes e, por fim, avisou:

Você estará sozinho, Mohamed. Não há necessidade de eu estar junto nessa negociação, e é melhor mesmo que eu não apareça, que ele não saiba, sequer, de minha existência.

Mas há o problema do dinheiro. Você precisará assinar o cheque...

Cheque?! — exclamou Hafez, subitamente colérico. — Mas, como assim, cheque?! Você acha que um negócio desses se paga com che­que? Para deixar todas as pistas possíveis?

Mohamed resmungou alguma coisa, e Hafez continuou:

Você vai pagar em dinheiro. Dinheiro vivo e, de preferência, notas velhas!

Mas não tenho essa importância! — protestou Mohamed. — São vinte e cinco mil dólares!

Hafez teve a impressão de que o mundo caía sobre sua cabeça. Vinte e cinco mil dólares! Era muito dinheiro!

Procurando se controlar, o árabe indagou:

Mas por que tão caro? O plástico é produzido com urânio enri­quecido, por acaso?

E um produto muito controlado, você sabe disso — respondeu Mohamed, depois de alguns segundos de silêncio. — Esse engenheiro meu amigo teve muita dificuldade em convencer o vendedor. Nós não estaremos pagando simplesmente o material, mas o risco que ele correu para consegui-lo.

E, com um tom de voz aborrecido, concluiu:

Agora... Se você acha que é muito caro, posso dizer que não interessa. E vamos procurar outro fornecedor.

Hafez pensou seriamente em dizer que era exatamente isso que de­veria ser feito. Entretanto, ao refletir um pouco melhor, se ele recusasse, teria de procurar outro que arrumasse o explosivo. Ele não tinha a menor idéia de quem pudesse fazer isso, tampouco vontade de pedir esse tipo de informação a qualquer dos intermediários de Al-Kayed. Em seu enten­der, seria o mesmo que confessar sua incompetência, e isso ele não faria de jeito nenhum. Além disso, tendo em vista que havia sido depositada na sua conta a importância de cento e cinqüenta mil dólares para essa operação, os escalões superiores deveriam ter idéia de que o explosivo era muito caro. O problema é que ele pretendia desviar o máximo possível para uso pessoal.

Com um suspiro, Hafez concordou:

Está certo... Passe aqui amanhã de manhã, e eu lhe darei o dinheiro.

Em tom ameaçador, alertou:

E cuide para que o material seja entregue o mais depressa pos­sível! E que seja de boa qualidade; caso contrário, você será responsabi­lizado e punido!

Mohamed desligou o telefone e sorriu, satisfeito, para o homem que estava ao seu lado.

Está tudo certo, Ramón... Ele vai dar o dinheiro — disse ele.

O homem a quem Mohamed chamara Ramón, um indivíduo atarracado, de cabelos muito negros e com todo o aspecto latino-americano, retribuiu o sorriso e comemorou:

Ótimo! Você fica com dez mil dólares e eu com quinze mil... Como combinamos!

Apertaram-se as mãos e separaram-se. Ramón desapareceu no meio da multidão, que, ali em Downtown, ainda circulava pelas ruas, e Moha­med tomou o caminho em sentido contrário, rumo ao estacionamento onde deixara seu carro.

Estava mais do que satisfeito. Conseguira ganhar uma bela bolada e, ao mesmo tempo, satisfazer as exigências de Hafez. Cinco quilos de explosivo plástico! O suficiente para fazer voar pelos ares a Estátua da Liberdade!

A única coisa ruim em tudo aquilo era ter de dividir sua parte com Peter, seu amigo engenheiro, que providenciara seu contato com Ramón.

Já deixando o estacionamento e dirigindo-se para a ponte do Brooklin, Mohamed pensou: "Bem... Acho que não será a única compra. Numa outra, dou um jeito de descontar. Além disso, é preciso saber dividir para conseguir multiplicar! E, de multiplicação em multiplicação, quando estiver com cem mil dólares, desaparecerei! E eles que se arrumem com toda essa história de terrorismo, de Al-Kayed e tudo o mais! Eu quero é sumir no interior do Brasil e viver sossegado o resto de meus dias!"

 

Depois daquela noite, Fefê não tinha cabeça — e muito menos coração — para outra pessoa que não fosse Samira. Ela passou a representar tudo para o rapaz, desde a companhia indispensável para um jantar, até mesmo o ideal e o objetivo de vida. Sua atração por Samira era tão grande que ele nem mesmo sentia mais necessidade de usar o supereestasy quando a encontrava: não se sentia inibido diante da moça, seu rosto não mais se afogueava e, quanto ao desejo... Bem, Samira, por si só, seria suficien­temente estimulante para fazer levantar um frade carmelita descalço e morto há muitos anos.

E, para fazê-la feliz, para recompensá-la pelos momentos agradáveis e inesquecíveis que ela lhe proporcionava, Fefê comprava-lhe roupas caras, pequenas jóias, enfim, gastava a rodo. Bem que ele gostaria de levá-la aos lugares da moda a que estava habituado a freqüentar, aos restaurantes caros, às boates... Ele adoraria estar acompanhado por ela, encontrar alguém de seu grupo e poder apresentá-la, envaidecendo-se:

— Samira, minha namorada...

A primeira namorada, na verdade! Mas disso, desse pequeno e ínfimo detalhe, ninguém no mundo precisaria saber...

Samira, porém, não queria saber desses programas. Alegava que preferiria ficar com ele em casa, cozinhar para ele, ser dele. No máximo, admitia ir a um motel, quando Erik e Helen ficavam no apartamento ou quando tinham alguma visita.

Com isso, com os presentes e noites em motéis — sempre os mais caros e sofisticados — o dinheiro de Fefê escoava como água por um ralo. E tão depressa que o dinheiro que lhe restava e o crédito que lhe sobrava em menos de um mês desapareceram.

Por sorte, nesse intervalo de tempo, ele recebeu sua parte na co­missão sobre a importação da empresa de Erik, e este, ainda, em sinal de agradecimento por tudo ter corrido tão bem, conforme lhe havia prome­tido, entregou-lhe um envelope com dois mil dólares, dizendo:

Não recuse, Fefê. Sei muito bem o que representa um dinheiro que não se espera. Ele deve representar para você o mesmo que a satisfa­ção que eu senti por ter meu problema tão eficientemente resolvido.

De fato, esse dinheiro, somado à comissão que recebera do pai, ajudara-o bastante a manter, pelo menos, o crédito no banco. Entretanto, o rapaz sabia que as despesas que tinha eram muito superiores às entradas que estavam programadas para o mês seguinte. Isso significava simples­mente que ele não teria mais crédito para lançar mão dentro de menos de trinta dias. Era preciso acontecer alguma coisa, era preciso fazer algo para garantir a boa impressão que estava transmitindo para Samira.

Sim, para Samira e apenas para ela, pois, desde que a conhecera, nem mesmo pelo grupo de amigos ele se interessava mais.

E ela fazia bem por merecer o empenho e a dedicação de Fefê. Era carinhosa, meiga, amante ardente e insaciável, tratava-o como se fosse o verdadeiro príncipe encantado de seus sonhos.

À noite, nas camas dos muitos motéis para onde ele a levava, ela mostrava ser a mulher inesquecível, insubstituível.

Essa mudança em sua vida alterou até mesmo o comportamento doméstico e profissional do rapaz. Ele ficava mais tempo em casa — se não estivesse com Samira, onde mais poderia estar? — trabalhava com mais afinco e, de repente, passou a mostrar muito mais responsabilidade dentro do escritório.

E essa impressão de homem sério que ele estava passando aumentou ainda mais quando levou para o pai outro contrato de importação de Erik.

Eu lhe disse que haveria mais — falou ele, sem esconder o orgulho.

Fernando sorriu, satisfeito, parabenizou o filho pelo trabalho que estava realizando e brincou:

Se eu soubesse que um prato de quibes e algumas esfihas teriam esse efeito sobre você, já teria dado um jeito de lhe apresentar uma árabe...

Ao contrário do que seria de se esperar, Fefê não levou a brincadei­ra para o lado ruim. Sorrindo, revelou ao pai:

Acontece que não são apenas quibes e esfihas que eu ando co­mendo, velho... Há também doces cheios de mel, sabia?

Fernando riu, assinou os documentos que o filho lhe tinha entrega­do e, devolvendo-os, continuou:

A vida é assim mesmo, Fefê. As coisas acontecem quando me­nos a gente espera. E pode estar certo de que eu fico feliz por você...

O rapaz já estava saindo da sala, quando o pai lhe perguntou:

E quando vamos conhecer essa sua odalisca?

Em breve, pai... — respondeu ele. — Assim que eu achar que está na hora.

Ao fechar a porta atrás de si, Fefê não pôde deixar de pensar que, por ele, a hora já tinha chegado havia muito tempo. O problema é que, quando sugerira a Samira, no meio de uma noite de amor desenfreado, um domingo em sua casa, com piscina, churrasco e a oportunidade de conhecer seus pais, ela recusara, alegando:

Ainda é cedo, amorzinho... Precisamos amadurecer um pouco mais a nossa relação.

A recusa de Samira deixara-o decepcionado. Essa decepção, po­rém, não durou mais do que alguns minutos, pois, logo em seguida, ela o levou, com suas carícias e seu amor, a viajar por sonhos dignos dos contos de Sheerazade...

E então? — perguntou Erik. — Como está a situação com Fefê?

Está bem — respondeu Samira, de forma evasiva. O holandês fez uma expressão contrariada e insistiu:

Que está bem dá para perceber. O que estou querendo saber é se você acha que ele está no ponto. E não me venha com respostas enigmá­ticas. Você já sabe o que acontece!

A moça respirou fundo e, depois de alguns instantes em que ela pareceu se controlar e procurar as palavras que iria usar, respondeu:

Acho que ele está apaixonado.

Isso é bom... — fez Erik. — Nesse caso, acho que já podemos dar continuidade ao plano.

Samira olhou intensamente para ele e, um tanto constrangida, pediu:

Não o prejudique, Erik. Ele não merece. E um rapaz de boa alma, muito complexado e recalcado. Cheio de problemas.

Não vou prejudicá-lo — disse o holandês, muito sério. — Vou lhe dar uma oportunidade, só isso. Caberá a ele saber aproveitá-la.

Semicerrando as pálpebras, ele continuou:

E também a você estou dando uma oportunidade. Falei hoje, pelo telefone, com a agência em Nova York. Eles vão entrar em conta­to com você e será uma oportunidade de ouro para que consiga o que sempre sonhou.

Samira sustentou o olhar de Erik e, depois de alguns instantes, perguntou:

Você vai manter a sua palavra, Erik?

Alguma vez deixei de cumprir o que prometi?

Ela poderia dizer, naquele momento, que uma coisa é cumprir a pro­messa feita e outra é cumpri-la, mas... sempre cobrando alguma coisa a mais. E era justamente isso que Erik costumava fazer. Ele sempre achava alguma coisa a mais para pedir, ou, melhor dizendo, para obrigá-la a fazer.

Você sabe o que eu quis dizer, Erik — insistiu Samira. — Estou perguntando se esta será a última vez.

Duvido que você não venha a me procurar, no futuro — respon­deu o holandês, com um sorriso maligno. — Acho que, cedo ou tarde, você vai voltar a me telefonar.

A moça não retrucou. Na verdade, ela gostaria de lhe dizer que não, nunca mais haveria de procurá-lo, que realmente aquela seria a úl­tima vez que ela se deixava envolver e, com isso, acabava sempre presa a ele, às suas vontades e às suas ordens. Entretanto, Samira já o conhecia de longa data e sabia o quanto Erik podia ser vingativo. Se ela o desagradas­se naquele momento, era muito provável que ele telefonasse para Nova York e desse um jeito de prejudicá-la.

E, para a moça, aquele contato — que certamente resultaria num contrato — era extremamente importante. Representava sua liberdade; bastava que ela soubesse administrar corretamente a oportunidade.

Assim, ela se limitou a sorrir e a murmurar:

Espero que não precise... Você sabe que estou cansada dessa vida. Quero poder sossegar um pouco e tentar seguir a carreira que escolhi.

O holandês pousou a mão sobre o joelho de Samira e alegou:

Já fiz a minha parte. Agora, falta apenas você fazer o restante da sua. Ele deverá estar em minhas mãos dentro de uma semana. Totalmente em minhas mãos. Basta que você saiba agir direito. Depois, estará livre para fazer o que quiser.

Sua mão subiu do joelho de Samira para sua coxa, provocando uma desagradável sensação de repulsa na jovem. Contudo, ela sabia que tinha de se controlar, tinha de aceitar e ficar calada; caso contrário...

Você sabe muito bem o que deve fazer — disse Erik. — E sabe, também, que é melhor que o faça. Não gosto de ser contrariado...

Inclinou-se para Samira, beijando-lhe o pescoço, enquanto sua ou­tra mão procurava abrir sua blusa para lhe tocar os seios. Samira perma­neceu estática, e o holandês declarou:

Sei que você não gosta de mim, que despreza minhas carícias, Samira. Mas sei, também, que tenho o direito. Foi esse o trato que fize­mos, está lembrada? Você seria minha quando eu bem quisesse... E, neste momento, eu quero!

A moça levantou-se do sofá, disfarçando um suspiro de infelici­dade. Sim, ela lembrava. Lembrava até com muita raiva daquela noite, em Nova York, quando ela estava sem um centavo e sem saber como passaria o dia seguinte. Lembrava-se de ter sido abordada, logo depois de seu número de dança do ventre, por aquele holandês que lhe sugerira passarem o resto da noite em seu hotel. A princípio, ela recusara. No entanto — algum tempo depois, ela descobriria por que havia ficado com ele —, Erik a fizera tomar um drinque e, então... Depois de alguns minutos, Samira passara a achar que aquele homem, e somente ele, seria capaz de satisfazê-la. Acabaram indo para a cama e, já no dia seguinte, ele começara a pressioná-la. Erik conhecia o proprietário do night club onde Samira se apresentava e simplesmente a ameaçara de fazê-la ser demitida, caso não concordasse com o que ele iria lhe propor.

E, dessa maneira, a moça caíra nas garras de Erik...

Primeiro, foram noites e mais noites de orgia, de uma orgia esti­mulada por um desejo que ela não conseguia entender, por uma paixão desenfreada e estranha, que durava enquanto ela estava perto dele. Por mais que Samira tentasse evitar, era sempre a mesma coisa: logo após o jantar, ela começava a desejá-lo, mas a desejá-lo tão intensamente que nem sequer conseguia se controlar. Depois, ela descobriu que ele a estava drogando, estava misturando, nos drinques que lhe servia, alguma coisa que a deixava daquele jeito. Ela estrilou, ameaçou, disse que iria à polí­cia... Mas Erik estava com todas as armas. Com um sorriso sarcástico, ele avisara que, se ela quisesse fazer alguma coisa contra ele, que estivesse à vontade. Só que, com certeza, iria incriminá-la e, como sua situação no Departamento de Imigração não estava regular, ela seria mandada embo­ra dos Estados Unidos e nunca mais poderia voltar. Entretanto, se a moça concordasse com ele, se se dispusesse a ajudá-lo, ele daria um jeito de regularizar sua situação e, além disso, ela ganharia um bom dinheiro...

Samira não tivera escolha e aceitara... Começara a fazer com que outras pessoas se envolvessem com Erik e se tornassem dependentes dele.

Naquele instante, porém, Samira estava pagando seus últimos dé­bitos com Erik. Dependeria, apenas, de fazer com que Fefê virasse mais um de seus escravos...

Com movimentos estudados, porém frios, ela começou a despir a blusa.

Estava para fazer um mês e meio desde que Fefê conhecera Samira quando, em uma noite de quarta-feira, encontrou-a chorando.

— Mas o que houve? — perguntou ele, aflito. — Por que essa choradeira?

Entre lágrimas e carinhos, a moça lhe disse que tinha acabado de receber uma carta de Nova York convidando-a para um ensaio fotográfi­co. E ela não tinha dinheiro para ir.

Seria a oportunidade de minha vida! — queixou-se Samira. — E eu vou perdê-la!

Sem raciocinar, Fefê adiantou:

Não, querida. Você não vai perder essa oportunidade. Pode dei­xar que eu arrumo as coisas para você.

Um sorriso iluminou o rosto da moça, e ela, ainda com os olhos cheios de lágrimas, indagou, ansiosa:

Verdade, Fefê? Você faria isso por mim? Você me emprestaria esse dinheiro?

E, abraçando-se a ele, continuou:

Seria por pouco tempo, querido... Vou ganhar bem com esse ensaio. Poderei lhe devolver o dinheiro assim que receber!

Você não precisa se preocupar com isso, Samira. Só precisa me dizer quando pretende ir, para que eu possa me programar.

Uma sombra de preocupação passou pelos belos olhos da moça, e ela murmurou:

Sexta-feira... Preciso estar lá no domingo...

Era um prazo bastante curto. Nem tanto por causa do dinheiro, uma vez que ele teria, obrigatoriamente, de usar o restante de seu crédi­to no banco. Fefê achava que era pouco tempo para ele poder ficar com Samira...

E quando você vai voltar? — quis saber ele.

Assim que receber o dinheiro do ensaio. Acho que, no máximo, quatro meses.

Quatro meses? — exclamou o rapaz, desconcertado. — Mas por que tanto tempo?

Segurando as mãos de Fefê, ela explicou:

Esse ensaio é para uma revista de moda. Normalmente, só as sessões de fotografias demoram mais de quinze dias. Depois, será preciso conferir tudo, e isso leva outro tanto de tempo. Portanto, cerca de um mês. Aí, vem o lançamento da revista, que é feito junto com o desfile e a apresentação dos modelos. Então, temos de esperar o pagamento, que demora, pelo menos, mais um mês ou um mês e meio.

Mas, se você só vai receber depois de tudo, como é que vai so­breviver em Nova York durante todo esse tempo?

Como sempre fiz... Vou dançar. Sei que Bill, o proprietário do night club onde me apresentava, guardou o meu lugar.

O rapaz empalideceu. Isso ele jamais poderia admitir! Samira, des­de que a conhecera, não poderia se apresentar para mais ninguém! Ela era dele, somente ele é que tinha o direito de vê-la nua, de tocá-la, de usufruir seu carinho e seu amor!

Isso não! — exclamou, com veemência. — Isso eu não vou permitir!

Samira olhou para ele com expressão de surpresa, e Fefê perguntou:

Quanto você vai ganhar nesse ensaio?

Ela sorriu. Balançou a cabeça negativamente e disse:

Sinto muito, meu amor... Sei o que está pensando. Mas isso eu não vou aceitar. Não é tanto assim pelo dinheiro que vou receber com o ensaio. Trata-se de minha vida, de minha carreira, daquilo de que eu gos­to de fazer. Meu sonho é ser uma modelo famosa, requisitada, ser capa de revistas, essas coisas... E, para realizar esse sonho, sempre estive disposta a qualquer tipo de sacrifício.

E era justamente isso que amedrontava o rapaz. Saber, ter certeza de que Samira poderia até mesmo se prostituir para poder chegar a estre­lar uma capa de revista.

Controlando-se para não mostrar o que lhe ia pela alma, Fefê explicou:

Não tenho nada contra você se tornar uma modelo famosa e ser capa de revista. Até acho que vou sentir muito orgulho disso. O que não concordo é você ir dançar num night club.

Mas eu preciso comer, não acha? — protestou a moça. — Preci­so comer, morar, me locomover... E isso não se faz sem dinheiro!

Sei disso. E talvez seja aí que eu possa fazer alguma coisa.

Abraçou-a com força, como se estivesse morrendo de medo de perdê-la, e suplicou:

Desde que você me prometa que não vai a nenhum night club, que vai se guardar para mim...

Samira riu, beijou apaixonadamente os lábios de Fefê e, num sus­surro, disse-lhe:

Mesmo que eu esteja dançando nua, estarei pensando em você, meu amor... Não tenha medo disso!

Fefê afastou-a um pouco e assegurou:

Isso não vai acontecer, Samira. Simplesmente porque você não precisará dançar nua em lugar nenhum. Você vai sair daqui levando o dinheiro necessário para ficar bem instalada e sem passar nenhuma ne­cessidade pelo tempo que precisar. E, depois, você voltará para mim, e aí nos casaremos...

A moça arregalou os olhos. Por um momento, pensou em dizer para ele que casar era coisa que não estava em seus planos, pelo menos pelos próximos dez anos... Mas decidiu calar. Experiente, conhecia muito bem os homens e sabia que as paixões, assim como a maioria das doenças, eram um mal que sarava. Fefê iria sarar. Iria se esquecer dela e, depois que ela voltasse — se voltasse —, ele estaria em outra, cercado de outros interesses e de outras mulheres. O que eles estavam vivendo era muito gostoso, mas ela sabia que cedo ou tarde haveria de terminar. E isso seria o certo. Ela poderia — como de fato estava acontecendo — gostar daquele rapaz. Mas já gostara de outros, já se sentira amada por outros, e sabia que l udo acabaria. Não, ela não queria casar, mas, por outro lado, sabia que não seria prudente dizer isso para ele.

Assim, mostrando-se feliz com a idéia, ela o abraçou sem dizer nada, ciente de que, em certos momentos, o silêncio é sempre a melhor das respostas.

Evidentemente, Samira proporcionou a Fefê uma noite absoluta­mente fantástica e, quando ele acordou, na manhã seguinte, ela lhe per­guntou:

Você acha que eu seria capaz de pensar em outro homem, Fefê? Acha que eu trocaria você por outro?

Era o que o rapaz mais queria ouvir.

Com o ego inflado, ele murmurou:

Vou morrer de saudades, Samira...

Telefonarei todos os dias... Não vou deixar você me esquecer. — garantiu ela.

Como poderia esquecê-la? Você é a mulher da minha vida! A minha mulher!

Samira não retrucou. Limitou-se a beijá-lo com sofreguidão e puxá-lo novamente para si. No entanto, em seu íntimo, ela não se sentia bem. Naquele instante, ela estava se achando uma traidora, uma hipócrita. Estava desempenhando um papel horrível, explorando a ingenuidade de Fefê... Mas o que ela poderia fazer, se era, realmente, obrigada a isso?

Fefê deixou o apartamento com o cenho franzido. Estava profun­damente preocupado com o lado financeiro de tudo aquilo. Precisaria arrumar cerca de quinze mil dólares e tinha de ser imediatamente, pois Samira embarcaria na sexta-feira, ou seja, no dia seguinte.

"Onde vou arranjar esse dinheiro?" — pensou, com desespero. A passagem não seria nenhum problema; ele até poderia comprá-la a prazo. Com certeza, a prestação nem pesaria em seu orçamento. Mas quinze mil dólares em dinheiro vivo...

Isso ele não tinha a menor idéia de como conseguir! Não tinha de onde tirar essa importância e jamais poderia pedir a seu pai. Tampouco tinha um amigo que o pudesse ajudar naquele apuro.

Foi no momento em que estava ligando o contato do carro que se lembrou de Erik.

Nas últimas semanas, a intimidade entre os dois vinha aumentan­do sensivelmente e já se permitiam até mesmo algumas confidências.

Uma delas era o relacionamento entre Fefê e Samira.

Erik mostrava-se muito feliz com o desenrolar dos acontecimentos e vivia entusiasmando o rapaz a sedimentar a relação. Fora o próprio Erik que, certa vez, sugerira que Fefê alugasse ou comprasse um apartamento para Samira e fosse morar com ela.

Ao lembrar do amigo, o rapaz não vacilou. Pegou então o celular e ligou para ele.

Precisamos conversar — disse ao holandês. — Trata-se de um assunto urgente e muitíssimo sério!

Marcaram um encontro à hora do almoço, e Fefê sentiu-se muito mais aliviado ao ouvir o amigo dizer:

— Você parece preocupado, rapaz! Mas não se deixe levar por pen­samentos negativos. Lembre-se de que só não é possível enganar a morte. O resto, por pior que possa parecer, sempre tem uma solução!

Erik escutou em silêncio a história de Fefê e, quando este termi­nou, lembrou:

Não sei com o que você está preocupado, amigo. Dentro de uma semana chega outra carga, o que significa que você vai receber uma boa quantia...

O rapaz mordeu o lábio inferior, balançou a cabeça naquele seu gesto de jogar o cabelo para trás e disse, a contragosto:

Não sou eu quem vai receber a comissão. É a empresa. Eu terei apenas uma pequena participação. Pouco mais de vinte por cento da im­portância que estou precisando.

Erik, muito sério, permaneceu em silêncio, e o rapaz continuou:

Se você puder me adiantar esse dinheiro... Eu poderei ir lhe pagando, acho que em três meses consigo liquidar o débito.

O holandês continuou calado por mais alguns segundos e, toman­do um gole de uísque, revelou:

Não vou lhe emprestar o dinheiro, Fefê. Vou fazer com que você o ganhe e, na verdade, muito mais do que isso...

O rapaz arregalou os olhos e, baixando a voz de forma que somente ele pudesse ouvir, Erik comunicou:

Essa próxima carga vai atrasar.

Antes de Fefê abrir a boca para protestar, garantindo que não ha­veria o menor motivo de atraso, o holandês fez um gesto com a mão, pedindo-lhe que aguardasse, e prosseguiu:

Ela vai atrasar porque vou mandar modificá-la um pouco.

Mais uma vez, Fefê ia dizendo que nesse caso, sim, a carga teria de atrasar por causa da burocracia, mas Erik o impediu, explicando:

E é justamente agora que eu vou começar a usar os seus conhe­cimentos sobre os donos da noite.

Uma vez que Fefê, sem conseguir entender o que o holandês estava querendo dizer, permanecia de olhos arregalados e boca aberta, Erik explicou:

Vou mandar incluir na carga cem mil desses comprimidinhos... superecstasy. Você compreende?

Mas é tráfico! — exclamou Fefê, com expressão de terror. — É uma loucura! Isso dá cadeia!

Erik sorriu e, balançando negativamente a cabeça, alertou:

Só dá cadeia para os imbecis. E nós dois não somos imbecis.

Sempre em voz muito baixa, ele continuou:

Seu trabalho será encontrar proprietários ou mesmo gerentes de casas noturnas que queiram adquirir esses comprimidos a preço de ataca­do. Depois, é só entregá-los e pegar o dinheiro. Cada comprimido, no va­rejo, vale cinqüenta dólares. Ou seja, dez vezes mais do que o comprimido de ecstasy comum. A maioria já o conhece, só não tem acesso ao produto. Por isso, será fácil vender. E nós podemos vender a vinte dólares cada um. Você teria dez por cento da operação.

Fefê fez as contas de cabeça. Cem mil comprimidos de superecstasy renderiam nada menos que dois milhões e meio de dólares. E ele recebe­ria, portanto, duzentos e cinqüenta mil. Era um bom dinheiro.

Mas... — fez ele. — E o risco? Se alguém descobrir?

É para que isso não aconteça que você entra na história — respondeu Erik. — Você conhece as pessoas na alfândega e na Polícia Federal. Você tem, portanto, condições de desembaraçar essa carga sem maiores verificações. Além disso, você conhece as pessoas da noite... Será fácil, como já disse, encontrar os compradores. Em menos de trinta dias, você terá duzentos e cinqüenta mil dólares no bolso!

Se tudo fosse exatamente como Erik estava dizendo, realmente, a transação seria altamente lucrativa. E, de fato, ele conseguiria desembaraçar a carga sem perguntas e sem problemas, por intermédio de seus conhecidos.

De qualquer maneira, você não precisa mais se preocupar com o dinheiro para Samira. Eu o tenho aqui no bolso, por mera coincidência — encerrou Erik.

Assim dizendo, pôs diante dos olhos esbugalhados de Fefê um maço com cento e cinqüenta notas de cem dólares.

Mohamed olhou entusiasmado para o monte de notas de cem dó­lares que estavam sobre a mesa em seu quarto de hotel.

Setenta e cinco mil! — exclamou ele, com um sorriso de felici­dade. — Mais vinte e cinco mil e poderei desaparecer!

Você irá sem mim? — perguntou Esther, acariciando-lhe a nuca.

- Você partiria sem me levar?

Mohamed puxou-a para seu colo e, cobrindo-lhe os lábios com um beijo, assegurou:

É claro que não, Esther! Você teria de vir comigo mesmo que não quisesse, pois é a única pessoa que sabe do meu segredo!

A moça sorriu e, desabotoando a camisa de Mohamed, passou os dedos sobre seu peito peludo.

O árabe olhou para ela e, enfiando a mão sob sua blusa, acariciou- lhe os seios túrgidos, fartos e bem-feitos.

Esther era muito bonita... Realmente, Mohamed jamais tinha co­nhecido uma mulher como ela, que, além de bonita e sensual, sabia tão bem satisfazer seus caprichos e torná-lo feliz.

Não... Ele não a deixaria, em hipótese alguma. E ele estava pouco se incomodando que Esther fosse judia.

Sim, judia! Uma judia bonita, muito loura, alta, com o corpo escultural e com uma sensualidade que chegava a tocar as raias da loucura!

Por isso ele a escondera, por isso ele jamais a apresentara aos ami­gos e, na medida do possível, evitava sair com ela, pois não queria correr o risco de encontrar outro árabe, especialmente se fosse muçulmano, quan­do em sua companhia.

Fora por sugestão da própria Esther que ele acabara por aceitar fa­zer parte da célula de Hafez. E fora por ela, pelo sonho de poder tê-la para sempre, que ele tivera a idéia de roubar, literalmente roubar, de Hafez todo aquele dinheiro.

Ele encontrava perdão para seus atos afirmando para si mesmo que, afinal de contas, não era um terrorista e nem mesmo um muçulmano como deveria ser. Tanto que estava apaixonado por uma judia! Tanto que estava apenas esperando a oportunidade para fugir com ela!

Tudo começara com aquela primeira compra de explosivo plástico. A facilidade com que conseguira enganar Hafez no que se referia ao valor da transação animou-o. E mais animado ficou quando descobriu — em virtude de um descuido do próprio Hafez que, num momento de distra­ção, deixou-o ler uma das mensagens que recebia dos intermediários de Al-Kayed — como poderia arrancar mais dinheiro de seu amigo.

Bom técnico em informática e hacker habilidoso, não foi nem um pouco difícil usar a conta de Hafez e transferir, para várias contas suas, pe­quenas importâncias de forma esporádica. Mohamed agiu com segurança e a certeza de jamais ser descoberto, uma vez que sabia quanto Hafez estava gastando com Amina e que Al-Kayed nunca haveria de pedir uma prestação de contas sobre o dinheiro que enviava. Era importante que houvesse numerário suficiente para ser usado de imediato numa operação qualquer, e era por isso que ele não transferira, nenhuma vez, importância maior do que cinco mil dólares.

Assim, aos poucos, ele tinha conseguido juntar nada menos que setenta e cinco mil dólares!

Falta só mais um pouco — disse ele para Esther. — E poderemos sumir neste mundo!

Esther beijou-o apaixonadamente e murmurou:

Queria ser uma mosca para ver a cara de Hafez quando ele per­ceber a falta do dinheiro...

Como Mohamed nunca sequer tinha comentado sua existência e muito menos pensado em deixar que Ibrahim e Hafez a conhecessem, não lhe foi possível assistir à cena. Mas Mohamed presenciara tudo.

Hafez chegara certa noite ao restaurante de Abdo Farid com cara de quem tinha visto um fantasma. Até mesmo Amina, indefectivelmente em sua companhia e sempre sorridente, estava com um aspecto terrível.

Quando Ibrahim, mais íntimo de Hafez, perguntara-lhe o que ha­via acontecido e por que ele estava com aquela expressão preocupada, o árabe não respondera diretamente; dissera que estava indisposto, que tinha comido alguma coisa que lhe fizera mal. Entretanto, alguns minu­tos depois, quando Abdo Farid servira o jantar — kafta com mijadra e malfuf, pratos que não podem ser considerados leves —, e Hafez comera como um leão, ficara muito claro que ele mentira. Fora somente depois de muito insistir e de garantir que amigos são também para os momentos difíceis, que ele acabara por contar que estava muito preocupado com os gastos que vinha tendo e não sabia explicar de que forma o dinheiro estava escoando daquela maneira.

Mais de sessenta mil dólares em tão pouco tempo! — exclamara Ibrahim, espantado, quando Hafez dissera o montante gasto. — Deve estar acontecendo alguma coisa, ou algum problema no banco... não é possível!

Por que você não solicita uma verificação em sua conta? — su­gerira o próprio Mohamed.

Não posso fazer isso — respondera Hafez, desanimado. — O banco poderia questionar a origem do dinheiro. E aí? O que eu poderia responder?

O banco não tem o direito, nem interesse, de fazer tal pergunta insistira Mohamed, procurando não mostrar seu alívio.

Pode ser — explicara Ibrahim. — Mas, como um pedido de verificação soaria ao banco como uma acusação, meramente como reta­liação, este poderia encaminhar ao Tesouro uma notificação de suspeita. E do jeito que as coisas estão, hoje em dia, uma conta alta, de um árabe, em que a origem do dinheiro não se justifica...

Pois é... — concordara Hafez. — O perigo é exatamente esse. Por isso, não posso fazer nada a não ser tratar de economizar o máximo possível para ter dinheiro em caixa, disponível, caso Al-Kayed me dê alguma missão!

Olhando para Esther com um sorriso divertido, Mohamed contou o que acontecera naquela noite, e completou, levando a mulher nos bra­ços para a cama:

Desde aquele dia, parei de fazer essas transferências. Achei mais seguro. Mas, dentro de mais alguns dias, ele deverá receber uma grande bolada. Aí, farei a última transferência e...

Iremos para o Brasil, não é mesmo?

Sim... Acho que lá ninguém vai nos descobrir, nem poderá nos atormentar...!

Exatamente às dezoito horas da sexta-feira, o Boeing 747 da Varig decolou rumo a Nova York, levando Samira com a bolsa cheia de dólares, a mente cheia de esperanças e o coração carregado de pesar.

Nos últimos dias, ela tinha realmente aprendido a amar aquele ra­paz, passara a entendê-lo e, no fundo, a ter muita pena dele. Fefê mostra­ra-lhe a ingenuidade de uma criança, a carência de um homem solitário e a dedicação de um apaixonado.

E ela levara-o a um tal estado de desespero com sua partida... Ele não merecia isso! Mas, enfim, o que ela poderia fazer? Como mudar a trajetória do destino? Do seu destino?

Entretanto, precisava alcançar suas metas. Era necessário, impres­cindível mesmo, que ela passasse por cima de qualquer obstáculo, até mesmo de um grande amor — ou do amor-próprio.

"Não tenho o direito de ter amor-próprio!", pensou Samira, sen­tindo os olhos se encherem de lágrimas. "Preciso ser objetiva, determi­nada. Só assim conseguirei chegar a ser uma modelo internacionalmen­te conhecida!"

Para agravar a situação, havia a proposta de casamento feita por Fefê. Para qualquer mulher, seria irrecusável. Afinal, apesar de baixinho e mirrado, ele era um excelente partido, um rapaz rico, de boa família, esta­bilizado na vida... O sonho da maioria das moças em idade de casar. Mas o sonho de Samira era diferente. Sempre fora, e ela não o poderia mudar.

A comissária de bordo passou por entre as poltronas enquanto o avião nivelava seu vôo, oferecendo jornais e revistas, distribuindo sor­risos e atenções. Samira enxugou os olhos, retribuiu o sorriso da moça, aceitou uma revista de moda e, acomodando-se melhor na poltrona, pensou: "Tenho tempo para resolver esse problema. Até eu voltar, estou certa de que Fefê já terá me esquecido ou, no mínimo, terá pensado melhor. Ele veio com essa história de casamento no calor do desespero, por causa dessa minha viagem. Foi isso. Na verdade, ele também não quer se casar tão cedo".

Recriminou-se mais uma vez ao lembrar que o rapaz lhe tinha arrumado não apenas a passagem, mas, principalmente, o dinheiro mais do que suficiente para que ela pudesse passar quatro meses em Nova York vi­vendo bem e sem qualquer espécie de preocupação financeira. E, quando ela repetira que lhe enviaria o dinheiro assim que recebesse, ele recusara, alegando que, como sua futura esposa, ela não poderia encarar aquilo como um empréstimo.

— Esse dinheiro é seu. Como vou me casar com você, ele também é meu. Nossos universos se completam, Samira. Fomos feitos um para o outro — declarara ele, já no portão de embarque para o vôo.

Folheando a revista, a moça viu um artigo sobre a vida das modelos em Paris, na Itália, nos Estados Unidos. Sorriu, com amargura, perceben­do que a jornalista que redigira a matéria relatava um mundo cor-de-rosa, rico, bonito, cheio de emoções e mesmo de amores incríveis. Na matéria, era citado o caso de uma modelo que se casara com um príncipe, de outra que tinha se unido a um grande industrial, descrevia uma vida social intensa e invejável. Samira sabia muito bem que aquilo que estava im­presso nas páginas da revista refletia única e exclusivamente as exceções. A grande maioria das moças que se aventuravam por essa árdua trilha não chegava sequer a ser modelo. Ela mesma era um exemplo. O máximo que conseguira fora ser modelo fotográfico... Jamais pusera os pés numa passarela; nunca estivera num desfile de modas.

Sentiu, de repente, uma pontada no estômago. Mais uma vez, ela mentira para Fefê. Dissera-lhe que seria modelo num ensaio sobre moda, mas isso estava um bocado longe de ser verdade. A menos que a moda, a partir daquele instante, passasse a ser andar nua... Seu ensaio era para uma revista masculina e, ainda por cima, das de menor circula­ção. Fora apenas aquilo que Erik tinha conseguido para ela. Na verdade, uma bela porcaria!

Samira, porém, tinha sido obrigada a aceitar... Era isso, ou voltar para os Estados Unidos sem qualquer outra perspectiva. Posando nua para aquela revista, pelo menos ela teria uma chance de ser vista por outro produtor, por um caçador de talentos, por alguém que vislumbrasse em suas formas e em seu rosto a possibilidade de sucesso futuro.

"Fiquei quase dois anos em Nova York e não consegui mais nada, além de ser dançarina de night clubs...", pensou.

Essa era outra mentira com que a moça, permanentemente, procurava enganar a si própria. Ela tinha conseguido outras coisas... Principal­mente no início, quando chegara à grande metrópole sem nada além dela mesma. De seu corpo. E a prostituição foi a única saída que encontrara.

Pelo menos, tinha sido assim até conhecer Erik.

Sacudiu com energia a cabeça, como se esse movimento fosse sufi­ciente para afastar de si essas lembranças.

"Não!", ponderou, respirando fundo. "Não quero me lembrar dessa parte de minha vida! Não posso me lembrar!"

Fechando os olhos, procurou adormecer. Na verdade, estava sen­tindo cansaço. Mexera-se o dia inteiro arrumando suas coisas para a via­gem e, na noite anterior, Fefê não a deixara dormir.

Sorriu, já sentindo a agradável modorra que antecede o sono. Lembrou-se que não tinha sido exatamente assim... Fora dela a idéia de compensar, da melhor maneira que sabia, o amor, o carinho e a dedicação do rapaz.

 

Já na segunda-feira, três dias depois da partida de Samira, Fefê começou a notar que a intimidade e a amizade de Erik tinham desaparecido com­pletamente. O holandês transformara-se, de um momento para o outro, num indivíduo cruel, frio, calculista e exigente. Bastava ver o que tinha acontecido durante o almoço.

Passava um pouco de dez horas da manhã quando Erik ligou no celular de Fefê, dizendo que precisaria conversar com ele, com extrema urgência.

Ora, exatamente naquele momento, o rapaz estava tentando fazer contatos com seus conhecidos da alfândega e da Federal para conseguir desembaraçar a carga que chegaria até o fim da semana, sem qualquer espécie de vistoria. Assim, ele não poderia ir imediatamente ao encon­tro de Erik.

Mas precisa ser já! — dissera o holandês, com uma voz que transparecia irritação.

É impossível, Erik — retrucara Fefê. — Estou aguardando uma ligação importante. Não posso sair do escritório. E é uma ligação exata­mente sobre a sua carga! Vamos marcar para a hora do almoço. Almoça­mos juntos e falamos o que for preciso.

Erik resmungara, dissera que estaria muito ocupado entre meio-dia e duas horas da tarde, reafirmara que o assunto era de extrema urgência, mas acabara concordando.

Está certo — falara. — Se não há outro jeito, almoçamos juntos e conversamos.

Antes de desligar, recomendara, enérgico:

Mas esteja lá ao meio-dia. Não se atrase!

Entretanto, os negócios se complicaram para Fefê, e ele só conse­guira a ligação que estava esperando às onze e trinta. Falara com o ho­mem, conseguira resolver tudo e ter a garantia de que a carga estaria liberada assim que desembarcasse do avião.

Só que você precisará estar aqui pessoalmente para recebê-la — avisara o amigo. — A garantia de que não há contrabando dentro da embalagem é você, meu velho! Portanto, esteja aqui em carne e osso ou eu não libero coisa nenhuma!

Fefê sabia muito bem o que isso queria dizer. Era uma maneira mui­to pouco sutil que o amigo tinha de avisar que uma propina não apenas seria bem-vinda, como também necessária. Aliás, coisa já bastante roti­neira quando se precisava de alguma coisa que, de uma forma ou de outra, tivesse de fugir um pouco das regras estabelecidas.

Pelo fato de essa ligação só ter sido possível tão tarde, Fefê se atrasa­ra para o encontro com Erik. Ao ver que já era quase meio-dia e ele ainda estava saindo do escritório, concluíra que jamais conseguiria chegar no horário combinado. Por isso, telefonara, já a caminho, para o holandês, avisando que seria inevitável pelo menos vinte minutos de atraso.

Ouvira um grito do outro lado da ligação:

Mas eu lhe disse para ser pontual! Cancelei uma reunião para me encontrar com você ao meio-dia!

Por mais que Fefê tivesse tentado se justificar, por mais que tivesse afirmado que o atraso havia ocorrido em razão de um assunto de impor­tância fundamental para ambos, Erik não se acalmara.

E continuara de cara amarrada durante o almoço, praticamente em silêncio.

Foi só no final da refeição que o holandês perguntou:

Já conseguiu encontrar quem compre a mercadoria?

Fefê olhara espantado para ele. Seria possível que Erik estivesse falando sério?

Você só pode estar de brincadeira comigo! — exclamara o ra­paz. — É claro que ainda não tive tempo!

Jamais brinco com meu trabalho — retrucara o holandês, ainda de cara fechada. — Muito menos quando esse trabalho envolve um in­vestimento tão grande! Você já deveria ter na mão o comprador.

Com expressão furibunda, perguntara:

Ou você acha que podemos guardar cinqüenta quilos de superecstasy no bolso até que você encontre quem os compre?

Fefê engolira em seco. Pela expressão de Erik e pelo tom de sua voz, rle realmente não parecia estar brincando.

Depois de um grande esforço, o rapaz explicara:

Nós falamos sobre isso na quinta-feira. Na sexta, Samira viajou. Depois tivemos o fim de semana. Hoje, segunda-feira, passei a manhã toda resolvendo o problema do desembaraço automático da carga. Esta­mos na hora do almoço... E você queria que eu tivesse cuidado da venda dos comprimidos quando?!

Erik respirara fundo, tamborilara com os dedos sobre a mesa e, levantando-se, antes mesmo de tomar o café, alegara:

Você está ganhando uma verdadeira fortuna com esse negócio. Trate de ter até depois de amanhã as pessoas que vão ficar com a droga.

Já se afastando da mesa, completara:

Como você disse, hoje é segunda. Telefone para mim na quarta-feira à noite. Se você não entrar em contato dentro do prazo, pode ter certeza de que vai se arrepender. E, veja bem, o preço mínimo é de dois milhões e meio pelo lote todo!

Com essas desagradáveis lembranças em sua mente, Fefê chegou, às quatro horas da tarde, ao escritório de João Antônio, seu amigo e proprietário de uma rede de danceterias na periferia de São Paulo.

Segundo imaginara o rapaz, esse seu amigo seria a pessoa mais pro­vável para comprar o superecstasy e, por isso, teria de ser a primeira a ser procurada.

Não foi nem um pouco difícil para João Antônio perceber que Fefê estava vivendo um momento de verdadeiro pânico. E isso trans­pareceu no instante mesmo em que ele, muito nervoso, oferecera-lhe a mercadoria.

De perceber o estado de espírito do rapaz a pressentir a possibilidade de um grande lucro foi um passo.

Mandando a secretária trazer um balde de gelo, uma garrafa de vodca e dois copos, ele revelou:

Conheço o superecstasy. É uma droga excelente e pode alcançar bom preço entre a molecada.

Serviu a bebida, ergueu seu copo num brinde mudo e acrescentou, com uma risada:

Aliás, não apenas entre a molecada. Mas também entre os mais velhos, que estão precisando de um... estímulo.

Tomou um gole de seu copo, esperou que Fefê fizesse o mesmo e advertiu:

O problema é que o preço anda muito por baixo... Sabe como é... A polícia tem dado em cima, e a gente tem de dividir os ganhos. Não posso pagar mais do que cinco mil dólares o milheiro.

Um frio intenso passou pelas entranhas do rapaz. João Antônio estava oferecendo apenas um quinto do valor mínimo!

Você só pode estar de brincadeira comigo! — exclamou ele.

E, tomando mais um grande gole de vodca, afirmou:

Não posso vender por esse preço — murmurou ele. — O míni­mo é cinco vezes isso!

Cinco vezes?! — riu João Antônio. — Você é que está de brin­cadeira, Fefê! Onde acha que vai encontrar esse preço? Em Marte?!

Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos e, acendendo um cigarro, João Antônio perguntou:

Quem lhe forneceu a mercadoria? E por quanto?

Antes que o rapaz pudesse dizer qualquer coisa, ele completou, num tom de voz encorajador:

Olhe... Sei que nesse tipo de negócio ninguém conta o fornece­dor. Mas estamos entre amigos, Fefê... Você sabe que eu lhe quero bem. Sabe que eu jamais permitiria que alguém o pusesse numa situação difícil, e é isso que estou vendo acontecer. Você pode me dizer como conseguiu a droga. Não vou atravessar sua transação. Mas basta ver como você está nervoso! Parece até que está morrendo de medo!

E, realmente, os nervos de Fefê estavam à flor da pele, tensos como cordas de violino. Sentia que não conseguiria agüentar mais. Lembrou-se do tom ameaçador de Erik, do medo que sentira do holandês naquele instante, e decidiu:

Não comprei droga nenhuma, João. A mercadoria é de um cliente meu, um importador holandês...

Por acaso ele se chama Erik Jansen? — interrompeu o outro.

Fefê olhou aparvalhado para o amigo.

Você o conhece?

Sim. Já tive negócios com ele. Comprei esse mesmo comprimido, cerca de um ano, um ano e meio atrás.

Com expressão muito séria, João Antônio acrescentou:

Foi a primeira e a última vez. Ele me enganou muito bem, um terço dos comprimidos eram apenas de farinha e açúcar.

Havia ódio em sua expressão quando confessou, com a voz mais baixa:

Bem que eu quis pegá-lo de jeito... Eu lhe teria dado uma lição, por mais que ele tenha fama de ser extremamente perigoso! Mas o ho­mem sumiu! Simplesmente desapareceu do mapa!

Fefê respirou fundo e serviu-se de mais vodca. Mais do que nunca sentiu que estava precisando do apoio do álcool. Estava começando a entender por que Erik quisera que ele fosse o contato com os executivos da noite. Ele, o holandês, não poderia aparecer sob pena de, pelo menos, levar uma bela surra! Erguendo os olhos para João Antônio, perguntou:

Por que você diz que ele tem fama de ser perigoso?

Dizem que ele já eliminou uns dois ou três que ficaram lhe de­vendo dinheiro... E deve ser verdade; basta ver a cara desse gringo!

Mais uma vez, Fefê sentiu o coração lhe bater mais forte dentro do peito. Erik eliminava os devedores inadimplentes...! E ele, naquele instante, era um desses devedores!

Para piorar seu estado de espírito, João Antônio indagou:

Você se lembra do Pedrinho? Aquele maconheirinho que vivia me tomando dinheiro emprestado e que nunca me pagou?

Fefê assentiu com a cabeça, e o outro prosseguiu:

Certa vez, esse Erik deixou na mão dele uma boa quantidade de superecstasy. Queria que ele vendesse os comprimidos, naquela época, por trinta dólares cada um. O coitado do Pedrinho não conseguiu mais do que dez dólares e, graças a Deus, levou a droga de volta para o holandês. Este ficou tão furioso, que lhe deu uma surra homérica.

Servindo mais vodca para o rapaz, arrematou:

Você pode ver que, até hoje, Pedrinho manca da perna esquer­da, quebrada pelo holandês com um taco de beisebol.

Fefê balançou a cabeça, jogando o cabelo para trás e, enfiando o rosto entre as mãos, gemeu:

Então, estou perdido... Não vou conseguir vender esses malditos comprimidos e, além do mais, estou devendo quinze mil dólares para esse holandês!

João Antônio disfarçou um sorriso. O peixe estava fisgado. Levantando-se de sua poltrona, ele contornou a escrivaninha e, pousando a mão sobre o ombro de Fefê, disse:

Não fique assim, meu amigo... Nem tudo está perdido e, garan­to, muito menos você!

O rapaz ergueu a cabeça e, com expressão de absoluto desamparo, perguntou:

O que está querendo dizer com isso?

Estou dizendo que tenho uma saída para sua situação. Uma saída muito boa e que ainda poderá fazer com que você ganhe muito dinheiro!

Voltou para sua poltrona e, em voz muito baixa, revelou:

Só preciso que você responda honestamente às perguntas que vou fazer e, depois, siga direitinho as instruções que vou lhe dar.

— Acho que você forçou muito no preço, Erik — comentou He­len, entrando no carro e destravando a porta para o holandês. — Esse rapaz jamais vai conseguir vender a mercadoria por esse valor!

Erik deu uma risada e, sentando-se ao lado de Helen, replicou:

Talvez ele não consiga, mesmo. Mas isso será bom. Pelo menos vai ficar me devendo o favor de eu não acabar com a carinha dele. E estará nas nossas mãos!

Enquanto a mulher ligava o motor, ele explicou:

Nós já estaremos ganhando bastante se ele conseguir a metade disso. E é o que vai acontecer. Daí, ele levará uma boa surra e perderá alguns dentes. Depois, tudo voltará a ficar bem, quando ele receber alguns dólares. Claro que não vou lhe dar os dez por cento prometidos; afinal, ele não vai ter conseguido fazer a transação pelo valor combinado. Mas, para quem vive gastando rios de dinheiro e que, na realidade, só recebe uma mesada gorda do pai, dez ou doze mil dólares vão lhe adoçar a boca e fazer esquecer as dores da surra. De mais a mais, ele estará preso a nós. Poderemos usá-lo outras vezes, até que ele se torne perigoso. Então...

Fez uma pausa e, com expressão carregada, continuou:

De qualquer maneira, ele já vai levar uns bons tabefes assim que eu o encontrar. A carga chegou já faz mais de duas horas, e ele ainda não entrou em contato comigo! Tentei ligar uma porção de vezes, mas o celu­lar desse idiota deve estar desligado, pois a ligação cai no correio de voz!

Pode ter havido um problema no celular ou até mesmo no sistema — alegou Helen. — Você já deveria saber como funcionam mal os celulares aqui no Brasil...

Não é desculpa! — exclamou o holandês. — Existe telefone público! Se ele tivesse um pouquinho de bom senso, já teria ligado de qualquer orelhão!

Sem conter a raiva que estava sentindo, acrescentou:

Por causa disso é que ele vai apanhar um pouco. Só para apren­der! Imagine! Obrigar-me a fazer o trajeto até o aeroporto unicamente para ter a certeza de que não aconteceu nada com esse playboy imbecil e presunçoso!

Helen ficou em silêncio. Pessoalmente, ela não aprovava os méto­dos de Erik, mas como o chefe era ele... Nada teria a dizer. Além disso, ela tinha uma participação importante nesse negócio e, desta vez, iria ganhar um bom dinheiro, mesmo que o preço conseguido fosse baixo.

"Vou receber essa bolada e desaparecer!", pensou ela, parando o car­ro no semáforo da avenida Angélica com a rua Piauí. "Já estou farta de vi­ver assim, na corda bamba! Assim que puser as mãos no dinheiro, irei para qualquer lugar no mundo, e duvido que Erik consiga me encontrar!"

E Helen estava seriamente pensando em agir assim. Permanecera naquele negócio por muito mais tempo do que imaginara. Suportara Erik além de seu limite de paciência. Estava cansada. Tinha conseguido juntar dinheiro suficiente para viver muito bem em qualquer parte do mundo e, na verdade, já poderia ter abandonado o holandês bem antes. Mas havia a ambição. E havia também o poder de convencimento de Erik. Ele dissera que aquele golpe seria fabuloso e que eles conseguiriam ganhar uma verdadeira fortuna. E a mulher prometera a si mesma que seria a última vez.

"E será mesmo a última vez!", — pensou ela, olhando de lado para o companheiro. "Dentro de poucos dias estarei muito longe daqui e não terei mais de agüentar esse indivíduo! Terei a vida para mim, só para mim! Nunca mais precisarei me humilhar perante homens como Erik e muito menos presenciar ou participar de cenas de violência!"

Helen era frontalmente contra os métodos violentos do holandês, mas nada podia fazer. O caso de Fefê, por exemplo. Desde o início, ela soubera que Erik estava querendo cobrar demais pela droga. Sabia que o rapaz jamais conseguiria obter aqueles valores e que o holandês estava sim­plesmente forçando-o a uma escravidão. E, para consegui-lo, como se não bastasse envolvê-lo num ato criminoso, tinha obrigado Samira a atraí-lo.

Nervosa, Helen tamborilou os dedos sobre o volante do automó­vel, impaciente com o trânsito. O sinal já abrira por duas vezes e tudo continuava parado.

A lembrança de Samira fez a mulher suspirar. Acendendo um ci­garro, ela pensou: "Pobre menina! Tão cheia de sonhos! E acabou se dei­xando apaixonar por esse rapaz! Coitada! Será mais uma frustração...".

Não pôde evitar um esgar de arrependimento e de raiva de si mes­ma ao lembrar que ela própria tinha grande parcela de culpa no que se relacionava a Samira. Afinal, fora ela quem a apresentara a Erik, dizen­do-lhe que era uma menina precisando com premência de dinheiro para poder se manter em Nova York. E Erik soubera muito bem se aproveitar da oportunidade.

Triste, recordou que chegara a ter ciúmes quando o holandês passou uma noite com a moça e, com ódio, lembrou do tapa que recebera dele, pois, segundo Erik, entre eles dois não poderia haver esse tipo de coisa. Tudo tinha de girar em função de negócios, e o fato de ele ter dor­mido com Samira não era mais do que uma manobra para tê-la nas mãos. Helen fora obrigada a aceitar, o rosto ainda ardendo por causa da mão pesada do companheiro. Calara e acabara participando diretamente do envolvimento da moça na rede de crimes cometidos por Erik.

Por Erik apenas? Não! Por ela, também! Ela era tão culpada quanto ele...

"Mas está para acabar!", pensou, respirando aliviada e percebendo que o tráfego recomeçava a fluir. "Dentro de alguns dias..."

O carro da frente andou alguns metros e parou outra vez. E, nesse momento, Helen escutou a buzina estridente de uma motocicleta à sua direita. Já habituada com os motoqueiros de São Paulo, ela girou o vo­lante para a esquerda e andou o pouco que lhe era permitido, mas que era o suficiente para a motocicleta poder passar à sua direita, furando o congestionamento.

E, então, aconteceu.

A motocicleta parou ao lado da janela aberta de Erik, e ela viu a arma, uma pistola de grosso calibre.

Ainda teve tempo de gritar:

— Cuidado, Erik! É um assalto!

No entando, não se tratava de nenhum assalto. Sem dizer uma pa­lavra, o homem que estava na garupa da moto disparou. Foram três tiros, numa rapidez inacreditável. A primeira bala acertou o ombro de Erik, jogando-o para a esquerda, sobre o colo de Helen. A segunda acertou a mulher na cabeça, e a terceira, a fronte direita do holandês.

O automóvel, no instante em que Helen foi atingida, deu um salto para diante, chocando-se com o carro da frente. E o motoqueiro, acele­rando, passou pela direita, subiu na calçada e ganhou a avenida Angélica, desaparecendo no meio do trânsito congestionado.

Fefê estava voltando do aeroporto, transportando, numa Blazer, a grande caixa com a mercadoria.

Ele estava nervoso, com o estômago a lhe dar voltas e mais voltas, ardendo como se ele tivesse comido pimenta pura.

Sua tarde tinha sido difícil. Recebera o telefonema de Caleu, seu amigo da alfândega, avisando que a carga tinha chegado, e que ele teria uma hora para retirá-la, antes que ela fosse levada para o depósito, para a inspeção de rotina. Correra como um louco para poder chegar a tem­po. Conseguira desembaraçar a encomenda sem problemas, graças ao envelope com mil e quinhentos dólares que entregara disfarçadamente para o amigo.

O perigo, porém, não terminava aí. Era preciso transportar a cai­xa para São Paulo e, mais especificamente, para o local determinado por João Antônio. E, em hipótese alguma, ele poderia fazer contato com Erik.

Tomou o caminho de volta com cautela, dirigindo com extremo cuidado e, contrariamente a seus hábitos ao volante, obedeceu rigorosa­mente a todas as normas de trânsito.

Usou até mesmo o cinto de segurança, pois a última coisa que po­deria desejar era ser parado por um policial rodoviário por causa de uma infração imbecil e, por mero azar, cair diante de um desses militares caxias que inventassem de lhe revistar o carro. Por mais que a documentação da mercadoria estivesse regularizada e legal, sempre haveria a possibilidade de ser apanhado em flagrante.

E, se isso acontecesse, estaria absolutamente perdido. Mesmo que alegasse ignorar o conteúdo da caixa, as circunstâncias pesariam contra ele. Não teria como explicar a pressa no desembaraço da carga, não conseguiria explicar a razão de ter ido pessoalmente buscá-la, em vez de enviar um funcionário da empresa, não poderia justificar seu envolvimento direto no caso, uma vez que cuidou pessoalmente de tudo, absolutamente tudo, contrariando toda a sua rotina administra­tiva de executivo.

Esforçava-se, ainda que em vão, para se acalmar. Dizia a si mesmo que não havia nenhuma necessidade de ter medo; afinal de contas, estava nulo correndo bem, e ele estava agindo perfeitamente de acordo com o que lhe dissera João Antônio:

Não se preocupe com nada e procure manter a calma. Você vai buscar a carga e levá-la para este endereço. Eu estarei lá. E com o dinheiro. Dirija com cuidado e não cometa imprudência nenhuma.

Mas... E Erik? — perguntara o rapaz, angustiado.

Erik é um problema meu — respondera João Antônio. — Deixe que me entendo com esse bandido. Como já lhe falei, você não precisa se preocupar com nada.

"Você não precisa se preocupar com nada..."

Com essas palavras na cabeça, Fefê dirigiu-se para o local indicado pelo amigo, em Osasco, enfrentando o trânsito com o máximo de estoicismo e paciência que podia ter. Era preciso chegar lá, e bem... Nada poderia acontecer que fosse por sua culpa. O resto estaria por conta de João Antônio.

Contudo, ele não conseguia deixar de pensar no holandês. Certa­mente, ele já teria sido avisado, na véspera, do embarque da mercadoria. Era o óbvio. O fornecedor, lá na Holanda, obrigatoriamente o teria avi­ado. Portanto, Erik deveria saber muito bem que a carga tinha chegado, e que ele, Fefê, já deveria estar com ela.

Pensou em ligar o celular só para ver se o holandês tinha chamado, mas desistiu. Uma das recomendações de João Antônio tinha sido exa­tamente essa: desligar o celular e não fazer contato com ninguém, muito menos com Erik.

"Ele deve estar furioso...", pensou o rapaz. "Se tentou ligar para mim e não conseguiu falar..."

De repente, um súbito temor o assombrou: Erik poderia, ao ver que não conseguia um contato pelo celular, ir ao seu encontro! Afinal, ele sabia onde a carga chegaria e qual o caminho natural do aeroporto para a cidade e, uma vez dentro de São Paulo, ele conhecia muito bem o trajeto lógico até sua casa.

Fefê, sentindo o estômago doer ainda mais, olhou pelo retrovisor, olhou para os lados, tentando ver se estava sendo seguido, tentando loca­lizar o carro de Helen que, com certeza, Erik estaria usando.

Entretanto, nada percebeu e sentiu-se um pouco mais aliviado quando deixou a rodovia e entrou na cidade. A partir daquele ponto, ninguém mais o descobriria. Estaria rumando para Osasco, para um local completamente fora da rota aeroporto—cidade e, se realmente não tives­se sido seguido, estaria fora de perigo.

Pelo menos, estaria fora de um perigo chamado Erik...

Foi com um suspiro profundo que ele desligou o motor da Blazer, já dentro do depósito, no endereço indicado por João Antônio.

Cinco homens de aspecto sinistro cercaram o veículo, e um deles mandou Fefê destravar a porta de carga. O rapaz obedeceu, e a caixa foi retirada e levada para os fundos do depósito.

Alguns segundos depois, João Antônio apareceu e, batendo amis­tosamente no ombro de Fefê, convidou:

Venha para o escritório... Vamos tomar alguma coisa.

Deu uma risada e acrescentou:

Acho que você está mesmo precisando de um gole...!

O escritório de João Antônio, naquele depósito, era simples, mas nem por isso deixava de ter um aparelho de televisão, uma pequena ge­ladeira e uma secretária bonita e sensual, cujas funções, evidentemente, estavam além de digitar cartas e atender telefonemas.

Quando os dois entraram, a moça serviu-lhes vodca, deixou a gar­rafa e o balde de gelo sobre a mesa, ligou a televisão e retirou-se.

Exatamente naquele instante, começava um noticiário televisivo local.

Fefê, que nunca fora das pessoas mais interessadas por noticiários de televisão, ia abrindo a boca para falar, quando João Antônio o intenompeu:

— Escute... Quero que você ouça esse noticiário.

O rapaz obedeceu e, voltando-se para a televisão, viu aparecer a imagem do âncora, que informava:

Por volta de quatro horas ocorreu, na esquina da avenida Angé­lica com a rua Piauí, o assassinato de um casal, dentro do próprio veículo, testemunhas contaram para a polícia que o assassino disparou de uma motocicleta. Os culpados desapareceram no meio do trânsito engarrafado c ainda não foram encontrados. As vítimas são os empresários holandeses Helen Stocker e Erik Jansen. Não parece ter sido um assalto, mas sim um assassinato encomendado...

Fefê empalideceu, suas mãos tremeram, seu coração bateu fora de ritmo por alguns segundos. Com muito esforço, os olhos arregalados, pre­gados na tela, conseguiu erguer o copo e tomar todo o seu conteúdo de um só gole, enquanto o jornalista continuava:

A polícia não encontrou nada suspeito no interior do veículo...

João Antônio, acionando o controle remoto, desligou a televisão.

Servindo mais vodca para Fefê, ele assegurou:

Você vê... Como eu lhe prometi, não é mais necessário se pre­ocupar com Erik...

O rapaz tentou dizer alguma coisa, mas a voz não lhe saiu da gar­ganta. Com uma expressão divertida, João Antônio ironizou:

Ora, rapaz! Não fique assim! Na verdade, o mundo ficou livre de um crápula! De um cancro!

Mostrou uma pasta de couro que estava sobre a mesa e exclamou:

Aqui está o seu dinheiro. São seiscentos mil dólares, muito mais do que você estava esperando ganhar!

Com uma expressão séria, prosseguiu:

Você está livre de Erik. Porém, suas preocupações devem se voltar para outro aspecto do negócio...

Fefê, ainda atordoado com a notícia que acabara de ouvir, ergueu o olhar para o amigo, e este explicou:

Conheço você, sei como é a sua vida e como você é levado à rédea curta, por seu pai. Assim, será muito difícil você explicar como conseguiu tanto dinheiro... Seiscentos mil dólares fazem um volume res­peitável. Você não poderá deixá-los escondidos embaixo de sua cama, por exemplo. E, depositá-los em sua conta corrente, com certeza levantará suspeitas sobre a origem de uma soma tão vultosa.

Já um pouco mais lúcido, Fefê continuou a olhar para João Antônio, e este perguntou:

Você não possui uma conta aberta fora do país? De preferência num desses paraísos fiscais?

O rapaz negou com um gesto de cabeça, e o amigo insistiu:

Não conhece ninguém que tenha uma conta fora?

Fefê fez um esforço de memória e lembrou, de repente, que Samira lhe tinha dado o número de sua conta, em Nova York. Esboçando um sorriso, respondeu:

Sim... Isso, sim. Poderei usar a conta de Samira.

E você pode confiar nessa mulher?

Vou me casar com ela... — disse Fefê, sem esconder certo orgulho.

Nesse caso, não acha melhor depositar nessa conta a maior par­te do dinheiro?

Embora não estivesse em perfeitas condições psíquicas de to­mar qualquer decisão, depois de alguns instantes de reflexão, o rapaz concordou:

Sim... Acho que é bem melhor. Só preciso avisar Samira. Posso telefonar para ela neste instante.

Então faça isso. Fique com um pouco de dinheiro e envie o resto para lá. Será mais seguro para você, e eu poderei fazer essa transferência agora mesmo. Você poderá conferi-la, e tudo estará perfeito.

Fefê fez a chamada usando o seu celular e, quando Samira atendeu, ele saiu da sala para poder conversar com ela com mais privacidade.

Que saudades! — exclamou a moça. — Tentei ligar para você esta tarde, mas seu celular não atendia...

Aconteceram algumas coisas, por aqui — falou ele, a voz um pouco trêmula. — E estou precisando de um favor seu...

Samira mordeu o lábio inferior, preocupada. O que poderia ter acontecido e qual o favor que Fefê iria lhe pedir? Seria alguma ques­tão de dinheiro? Disfarçando o melhor possível sua insegurança, ela disse:

Pois pode pedir, amorzinho...

Fefê sorriu satisfeito e explicou:

Preciso depositar um dinheiro na sua conta, aí em Nova York. É uma importância grande, quinhentos mil dólares...

Mas... é muito dinheiro! — espantou-se Samira. — Vão me fazer perguntas... Eu não terei o que responder! Não terei como justificar a origem de tudo isso!

O rapaz estremeceu. Samira era sua única esperança e, se ela estava pondo dificuldades... Do outro lado, porém, ela se apressou em dizer:

Será melhor enviar esse dinheiro para outro lugar, fora dos Estados Unidos. Aqui tudo é muito bem controlado. Não é possível es­conder uma quantia tão grande chegando assim, de repente e do nada, em minha conta.

Com desespero na voz, Fefê insistiu:

E como é que eu faço, Samira? Não posso ficar com tudo isso aqui!

A moça pensou um pouco e, com um tom de alegria na voz, revelou:

Olhe, acho que tenho a solução para você. Há algum tempo, eu precisei abrir uma conta aí mesmo, no Brasil. Aí, não há problema, ninguém tem meu endereço, ninguém vai fazer perguntas, pelo menos por algum tempo. E, com a bagunça que existe por aí, seria fácil alegar que eu recebi esse dinheiro por causa de algum ensaio fotográfico... Todos imaginam que as modelos ganham muito, e por fora... Vou lhe passar o número da conta e a senha. Assim, se você precisar, faz transferência pela Internet, sem problemas.

Fefê respirou aliviado. Anotou os dados da conta e já ia se despe­dindo, quando Samira perguntou:

E o que foi que aconteceu por aí? Você disse que aconteceram algumas coisas...

Foi o Erik — respondeu Fefê, em voz mais baixa. — Ele e a He­len foram assassinados esta tarde.

Samira ficou em silêncio por alguns instantes e, titubeante, depois de engolir em seco várias vezes, murmurou:

Era esperado... Um dia, ele haveria de encontrar quem o acertasse...

Nesse momento, João Antônio abriu a porta de seu escritório, e Fefê, despedindo-se de Samira, concluiu:

Depois eu ligo para você para comentar tudo isso com mais cal­ma. Obrigado pela conta, querida... Um beijo.

Voltando para dentro da sala, Fefê ditou o número da conta para o amigo, guardou a anotação com a senha em sua carteira e, já mais senhor de si, declarou:

Vou ficar com cem mil. Os outros quinhentos, vamos depositar nessa conta.

João Antônio sorriu, assentiu com a cabeça e, pelo computa­dor, fez a transferência da importância. Mostrou para o rapaz que a operação tinha sido realizada, deu-lhe cem mil dólares em dinheiro e perguntou:

Quer conferir o saldo da conta que me deu? Assim, você ficará seguro quanto à operação...

Fefê por muito pouco não concordou. Entretanto, lembrou-se a tempo de que, para conferir o saldo, teria de digitar, no computador de João Antônio, a senha de Samira. E isso poderia ser perigoso. Quem po­deria garantir que João não tivesse um sistema que o permitisse, mais tarde, recuperar essa senha?

Não é preciso, você já me mostrou que a operação foi realizada com êxito. De mais a mais, João... Se eu não confiar em você, em quem mais poderia confiar?

O outro deu um sorriso, bateu carinhosamente nas costas de Fefê e agradeceu:

Fico feliz ao ouvir isso, meu amigo. E, agora, vá para casa. Não se preocupe com mais nada a não ser usar o seu dinheiro.

Acompanhou-o até a porta e, despedindo-se, acrescentou:

Vou lhe telefonar até o final desta semana. Não se esqueça de que, agora, somos parceiros!

Assim que Fefê saiu de sua sala, João Antônio chamou a secretária e ordenou:

Ligue para o Flávio e mande-o vir até aqui.

Alguns minutos depois, a vistosa moça fazia entrar no escritório do chefe um indivíduo simpático, forte como um touro, de cabelos escuros, já começando a mostrar alguns poucos fios prateados.

E, então, chefe? — indagou ele, sentando-se numa das poltronas diante da mesa de João Antônio. — Como foi que o moleque reagiu?

Foi perfeito. Ele está em nossas mãos.. Não precisaremos mais ter qualquer preocupação quanto a isso.

Acendeu um cigarro e, depois de soltar uma baforada de fumaça para o teto, João Antônio perguntou:

E a mercadoria? Chegou em ordem? Está completa?

Está tudo certo. É uma carga boa! Vai dar para ganhar um bom dinheiro com ela!

Sem dúvida. Mas isso é apenas o começo. Fefê será muito mais útil em outras tarefas, bem mais delicadas e nas quais precisamos de uma pessoa não só de confiança, mas que também tenha as costas quentes.

Flávio olhou interrogativamente para o chefe, e este explicou:

Fefê conhece muita gente no sistema aduaneiro e mesmo na Polícia Federal. Isso, por si só, já facilita muito as coisas; basta ver como ele conseguiu trazer essa carga para cá sem qualquer problema. Além dis­so, ele é de uma família boa, rica, com um nome a zelar. Isso quer dizer que qualquer deslize que cometa refletirá diretamente sobre a família. E Fefê morre de medo disso. Assim, temos mais um ponto onde segurá-lo. Ele vai querer trabalhar direitinho para que os pais, especialmente o pai, jamais fiquem sabendo de alguma coisa.

Isso é bom — admitiu Flávio, com um sorriso. — É um proble­ma quando temos de lidar com esses pequenos aventureiros que não têm nada o que temer. Eles podem fazer o que quiserem; o máximo que têm de cuidar é deles mesmos. Já alguém que tenha família...

Exatamente — concordou João Antônio. — Fefê tem muito a perder e não vai querer correr riscos. Ele jamais vai querer revelar que está envolvido com o narcotráfico. Muito menos que esteve envolvido com Erik, principalmente agora, que ele está morto.

Flávio soltou uma gargalhada e lembrou:

Foi muito mais fácil do que estávamos imaginando, João! Tive­mos a sorte de apanhá-lo bem no meio de um congestionamento... Foi uma simples questão de apertar o gatilho!

João Antônio aquiesceu com a cabeça e, depois de alguns segun­dos, enfatizou:

Muito bem... Pode ir preparando o próximo passo... Quero en­trar o mais depressa possível no mercado da heroína cristalizada, que pa­rece ser o grande futuro. E vamos usar esse moleque o mais que pudermos. Quando ele estiver começando a ficar queimado...

 

A morte de Erik causara certa apreensão em Fernando. Ele, conservador como era, não estava gostando nem um pouco do fato de um cliente de sua empresa ter sido assassinado; portanto, ficara bastante irritado quando a po­lícia veio lhe fazer algumas perguntas, pois encontrara, entre os documen­tos do holandês, referências de negócios com sua firma. Contudo, como nada havia que pudesse incriminá-lo ou à empresa, as perguntas limitaram-se àquelas de rotina, e a polícia se deu por satisfeita. Com toda a certeza, acreditava ele, aquele seria mais um dos muitos casos de assassinatos que ocorriam na cidade e que ficavam absolutamente sem solução.

Fernando atribuiu à mprte violenta do holandês o fato de o filho caçula ter se tornado, de repente, tão arredio e irritadiço. Para o pai, o rapaz tinha motivos para estar assim: a namorada estava no exterior, per­dera um cliente com quem estava se relacionando muito bem e, conse­qüentemente, perdera um pouco do rumo que estava começando a tomar. Penalizado com o estado de espírito de Fefê, ele propôs:

— Não quer tirar uns dias de descanso? Você poderia ir para os Estados Unidos, visitaria seus irmãos, conheceria o escritório no World Trade Center e aproveitaria para visitar sua namorada. E eu pago essa despesa. Sei que está meio sem dinheiro...

O rapaz exultou. Não poderia desejar outra coisa. Além disso, não poderia dizer para Fernando que dinheiro, pelo menos naquele instante, jamais seria impedimento. Como poderia explicar que estava com cem mil dólares à sua disposição?

Com uma nova expressão de ânimo no rosto, perguntou ao pai:

E quando posso ir?

Quando você quiser. Só deixe as coisas que está fazendo um pouco mais organizadas, compre sua passagem e vá.

Imediatamente, Fefê começou a programar a viagem. Não cabia em si de contentamento e, vendo-o assim, Fernando comentou com Clara:

Até parece outro... Vamos apostar que ele vai procurar a namo­rada antes de ir ver os irmãos?

Clara riu e, sacudindo negativamente a cabeça, respondeu:

Não quero perder uma aposta, Fernando. É mais do que natural que ele pense primeiro na namorada — e, com uma expressão preocupa­da, murmurou: — Só acho que ele deveria ter apresentado essa moça para a família...

Ora, Clara! — riu Fernando. — Até parece que você não co­nhece os jovens! Essa moça não passa de uma namoradinha, não é nada sério! Por isso é que ele não a quis trazer para dentro de casa. Porque ele sabe que, dia ou outro, esse caso vai terminar.

Mais sério, acrescentou:

Conheço meu filho. Sei muito bem que ele pretende casar com uma moça da sociedade, filha de uma boa família... Samira é um caso, como outro qualquer. Uma aventura. Nada mais que isso. Quan­do chegar o momento certo, Fefê irá se unir a alguém que realmente o mereça!

Clara não contestou. Podia ser que Fernando conhecesse muito bem o filho, uma vez que era seu pai. No entanto, ela também o conhecia. Ela o vira crescer, sempre estivera por perto, poderia até mesmo prever suas reações. E tinha quase certeza de que Fefê não estava encarando Samira como o pai dissera. Para o rapaz, era algo muito mais sério, e era dessa seriedade que Clara tinha medo.

Ela sabia que seria muito bom ele tirar alguns dias de férias, mudar de ares, trocar de preocupações, talvez até mesmo sentir saudades de casa. Mas, estando com Samira — e num outro país —, a situação poderia se agravar. Quem poderia garantir que, num momento de paixão, de loucu­ra, ele não resolvesse se casar com a moça lá nos Estados Unidos? Clara estava cansada de ver esse tipo de coisa acontecer nos filmes a que assis­tia, nos romances que lia... Fefê voltaria de lá rebocando uma esposa que ninguém da família conhecia!

Além do mais, Clara tinha notado muito bem a mudança no comportamento de Fefê desde que conhecera Samira. E sabia que esse tipo de modificação representava uma alteração de valores interiores muito maior do que estava sendo exteriorizado pelo rapaz. Ele mostrava estar pensando mais, agindo com mais prudência, mais responsabilida­de. E isso não era nada por causa de alguma exigência do pai ou mes­mo do serviço. Essas coisas jamais tinham preocupado Fefê. Ele estava mudando, simplesmente porque tinha conhecido alguém. Alguém que viera preencher um espaço ainda vazio em sua vida e que, portanto, representava um grande perigo.

Seria melhor que ele fosse para a China, em vez de ir para Nova York... — murmurou a secretária. — Fefê ainda é muito criança para se amarrar, para assumir a responsabilidade de tocar uma família!

Com um sorriso de enlevo, lembrou-se de alguns poucos anos atrás, quando Fefê vinha procurá-la para contar das brigas que tinha com os pais e os irmãos. Ela tinha sido sua confidente, sua amiga... Uma segunda mãe, poderia dizer. E a perspectiva de o rapaz ter efetivamente crescido e estar cor­rendo atrás de uma namorada que ela nem sequer tinha visto horripilava-a.

Gostaria de tê-la conhecido — disse, distraída, em voz alta.

Ouvindo-a e adivinhando o que a secretária e amiga de tantos anos estava pensando, Fernando riu e brincou:

Deixe de ser uma tia coruja, Clara! O menino tem o direito! Afinal de contas, nestes últimos tempos, ele tem trabalhado bastante e mostrado que é capaz de alguma coisa! Por que não podemos deixá-lo se divertir um pouco?

Clara teria gostado de ter coragem de dizer a Fernando que seu filho, desde que nascera, não fizera outra coisa que não fosse se divertir e, por isso mesmo, ainda não amadurecera o suficiente para poder enfrentar a realidade do mundo. Ela gostaria de ter dito ao patrão que estava mui­tíssimo preocupada com o futuro de Fefê, pois, até aquele momento — e a própria viagem que o pai estava lhe dando era uma prova —, ele sempre tivera o pai ou a mãe por trás, prontos para solucionar seus problemas.

Portanto, o menino ainda não amadurecera, principalmente por culpa dos próprios pais.

Na verdade, ela nada tinha a ver com isso; era um problema da família Henriques, e ela não fazia parte, efetivamente, do clã. Gostava de Fefê como se fosse um filho, mas não poderia interferir em nada, não poderia dar palpite.

Com um suspiro, perguntou a Fernando:

Faço então a reserva para o vôo e para o hotel em Nova York?

Nesse momento, ouviram tocar o telefone celular de Fefê, e ele, em sua sala, responder:

Diga, João! O que está pegando?

Como vai, parceiro? — perguntou João Antônio, com voz ale­gre. — Já se recuperou?

Estou me recuperando — respondeu Fefê, com uma ponta de desagrado por ter sido lembrado, ainda que subliminarmente, dos recen­tes acontecimentos. — Mas logo estarei novo em folha. Estou indo para os Estados Unidos amanhã.

Houve um breve silêncio do outro lado da ligação, e o rapaz ouviu o amigo dizer:

Pois acho que você terá de adiar essa viagem, parceiro. Preciso de você para um serviço especial.

O rapaz franziu as sobrancelhas e, agastado, retrucou:

Isso não será possível, João. Já estou com tudo pronto...

Tentando contemporizar, acrescentou:

Mas serão só dez dias. Quando eu voltar...

O tom de voz que João Antônio empregou fez com que Fefê sentis­se um calafrio percorrer seu corpo:

Você vai adiar a viagem, mocinho. E virá se encontrar comigo na boate esta noite.

Assim dizendo, João Antônio desligou o telefone, deixando Fefê com o celular na mão, olhando atarantado para o aparelho.

O tom de voz que ele usara... era o mesmo com que Erik falara com ele! A mesma autoridade, levando à mesma sensação de impotên­cia e de submissão!

Ouviu seu pai chamá-lo, informando:

Há dois vôos amanhã para Nova York. Acho melhor você em­barcar no vôo da noite, assim poderá almoçar com sua mãe.

Fefê olhou para o pai como se não o estivesse enxergando e murmurou:

Não vou amanhã, pai...

Fernando levou um susto. Com expressão preocupada, perguntou:

Não vai? Mas por quê?

O rapaz sacudiu a cabeça naquele seu gesto característico e, depois de pensar um pouco, continuou:

Desculpe, pai, eu estava longe... Você perguntou por que eu não vou amanhã, não é?

Sim... O que houve? Quem ligou? Aconteceu alguma coisa?

Fefê forçou um sorriso e respondeu:

Não, não aconteceu nada. É um novo cliente que acabou de ligar. Ele quer fazer uma importação e pediu para que eu o encontre esta noite. Já sei que não vou poder viajar, pois terei esse trabalho para fazer e não quero perder... mais um cliente.

Fernando respirou aliviado e, com um sorriso cheio de orgulho nos lábios, disse:

De fato, rapaz... Você está me surpreendendo a cada dia! Está mostrando uma responsabilidade que eu não imaginava que tivesse!

Fefê semicerrou os olhos, controlando a raiva que lhe causaram as palavras do pai e, muito sério, retrucou:

Sempre tive responsabilidade, pai. Você é que não queria enxergar!

Sentindo que acabara de pisar em terreno perigoso e não querendo discutir com o filho, Fernando tentou contemporizar:

Não quis dizer isso, Fefê. Mas, falando de outra coisa, eu não posso cuidar dessa transação? Ou outra pessoa da empresa?

Não. Pelo menos nessa fase inicial, preciso estar presente. O melhor é adiar a viagem. De qualquer forma, isso não vai me matar...

Por sua mente, ao dizer aquela última frase, o rapaz não pôde impedir que passasse a imagem de Erik. Ele morrera. Fefê não tinha provas, mas tinha a certeza de que aquele assassinato fora encomen­dado por João Antônio.

Deixar de ir para os Estados Unidos, realmente, não o iria ma­tar. Mas desobedecer a João Antônio ou — pior ainda — desafiá-lo, isso sim poderia significar a reserva de uma gaveta gelada no Instituto Médico Legal.

E, aí sim, teria também a certeza de nunca mais ver Samira...

João Antônio não parecia bravo ou aborrecido quando o rapaz en­trou em seu luxuoso escritório na boate. Muito pelo contrário, o homem parecia distendido, relaxado, bem-humorado e amistoso.

Temos outro negócio — disse ele. — Um negócio para você ganhar bastante dinheiro.

Fefê podia muito bem imaginar que tipo de negócio ele iria pro­por e já estava tomando fôlego para dizer que não queria mais partici­par de nada que fosse ilegal ou mesmo arriscado, quando João Antônio continuou:

Uma mão lava a outra, parceiro. Você precisou de mim, e eu resolvi o seu problema. Agora, sou eu que preciso.

Serviu uma dose de vodca para o rapaz e, sem lhe dar tempo de dizer coisa alguma, prosseguiu:

E não aceito negativas. Você sabe que posso tomar atitudes, digamos, pouco convencionais, para com as pessoas que me desagradam.

Fefê sentiu-se perdido. Contudo, dessa vez, não estava disposto a se mostrar fraco e acovardado. Aquilo que estava acontecendo, ele já deve­ria ter previsto quando viera procurar João Antônio em busca de ajuda. Assim, era obrigado a aceitar as regras do jogo. Pelo menos no início, depois arrumaria um jeito de se safar.

Com um sorriso forçado, o rapaz adiantou:

Ainda não falei nada... Quem disse que eu vou recusar? Já adiei a minha viagem, não é mesmo? Portanto...

João Antônio deu uma risada e, com expressão satisfeita, exclamou:

É assim que se fala, garoto! Você está mostrando que sabe das coi­sas! E eu gosto disso! Gosto de poder contar com um parceiro de verdade!

Fefê teve de se controlar para não deixar transparecer, em sua fisio­nomia, que a palavra "parceiro", tão usada por João Antônio, soava-lhe de forma muito desagradável aos ouvidos. Não se considerava parceiro dele, jamais poderia ser parceiro de um bandido; isso seria o mesmo que dizer que ele próprio era um bandido!

O outro, depois de tomar um gole de seu copo e voltar a encher com vodca o do rapaz, confidenciou:

Há certos serviços que não se pode dar a qualquer um. É preciso ter muita confiança, conhecer profundamente a pessoa. Eu conheço você e sua família. E confio em sua lealdade.

O coração de Fefê deu um salto em seu peito. Ele entendera muito bem o recado. "Conheço você e sua família..." Não havia uma ameaça explícita, mas, implicitamente, João Antônio simplesmente estava que­rendo dizer que, se as coisas não corressem exatamente como ele estava planejando, daria um jeito de envolver sua família.

Depois de uma breve pausa, durante a qual o rapaz permaneceu em silêncio, o proprietário da boate continuou:

Você é um menino inteligente e já percebeu que essa história de boates não passa de uma espécie de... isca. O dinheiro de fato, o dinheiro grosso, está no fornecimento de drogas. Como já tive oportunidade de lhe dizer, a molecada paga caro por um baseado, um papelote de cocaína, por um comprimido de ecstasy. Porém, há outras drogas, bem mais caras até mesmo que o superecstasy, e que são fornecidas para clientelas muito mais selecionadas. Portanto, que dão muito mais lucro.

O rapaz assentiu com a cabeça, acompanhando atentamente as pa­lavras de João Antônio. Ele já sabia disso, sabia que na alta sociedade, entre os grandes executivos, artistas famosos e até mesmo entre políticos de projeção, começava a grassar o uso de drogas mais pesadas e muito mais caras. Drogas que, por si só, por seu preço e dificuldade de aquisição, estabeleciam uma diferenciação hierárquica muito especial: o crack e a maconha são drogas usadas pela classe baixa, especialmente nas favelas; a cocaína, pela classe média assalariada; e essas outras, mais fortes, mais puras, pela classe média alta e pelos ricos.

João Antônio prosseguiu:

— Para podermos fornecer, aqui no Brasil, essa espécie de droga, lemos de ir buscá-la lá fora. Na verdade, não se trata de pegá-la e trazê-la no fundo falso de uma mala, por exemplo. Isso é coisa para amadores ou para profissionais pouco criativos. Nosso sistema é muito mais sofisticado e seguro.

Fixando o olhar em Fefê, ele explicou:

É o sistema que Erik tentou usar com você e que, no final das contas, conseguiu e provou que funciona. A droga entra no país no meio de uma carga absolutamente inocente. Mas é preciso ir comprá-la. Esse tipo de coisa não se pode adquirir por reembolso postal, via Internet ou por telefone, ainda que esses meios ajudem muito. É preciso ir lá, no fornecedor estrangeiro, entregar-lhe o dinheiro e... confiar. E necessário, então, nessa primeira fase, confiar em duas pessoas: no for­necedor, ou seja, ter a certeza de que ele vai entregar a mercadoria, uma vez que ele recebe adiantado, e no portador da mala de dinheiro que, se não for de confiança, pode desaparecer no mundo, com uma quantia muito grande.

Antes que Fefê perguntasse, João Antônio adiantou:

E não é possível fazer uma transferência desse porte assim, sem mais nem menos. O dinheiro tem de ser levado em mãos, notas vivas, de preferência notas velhas, que não mostrem perigo de serem rastreadas por sua numeração ou por marcadores magnéticos ou radioativos.

Tomando fôlego, ele continuou:

Depois de efetuada a transação, em nosso sistema de trabalho, e fundamental uma empresa idônea de importação e exportação para que a droga saia de lá sem problemas e entre aqui da mesma maneira. Nessa empresa, teremos de confiar em mais pessoas, ou seja, naquelas que cui­dam do embarque da droga no meio da carga e naquelas que vão cuidar do desembaraço da carga quando esta chegar.

Deu um sorriso para Fefê e completou:

E você é justamente a pessoa que me serve. É meu conhecido: conheço tudo sobre você, sei quem é, onde mora, quem são seus pais. E de confiança e, além disso, é sócio de uma empresa de importação e exportação, das mais respeitadas do país. Ninguém desconfia das cargas que vocês trazem.

Mas não conheço ninguém no exterior para cuidar do embar­que... — argumentou o rapaz, com a fugaz esperança de que isso poderia ser um fator impeditivo de sua participação.

Isso não tem importância. O fornecedor estrangeiro se respon­sabiliza pela parte do embarque. Preciso de você nas outras fases da ope­ração, ou seja, na parte que diz respeito à importação e ao desembaraço da carga quando ela chegar aqui e, o que é muito importante, para efetuar a compra no estrangeiro.

Mas eu não entendo nada desse assunto! — protestou Fefê. — Como vou poder fazer uma compra?

Isso também não é problema. Tudo estará resolvido daqui. Você nem mesmo verá a droga. Nem tocará nela lá no estrangeiro. Você será apenas o portador do dinheiro. Leva a maleta, entrega, espera o indivíduo conferir a quantia e pronto. Pode voltar. Sua parte está feita.

O rapaz coçou a cabeça. Parecia muito simples, muito fácil. Só havia um problema, que Fefê conhecia muito bem: como sair do país com uma grande soma em dinheiro? Ele já soubera de casos, inclusive de altos executivos, que tinham sido presos no aeroporto porque esta­vam tentando sair do país com algumas dezenas de milhares de dólares nos bolsos...

Mas, pelo jeito, João Antônio tinha pensado em tudo:

Você sacará o dinheiro lá. Levará um cheque, e o banco estará avisado que você vai sacar essa importância. O dinheiro não sairá daqui. É muito arriscado.

Intrigado, o rapaz indagou:

Mas por que o fornecedor não pega ele mesmo o cheque e saca o dinheiro? Não acha que seria muito mais seguro levar um cheque nomi­nativo e entregá-lo para quem vai enviar a droga?

Ele não pode aparecer. Você pode. Sacar uma grande soma implica informar nome, número de documentos e mais uma porção de coisas. E isso pode ser a ponta do fio que permitirá desembaraçar toda uma meada. Você terá documentos falsos, outro nome, outro passaporte... Poderá sacar o dinheiro, deixar essas informações e voltar para o Brasil, sem temer absolutamente nada. Não há o menor risco, pode acreditar.

Vendo a expressão aterrorizada de Fefê, João Antônio sorriu e procurou tranqüilizá-lo, dizendo:

Você viajará com seus documentos verdadeiros. Vai usar os falsos unicamente para sacar o dinheiro. Depois, não os usará mais.

O rapaz suspirou, coçou o alto da cabeça. Não estava gostando nem um pouco daquilo tudo. Entretanto, sabia que não tinha como recusar. Ele estava nas mãos de João Antônio e, pelo que já tinha visto acontecer, não poderia brincar com aquele homem, provavelmente muito mais perigoso do que o holandês Erik.

Deixando de lado o tom e a expressão de amizade que tinha mantido até aquele instante, João Antônio alertou:

- Você estará com uma grande soma em dinheiro nas mãos por um período de cerca de dezoito horas. Só quero lembrá-lo de que, pelo menos até você entregar o dinheiro para o fornecedor, haverá uma pessoa seguindo seus passos. E aqui, no Brasil, sua família também estará sendo vigiada. Um passo em falso pode trazer conseqüências muito desagradá­veis. E também quero lhe lembrar de que o mundo é pequeno demais para você se esconder de mim, caso resolva me enganar.

Fefê empalideceu, mas, controlando-se, fez uma expressão de descaso, como se o que João Antônio tivesse acabado de falar fosse algo completamente sem propósito, e perguntou:

Quanto vou levar nessa brincadeira?

O outro sorriu, vitorioso. Com a pergunta, Fefê estava dizendo que aceitava e, portanto, tinha-o em suas mãos.

Cem mil dólares — falou João Antônio. — Cem mil que eu posso depositar em sua conta neste instante. Eqüivalem a dez por cento da transação.

Fefê, mais uma vez, estremeceu. Um milhão de dólares! A ne­gociação seria de um milhão! E ele ficaria com todo esse dinheiro por dezoito horas!

Controlando-se para não deixar transparecer suas emoções, ele indagou:

E onde será esse... negócio?

Em Nova York. No septuagésimo oitavo andar da torre norte do World Trade Center. Na próxima terça-feira, às oito horas da manhã, horário local.

O rapaz sorriu. Então, era realmente apenas uma questão de adiar a viagem por menos de uma semana! E ele estaria indo para Nova York, para os braços de sua amada Samira!

Assumindo uma postura decidida, ele disse:

Muito bem. Deposite o dinheiro naquela conta de Samira. E explique um pouco melhor como será o processo depois que eu tiver efe­tuado o pagamento.

Não há segredo. Com o dinheiro na mão, o fornecedor en­contrará uma carga que possa ser utilizada como disfarce para a droga. Nesse caso, a carga já existe e, como estaremos trazendo heroína cris­talizada, ela pode ser facilmente disfarçada numa carga de bebidas e de artigos culinários variados, como temperos, açúcares aromatizados e outros ingredientes. E é essa a importação que eu estou fazendo pela sua empresa. Assim, o fornecedor vai plantar a mercadoria no meio da carga e despachá-la. E você vai recebê-la aqui e fazer com que chegue ao meu depósito.

E quanto tempo poderei ficar em Nova York? — perguntou Fefê. — Não esqueça que eu ia viajar para lá para ficar dez dias e seria inte­ressante que não ficasse menos tempo, principalmente para não levantar suspeitas em minha família e na empresa.

Não se preocupe quanto a isso. Entre você entregar o dinheiro e a mercadoria chegar aqui, teremos um prazo de pelo menos quinze dias.

Deu uma gargalhada e finalizou:

Você terá tempo de sobra para comer quantos quibes e esfihas quiser!

Steve Donovan olhou com uma expressão enojada para seu par­ceiro, Kirk Steinberg. Ele não conseguia aceitar a maneira como aquele homem devorava um prato com mais de dez esfihas e muito menos a su­jeira que fazia. Steinberg pegava uma esfiha, espremia quase meio limão em cima dela, dobrava-a e metia-a inteira dentro da boca, deixando que o caldo lhe escorresse sobre o queixo e fosse pingar sobre o jornal aberto em sua escrivaninha.

— Isto é uma delícia! — exclamou ele, com a boca cheia. — Você deveria comer uma pelo menos!

Donovan fez que não com a cabeça e ia abrir a boca para dizer ao companheiro que, depois de vê-lo comer esfihas daquele modo, prati­camente todos os dias, tinha adquirido um trauma e jamais conseguiria apreciar esse prato. Porém, nesse exato instante, o telefone tocou.

- Donovan — atendeu ele, com certa má vontade. — FBI, Nova York.

O agente escutou por alguns instantes, apanhou um papel sobre a sua mesa e anotou um endereço. Em seguida, perguntou:

- Quem está falando? Como posso saber que não é um trote?

No entanto, não obteve qualquer resposta; a pessoa do outro lado da linha interrompeu a ligação.

- O que foi? — indagou Steinberg, pondo mais uma esfiha em sua boca enorme. — Quem era?

— Uma mulher. Disse que há um pacote com explosivos plásticos no armário 346 da estação do Brooklin... Desligou quando eu perguntei quem estava falando.

- Mais um trote — resmungou Steinberg. — Nos últimos meses é o que mais tem acontecido. Denúncias falsas sobre bombas e coisas assim...

Acabou de engolir o que estava mastigando, enxugou a boca com um lenço de papel e perguntou:

- Você captou o número do telefone?

- Sim respondeu Donovan. — O sistema gravou a chamada e o número. Ela ligou de um telefone público do meio da First Avenue.

Isso não leva a nada... É o tipo da informação inútil! — ponde­rou Steinberg.

Acendeu uma cigarrilha, cujo cheiro Donovan achava tão insupor­tável quanto a maneira de comer do companheiro, e perguntou:

Como era a voz dela?

Em vez de responder, Donovan apertou o botão de reprodução da conversa e Steinberg, aproximando-se de sua mesa, pode ouvir:

Estou ligando para informar que há um pacote com explosivos plásticos no armário 346 da estação do Brooklin.

Em seguida, ouvia-se a voz de Donovan perguntando quem estava falando e o ruído de desligar.

Os dois agentes escutaram mais duas vezes as palavras da mulher e, sentando-se na beirada da mesa de Donovan — outra mania irritante do companheiro —, Steinberg comentou:

Ela parecia apressada e nervosa. Você notou como a voz estava um pouco trêmula?

Notei. E isso me faz pensar que não seja trote. Além disso, não era uma voz de criança ou de adolescente. E outra coisa: era uma mulher adulta; a maior parte dos trotes passados por adultos é feita por homens.

Steinberg soprou uma baforada de fumaça para o teto e, depois de refletir alguns instantes, sugeriu:

O que acha de chamarmos o esquadrão anti-bomba e irmos até lá com eles?

Donovan fez um sinal afirmativo com a cabeça e, apanhando no­vamente o telefone, discou para seu superior. Explicou o que acabara de acontecer e, ao desligar o aparelho, avisou:

Vamos para lá. O esquadrão já está sendo acionado. Com certe­za chegarão antes de nós.

Steinberg sorriu. Era disso que ele gostava! Ação! Movimento! In­vestigação direta! Tinha sido para isso que ele estudara e se preparara e não para ficar lendo e fazendo relatórios burocráticos, sentado atrás de uma escrivaninha!

Com uma agilidade surpreendente para um homem com quase dois metros de altura e pesando, no mínimo, cento e vinte quilos, ele saltou da ponta da mesa de Donovan, vestiu o paletó e, antes mesmo que seu companheiro tivesse tido tempo de dar a volta à sua escrivaninha, ele já estava abrindo a porta da sala.

Donovan não pôde deixar de rir. Quando se falava em alguma coisa para fazer fora do escritório da agência do FBI, Steinberg parecia um adolescente excitado.

Vamos! — insistiu este. — Não quero chegar lá e ver que o esquadrão já fez tudo! Daí, só vai sobrar para nós a parte desagradável de redigir o relatório!

Quando se trata de uma denúncia de bomba, com ou sem a possibilidade de se tratar de uma brincadeira de mau gosto, o FBI é extrema­mente rápido e eficiente. Assim, quando os dois chegaram à estação do Brooklin, esta já estava isolada, e o pessoal do esquadrão já havia retirado do armário o pacote. Um enxame de jornalistas rodeou os dois agentes, todos fazendo perguntas ao mesmo tempo.

Como o FBI soube dessa bomba?

Quem avisou? Foi uma denúncia anônima?

Donovan e Steinberg responderam às perguntas de acordo com as orientações que já havia bastante tempo tinham recebido: não dar ne­nhuma informação precisa, não comentar sobre denúncias anônimas e dizer apenas que o FBI, há semanas, já vinha seguindo uma pista que acabou levando à localização do pacote de explosivos.

Depois que conseguiram se livrar dos repórteres, os dois agentes foram cuidar da investigação propriamente dita, ou seja, ver o explosivo, tentar localizar sua origem, tentar descobrir quem tinha alugado o armário e por quanto tempo.

Trata-se de um explosivo plástico de altíssimo poder destrutivo explicou o chefe do esquadrão anti-bomba a Donovan e Steinberg. — A explosão desse pacote poderia fazer ir pelos ares um edifício do tama­nho do Empire State.

E a origem? — quis saber Donovan.

— Impossível determinar de imediato. Esse tipo de material é nor­malmente utilizado em demolições. Em implosões, mais especificamente. O exército também o utiliza. E há até quem o fabrique domesticamente; não é uma composição das mais complicadas ou de manipulação perigosa. Não é como a nitroglicerina, que basta chacoalhar para explodir. Para funcionar, esse material necessita de detonadores.

Mostrou outro pacote e acrescentou:

Como estes aqui.

Isso quer dizer que eles não estavam tencionando explodir a estação — concluiu Donovan. — Quem guardou esses pacotes estava esperando algum momento especial para explodir outro lugar...

Steinberg, que tinha ido conversar com a administração do guarda-volumes, aproximou-se de Donovan com uma expressão desconcertada.

Nem adianta procurar por quem alugou esse armário — disse ele. — Em Nova York há pelo menos um milhão de homens com o nome de John Smith.

Antes que Donovan perguntasse, Steinberg comentou:

Claro que tentei descobrir como é o aspecto físico de quem alugou. Mas a garota que estava no guichê naquele dia não consegue se lembrar de nada. Ela disse que alugou pelo menos duzentos armários e que jamais presta atenção em quem aluga...

Com um suspiro, finalizou:

Em resumo, não temos pistas...

Teremos de nos basear nos resultados do laboratório — con­cluiu Donovan. — Talvez consigamos algumas impressões digitais no invólucro. Talvez alguma coisa específica na composição do próprio explosivo possa nos dar alguma indicação de sua origem e, a partir daí, com um pouco de sorte também, poderemos chegar à pessoa que o pôs ali dentro.

Hafez estava furioso. Soubera que os federais tinham encontrado os explosivos pelo noticiário televisivo do fim do dia.

— Mas como foi que eles descobriram? — perguntou, dirigindo-se mais a si mesmo do que a Amina, que acabara de chegar do hospital. — Como eles puderam ir diretamente ao nosso armário?

Pode ser que eles tenham feito uma revista em todos os armários da estação e descobriram os pacotes... — presumiu a moça, despindo-se e dirigindo-se para o banheiro. — De vez em quando eles fazem isso.

Não — resmungou Hafez. — O repórter não mencionou qual­quer revista. Tive a impressão de que o FBI foi diretamente ao nosso armário, como se soubesse que ali iria encontrar alguma coisa!

Já nua, Amina se aproximou do árabe e, abraçando-se a ele, comentou:

Bem, querido... O FBI já pegou os explosivos e, portanto, não há nada que você possa fazer. Que tal vir me esfregar as costas no banho? Tive um dia terrível no hospital...

Hafez sorriu, acariciou os seios nus de Amina e insinuou:

Vá entrando no banho... Vou ligar para Mohamed e, depois...

Ouvindo Amina abrir as torneiras, ele ligou para Mohamed:

Você viu o noticiário?

Sim — respondeu Mohamed. — E isso é um problema dos mais sérios...

Sem dúvida. Mesmo porque precisamos repor a mercadoria.

Duvido que consiga com a mesma fonte — retrucou Mohamed. — Vou ter de procurar outra pessoa.

Não! — exclamou Hafez, com energia. — Não sabemos quando Al-Kayed vai precisar que usemos isso. Portanto, não temos tempo a perder. Dê um jeito de conseguir o material ainda hoje. No máximo, amanhã!

Mohamed sorriu interiormente e lançou um olhar para Esther, que estava espichada no sofá, ao seu lado. Disfarçando o súbito entusiasmo que o invadia, ele salientou:

Vou tentar, Hafez. Mas acho que isso vai custar caro... A minha fonte, com certeza, vai dizer que o risco aumentou muito e, se aceitar fornecer mais, isso vai custar bem mais caro.

Hafez soltou um palavrão em árabe e, tentando se acalmar, desabafou:

Dê um jeito, Mohamed. Você sabe que não estamos com muito dinheiro... E sabe que não posso enviar uma mensagem pedindo mais. Os representantes de Al-Kayed não sabem que o material que foi confiscado é o nosso. Eu não disse onde o guardaria. E acho que é bom que eles não saibam disso jamais! Portanto, é de suma importância que o material seja reposto o mais breve possível. Mesmo que seja mais caro. Só lhe peço para negociar o menor valor possível, entendeu?

Está certo — disse Mohamed, satisfeito com o que acabara de ou­vir. — Vou ver o que posso fazer e ligo para você dentro de alguns minutos.

Desligou o telefone e, acariciando as costas nuas de Esther, co­mentou:

Não faço a menor idéia de como o FBI descobriu esse armá­rio, Esther... Mas sei que esse incidente é o nosso passaporte para a liberdade!

A moça virou de frente para ele, permitindo assim que, mais uma vez, ele se deslumbrasse com a plástica perfeita de seus seios, e perguntou:

Como assim? Como é que isso pode ser bom para nós?

Simplesmente porque não vou comprar explosivo nenhum — respondeu Mohamed. — Vou pegar o dinheiro de Hafez, os vinte e cinco mil que estão faltando para nós e...

Beijando apaixonadamente os lábios de Esther, arrematou:

Amanhã já estaremos no Brasil!

Enquanto os dois se amavam como se tivessem medo que o mundo fosse acabar no dia seguinte, Hafez e Amina se abraçavam sob o chuveiro.

Não fique assim, querido — disse Amina, cheia de carinho. — Tenho certeza de que você vai conseguir dar um jeito na situação...

Já mandei Mohamed providenciar mais explosivos — explicou Hafez. — O problema é que isso vai custar muito caro... E nosso dinheiro já está no fim! Restam pouco mais de quarenta mil dólares...

Isso, se não houve mais encrencas no banco — murmurou Amina.

Não há perigo — replicou Hafez, com um sorriso. — Esse di­nheiro está aqui em casa, comigo. Depois daquela história de sumir di­nheiro de minha conta, decidi retirar quase tudo e guardar aqui em casa.

Beijando a moça, afirmou:

Sei que você não me roubaria, Amina. Mas o banco...

Amina retribuiu o beijo, anunciando:

Se nós fôssemos um pouco mais espertos, sumiríamos com esse dinheiro todo e esqueceríamos essa história toda de guerra santa, islamismos e tudo o mais...

Por um breve instante, passou pela mente de Hafez a visão de uma vida em outro país, longe de tudo aquilo, uma vida em que sua única preocupação seria fazer amor com Amina... Entretanto, afastando essas idéias da cabeça, ele ponderou:

Não, Amina... Sou um guerreiro. Um soldado da jihad. Não pos­so trair Al-Kayed e a grande causa!

Eles estavam saindo do banho quando Mohamed telefonou.

Vai custar trinta e cinco mil — disse ele. — E vou precisar des­se dinheiro agora. O homem do material está com medo e viajará hoje à meia-noite para fora do país. Ele ainda tem uma boa quantidade de material em sua casa e quer se desfazer dele. Mas quer ganhar com isso, é claro.

É muita coisa! — exclamou Hafez, com desespero — Você não conseguiu...

Ele disse que é pegar ou largar — interrompeu Mohamed. — Não há outra possibilidade.

Ficou em silêncio por alguns segundos e desfechou o golpe de misericórdia:

Não esqueça que esse homem pode muito bem ser encontrado pelo FBI, até mesmo na hora de embarcar, e nos denunciar. Por isso, vou comprar o material dele e vou eliminá-lo assim que tiver a mercadoria na mão. Por uma questão de segurança... E, daí, o dinheiro volta para nós. Só que eu preciso estar com o dinheiro na mão, ele precisa apanhá-lo, contá-lo, ver que é verdadeiro. Assim que ele me entregar o material...

Hafez deu um largo sorriso.

Está certo... É uma boa idéia. Venha pegar o dinheiro agora.

Menos de uma hora depois, enquanto Hafez e Amina davam va­zão a toda sua sexualidade exacerbada pela tensão que estavam vivendo, Mohamed e Esther, com o dinheiro nas mãos, embarcavam num vôo para Dallas. Dormiriam nessa cidade e, no dia seguinte, iriam para o Brasil. Nenhum dos dois estava usando identidade falsa, uma vez que, no que dizia respeito a Esther, judia, ninguém poderia ter qualquer desconfiança. Quanto a Mohamed, ele tinha a certeza de não ter seu nome envolvido em nada que pudesse incriminá-lo, pois as únicas pessoas que sabiam al­guma coisa a seu respeito eram Ibrahim e Hafez e, mesmo para esses dois, ele tinha dado um sobrenome que não era o seu.

Mas por que Mohamed não veio trazer o material até agora?

perguntou-se Hafez, nervoso e preocupado. — Será que aconteceu alguma coisa?

Como posso saber? — retorquiu Amina, penteando-se. — Vai ver que ele terminou a negociação muito tarde e não quis incomodar durante a madrugada.

Ele não ficaria com o material em seu poder — ponderou o árabe. — E jamais teria esse tipo de escrúpulo de não querer incomodar... Imagine!

Ligue para ele — sugeriu a moça, vestindo-se para ir para o hospital. — Só existe...

Já fiz isso enquanto você estava tomando banho — interrompeu Hafez. — Ninguém responde em sua casa e o celular está desligado.

Caminhando nervosamente pela sala do apartamento, ele res­mungou:

Vou ter de ir até lá. Não há outra maneira.

Tenha cuidado — recomendou Amina, com expressão preocu­pada. — Se aconteceu alguma coisa, e ele foi preso, é muito provável que o apartamento dele esteja sendo vigiado. E a última coisa que poderia acontecer, agora, é você se ver envolvido com o FBI...

Hafez garantiu que tomaria o máximo cuidado, que olharia muito bem as imediações do apartamento de Mohamed antes de entrar lá, pois ele também sabia que estaria correndo um sério risco.

Talvez ele tenha saído para tomar o café-da-manhã — disse.

Vou tentar daqui a meia hora e, se não conseguir nada ou se ele não aparecer por aqui, terei de ir até sua casa.

Amina deu de ombros e, estalando um beijo no companheiro, lem­brou que já estava em cima da hora de ir para o hospital.

Se eu fosse você — arrematou, já abrindo a porta para sair —, pegaria um táxi; não iria com meu carro. E desceria do táxi longe do apartamento dele.

Hafez sorriu, nervoso, e confirmou:

É exatamente o que pretendo fazer, Amina. Vou deixar seu car­ro na garagem e pegar um táxi. Sei muito bem que é mais seguro; pode ficar descansada.

Amina saiu, avisando ainda que estaria de plantão até sete horas da noite e que, portanto, ele não a esperasse para o almoço.

Hafez aguardou por três quartos de hora que Mohamed se manifes­tasse e, como não conseguira se comunicar com ele pelo telefone, decidiu ir até sua casa. Irritado, nervoso e muito preocupado, ele se vestiu e, res­mungando que haveria de dar um chacoalhão em Mohamed, partiu.

Caminhou por alguns quarteirões para se distanciar de seu apar­tamento, entrou num café, comprou o jornal — que folheou ansioso, imaginando encontrar alguma notícia dando conta de que Mohamed tinha sido preso com um enorme pacote de explosivos —, e, assim, tomou um táxi, fornecendo ao motorista um endereço a três quadras da casa do companheiro.

Desceu do carro e caminhou pela calçada, a princípio no sentido contrário ao que deveria seguir, deu a volta no quarteirão e rumou para o endereço certo, sempre dando voltas e caminhando devagar, como se não tivesse pressa nenhuma e nem mesmo um destino estabelecido. Prestou atenção às pessoas com quem cruzava, nas que estavam nos bares das imediações, assegurou-se de que nada havia de suspeito diante do prédio de apartamentos onde residia Mohamed e, por fim, apertou o botão da campainha do apartamento do companheiro.

Não obteve nenhuma resposta, apesar de ter insistido por mais de dez minutos. Novamente, pelo celular, tentou falar com ele, mas em vão.

Apertou, então, a campainha do zelador do edifício e, depois de mais alguns minutos de angustiante espera, surgiu um homem vestindo um ma­cacão de faxina, que lhe abriu a porta perguntando o que desejava.

É sobre o morador do apartamento 116 — respondeu Hafez. — Mohamed é meu amigo e deveria estar em casa. Como ele não está aten­dendo à campainha nem ao telefone, estou com medo que lhe tenha acon­tecido alguma coisa... Ele pode estar doente, ter sofrido um ataque...

O zelador abriu um amplo sorriso e brincou:

Se ele sofreu algum, só pode ter sido da loura que estava com ele e que vem sempre aqui...

Hafez nem de longe imaginava que Mohamed tivesse caso com al­guma mulher — ele jamais falara sobre isso — e, especialmente, com uma loura. Vendo a expressão de espanto do árabe, o zelador explicou:

Seu amigo não deve estar doente... Pelo menos, ontem à noite, não estava. Eu tive de substituir o porteiro da noite porque este faltou e vi quando ele saiu do elevador acompanhado por essa loura. Eles estavam carregando malas de viagem. E pode acreditar que estavam muito alegres!

Hafez sentiu uma pontada no estômago e percebeu que o sangue lhe fugia das faces. Com muita dificuldade, conseguiu balbuciar:

Viajar? Mas ele foi viajar? A que horas ele saiu?

Por volta de nove e meia da noite — respondeu o zelador. — E ouvi quando ele perguntou à mulher se ainda daria tempo de pegar o avião...

Ainda zonzo com a notícia e com o que ela poderia significar, o árabe indagou:

Avião? E para onde?

Isso não sei informar... Só sei que ele perguntou se daria tempo de pegar o avião. Para onde, ele não disse.

Procurando se controlar, Hafez forçou um sorriso e insistiu:

É que ele tinha de me entregar uns documentos... Um traba­lho científico sobre informática. Deve ter esquecido e foi viajar. Será que o senhor poderia abrir o apartamento dele para que eu pegue esses documentos?

O zelador balançou a cabeça negativamente e lamentou:

Sinto muito... Isso não posso fazer. Não tenho cópia da chave e, mesmo que a tivesse, ele não deixou nenhuma instrução de que alguém poderia vir aqui buscar alguma coisa...

Hafez não insistiu mais. Era mais do que óbvio que aquele homem tinha a cópia da chave, mas simplesmente não queria abrir a porta do apartamento de Mohamed para um desconhecido. Sim, pois Hafez jamais tinha ido à casa do companheiro...

O árabe agradeceu e foi embora.

Estava à beira de uma crise de nervos e, entrando no primeiro bar que viu, pediu uma dose dupla de uísque, até mesmo se esquecendo de que o bom muçulmano não deve beber álcool. Pelo menos, em público.

Já um pouco mais refeito, conseguiu pensar: "Não há dúvida ne­nhuma... Mohamed fugiu! Fugiu com o dinheiro que eu lhe dei para com­prar o explosivo! E, agora, tenho de descobri-lo! Mas onde? Onde pode estar esse bandido?"

Jurando a si mesmo que quando o encontrasse haveria de lhe cor­tar a mão direita pessoalmente, Hafez lembrou que o zelador dissera que Mohamed estaria indo para o aeroporto. Era uma pista muito débil, mas era a única que tinha e, então, decidiu explorá-la.

Telefonou para Ibrahim, contou-lhe o que tinha acontecido e instruiu:

Vamos procurar nas companhias aéreas. Vamos verificar as listas de passageiros. E, quando o encontrarmos...

Ibrahim esperou que Hafez acabasse de dizer tudo o que ele iria fazer com Mohamed — desde lhe cortar a mão direita, castrá-lo, arrancar-lhe as unhas dos pés e, por fim, cozinhá-lo em azeite quente — e comentou:

Sinto muito, Hafez... Mas acho que você não vai fazer nada disso. Pelo menos assim como você está falando.

Hafez franziu as sobrancelhas e retrucou:

E por que não? E só descobrir onde ele está metido que eu...

Você acha que alguém de qualquer companhia aérea vai lhe possibilitar ver as listas de passageiros? Ou vai lhe dar qualquer informa­ção sobre um árabe que tenha embarcado num de seus vôos? O que você vai conseguir é fazer com que o FBI seja alertado e então...

Hafez foi obrigado a admitir que o companheiro poderia estar certo. Depois que tinha sido encontrado um pacote com explosivos e outro com detonadores, e sendo os árabes sempre os primeiros suspeitos de qualquer ato terrorista, seria a mesma coisa que telefonar para o FBI e confessar que eles estavam metidos em alguma coisa muito séria.

Você tem de entrar em contato com um dos representantes de Al-Kayed — aconselhou Ibrahim. — Eles dispõem de meios para locali­zar Mohamed. Meios que não estão ao nosso alcance.

Mas, se eu fizer isso, terei de dizer por quê! E é justamente isso que não quero!

Depois de alguns instantes de silêncio, Ibrahim insistiu: — Não há outro jeito, Hafez. E você sabe disso. O que talvez possa fazer é não contar sobre os explosivos perdidos. Pode dizer que Mohamed simplesmente desapareceu e que você precisa encontrá-lo, uma vez que ele sabe muita coisa sobre nossas atividades...

Está certo — concordou o árabe, depois de refletir um pouco. — Acho, também, que não há outra saída. Vou para casa e enviarei um e-mail para Al-Kayed. Vamos ver o que acontecerá...

 

Vamos ver o que acontecerá — disse Harry Castells, subdiretor da agência do FBI em Nova York. — Vamos investigar com cuidado essa empresa de demolição e vamos ver no que dá.

Voltando-se para Donovan e Steinberg, acrescentou:

Acho que vocês dois devem cuidar desse caso. Afinal, Donovan é que foi alertado da existência desse pacote. E, para falar em sua mesa, em seu ramal, ela tem de ter falado primeiro com a Central de Telefonia e pedir para contatar Donovan. Logo, ela o conhece ou, pelo menos, sabe seu nome. Não podemos afirmar que essa mulher que telefonou não o faça outra vez. Assim, fiquem de ouvidos atentos e olhos bem abertos. No que diz respeito a terrorismo, cada segundo é precioso. Nunca poderemos adivinhar onde e quando eles vão atacar.

Entregando aos dois agentes uma cópia do relatório laboratorial feito sobre os pacotes e seu conteúdo, afirmou:

Nosso laboratório não teve dificuldade em descobrir que esse ex­plosivo plástico foi produzido pela Morrison Chemical. Por sorte, o conteúdo do pacote tinha sido produzido com uma fórmula especial para aumentar a capacidade de expansão de gases, a pedido da American Demolition Co. Portanto, já sabemos que o explosivo saiu de lá. Agora, só nos resta desco­brir como foi que saiu. Pessoalmente, conversei com o CEO da empresa, Jeremy Bollen, que nos disse ser impossível haver qualquer tipo de desvio de material explosivo. Ele não teve como responder quando afirmei que os dados de laboratório não podem se enganar... E prometeu...

O explosivo pode ter sido desviado na própria Morrison Chemi­cal — argumentou Donovan. — O que o faz pensar que ele tenha saído da demolidora, e não da fábrica?

Na verdade, nada — admitiu Castells. — Mas é mais compli­cado um desvio na fábrica, onde o controle é extremamente rigoroso, do que numa empresa de demolição, onde o material é usado e, portanto, destruído. Um engenheiro pode dizer que usou cinqüenta quilos de ex­plosivo, quando, na realidade, usou apenas vinte. Ou quarenta. O resto ele deu um jeito de esconder.

Donovan foi obrigado a concordar, e Castells prosseguiu:

Minha sugestão é que vocês concentrem esforços sobre a de­molidora, justamente porque as probabilidades de ser lá que aconteceu o desvio são maiores. Além disso, como já falei, quando lidamos com terrorismo, não podemos perder tempo. E eu detestaria trilhar uma pis­ta falsa, perder tempo nela e, enquanto isso, uma explosão acontecer, tirando dezenas ou mesmo centenas de vidas inocentes. Assim, vamos ver no que dá, partindo do princípio do mais provável. Já ordenei que todas as ligações destinadas a qualquer um de vocês dois sejam transferi­das diretamente para seus telefones celulares. Assim, não ficarão amar­rados ao escritório.

Castells esboçou um sorriso e finalizou:

Agora, vão trabalhar, rapazes... E com rapidez! Não se esqueçam de que uma explosão não demora mais que algumas poucas frações de segundo e que, nesse curtíssimo espaço de tempo, muitas vidas poderão ser desperdiçadas!

Os dois agentes deixaram a sala de Castells com expressão sombria. Ainda que ambos preferissem estar em campo fazendo uma investigação, aquela em especial trazia em seu bojo uma imensa carga de responsabili­dade. Eles tinham de achar os terroristas, e o mais depressa possível.

Por onde vamos começar? — perguntou Donovan.

Pelo óbvio — respondeu Steinberg. — Vamos ver quais são os fun­cionários dessa demolidora que possam ter qualquer relação com árabes!

Você está sendo radical — repreendeu Donovan. — A troco de que você imagina que esses terroristas sejam árabes? Por que não podem ser irlandeses ou espanhóis? Ou mesmo americanos?

Você ouviu as palavras do chefe... Ele disse que devemos seguir o princípio do mais provável. Assim, acho que militantes do IRA ou do ETA teriam pouco interesse em praticar um ato terrorista aqui nos Esta­dos Unidos. Já os árabes ou palestinos...

É um grupo radical norte-americano?

Também é possível — concordou Steinberg. — Mas não é o mais provável. Por isso, vamos tratar de procurar árabes.

Donovan deu de ombros. Conhecia muito bem seu parceiro e sabia que ele era teimoso como uma mula empacada. Portanto, de nada adian­taria querer interferir em seu julgamento. Além disso, ele também achava que o mais provável é que o grupo de terroristas fosse islâmico.

Pelo que imagino, esse grupo não deve ser muito experiente — ponderou ele. — E nem deve possuir uma grande infra-estrutura. Para guardar um pacote desses num armário público...

Concordo com você — admitiu Steinberg. — Mas, às vezes, esses grupos de fanáticos sem qualquer preparo são mais perigosos do que outro, de veteranos. Os novatos e inexperientes podem precipitar suas ações por medo ou pelo próprio fanatismo. Assim, não pensam, não avaliam os riscos que podem correr e, muito menos, as conseqüências do que vão fazer.

Enquanto Steinberg opinava, Donovan pegou o telefone e ligou para a empresa demolidora, pedindo para falar com o senhor Bollen, in­formando à telefonista da companhia que era do FBI.

Quando Bollen atendeu, este disse:

Estava para ligar para o senhor Castells neste instante. Preciso conversar com alguém do departamento o mais depressa possível.

Pode dizer do que se trata? — inquiriu Donovan.

Não pelo telefone — respondeu Bollen, — Creio que o melhor será marcarmos um encontro em algum lugar.

Marcaram de se encontrar em meia hora, num restaurante que fi­cava a meio caminho entre a empresa e o escritório do FBI e, desligando o telefone, Bollen ordenou à sua secretária:

Ponha esses relatórios numa pasta. Vou levá-los.

A moça aquiesceu com um sinal de cabeça e, enquanto seu chefe cuidava de adiantar algumas outras coisas que teria de fazer, ela aconselhou:

Não temos cópias desses documentos, senhor. Não acha melhor mandar xerocopiá-los?

Preocupado com o que tinha sobre sua mesa e sabendo que o en­contro com os agentes do FBI poderia fazê-lo perder o resto do dia, Bollen nem ouvira direito o que a secretária lhe disse e apenas concordara com um resmungo.

Dez minutos depois, a moça voltava trazendo uma pasta e um maço de cópias, comunicando:

Pronto, senhor. Nesta pasta estão os documentos que me entre­gou. E aqui estão as cópias que mandei fazer. Depois do almoço, colocarei tudo em seus lugares, no arquivo.

Bollen sorriu, elogiou a eficiência da moça, apanhou a pasta que ela lhe entregara e saiu do escritório. Dirigiu-se ao pátio de estaciona­mento, localizou seu automóvel e abriu-lhe a porta.

Uma explosão monumental arremessara Bollen a vários metros de distância, destruindo completamente o veículo e dois outros que estavam próximos.

Da janela do escritório, estarrecida, a secretária Anne Marie viu a explosão. Viu o corpo mutilado do patrão estendido no chão a mais de dez metros de distância.

Durante quase um minuto, ela ficou ali, junto à janela, petrificada, as mãos sobre a boca, segurando um grito. E, de repente, caiu em si.

Anne Marie sabia que o patrão estava indo se encontrar com alguém do FBI chamado Donovan, pois fora ela mesma que passara a ligação para a mesa de Bollen. E sabia que o patrão estaria levando para o FBI aquela pasta com documentos. Documentos que ela mesma tinha ido buscar no arquivo e que, portanto, tinha tudo para saber do que se tratava.

E, se o patrão fora morto — sim, assassinado; aquilo não poderia jamais ser um acidente —, quem poderia garantir que ela não seria a próxima vítima?

Trêmula, ela discou para o FBI. Com certeza, eles seriam os únicos a poder lhe dar um mínimo de segurança...

Donovan desligou o celular e pôs na capota do carro a lâmpada intermitente da sirene. Passou uma marcha mais forte e o automóvel deu um salto para diante, a sirene uivando.

Mas que diabo aconteceu?! — quis saber Steinberg, assustado.

Que telefonema foi esse?

Era Anne Marie, a secretária de Bollen — respondeu Donovan.

Ele acaba de ser assassinado. Segundo ela, Bollen estava entrando em seu carro para vir ao nosso encontro. O automóvel explodiu. Não sobrou grande coisa...

Steinberg fez uma careta e murmurou:

Numa empresa de demolição, assassinar alguém usando explosi­vo é um pouco falta de imaginação...

Donovan não respondeu, preocupado que estava em dirigir, se­guindo em alta velocidade em direção à empresa de Bollen, desviando-se dos outros automóveis, forçando passagem, furando os sinais vermelhos e fazendo perigosas conversões à esquerda ou à direita, confiando em sua habilidade e na civilidade dos outros motoristas, que, pelo menos teorica­mente, deveriam parar ao ouvir uma sirene se aproximando.

A moça está simplesmente apavorada — comentou Donovan, num instante em que o tráfego, um pouco mais folgado, permitiu-lhe des­contrair um pouco. — Ela acha que pode ser a próxima vítima.

Chegaram à empresa quando a polícia e os bombeiros também estavam chegando. Donovan orientou Steinberg a colher informações quanto à explosão com o pessoal dos bombeiros e da polícia técnica, en­quanto ele ia conversar com Anne Marie.

Encontrou a jovem trancada dentro do escritório do patrão e teve de se identificar muito claramente para que ela abrisse a porta. Ele entrou e, imediatamente, Anne Marie fechou novamente a porta, dando duas voltas à chave.

Olhando fixamente para Donovan, ela murmurou:

Ele vai me matar... Sei que ele vai me matar!

Quem? Quem vai matá-la e por quê? — perguntou Donovan, ansioso.

Munoz — respondeu a moça. — Foi ele que provocou a ex­plosão do carro do senhor Bollen... E eu estou com medo... Com muito medo!

Não precisa mais ter tanto medo — assegurou Donovan, ten­tando acalmá-la. — A polícia e os bombeiros estão aqui, e nós estamos aqui também... Você está protegida, fique sossegada!

Anne Marie deu um suspiro, sentou-se numa das poltronas diante da mesa de Bollen e, pondo o rosto entre as mãos, começou a chorar.

Donovan deixou-a chorar. Sabia que a melhor terapia para um choque tão grande quanto o que ela acabara de sofrer era justamente chorar.

Depois de alguns minutos, ele a tomou carinhosamente pelos om­bros e disse:

Muito bem, Anne Marie... Agora tente se acalmar um pouco para poder me contar por que está com tanto medo.

A moça enxugou os olhos, conteve o melhor que pôde os soluços e falou:

Logo de manhã, quando o senhor Castells, do FBI, ligou para o meu chefe, este me pediu para procurar os relatórios das implosões que fizemos neste ano. Ele me disse que, se houvesse alguma coisa errada, a única maneira de descobrir seria analisando esses relatórios. Não tive ne­nhuma dificuldade em encontrá-los, mesmo porque sou eu mesma quem os classifica e arquiva. Entreguei esses relatórios ao senhor Bollen, que passou seguramente umas duas horas estudando-os. Depois, ele me man­dou ligar para o FBI e afirmou que achava ter descoberto onde estava o erro. Lembro que ele comentou que algumas implosões necessitaram de mais explosivos do que o que estava programado.

A moça levantou-se para tomar água e ofereceu um drinque para Donovan que, de bom grado, aceitou um bourbon.

Enquanto bebericava o drinque, o agente pôde observar melhor Anne Marie. Sem dúvida nenhuma, era uma mulher belíssima. Teria per­to de trinta anos de idade e estava no auge de sua beleza. Alta, com lon­gos cabelos louros a lhe escorrer para os ombros e emoldurando um rosto de fazer inveja a muitas atrizes do cinema, Anne Marie tinha um corpo escultural, com curvas generosas, seios avantajados e pernas magnificamente bem torneadas. Donovan, involuntariamente, observou que ela não estava usando aliança.

"Menos mal...", pensou, imediatamente procurando afastar os pen­samentos libidinosos que lhe ocorriam num momento tão impróprio.

Já mais calma e controlada, Anne Marie prosseguiu:

Fiz cópia dos relatórios porque o senhor Bollen disse que iria levá-los para o FBI, e eu poderia, por alguma razão, perder esses documentos.

Mostrou um maço de papéis que estava sobre sua mesa e declarou:

Não os li, mas o senhor Bollen disse que todas as implosões que precisaram de maior quantidade de explosivo, ou mesmo de uma segunda carga, estavam sob a responsabilidade de um mesmo engenheiro, o se­nhor Peter Munoz.

Anne Marie fez uma pausa e, depois de servir mais uma dose de bourbon para Donovan, continuou:

Na verdade, esse fato de algumas implosões estarem dando er­rado fez com que o senhor Bollen, há cerca de dois meses, encomendasse à Harrison Chemical um explosivo especial, mais potente. Mas ele não estava desconfiando de nada.

Com um sorriso amargo, ela disse:

Acho que ele tinha tanta coisa na cabeça, tantos problemas para resolver, que não lia direito os relatórios de implosão. Por isso, não percebeu que só as operações de Peter não davam muito certo.

Donovan terminou seu drinque e, recusando uma terceira dose, avaliou:

Pode ser que não seja nada, pode ser que seja apenas uma supo­sição de sua parte, mas é algo que merece ser investigado. Vamos começar chamando esse tal de Peter Munoz para lhe fazer algumas perguntas.

Anne Marie fez um sinal afirmativo com a cabeça e pegou o telefo­ne para mandar localizar o engenheiro. Donovan percebeu que ela ficara pálida e, ao desligar, a moça comunicou:

Ele não está na empresa. A telefonista informou que ele saiu logo no início do expediente. Ou seja, cerca de duas horas e meia antes da explosão do carro do senhor Bollen...

Munoz tinha algum trabalho fora da empresa para realizar? — quis saber Donovan.

Não. Não havia nada marcado para hoje que o obrigasse a sair da empresa. Ele deveria estar aqui.

Você tem o número do celular dele?

Anne Marie, em resposta, abriu uma pequena agenda e discou um número pela linha direta de sua mesa.

Cai no correio de voz — disse ela, depois de tentar três vezes. — Ou o telefone está desligado, ou ele simplesmente não quer atender.

Donovan fez uma careta de desagrado e pediu:

Mande o departamento pessoal separar a ficha desse engenhei­ro. Preciso de informações sobre ele e de uma fotografia. Se ele já não es­tiver mais onde reside, o que é muito provável, nós emitiremos um alerta vermelho. Vamos achá-lo custe o que custar!

Fora por um mero acaso que Peter Munoz vira Anne Marie na sala de arquivo, naquela manhã, logo após ter chegado à empresa. Como ele sempre sentira uma forte atração pela moça e era muito difícil encontrá-la fora das dependências da diretoria, não quisera deixar escapar a oportu­nidade de tentar uma aproximação. Assim, ele perguntara-lhe: — O que está procurando? Posso ajudar em alguma coisa?

Não, obrigada — respondera ela, com um sorriso. — Estou ape­nas recolhendo os relatórios das demolições deste ano, a pedido do se­nhor Bollen.

Munoz franzira as sobrancelhas e indagara:

Mas para que ele quer isso?

Inocentemente, Anne Marie respondera:

Não sei, exatamente... Mas ele recebeu um telefonema do FBI. E, depois, pediu-me esses relatórios.

Munoz sentira o sangue congelar em suas veias. Quando soubera, pelos noticiários, que o FBI tinha encontrado um pacote com explosivos numa estação do Brooklin, e estava atribuindo isso a um grupo terro­rista, já ficara extremamente preocupado. E, agora, com aquela notícia que Anne Marie lhe dera, ficara absolutamente tomado pelo pânico. Ele seria descoberto! Não haveria como esconder ou como justificar todos os desvios de explosivos que ele vinha praticando. E ele estaria envolvido com terroristas!

O método que ele vinha utilizando era simples e, para ele e Ramón, o responsável pela venda dos explosivos desviados, era absolutamente seguro: bastava não pôr todo o explosivo solicitado e pronto; aquilo que sobrava era meticulosamente guardado e levado para sua casa. Depois, Ramón vendia.

Ele me disse que vendia para outras demolidoras... Nunca me falou em terrorismo! — murmurara Munoz enquanto caminhava, às pres­sas, para o parque de estacionamento. — Agora, tenho de impedir que Bollen chegue até o FBI! De qualquer maneira!

Alucinado de pavor, Munoz só conseguia enxergar uma maneira de impedir Bollen de contatar o FBI e, conseqüentemente, de acusá-lo: era preciso matá-lo.

Rapidamente, do porta-malas de seu automóvel, tirou um pacote de cerca de um quilo de explosivo plástico e grudou-o ao chassis do carro de Bollen, o que acionaria o detonador quando a porta fosse aberta. Em seguida, retornou à sua sala, pegou sua pasta e voltou para o pátio de estacionamento para apanhar seu carro. Nem sequer respondeu quando a recepcionista e telefonista lhe perguntara aonde ia. Apressado, entrara em seu automóvel e deixara a empresa. Não queria estar por perto quando o carro de Bollen explodisse.

Já a caminho de sua casa, onde pretendia passar rapidamente ape­nas para pegar algumas roupas e o dinheiro que mantinha escondido den­tro de um cofre, ligara para Ramón e contara-lhe, com a voz trêmula e o medo chegando a lhe travar a língua, o que acontecera e o que fizera para impedir Bollen de chegar aos federais.

Ramón escutara em silêncio e, quando Munoz terminara de falar, dissera apenas:

Estou indo para sua casa, Peter. Espere-me chegar; temos de traçar um plano.

E Ramón desligara, não dando tempo para Munoz contestar, dizer que estava com muita pressa e que não iria esperar por ele.

Com raiva, o engenheiro fechara o celular e deixara-o sobre o ban­co do carona, resmungando:

Se ele chegar enquanto eu ainda estiver lá, muito bem... Caso contrário, não vou esperar! Depois que o carro de Bollen explodir, terei pouco tempo para fugir. Preciso estar num avião rumo ao México dentro de, no máximo, duas horas... E isso, se eu tiver todo esse tempo, se os federais não descobrirem imediatamente que sou o culpado...

Arrependera-se por não ter tido controle suficiente para dar um jeito também em Anne Marie. Mas, em seu íntimo, duvidava que tivesse coragem para tanto. Afinal, era uma moça tão bonita... Tinha de confiar na sorte, tinha de acreditar que ela não desconfiara dele... E, principal­mente, que ele teria tempo suficiente para se pôr a salvo do FBI.

Chegou ao prédio onde residia, já perto de White Plans, cerca de vinte minutos depois. Pôs o automóvel na garagem e subiu, pelo elevador de serviço, para o seu andar.

Foi ao abrir a porta que se lembrou de Ramón.

Não vi o carro dele estacionado diante do prédio — murmurou. — Não deve ter chegado ainda.

Empurrou a porta e surpreendeu-se ao ver Ramón na cozinha, sen­tado à mesa. E ficou infinitamente mais surpreso ao perceber que o amigo estava empunhando uma pistola munida de silenciador.

Ramón não disse uma só palavra. Apenas acionou o gatilho da arma duas vezes. Munoz ainda teve tempo, antes de mergulhar nas trevas da mor­te, de ouvir o som abafado do primeiro disparo, um som que mais parecia o ruído de um livro pesado caindo sobre um carpete espesso...

Assim que a funcionária do departamento pessoal da empresa trou­xera ficha de Peter Munoz, Donovan telefonou para Castells, avisando que estaria indo para a residência do engenheiro.

Acho muito difícil que ele não seja o culpado, chefe — disse ele. — Vou buscá-lo para um interrogatório. E acho bom providenciar um mandado de busca. De repente, esse indivíduo tem explosivos dentro de casa ou outras coisas que possam servir de prova...

Castells consentiu, disse que faria contato com um promotor para cuidar do mandado de busca e desligou.

Donovan olhou para Anne Marie e já ia abrindo a boca para se despedir, quando ela declarou:

Vou com você. Não vou ficar aqui de jeito nenhum!

O agente ainda pensou em recusar, dizer para ela que não poderia ser, que não era permitido acompanhar uma busca e uma possível prisão, mas acabou desistindo. Era compreesível que estivesse extremamente chocada e com medo de que Munoz decidisse voltar para matá-la. Dando de ombros, ele concordou:

Está bem. Venha. Nem sei por que estou permitindo isso; não há a menor necessidade... Mas, venha...

Não vou atrapalhar, pode estar certo... — assegurou Anne Ma­rie. — Mas é que estou com tanto medo... E sei que vou me sentir segura ao seu lado.

Encontraram com Steinberg no pátio de estacionamento, e este não escondeu um sorriso maroto ao ver o companheiro ao lado da bela secretária.

Conseguiu alguma coisa? — perguntou Donovan, esforçando-se para ignorar a expressão divertida de Steinberg.

Nada além do já esperado. Foi usado um explosivo de alto poder destrutivo. O detonador certamente foi acionado quando Bollen abriu a porta do automóvel... E mais nada.

Nós já temos um suspeito e que, muito provavelmente, é o nos­so homem — garantiu Donovan, abrindo a porta traseira de seu carro para que Anne Marie pudesse entrar. — E vamos à casa dele agora.

Durante o trajeto, Donovan pôs Steinberg a par de tudo que Anne Marie tinha lhe contado, e esta lhe entregou as cópias dos relatórios de implosões para que o agente os visse. Steinberg folheou rapidamente o maço de folhas e observou:

E tudo muito técnico para mim... Mas, de qualquer maneira, acho que entendi. Esse tal de Munoz vinha roubando explosivos. Uma parte desse roubo já encontramos na estação do Brooklin. Agora, resta saber para quem mais ele andou vendendo e quanto.

Exatamente — concordou Donovan. — E, para obter essas in­formações, teremos de levar Munoz a interrogatório.

Com um tom pessimista, acrescentou:

Isso, é claro, se conseguirmos alcançá-lo. Ele tem mais de duas horas de vantagem sobre nós. Tempo suficiente para ter tomado um avião e já estar voando para muito longe...

Também não acredito que ele esteja esperando por nós — co­mentou Steinberg. — Mas o mínimo que podemos fazer é passar a casa dele por um pente-fino. Talvez ele tenha deixado alguma indicação de seus clientes. E, no fundo, neste instante, é o que mais nos interessa.

Voltando-se para Anne Marie, explicou:

Esse homem já está descoberto. Mesmo que fuja agora, não es­tará mais em ação e, cedo ou tarde, será apanhado. Porém, se ele vendeu explosivos a algum grupo terrorista, este, sim, temos de encontrá-lo o quanto antes para evitar que uma tragédia aconteça.

Fixando atentamente os olhos da moça, prosseguiu:

Por isso, precisamos saber, de você, tudo o que possa informar sobre ele. Se você conheceu algum de seus amigos, se ele tinha atitudes suspeitas, se recebia telefonemas estranhos... Qualquer coisa que você possa nos dizer pode ter extrema importância.

Anne Marie balançou negativamente a cabeça e admitiu, com uma expressão consternada:

O que sei sobre esse homem não é muito mais do que está em sua ficha. Ele é um indivíduo fechado, de pouca conversa. Nunca soube de nenhum amigo dele e, como ele possui um ramal telefônico direto, em sua sala, não temos controle sobre os telefonemas que recebe.

Fez uma pausa e, depois de refletir um pouco, Anne Marie acrescentou:

Somente uma vez atendi uma ligação para ele, por acaso. Eu estava em sua sala esperando que me entregasse um projeto de demolição, e o telefone tocou. Atendi automaticamente e passei o aparelho para ele. Era um indivíduo que se identificou por Mohamed.

Steinberg arregalou os olhos, cheio de interesse, e perguntou:

Mohamed? Ele informou o sobrenome? Quando foi essa ligação?

Não faz muito tempo. Talvez um mês e meio ou dois. O homem se identificou apenas como Mohamed e disse que Munoz sabia quem era.

E como reagiu Munoz? — perguntou Donovan, olhando para a moça pelo espelho retrovisor do automóvel.

Com toda a naturalidade. Cumprimentou-o, disse que estava ocupado naquele instante e pediu para que ele ligasse na hora do almoço. Tive a impressão de que se tratava de uma típica conversa entre dois ami­gos, sem qualquer relação com negócios ou trabalho.

E você não sabe se esse tal Mohamed voltou a ligar?

Não sei. Mas pode ser que a telefonista tenha atendido alguma outra ligação dele, se, por acaso, esse Mohamed ligou para o sistema de PABX, em vez de ligar para o ramal direto de Munoz. Se vocês acham que é importante, posso perguntar agora para ela.

Donovan pediu-lhe que o fizesse, e Anne Marie, pelo celular, en­trou em contato com a telefonista da empresa, que garantiu jamais ter recebido qualquer chamado externo para Munoz.

É como eu disse — argumentou a moça, ao desligar o telefone. — Ele tem um ramal pessoal. Seria muito difícil que quem ligasse para ele o fizesse pela central telefônica. Além do mais, ele estava sempre com o telefone celular...

Os dois agentes suspiraram, desconcertados, e Donovan comentou: — Bem... De qualquer maneira, seria fácil demais... E, para nós, parece que tudo tem de acontecer pelo caminho mais complicado!

Não houve o que convencesse Anne Marie a esperar no carro en­quanto os dois agentes foram se informar, com o porteiro do edifício, sobre o paradeiro de Munoz.

Pode ser perigoso — advertiu Donovan. — E você poderá nos atrapalhar.

Não. Vou com vocês. Só estarei segura ao seu lado.

Por fim, embora a contragosto, os três desceram e dirigiram-se ao porteiro.

Sim, ele está lá em cima — respondeu este à pergunta feita por Steinberg. — Vi quando ele chegou e pôs o carro na garagem. Subiu pelo elevador de serviço. E está sozinho, pois o amigo que o estava esperando já foi embora.

Os dois agentes se entreolharam e Donovan indagou:

O que quer dizer com isso? Ele mora com algum amigo?

Não — respondeu o porteiro. — Há um amigo dele, senhor Ramón, que vem sempre visitá-lo. Ele tem a chave do apartamento. Hoje, ele veio para cá há cerca de duas horas e subiu. Disse que iria esperar pelo senhor Munoz lá em cima. Depois de uns dez minutos que o senhor Munoz chegou, esse amigo desceu e foi embora.

Sem vacilar, os dois agentes correram para o elevador de serviço, acompanhados por Anne Marie, que, para maior garantia, aferrou-se ao braço de Donovan.

Acho que estamos chegando tarde — murmurou Steinberg.

Nada mais disseram até chegarem ao andar de Mufíoz e, quando o elevador parou, Donovan pediu a Anne Marie:

Fique aqui e segure o elevador para nós. Aperte o botão do térreo e mantenha a porta aberta. Não saia. Caso escute qualquer coisa anormal, feche a porta, desça e ligue imediatamente para o FBI.

A moça tentou protestar, quis dizer que preferia ficar ao lado deles, mas o olhar enérgico e determinado de Donovan desencorajou-a. Assim, resmungando uma afirmativa, ela obedeceu, e os dois agentes dirigiram-se para a entrada do apartamento de Munoz.

A porta estava trancada, e ninguém atendeu à campainha. Stein­berg olhou para Donovan, e este simplesmente acenou positivamente com a cabeça.

Bastaram duas arremetidas do pesado ombro de Steinberg para que a fechadura cedesse e eles pudessem entrar.

Munoz estava estirado no chão, em meio a uma poça de sangue, com um orifício de bala na altura do coração e outro no meio da testa.

— Reviste o apartamento — ordenou Donovan ao companheiro. — Vou ligar para Castells.

Assim dizendo e já com o celular na mão, Donovan virou-se para sair e avisar Anne Marie para que ela liberasse o elevador. A moça, po­rém, já estava ali, encostada ao batente da porta, os olhos muito arregala­dos e com as duas mãos sobre a boca, como se tentasse abafar um grito.

As mãos de Hafez estavam bastante trêmulas enquanto ele digi­tava, em seu laptop, o e-mail para Al-Kayed. Ele sabia que a mensagem não seria respondida pelo próprio Kayed e sim por um de seus represen­tantes, mas, mesmo assim, estava extremamente nervoso e humilhado. Detestava ter de confessar um erro, odiava ter de admitir que tinha sido puerilmente enganado por um subordinado. E tinha medo da mensagem que viria em resposta.

Terminou de redigir o e-mail, enviou-o e suspirou, profundamente infeliz e cheio de dúvidas. Tudo parecia estar indo tão bem... Por que, de repente, as coisas viraram do avesso? Por que tudo começara a dar errado? Teria sido o próprio Mohamed que denunciara ao FBI a existência do pacote com explosivos guardado na estação do Brooklin? E, se Mohamed fora capaz de traí-lo, Ibrahim não poderia fazer o mesmo? Por que ele su­gerira que não comentasse nada sobre os explosivos perdidos?

"Não", ponderou Hafez, tentando afastar pelo menos essa dúvida. "Ibrahim está engajado completamente com a grande causa. Ele não faria uma coisa dessas e a sugestão que me deu foi para nos proteger."

E Hafez seguira-a, nada dizendo, no e-mail que acabara de en­viar, que o FBI tinha descoberto a carga de explosivos. E isso era ou­tro motivo de grande preocupação para ele. Como faria para arrumar mais explosivos plásticos se não fazia a menor idéia de onde poderia consegui-los e, além do mais, com o pouco dinheiro que lhe restara? E se Al-Kayed ordenasse uma ação de demolição imediata? Como ele se desincumbiria dela?

Já era quase três horas da tarde quando chegou a resposta, e Hafez estremeceu ao ler o que aparecia na tela de seu laptop:

Nas últimas vinte e quatro horas partiram por avião, de Nova York para diversos lugares, apenas oito pessoas com o nome de Mohamed. Dessas oito, cinco embarcaram em vôos internacionais e tinham passagens reservadas há mais de quinze dias. Todos esses Mohameds são casados e embarcaram com as respectivas esposas. Nenhum tinha menos de quarenta anos. Portanto, nenhum deles pode ser o seu homem. Dos outros três, solteiros, com menos de trinta anos, dois embarcaram para Boston e um para Dallas. Nenhum deles era Mohamed Jarrahi. Pode ser que seu homem esteja usando um nome falso. Contudo, já mandamos nossos agentes investigar esses três. Temos uma fotografia de Mohamed Jarrahi que você enviou quando o admitiu no grupo. Não será difícil encontrá-lo. Até o final do dia teremos mais informações e a decisão do que você deve fazer a partir desta noite.

Portanto, Hafez teria mais algumas horas de angústia. O terrível era não saber o que viria em seguida, ignorando completamente o que Al-Kayed tinha determinado como seu destino.

No entanto, uma coisa era absolutamente certa: teria de estar prepara­do para uma ação qualquer e que não deveria tardar muito. O emissário tinha sido claro: "Até o fim do dia teremos mais informações e a decisão do que você deve fazer a partir desta noite". Logo, ele podia muito bem esperar que algo fosse acontecer nas próximas horas. E ele precisava dos explosivos!

Completamente desamparado e perdido em seus pensamentos, mesmo sabendo que não deveria fazer isso, ligou para Ibrahim. Precisava ter alguém ao seu lado, com quem pudesse partilhar seus problemas e, acima de tudo, que o ajudasse a pensar.

Como faço com os explosivos? — perguntou Hafez, com a voz traindo seu desespero. — Onde vou arrumar explosivos plásticos agora e com tão pouco dinheiro?

Depois de alguns instantes de silêncio, Ibrahim respondeu:

Há uma solução. Se você receber alguma ordem de demolição, use dinamite. É muito mais barato do que explosivo plástico e mais fácil de conseguir.

Um sorriso iluminou o rosto de Hafez, quando lembrou:

Isso nem preciso comprar! Tinha me esquecido! Tenho uma valise com cerca de dez quilos de dinamite! Desde que não seja para fazer saltar o Empire State, acho que dá para um bom barulho!

Dez quilos é pouco, Hafez. É melhor termos pelo menos o dobro disso.

Era um problema. Hafez teria de dar um jeito de comprar mais dinamite, e sabia que isso traria riscos muito sérios. E detestava correr esse tipo de risco. Não que Hafez tivesse medo de ser preso. Apenas não queria pôr em perigo toda uma operação — que, aliás, nem mesmo sabia qual poderia ser. Se Hafez fosse preso, toda a parte do plano de Al-Kayed relacionada a ele iria por água abaixo.

Não sei como fazer, Ibrahim — desabafou o árabe. — Não posso sair daqui porque estou esperando uma resposta de Al-Kayed.

Não se preocupe — retrucou o companheiro. — Vou cuidar pes­soalmente disso. Tenho dinheiro suficiente para comprar cerca de trinta quilos de explosivo. E sei como obtê-los. Talvez demore um dia ou dois, pois terei de comprar essa dinamite fora de Nova York. Assim, estarei incomunicável por esse período.

Hafez pensou por alguns instantes e aconselhou:

Nesse caso, seria melhor que você esperasse até a noite para viajar. Assim, terei a resposta de Al-Kayed e você poderá ficar sabendo também.

Ibrahim concordou e combinou com Hafez que este ligaria assim que tivesse qualquer notícia.

Quando desligou o telefone, Hafez sentiu-se mais aliviado. Com quarenta quilos de dinamite, eles poderiam fazer uma festa em Nova York!

As evidências são claras, chefe — disse Donovan a Castells. — Esse tal de Ramón foi ao apartamento de Munoz e matou-o. Com certeza para evitar que ele, sendo preso, desse com a língua nos dentes. Além disso, o cofre aberto e vazio denuncia que ele deve ter levado documentos ou dinheiro, senão ambos.

Até aí, concordo com você. O problema está em localizar esse homem. Não temos mais do que uma descrição dele, feita pelo porteiro do prédio, e isso é um bocado vago e impreciso. Basta ver como esse por­teiro se confunde com alguns sinais característicos e se contradiz. Uma hora Ramón é baixo e gordo; depois ele é de estatura mediana e forte; tem bigode num instante; depois o porteiro não lembra mais se era cavanha­que ou bigode... E outra coisa: Ramón provavelmente é um nome falso.

Voltando-se para Anne Marie, que continuava agarrada ao braço de Donovan como se este fosse sua tábua de salvação, Castells perguntou:

Você nunca recebeu qualquer ligação desse tal de Ramón?

Não, nunca — respondeu Anne Marie, com firmeza. —Já disse que a única ligação externa que recebi, destinada a Munoz, foi de alguém que se identificou como Mohamed...

Castells fez um gesto de desânimo e murmurou:

Mohamed... Mohamed... Há milhares de Mohameds nos Esta­dos Unidos... Isso não ajuda em nada também!

Depois de alguns instantes de um pesado silêncio, Steinberg observou:

Se esse tal de Ramón levou documentos que estavam no cofre de Munoz, há uma possibilidade de outras pessoas saberem o conteúdo desses documentos. E a pessoa mais provável de deter esse conhecimento está aqui...

Todos os olhares se voltaram para Anne Marie que, empalidecendo, balbuciou:

Mas eu não sei de nada! Minha função, na empresa, era sim­plesmente a de secretária pessoal do senhor Bollen! Nunca tive acesso a nada mais!

Com um sorriso que procurava tranqüilizar a moça, Steinberg pros­seguiu:

Acreditamos nisso, Anne Marie. Mas... Será que todas as pes­soas na empresa, e mesmo fora dela, sabem que você era apenas a se­cretária particular de Bollen? Será que não poderiam pensar que você ería... algo mais?

De pálida, Anne Marie ficou corada e, com um tom de revolta na voz, exclamou:

Se está querendo insinuar que eu era amante de Bollen, está muito enganado!

Não foi isso que eu quis dizer — desculpou-se Steinberg. — Quis sugerir, apenas, que você poderia representar, para muitas pessoas, a figura de secretária e confidente do patrão. Aquela pessoa com quem o chefe abre a alma, partilha problemas... É uma situação muito comum entre patrão e secretária. Assim, pode ser que Munoz imaginasse que você soubesse muito mais do que sempre demonstrou. Pode ter comentado alguma coisa com Ramón...

Você acha que ele viria me procurar? — indagou Anne Marie, com o pavor a lhe esganiçar a voz. — Ele poderia querer me matar?

É uma possibilidade — admitiu Donovan. — Se Ramón imagi­na que possa manter em segredo suas atividades com a morte de Munoz, com certeza vai querer apagar qualquer pista...

Mas ele já deixou um rastro — protestou Castells. — Ele não matou o porteiro!

Nem sempre os criminosos pensam em tudo — ponderou Steinberg.

E, como se falasse para si mesmo, comentou:

O próprio porteiro nos disse que Ramón era muito generoso. Isso significa que ele lhe dava gorjetas, não acham? E pode ser que Ramón estivesse muito confiante na amizade conquistada, pode ser que imaginas­se que o porteiro nem sequer comentaria que ele tinha estado no prédio.

Castells meneou a cabeça em sinal de dúvida e, acendendo um cigarro, prosseguiu:

Outra pista, também muito débil, é esse tal de Mohamed. Como vamos fazer para encontrá-lo? É o mesmo que procurar uma agulha num palheiro!

Podemos alertar nossos agentes, os aeroportos e tudo o mais para procurarem todos os Mohameds que surgirem. Será algo demorado, mas pode ser que leve a alguma coisa — arriscou Steinberg.

Isso já foi feito — garantiu Castells. — Dentro de mais alguns minutos teremos pelo menos as listagens de passageiros que. embarcaram nos aeroportos ou adquiriram passagens, bem como as listagens das fichas policiais de hotéis. Mas, sinceramente, não tenho muitas esperanças de encontrar esse homem. Em primeiro lugar, quem me garante que ainda está nos Estados Unidos? E quem me garante que tenha ido viajar? Esse Mohamed pode muito bem estar escondido num lugar qualquer de Nova York, simplesmente esperando a poeira baixar. Ou, quem sabe, está com uma imensa carga de explosivos, aguardando o momento certo para pra­ticar um ato terrorista que poderá causar centenas de vítimas!

Nesse instante, entrou na sala de Castells uma moça trazendo um disquete de computador, que inseriu na máquina do chefe, informando:

Todas as listagens que pudemos conseguir estão aqui. E o cruzamento de informações que executei leva a uma conclusão muito interessante...

Castells franziu as sobrancelhas numa expressão interrogativa, e a moça continuou:

Como seria de esperar, há dezenas de Mohameds. Entretan­to, um despertou minha curiosidade... Este Mohamed, cujo sobrenome é Marzouk, não aparece registrado em nenhum hotel, o que faz supor que tenha residência aqui em Nova York. Ele comprou duas passagens da American Airlines para o Texas, uma para ele mesmo e outra para uma mulher chamada Esther Meyer. Aliás, quem fez as reservas e pagou as passagens, já no aeroporto, foi essa mulher. Eles deram um endereço que não existe. E o interessante está justamente aí. De todos os Mohameds que foram verificados, este é o único que deu um endereço falso.

Com um sorriso, a moça comemorou:

— Tomei a liberdade de comunicar ao nosso escritório em Dallas. Eles já estão procurando por Mohamed Marzouk e Esther Meyer...

Ninguém prestou muita atenção àquele casal que chegou de táxi num motel próximo ao aeroporto de Dallas, sem mais bagagens do que a valise da mulher, e subiu para um dos inúmeros apartamentos. Era, com certeza, apenas mais um casal procurando um lugar para dar vazão a um amor provavelmente proibido. Também no aeroporto, sua atitude foi ab­solutamente normal: desembarcaram de um vôo vindo de Nova York, com duas malas e uma valise, alugaram um armário no serviço de guarda-volumes e dirigiram-se para o balcão de uma companhia aérea brasileira, comprando duas passagens para o Brasil, para o dia seguinte, às cinco horas da tarde. Apenas se mostraram decepcionados por não terem con­seguido vôo logo pela manhã. Do aeroporto pegaram um táxi e foram para o motel.

Mohamed e Esther passaram a noite fazendo amor e planos para a nova vida que, na manhã seguinte, estaria começando. Esther estava muito animada, confessando para Mohamed que sempre desejara viver no Brasil, que sua vida era o sol, a água-de-coco e as praias. Por sua vez, Mohamed já se imaginava fazendo qualquer coisa relacionada com a informática, numa cidade de médio porte, onde ninguém o conhecesse e onde pudesse viver em paz, única e exclusivamente para o amor com Esther.

Acordaram por volta de dez horas da manhã e foram passear pela cidade, sem rumo e sem destino, apenas com a finalidade de encher o tempo até três horas da tarde, quando então voltaram para o aeroporto.

Entraram no saguão principal abraçados e foram fazer o check-in para o embarque.

— Vou apanhar as malas — disse Mohamed.

Separaram-se, e Esther, ao ver que o rapaz se afastava, apanhou seu celular e discou um número.

Em iídiche, ela disse:

Não. Ele não é o chefe. Estou convencida disso. Não sei até que ponto ele ainda está escondendo alguma coisa, mas com certeza ele traiu os companheiros. Isso significa que virão atrás dele. Vocês não precisam mais se preocupar. Estou voltando agora. Não faz sentido correr mais riscos. Vou para Washington e, dentro de alguns dias, quando vocês me avisarem, voltarei a Nova York.

Desligou e, em passos rápidos, dirigiu-se para a saída, para apanhar um táxi.

Mal tinha saído para a calçada, um homem encostara nela e ordenara:

Não tente nenhuma gracinha, moça... Tenho uma arma aponta­da para o seu fígado e o dedo muito nervoso. Queremos lhe fazer algumas perguntas.

Quase no mesmo instante, um automóvel parou junto ao meio-fio e a porta traseira foi aberta por dentro. O homem que estava ao lado de Esther empurrou-a para dentro do veículo e sentou-se ao seu lado, declarando:

Muito bem, agente Sarah Ingermann... Agora você vai nos dizer até onde o Mossad está sabendo dos planos de Al-Kayed...

Enquanto isso, Mohamed já estava se aproximando do armário onde tinha deixado suas malas. Foi no instante em que estava pondo a mão no bolso para apanhar a chave que ele viu o homem.

Era inegavelmente um árabe, com a barba de corte característico, as sobrancelhas espessas, alto e magro.

Mohamed, tenho um recado de Al-Kayed — disse ele.

Mohamed imediatamente adivinhou que tipo de recado seria. Ten­tou fugir, mas não teve tempo. Na mão direita do homem surgiu uma pistola com silenciador e ele fez dois disparos, atingindo o rapaz primeiro no peito e, em seguida, no pescoço.

O som dos tiros, abafado pelo silenciador e pelo ruído de fundo típico de um aeroporto movimentado, não foi percebido por ninguém. Apenas algumas pessoas viram Mohamed se apoiar no armário e, lenta­mente, escorregar para o chão, enquanto o árabe que atirara se afastava rapidamente, porém sem correr.

A angústia de Hafez, que, logo após o telefonema para Ibrahim, parecera ter diminuído, voltou a crescer à medida que o tempo passava, e ele não tinha notícia de Al-Kayed. Como se não bastasse não saber o que estava acontecendo e muito menos o que Al-Kayed pensava a seu respeito e reservava para seu futuro, Hafez tinha a desagradável sensação de desconforto, por ter certeza, intimamente, de não estar sendo um bom muçulmano e, muito menos, um bom soldado da jihad, como deveria ser. Ele abraçara a grande causa; de fato compenetrara-se da validade da fatwa ditada por Al-Kayed, segundo a qual "matar americanos e seus aliados — civis e militares — é um dever individual de qualquer muçulmano que tenha os meios de fazê-lo, em qualquer país". Como bom soldado do Islã, deveria ter permanecido rigorosamente aferrado às regras do Corão. En­tretanto, não fora isso que acontecera. Quando conhecera Amina, tudo mudara. Pelo menos com respeito ao seu comportamento, à forma de enfocar a figura feminina e o sexo, à maneira de se relacionar com prazeres mundanos, como a alimentação, o álcool e o tabaco, e ao consumismo capitalista que, por princípio, sempre fora frontalmente combatido por Al-Kayed.

Hafez mudara, e muito. Mudara a ponto de não mais conseguir conceber a vida sem Amina, sem um padrão de conforto e de gastos que jamais seriam compatíveis com a imagem de um guerrilheiro, como ele sempre se julgara.

Ele estava ansioso e angustiado, também porque sabia estar tri­lhando um caminho sem volta. Envolvera-se com a jihad e Al-Kayed. Envolvera-se demais... recebera — e perdera — dinheiro da grande causa. Não poderia mais retroceder.

Posso fugir — murmurou ele, com um suspiro. — Mas o mundo será pequeno demais para eu me esconder de Al-Kayed.

Com um arrepio, lembrou, em voz alta:

E há Amina... Com certeza, eles a alcançariam, só para me castigar...

E era essa a idéia que mais o atormentava: que Amina pudesse vir a sofrer qualquer coisa. Sim, era importante pôr a moça a salvo. Mas como? Onde escondê-la? O que fazer para que ela não fosse encontrada pelo braço vingador de Al-Kayed?

Com a imagem de Amina a lhe encher a mente e a imaginação, Hafez pegou o celular — não queria usar o telefone fixo por causa da men­sagem que deveria receber de Al-Kayed e que ele não sabia se, desta vez, viria por e-mail ou diretamente pelo telefone — e ligou para a moça.

Teve notícias de Mohamed? — perguntou Amina.

Ainda não — respondeu Hafez. — Mas o pessoal de Al-Kayed já está cuidando disso. Até você chegar do hospital terei notícias.

E Ibrahim?

Logo mais à noite ele vai viajar para me trazer mais material. Tudo vai se arranjar, Amina. Fique descansada.

Estou preocupada com você. Parece estar nervoso... Muito tenso!

Tenho motivos para isso, não acha? Mas estarei bem melhor quando você voltar.

Amina deu uma risada e, dizendo que tinha certeza de que saberia como fazer para acalmá-lo, desligou.

Assim que Hafez fechou o celular, o alarme de e-mail chegando soou no laptop e ele, ansioso, abriu-o.

A mensagem afirmava que Mohamed tinha sido encontrado e eli­minado em Dallas e que ele estava em companhia de uma agente do Mossad, o equivalente israelense da CIA. Assegurava também que, uma vez que a segurança da célula que ele, Hafez, comandava tinha sido destruída, ele deveria se preparar para pôr em ação o plano alternativo. E terminava afirmando que o braço vingador de Al-Kayed reviraria o mundo para en­contrá-lo, bem como a pecadora Amina, caso esse plano não fosse posto em ação no máximo meia hora depois que o mundo recebesse o aviso e o sinal de que nada poderá impedir a jihad de continuar.

Ao terminar de ler, Hafez sentiu tudo girar ao seu redor, como se o sangue lhe fugisse completamente das faces, e teve de fazer muito esforço para não desmaiar.

O plano alternativo! Era, realmente, a última coisa que ele poderia desejar!

E significava que tudo estaria terminado.

Amina precisava ir embora, precisava desaparecer!

Voltou a ligar para a moça, aconselhando:

Amina, você precisa ir para Paris. Saindo do hospital, cuide da passagem para o primeiro vôo que puder tomar. Não me faça perguntas agora; explicarei o que puder quando você voltar para casa, já com a pas­sagem comprada. Irei logo depois de você, e nos encontraremos.

Antes que a moça pudesse protestar, Hafez enfatizou:

Obedeça. É muito importante que você faça exatamente o que eu disse.

E, sem esperar resposta, desligou.

Imediatamente em seguida, ligou para Ibrahim. Contou-lhe sobre a mensagem que recebera, sobre o destino de Mohamed, e avisou:

Não preciso mais dos explosivos. E você deve sair da cidade imediatamente, por medida de segurança. Com a determinação de Al-Kayed para se tomar o plano alternativo, você está dispensado. É uma missão só para mim.

Ibrahim apenas resmungou alguma coisa e desligou. Não havia o que fazer, não havia o que dizer, e ambos sabiam disso.

Para Hafez, aquela ordem significava o término de sua missão dentro de pouco tempo. Para Ibrahim, significava o início. Ele assu­miria a posição do companheiro em algum lugar dos Estados Unidos, depois que entrasse em contato com Al-Kayed por meio do e-maií que Hafez lhe entregara.

Desligando o telefone, Hafez começou a esvaziar suas gavetas e a rasgar todos os papéis que encontrava.

Enquanto Priscilla, a eficiente assessora de pesquisas de Castells não tinha qualquer resposta de Dallas, não havia muito a fazer, a não ser também esperar o resultado da revista do apartamento de Munoz, que Steinberg, alegando não querer ficar muito afastado das investi­gações preliminares, tinha se incumbido de realizar. Assim, enquanto este voltava para o local do crime, Donovan levou Anne Marie para tomar um café.

Ainda estou com muito medo — confessou a moça. — Tenho certeza de que Ramón vai tentar alguma coisa contra mim.

Pois eu acho que você está fazendo uma tempestade num copo d'água, Anne Marie. A troco de que ele teria interesse em se arriscar a esse ponto?

Ele pode pensar que se arrisca muito mais se eu souber de algu­ma coisa — retrucou ela. — Ele pode muito bem imaginar que Munoz me tenha dito mais do que devia, por exemplo...

Ficando um pouco ruborizada, Anne Marie acrescentou:

Não sei o que Munoz poderia ter dito a meu respeito... Ele sem­pre esteve muito atraído por mim e não fazia grande segredo. E você sabe como são certos homens... Podem não conseguir nada de uma mulher, mas, para contar vantagens a um amigo, deixam que a imaginação voe muito alto. Daí a ele ter falado alguma coisa para Ramón, e este achar que eu saiba demais, é apenas um passo.

Donovan meneou a cabeça lenta e afirmativamente. Anne Marie poderia estar com a razão. Ramón poderia supor que Munoz tivesse sido indiscreto para com a moça e, num momento de maior arroubo, ter lhe falado demais. Sim, havia a possibilidade de ele querer voltar e eliminar uma possível testemunha.

Mas ele saberia o seu endereço? — perguntou o agente.

Pode ser que saiba — respondeu Anne Marie. — Certa vez, meu carro estava na revisão e Munoz me deu uma carona até em casa. Claro, ele não subiu ao meu apartamento, mas ficou sabendo onde é o prédio. Descobrir o número do apartamento seria uma banalidade.

Donovan olhou para Anne Marie, e esta, percebendo seu olhar, deu um sorriso nervoso, presumindo:

Você não está pensando em me fazer de isca-viva, não é?

O agente ficou sem jeito e, parecendo procurar as palavras menos duras, balbuciou:

Não propriamente isso... Mas talvez... Se ele tiver a idéia de procurá-la...

Anne Marie ficou em silêncio. Tomou o resto do café que estava em sua xícara e, erguendo o olhar para Donovan, declarou:

Acho que eu não teria coragem, Donovan. E acho também que ele jamais iria lá. A essa altura, ele já deve estar sabendo que estou aqui no escritório do FBI. No mínimo, é isso que ele deveria supor. Ele vai tentar me pegar em algum outro lugar, talvez até mesmo na empresa ou no trajeto de minha casa até lá.

Sorriu, pousou a mão sobre o antebraço do agente e perguntou:

Por que acha que não estou querendo ficar sozinha em lugar nenhum? E por que acha que, à medida que a noite se aproxima, eu fico mais nervosa?

Donovan segurou a mão de Anne Marie e assegurou:

Por estes dias você não precisa se preocupar. Vamos instalá- Ia num hotel, e você terá um agente postado diante de sua porta como garantia. Porém, isso não pode ser eterno e, portanto, temos de pegar Ramón o quanto antes.

Levantaram-se da mesa em que estavam e dirigiram-se de volta à sala de Donovan. Anne Marie não soltou a mão do agente e, no elevador, encostou-se um pouco mais a ele.

Assim que saíram no corredor onde ficava a sala de Castells e a de Donovan, Priscilla abriu a porta do escritório do chefe e chamou Dono­van, dizendo:

Já temos novidades de Dallas, e Castells quer falar com você.

Sempre acompanhado por Anne Marie, Donovan entrou no escritório do chefe, que, ao vê-lo de mão dada com a moça, não pôde esconder um sorriso carregado de malícia.

Nós não perdemos tempo... — murmurou Castells.

Donovan, percebendo os enésimos sentidos daquela observação, comentou:

E verdade... Priscilla acabou de me dizer que já existem novida­des de Dallas...

Castells ampliou o sorriso e continuou:

...com pistas inúteis. Priscilla tinha dito que um Mohamed den­tre todos os que figuravam nas listas que ela conseguiu chamara-lhe a atenção. Passou sua suspeita para o escritório de Dallas e... Ela estava certa. Mohamed Marzouk era o homem...

Era? — fez Donovan com expressão de surpresa. — O que está querendo dizer com era?

Exatamente o que você entendeu — respondeu Castells. — Quando nossos homens chegaram ao aeroporto de Dallas, ele tinha aca­bado de ser assassinado.

Entregando a Donovan uma folha de fax, Priscilla esclareceu:

E há mais. O escritório do Mossad em Dallas passou-nos este fax. Eles dizem que uma agente especial deles, Sarah Ingermann, foi en­contrada morta, esfaqueada, no banco de trás de um carro abandonado no estacionamento do aeroporto. Uma pessoa viu sangue escorrendo pela parte de baixo da porta e chamou a polícia. Essa agente estava com docu­mentos nos quais constava o nome de Esther Meyer. Segundo o Mossad, essa agente estava trilhando um grupo de terroristas que teriam como missão explodir o Centro de Cultura Israelense em Nova York. A suposi­ção era de que Mohamed seria o chefe da célula terrorista. Porém, alguns minutos antes de morrer, Sarah ligou para seu chefe no Mossad e disse que Mohamed não era o chefe. Assim sendo, as buscas estão se dirigindo para cima de dois outros componentes desse grupo, um chamado Hafez Skandar e outro de nome Ibrahim Shehri.

Donovan leu o fax enviado pelo Mossad e, ao terminar, olhou para Castells como se lhe pedisse instruções.

Este, com um erguer de ombros, observou:

Veja bem, Donovan... Não deixa de ser uma informação para ser investigada. Porém, nós já temos experiência com informações do Mos­sad. Eles são muito espertos e põem em cima de nossas costas alguns casos que não têm nada a ver conosco. Melhor dizendo, que têm muito mais a ver com eles do que conosco. Assim, pode ser que essas informações que eles nos enviaram sejam verdadeiras. Mas nada nos garante que o sejam. Pode ser que esse tal de Hafez e esse outro, Ibrahim, não sejam mais do que simples suspeitos, e o Mossad esteja interessado em não perder tempo com uma investigação mais detalhada a respeito deles. Então, eles dão a impressão de que Hafez e Ibrahim são terroristas perigosos para nos fazer correr atrás deles. Daí, depois de um gasto enorme de tempo e recursos, descobrimos que são dois cidadãos exemplares. Apenas são árabes viven­do aqui nos Estados Unidos, inocente e honestamente.

Mas não podemos desprezar nenhuma informação! — protestou Donovan. — E se tudo isso for verdade? E se eles estiverem, realmente, querendo fazer saltar o Centro de Cultura Israelense?

Não tenho dúvida quanto a isso — defendeu-se Castells. — Apenas estou dizendo que é preciso tomar cuidado para não perder tem­po. Uma informação do Mossad deve ser levada a sério e, por isso, vou mandar investigar esses dois nomes. E vou pedir para o Mossad especificar um pouco mais. Por exemplo, fornecer endereços, atividades... coisas as­sim. Não quero desperdiçar tempo, energia e recursos em pesquisas que, certamente, o Mossad já fez e tem os resultados.

Fixando o olhar em Anne Marie, acrescentou:

No momento, nossos esforços têm de se concentrar em Ramón. Pode ser que ele, de fato, seja um distribuidor de explosivos para células ter­roristas. Se isso for verdade, quando o apanharmos, teremos a possibilidade de desarticular muita coisa! Além disso, é preciso cuidar da segurança de Anne Marie... Ela pode ser o próximo alvo desse tal de Ramón.

Deu um sorriso, piscou o olho esquerdo para Donovan, e concluiu:

Mas, quanto a isso, posso ficar sossegado. Você saberá como se desincumbir dessa tarefa...

Entre um hotel e o apartamento de Donovan — onde ele morava sozinho desde que se divorciara da esposa, havia já mais de seis anos —, Anne Marie preferiu este último, alegando que detestava o ambiente frio e impessoal dos hotéis e que, além do mais, ela teria uma sensação de muito maior segurança na residência do agente, em sua companhia, do que em qualquer outro lugar. Assim, passaram por uma dessas lojas de de­partamentos vinte e quatro horas, a fim de comprar alguns artigos básicos para a moça — como roupas íntimas e escova de dentes — e foram para a casa do agente.

Donovan não pôde deixar de sorrir quando, na loja, ao escolher um conjunto de calcinha e sutiã, Anne Marie lhe perguntara se gostava daquele modelo.

Acho que, em você, qualquer coisa cai bem — elogiara o agente, com uma forte pitada de malícia. — E nada, certamente, fica melhor ainda...

Subiram para o apartamento e, quando entraram, Anne Marie admirou-se com o bom gosto de Donovan com respeito à decoração e comentou que era um apartamento grande demais para um homem sozinho.

Até dá a impressão de que você não pretende ficar solteiro o resto da vida — comentou, com um sorriso.

Donovan preferiu não replicar. De fato, o apartamento era bastan­te grande, com três dormitórios — um deles, o agente transformara em escritório e biblioteca e o outro, em quarto de hóspedes, embora jamais tivesse qualquer convidado —, uma sala com dois ambientes e uma cozi­nha completamente equipada.

Gosto de cozinhar — justificou-se ele. — É a minha terapia. Por isso, para mim, a parte mais importante da casa é a cozinha.

Também gosto de cozinhar — disse a moça. — Mas tenho pre­guiça de cozinhar só para mim...

E, antes que Donovan perguntasse, ela revelou:

Fui casada durante um ano. Na realidade, foi um casamento mui­to mais de conveniência do que qualquer outra coisa. Não suportava mais o ambiente na casa de meus pais, em Saint Louis. Precisava de ar, de espaço para crescer. E, se dependesse de minha família, eu teria me casado com um primo distante, dando continuidade à tradição familiar de só casar com franceses ou, no mínimo, descendentes puros de franceses. Não era essa a minha meta de vida e, assim, casei-me com o primeiro que apareceu. Era mais ou menos óbvio que a união não iria durar muito, e foi exatamente o que aconteceu. Estou divorciada há quatro anos.

Donovan apenas resmungou alguma coisa e, para desviar o assunto, disse:

Vou preparar alguma coisa leve para comermos. Enquanto isso, se quiser tomar um banho, minha banheira de hidromassagem é muito boa. Você poderá relaxar e, quando tiver terminado, jantaremos.

Nesse exato momento, tocou seu telefone celular.

Donovan atendeu, vendo Anne Marie entrar no banheiro e ouvindo-a abrir as torneiras. Não pôde deixar de imaginá-la despindo-se...

Tenho novidades — disse Steinberg, do outro lado da linha. — Encontramos uma fotografia de Ramón!

Como sabe que é ele?

É uma dessas fotografias que os paparazzi de quinta categoria tiram nos restaurantes. Ele está em companhia de Munoz e duas mulheres.

Deu uma risada e comentou:

As mulheres, você bem pode imaginar o que são... Mas o importante é que no verso da fotografia está a data, o nome do restaurante, o nome das mulheres e o de Ramón. Pena que não tenha também o sobre­nome dele, o endereço e tudo o mais. De qualquer maneira, já temos pelo menos um elemento para procurá-lo. Castells mandou uma cópia para todos os que estão participando da caçada. Acho que não vai demorar muito para colocarmos as mãos em cima dele.

Alguma novidade sobre as informações fornecidas pelo Mossad? perguntou Donovan. — Sobre aqueles dois cujos nomes são citados no fax?

Ainda não temos nada a esse respeito — respondeu Steinberg.

Castells ligou para o correspondente do Mossad aqui em Nova York, mas, ou eles não sabem nada além do que já informaram, ou estão sone­gando mais informações. Você sabe como são essas coisas e como é o re­dime de competição que impera entre os serviços secretos... De qualquer maneira, estamos tentando agir também por nossa conta. É pena, pois é um pouco mais demorado; o Mossad deve ter muitas informações que se­riam úteis e que precisaremos conseguir por nós mesmos. Seria mais fácil se eles se dignassem a ajudar.

Donovan deu um sorriso contrafeito. Era bem verdade o que Stein­berg estava dizendo. O Mossad, assim como qualquer serviço de inteli­gência de outro país, habitualmente não partilha informações, a menos que seja de seu absoluto interesse.

Bem — disse ele. — Avise-me se souberem alguma coisa mais a respeito de Ramón. Se o pegarem, quero estar presente no interrogatório.

Se houver alguma novidade dentro de duas horas, ainda pode ser que eu o avise — disse Steinberg, rindo. — Sei que você está com Anne Marie aí em sua casa. Duas horas é o tempo que você vai demorar para preparar o jantar. Depois disso... Duvido que você queira receber qualquer telefonema!

Donovan soltou um sonoro palavrão e desligou. Mas logo em se­guida foi obrigado a sorrir, quando ouviu Anne Marie dizer, de dentro do banheiro:

Steve... Você não quer trazer alguma coisa para beber? E vir fazer companhia para mim?

Ramón Orellana não era um principiante. Já trabalhara vendendo explosivos para grupos fundamentalistas que atuaram na Argentina, no Quênia, na Tanzânia, dentro dos Estados Unidos e até mesmo para grupos do IRA e do ETA. Sua religião e política eram o dinheiro. Por dólares seria capaz de fazer qualquer coisa, sem lhe interessar nem mesmo sa­ber o que fariam com o explosivo que conseguia. O relacionamento com Munoz fora o que se poderia chamar de ouro sobre o azul: Munoz conse­guia explosivos da mais alta qualidade, cobrava pouco e não fazia muitas perguntas. Para o engenheiro, só interessava ter certeza de que estava for­necendo material para outras empresas de demolição. E era exatamente isso que Ramón sempre lhe garantira.

No entanto, o FBI descobrira aquele pacote de explosivos na esta­ção do Brooklin. Os federais, àquela altura dos acontecimentos, estariam trilhando Mohamed com a mesma eficiência usada para localizar a demo­lidora onde trabalhava Munoz.

— Esse imbecil! — lamentara Ramón para si mesmo, ao deixar o apartamento do engenheiro, logo após matá-lo. — Não teve estrutura nenhuma! Não teve coragem de enfrentar a situação! Teve de explodir o carro de Bollen, deixando todos os rastros possíveis!

A morte de Munoz tinha sido, para Ramón, uma conseqüência lógica e inevitável da própria estupidez do engenheiro. Depois de matar Bollen e fugir da empresa daquela maneira estúpida, ele fatalmente seria apanhado pelo FBI e não resistiria a dez minutos de interrogatório. Portanto, precisava morrer. Havia algo mais, porém, que Ramón ainda precisava fazer antes de desaparecer de circulação por algum tempo, tal­vez voltando para o Paraguai, talvez viajando para outro lugar qualquer onde não fosse reconhecido, preso e extraditado. Ele precisava eliminar a outra única pessoa com quem Munoz poderia ter falado de sua existência: a secretária de Bollen, Anne Marie, que, segundo o que lhe contara o en­genheiro no meio de uma conversa, chegara a ser uma amiga bastante... íntima.

"Idiota como era, não seria nada difícil ter falado tudo para essa mulher!", pensou Ramón, com raiva. "E isso não me deixa nenhuma al­ternativa! Tenho de matá-la também!"

Com esse objetivo em mente, Ramón tentou, de um telefone pú­blico, ligar para a empresa de demolição de Bollen. Não teve êxito, havia apenas um vigia que lhe disse que a empresa estava fechada porque o patrão tinha acabado de falecer.

Voltou, então, para sua casa, apanhou todo o dinheiro que guarda­va consigo, arrumou uma mala de roupas, vistoriou tudo, para ter certeza de não estar deixando para trás qualquer coisa que pudesse servir de pista numa eventual revista feita pela polícia, e saiu. Embora ainda fosse bastante cedo, queria ficar mais ou menos próximo à casa de Anne Marie, pois, assim que ela chegasse, trataria de eliminá-la e, então, antes que o FBI ou a polícia pudesse desconfiar dele, já estaria bem longe.

Assim pensando, e com tempo suficiente pela frente — imaginava que Anne Marie só voltasse para casa bem mais tarde —, foi até o aero­porto, onde adquiriu uma passagem para Assunção, no Paraguai, no vôo que sairia de Nova York às onze e meia da noite.

Voltou para o centro, sempre com o rádio do carro ligado numa estação de notícias, prestando atenção ao que ouvia, com o objetivo de saber se já teriam descoberto o cadáver de Munoz. Entretanto, até sete e meia da noite, ainda não tinha ouvido nenhuma menção sobre o assunto.

Eram exatamente oito e quinze quando ele estacionou o carro dian­te do prédio onde ficava o apartamento de Anne Marie, cujo endereço ele soubera pelo linguarudo do engenheiro.

Desceu, dirigiu-se à portaria e perguntou ao porteiro, um homem louro, muito alto, com aspecto simpático:

Por favor, preciso entregar uma correspondência pessoal para a senhorita Anne Marie... Qual é o apartamento dela?

Ramón percebeu, de repente, que o sorriso simpático que ilumi­nava o rosto do porteiro desaparecera, dando lugar a uma expressão que poderia ser definida de assustadora.

Não esperou resposta e, voltando-se rapidamente sobre seus calca­nhares, tentou fugir. Não deu três passos e viu outros dois homens surgin­do de trás de uma das colunas do saguão de entrada do edifício.

Com o desespero estampado no rosto, Ramón levou a mão direita à coronha da pistola que estava carregando no bolso do paletó.

No entanto, Steinberg estava muito próximo e foi mais rápi­do. Sua enorme e pesada mão alcançou o pescoço de Ramón por trás, agarrou-o e sacudiu-o. Ouviu-se um estalo lúgubre e, imediatamente, Ramón amoleceu.

Quando Steinberg o pousou no chão, o rosto arroxeado do para­guaio, com os olhos esbugalhados, mostrava que ele já não mais pertencia ao mundo dos vivos.

Droga! — exclamou Steinberg, com raiva. — Não era para tan­to! Eu precisava desse bandido vivo!

 

O avião pousou no aeroporto de Nova York exatamente às duas e meia da tarde, no horário local, e Fefê não demorou mais do que vinte minu­tos para ser liberado, com a pouca bagagem que tinha — uma mala de roupas e uma valise executiva, onde não havia mais do que a sua agenda e algumas revistas.

A viagem tinha sido bastante boa; apenas houve um pouco de ten­são na hora do embarque, no Brasil, uma vez que o rapaz estava morrendo de medo de que o revistassem e descobrissem os documentos falsos. O outro único momento de apreensão foi durante o desembarque nos Estados Unidos, e pela mesma razão.

Contudo, exatamente como João Antônio lhe advertira, tanto o pessoal das alfândegas quanto o de segurança nos aeroportos estavam mais preocupados com objetos metálicos, ou que pudessem representar perigo a bordo, do que com qualquer outra coisa. E, no desembarque em Nova York, como tinha apenas uma mala relativamente pequena, não haveria qualquer tipo de problema.

Do aeroporto, Fefê rumou diretamente para o hotel, em Manhattan, para tomar um banho e deixar a mala de roupas. Dali, pegou um táxi e foi para o banco. O encontro com o fornecedor da droga seria na manhã seguinte, às sete horas e, portanto, teria de sacar o dinheiro e íicar com ele.

Sentado no banco de trás do táxi, segurando no colo a maleta exe­cutiva vazia, Fefê admirou a imagem das Torres Gêmeas do World Trade Center. Pensou nos irmãos, que estariam lá, no octogésimo nono andar, trabalhando juntamente com Tony. Gostaria de ter ligado para eles avi­sando de sua chegada, mas sabia que isso seria impossível. Teria de deixar toda a parte social para o dia seguinte, para depois de tudo estar resolvido com relação ao que tinha ido, efetivamente, fazer em Nova York.

Não tinha as mesmas intenções, porém, quanto à questão senti­mental. Assim que entrara no quarto do hotel, ligara para Samira, pedindo-lhe que fosse até lá e o esperasse.

Tenho algo muito importante para fazer imediatamente — dis­sera. — E, depois, não poderei mais sair do hotel. Por isso, o único jeito é você vir para cá. Jantaremos juntos e depois...

Samira exultara. Ela tinha sido avisada por Fefê de sua chegada e, para sua surpresa, ficara extremamente ansiosa para vê-lo, para sen­ti-lo junto a si, poder beijá-lo... Concluíra que, de fato, apaixonara-se por ele.

Uma vez no banco, bastou que Fefê — um bocado nervoso, mas esforçando-se ao máximo para não demonstrar — apresentasse seus do­cumentos e o cheque, para que, imediatamente, o gerente o chamasse à sua mesa e mandasse buscar o dinheiro no cofre. Todo solícito, en­quanto o milhão de dólares estava sendo devidamente acondicionado na maleta que o rapaz entregara a dois funcionários, o gerente ofereceu-lhe café, biscoitos, perguntou como tinha sido a viagem e, muito hábil, tentou saber em que o rapaz iria usar tanto dinheiro, de uma só vez e em cédulas vivas.

Por que não pode ser em cheques? Não teríamos nenhum pro­blema em abrir uma conta para você e fornecer-lhe quantos talões de cheques precisasse — disse.

Fefê, previamente instruído por João Antônio, respondeu que seria impossível. Estava cuidando da produção de um filme e precisava realizar pagamentos para extras. E esses extras eram pessoas muito pobres e que teriam grande dificuldade em trocar cheques por dinheiro.

São mais de mil figurantes — explicou. — E os pagamentos começam hoje à noite.

O gerente não insistiu. Habituado que estava a fazer os seguranças do banco expulsar pessoas mal-vestidas que entrassem na agência, apesar dessa não ser uma atitude legal, ele podia muito bem compreender as ra­zões que Fefê estava expondo. Compreender, apenas. Aceitar e acreditar na outra história. E ele também estava habituado a entregar quantias de dinheiro bastante elevadas a indivíduos que ele sabia estarem envolvidos com alguma espécie de tráfico. Mas esse tipo de coisa era atribuição da polícia e não dele. Interessava-lhe apenas que o cheque tivesse fundos e que nada de anormal ocorresse em sua agência.

O dinheiro chegou, a maleta foi entregue ao rapaz e, despedindo-se dele, o gerente recomendou:

— Tome cuidado, meu amigo... Nova York teve um decréscimo significativo em seu índice de criminalidade. Mas isso não quer dizer que os assaltos tenham acabado! Creio que seria aconselhável você chamar um táxi aqui do banco. Há um excelente serviço de radiotáxi na cidade, e pode confiar nos motoristas.

Fefê aceitou a sugestão e, menos de cinco minutos depois, estava à caminho do hotel, segurando com força a alça da maleta, como se esti­vesse se aferrando à própria vida.

Isso, no fundo, não deixava de ser verdade. Se aquela maleta desaparecesse, seria melhor que ele também sumisse, pois João Antônio haveria de querer ver seu couro pelo avesso...

Lembrou-se, de repente, de que João Antônio dissera que haveria alguém vigiando seus passos até que o dinheiro fosse entregue ao fornece­dor da droga e, apesar de não achar nada agradável saber que estava sen­do seguido, naquele instante, a idéia pareceu-lhe excelente. Pelo menos poderia contar com uma possibilidade de proteção, pois era de esperar que quem o estivesse vigiando estaria muito mais interessado em tomar conta do dinheiro do que em qualquer outra coisa. Assim, se um assalto acontecesse, certamente essa pessoa haveria de interferir para proteger a maleta e, conseqüentemente, protegê-lo.

Entretanto, nada aconteceu de anormal, e ele desembarcou do táxi, na porta do hotel, são e salvo.

Um steward ofereceu-se para segurar sua maleta, mas, com um gesto, Fefê recusou. No balcão, ao lhe entregar a chave, o recepcio­nista avisou:

— A senhorita Samira está esperando pelo senhor no bar... O rapaz apanhou a chave e, quase correndo, dirigiu-se ao encontro de Samira.

A notícia da morte de Ramón fora dada a Donovan logo pela ma­nhã de segunda-feira, quando ele despertou pela chamada de seu celular. Steinberg estava sem jeito, com um tom constrangido na voz, culpando-se por não ter tido suficiente controle para medir a força com que apertara o pescoço do paraguaio.

Eu também o queria vivo, Donovan... — lamentou ele. — Mas errei. Errei na força, e o pescoço dele quebrou como se fosse um palito de fósforo...

Apesar da raiva e da frustração que sentia, Donovan não pôde dei­xar de sorrir. Ele conhecia muito bem a força hercúlea do companheiro e sabia como ele tinha esmagado — literalmente — o pescoço de Ramón, para depois dizer que "quebrou como se fosse um palito de fósforo".

Pelo menos você não precisa mais se preocupar com a seguran­ça de Anne Marie — lembrou Steinberg com malícia. — Pode mandá-la ir para casa...

Na verdade, era o que menos Donovan tinha vontade de fazer. De­pois da noite que passara com ela, começava a pensar seriamente que sua vida de solitário estava tomando outro rumo. Olhou para o lado onde, nua e espichada sobre a cama, Anne Marie sorria, acariciando-lhe o peito.

Ela ainda precisa de segurança — sorriu Donovan. — Por isso, acho que vai ficar por aqui alguns dias...

Anne Marie intensificou suas carícias ao ouvir essa frase, e Dono­van ordenou:

Vou sair dentro de uma hora, mais ou menos. Peça a Castells que mande dois agentes para o meu prédio. Não se pode ter certeza de que Ramón estava trabalhando sozinho.

Já fiz isso pessoalmente — garantiu Steinberg. — Quando você sair de seu apartamento, verá que há um dos nossos meninos no corredor e outro no saguão de entrada do edifício. Por isso, sua nova amada estará perfeitamente vigiada e segura. Não precisa ficar preocupado e trate de vir para cá... assim que ela o deixar.

Donovan desligou o celular, voltou a abraçar Anne Marie e, cerca de uma hora mais tarde, deixou o apartamento, rumando para o escritório da agência nova-iorquina do FBI.

Assim que entrara na sala de Castells, este contou:

Nada ainda sobre aqueles dois nomes, Hafez e Ibrahim. O pessoal do Mossad garante que não está escondendo nenhuma infor­mação, que tudo o que sabe já nos passou naquele fax e que esses dados foram os únicos que eles receberam da agente Sarah Ingermann. Claro que nosso pessoal está procurando em todos os lugares possíveis. Mas você sabe muito bem que a maior probabilidade é a de estarem usando nomes falsos.

Voltando-se para Priscilla, ele perguntou:

E você? Encontrou alguma coisa?

Ainda não, chefe. Mas pesquisaremos os bancos a partir de ago­ra. Ele tem de ter uma conta aberta em algum lugar. Se usou o nome Ha­fez Skandar, nós o encontraremos. O mesmo vale para o tal de Ibrahim.

Com um gesto de desânimo, Priscilla finalizou:

O problema é que é um processo bastante demorado. Não va­mos conseguir nenhum resultado antes de três ou quatro dias.

Faça o que for possível, Priscilla. Ponha mais técnicos pesqui­sando, acelere! E, enquanto isso, Steinberg e mais alguns agentes ficarão vigiando de perto o Centro de Cultura Israelense, apesar de termos a certeza de que o Mossad já está fazendo isso.

Steinberg assentiu com um sinal de cabeça e saiu, enquanto Do­novan dirigia-se para sua sala, pensando em ler o relatório das buscas no apartamento de Mohamed e o relatório do escritório de Dallas sobre o assassinato do árabe.

Faltava pouco para cinco horas da tarde quando ele terminou de ler tudo e de fazer as anotações e observações que julgava necessárias. Chamou Priscilla e perguntou:

Alguma novidade?

Ainda não, Donovan. Até agora não achamos nenhuma conta aberta com esses dois nomes, juntos ou isoladamente.

Eles podem ter contas encerradas — arriscou o agente. — Por isso você não está encontrando nada em contas abertas.

Pode ser — admitiu Priscilla. — Vou pedir, amanhã, para um dos técnicos se dedicar única e exclusivamente às contas encerradas.

Donovan levantou de sua poltrona e apanhou o paletó, numa evi­dente demonstração de que estava encerrando seu expediente.

Priscilla sorriu e perguntou, fingindo surpresa:

Já vai embora? Tão cedo? Você nunca saiu daqui antes de oito ou nove horas da noite!

Donovan retribuiu o sorriso e falou, baixando a voz:

Tenho visita em casa... Uma visita muito especial...!

Estou sabendo — retrucou Priscilla. — E desejo-lhe boa sorte, Do­novan... Você esteve muito tempo sozinho, e isso não é bom para ninguém!

Samira estava mais linda do que nunca. Usava um vestido que lhe moldava perfeitamente as formas, e seu rosto, iluminado pela felicidade do reencontro, levaria à loucura qualquer homem.

Abraçaram-se, beijaram-se longamente e, tomando-a pelo braço, Fefê disse:

Venha, querida. Vamos subir. Não posso ficar fora do quarto. Uma vez lá em cima, a porta trancada com duas voltas à fechadura, o rapaz colocou a maleta sobre a cama e, abrindo-a, mostrou para Samira seu conteúdo.

Ela arregalou os olhos, espantada, e murmurou:

Meu Deus! Quanto dinheiro! Voltando-se para ele, perguntou:

Quanto tem aí? É seu?

Fefê explicou para ela tudo o que acontecera desde sua partida, dando todos os detalhes que não pudera ou não tivera tempo de comentar por telefone. E encerrou dizendo, com expressão sonhadora:

O dinheiro está depositado em sua conta, meu amor. Com isso, em seu banco já temos seiscentos mil dólares. Seria dinheiro suficiente para começarmos a vida, mas ainda quero um pouco mais. Quero ter o suficiente para poder sair da empresa e caminhar por minhas próprias pernas. Não quero ficar o resto da vida trabalhando... com minha famí­lia. Como caçula, jamais serei, verdadeiramente, dono de mim mesmo, sempre estarei na dependência, de uma forma ou de outra, de meu pai e de meus irmãos. Quero juntar um milhão de dólares. Aí, poderei ter o meu próprio negócio e dar a você a vida que merece. Ao meu lado, como minha mulher.

Samira sorriu, passou os braços em torno do pescoço do rapaz e beijou-o com volúpia. Nos últimos dias, a idéia de se casar com Fefê já não lhe parecia tão absurda; muito pelo contrário. Entretanto, ainda ha­via um sério empecilho: sua carreira. Por mais que estivesse se sentindo apaixonada pelo rapaz e por mais que soubesse que ele poderia lhe dar uma vida de milionária, não era apenas isso que a moça tinha como objetivo de vida. Ela queria ser uma modelo famosa, reconhecida nesse meio, ver seu rosto estampado em capas de revistas. Não revistas masculinas, posando nua, mas sim em revistas de moda.

Você vai me deixar continuar a trabalhar? — perguntou ela, timidamente.

Em seu íntimo, Fefê não tinha a menor vontade de deixar. No en­tanto, ele sabia muito bem que uma negativa, naquele instante, poderia ser um bloqueio até mesmo definitivo para que Samira aceitasse se casar com ele. Assim, o melhor era dizer que concordava. Depois, o tempo haveria de traçar os próprios obstáculos, e ele a teria só para si. Viriam os filhos, haveria a carga de ocupações domésticas, as atividades sociais — que ele jamais dispensaria — e toda uma vida de agenda cheia para que Samira não tivesse tempo de lembrar de seu sonho de ser modelo.

É claro que vou deixar, meu amor — respondeu ele. — Se é isso que a fará feliz...

Serei feliz ao seu lado, Fefê — garantiu a moça. — Mas não quero deixar de lado, melhor dizendo, jogar fora, tudo o que já passei até hoje. Preciso tirar alguma vantagem de todo esse sacrifício e, além do mais, ser modelo sempre foi a minha meta. Se vou poder continuar a minha carreira e estar casada com você, não há mais o que pensar.

O rapaz sentiu bater mais forte o coração. Na verdade, era a pri­meira vez que Samira manifestava seu consentimento; até então, jamais fora clara quando ele tocara nesse assunto, preferindo mudar a conversa ou permanecer em silêncio, o que deixava Fefê com uma terrível e assus­tadora sensação de insegurança. E, naquele momento, ela estava dizendo que sim, que ela se casaria com ele!

Abraçou-a com força, acariciou-lhe as costas nuas, os seios, desli­zou suas mãos pelas pernas de Samira e disse-lhe:

Farei de você a mulher mais feliz do mundo, Samira. Mesmo porque eu serei o homem mais feliz que jamais existiu!

Samira sorriu e, depois de beijá-lo com volúpia, afastou-se um pou­co e alertou:

Mas... isso que você está fazendo...

Apontou para a maleta de dinheiro, ainda aberta sobre a cama, e continuou:

Isso é perigoso! Você pode ser apanhado e então...

Não há perigo — tentou tranqüilizá-la Fefê. — João Antônio é um homem esperto e muito bem apoiado. Se esse sistema não fosse abso­lutamente seguro, ele não o usaria. Não precisa se preocupar. Além disso, será por pouco tempo. Só mais quatro viagens e nós teremos o milhão de dólares que eu desejo.

Samira meneou negativamente a cabeça e, com expressão preocu­pada, insistiu:

Pois eu tenho medo, querido... As coisas podem não se passar como você está imaginando. Esse seu amigo pode não querer deixá-lo sair do negócio. Pode escravizá-lo!

Fefê já sabia disso. Aliás, tinha certeza de que era exatamente essa a intenção de João Antônio, assim como tinha sido a de Erik. Entretanto, não queria pensar nesse assunto. Ainda era cedo; quando tivesse juntado o dinheiro que queria, arrumaria um jeito de sair sem correr perigo.

Não se preocupe — reafirmou. — Quando chegar o momento, vou descobrir uma maneira de parar. E sem riscos.

Puxando Samira para mais perto, começou a despi-la, dizendo: — Por enquanto, meu amor, temos coisas mais agradáveis para pensar...

Ora, Mathew! — exclamou Natalie, com um sorriso. — Deixe isso para lá! Temos coisas mais agradáveis para pensar, neste momento... Para pensar e fazer!

O jornalista riu. Tinha sido uma semana que Mathew jamais es­queceria. Natalie estava insaciável — assim como ele — e os dois prati­camente não saíram do apartamento e, a bem da verdade, mal tiveram tempo de se vestir.

E, naquele momento, beijando-o com sofreguidão, ela se recusava terminantemente a conversar sobre a possibilidade de vir a ser contrata­da como correspondente de análises econômicas latino-americanas para uma revista semanal nova-iorquina de grande circulação.

Não foi preciso mais do que dois minutos para Mathew perceber que seria absolutamente inútil insistir e, deixando-se levar mais uma vez pela volúpia de Natalie, o jornalista se entregou aos prazeres que somente ela sabia lhe proporcionar.

Sim, ele estava decidido. Seria Natalie ou ninguém mais! E Ma­thew haveria de dar um jeito para que a moça nem sequer pensasse em voltar para o Brasil. Sem ele, é claro...

Já bem mais tarde, enquanto a própria Natalie preparava o jantar, Mathew lhe perguntou:

E essa sua amiga, Samira, que você quer reencontrar amanhã? Pelo menos você sabe onde ela mora?

Tenho um endereço que ela me deu há muito tempo. Nem sei se ainda está por lá. Mas não custa tentar.

Enquanto batia ovos para fazer uma omelete, Natalie continuou:

Eu a conheci quando ainda éramos estudantes. Sempre gostei dela, apesar de Samira não fazer absolutamente parte de minha roda social. Era de origem bem humilde e órfã de pai e mãe. Nunca soube direito essa história, mas parece que aconteceu um crime na família. Como Samira sempre fora muito bonita, não teve dificuldades em ar­ranjar trabalho como vendedora numa dessas grandes lojas de moda feminina. Logo em seguida, fez duas ou três produções publicitárias na televisão. Depois disso, soube que veio tentar a sorte aqui em Nova York. Foi nessa ocasião que ela me deu esse endereço. Mas isso já faz bem uns cinco anos...

Certamente ela não está mais no mesmo lugar, depois de tanto tempo — ponderou Mathew. — Hoje ela deve ser uma modelo famosa... e rica.

Pode ser, e espero que você tenha razão, Matt... Mas conheço o mundo das modelos; já fiz vários trabalhos sobre moda e, agora, quero produzir uma grande reportagem sobre a vida das meninas que tentam a carreira de top model. Sei quanto é difícil ter sucesso. E Samira pode me proporcionar excelentes informações.

Natalie pôs um pouco de manteiga numa frigideira, esperou que ela derretesse até espumar e despejou os ovos batidos, começando a preparar a omelete.

Mathew olhou-a enternecido e, dando-lhe um beijo no rosto, declarou:

Não vou deixá-la voltar para o Brasil, Natalie... Quero você comigo até o final dos tempos...

A moça sorriu, retribuiu o beijo e perguntou:

E o que faço de minha carreira?

O mesmo que farei com a minha: transformaremos duas carrei­ras individuais numa única nossa carreira — respondeu Mathew. — O que é, aliás, uma idéia que vem se formando em minha cabeça desde que a conheci.

Natalie virou com habilidade a omelete na frigideira e, franzindo as belas sobrancelhas, quis saber:

O que você está querendo dizer com isso? Que vamos trabalhar juntos?

Podemos perfeitamente unir o útil ao agradável, querida — res­pondeu o jornalista. — E, ainda por cima, tenho certeza que vamos ga­nhar muito dinheiro. Sei que você gosta do mesmo estilo de jornalismo que eu, ou seja, o jornalismo investigativo. Você detesta ter de se limitar a simplesmente narrar fatos. Eu também sou assim. Poderemos unir forças e explorar esse ramo. E produzir matérias de peso para inúmeros jornais e revistas no mundo inteiro.

Servindo os pratos, Natalie concordou:

A idéia é boa, Matt. Porém, não sei se daria certo trabalharmos juntos, estarmos sempre juntos, de dia, de noite... As experiências de que já tive notícia não deram certo... Depois de um tempo acabam o amor e a empresa...

Mathew abraçou-a e discordou, com ansiedade:

Isso não vale para nós dois, Natalie... E vamos provar que essa sua teoria é falha!

Natalie não retrucou, limitando-se a beijar com ardor os lábios de Mathew.

Quando começaram a comer, a moça prosseguiu:

Amanhã já estaremos trabalhando juntos, Matt... Você vai me ajudar a encontrar Samira. E tenho a desagradável impressão de que não será tão simples assim... E não quero ir embora dos Estados Unidos en­quanto não tiver a oportunidade de me sentar com ela e fazer todas as perguntas que tenho em mente sobre o mundo das top models, principal­mente o das meninas que jamais conseguiram galgar os degraus da fama e da fortuna.

Isso é uma boa notícia para mim — murmurou Mathew. — Se você não quer voltar para o Brasil antes de reencontrar essa tal de Samira e, se depender de eu ajudar a encontrá-la, você corre o risco de demorar pelo menos uns dez anos... E, enquanto isso, você estará obri­gatoriamente comigo!

Um pouco mais tarde, durante o jantar que Fefê fizera subir ao quarto, e já pelo menos parcialmente saciada a ânsia de amor que ambos sentiam, Samira contou para o rapaz o que tinha feito em Nova York desde que chegara. Ela estava bastante decepcionada, pois o ensaio foto­gráfico, que já deveria ter começado, fora adiado sine die, e a moça estava muito preocupada com a possibilidade de não mais acontecer.

Tenho procurado outros trabalhos — comentou. — Mas está muito difícil. Há uma verdadeira invasão de meninas de todos os luga­res do mundo, que vêm para cá achando que Nova York é a Meca das modelos. Pode até ser. Mas a verdade é que não existe trabalho para todo mundo. A maioria delas acaba ficando por aí, se prostituindo para poder sobreviver, e cai no mundo das drogas. Parece até ser um cami­nho obrigatório.

Samira, evidentemente, não contou que ela, no início, tinha trilha­do esse mesmo caminho... Alguns dias atrás, talvez até tivesse admitido para Fefê que tinha sido obrigada a isso, uma vez que achava que a pai­xão que este sentia por ela poderia atrapalhar seriamente seus objetivos. Contando-lhe sobre sua vida pregressa, ela o desencantaria e o afastaria. As coisas, porém, tinham mudado. Ela também estava apaixonada e queria dividir a vida com o rapaz. Para que destruir seu castelo de sonhos?

E, de fato, seria muito mais fácil conseguir subir na carreira tendo o respaldo de uma conta bancária recheada e o apoio de alguém que, de fato, a amasse. Fefê era a pessoa, era esse alguém. E a confirmação de suas suposições estava nas palavras do rapaz:

Você será uma grande modelo, Samira. E jamais precisará passar por esse tipo de dificuldade para subir na vida. Eu não vou permitir que isso aconteça! Você será uma estrela e de primeira grandeza!

Samira sorriu, cheia de felicidade e esperança e, depois de alguns instantes, perguntou:

E onde nós vamos morar?

Aqui e em São Paulo — respondeu prontamente o rapaz. — Aliás, com o dinheiro que vamos ter, poderemos viver onde bem quiser­mos. Onde for melhor para você.

E o que você vai fazer aqui em Nova York?

Fefê olhou para a moça com ar sonhador, e respondeu:

Se São Paulo já é uma cidade boa para se trabalhar, Nova York é muito melhor. Aqui, qualquer coisa que se invente tem possibilidade de dar certo, de trazer lucro. Poderia continuar a trabalhar no ramo de comércio exterior, mas isso não é o que pretendo. Faria concorrência com a minha família e não seria nem um pouco elegante. Poderia trabalhar em propaganda e marketing, afinal de contas é essa a minha formação.

Com um novo brilho no olhar, exclamou:

Sim! É isso mesmo! Vou abrir uma empresa de propaganda e marketing aqui nos Estados Unidos! Com uma filial em São Paulo!

Samira anuiu com a cabeça, sem muito entusiasmo. Ela sabia muito bem que seria muito difícil alguém como Fefê, que, apesar de ter um diploma de graduação, não tinha nenhuma experiência, conseguisse ter sucesso no país da propaganda... E o rapaz jamais tinha feito mais do que alguns trabalhos escolares com relação à sua profissão.

Tomando um gole de vinho, timidamente, ela sugeriu:

Você poderia se aperfeiçoar em propaganda via Internet, ou em e-commerce... E usar no Brasil o que aprender aqui.

Fefê olhou admirado para Samira. Até aquele momento ele a vira apenas como uma mulher bonita, com aspirações a ser modelo. Em resu­mo, ele enxergara nela apenas um lado absolutamente mundano em que tudo girava em torno de futilidades, do brilho de refletores, de pessoas que dão a vida para aparecer numa coluna social importante. Não imaginava que Samira pudesse ter aquela maneira de pensar; nem tinha a menor idéia de que ela pudesse ter algum conhecimento de Internet e, muito menos, das tendências relacionadas a esta.

O que você está dizendo parece ser uma grande idéia — murmu­rou ele. — E acho que pode ser um excelente caminho...

E é! — exclamou Samira, animada pelas palavras do rapaz. — E será cada vez melhor, a partir de agora, depois que a febre dos grandes negócios de Internet passou. Somente os que tiverem realmente compe­tência vão conseguir continuar. Veja, por exemplo, o caso da...

E, entusiasmada, começou a falar de empresas "pontocom", de in­vestidores, de bancos que estavam dedicando verdadeiras fortunas a ne­gócios via Internet.

Fefê ouvia-a, de boca aberta. Aquela moça, uma aspirante a mode­lo, não mais do que isso, falava sobre temas que nem ele conhecia direito e que jamais tinha escutado da boca de qualquer de seus amigos, muito menos de qualquer das moças com quem tinha se relacionado até então. Samira parecia uma executiva falando!

Quando ela terminou, o rapaz não pôde deixar de perguntar:

- Como é que você sabe tudo isso?

Samira corou um pouco e, atrapalhada, mordeu disfarçadamente o lábio inferior. Tinha se deixado levar um pouco longe pelo entusiasmo e derramara sobre a mesa mais do que deveria. Não queria — ou achava que não deveria — dizer que aprendera tudo aquilo das muitas con­versas que tivera com executivos com quem passara noites, com quem dividira sua cama para poder sobreviver e que, muito mais interessados em ter uma pessoa que os escutasse do que propriamente a simples e efêmera satisfação carnal, encontravam nela um repositório de queixas, de teorias a que ninguém mais dava importância, de teses frustradas, de opiniões que não conseguiam passar para seus chefes. Samira ouvia. Limitava-se a ouvir, mas gravava tudo o que lhe diziam. E, inteligente, filtrava as informações.

Procuro estar sempre informada — respondeu ela, por fim. — Estamos vivendo na era da informação e da inteligência, Fefê. E o sucesso sempre há de pender para quem estiver bem informado.

Sorriu, levantou-se da mesa e, puxando o rapaz pela mão, convidou:

Mas esta conversa está séria demais para o momento, meu amor! Venha! Quero lhe mostrar uns novos passos de dança árabe que andei treinando especialmente para você...

Apesar de todos os excessos que Samira e Fefê fizeram durante aquela noite, o rapaz mal conseguiu dormir. Estava agitado, nervoso, an­sioso. Nos poucos instantes em que conseguiu adormecer, sonhou que estava entrando no World Trade Center e era preso pelo FBI. Depois, já bem mais tarde, sonhou que encontrava Samira, a sua Samira, dançando sobre as mesas de um night club cheio de computadores e que a imagem da moça, nua, era transmitida, via Internet, para o mundo inteiro.

Acordou, melhor dizendo, saiu de um torpor que não chegava a ser um sono, mas também não era completamente um estado de vigília, com a claridade do dia que raiava, a luz entrando pelas janelas abertas do apartamento, um pouco antes de ouvir o telefone tocar.

Apressou-se em atender, pois não queria que Samira, que ainda dor­mia placidamente ao seu lado, despertasse. Era o serviço de despertador do hotel, a quem Samira, pouco depois do jantar, pedira para chamar.

Fefê olhou o relógio, que marcava seis horas da manhã, perguntou-se por que Samira pedira para acordá-lo tão cedo e acariciou de leve as costas nuas da moça, sorrindo ao ver que ela se encolhia e se aproximava mais.

Samira entreabriu os olhos, deu um beijo no rapaz, que lhe disse:

Continue a dormir, meu amor... Vou sair daqui a pouco e lá pelas dez horas estarei de volta. Daí, teremos o tempo todo para nós dois, durante dez dias.

Lembrando-se de que teria de almoçar com os irmãos, conforme já tinha sido tudo combinado, acrescentou:

E hoje vou apresentá-la para minha família. Pelo menos, para parte dela.

Ainda meio adormecida, Samira ronronou uma afirmativa. Talvez, se estivesse completamente acordada, teria dito que não iria, que não queria ser apresentada a ninguém da família de Fefê, por enquanto. Mas, com sono, nem prestou atenção ao que o rapaz estava dizendo.

Fefê tomou um banho demorado, vestiu-se calmamente, apanhou a maleta, conferiu o relógio e olhou pela janela. A cidade já apresentava um razoável movimento, com muitos carros e ônibus passando, muita gente andando pelas calçadas.

"O nova-iorquino acorda cedo", pensou ele. "Ainda não são oito horas da manhã, e já existe todo esse movimento!"

Foi nesse momento que ele sentiu um intenso frio no estômago. Olhou para o relógio que havia ao lado da TV. Oito e meia! Tinha acer­tado seu relógio errado, quando mudou para o fuso de Nova York! Sim­plesmente significava que chegaria atrasado!

Olhou novamente o relógio, fez os cálculos, viu que, se corresse, ain­da poderia chegar a tempo, talvez com só um pouco de atraso.

Vestiu o paletó, pôs no bolso a carteira com dinheiro e documen­tos, guardou o celular no bolso externo do casaco, agarrou a maleta com os dólares e saiu correndo.

Impaciente, exasperou-se com a demora do elevador, passou dire­to pelo saguão de entrada do hotel, mal respondendo aos cumprimentos gentis do recepcionista e do porteiro, e saiu para a calçada em busca de um táxi, esquecendo-se de que seria muito mais simples e rápido pedir ao porteiro que chamasse um.

Nova York, como toda cidade grande, também faz sofrer as pessoas quando estas precisam de um táxi com urgência: parece que a cidade, propositadamente, os esconde. Fefê demorou um pouco até conseguir embarcar e instruir o motorista:

World Trade Center! And quickly, please!

Olhou para o relógio. Faltavam quinze para as nove. Não daria tempo! Chegaria atrasado inevitavelmente, bastava olhar para o trânsito, já começando a se congestionar. Levaria muito mais de quinze minutos até chegar lá...

Menos de dois quarteirões à frente, o tráfego travou. Tudo parado.

Fefê pôs a cabeça para fora da janela, na esperança de ver o que estava acontecendo, mas não conseguiu descobrir o motivo do engarrafamento.

Olhando um pouco mais para cima, avistou as Torres Gêmeas a menos de trezentos metros de onde estava.

Será mais rápido se eu for a pé — concluiu para si mesmo, já deixando na mão do motorista quinze dólares para pagar a corrida.

Desceu sem esperar o troco e, agarrando ainda com mais força a alça da maleta, caminhou, o mais rapidamente que podia, na direção do World Trade Center.

Viu, no relógio, que faltava muito pouco para nove horas e pensou:

Ora, um atraso de dez minutos não pode ser considerado, ainda mais aqui, com todo esse tráfego!

E foi nesse momento que ele escutou.

Era o ruído típico de um jato comercial, de grande porte, aceleran­do suas turbinas. Num movimento automático, olhou para cima.

E viu. Viu o grande Boeing chocar-se com a torre norte do World Trade Center, com um estrondo assustador e um imenso clarão alaranjado, de fogo e fumaça.

Pareceu-lhe que, por um momento, o tempo tinha parado. Nin­guém se mexia, um silêncio inacreditável pesou sobre Manhattan. E, então, tudo começou a se movimentar como se todos tivessem, de re­pente, enlouquecido. As pessoas corriam, os automóveis tocavam suas buzinas desesperadamente, como se pudessem, com o som, descongestionar o trânsito.

Ele ficou ali parado, estático, olhando abismado para as Torres Gê­meas, uma das quais já ardia em chamas.

Depois de alguns minutos nesse estado de quase transe, sem conse­guir acreditar no que seus olhos estavam vendo, Fefê recomeçou a andar para diante, sem perceber que estava caminhando contra a torrente de pessoas que passavam ao seu lado, em fuga desesperada.

A essa altura, já havia pessoas nas janelas, com câmeras de ví­deo, filmando o local do desastre; ambulâncias, carros de bombeiros e da polícia passavam, com as sirenes ligadas, aumentando ainda mais o pânico.

Eram exatamente nove horas da manhã do dia 11 de setembro de 2001, e Fefê, ainda se recuperando do susto, perguntou-se, em voz alta:

Como vou fazer para entregar esse dinheiro? Com certeza vão interditar o World Trade Center!

Deu mais alguns passos, indeciso, e ouviu novamente. Era outro avião, também com as turbinas a pleno, voando baixo, muito baixo, o som sobrepujando o ruído já assustador da cidade aterrorizada.

Olhou, mais uma vez, para cima.

E viu. Viu claramente o avião manobrar, acelerar ainda mais e, inclinando as asas, bater contra a torre sul do World Trade Center.

Meu Deus...! — balbuciou ele. — Isso não pode estar aconte­cendo!

E, como as outras pessoas, tomado de pânico, começou a correr.

O pavor que estava sentindo impulsionava-lhe as pernas, dava-lhe fôlego e velocidade. Só não lhe dava qualquer orientação e, assim, Fefê correu por um bom tempo sem nem mesmo perceber que direção tinha tomado. Sabia apenas que tinha de se afastar dali, tinha de ir para o mais longe possível daquele quadro de horrores.

E correu. Sempre segurando a maleta com força, ele correu como um desesperado, até sentir que não agüentava mais.

Parou. Olhou para os lados. Não tinha a menor idéia de onde poderia estar; sabia apenas que ainda estava em Manhattan, já que não teria con­seguido ir muito longe com sua falta de condicionamento físico. Tornou a olhar para os lados e notou que estava numa rua mais estreita, cercado por edifícios altos, tão altos que não o permitiam avistar as Torres Gêmeas.

Sentou-se no chão, encostado a uma parede e, pondo a maleta so­bre os joelhos, apertou a cabeça com as duas mãos, tentando raciocinar com mais clareza.

O barulho de sirenes, buzinas, gente correndo e gritando não o permitia pensar. Via uma multidão que avançava, como um maremo­to, em sua direção e, povamente aterrorizado, levantou-se e voltou a correr.

Não conseguiu, efetivamente, correr. No máximo, tentou andar um pouco mais depressa do que o normal, com as pernas já lhe doendo, a respiração ofegante, o suor a lhe escorrer pelas costas e pelo peito, empapando-lhe a camisa. A multidão em pânico alcançou-o, e ele foi literalmente arrastado por ela, acompanhando-lhe a marcha como podia para evitar ser pisoteado.

Depois de mais de dez minutos nessa marcha forçada, completa­mente esgotado, Fefê conseguiu encontrar um vão de porta, num edifício, e, protegido por ele, deixou que aquelas pessoas que corriam desesperadamente pela rua e pelas calçadas passassem.

E, enquanto aquela maré humana escoava diante de si, ele se dei­xou escorregar para o chão, agarrou a maleta de dólares apertando-a con­tra o peito e percebeu, de repente, que estava chorando.

Era um pranto convulso, sem uma razão definida, um pranto que nada mais seria senão uma conseqüência da formidável descarga de adre­nalina que inundara seu corpo. Procurou se controlar. Respirou fundo vá­rias vezes, tentou se abstrair de todo o barulho que o circundava e fechou os olhos para não ver a correria das pessoas.

— Isto é um sonho — murmurou. — Um pesadelo... Não pode estar acontecendo!

No entanto, uma moça que vinha em desabalada carreira, gritando como se um monstro estivesse em seu encalço, passou tão rente a ele que chegou a esbarrar em sua perna. E o rapaz sentiu o esbarrão, viu a jovem titubear com o encontrão e quase cair. Mas ela não caiu, não parou de gritar c continuou sua fuga desesperada, talvez, como ele, para lugar nenhum.

Não, não era sonho, aquilo tudo estava acontecendo, realmente. E ele, Fefê, tinha sido testemunha ocular de tudo o que ocorrera. Vira os dois aviões bater nas torres, vira aquele povo todo fugindo, ouvira os gritos, sentira o medo, o pavor de estar diante de alguma coisa e ser abso­lutamente impotente.

A multidão em fuga tinha diminuído, e ele criou coragem para voltar a caminhar.

Recomeçou a andar. Mas andar para onde? Para começar, onde estava, exatamente?

Pensou em pegar um táxi, mas logo afastou essa idéia. Fazia já algum tempo que ele não via veículo nenhum passar, a não ser carros de bombei­ros e ambulâncias. Era óbvio que o trânsito tinha sido bloqueado.

Olhou para o relógio. Faltavam cinco minutos para as dez horas da manhã e Fefê ficou surpreso como o tempo havia passado depressa. Lembrava-se, ainda que vagamente, de que tudo começara às nove horas da manhã.

"Como é que eu consegui correr assim por uma hora inteira?!", pensou.

Sentindo muitas dores nas pernas e câimbras por todo o corpo, entrou numa lanchonete que, apesar de vazia e às escuras, estava aberta. Um dos funcionários estava ouvindo, num rádio portátil, uma transmis­são do desastre.

O homem pareceu nem mesmo ter percebido a chegada do rapaz e, inclinado sobre o aparelho, estava imerso em outro mundo.

Fefê se aproximou e ouviu o repórter dizer, sua voz traindo a forte emoção que sentia, que a torre sul do World Trade Center tinha acabado de desabar.

It's over! — exclamou ele, olhando para o rapaz sem, contudo, aparentar vê-lo. — O símbolo de Nova York foi para o chão!

Só então deu mostras de ter percebido que não estava sozinho e, vendo o estado em que se encontrava Fefê, ensopado de suor, ofegante, caminhando com dificuldade, aproximou-se dele, pegou-o pelo braço e disse:

Venha! Sente-se um pouco. Você parece estar muito mal... Fefê obedeceu, sentou-se numa cadeira ao lado do rádio e aceitou,

sem nem perceber o que estava tomando, uma dose de uísque que o ho­mem lhe deu.

Vai lhe fazer bem... Fará você sair desse estado de choque. Enquanto o rapaz tomava o uísque, o homem voltou a se inclinar sobre o rádio e, depois de alguns momentos, desabafou:

Foi um atentado. Os árabes, esses malditos terroristas árabes! E, durante um bom tempo, discorreu sobre o horror que tinha aos muçulmanos e a todos aqueles que, de acordo com sua percepção, esta­vam ligados com Alá ou Maomé.

Sou nova-iorquino — explicou. — Meus bisavós eram irlande­ses. Somos todos católicos em minha família.

Balançou a cabeça, desalentado, serviu a si próprio um copo respei­tável de uísque puro e, tomando-o de uma só vez, exclamou:

Agora, nós vamos acabar com eles! Temos de acabar com todos esses árabes!

Em seguida, contou que ouvira o repórter dizer, no rádio, que outro Boeing tinha sido lançado contra o Pentágono, em Washington.

Eles nos atingiram duplamente — continuou. — Destruíram o símbolo de nosso poder econômico e destruíram o símbolo de nosso poder militar!

Voltando a encher seu copo e o de Fefê, rugiu:

Isso não pode ficar assim! Vamos acabar com todos os árabes do mundo!

Foi nesse instante que Fefê, ao ouvir o homem dizer aquilo, se lem­brou de Samira.

Samira era árabe! Poderia, assim, estar correndo um grande perigo!

Afobado, viu o telefone, em cima do balcão. Pediu para usá-lo, queria ligar para seu hotel. Mas o homem disse que não adiantaria nem mesmo tentar:

Todas as comunicações estão cortadas. Nada está funcionando, nem mesmo a energia elétrica.

Pensando que, talvez, o telefone celular funcionasse, Fefê pro­curou pelo seu. Palpou todos os bolsos, em vão. E, então, lembrou-se de ter visto seu aparelho celular cair no chão, quando estava no meio da multidão em pânico. Até tentara apanhá-lo, mas tinha sido empur­rado, quase fora derrubado e, desistira. Olhara para trás e ainda tivera tempo de ver o celular ser esmigalhado, destruído em mil pedaços, pelo povo que corria.

Mas ele precisava falar com Samira! Precisava saber se ela estava bem, se não tinha sido incomodada por ninguém...

Precisava voltar para o hotel, pois, se a moça tivesse acordado com o barulho da explosão, certamente estaria preocupada.

Nesse instante, o funcionário da lanchonete gritou:

A torre norte caiu! A torre norte caiu! O World Trade Center desabou por completo!

E, desesperado, começou a chorar. Eram exatamente dez horas e trinta e cinco minutos.

Hafez estava desesperado. O trânsito completamente congestiona­do não o permitia chegar ao seu destino, e ele já estava mais de uma hora atrasado.

— Eles deviam ter previsto que isso iria acontecer! — exclamou para si mesmo, segurando com força o volante do automóvel. — Está tudo parado! Como vou fazer para chegar lá?!

Depois de cerca de dez minutos de angustiante imobilidade, o ára­be decidiu ir a pé, uma vez que já estava mesmo atrasado e que nada mais havia para fazer.

Com muito sacrifício, conseguiu encostar o automóvel junto ao meio-fio, abandonou-o com as portas destravadas, e começou a caminhar.

Via as pessoas que passavam por ele com expressão de pavor, ouvia as sirenes desesperadas das ambulâncias e dos bombeiros. Sorriu interior­mente imaginando que, por fim, Al-Kayed havia conseguido. Ferira os Estados Unidos de uma forma inacreditável e inesquecível. Os america­nos nunca mais poderiam mostrar aquele tão irritante ar de superiorida­de, nunca mais poderiam dizer que são invulneráveis!

Apressou o passo já presumindo o que aconteceria depois que ele cumprisse sua parte naquela missão. Além dos americanos, os judeus se­riam atingidos e, a partir daquele momento, estaria estabelecido o caos mundial. Os judeus atacariam Arafat, destruiriam a Palestina, e os ame­ricanos estariam com todas as armas voltadas para o Oriente Médio, bombardeando o Iraque, o Iêmen, o Afeganistão... E, enquanto isso, a rede de terroristas espalhada pelo mundo continuaria em ação, atacan­do e destruindo todos os símbolos do poderio ocidental, especialmente aqueles que se relacionassem com os judeus e com os americanos. Estes poderiam arrasar muitos países com seu poderio bélico. Mas não acaba­riam — jamais — com a jihad. Esta continuaria sem descanso, sem medir sacrifícios, sem pensar em qualquer outra coisa que não a total destruição dos infiéis.

Ao mesmo tempo em que essas idéias passavam por sua mente, outras também a elas se misturavam, num embate caótico. Hafez via-se ao lado de Amina, comendo num McDonald's, tomando Coca-Cola, fu­mando Marlboro, ou seja, usufruindo alguns dos mais conhecidos símbo­los americanos. E ele não podia negar que tinha gostado muito dessa vida. Tinha gostado de ter dinheiro a rodo em suas mãos, adorara dirigir carros esportivos, apreciara ao extremo os jantares que o dinheiro de Al-Kayed lhe proporcionara em companhia de sua Amina.

Mas ele era um islamita radical e, se havia pecado servindo-se do que o "grande satã" — os Estados Unidos — pudera lhe dar a troco dos dólares do terrorismo, estava prestes a se redimir de tudo aquilo. O paraíso que o Corão prometia aos muçulmanos que se sacrificavam na luta por Alá estava perto.

Pena que Amina não fosse para o paraíso junto com ele... Entretanto, ele mesmo tinha decidido que ela não poderia ir. Uma mulher lão bonita, tão jovem, não merecia morrer. Mesmo que essa morte fosse para que ela pudesse ganhar o céu. E, mesmo assim, as mulheres teriam o mesmo direito que os homens? Elas também teriam o céu se morressem lutando por Alá? Isso, não saberia dizer. De qualquer maneira, Amina não estava com ele naquele momento decisivo. Amina já deveria estar rumando para a França.

Amina! De toda a vida — tão curta, apenas vinte e cinco anos! — seria a única lembrança que ele levaria com pesar. Poderia ter ficado mais com ela, poderia ter sido feliz por mais tempo ao seu lado...

Ouviu o ruído característico de um helicóptero voando muito bai­xo e sorriu, mais uma vez. Certamente aquela aeronave estaria filmando o caos em que se transformara Nova York. Depois, as imagens seriam mostradas ao mundo. Imagens que denunciavam a vitória de Al-Kayed e a vulnerabilidade dos americanos.

Olhou para o relógio, constatou que passava um pouco de dez e meia da manhã. Já estava chegando. Mais dois quarteirões e estaria diante do Centro de Cultura Israelense. Daí, seria apenas uma questão de acionar o detonador, e as bananas de dinamite que estavam envolvendo seu corpo explodiriam.

E ele iria para o céu...

Nem tente vir até aqui agora! — exclamou Castells pelo tele­fone, quando Donovan ligou para ele contando sobre o telefonema que acabara de receber. — O trânsito está todo parado e ainda não temos as diretrizes mínimas para começar a trabalhar.

E quanto a essa ligação? — perguntou Donovan.

Já estou enviando Steinberg de helicóptero para o Saint Lucas.

Ele vai apanhar essa doutora, Amina, e levá-la para ajudar a reconhecer o terrorista.

Castells fez uma curta pausa e indagou:

Tem certeza que é a mesma pessoa que avisou dos explosivos na estação do Brooklin?

Não apenas reconheci a voz, chefe — respondeu Donovan. — Mas ela mesma disse isso. Só que, desta vez, ela se identificou e falou para onde estava indo. Vocês verificaram o número do celular dela?

Está tudo uma confusão dos diabos, Donovan. As comunicações estão em colapso total e já é um verdadeiro milagre que o sistema de te­lefonia celular ainda esteja funcionando. Não foi possível verificar nada. Temos de contar com o fator risco. Se não for um trote...

Da outra vez não era trote...

Por isso mesmo eu lhe perguntei se você reconheceu a voz. Sen­do a mesma pessoa, o mais provável é que a informação seja verídica.

Houve outro breve silêncio na ligação, e Castells pediu:

Por favor, repita o mais exatamente possível o que ela disse. Quero gravar.

Donovan tomou fôlego e, concentrando-se um pouco, revelou:

Ela disse o seguinte: "Meu nome é Amina Khalil. Sou médica traumatologista e trabalho no Saint Lucas Hospital. Estou indo agora para lá. Há alguns dias eu liguei para o FBI avisando que na estação do Brooklin havia um pacote com explosivos. Estou ligando agora para avi­sar que Hafez Skandar, um terrorista, está se dirigindo provavelmente para o Centro de Cultura Israelense de Nova York com uma carga de dinamite. Com certeza, ele cometerá um ato terrorista suicida." Daí eu perguntei como ela poderia dizer que o alvo era o Centro de Cultura Isra­elense, e ela assegurou que ouvira Hafez mencionar essa entidade muitas vezes; além disso, estivera lá com ele e teve a impressão de que o terrorista estava estudando o local.

Está bem — finalizou Castells. — Já gravei. Agora, será com Steinberg. Só espero que cheguemos a tempo. Precisamos dessa doutora Amina, pois não temos a menor idéia de como é esse terrorista. E, quanto a você, acho que, dentro de umas quatro ou cinco horas, conseguirá che­gar até aqui. Não adianta se apressar, se desesperar. Prefiro que fique aí, aguardando alguma novidade e, se precisarmos demais de sua presença, liaremos um jeito de apanhá-lo.

Donovan desligou o celular e, voltando-se para Anne Marie, perguntou:

Até que ponto essa médica está envolvida com o grupo de terroristas? E, se ela fazia parte do grupo, o que a fez denunciar os com­panheiros?

Ela pode fazer parte de algum serviço secreto, não acha? — ar­riscou a mulher.

É pouco provável, querida. Ela teria avisado esse serviço secreto, e eles, se fosse o caso, teriam entrado em contato conosco. Acho que é mais possível que essa doutora Amina realmente fizesse parte dessa célula c que alguma coisa fez com que ela se rebelasse contra os companheiros. Daí, a traição.

Anne Marie meneou a cabeça em sinal de dúvida e ponderou:

Ela é uma médica, Steve... Pode ter caído em si. Pode ter percebido a barbaridade que é um ato terrorista. Pode ser uma dissidente, não acha?

Apesar dos esforços que o motorista fizera, não foi possível demo­rar menos de quarenta e cinco minutos até chegarem à First Avenue, completamente atravancada de carros. Amina decidiu descer quase cinco quarteirões antes do Saint Lucas Hospital e pediu para o motorista ter pa­ciência e levar sua mala — quando o trânsito o permitisse — e entregá-la na recepção do hospital.

— Quanto antes eu chegar, melhor — disse ela, ao descer.

Num momento de crise e colapso total, como aquele que a cida­de de Nova York estava vivendo, ninguém poderia estar pensando em outra coisa que não fosse o drama da situação, e o motorista, já muito bem impressionado pela atitude de Amina, desistindo de viajar para poder atender feridos no grande desastre, recusou a nota de cinqüenta dólares que a moça queria lhe dar, garantindo que já se considerava pago por ter transportado alguém de tão grande espírito quanto ela. E que não se preocupasse, assim que o trânsito desengarrafasse, a mala seria entregue. Caso ele percebesse que ia demorar muito, levaria a mala a pé até o hospital.

Amina sorriu e, a passos largos, caminhou em direção ao Saint Lucas reconhecendo que, de fato, aquilo que tinha acontecido era um imenso e inacreditável absurdo. Quantas pessoas teriam morrido? Quan­tos milhares de feridos? Quantos inocentes tinham sido atingidos, cida­dãos que nada tinham a ver com a "grande causa" que mencionava Hafez e com os radicalismos islâmicos?

À medida que se aproximava do hospital, mais e mais ela se arre­pendia de não ter abandonado Hafez e suas idéias há mais tempo. Mas ela o amava... Pelo menos, acreditava que o amava.

Contudo, como poderia amar um homem em cujo coração havia tanto ódio? E tanta teimosia? Teria ela ficado cega a ponto de demorar tanto tempo para enxergar o óbvio?

No entanto, amava Hafez... Amava aquele Hafez carinhoso, quen­te, sensual, cheio de bom humor, sonhador... Amava um Hafez que, de repente, era capaz de lhe oferecer uma rosa sem nenhum outro motivo senão o prazer de vê-la sorrir.

Não podia amar, entretanto, o Hafez radical, terrorista, capaz de ma­tar inocentes em nome de uma fatwa ditada por fanáticos; não seria capaz de amar o Hafez capaz de sacrificar a própria vida, os próprios sonhos, em função de uma causa que, no fundo, ele mesmo sabia não ser a sua.

E era isso que Hafez, o seu Hafez, estava para realizar: o último ato, o sacrifício final. Ela tinha certeza que Hafez seria mais um homem-bomba e não poderia permitir que isso acontecesse. Sim, por causa dela, por causa daquele telefonema que dera ainda no táxi, ele seria preso. Mas antes preso do que morto! E, principalmente, antes preso do que morto e assassino de dezenas, talvez centenas de pessoas!

Sabia que jamais seria perdoada e talvez ela mesma jamais viesse a se perdoar por ter traído o homem que amava. Mas... Seria esse o mesmo Hafez que conhecera? Ou seria outro Hafez, com outra personalidade e que, de fato, representava um imenso perigo para a sociedade?

Amina sabia muito bem que não é possível confiar num terrorista. Mas ela acreditara poder mudar definitivamente aquele árabe. Bastava que ele se desse conta do quanto a vida pode ser bela quando se pode ter liber­dade, quando não permitimos que preceitos religiosos direcionem absurda­mente nosso comportamento e quando se percebem as diferenças de cada um, com pensamentos distintos, filosofias distintas, mas... direitos iguais. E ela perdera a batalha. Muitas e muitas vezes chegara a pensar que consegui­ra mudar o enfoque que Hafez tinha sobre a vida e a religião. Reconhecera, porém, que tinha sido derrotada e que ele, no fundo de seu cérebro, sempre teria as mesmas idéias e o mesmo radicalismo a orientar seus atos.

Até mesmo a ponto de fazê-lo se transformar num terrorista suicida.

Já diante do hospital, Amina viu o intenso movimento de ambu­lâncias, de pessoas, ouviu os gritos dos feridos, sentiu o desespero dos que tentavam aliviar as dores daquelas pessoas, e percebeu que aquele era seu mundo, aquele era seu país, definitivamente, inegavelmente. Um país que tinha sido ferido por terroristas e que, infelizmente, Hafez era um deles.

Já estava galgando os degraus da entrada, quando sentiu que a se­guravam pelo braço.

Doutora Amina? — perguntou o homem, mostrando sua cre­dencial do FBI. — Sou o agente Steinberg. Por favor, venha conosco para ajudar a identificar o terrorista Hafez Skandar.

Amina pensou em recusar, dizer que ela seria mais útil ali, aten­dendo feridos. Entretanto, ao relancear o olhar ao seu redor, ao ver todo aquele desespero e sofrimento, ela tomou uma decisão:

Pois não. Acho que é o mínimo que eu posso fazer.

Steinberg sorriu e, sempre segurando-a com delicadeza pelo braço, levou-a até o helicóptero que estava pousado no heliporto do hospital.

Enquanto o homem chorava, Fefê, já bastante mais controlado, ouviu o repórter descrevendo as dimensões do desastre que acabara de acontecer. As Torres Gêmeas estavam no chão, com milhares de mortos entre os escombros.

A possibilidade de sobreviventes existe — relatava ele —, mas é muito remota. O esperado é que a grande maioria das pessoas que estavam em ambas as torres do World Trade Center tenha morrido. A quantidade de escombros é imensa, e aqueles que puderam sobreviver e que se encontram soterrados têm pouca chance de serem resgatados em tempo.

Aquelas palavras fizeram, mais uma vez, o coração de Fefê bater fora de compasso por alguns segundos.

Lembrou-se da irmã, do irmão e do cunhado. Eles estavam na torre norte, com certeza. Pelo telefone, no domingo, Marina tinha dito que eles estariam no escritório desde sete horas da manhã, pois havia muito que fazer, e Tony tinha uma reunião, às dez horas. Por isso, ele poderia vê-los logo cedo, ou à hora do almoço, e ela, pessoalmente, preferia convidá-lo a almoçar.

Assim, quando o avião bateu na torre norte — e pareceu-lhe próxi­mo dos andares correspondentes ao do escritório da empresa —, Marina, Gilberto e Tony estariam lá.

Um nó se fez em sua garganta, seu estômago se contraiu e duas lá­grimas começaram a lhe brotar nos olhos. Entretanto, Fefê lembrou que o fornecedor de drogas a quem ele deveria ter entregado a maleta com o dinheiro também estaria lá e na mesma altura do choque do avião.

E ele! Ele também!

Era para eu estar morto a esta altura! — exclamou, em voz alta.

Olhou para a cadeira em que estivera sentado e viu a maleta. Não teria mais para quem entregá-la... Teria de dar um jeito de depositar o di­nheiro todo em algum lugar e, depois, ver com João Antônio como fazer.

Aceitou outro copo de uísque que o homem lhe oferecia, e ouviu-o comentar:

Acho que não vai ser possível resgatar todos os corpos... São milhões e milhões de toneladas de escombros. E isso, é claro, sem contar que milhares de corpos estarão num tal estado que será impossível qual­quer reconhecimento!

Fefê aquiesceu com um sinal de cabeça, imaginando, aterrorizado, que sua irmã, uma moça tão bonita, poderia estar entre esses destroços e no estado em que o homem mencionara.

Sacudiu a cabeça com energia, tentando afastar de si aquela ima­gem e, como numa sessão de projeção de slides, viu a si próprio entre os destroços da torre norte, machucado, deformado...

Era para eu estar lá! — exclamou em voz alta e em português.

What did you say ? — indagou o homem, sem entender.

O rapaz não respondeu. Aquelas informações, milhares de cadáve­res perdidos no meio dos escombros, pessoas desaparecidas, o fato de que ele deveria estar lá entregando a um traficante uma maleta de dinheiro, um traficante que, àquela altura, já não mais deveria existir...

Todos sabiam que ele iria estar àquela hora exatamente ali, na torre norte do World Trade Center. Talvez nem todos soubessem o que estaria fazendo, mas ele estaria ali. E todas essas pessoas estariam pensando que ele tinha morrido. Inclusive seus pais, Samira, João Antônio, alguns ami­gos a quem ele tinha dito que estaria em Nova York, naquele local, àquela hora, como era o caso de Gustavo...

Entretanto não tinha morrido! Estava vivo e bem! Precisava avisar seus pais, precisava anunciar para todo mundo que tivera a monumental sorte de escapar!

Mais uma vez, num gesto automático, palpou os bolsos em busca do celular. Suspirando, reconheceu que estava sem meio de se comunicar com quem quer que fosse. Infelizmente, teria de esperar até que as linhas telefônicas se normalizassem.

O homem da lanchonete, naquele momento, estava ouvindo, no rádio, um pronunciamento do presidente da República conclamando o povo à união num instante crítico como aquele e lamentando a morte de tantas pessoas inocentes, atingidas em cheio pelo maior e mais grave atentado terrorista da história.

Estamos em guerra! — gritou o homem. — Em guerra contra os árabes!

Fefê pensou em dizer para ele que não se deveria generalizar e que nem todos os árabes são terroristas; ao contrário, apenas uns pou­cos fanáticos o são. Mas preferiu não retrucar. Aquele indivíduo estava excessivamente exaltado para entender qualquer coisa e até poderia interpretar mal suas palavras. Era melhor ficar quieto, aproveitar para descansar um pouco mais e, depois, já refeito, voltar para o hotel e ver como estava Samira.

"Nunca se sabe como as pessoas podem reagir", pensou ele. "E aqui nos Estados Unidos existe uma forte tendência ao racismo e à xenofo­bia... De repente, acham que ela é uma terrorista e então..."

Voltou a sentar-se e pôs a maleta sobre o colo. Sorriu interiormente lembrando o quanto correra carregando aquele peso todo. Um milhão de dólares em cédulas representavam uma carga significativa! Ele nem podia imaginar de onde tinha arrumado forças para realizar tal feito!

Olhou para diante, para a rua, que naquele momento estava prati­camente deserta, e estremeceu, voltando à sua mente a imagem do avião batendo contra a torre norte.

"As pessoas nem devem ter percebido a morte", pensou. "Pior são aque­las que estão vivas, feridas, no meio dessa montanha de aço e concreto!"

E ele poderia estar entre elas... Morto ou, no mínimo, muito ferido e soterrado.

Desaparecido...

Franziu as sobrancelhas. Olhou novamente para a pasta repleta de dinheiro que estava segurando.

E, de repente, muito vagamente aquilo tudo começava a se juntar para dar forma a um puzzle, que Fefê, ainda que de forma apenas muito diáfana, começava a montar.

Hafez viu a construção do Centro de Cultura Israelense e imedia­tamente notou o helicóptero pousado no cruzamento das ruas, a menos de trinta metros de seu alvo. Viu o cordão de isolamento e a grande agitação das pessoas e dos policiais. Imediatamente percebeu que teria dificuldades em se aproximar o suficiente para fazer explodir pelo menos uma parte do prédio.

"Eles deveriam ter previsto isso", pensou ele, com raiva. "Logo após um atentado desse porte, os primeiros lugares a serem protegidos seriam aqueles que se relacionam com os judeus!"

No entanto, ele contava com a vantagem de não estar sendo pro­curado, de não ser conhecido por ninguém e, portanto, de não levantar suspeitas. Poderia tentar chegar até o cordão de isolamento e, quando tivesse uma oportunidade, passaria correndo para o lado de lá e detonaria os explosivos quando estivesse sendo preso. Talvez não matasse muitas pessoas, mas o efeito de choque publicitário seria o mesmo. De qualquer forma, teria acontecido um ataque suicida a uma entidade israelense. E teria acontecido mais de uma morte.

Caminhando o mais disfarçadamente possível, ele foi se aproxi­mando do cordão de isolamento, sempre procurando observar o movi­mento das pessoas e o lugar onde seria mais fácil romper o bloqueio.

Olhou para a porta de entrada do Centro de Cultura exatamente no mesmo instante em que Amina o fixava, gritando:

— Lá! Lá está Hafez!

Hafez sentiu as pernas bambearem. Era Amina! Amina, a sua Ami­na! E o que ela estava fazendo lá entre os policiais e apontando para ele? Ela deveria estar num avião, rumando para a França! Mas não! Amina estava ali e o estava traindo...

Com o grito de Amina, o movimento se modificou. Todos os olha­res convergiram para Hafez e este, vendo-se acuado, pensou em apertar o botão do detonador dos explosivos que trazia em torno do corpo. En­tretanto, se fizesse isso, não conseguiria nenhuma vítima a não ser ele mesmo. E essa não era, certamente, a vontade de Al-Kayed. Ele precisaria levar mais pessoas consigo. Pelo menos aqueles que o tentassem deter.

Era preciso tentar. E era exatamente isso que faria. Tentaria chegar o mais perto possível de Amina e então...

Ela, agora, merecia morrer. Mais que isso, merecia ficar defor­mada, toda a sua beleza física transformada num horror para o resto de seus dias!

Soltando um grito que evocava uma frase de Al-Kayed, Hafez pôs as duas mãos nos bolsos e começou a correr em direção à porta de entrada do Centro.

Alguns policiais começaram a se movimentar para interceptá-lo, mas a voz de Steinberg, soando por meio de um megafone, ordenou:

Não se movam! Afastem-se desse homem! Ele é uma bomba viva!

Imediatamente, todos estacaram e se afastaram, deixando uma imensa clareira ao redor de Hafez. Este, por sua vez, vacilou. Se ninguém tentar detê-lo, como poderá causar vítimas?

E foi esse instante de indecisão que selou definitivamente a sorte do árabe.

De onde estava, a cerca de vinte metros de Hafez, Steinberg ergueu a mão direita empunhando sua pistola.

Não foi preciso mais do que um disparo. Atingido na testa pelo pesado projétil calibre .45, Hafez foi arremessado para trás, já morto antes mesmo de tocar o solo. Suas mãos, incapazes de qualquer movi­mento, escaparam de seus bolsos, a direita ainda segurando o detonador dos explosivos.

Amina cobriu o rosto e encostou-se ao ombro de Steinberg, num pranto convulso, balbuciando entre os soluços:

Perdão, Hafez... Perdão, meu amor... Mas eu não podia deixar... Não podia permitir que você levasse a morte para pessoas inocentes!

Steinberg passou o braço pelos ombros de Amina e, levando-a de volta para o helicóptero, solicitou:

Venha, doutora... Temos muito que conversar.

Vou ser presa? — indagou ela, ainda chorando.

Não — respondeu o agente. — Não há nenhuma acusação con­tra você. Mas precisamos avaliar o seu envolvimento com tudo isso. E, sinceramente, espero que você possa provar que não teve nada além de um envolvimento sentimental com Hafez Skandar.

— Não podemos ficar aqui, assim, sem fazer nada! — exclamou Natalie, em tom de desespero. — A história do mundo civilizado está mudando e nós dois estamos aqui, presenciando tudo e sem fazer nada! Sem nem mesmo ter a possibilidade de falar pelo telefone com alguém! Mathew tentou acalmá-la, argumentando:

Você tem razão, minha querida. Mas, realmente, nada podemos lazer. E, se você pensar em termos de furo jornalístico, isso já é passado. As Torres Gêmeas vieram abaixo, todo o mundo já viu. Nós não temos nada a fazer. Nem mesmo adianta relatar o que aconteceu.

Natalie olhou surpresa para o jornalista e murmurou:

Não acredito no que estou ouvindo... Você não pode estar fa­lando sério! Não pode estar querendo dizer que não vai...

Não vou escrever uma linha relatando o que aconteceu — confirmou Mathew. — Nem você vai perder tempo com isso. O que temos de lazer é analisar o ocorrido, acompanhar as investigações e transmitir, em nosso trabalho, uma opinião fria e desapaixonada sobre tudo isso. Uma opinião que permita até mesmo fazer previsões sobre o que vai acontecer com a paz e com a economia mundiais.

Sem dar tempo para Natalie retrucar, Mathew continuou:

É claro que temos de estar perfeitamente informados sobre tudo o que aconteceu no momento dos atentados. Mas, como jornalistas investigativos, temos de ir muito mais fundo. E temos de dominar nossas paixões. É evidente que uma tragédia dessas nos deixa comovidos, per­plexos. Mas precisamos analisar os fatos imparcialmente. E é exatamente na imparcialidade que o bom jornalista se distingue do jornalista ruim ou mesmo medíocre.

Esboçou um sorriso nervoso e concluiu:

Neste momento, o que devemos fazer é tratar de apanhar as coisas de que possamos precisar por uns dois ou três dias. Vamos nos mudar para algum hotel ao norte da cidade, talvez lá na região de White Plans. Aposto o que você quiser que antes do meio-dia teremos de sair daqui. Esta área, por ser próxima ao Financial Center, será evacuada. Além do mais, não tenho a menor idéia de quanto tempo vamos ficar sem luz e sem telefone.

Juntando ação às suas palavras, Mathew começou a se vestir, e Natalie, ainda mal refeita de todas as emoções e tentando digerir o que o jornalista acabara de dizer, imitou-o.

Arrumaram duas malas pequenas com o essencial, cada um pegou seu laptop e desceram pelo elevador de serviço, o único que estava funcio­nando, alimentado pelo grupo gerador de emergência do edifício.

Ao chegarem à rua, constataram que seria absolutamente impossí­vel fazer uso do automóvel de Mathew: o trânsito estava completamente parado em todos os lugares, e as pessoas estavam se dirigindo a pé para o norte da ilha.

Vamos ter de caminhar — falou Mathew. — Caminhar até con­seguirmos chegar a algum lugar de trânsito mais leve e que nos permita pegar um táxi.

Andando em silêncio ao lado do jornalista, Natalie ouviu-o dizer:

Há muito tempo um atentado como este estava sendo espera­do. Só que ninguém imaginava que fossem usar aviões comerciais como mísseis. E, contra esse tipo de coisa, não há muito que fazer. Quem pode imaginar que um Boeing possa ser usado como uma bomba?

Meu Deus... — murmurou Natalie. — As pessoas que estavam nesses aviões... Como deve ter sido terrível!

Pode acreditar que elas nem sequer sentiram a morte — re­trucou Mathew. — Quando os aviões bateram nas torres, as pessoas que estavam viajando neles foram imediatamente esmagadas na desaceleração brusca. Logo em seguida, foram desintegradas na explosão. As pessoas que estavam nos andares onde os aviões literalmente entraram foram carbo­nizadas instantaneamente. Porém, aqueles que estavam nas torres e não conseguiram sair a tempo... estes sim tiveram uma morte horrível.

Quantos se atiraram lá de cima... — comentou Natalie, conster­nada. — Como deve ter sido terrível o desespero! E quantos estão presos entre os escombros... Vivos, ainda, mas por quanto tempo?

São poucas as chances de resgatar sobreviventes — destacou Mathew. — A quantidade de destroços é muito grande. E a violência dos impactos, tanto dos aviões quanto do desmoronamento em si, foi monstruosa.

Depois de caminharem em silêncio mais alguns instantes, Natalie perguntou:

O que você acha que vai acontecer a partir de agora?

Mathew tomou fôlego e, depois de refletir um pouco, alertou:

Vai haver guerra. Você mesma ouviu, enquanto ainda a televi­são estava funcionando, que os terroristas árabes estão sendo acusados.

Logo, a retaliação será contra os árabes. E, se houver bom senso, apenas contra os terroristas árabes.

Acendeu um cigarro e continuou:

É preciso entender que esses atentados não atingiram apenas os símbolos da hegemonia econômica e militar dos Estados Unidos. Ou seja, não houve simplesmente um arranhão na vaidade americana. Ouve uma séria lesão no sistema democrático de todo o mundo civilizado. Portanto, uma atitude como essa dos terroristas jamais ficará impune. Resta saber como será essa retaliação. Todos os países ditos aliados estarão lutando ombro a ombro e com todas as armas possíveis contra o terrorismo.

Passando o braço por cima dos ombros de Natalie, acrescentou:

O que significa um campo muito amplo de trabalho para dois jornalistas como nós...

Fefê ficou ali, sentado com a pasta sobre os joelhos, por mais algum lempo. Tinha de refletir muito bem sobre o que fazer e como fazer, a partir daquele instante.

Na véspera, dissera a Samira que estava esperando juntar um mi­lhão de dólares para começar uma vida nova, ao seu lado. Precisaria cer­ca de, no mínimo, mais quatro viagens como aquela para alcançar sua meta. Dissera que não queria trabalhar o resto da vida com sua família. E Samira tinha sugerido aquela história de se aperfeiçoar em Internet e C'Commerce, nos Estados Unidos.

Ora, o milhão de dólares estava ali, naquela maleta. Se ele fosse dado como morto, não precisaria devolvê-los para João Antônio. Àquela altura dos acontecimentos, todos estavam achando que tinha sido exa­tamente isso que acontecera. E, no cenário de destruição em que tinha se transformado o World Trade Center, ninguém conseguiria encontrar nada, não encontrariam nem mesmo vestígio de muitas pessoas e de mui­tos documentos.

E ele tinha documentos falsos em seu poder! Seria muito fácil tro­car de identidade e desaparecer no mundo com todo aquele dinheiro!

Com o dinheiro e, evidentemente, com Samira!

"Mas... será que ela vai entender? Será que ela vai aceitar que eu mude de nome, de vida, de tudo?", pensou o rapaz, preocupado.

Em seu íntimo, ele achava que sim. Samira o amava, ele a amava, não seria uma carteira de identidade que mudaria as coisas. Restava o problema com seus pais. Com seus irmãos, infelizmente, não. Eles já estariam, com certeza, em outra dimensão. Mas os pais... Estes estavam vivos, no Brasil, e, com certeza, desesperados.

"Assim que puder, ligarei para eles e explicarei..."

Interrompeu aquele pensamento, se conscientizando de que isso seria absolutamente impossível. Especialmente seu pai, jamais conseguiria aceitar essa sua atitude. Conservador como era, ele haveria de condená-lo eternamente pelo que fizera, e isso se não o denunciasse numa crise de consciência. De mais a mais, Fefê jamais poderia admitir que tinha con­seguido aquele dinheiro todo com o narcotráfico. Não, avisar os pais era algo que, um dia, ele faria. Mas não era o momento. O importante, naquela hora, era o fato de estar com um milhão de dólares na mão, dinheiro este que, por enquanto, considerava dele e de mais ninguém.

Precisava traçar um plano, precisava de tempo para pensar e deci­dir o que fazer, sem possibilidade de erros e sem deixar o menor rastro. E isso era coisa que sabia não conseguir fazer ainda e, muito menos, sozi­nho. Precisava de alguém com quem pudesse trocar idéias. Samira! Ele precisava de Samira, naquele instante, mais do que qualquer outra coisa na vida! E ela deveria estar comendo as mãos de tanta preocupação e angústia... Precisava tranqüilizá-la e, sem linhas telefônicas, ela teria de esperar e suportar seu nervosismo até que ele voltasse para o hotel.

Levantou-se, disposto a regressar para junto de sua amada.

Já estava pondo a mão no bolso para dar dez dólares ao homem da lanchonete, quando lembrou que, se ele pretendia desaparecer, não po­deria, jamais, voltar para o hotel. Se era para sumir — embora Fefê ainda não estivesse cem por cento certo de que era isso mesmo que desejava — ele não poderia aparecer por lá.

Sentou-se novamente, cheio de dúvidas e indecisões. Aquilo tudo parecia uma imensa loucura. Trocar de nome, de identidade, de vida...

Deixar para trás tudo o que possuía e fizera. Deixar os pais sofrendo...

"Eles já devem estar sofrendo com a morte certa de Marina, Gilber­to e Tony, pensou. "E era deles que eles gostavam mais!"

Esse pensamento fez com que ele voltasse a sentir aquele ciúme e inveja que sempre pontuaram o relacionamento com sua família, e isso fez com que arrefecesse um pouco o remorso por deixar os pais sem saber que tinha escapado ileso do desastre.

Via as pessoas passando pela rua, todas elas apressadas e com o olhar distante, como se fossem zumbis. Não havia quem não estivesse em estado de choque. O repórter, no rádio, noticiava as centenas de mortes ocorridas entre o pessoal paramédico e os bombeiros, pegos de surpresa pelo desmoronamento das duas torres. Não era possível saber o número de mortos e feridos a não ser por estimativa, e as autoridades já confirmavam a impossibilidade de resgatar todos os corpos e, mais ainda, chegar a tempo aos sobreviventes que estavam soterrados. Havia relatos de que algumas pessoas, presas entre grandes blocos de ferro e concreto, ainda vivas, tentavam desesperadamente se comunicar utilizando telefones celulares.

Pensou, mais uma vez, na angústia que Samira deveria estar sen­tindo ao escutar essas notícias e imaginou-se lá, morto, ou, pior ainda, ferido, vivo e coberto por milhões de toneladas de ferro e concreto.

Samira teria de esperar um pouco. Teria de suportar, mas depois a recompensa viria.

Viu mais uma mulher passar diante da lanchonete, correndo e gri­tando, completamente fora de si, e calculou:

"Além do mais, se eu desistir desse plano, sempre terei a desculpa de ter me descontrolado com o susto e, por causa disso, ter ficado vagando pela cidade, sem rumo, durante algum tempo."

Olhou mais uma vez para a maleta, cuja alça segurava com tanta força que as juntas de seus dedos branqueavam, e avaliou, para si mesmo:

— Não posso perder isto! Qualquer que seja o caminho que venha a tomar, está aqui a minha salvação!

 

Mesmo sem estar seguro sobre qual caminho tomar a partir daquele instante, Fefê decidiu não voltar ao hotel, pelo menos nas próximas ho­ras. Ainda estava bastante confuso e precisava de um pouco de tempo para pôr os pensamentos em ordem. Acima de tudo, sabia que precisava de alguém — de Samira, mais precisamente — para apoiá-lo e aconselhá- lo. Se até aquele momento ele jamais tinha sido capaz de tomar decisões sozinho, como poderia ter firmeza suficiente para decidir trocar de vida? É certo que já tinha, em algumas ocasiões — e todas bem recentes —, esco­lhido seu caminho sem perguntar a ninguém. Mas essas escolhas tinham sido feitas sob uma pressão muito grande. Ele estava precisando com premência de dinheiro quando decidira simular um assalto, apossando-se do pagamento que o doutor Mário, amigo de seu pai, deixara em suas mãos. O mesmo aconteceu quando aceitara os caminhos propostos por Erik e João Antônio. No caso deste último, a pressão ainda tinha sido maior. Fora sua vida que estivera em jogo...

Sim, a vida de Fefê estivera e ainda estava em jogo. E seria real­mente um homem morto se desaparecesse, simplesmente, com aquele dinheiro. E, para agravar, havia ainda a possibilidade de estar sendo seguido por algum dos homens de João Antônio, conforme este dissera que faria.

— Mas será que ainda estou sendo vigiado? — perguntou-se Fefê. — Depois de tudo o que aconteceu e que está acontecendo, será que essa vigilância continua?

Observou ao redor de si, e a única coisa que podia ver era uma multidão que corria, que caminhava sem um objetivo nítido, parecendo todos sem rumo.

— Zumbis — murmurou ele. — Parecem zumbis perdidos... Não é possível que ainda estejam me seguindo.

Essa possibilidade, porém, não poderia ser afastada e, portanto, a idéia que lhe martelava o cérebro era que o melhor, o mais fácil, seria de­volver o dinheiro para João Antônio, e pronto. Diria que escapara do de­sastre por mera questão de sorte ou de milagre, e tudo voltaria a ser como antes, com a diferença que ele já teria cem mil dólares a mais depositados na conta de Samira. O que vale dizer, em sua conta. Seus pais chorariam a morte de seus irmãos e do futuro genro e ele, como filho remanescente, assumiria o lugar deles, passando a ser o único herdeiro.

Era tentador; não havia a menor dúvida...

No entanto, ele continuaria prisioneiro de João Antônio. Este ha­veria muito rapidamente de encontrar outro fornecedor de drogas, e ele Voltaria a ser o pombo-correio, o intermediário cuja pele estaria exposta em cada viagem. E, um dia, a sorte haveria de acabar. Ele seria preso, condenado — no mínimo teria de gastar tudo o que tinha recebido para se livrar das grades — e sua vida estaria terminada. Seria um proscrito da sociedade, essa mesma sociedade que consome drogas e que, ainda que indiretamente, o obrigava a todo esse risco.

Já, se ele desaparecesse, nada disso aconteceria e, em seu mundo egoísta, Fefê conseguia vislumbrar uma vida nova, ao lado de Samira, sem nenhuma outra responsabilidade senão a de ser feliz — à sua ma­neira, mas seria feliz, não se importando com o que as outras pessoas pudessem dizer.

Fefê estava sentindo uma excitação diferente, uma mistura da ale­gria pelo fato de estar vivo com o entusiasmo e a curiosidade pela aven­tura que poderia viver a partir do momento em que, de fato, assumisse a posição de "desaparecido".

Ser outra pessoa! Alguém sem passado, cuja nova história teria de ser montada, dia por dia, retrogradamente, para que um presente, que teria de ser ficcional, fizesse sentido e garantisse um futuro que pudesse vir a ser real e concreto.

No mínimo, era um desafio e, principalmente, uma experiência nova que a maioria das pessoas jamais viveria.

Ele seria diferente! E ser diferente sempre fora uma de suas princi­pais metas. Ele sempre almejara chamar a atenção das pessoas e, julgan­do-se física e intelectualmente menos do que qualquer outro, procurava se diferenciar lastreando-se no poder econômico. Se todos os seus amigos tinham automóvel, o dele tinha de ser o melhor, o mais vistoso, o mais caro. Se eles compravam roupas em butiques caras, ele as comprava na mais cara do país. Sempre fora assim. Fefê, em qualquer ocasião, tinha de arrumar uma maneira de mostrar que podia mais do que qualquer outro. Esse era seu parâmetro de diferenciação.

Uma nova vida, sob uma nova identidade, seria o cúmulo do ser diferente!

Só que... Ninguém poderia saber. Ele não teria mais a quem mostrar que era outra pessoa e jamais poderia contar a aventura a seus amigos.

Seria um sucesso! Imagine se Fefê reunir a turma para revelar que seu nome mudara, seus documentos eram falsos...

Mas, não! Isso ele jamais poderia fazer, e essa impossibilidade fazia com que o entusiasmo diminuísse de forma significativa.

Já seria um sucesso, entretanto, contar aos amigos que tinha esca­pado da morte por milagre. Poder descrever o que vira e o que sentira, o pânico das pessoas, a cidade abalada, os americanos — sempre orgulhosos e todo-poderosos — feridos em seu amor-próprio, correndo desesperados e sem rumo pelas ruas de Manhattan!

Contudo, o rapaz sabia que essa sua aventura poderia ser contada uma, duas vezes. Depois, ela perderia a graça, e ele voltaria a ser o mesmo Fefê de sempre, que precisava abrir a carteira para ter companhia. Já se ele morresse — ou desaparecesse — sempre seria lembrado. E, possivel­mente, com saudades, pois não haveria mais ninguém para convidar o grupo para um jantar no Fasano, para uma viagem de avião num fim de semana, para patrocinar noitadas de diversão...

Perdido nesses pensamentos, depois de várias horas ali na lancho­nete, Fefê se levantou e, agarrado à sua maleta, saiu.

Olhou o relógio. Faltava um pouco para quatro horas da tarde e ele tinha acabado de ouvir, no rádio, o prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, fazer o primeiro pronunciamento oficial sobre o número de feridos até aquele momento: dois mil e cem, dos quais, pelo menos, duzentos estavam em estado gravíssimo. Nada foi anunciado sobre mortos ou desaparecidos.

Donovan conseguira chegar ao escritório do FBI por volta de uma hora da tarde e fora diretamente para a sala de Castells, onde Steinberg e Amina já se encontravam havia algum tempo.

Tudo indica que a doutora Amina Khalil não teve qualquer en­volvimento real com os terroristas — afirmou Castells, assim que Donovan ocupou uma das poltronas diante de sua mesa e ao lado da bela médica. — Ela esteve apaixonada por Hafez Skandar, o terrorista, mas jamais compar­tilhou suas idéias. Tanto assim que nos avisou da existência do pacote com explosivos. E, hoje, denunciou a tentativa suicida de Hafez.

Donovan meneou afirmativamente a cabeça e, dirigindo-se a Ami­na, investigou:

E quanto aos outros componentes do grupo?

Não sei de nada — respondeu a médica. — Hafez estava sempre com Mohamed e Ibrahim. Nunca o vi com mais ninguém, nem mesmo o ouvi mencionar outros nomes. Dizia que recebia ordens de Al-Kayed por e-mail. Vi algumas dessas mensagens, pois ele me mostrou. Achei que tinham muito mais fundo de propaganda do que qualquer outra coisa.

Procurando lembrar dos menores detalhes, Amina revelou o con­teúdo dos últimos e-mails que Hafez lhe mostrara e afirmou:

Essas mensagens eram em inglês. E tanto Hafez quanto os outros dois sempre conversavam em inglês entre si.

Voltandó-se para Castells, Donovan inquiriu:

Já enviaram alguém para fazer uma revista na casa de Hafez?

Evidentemente — respondeu Castells, com expressão agastada. — Vai demorar um pouco para termos qualquer resultado, porque a cida­de se transformou num verdadeiro caos... Nada funciona.

Donovan acendeu um cigarro e, depois de soprar uma baforada de fumaça para o teto, comentou com Castells:

Não acha estranho uma célula terrorista com apenas três indivíduos?

Não — respondeu prontamente o chefe. — Esses terroristas ge­ralmente agem assim mesmo. Em células diminutas, nas quais um sabe um pouco mais que os outros, mas na realidade sabe muito pouco sobre o todo, eles têm conhecimento da missão específica que lhes é destinada, mas não têm a menor idéia do plano geral de quem chefia a rede. É uma maneira muito segura de agir. Nós podemos interceptar e destruir uma célula, mas dificilmente iremos além disso. A rede como um todo perma­nece fora de nosso alcance. Isso faz com que os terroristas sejam como as baratas. Você mata uma, surgem mais cem.

Deu um suspiro e continuou:

Agora mesmo, no meio de toda essa confusão, estão circulan­do centenas de pessoas que, de uma maneira ou de outra, estiveram in­timamente relacionadas com esses atentados. Temos de identificá-las e prendê-las o mais rápido possível.

Olhando para Amina com severidade, declarou:

Você também esteve envolvida, ainda que indiretamente. Acre­dito em sua boa-fé e acho até que posso dizer que você a comprovou. Po­rém, também acho que você demorou muito tempo para nos procurar.

Amina corou e, com voz tímida, defendeu-se:

Não achava que eles falassem realmente a sério. Até o próprio comportamento de Hafez, tanto comigo como com outras pessoas, não me fazia acreditar em tal nível de fanatismo. Achei que eram apenas ra­pazes procurando dar vazão a ideologias ainda não muito bem formadas. Inofensivos, portanto.

Olhando intensamente para Castells, ela prosseguiu:

Mas entrei em contato com vocês assim que soube que esta­vam lidando com coisas perigosas. Com os explosivos, no caso... E só não abandonei Hafez nessa ocasião... porque ainda o amava e tinha a esperança de que ele, ao ver que o pacote tinha sido descoberto, desistiria dessa aventura maluca.

Enxugou uma lágrima que começava a lhe escorregar pela face e, contendo o pranto, admitiu:

Cheguei a aceitar ir embora para a França, pois ele me disse que iria se encontrar comigo. Nesse momento, não imaginava que estava para acontecer tudo o que aconteceu. Porém, hoje de manhã, quando me des­pedi dele para ir ao aeroporto, percebi que Hafez estava um bocado estra­nho. E descobri o porquê quando ouvi a notícia dos atentados pelo rádio do táxi em que me encontrava. Lembrei-me de que ele havia dito, já há algum tempo, que tinha bastante dinamite em casa. Nunca me mostrou. Mas afirmou que tinha. Então me veio a idéia de que ele poderia cometer um atentado suicida. Em seguida, lembrei de nossa visita ao Centro de Cultura Israelense. E que ele tinha comentado com Ibrahim que estivera lá comigo e seria capaz de descrever de cor a planta do local. Concluí que esse poderia ser um alvo. Por isso, sugeri o lugar.

Coincidiu com informações que já tínhamos — murmurou Steinberg, manifestando-se pela primeira vez.

Fixando o olhar de Amina, Donovan ressaltou:

Mohamed está morto. Da célula, portanto, resta esse Ibrahim. O que sabe sobre ele?

Pouquíssimo. Apenas que é um indivíduo que quase não ri, que fala menos ainda e que, aparentemente, é mais muçulmano do que era o próprio Hafez. Mas não tenho sequer idéia de onde ele mora ou o que faz. Conheci um pouco melhor sua namorada, Jamile. Mas ela vivia com Ibrahim e também não sei onde residia antes de conhecê-lo.

Castells tamborilou com os dedos sobre sua mesa e resmungou:

E fácil concluir... Ibrahim, a esta altura, já está bem longe. Ele será o substituto de Hafez. Caberá a ele montar uma nova célula de terroristas.

Com expressão preocupada, Steinberg alertou:

Isso se ele não estiver por aqui esperando uma oportunida­de para eliminar a doutora Amina... Ela é a única pessoa que pode reconhecê-lo.

Um pesado silêncio pairou sobre o ambiente, e Castells, depois de refletir por alguns instantes, avisou:

Podemos deixar a doutora sob nossa custódia. Ela estará mais segura aqui do que em qualquer outro lugar.

Preciso voltar para o hospital — recusou Amina. — Sei que estão precisando de mim lá. E não acredito que Ibrahim possa tentar alguma coisa contra mim. Não teria nenhum motivo, mesmo eu sendo capaz de reconhecê-lo.

Como estava fazendo a maioria das pessoas com quem cruzava, Fefê caminhou sem rumo pela cidade caótica. O trânsito tinha sido bloquea­do em Manhattan para que os veículos de socorro pudessem passar com mais facilidade. Muitos helicópteros sobrevoavam a área, principalmente helicópteros militares e da polícia, e a impressão que se tinha era de que ninguém sabia bem exatamente o que fazer.

A cidade, mais precisamente o centro financeiro de Nova York, parecia ter se transformado num campo de guerra. Fefê tinha a sensação de estar caminhando dentro do cenário de um desses filmes de destruição produzidos pelos próprios americanos. Havia muito ruído, mas a sensação era de silêncio: um estranho silêncio causado pela ausência súbita do ba­rulho do trânsito, dos outros sons característicos de uma cidade grande. Um silêncio causado pela própria imagem da destruição. Por todos os lu­gares havia uma espessa nuvem de fumaça, cinzas e poeira, e o cheiro acre de material plástico queimado empestava a atmosfera, fazendo as pessoas sentir tontura. Homens e mulheres, sentados nas sarjetas das ruas mais próximas ao World Trade Center, choravam tentando manter as espe­ranças de reencontrar parentes e amigos. Todos estavam usando máscaras de papel como proteção contra a poeira, e Fefê, tomando consciência de que também estava se sufocando, amarrou um lenço ao redor do nariz e da boca.

Em torno das Torres Gêmeas — ou do que restava delas —, o trânsito tinha sido bloqueado até mesmo para pedestres. Os policiais só permitiam — e, ainda assim, sob muito controle — a aproximação dos voluntários. Nas ruas mais distantes, àquela altura já praticamente deser­tas, sob o asfalto coberto de poeira e cinzas, algumas poucas pessoas cami­nhavam, cambaleantes e meio sufocadas pela fumaça e pelo pó, tentando encontrar um caminho de fuga.

O tráfego, de natureza já bastante carregado e complicado em Nova York, tornara-se absolutamente caótico. Com as pontes de acesso à ilha fechadas, sem metrô e sem trens, tudo parou, e a única maneira de locomoção era a pé.

Fefê, já bem mais controlado, caminhou sem pressa — mesmo porque de nada adiantaria se afobar — em direção à douintouin, a região da ilha que poderia ser chamada de setor boêmio de Manhattan e onde morava Samira. Imaginava que lá, por ser mais distante do local do desastre, as pessoas poderiam estar um pouco mais calmas e, assim, ele poderia se informar melhor sobre o endereço que a moça lhe dera. Ali, perto do World Trade Center, ninguém sequer lhe respondera quando pedira uma informação. Até mesmo dois policiais não lhe deram a me­nor atenção, e um deles o olhou como se estivesse diante de um ser de outro planeta. Passou por um homem com as roupas ensangüentadas e a cabeça enfaixada, falando sozinho, com o olhar perdido. I'm alivel I'm alive! E sorriu internamente, pensando que também estava vivo, quan­do poderia não estar.

Nas ruas um pouco mais afastadas do epicentro da catástrofe, Fefê notou vários pontos de aglomeração de pessoas. Aproximando-se de um deles, viu que eram postos improvisados de recrutamento de voluntários, homens e mulheres, de todas as idades, que estavam se apresentando com o único objetivo de ajudar, de fazer alguma coisa para minimizar a dor dos que foram atingidos direta ou indiretamente pelo desastre.

O sentimento de patriotismo do norte-americano mostrava-se com toda sua força. Bandeiras dos Estados Unidos tremulavam penduradas nas janelas dos edifícios e nas portas de inúmeros estabelecimentos co­merciais. E o rapaz ouviu, incontáveis vezes, pessoas gritando: "Morte aos árabes! Acabem com os muçulmanos!" — uma generalização, que tendia ao fanatismo, extremamente perigosa.

Àquela altura, o mundo inteiro já sabia que o desastre tinha sido causado por um atentado, e em todos os continentes afirmava-se que este seria obra de terroristas árabes. Contudo, a separação entre árabes e terro­ristas estava sendo difícil, praticamente impossível. Para os americanos que estavam nas ruas, qualquer árabe, qualquer muçulmano, era terrorista.

Lembrou-se mais uma vez de Samira. Apesar de não usar a burca e apresentar um comportamento tipicamente ocidental, ela não conse­guiria jamais esconder suas feições árabes. E isso poderia representar um grande perigo naquele ambiente tenso, com todas as armas apontadas para quem tivesse qualquer relação com o Oriente Médio.

Já bem longe do centro financeiro, Fefê constatou que os ônibus estavam circulando. Se é que se poderia usar esse termo, uma vez que eles, lotados, tentavam rodar, centímetro por centímetro, no meio do tráfego completamente congestionado. Preferiu prosseguir a pé, apesar de estar sentindo bastante dor nos braços por causa do peso da maleta que carregava.

Olhou o relógio, constatou que passavam de cinco horas da tarde e imaginou que Samira já teria deixado o hotel e voltado para sua casa. Mais uma vez, pensou em ligar para o celular da moça, mas logo desis­tiu. Primeiro, porque as linhas telefônicas ainda estavam desligadas e, segundo, porque não queria deixar nenhuma pista, nenhuma prova de que ainda estivesse vivo.

Quanto a isso, ele ainda tinha de decidir o que fazer. E, para deci­dir, precisava encontrar Samira num local seguro e escondido.

"O melhor lugar é o apartamento dela", pensou, aproximando-se de um policial para tentar, mais uma vez, obter uma informação sobre o endereço para onde deveria se dirigir.

Já passava de nove horas da noite quando Fernando deu mais um comprimido de calmante para Marialva e disse:

— Não há nada a fazer. Eles não ligaram. E, se não ligaram até ago­ra, é porque não conseguiram. Você ouviu o jornalista dizer que todos os meios de comunicação de Nova York estão em pane. Eles simplesmente não puderam ligar!

Marialva balançou negativamente a cabeça e, ainda chorando muito, retrucou:

Não adianta, Fernando... Eu sei que não adianta... Eles estão mortos. Nossos três filhos estão mortos. E Tony também! Sou mãe, sinto isso!

Fernando reprimiu como pôde as lágrimas e os soluços que desde a manhã vinha tentando controlar e insistiu:

Não podemos pensar no pior, Marialva. Temos de ter esperan­ças... Sei que eles vão ligar e assim que puderem estarão de volta ao Brasil. E nós nos encontr...

Não conseguiu continuar.

Debruçando a cabeça sobre o peito da esposa, Fernando desatou a chorar.

Ele também tinha certeza de que a desgraça acontecera. Os três filhos e o genro estavam mortos. E, de esperança, realmente, restava ape­nas a de que eles não tivessem sofrido, de que a morte os tivesse surpreen­dido sorrindo, felizes e cheios de sonhos.

Todos os sonhos que ele e Marialva tinham reservado para a famí­lia e que, agora, não faziam mais qualquer sentido.

Os filhos estavam mortos! Assim, de repente e de uma só vez! Era um pesadelo. Não podia estar acontecendo.

Deixando a mulher esticada sobre o sofá, dirigiu-se ao bar e serviu-se de uma generosa dose de conhaque. Com o copo na mão, sentou-se outra vez diante da televisão, à espera de mais notícias.

Olhou para o telefone ao lado, pedindo a Deus que ele tocasse e que fosse um dos filhos. Pelo menos um... Pelo menos Fefê dizendo que tinha se atrasado e que escapara da tragédia.

O aparelho, porém, continuava em silêncio. E algo dizia, dentro de seu coração, que ele não tocaria para lhe trazer uma boa notícia.

Enquanto isso, o jornalista informava, com voz neutra, que as autoridades nova-iorquinas afirmavam que sessenta mil homens estavam trabalhando na remoção dos escombros e na busca de sobreviventes. Res­saltava, também, que eram muito pequenas as possibilidades de encontrá-los e resgatá-los a tempo.

Nesse mesmo momento, em seu escritório do depósito, de onde não saíra desde a manhã, João Antônio se desesperava:

Ele não ligou! Não telefonou! Ele está no meio dessa montanha de entulho! Ele e o meu dinheiro!

Sentado diante do aparelho de televisão, Flávio, seu braço direito, tentou acalmá-lo:

Não pense assim, chefe. Ele não está podendo telefonar, só isso. Você não ouviu que nenhum telefone está funcionando em Nova York? Como você queria que ele lhe ligasse? Ele pode estar vivo...

Mas não é por isso! — exclamou João Antônio, irritado. — Es­tou pouco me lixando pelo Fefê! Estou preocupado com o meu dinheiro!

Aceitando a dose de uísque que a secretária lhe oferecia, explicou:

A única salvação é Fefê ter se atrasado para o encontro. Se isso aconteceu, ele está com o dinheiro. Porém, se ele chegou a entregar o milhão de dólares, esse dinheiro virou cinza. Está perdido! Ou você acha que alguém vai assumir essa perda e me entregar a mercadoria?

Flávio não teve o que dizer e, depois de pedir um uísque também para ele, perguntou:

E o que vamos fazer?

João Antônio suspirou:

Não sei... Juro que ainda não sei... Mas de uma coisa pode ficar cer­to, Flávio... Não vou perder um milhão de dólares assim! Isso é que não!

Os dois ficaram em silêncio ouvindo o noticiário. O jornalista acentuava o estado caótico em que se encontrava Nova York naquele instante, repetindo que grande parte da cidade estava sem energia elétri­ca, sem água e sem telefonia.

Toda a região sul de Manhattan foi evacuada — anunciava o re­pórter. — E as autoridades dizem que são pequenas as possibilidades de se encontrarem sobreviventes.

Está vendo? — comentou Flávio. — Aquilo lá deve estar uma confusão dos infernos! Ninguém sabe o que fazer, ninguém sabe de nin­guém! E a única coisa que temos para fazer é esperar... Simplesmente esperar que Fefê nos ligue para dizer que não entregou os dólares e, agora, não sabe o que fazer...

João Antônio soltou outro suspiro, esvaziou o resto de uísque que ainda estava em seu copo e concordou:

Talvez você tenha razão... E talvez Fefê ainda esteja com o dinheiro; realmente a reunião era muito cedo e ele nunca foi de acordar de madrugada.

Apertando muito as pálpebras, João Antônio rosnou:

Porém... há um outro caminho. Aliás, o caminho que eu segui­ria se estivesse na pele desse rapaz!

Fefê teve sorte, e o policial indicou-lhe o caminho, acrescentando que ele precisaria se sacrificar um pouco e que, apesar da distância, deve­ria ir a pé, pois, do jeito que estava o trânsito, chegaria mais depressa.

O prédio onde morava Samira era um desses edifícios modernos, com muitos apartamentos por andar e esteticamente muito bonito. No entanto, do lado de dentro, da porta de entrada para o interior, era um desastre. Limpeza e conservação eram coisas que pareciam não constar nas obrigações da administração e, apesar dos dezenove andares, serviço de fornecimento emergencial de energia simplesmente não havia.

Fefê teve de subir pelas escadas os doze andares até o pavimento onde morava Samira. Nesse árduo trajeto, ele cruzou com várias pessoas que desciam ou subiam, usando lanternas de pilhas ou mesmo velas para iluminar a escadaria interminável, completamente às escuras. Muitas dessas pessoas estavam subindo carregadas de sacolas de supermercado e ele ouviu algumas comentando que era melhor se abastecer, pois, dentro de poucos dias, Nova York estaria com falta de mantimentos por causa da guerra. Outras pessoas falavam sobre os mísseis que tinham atingido o Pentágono e o World Trade Center, apesar de os meios de comunicação terem confirmado que eram Boeings e não mísseis. E todas, absolutamen­te todas, afirmavam a mesma coisa: os Estados Unidos tinham de declarar guerra aberta aos árabes e muçulmanos.

— Já deveríamos ter acabado com o Iraque desde a Guerra do Gol­fo! — ameaçou um senhor que subia as escadas um pouco mais devagar do que ele. — Se o Bush não tivesse sido tão mole, certamente isso não teria acontecido! Agora, vamos ver se o filho dele é um pouco menos pusilânime!

O que aquele homem estava dizendo, na realidade, representava a opinião da maioria dos americanos. O povo clamava por uma retalia­ção à altura da destruição provocada pelos atentados. E, se essa retaliação começasse a acontecer internamente, contra a comunidade árabe e mu­çulmana, sem controle, sem critério, a situação de Samira poderia se tornar crítica.

Finalmente, chegou à porta do apartamento de Samira e, antes de bater, encostou o ouvido à madeira para se certificar de que a moça não estava com outras pessoas lá dentro.

Ouviu apenas um choro, soluços que não paravam, e sorriu.

Era por ele que Samira estava chorando, e saber disso encheu-o de uma sensação bastante anômala de felicidade. Se Samira estava cho­rando por ele, é porque realmente o amava e o queria. E isso lhe fazia muito bem.

Bateu à porta e, depois de alguns segundos de espera, ouviu a voz da moça perguntar, em inglês:

Quem é?

Muito baixo, ele respondeu, em português:

Sou eu, Samira. Abra, por favor!

A porta abriu-se num repelão, e Samira apareceu, ainda usando as mesmas roupas da véspera. Seu rosto estava molhado pelas lágrimas que chorara, e seus olhos pareciam ainda maiores e mais escuros.

Fefê! — exclamou ela, abraçando-o com força, apertando-o contra si como se tivesse medo que ele fugisse. — Pensei que você tivesse morrido!

O rapaz entrou, fechou a porta atrás de si, trancando-a, e pergun­tou, num murmúrio:

Você está sozinha?

E com quem você queria que eu estivesse? — replicou a moça, com expressão ofendida. — Com um amante?

Com um gesto agastado, ele explicou:

Não se trata disso, Samira... Acontece que o que eu tenho para lhe dizer não pode ser escutado por ninguém. E ninguém deve saber que estou aqui...

Samira olhou para Fefê interrogativamente e indagou:

Mas... por quê? O que aconteceu? Por que se esconder?

O rapaz atirou a maleta sobre uma poltrona, massageou o músculo dolorido pelo esforço de carregá-la e comentou:

Temos de conversar, querida. E muito.

Olhou ao seu redor e continuou:

Mas, antes, preciso tomar um banho. Estou me sentindo absolutamente imundo...

Terá de ser frio, Fefê. Estamos sem energia elétrica, e a água quente do aquecedor central acabou. A cidade toda está assim... Uma coisa horrível!

Samira levou-o até o banheiro, entregou-lhe uma toalha limpa e disse:

Você terá de usar um roupão meu, Fefê. Quando essa confusão        toda diminuir, irei até o hotel e trarei roupas limpas. Você vai precisar me esperar aqui, enquanto isso, pois não vai andar pelas ruas de roupão de banho, ainda que Nova York seja uma cidade bastante liberal e, neste instante, esteja completamente confusa.

Não! — exclamou ele. — Não faça nada disso! Não vá buscar roupa nenhuma, nem mesmo ligue para o hotel!

Mais uma vez, ela o olhou intrigada e, com um sorriso um tanto quanto sem graça, o rapaz esclareceu:

Deixe-me tomar banho, meu amor. Depois eu lhe conto tudo, como já lhe falei. Mas, por enquanto, ninguém, absolutamente ninguém, deve saber que voltei.

Samira deu de ombros e, trazendo mais uma vela para iluminar melhor o banheiro, avisou:

Vou preparar alguma coisa para nós dois comermos. Não sei você, mas eu não pus nada na boca desde que você saiu do quarto, lá no hotel.

Abrindo o chuveiro e estremecendo com o choque da água gelada, Fefê lembrou que não comera nada o dia inteiro, nem mesmo chegara a tomar o café-da-manhã. De fato, algum alimento, o que quer que Samira preparasse, seria muito bem-vindo.

O rapaz sempre tivera horror a banho frio e, por isso, foi bastante rápido. Assim, menos de dez minutos depois de ter aberto a torneira, já estava ao lado de Samira, na quitinete do apartamento, embrulhado num roupão da moça, tremendo como se tivesse acabado de sair de uma câmara frigorífica.

Comprei uma garrafa de vodca — disse ela, dando-lhe um beijo sem parar de mexer numa panela. — Assim que soube que você viria para Nova York, fui comprá-la para que pudesse beber quando nos encontrás­semos aqui... Está no freezer. Sirva-se à vontade.

Fefê não se fez de rogado e, pegando a garrafa, serviu-se de uma generosa dose, perguntando:

A que horas você chegou aqui? E como veio, com o trânsito que está?

Vim a pé. E acho que todo mundo usou os próprios pés hoje. Estava impossível andar de outra maneira.

Tomando um gole de bebida no copo do rapaz, ela prosseguiu:

Passei o pior dia de minha vida, Fefê! Acho que envelheci dez anos só hoje!

Ele sorriu, observando que, pelo menos, não estava aparentando todo esse envelhecimento, e Samira continuou:

Não vi você sair, de manhã cedo. Acordei com um estrondo. Corri para a janela e vi que uma das torres do World Trade Center esta­va em chamas e comecei a ficar preocupada. De acordo com o que você tinha me dito, àquela hora, já deveria estar lá. Depois, logo depois, vi o avião se chocando com a outra torre. Aí entrei em desespero. Tentei ligar em seu celular, mas não consegui; caía no correio de voz.

Eu o perdi — contou Fefê.

Servindo o jantar que preparara em dois pratos, Samira conti­nuou:

Como disse, fiquei desesperada. Tinha certeza de que você esta­ria lá, justamente num dos andares atingidos pelo avião. Mas, ao mesmo tempo, não podia, não queria acreditar que essa tragédia tivesse aconte­cido. Assim, enquanto tinha bateria no meu celular, fiquei tentando falar com você, porque pelo telefone do hotel já não era mais possível. Como todos os telefones de Manhattan, ele ficou mudo. O hotel tem sistema emergencial de energia elétrica e, assim, a televisão continuou funcio­nando. Pude acompanhar as notícias e, a cada imagem, o meu desespero aumentava. Você imagina, portanto, como foi que eu me senti quando a torre norte desabou! E você sem fazer contato comigo! Aí, sim, entrei em pânico. Pensei em ir para o World Trade Center encontrá-lo. Queria fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Fiquei no hotel até meio-dia, quando meu celular ficou completamente sem bateria. Aí, como não ti­nha realmente mais nada para tentar, resolvi vir para casa. Primeiro, eu queria recarregar o celular para continuar tentando uma comunicação. Segundo, eu não queria estar lá, em seu apartamento, se as linhas tele­fônicas fossem restabelecidas e seus pais conseguissem ligar para o hotel. Achei que não ficaria bem eu estar lá, e nada teria a dizer para eles que lhes pudesse transmitir alguma esperança.

Samira tomou fôlego e prosseguiu:

Pensei em trazer sua mala, mas era pesada, e eu já sabia que teria de fazer o trajeto até aqui a pé. Por isso, deixei-a lá. Saí do apartamento, deixei a chave na recepção e pedi ao funcionário que lhe dissesse para entrar em contato comigo assim que chegasse. Ele me olhou com expres­são de piedade.

Ela sorriu, sem graça, e concordou:

Acho que eu estava mesmo com cara de desespero. Estava cho­rando muito, nervosa, revoltada contra o destino...

Beijou carinhosamente o rapaz e murmurou:

Seria muita injustiça eu o perder assim, logo agora, que tinha encontrado a minha outra metade, o meu homem...

Estou aqui, Samira — retrucou Fefê, fazendo-lhe uma carícia no rosto. — Estou aqui e nada vai me afastar de você!

Samira sorriu e continuou:

Saindo do hotel, ainda tentei chegar às Torres Gêmeas, mas fui impedida pelos policiais do cordão de isolamento. Desisti e vim para cá. Acho que demorei duas horas para chegar, apesar de conhecer bem a cidade e conseguir me desviar de todas as aglomerações. Mas as ruas esta­vam cheias de gente correndo de um lado para o outro, e os supermerca­dos estavam lotados. Todo mundo estava comprando mantimentos, como se uma guerra fosse acontecer de um momento para o outro. Tive muito medo. Sei que tenho tudo de árabe, e cada um que me olhava, eu achava que estava me acusando pelo atentado.

Também fiquei muito preocupado com isso — admitiu o rapaz. — Eu vi como as pessoas estão reagindo. Há um quase fanatismo; pode começar a acontecer uma discriminação muito grande e muito perigosa!

Samira anuiu com a cabeça e prosseguiu:

Mas ninguém me incomodou, e eu cheguei aqui sã e salva. Acho que nem me perceberam, eu é que estava com medo e achei que todas as atenções se voltavam para mim. As pessoas estavam assustadas demais para enxergar qualquer coisa. Aqui, meu desespero aumentou. Não havia energia elétrica para eu poder recarregar a bateria do celular ou ligar a televisão para saber o que estava acontecendo. Comecei a chorar e...

Abraçou Fefê por cima da mesa, quase derrubando tudo, e finalizou:

Chorei até o momento em que você chegou...

Soltando-o e franzindo as belas e espessas sobrancelhas, Samira perguntou:

E você? Onde você estava? Por que não voltou imediatamente para o hotel?

Fefê serviu-se de mais uma dose de vodca, apesar dos protestos de Samira, e contou:

Eu me confundi com o horário. Assim, saí do hotel atrasado. Corri, peguei um táxi, mas, como o trânsito estava péssimo, a cerca de trezentos metros do World Trade Center, saltei, disposto a fazer o resto do caminho a pé, achando que acabaria chegando mais depressa assim. Foi então que aconteceu a primeira colisão. Claro que me assustei, fiquei um pouco atarantado. Logo em seguida, o outro avião bateu. Aí, pirei de vez. Vi aquele povo todo correndo, a fumaça, a poeira... Entrei em pâni­co. Corri sem destino, acabei parando numa lanchonete e, pelo rádio do proprietário, ouvi as notícias.

Samira insistiu:

Mas você poderia ter voltado para o hotel! Eu não teria ficado tão desesperada por tanto tempo!

Sem dar atenção ao protesto da moça, Fefê contou-lhe sobre a sua caminhada até ali, enriquecendo a narrativa, falando de detalhes, descrevendo os feridos, os verdadeiros zumbis com que cruzara. Não revelou, em momento algum, todos os pensamentos que lhe passaram pela cabeça durante todo esse período de tempo. Na verdade, ainda estava inseguro, com receio da reação que Samira poderia ter. Não sabia como começar.

Foi a própria moça quem forneceu a abertura para que ele entrasse no assunto:

Você poderia estar morto! Certamente seus pais estão pensando no pior! Assim que os telefones recomeçarem a funcionar, você...

Fefê interrompeu-a e disse:

Não! Não posso fazer isso! Eu... morri!

Samira, que estava abraçada a ele naquele instante, afastou-se ra­pidamente, como se, de fato, estivesse diante de um fantasma. Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Fefê perguntou, com angústia na voz:

Você não entende? Não está vendo que é a oportunidade que estávamos esperando?

Os grandes olhos de Samira fixaram-no interrogativamente, e ele continuou:

Não lhe disse que precisávamos de um milhão de dólares para começar uma nova etapa de vida?

Apontando para a maleta de dinheiro sobre a poltrona, declarou:

O milhão de dólares está ali. Já o temos, e esse dinheiro é nosso! Não precisaremos devolver um centavo sequer! E isso porque eu simples­mente morri! Oficialmente, estou morto, entendeu?

Lentamente, Samira aquiesceu com um sinal de cabeça, e Fefê prosseguiu:

João Antônio sabia que eu deveria estar no World Trade Cen­ter àquela hora. Jamais poderia imaginar que eu saí atrasado. Assim, para ele, eu e a maleta fomos carbonizados ou, no mínimo, estamos soterrados debaixo de milhões de toneladas de entulho. Você acha que vão conseguir resgatar todos os corpos? É claro que não. Sem contar que muitas, mas muitas pessoas literalmente desapareceram, foram pulverizadas nesse desastre.

Fez uma breve pausa e perguntou:

Por que eu não poderia ser uma dessas pessoas? Um dos muitos desaparecidos e que jamais serão encontrados? João Antônio terá de se conformar. Terá de considerar esse milhão de dólares absolutamente perdido. Queimado.

Mas... e seus pais? — perguntou Samira. — E seus amigos? Não acha que todos estão sofrendo, no mínimo, tanto quanto eu sofri?

O rapaz deu de ombros e respondeu:

Meus irmãos, com certeza, morreram. O choque do segundo avião foi entre o octogésimo sétimo e o nonagésimo terceiro andares. O escritório deles era no nonagésimo primeiro, ou seja, bem no meio, exa­tamente onde o avião entrou e explodiu. O encontro que eu tinha era na mesma torre e no octogésimo nono andar. Logo, meus pais têm certeza que nós todos morremos.

Com um sorriso nervoso, acrescentou:

De qualquer maneira, eles gostavam mais de meus irmãos do que de mim. Se estão chorando, hoje, pode ter certeza que é mais pela morte de Marina, de Gilberto e até mesmo de Tony.

Você não deve falar assim — repreendeu Samira. — São seus pais, e é...

Fefê interrompeu-a, acusando:

Conheço meus pais, Samira. E sei o que estou falando.

Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes e, servindo-se de mais vodca, Fefê prosseguiu:

E há o dinheiro. Há o João Antônio. Esta é a melhor oportuni­dade de eu me libertar dele! E ficar sossegado financeiramente.

Mas é injusto para com seus pais. Você até pode desaparecer e ficar com o dinheiro. Mas seus pais precisam saber que você está vivo!

Seria a mesma coisa que não ter desaparecido. Não posso contar para meu pai a razão de eu precisar sumir. E, mesmo que ele viesse a en­tender, tenho certeza de que não conseguiria manter o segredo por muito lempo. Principalmente minha mãe. Cedo ou tarde um deles daria com a língua nos dentes, e eu estaria perdido. Já você é um caso diferente. Você é a minha mulher. Você faz parte de minha vida.

Seus pais também... — murmurou Samira.

Mas é diferente, como eu disse. Você já sabe de tudo, já sabe de minha ligação com João Antônio e da ligação que eu tive com o Erik. E é você quem vai usufruir comigo essa nova vida.

A moça calou. Começava a entender as razões que empurravam Fefê,a agir daquela maneira e... a aceitá-las. Realmente, um milhão de dólares era bastante dinheiro, mas, para ela, o mais importante era a li­berdade, o fato de Fefê não estar mais escravizado ao narcotráfico e poder respirar livremente bem longe daquele mundo podre.

Tenho documentos falsos, tenho a oportunidade que o destino me deu — assegurou o rapaz. — Eu seria um verdadeiro imbecil se não a aproveitasse.

Muito séria, Samira concordou:

Sim. Você seria um imbecil. Mas se usasse esses documentos falsos!

Sem entender o que ela queria dizer, Fefê fitou-a, assustado, e a moça explicou:

Esses documentos foram conseguidos por João Antônio, como você mesmo me disse. Será a primeira pista que ele terá. São documentos brasileiros. Falsos, mas brasileiros. Podem ou não estar registrados como verdadeiros na Polícia Federal, no Ministério da Fazenda, ou mesmo em qualquer serviço de identificação, no Brasil. Você não sabe, mesmo por­que jamais perguntou a João Antônio. Nem vai procurar saber! Seria a mesma coisa que admitir que você está vivo!

Fefê empalideceu. Samira tinha razão, e ele não tinha pensado nis­so. Com expressão de desespero, ele perguntou:

Mas... e então? Como faço?

A jovem ficou em silêncio. Ela sabia muito bem como resolver aquela situação, já tinha ajudado Erik num caso em que um de seus pombos-correios precisou de documentos falsos para poder deixar em seguran­ça os Estados Unidos. Revelar isso a Fefê poderia implicar perguntas que ela não gostaria de responder e que iriam trazer, à sua memória, lembran­ças de fatos que ela queria esquecer.

Entretanto, tratava-se de Fefê e de um milhão de dólares...

Depois de refletir alguns momentos, ela aconselhou:

É melhor não pensar nisso, por enquanto. Só vai nos deixar nervosos. Tenho certeza de que, quando nos acalmarmos um pouco mais, encontraremos uma solução. Agora, acho que você deve decidir definiti­vamente o que quer fazer. Deve me dizer se quer mesmo ficar na lista de desaparecidos ou se não quer. Haverá muita coisa em jogo, muitas pes­soas, muitos sentimentos. Você precisa estar consciente de que vai deixar pessoas sofrendo o que não precisam sofrer. Vai ter de mudar de vida, vai perder todos os amigos, vai começar tudo de novo.

Fixando-o com expressão inquisidora, perguntou:

Acha que está preparado para isso?

O rapaz pensou um pouco e, sacudindo a cabeça para afastar a me­dia imaginária de cabelos de seus olhos, respondeu:

Sim. Estou preparado. Sei que estou absolutamente preparado para enfrentar o mundo com você. Estou preparado para ficar com esse dinheiro e fazer João Antônio e tudo que o cerca desaparecer de minha vida. Mesmo que para isso tenha de sacrificar meus pais...

Em voz mais baixa, arrematou:

— Acho que, para eles, o sofrimento maior foi o da perda de Marina, Gilberto e Tony. Em segundo lugar, o da perda do investimento em Nova York. O resto é resto, simplesmente. E eu sou apenas parte desse resto.

 

Apesar do dia cheio de emoções, medos, dúvidas e exaustão física, naquela noite os dois se amaram como se, de fato, o mundo fosse acabar ao amanhecer e, portanto, era mais do que obrigação aproveitarem ao máximo os poucos momentos que lhes restavam.

Como conseqüência, acordaram bem tarde, já perto de meio-dia, com o som da televisão, pois a energia elétrica tinha voltado durante a manhã, e Samira deixara o aparelho ligado na véspera.

Como seria de se esperar, não havia outra programação que não losse referente ao atentado contra o World Trade Center.

Ainda entorpecido pelo sono, Fefê levantou-se e ouviu, na televi­são, um jornalista afirmar que o prefeito Rudolph Giuliani estava pedin­do aos nova-iorquinos que não saíssem de casa naquela quarta-feira.

Procurando prestar mais atenção, ouviu:

— O prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, fez um apelo à popu­lação da cidade para que as pessoas tratem o dia de hoje como se fosse um dia de tempestade de neve, apesar de ser verão nos EUA. Disse ele: "Pediria para as pessoas que não fossem trabalhar, tirassem o dia de folga e ficassem em casa". Os serviços de metrô e ônibus, em boa parte de Nova York, continuam paralisados. A parte baixa de Manhattan, que inclui todo o distrito financeiro de Wall Street, continua interditada. A área está liberada apenas para aqueles que estão envolvidos nos trabalhos de resgate. Ainda há muita fumaça no céu da parte sul da ilha de Manhattan.

Esfregando os olhos, o rapaz foi até a janela e viu que, realmente, boa parte da cidade não podia ser vista por causa da fumaça que paira­va sobre Manhattan. Olhando para baixo, constatou que a rua estava praticamente deserta, com poucos transeuntes passando a pé e nenhum automóvel. Ouviu barulho de sirenes, quando uma ambulância passou na esquina e afastou-se, apressada, em direção ao norte da ilha.

Aproximou-se da televisão, abaixou um pouco o volume, pensando em Samira, que ainda estava dormindo e, naquele instante, o jornalista noticiava:

No day after dos ataques terroristas a Nova York, as pontes que dão acesso à ilha de Manhattan continuam fechadas ao tráfego de veículos e até mes­mo de pedestres. Somente na ponte do Brooklyn, que liga o bairro do mesmo nome às regiões de Wall Street e do distrito financeiro, foram abertas algumas exceções, como para os carros funerários. Os carros dirigem-se ao Battery Park, ao lado dos escombros das duas torres do World Trade Center, onde foi impro­visado um necrotério. Pela ponte do Brooklyn também podem passar aqueles que trabalham nas operações de resgate, veículos que transportam destroços dos desabamentos e blindados das Forças Armadas, deslocados para o local. Dos es­combros, ainda sai uma fumaça cinzenta. Tropas da Guarda Nacional também foram enviadas a Nova York para ajudar nas operações de resgate.

No vídeo, apareceram imagens da montanha de entulho em que se transformaram as Torres Gêmeas, com muitos bombeiros e voluntá­rios trabalhando na árdua tarefa de vasculhar os escombros à procura de sobreviventes. Um estremecimento percorreu o corpo de Fefê, enquanto continuava ouvindo o jornalista:

Pouco mais de vinte e quatro horas depois dos atentados contra o World Trade Center e o Pentágono, ainda são desconhecidos os dados sobre o número de mortos e feridos, e as autoridades já avisaram que levará algum tempo até que se tenha uma informação clara. O prefeito Rudolph Giuliani disse que todos os esforços no momento são para, segundo suas palavras, "salvar o maior número possível de pessoas". Ele afirmou que, quando o pri­meiro avião se chocou contra uma das Torres Gêmeas, havia milhares de pes­soas no edifício, que tiveram uma hora e quinze minutos para sair antes que a torre desmoronasse. Segundo Giuliani, milhares de pessoas conseguiram sair do prédio, mas muitas outras não. Os jornalistas estão sendo mantidos a várias quadras de distância do WTC.

Samira, que acabara de se levantar e tinha preparado café para os dois, sentou-se no sofá, ao lado de Fefê, e disse:

Pelo visto, as possibilidades de se encontrarem sobreviventes são mínimas... E deve haver vários milhares de mortos...

Entregou uma caneca de café para o rapaz e murmurou:

E pensar que você deveria estar lá... Só de imaginar isso eu me sinto mal!

Fefê sorriu, tomou um gole de café e lembrou:

É... Mas o destino não quis que eu estivesse. Ao contrário, ele quis me dar esta oportunidade.

Com expressão séria, ele acrescentou:

E nós dois temos de saber aproveitá-la muito bem!

Samira anuiu com um sinal de cabeça e disse:

Bem... Creio que a primeira coisa a ser feita é você não se mostrar. Ficar aqui, bem quieto, sem pôr a cara fora de casa. Nova York é uma cidade imensa, mas também tem as suas coincidências. Já imaginou você estar num bar ou restaurante e encontrar um brasileiro que o conheça? Todo o seu plano irá por água abaixo!

Acho pouco provável — retorquiu o rapaz. — Mas concordo com você. Estamos lidando com algo sério demais para correr qualquer tipo de risco. Não sairei. Ficarei aqui e, desde que esteja com você, pode­rei passar o resto de meus dias trancado...

Samira ia dizendo que ela também, ao lado de Fefê, poderia ficar em qualquer lugar do mundo, quando apareceram na tela da televisão imagens de um supermercado, e o jornalista afirmou:

Desde poucos instantes depois dos atentados, o nova-iorquino está procurando se abastecer de mantimentos e água, com medo de que haja falta de mercadorias. Isso está causando grande transtorno, e o prefeito Rudolph Giuliani pede a todos que não se precipitem. Não haverá falta de abasteci­mento na cidade. O problema com a distribuição de água estará soluciona­do dentro de poucas horas, como o foi com a energia elétrica. Em hipótese tdguma haverá falta de alimentos, remédios ou o que seja. Porém, se todos correrem aos supermercados, aí, sim, poderá haver crise. O prefeito pede a todos que procurem comprar mantimentos na mesma rotina de sempre. Não há necessidade de aprovisionamento para longos períodos.

Acho que isso não vale para nós — alertou Fefê. — Se vamos ter de ficar trancados aqui dentro...

Minha despensa está bem abastecida — replicou Samira. — Só vou precisar comprar poucas coisas e farei isso daqui a pouco.

E, antes que o rapaz se manifestasse, ela o fez calar com um beijo, insistindo:

Você vai ficar aqui, vendo televisão. Eu irei sozinha; o super­mercado é logo ao lado. Nem pense em sair, acabamos de resolver isso, não foi?

Fefê suspirou, mas concordou. De fato, para que correr riscos? Para que pôr a perder uma nova vida, com plena e total liberdade, por causa de uma reles compra num supermercado?

Natalie e Mathew acordaram cedo naquele day after, interessados que estavam em começar a se dedicar inteiramente a uma tarefa que, no entender do jornalista, seria o trabalho de suas vidas.

Bem instalados num hotel da região norte de Nova York, onde não estava havendo cortes de energia e a telefonia já no fim da tarde anterior começara a funcionar normalmente, eles ligaram a televisão, pediram o café-da-manhã no quarto e começaram a trabalhar.

Esse trabalho, numa fase inicial, era a troca de idéias e as anotações dos pontos importantes a serem pesquisados e desenvolvidos.

O que o mundo está esperando é, sem dúvida, uma violenta reta­liação dos Estados Unidos — comentou Mathew, iniciando a conversa.

Certo — concordou Natalie. — Porém, essa retaliação não será fácil, tendo em vista a dificuldade de escolher o alvo, melhor di­zendo, a dificuldade de se determinar com certeza quem foi o culpado pelos atentados. Desde ontem à noite estamos ouvindo comentários e suposições sobre a responsabilidade de esses ataques serem de Osama Bin Laden. Creio ser um pouco precoce afirmar tal coisa. Não podemos esquecer o que aconteceu em Oklahoma, em 1995. A culpa, imediatamente após o atentado, foi jogada sobre os ombros dos muçulmanos fanáticos. Porém, descobriu-se que o fanático era Timothy McVeigh, um americano.

Concordo com você — admitiu Mathew. — Mas somos obriga­dos a pensar sempre no mais provável. E, neste caso, a probabilidade de os atentados terem sido cometidos por árabes é muito grande. Você ouviu, pela televisão, que algumas informações conseguiram vazar até mesmo do FBI. Parece que os aviões utilizados nos ataques estavam sendo controlados por seqüestradores árabes. E, se essa informação se confirmar, o suspeito mais pro­vável será Bin Laden. Ele declarou guerra aberta aos Estados Unidos, e não foi uma vez apenas que ele afirmou que representamos o "grande satã".

Pode ser — concordou Natalie. — E, se procurarmos olhar o problema pelo prisma dos fundamentalistas islâmicos, teremos de aceitar que eles não deixam de ter razão.

Mathew olhou espantado para a moça, e esta, antes que ele pudesse protestar, adiantou:

Você mesmo disse que temos de ser imparciais. É exatamente o que estou tentando fazer. E óbvio que a brutalidade e a crueldade desses ataques fazem com que qualquer um tenha uma forte tendência à parcia­lidade e, com isso, a condenar os muçulmanos. Mas é preciso ver que, em primeiro lugar, dos mais de um bilhão de muçulmanos espalhados pelo inundo, somente uma pequena minoria é fundamentalista e fanatizada.

O restante dessa enorme população é constituído por pessoas moderadas e pacíficas. Em segundo lugar, é necessário lembrar que os americanos sempre preconizaram a igualdade e respeito com relação à cultura de cada povo. E essa atitude foi baseada na teoria da relatividade cultural dos po­vos, formulada nos anos 30 por um americano, Melville Jean Herskovitz. Depois da Segunda Guerra Mundial, a própria ONU adotou essa postura.

Em terceiro lugar, torna-se imprescindível admitir que o Ocidente apenas Imgia seguir essa teoria.

Mas sempre respeitamos as diferentes culturas dos povos! — protestou Mathew.

O Ocidente sempre mostrou respeitá-las; essa é a verdade — replicou Natalie. — Mas sempre infiltramos nossos costumes subliminarmente, paulatinamente... E, com isso, modificamos comportamentos, al­teramos hábitos e... deturpamos culturas. Basta ver o que aconteceu com os japoneses. Hoje, o Japão é um país altamente americanizado. Até a língua foi modificada. Com os árabes está acontecendo a mesma coisa. A diferença é que os japoneses muito rapidamente viram vantagens em fa­zer parte de uma economia globalizada. Daí, não ter acontecido nenhuma manifestação de revolta, e as poucas que surgiram foram controladas e ex­tintas pelos próprios japoneses. Porém, com os muçulmanos, a história é outra. Existe muita resistência. Muitos grupos são favoráveis à manuten­ção da cultura tradicional. E, por mais que tenhamos a desculpa de que o progresso da humanidade é automático e irreversível, estamos influindo no dia-a-dia dos povos. De todos os povos. Estamos influindo com nossa propaganda, com a ciência, com a tecnologia... Enfim, com informações que são distribuídas gratuita e pesadamente. Por isso, os fundamentalistas islâmicos proíbem tudo, até mesmo livros, televisão e música.

Com um gesto, pediu para Mathew não a interromper, e pros­seguiu:

Veja bem que não estou culpando os americanos ou o Ociden­te como um todo. Apenas estou procurando encontrar uma justificativa para um sentimento de revolta dos muçulmanos contra nós. E apenas para um sentimento de revolta, e não para atos de violência. Nada, ab­solutamente nada, justifica o que foi feito ontem e nada também justifica a violência.

Mathew meneou afirmativamente a cabeça e, depois de alguns se­gundos, insistiu:

O fato é que os fanáticos fundamentalistas podem, realmente, ser os culpados desses ataques. Como já disse, há fortes indícios de que isso seja verdade, segundo ouvimos nos noticiários. Também é preciso pensar que a opinião pública está clamando por vingança. Esse clamor poderá empurrar o governo a uma retaliação precipitada. A diferença entre um ataque levado a cabo por uma nação inimiga e um ataque terro­rista é que, neste último, o agressor não aparece, não se define. E o povo pressionando, pedindo a retaliação... Pode não haver tempo nem mesmo vontade política para uma investigação meticulosa que leve aos verdadei­ros culpados. Ao mesmo tempo, é certo que o governo não deve perder tempo, respondendo a esse ataque o mais rápido possível, sob pena de se enfraquecer e perder credibilidade entre a população e mesmo entre os governos dos países ditos aliados. Estamos vivendo um momento de guer­ra, Natalie... E como tudo, hoje em dia, esta guerra será globalizada. E o pior de tudo, será uma guerra em que o inimigo também está globalizado, ou seja, está espalhado pelo mundo todo. Não se trata de um inimigo que esteja localizado e que poderia ser destruído num ataque maciço contra determinado país. Ele está em todos os lugares, aqui mesmo em Nova York, ou em Tóquio. Ele não se mostra, e apenas percebemos sua existên­cia depois que um ato terrorista acontece.

Voltaram a ficar em silêncio por alguns instantes e, depois de acen­der um cigarro, Natalie perguntou:

E como você vê a economia mundial, nessa conjuntura toda?

Acho um pouco cedo para fazer suposições, querida — res­pondeu Mathew, pensativo. — Mas haverá recessão. Aqui nos Estados Unidos, teremos certamente problemas com o crescimento econômico. Haverá um esforço de guerra e muitas verbas que seriam destinadas a investimentos internos terão de ser desviadas para cobrir gastos bélicos. Com certeza, a indústria do turismo e do lazer sofrerá bastante. Porém, apesar de não ser um momento para se pensar com excesso de otimismo, é bom lembrar que o capitalismo sempre se adaptou às piores situações e, cedo ou tarde, acabou por sobrepujar todo e qualquer outro regime. Desta vez, não será diferente. Pode acreditar que, em primeiro lugar, a econo­mia passará, mais ainda, a ser considerada uma questão estratégica, e as alianças comerciais com os países aliados terão praticamente o mesmo peso de alianças militares. E o comércio é responsável por vinte e cinco por cento da economia mundial. Internamente, aqui nos Estados Unidos, creio que poderemos contar com uma poderosa arma contra a recessão: o patriotismo do americano. Todos estarão se esforçando para manter nossa economia de pé. Haverá um aumento do consumo, e o consumidor comum é responsável por sessenta por cento do que é produzido nos Esta­dos Unidos, ou seja, por sessenta por cento do PIB norte-americano. Em resumo, haverá, evidentemente, conseqüências desastrosas num curto prazo, como uma queda em todas as bolsas de valores do mundo. Afinal, é a economia americana que traciona a economia mundial, com uma parti­cipação de quase dois terços do capital que circula no planeta. Mas, com o passar do tempo e dependendo da posição que o governo tome com relação à retaliação, haverá crescimento no médio prazo, exatamente como aconteceu imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Coréia, do Vietnã e do Golfo Pérsico.

Uma guerra contra os árabes vai causar um significativo aumen­to do custo do petróleo... — murmurou Natalie.

A princípio, sem dúvida nenhuma. Mas nem todos os países ára­bes estarão envolvidos. Além disso, um possível boicote dos muçulmanos com relação à venda de petróleo para o Ocidente logo será compensado por um substancial aumento na produção de petróleo, principalmente na América do Sul. E, é claro, será um formidável estímulo para a pesquisa e a utilização de formas alternativas de produção de energia.

Com um sorriso, Mathew concluiu:

Portanto, temos de pensar com certo otimismo quanto ao com­portamento da economia, tanto nos Estados Unidos quanto no restante do planeta, mesmo porque a história nos mostra que sempre houve uma recuperação muito mais rápida do que se esperava. Porém...

Deixando transparecer uma expressão preocupada, o jornalista finalizou:

Porém, muita coisa vai depender da maneira como o governo americano vai agir, a partir de agora, no que concerne à retaliação...

Acho que você tem razão — concordou Natalie. — A opinião pública mundial não ficará satisfeita apenas com um "castigo". O governo americano terá de promover a erradicação do terrorismo no planeta. E o apoio aliado, tanto do ponto de vista militar quanto comercial e finan­ceiro, será diretamente proporcional à viabilidade de um plano de ação proposto pelos Estados Unidos.

Exatamente, minha querida — concordou Mathew, dando um beijo em Natalie. — E você está vendo como nós dois poderemos traba­lhar juntos e sem os problemas que você, há pouco, disse poderem exis­tir... Nós pensamos da mesma maneira.

Natalie abraçou-se a Mathew e, beijando-o, completou: — E nos amamos também da mesma maneira, não é mesmo?

Já perto de meio-dia e depois de ter tentado sem êxito durante toda a manhã fazer contato com Fefê e com os outros dois filhos em seus ce­lulares, Fernando entregou os pontos. Soubera, pela televisão, que cerca de noventa por cento do serviço telefônico de Nova York já tinha sido restabelecido e que os nova-iorquinos estavam se esforçando ao máximo para retomar pelo menos parte da normalidade em suas rotinas. Portanto, se os filhos tivessem escapado à tragédia, teriam tido como avisar. Se não lizeram contato era porque o pior tinha, certamente, acontecido.

Terei de ir até lá — falou para Clara, sua secretária, quando lhe telefonou pedindo para que providenciasse uma passagem para Nova York. — Quero estar lá, acompanhando o trabalho de resgate. É o míni­mo que devo fazer.

Você vai sozinho, Fernando? — perguntou Clara, surpresa. — E Marialva?

Marialva não estava em condições de ir a lugar nenhum. No estado em que se encontrava, completamente atordoada com o choque sofrido, não conseguia sequer concatenar as idéias e, nas últimas horas, apenas fi­cava repetindo os nomes dos filhos e lembrando de passagens da infância de seus rebentos. O médico da família, chamado às pressas num instante em que ela chegara a perder a consciência, dissera que se tratava de um quadro decorrente do estado de choque e que ela melhoraria dentro de alguns dias. Prescreveu mais calmantes e recomendou a Fernando que a mantivesse vigiada, pois numa crise maior de descontrole, poderia até se suicidar.

Com isso, estava absolutamente fora de questão Marialva acompa­nhar o marido nessa triste viagem a Nova York.

Ela vai ficar, Clara. Ainda está em estado de choque, não suportaria viajar. Vou sozinho. Por favor, providencie minha passagem para o mais breve possível.

Creio que o mínimo será dentro de dois ou três dias, Fernando — avisou a secretária. — Os aeroportos de Nova York ainda estão fechados e acho que ir para outra cidade e ter de se deslocar para lá de carro não é aconselhável. Tudo ainda está muito confuso...

Fernando refletiu por um instante e concordou:

Está bem... Veja o que pode fazer. Mas lembre-se de que preciso estar lá o quanto antes. Quero estar presente quando encontrarem...

Reprimiu um soluço e, controlando-se ao extremo, finalizou com a voz embargada:

...quando encontrarem os corpos...

Enquanto Clara procurava se desincumbir da tarefa que o patrão acabara de lhe dar, no escritório de sua boate principal, João Antônio estava sentado em sua poltrona, com Josiane, sua secretária, a lhe fazer massagem nos ombros e pescoço. À sua frente, Flávio fumava e andava de um lado para o outro.

Você está me deixando tonto, Flávio — reclamou João Antô­nio. — Eu é que deveria estar nervoso com a situação, e você é quem fica andando em círculos como se fosse um peru de Natal!

Estou pensando, chefe — justificou-se o outro. — E eu penso melhor andando, você já está cansado de saber disso!

Parou, encarou João Antônio e declarou:

Fiquei impressionado com a sua teoria... Essa história de Fefê ter fugido com o dinheiro aproveitando a catástrofe em Nova York... Pode muito bem ser verdade! E ele teria todos os motivos! Estaria com um mi­lhão de dólares na mão, estaria livre de outras obrigações que pudéssemos lhe impor, estaria livre de tudo!

Pois é... — admitiu João Antônio. — Só precisamos de uma in­dicação de que ele esteja vivo. E venho me perguntando a cada segundo das últimas vinte e quatro horas como fazer para obter essa indicação!

Com um sorriso vitorioso, Flávio lembrou:

Pois eu sei como fazer, chefe! Pode ser um pouco complicado, mas não é nem um pouco impossível.

Pois diga logo, homem! Diga e vamos tratar de trabalhar em cima de sua idéia! Há um milhão de dólares em jogo!

Flávio pigarreou e, sentando-se a cavaleiro numa cadeira, sugeriu:

Fefê, pelo que você diz dele, não é uma pessoa de viver sozinho. Precisa de companhia, precisa estar sempre rodeado de gente. Além do mais, você sempre disse que ele respeita muito o pai. Ora... Acho que Fefê vai querer manter contato com os amigos e com a família. Mesmo que ele esteja escondido, desaparecido. Ele vai aparecer, se estiver vivo.

João Antônio soltou uma gargalhada e, fixando o olhar de Flávio, exclamou:

Então essa é a sua grande idéia? Pois fique sabendo que isso já me ocorreu! E é uma possibilidade que eu afasto por completo. Primeiro, porque Fefê não respeita o pai. Ele tem medo do pai. E é justamente esse medo que faria com que ele desaparecesse por completo, inclusive da família e dos amigos! Com um milhão de dólares na mão, ele pode reco­meçar a vida onde bem entender!

Baixando um pouco a voz e ficando subitamente sério, completou:

Mas há uma pista. Essa tal de Samira, sua namorada. Samira Zegaib, se não me engano. Ela mora nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York. Não será impossível encontrá-la. Basta ter um pouco de paciência e usar a cabeça. E pode estar certo que, se Fefê estiver vivo, estará com ela!

Então teremos de ir para Nova York? — perguntou Flávio, excitado.

Também pensei nisso e creio que não há outro jeito. Seria mais fácil usarmos nossos contatos de lá. Eles encontrariam essa mulher facil­mente. Mas ficaríamos devendo um favor grande demais. E eu não quero isso. Você sabe que esse pessoal costuma cobrar muito caro todo e qual­quer favor... Acho que podemos dar conta do recado sozinhos e é exata­mente isso que faremos.

E quando partimos? — quis saber Flávio.

Temos de esperar mais alguns dias, até que a confusão por lá tenha diminuído um pouco. E temos de rezar para que Fefê e Samira não tenham saído de lá e fugido para outro país, com documentos falsos...

Voltando-se para a secretária, João Antônio ordenou:

Consiga um catálogo telefônico de Nova York e veja se encontra o telefone e o endereço de Samira Zegaib. E providencie tudo para que Flá­vio e eu possamos embarcar para os Estados Unidos dentro de três dias.

A noite tinha sido pesada, com incontáveis atendimentos de emer­gência, mas, apesar disso, Amina conseguira dormir algumas horas, já de madrugada.

O Saint Lucas Hospital estava perfeitamente equipado para o aten­dimento de politraumatizados. Entretanto, por ser mais distante da área do desastre, tinha sido destinado, assim como vários outros hospitais, mais ao atendimento da população como um todo e menos ao dos feridos nos atentados. Era uma medida bem pensada do Departamento de Saúde de Nova York, pois, se todos os hospitais se dedicassem única e exclu­sivamente ao socorro das vítimas do desastre, certamente o restante da cidade, ou seja, aquelas pessoas que não estavam diretamente envolvidas na tragédia, ficaria desprovido de socorro médico. E não eram poucos os casos de enfarte, derrames cerebrais, crises hipertensivas sérias, descom­pensações de diabetes, crises psicogênicas as mais diversas e, até mesmo, acidentes de automóvel, quedas por desfalecimento, queimaduras e mui­tos outros causados pelo descontrole emocional que a notícia do atentado tinha provocado na população como um todo. Houve até o caso de um eletricista que, ao ver de longe a explosão na torre sul do World Trade Center, caíra da escada fraturando um braço e uma perna.

Assim, Amina não parara de trabalhar até quase quatro horas da manhã e só se recolheu ao dormitório das plantonistas quando uma co­lega, percebendo que ela estava beirando o limite de suas forças, pratica­mente a obrigou a repousar.

Pouco depois de sete horas da manhã, porém, Amina já se en­contrava novamente no pronto-socorro, atendendo pacientes e desdobrando-se em dedicação e carinho na tentativa de aliviar o sofrimento daquelas pessoas.

Passava um pouco de oito e meia quando ela, entre um paciente e outro, dirigiu-se à sala dos médicos para tomar um café. Ao deixar a sala de atendimento de emergência, ainda usando avental azul e gorro, ouviu uma voz conhecida dizendo:

Você é a única médica que continua bonita mesmo escondida nessa roupa...

Amina voltou-se com um sorriso e retrucou para Steinberg:

Deve ser horrível um paciente voltar a si, e a primeira imagem que vê é a de uma bruxa...

Continuando a caminhar, acompanhada pelo agente, indagou:

O que está fazendo aqui? Veio me prender?

Vim ver se você está bem — respondeu Steinberg. — Fiquei preocupado, pois ainda não temos o menor sinal de Ibrahim.

Obrigada por sua preocupação, mas acho que Ibrahim não virá me procurar. Muito menos o pessoal que matou Mohamed. Hafez jamais comentou qualquer coisa a meu respeito com eles. E Ibrahim deve estar muito preocupado em se manter bem escondido. Não vai querer se arris­car por minha causa.

Mas sempre existe a possibilidade, Amina. E não acho que va­lha a pena desprezá-la.

Um pouco sem jeito, Steinberg acrescentou:

E, fora isso, se alguém vier procurá-la, quero saber quem é.

A médica encarou o agente e, com um sorriso, perguntou:

Quer dizer que você está me usando como isca?

Steinberg corou e meneou afirmativamente a cabeça, murmurando:

É... Você pode ser um elo muito importante com esse pessoal de Al-Kayed. Talvez o elo mais provável de ser procurado... e utilizado.

Entraram na sala dos médicos, que estava vazia, e Amina, servindo um café para Steinberg, confirmou:

Pois saiba que não me incomodo com isso. Faço questão de ajudar onde for possível e da maneira que estiver ao meu alcance. Talvez assim eu consiga me redimir do erro que cometi. Perante mim mesma.

Steinberg sorriu e retrucou:

Não esperava outra reação de sua parte, Amina. E, pessoalmen­te, vou aproveitar ao máximo essa sua disposição.

Tomou um gole de café, teceu um comentário sobre a má qualidade que os médicos são obrigados a aceitar e prosseguiu:

O FBI, como era de se esperar, está envidando todos os es­forços possíveis e imagináveis no intuito de encontrar os culpados por esses atentados dentro de algumas horas. No máximo dentro de dois dias. Assim, todas as possibilidades e todas as pistas estão sendo inves­tigadas. Você é uma delas. Passei a noite pesquisando sobre você e suas atividades. Sua ficha é absolutamente limpa; você nunca sequer arrotou em público.

Amina riu, e Steinberg continuou:

Castells queria mantê-la sob custódia, o que, no fundo, significa estar numa prisão. Eu é que apostei em sua sinceridade e apoiei a idéia de deixá-la livre, mas sob observação. Esta noite, você esteve vigiada por dois de nossos rapazes. E, a partir de agora, será vigiada por mim.

Pelo menos você não é nem um pouco inconveniente e desa­gradável, Steinberg — admitiu a médica. — E, se me deixar trabalhar em paz, não terei do que reclamar.

Estarei presente, mas discretamente — garantiu o agente. — Minha missão será vigiá-la e observar as pessoas que entrarem em contato com você.

Amina terminou seu café, acendeu um cigarro e Steinberg alertou:

Estamos em guerra, Amina. E em ritmo de guerra muitas coisas têm de ser aceitas e compreendidas. Esta guerra é contra um inimigo invi­sível, que pode estar em qualquer lugar, até mesmo na sala de emergência onde você está trabalhando. Esse inimigo, o terrorista, não usa unifor­me, não traz um crachá de identificação. Veste-se como nós, comporta-se como nós. Você sabe disso.

Amina soprou uma baforada para o teto e murmurou:

Sim... Infelizmente eu sei. E você não faz idéia de como me arrependo por ter tentado trazer Hafez para a realidade americana! Eu deveria saber que ele jamais mudaria. Chegou até a vacilar, como pude perceber muitas vezes. Mas, no final, aquilo que lhe tinha sido inculcado no cérebro jamais se apagaria.

Levantou-se, apagou o cigarro ainda pela metade e avaliou:

Mas não é hora de falar sobre essas coisas, que, na verdade, quero esquecer. Quero esquecer que houve esse hiato em minha vida, quero esquecer Hafez e tudo o que aconteceu entre nós. Sei que a melhor terapia é o meu trabalho. E, se você estiver me vigiando, fique sabendo que eu vou me sentir bem melhor...

Samira tomou banho, vestiu um jeans que a deixava tão sedutora como se estivesse nua, apanhou algum dinheiro e saiu avisando a Fefê que iria apenas comprar o mínimo necessário e que voltaria dentro de alguns minutos.

Antes de sair, contudo, enquanto o rapaz estava no chuveiro, ela apanhou o telefone, constatou que já estava funcionando e tentou fazer uma ligação. Entretanto, do outro lado da linha, ninguém atendeu, e a moça não quis deixar recado na secretária eletrônica.

Com um suspiro de desalento, ela repôs o telefone no gancho e saiu.

"Tentarei mais tarde", pensou, fechando a porta e caminhando na direção do elevador. "Hoje, na realidade, ainda é cedo demais. Tudo aconteceu ontem... Todos devem estar de cabelos em pé e pisando em ovos..."

Quando o elevador chegou ao térreo, uma senhora o estava espe­rando. Era uma das vizinhas de andar de Samira. Com um sorriso, a moça cumprimentou-a, mas a mulher não respondeu. Ao contrário, Samira teve a impressão de que a vizinha mostrara até certa repulsa por ela. A mulher afastou-se mais do que o necessário para deixar livre a porta do elevador e não ser esbarrada.

Teve essa impressão confirmada quando a porta do elevador se fe­chou e escutou a mulher resmungar:

— Esses árabes... Deveriam todos ir embora do país!

No mesmo instante, veio à sua memória a lembrança dos olhares que recebera na véspera, enquanto voltava do hotel para casa. Na verdade, ela estava acostumada a ser olhada com desejo — e até gostava disso — pelos homens e a ouvir galanteios de uns e de outros, alguns mais finos e educados, outros muito mais diretos e grosseiros. Entretanto, diante de toda a tensão dos momentos imediatamente após os atentados e do fato da maioria das pessoas estar com o pensamento voltado para a imensa tragédia que acabara de acontecer na cidade, ela percebera que os olhares que lhe eram dirigidos não tinham nenhuma cupidez. Tinham, isso, sim, a mesma expressão de ameaça e asco que sentira na fisionomia de sua vizinha.

Samira refletiu por alguns instantes e, em vez de se dirigir para a porta de entrada do edifício, voltou a chamar o elevador e retornou para o apartamento.

Não valia a pena se arriscar. Havia anos que conhecia bem o espíri­to do norte-americano, especialmente do nova-iorquino. Sabia que toda aquela abertura e hospitalidade que havia em tempos normais, apenas mal disfarçava um sentimento fortemente xenofóbico que vinha à tona por qualquer motivo. E os atentados terroristas não eram "qualquer moti­vo"; muito pelo contrário.

"Eles estarão agressivos com relação a qualquer árabe", imaginou, enquanto subia de elevador. "E a última coisa de que estamos precisando, neste momento, é de arrumar qualquer espécie de confusão!"

Entrou no apartamento exatamente no instante em que, na televi­são, um jornalista noticiava:

O prefeito Rudolph Giuliani, diante dos acontecimentos, afir­mou que as comunidades árabes receberão uma atenção especial da polí­cia para protegê-las de ameaças. Em Colorado Springs, Colorado, Farouk Abushaban, porta-voz da Sociedade Islâmica, disse que um grupo de homens ameaçou incendiar uma mesquita. Segundo ele, várias mensagens amea­çadoras foram deixadas na secretária eletrônica da mesquita. Em Chicago, Mustafá Yassin, da Rede de Ação Árabe-Americana, foi ameaçado por um homem que gritava insultos contra os árabes. O escritório do Instituto Ára­be-Americano, em Washington, recebeu dezenas de telefonemas de pessoas afirmando que o grupo "deveria pagar por isso" e ordenando os árabes a voltar para casa. O porta-voz do Instituto manifestou-se, afirmando que, indiferentemente de quem for considerado culpado por esses assassinatos terroristas, nenhuma comunidade étnica ou religiosa pode ser ameaçada ou culpada coletivamente.

Voltei sem ter ido ao supermercado, justamente por causa disso — admitiu Samira. — Sinceramente, fiquei com medo de ser agredida na rua.

Então não saia, querida — disse Fefê, preocupado. — É melhor esperar os ânimos se acalmarem um pouco. Faça o pedido por telefone. As linhas já estão funcionando.

Isso eu já sabia... — disse ela, olhando-o com preocupação, já imaginando que o rapaz tivesse feito alguma ligação.

Ele explicou:

Não sou tão idiota assim, Samira. Não liguei para ninguém. Apenas ouvi o jornalista comentar que a maior parte das linhas que es­tavam apresentando problemas já foi recuperada. Ergui o fone e vi que o seu telefone está funcionando.

Samira sorriu e mostrou, na televisão, várias pessoas que circula­vam nas ruas usando as cores da bandeira norte-americana.

Veja, Fefê! — exclamou ela. — Veja como os americanos mos­tram o seu patriotismo! Quantas pessoas estão usando as cores da bandei­ra e quantas bandeiras estão dependuradas na cidade!

É uma maneira de levantar o moral — disse o rapaz. — O país foi ferido, e o povo está manifestando seu total apoio...

Pensativa, Samira enfatizou:

O problema é quando todo esse patriotismo começa a se con­fundir com xenofobia... Daí para o fanatismo é um pulo!

Deixando o rapaz diante da televisão, ela foi para o quarto e re­gressou, alguns minutos depois, vestindo o mesmo jeans, porém com uma camiseta da Seleção Brasileira de Futebol e um boné com a bandeira dos Estados Unidos.

Fefê não pôde deixar de rir.

Você está parecendo um moleque de rua, com essa roupa! — brincou ele.

Pode ser — admitiu a moça. — Mas tenho certeza de estar ab­solutamente segura fantasiada assim. Na verdade, estou com as cores de meus dois países... Ninguém vai prestar atenção à minha cara de árabe!

Riu, beijou a ponta do nariz de Fefê e finalizou:

Claro... Desde que eu não rebole por aí como uma odalisca, não é mesmo?

Mas... por que você não pede pelo telefone? Para que ir até o supermercado?

Por dois motivos, meu amor — respondeu ela. — Primeiro, por­que eu duvido que estejam fazendo entregas. Aposto o que você quiser que tudo em Nova York está funcionando muito precariamente, prin­cipalmente com falta de pessoal. Segundo, porque eu teria de dar meu nome e endereço. O nome é árabe. Já fiz muitos pedidos pelo sistema de delivery do supermercado. Tenho quase uma rotina de compras, tanto em itens quanto em quantidades. Com você aqui, essa rotina seria quebrada e isso pode ser notado com facilidade.

Já se dirigindo para a porta, ela frisou:

Estão atribuindo esses atentados a terroristas árabes. Aqui, nos Estados Unidos, as coisas funcionam, especialmente o FBI. Se os federais resolverem investigar todos os árabes que estão no país, certamente no­tarão essa mudança em minha rotina de abastecimento. Daí, a virem até aqui e descobrirem você, será apenas questão de tempo. E muito pouco tempo; pode ter certeza!

Mas eu não sou terrorista! — protestou Fefê.

E, imediatamente em seguida, sorriu sem jeito, corrigindo:

É... Não posso ser encontrado... Estou morto... Estou esmigalhado sobre os escombros das Torres Gêmeas!

Nesse exato momento, o jornalista que fazia a cobertura completa do que estava acontecendo na cidade, declarava:

Segundo Verônica Stephens, porta-voz do Fema, o Federal Emergency Management Service, as equipes de socorro recuperaram oficialmente, até o início desta tarde, quarenta corpos e resgataram cerca de mil e seiscentos feridos. A defesa civil estima que podem ser necessários até dois meses para recuperar os cadáveres sepultados sob os escombros das torres do World Trade Center e limpar as ruas de Manhattan. O chefe da defesa civil dos EUA, Joe Allbaugh, é esperado hoje em Nova York pela primeira vez depois da catástrofe.

É absolutamente lógico que haja muito mais mortos do que feri­dos — comentou Samira. — O fato de terem encontrado apenas quaren­ta mortos e resgatado mil e seiscentos feridos pode indicar que o estado em que se encontram os corpos é...

Nem fale! — interrompeu Fefê, com um arrepio — Não quero nem imaginar como estaria o corpo de minha irmã!

Voltando a fixar o olhar na televisão, disse com um tom de voz aterrorizado:

E muito menos como estaria o meu corpo...!

Exatamente como previra, Samira não fora molestada por ninguém na rua ou no supermercado, que, para sua surpresa e preocupação, estava completamente desabastecido, com as prateleiras de víveres de primeira necessidade vazias.

Quando voltou para seu apartamento, encontrou Fefê nervoso, an­dando de um lado para o outro.

Já voltei, meu amor — disse ela, beijando-o. — Como vê, não me aconteceu nada...

E, pondo as poucas compras que fizera sobre a pia da cozinha, prosseguiu:

E não fugi...

O rapaz apanhou uma lata de refrigerante e, abrindo-a, explicou:

Não se trata disso, Samira. Estou um pouco preocupado com o que você disse antes de sair.

Tomou, na própria lata, um gole do refrigerante e continuou:

Você disse que o FBI pode começar a querer investigar todos os árabes que estão nos Estados Unidos. Eu acho que eles vão investigar. Numa situação como esta, realmente, todos os árabes são tidos como sus­peitos. E você...

Samira interrompeu-o, afirmando:

Sou brasileira, Fefê. Não se esqueça disso. Descendente de ára­bes, mas brasileira. Com nome árabe, mas brasileira. Se não houver uma denúncia ou se não for dado um motivo que justifique, dificilmente o FBI viria me procurar. As buscas, que com certeza já começaram no instan­te seguinte aos atentados, devem estar se concentrando sobre árabes de nascimento e que estejam cadastrados no Departamento de Imigração.

Será a partir desses árabes que eles chegarão àqueles que estão aqui clandestinamente e que, mais provavelmente, estão ligados ao terrorismo. Em meus dados, nesse departamento, consta que eu sou brasileira, filha de brasileiros; além disso, tenho residência nos Estados Unidos. Acho, portanto, que essa sua preocupação é infundada.

Fez uma breve pausa e murmurou:

Pelo menos por enquanto...

Fefê, assustado, quis saber:

Por que está dizendo isso? O que quer dizer com esse "por en­quanto"?

Samira respirou fundo e, depois de refletir por uma breve fração de segundo, respondeu:

Você está aqui. Nunca houve nenhum homem em meu apar­tamento. Isso sim, pode despertar suspeitas. Principalmente pelo fato de você ter chegado aqui justamente no dia em que ocorreram os atentados!

E, mostrando que queria mudar de assunto, a moça perguntou:

O que mais você viu na televisão?

Fefê não respondeu. O que Samira acabara de dizer ainda estava ecoando em seus ouvidos e soava-lhe com o peso de um perigo real que ela estaria correndo por sua causa. Era preciso dar um jeito naquela situ­ação, Samira não podia continuar a se arriscar assim. Mesmo porque, se fosse investigada, ele seria facilmente descoberto e então...

Temos de sair do país — aconselhou Fefê, muito sério. — E o mais depressa possível!

Isso é uma enorme verdade, querido — admitiu Samira. — Mas, por enquanto, não há como fazer. Desde ontem, todos os vôos sobre o território americano estão proibidos, e os aeroportos, fechados. Estamos em Manhattan, e você mesmo ouviu que as pontes estão bloqueadas até mesmo para pedestres. Não há outra solução senão esperar.

Mas esperar por quanto tempo? — perguntou o rapaz, angustia­do. — Esperar até que uma dessas suas vizinhas fofoqueiras comente que você está abrigando um suspeito? E se vierem verificar? Quem vou dizer que sou?!

Sem dar tempo à moça de responder, ele prosseguiu, exaltando-se:

Não posso apresentar meus documentos verdadeiros, pois descobrirão que estou vivo. E o mesmo acontecerá se mostrar os fal­sos! Daí, então, até será pior, pois será fácil para o João Antônio me encontrar!

Olhando para Samira com desespero, resumiu:

Preciso arrumar outros documentos, querida! E isso é urgente! Cada segundo que passa é um segundo de risco! Se eu tiver outros docu­mentos, bons o bastante para que possa apresentá-los à polícia se esta me pedir, não estaremos mais correndo perigo.

Balançando a cabeça, desalentado, lembrou:

Só que não tenho a menor idéia de como conseguir isso...

Samira aproximou-se dele e, tentando acalmá-lo, falou:

Nós daremos um jeito, meu amor. Não fique assim. Pode deixar que eu sei como conseguir esses documentos de que estamos precisando. E não só para você, mas para mim também...

O rapaz olhou espantado para ela. Antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa, ela adiantou:

Quando chegar o momento, irei procurar algumas pessoas que conheço. Por enquanto, não pense nisso. Por mais que o FBI seja eficien­te e por mais que você possa levantar suspeitas aqui no prédio, teremos algum tempo para agir.

Fazendo com que Fefê sentasse à mesa da sala de jantar, pegou seu laptop, entregou-o para ele e destacou:

Agora, você faria bem se entrasse na Internet e procurasse saber notícias do Brasil. Acho que é importante nós estarmos a par das reper­cussões desses atentados lá em nossa terra...

Ligando o aparelho, Samira utilizou a própria senha para acionar a Internet, dizendo ao rapaz que, uma vez que ele estava desaparecido ou morto, não poderia nem pensar em aparecer na rede...

Mortos não usam Internet — brincou.

Fefê resmungou alguma coisa, reclamando que Samira estava fazen­do recomendações demais e desnecessárias, uma vez que ele sabia muito bem que não poderia aparecer.

— Sei como são os internautas, meu amor — disse ela. — Vocês se empolgam tanto, de repente, que esquecem as regras mínimas de seguran­ça. Nada o impede de ser como todo mundo e, distraído, resolver checar seu e-mail, por exemplo...

Ele não respondeu e, conectado, acionou uma agência noticiosa do Brasil.

Ali, havia a seguinte notícia:

 

Consulado do Brasil em NY pede ajuda sobre possíveis vítimas

Nova York — Todas as pessoas com parentes e amigos em Nova York, que possam ter sido vítimas do ataque terrorista ao World Trade Center, devem entrar em contato telefônico ou via Internet com o (Consulado Brasileiro sediado na cidade e fornecer o maior número de informações possíveis para que a representação diplomática tente localizá-los. O Consulado tem quatro números telefônicos especiais para isso. Pela home page da entidade estará disponível um formulário com mesma finalidade.

"Quem tiver dúvidas sobre o desaparecimento de pessoas que pudessem estar na área da tragédia deve informar, se possível, onde elas estariam, endereços, telefones, descrição física e até enviar para o Consulado, por exemplo, fotografias e radiografias de arcadas dentá­rias para possível identificação", pediu hoje o cônsul-geral Flávio Perri. Os interessados também devem informar meios de ser contatados para receber resposta das investigações.

"Tão cedo não será possível saber o número total de mortos nessa tragédia, nem se entre eles há brasileiros, pois calcula-se que a remoção dos escombros dos edifícios demore em torno de 30 dias", explicou o cônsul. "Além disso, é provável que muitos corpos não estejam em condições de identificação."

Segundo estimativas, há cerca de 350 mil brasileiros viven­do na região de Nova York e nos estados vizinhos de New Jersey e Connecticut, que estão sob sua jurisdição. Mas não há informações sobre quantos trabalhariam no World Trade Center ou na região do centro financeiro de Nova York, atingida pelo ataque. Funcionários do Consulado foram destacados para percorrer os hospitais à procura de brasileiros entre as vítimas que estão sendo atendidas.

O embaixador também pediu a todos os representantes de en­tidades civis formadas pela comunidade brasileira na região de Nova York para que atuem na procura de conterrâneos desaparecidos. Hoje pela manhã, havia informação de que já havia sido localizada a maio­ria dos 15 engraxates brasileiros que trabalhavam no subsolo das tor­res destruídas, mas alguns ainda estavam sendo procurados.

"Estamos de prontidão para dar assistência a quem precisar", disse Perri. Sem dar nomes, ele informou que, desde a tarde de terça-feira, pelo menos dez turistas brasileiros haviam procurado o Consu­lado em busca de auxílio, porque os hotéis onde estavam hospedados, na região próxima à zona do ataque, foram evacuados. Alguns esta­vam sem dinheiro. "Colaboramos com o suficiente para que pudessem comer e os encaminhamos aos abrigos que a prefeitura preparou para atender a essas situações", informou o diplomata.

 

Ao terminar de ler a informação, Fefê sorriu, cheio de esperanças. As palavras do cônsul Flávio Perri, dando conta de que "tão cedo não será possível saber o número total de mortos" e que "é provável que muitos corpos não estejam em condições de identificação", deixavam-no mais animado e com mais certeza de que o caminho que estava escolhendo, realmente, representava sua total alforria.

Continuou a pesquisar e encontrou uma reportagem sobre as dificul­dades e o susto de um grupo de modelos brasileiras que estavam em Nova York para um grande desfile de moda. Havia alguns relatos de modelos famo­sas que assistiram integralmente aos atentados e tiveram de cobrir a boca e o nariz para não se intoxicarem com a fumaça. Uma modelo e um maquiador, que tinham alugado um apartamento exatamente ao lado do World Trade Center, ficaram sem dar notícias por duas horas, deixando o editor de moda Giovani Frasson, que estava com a equipe de uma grife famosa, extremamen­te preocupado até que, por fim, descobriu-se que ambos estavam bem.

São outros que poderiam ter se aproveitado da ocasião... — murmurou Fefê.

E, voltando a procurar notícias, disse para si mesmo:

Mas talvez não tivessem motivo algum para desaparecer. Aliás, com certeza, esses dois jamais precisariam desaparecer...

O rapaz viu mais algumas notícias diversas e, depois de alguns minutos, desligou o computador. Voltou para perto de Samira, comentando:

No Brasil, o dólar teve uma alta espetacular... Isso significa que nossos dólares valem muito mais!

O que significa que nada significa para nós, querido — rebateu a moça. — Não vamos para o Brasil tão cedo e, quando voltarmos para lá, essa febre já terá passado.

Pode ser — concordou ele. — Mas acho que vamos ter de ir ao Brasil. Há o dinheiro que está na sua conta... Hoje, com a alta do dólar, ele já representa uma pequena fortuna!

— Por isso mesmo que é besteira ir para lá nos próximos meses. Além de ser extremamente perigoso para você, não conseguiremos recu­perar o valor, em dólares, de quando o dinheiro foi depositado. É melhor esperar. Pode apostar que o dólar vai baixar no Brasil.

Fefê olhou assustado para Samira. A cada momento, ela o surpreen­dia mais. Primeiro, mostrara ter um conhecimento que ele mesmo não linha sobre tendências de mercado via Internet. Agora, sugeria que o câmbio, no Brasil, haveria de melhorar, fato que nunca ocorreu sem sérias modificações de planos econômicos. Estava para lhe perguntar de onde tirara aquelas informações, quando ela avisou:

Vou aproveitar que você desconectou para tentar fazer um telefonema...

Tentou, realmente, por mais de dez minutos. A ligação não se com­pletava e, se antes caía na secretária eletrônica, naquele instante estava dando sinal de linha ocupada antes mesmo de Samira terminar de discar.

Não adianta — lamentou ela, desistindo. — Acho que as linhas para esse endereço estão com problemas. Vou tentar novamente amanhã...

 

Pela primeira vez, desde que começara a trabalhar no FBI, Dono­van sentia-se ansioso para voltar à sua casa. Nem mesmo enquanto esti­vera casado isso acontecera, e ele raramente chegava ao lar antes de dez e meia da noite, pondo o trabalho acima de tudo. Talvez essa tivesse sido uma das principais razões de seu casamento não ter dado certo. Não há mulher que suporte a idéia de ser menos importante, para um homem, do que seu trabalho. No entanto, apesar do clima de tragédia e da tensão que pairava no ar por causa dos atentados e da expectativa da reação do governo, bem como da formidável quantidade de trabalho que Castells lhe dera — milhares de dados para analisar e transformar em informações que pudessem ser úteis à Inteligência — e que seria algo em que Donovan mergulharia de corpo e alma e só pararia quando fisicamente não conse­guisse mais, o agente não via o momento de voltar para seu apartamento e se atirar nos braços quentes e carinhosos de Anne Marie.

Assim, foi com indescritível felicidade que ele ouviu Castells dizer, também já pronto para deixar o escritório:

Vamos, Donovan... Há muito trabalho para fazer nos próximos dias, talvez nas próximas semanas ou meses. Precisamos estar em forma para agüentar essa carga e, por isso, precisamos repousar. Ninguém é de ferro, nem mesmo os homens do FBI.

Donovan não retrucou, apanhou o paletó, a pasta e, sorridente como um adolescente que ia encontrar com a namorada, acompanhou o chefe.

Já descendo pelo elevador, Castells declarou:

Acabei de receber um relatório do Mossad. Os analistas israelen­ses dizem que o atentado às Torres Gêmeas e ao Pentágono necessitaram de, pelo menos, dois anos de planejamento e envolveram, no mínimo, uma centena de pessoas com um custo final de vários milhões de dólares. Isso leva a pensar que os terroristas dispõem, aqui nos Estados Unidos, de uma infra-estrutura respeitável. E cabe a nós desmantelá-la. Estamos com quatro mil agentes procurando por qualquer pista que possa levar a uma certeza sobre a identidade do mentor desses atentados. Foram designados três mil analistas. Assim, acho pouco provável que os terroristas, desta vez, possam escapar.

Donovan assentiu com um gesto de cabeça e murmurou: — Já houve tantos outros atentados... Por que não nos mobilizamos mais eficientemente antes? Talvez esta tragédia não tivesse acontecido...

Não dependemos única e exclusivamente de nossa vontade — tentou justificar Castells. — Há sempre problemas políticos a enfrentar, recusas de verbas, fatores diplomáticos... Coisas assim. Talvez, agora, o governo e o congresso tenham ficado suficientemente convencidos de que o país ainda é vulnerável. E que a melhor arma de defesa contra o lerrorismo é a prevenção, com a adoção de um sistema de inteligência independente de entraves legais e burocráticos.

Chegaram ao andar térreo, e Castells despediu-se do agente com um conselho malicioso:

Trate de repousar, Donovan... E você entendeu muito bem o que eu acabei de dizer! Vá repousar e não...

Donovan riu e rumou para o pátio de estacionamento, onde tinha deixado seu carro. Olhou o relógio, constatou que ainda daria tempo de passar numa joalheria e comprar o anel que ele, na véspera, tinha se pro­metido dar a Anne Marie.

Será a sacramentação de um compromisso com ela — murmurou, ligando o motor. — Mas é isso mesmo que eu quero: um compromis­so sério e não uma aventura!

 

Para alguém como Fefê, que sempre tivera uma vida bastante agitada do ponto de vista social, ficar no apartamento de Samira, consciente de que não poderia sair de jeito nenhum, era um suplício dos maiores. Não fosse a presença da moça, seus carinhos, sua fome de amor e sua dedicação, como também a eterna preocupação com o bem-estar do rapaz, ele certamente não teria suportado e teria, aniscando tudo o que planejava, saído para, simples­mente, dar uma volta, já no segundo dia depois de ter chegado ali.

Contudo, na verdade, não teria conseguido fazer grande coisa na Nova York imediatamente pós-atentado.

Embora, aos poucos, Manhattan voltasse a funcionar e a vida pa­recesse estar relativamente tranqüila acima da Canal Street, na região de Chinatown, abaixo dessa região continuava a faltar eletricidade em algu­mas áreas, e o transporte público permanecia interrompido, inclusive o metrô. O trânsito continuava fechado para qualquer ponto abaixo da 14th Street, inclusive para ônibus, e a pequena parcela do metrô que funcio­nava na região norte da ilha sofrerá algumas alterações de itinerários nas linhas. A maior parte do comércio, nessa região, também estava fecha­da. Somente algumas lavanderias, serviços de entregas e supermercados continuavam abertos, embora com sérios problemas de abastecimento, principalmente de pão e água mineral. Na região mais próxima ao Finan­cial District, o abastecimento de água, gás e energia elétrica continuava prejudicado. Havia barricadas na Canal Street e na Houston Street, que divide o Greenwich Village e o East Village do SoHo e de NoLIta. Só podia passar quem mostrasse algum comprovante de residência.

Embora o prefeito Rudolph Giuliani tivesse solicitado para os resi­dentes em Manhattan ficarem em casa, havia muitas pessoas, com malas, caminhando na direção contrária da tragédia. Eram pessoas que moravam nos arredores do World Trade Center e que puderam voltar para casa para pegar alguns pertences.

O clima de guerra imperava na Lafayette Street, uma das principais vias que saem do Financial District e da região do City Hall, a prefeitura. O intenso trânsito de veículos militares, carros-pipa e tratores contradizia a tentativa de impressão que os nova-iorquinos procuravam transmitir de que, em Nova York, a vida continuava, na medida do possível, no esquema do business as usual. A cidade continuava uma balbúrdia diretamente proporcional ao seu tamanho, inclusive com as escolas fechadas, assim como a Bolsa de Valores, os bancos, todas as instituições financeiras e os maiores estabelecimentos comerciais.

Desde o dia anterior, subseqüente à tragédia, a rua dos brasileiros, a lamosa rua 46, conhecida como Little Brazil, ficou deserta, desapare­cendo o tráfego intenso de veículos e pedestres, o barulho alegre principalmente à hora do almoço, quando milhares de turistas misturavam-se aos empregados de lojas e escritórios locais para comer arroz com feijão e tomar caipirinha. O quarteirão entre a Quinta e a Sexta Avenida, no centro de Manhattan, refletia nas lojas e restaurantes fechados a tristeza de toda a cidade de Nova York. Os comerciantes e freqüentadores do lo­cal, além do choque provocado pelo ataque aéreo ao World Trade Center, passaram a temer a possibilidade de outros atentados por causa dos seus vizinhos mais próximos, os judeus da rua 47, um dos maiores centros de comércio de diamantes do mundo.

Segundo os noticiários a que Fefê assistira logo pela manhã, havia a possibilidade de os aeroportos de La Guardia, JFK e Newark serem rea­bertos ainda naquele dia. Entretanto, eles continuariam fechados até que a Federal Aviation Authority, a FAA, autorizasse, e isso jamais acontece­ria antes das três da tarde.

Fefê, portanto, estava ilhado no apartamento, isolado do mundo, lendo como consolo apenas a companhia de Samira.

Perto da hora do almoço, a moça tentou mais uma vez fazer a ligação telefônica que desde o dia anterior não conseguia. Mais uma vez, não teve êxito.

Com a preocupação estampada em seu rosto, murmurou:

Não adianta. O jeito é ir até lá.

Ouvindo-a e já cheio de curiosidade desde que Samira começara a tentar essa ligação, Fefê indagou:

Mas... afinal, para quem você está querendo ligar?

Para uma amiga — respondeu ela, prontamente. — Estou preo­cupada com ela e vou até sua casa ver o que aconteceu.

O rapaz sentiu um frio no estômago com a perspectiva de ficar tan­to tempo absolutamente sozinho ali no apartamento, mas nada disse. Não queria mostrar insegurança a Samira e, depois de alguns segundos de si­lêncio, apenas aconselhou:

Tome cuidado. Você viu comigo o noticiário. Viu que os árabes estão sendo agredidos em vários lugares do país. Aqui em Nova York, certamente, a probabilidade é maior.

Samira garantiu que não correria nenhum perigo e que deveria es­tar de volta antes do jantar. Vestiu-se com a mesma indumentária que usara para ir ao supermercado na véspera e, ao sair, recomendou:

Não atenda o telefone, não use a Internet, não abra a porta, não mostre que existe. Se precisar de você, telefonarei. Deixarei tocar três vezes, desligarei, ligarei novamente, deixarei tocar duas vezes, des­ligarei e, então, ligarei de novo. Sobretudo, não saia de casa. Lembre-se de nossos planos.

Estalou-lhe um beijo sobre os lábios e saiu, deixando Fefê aturdido e tentando desesperadamente controlar o medo que começava a assaltá-lo.

Uma vez na rua, Samira procurou caminhar com a maior natu­ralidade possível. Sabia que a maneira como estava vestida chamava a atenção, mas contava com o fato de a cor amarela da camiseta que estava usando atrair mais os olhares do que seu rosto e suas feições tipicamente árabes.

E estava difícil locomover-se na cidade. O transporte em Nova York continuava complicado. O metrô estava com várias linhas fora de operação, uma vez que, segundo informações da prefeitura, as estações nas redondezas do World Trade Center estariam completamente soterradas, e as linhas esta­riam inundadas por causa do rompimento das canalizações de abastecimento para as Torres Gêmeas, destruídas com o desmoronamento. Os trens circula­vam completamente lotados. Como seria de se esperar, o trânsito permanecia engarrafado em incontáveis pontos importantes, como a First Avenue — por causa dos hospitais ali localizados —, a Second Avenue e a Sixth Avenue.

Até as tarefas cotidianas mais corriqueiras, como atravessar uma rua, pareciam transformadas em verdadeiras operações de guerra. Poli­ciais controlavam qualquer cruzamento mais movimentado, e só se podia atravessar a rua sob seu comando. E isso, mesmo nos locais da cidade onde os semáforos estavam funcionando normalmente.

"Até parece que estou em Beirute", pensou Samira.

Talvez acatando a recomendação do prefeito aos nova-iorquinos de que procurassem ficar em casa e que não se dirigissem a Manhattan a menos que isso fosse absolutamente necessário, talvez por medo de outros atentados — ameaças de bombas e falsas denúncias estavam chovendo tanto na polícia como na imprensa —, uma grande quantidade de pessoas deixara de ir para as ruas. Como conseqüência, o movimento era muito menor, e os táxis eram escassos.

Depois de, inutilmente ter tentado um táxi, por mais de quinze minutos, Samira decidiu ir a pé até seu destino. Era longe, mas não havia outra maneira e, além do mais, ela queria chegar sem ser notada e sem deixar pistas. E, para a polícia, especialmente para o FBI, um motorista de táxi tagarela é uma fonte maravilhosa de informação.

Caminhando sem pressa, a moça pôde observar a expressão no ros­to das pessoas com quem cruzava e percebeu logo que todas elas manifes­tavam medo e tristeza profundos. Mais uma vez, Samira teve a sensação de estar em Beirute, e não em Nova York.

Entretanto, jamais estivera em Beirute ou em qualquer outro país estrangeiro que não fosse ali, nos Estados Unidos. O que ela sabia sobre a terra distante de seus ancestrais lera em jornais ou revistas e, principal­mente, ouvira comentar. E ela abominava aquela sensação que deveria existir, de estar sempre sob a ameaça de uma bomba, de um míssil, de uma guerra, enfim.

"Isto aqui poderá tomar o mesmo caminho", ponderou, apressando um pouco o passo para se afastar de um grupo de pessoas que, subitamen­te, tinha parado de conversar quando ela passou. "Parece que tudo está diante de um rastilho de pólvora. Basta um fósforo..."

Um pouco mais à frente, outro grupo, exaltado, proferia palavras de ordem contra os árabes em geral. Com medo, Samira atravessou a rua, evitando passar perto daquelas pessoas. Pouco antes de sair de seu apartamento, vira pela televisão relatos de agressões contra os muçul­manos em diversas cidades do país, principalmente depois que tinha sido anunciado que o principal suspeito dos ataques terroristas era Osama Bin Laden.

E ela já tinha ouvido falar muito sobre esse homem.

Ouvira, de Yussef Ali Ismail, que os Estados Unidos já deveriam ter dado caça àquele assassino havia muito tempo.

Yussef! Uma boa alma, esse árabe! Ele a salvara naquela ocasião, quando Erik exigira que ela desse um jeito de arrumar documentos falsos para seus pombos-correios perseguidos pelo FBI...

Mas Erik morrera, e ele nunca mais teria qualquer autoridade sobre ela. Nem sobre seu Fefê...

Com um sorriso triste, ela lembrou que chegara a pensar — assim que Fefê lhe contara sobre a morte de Erik — que ela nunca mais haveria de precisar procurar Yussef para lhe pedir documentos falsos. Haveria de querer encontrá-lo, sem dúvida nenhuma, mas para comer com ele alguns pratos típicos, ouvi-lo contar suas histórias, já bem temperadas com a sabedoria de seus quase oitenta anos, e dançar para ele. Simplesmente dançar pelo prazer de ouvir o velho elogiá-la dizendo que jamais vira uma mulher tão bonita e que dançasse tão bem.

Ela gostava de Yussef, e gostava muito. Ele poderia ser seu avô ou mesmo pai, que morrera quando Samira ainda era criança...

Sacudiu a cabeça para afastar aquele pensamento. Não! Yussef jamais poderia ser comparado com seu pai! Afinal, Yussef era um ho­mem bom, e seu verdadeiro pai, ela jamais conhecera. Mas o homem que vivia com sua mãe e que a assassinara, este nem de longe poderia parecer com Yussef!

Foi arrancada de seus pensamentos pelos gritos de um homem que, de dentro de um automóvel, vociferava contra um casal de hindus, que ainda usava roupas típicas, provavelmente turistas perdidos numa Nova York caótica.

"Gostaria de ficar aqui", pensou ela. "Mas parece que vai ser peri­goso... Realmente, é bem melhor deixar os Estados Unidos, pelo menos por algum tempo..."

Chegou à casa de Yussef já perto de quatro horas da tarde, bastante cansada e nervosa, pois o último trecho que percorrera estava coalhado de manifestantes anti-muçulmanos, e ela pudera notar, apavorada, que os policiais que estavam por perto nada faziam para conter aqueles ânimos exaltados.

O árabe morava nos fundos de um pequeno restaurante especiali­zado em pratos do Oriente Médio, nos limites de Midtown com a região norte da ilha. Evidentemente, o restaurante estava fechado, e Samira ficou agradavelmente surpresa ao constatar que não havia manifestantes anti-muçulmanos por ali, como temera desde alguns quarteirões atrás.

Apertou o botão da campainha e, após alguns segundos, a porta se abriu, e a voz de Yussef, pelo interfone, pediu que ela entrasse e voltasse a trancá-la.

A moça obedeceu e caminhou por um corredor estreito e mal ilu­minado, recendendo a sebo de carneiro e açúcar queimado, um cheiro enjoativo e que mostrava que a higiene não era das coisas mais respeita­das naquele restaurante.

No final do corredor, uma porta estava entreaberta, e ela ouviu:

Entre, Samira... Seja bem-vinda!

Com cuidado, ela empurrou um pouco mais a porta e avistou Yus­sef, sentado sobre uma almofada, ao lado de seu aparelho de narguilé.

Não imaginava que você conseguisse chegar aqui — disse o velho.

Tentei ligar várias vezes — explicou Samira. — O telefone não está funcionando?

Está. Mas tenho recebido tantas ligações com ameaças desde os atentados, que decidi não atender mais.

Ela sentou numa almofada ao lado de Yussef e, depois de alguns momentos de silêncio, declarou:

Estou precisando de ajuda, Yussef... E, desta vez, é para mim mesma.

O velho árabe olhou ternamente para Samira e perguntou:

Você não está envolvida com esses terroristas, está?

De jeito nenhum! — respondeu a moça, enérgica. — Você sabe que eu jamais seria capaz de...

Yussef interrompeu-a com um gesto e acentuou:

Muitas pessoas estão envolvidas. Mesmo sem o saber. Você po­deria ser uma delas.

Mas não estou — garantiu Samira. — E jamais estaria. Você sabe o que penso sobre a violência.

Os fanáticos não acham que estejam agindo sob o mando da violência — contrapôs o velho. — Acham que estão seguindo os precei­tos de Alá... E este é o grande perigo. Uma guerra santa nos dias de hoje seria a mais terrível das pestes!

Fez uma pausa e, mais para si mesmo, prosseguiu:

Esse maluco... Osama Bin Laden... Ele é muito perigoso. Não por ele mesmo, é claro. Ele é apenas um homem. Mas ele conseguiu fazer um exército de seguidores. Ele soube explorar a ignorância e a po­breza das pessoas... Conseguiu impor o medo, o terror. Fala-se de fundamentalismo, mas não é verdade. E fanatismo, e é aí que está o perigo. O Talibã não está respeitando o Islã, mas sim criando uma religião baseada no terror, absolutamente retrógrada, anacrônica.

Fixando o olhar em Samira, ele alertou:

Você já estaria condenada pelo simples fato de usar calças com­pridas e estar com o rosto descoberto...

Sorriu e, acariciando o rosto de Samira, elogiou:

E você é tão bonita... Para que esconder esse rosto? Por que não mostrar esse corpo?

Deu um profundo suspiro e, depois de alguns instantes, indagou:

Mas... como posso ajudá-la?

Preciso de documentos, Yussef. Dois pacotes completos. Para mim e para...

Vacilou por um momento e, por fim, disse:

Para mim e para meu namorado. Precisamos sair urgentemente do país.

O velho árabe fitou-a por alguns instantes e, com expressão muito séria, perguntou:

Qual é a nacionalidade de seu namorado?

Ele é brasileiro.

E por que precisa de documentos falsos? Os brasileiros não cos­tumam ter problemas para deixar os Estados Unidos...

Samira hesitou. Não esperava que Yussef lhe perguntasse o motivo de estar precisando de documentos falsos para um brasileiro. E ela não queria revelar a verdade; não queria partilhar com ninguém o segredo de Fefê, nem mesmo com seu amigo Yussef.

Por que você precisa saber? — indagou ela, com certo tom de revolta na voz. — Quando precisei, naquela vez, você não me fez essas perguntas...

Eu não a conhecia, naquela época — justificou o velho. — Não tinha nenhuma ligação com você, nenhum sentimento. Mas as coisas evoluíram, Samira... Você voltou aqui depois, sem que eu pedisse. E ilu­minou estes últimos anos da minha vida. Você tem sido a pessoa que espero rever todos os dias. A filha que perdi, morta por guerrilheiros. A neta que não tive. Eu a quero bem, Samira. E não gostaria que você esti­vesse envolvida com alguma coisa ruim.

A moça corou e, depois de refletir por alguns segundos, respondeu:

Trata-se de meu futuro, Yussef. Pode ser que eu tenha, finalmen­te, encontrado a solução para todos os meus problemas.

O velho permaneceu em silêncio, olhando inquisitivamente para ela e, com um suspiro, Samira explicou:

Acho que não devo lhe dizer tudo... E não é por não ter a máxi­ma confiança em você. Porém, com as coisas como estão... De repente... Se você for investigado ou preso...

Com uma expressão decidida, completou:

Não posso deixar nenhum rastro, entende? Especialmente de meu namorado! Temos de deixar o país o mais depressa possível e...

Yussef sorriu e, voltando a acariciar o rosto da jovem com seus de dos magros e compridos, interrompeu-a:

Está bem, minha querida. Não se preocupe. Não farei mais perguntas, não direi mais nada. Só vou lhe pedir que tome cuidado e que tenha muito juízo.

Subitamente muito sério, aconselhou:

Só quero que você lembre que não há dinheiro no mundo que pague uma consciência tranqüila. Por isso, se você acha que vale a pena ajudar seu namorado, ajude-o. Mas jamais se esqueça de ajudar a si mesma!

Samira sorriu, ergueu-se um pouco para poder beijar as faces do velho e garantiu:

Fique sossegado, Yussef. Quanto a isso, há muito tempo aprendi que devo pensar em mim antes de qualquer outra coisa. Gosto desse rapaz, acho que ele merece ter essa oportunidade. Mas não vou depositar a minha vida em suas mãos. Pode estar certo de que estarei cuidando de mim, de que estarei vendo o meu futuro, antes de mais nada. Acho que já sofri demais, já passei por bocados muito difíceis de engolir. Está na hora de aproveitar um pouco, e foi por isso que vim até aqui.

Yussef sorriu e disse:

— Só mais uma pergunta, Samira. Seu namorado usa barba?

Não costuma — respondeu ela, estranhando a indagação, Mas ele tem barba espessa, bem escura e, nos últimos dias, não a fez. Mas ele poderá raspá-la sem problemas...

Ao contrário! — exclamou Yussef. — Ele deverá deixá-la crescer.

Levantando-se com dificuldade, as pernas já enfraquecidas pela idade, tirou de uma gaveta um conjunto de barba e bigode postiços e entregou-o para Samira, explicando:

Ele precisará usar isto quando tirar as fotografias de que vou precisar. É uma barba curta, e você pode apará-la um pouco mais, se quiser. Mas é suficiente para mudar bastante a fisionomia de uma pessoa.

Abrindo a porta que dava para os fundos da casa, convidou:

— Venha até minha cozinha, Samira. Você é de casa, pode muito bem me ajudar a preparar um chá. Enquanto isso, falaremos sobre o que você precisa.

 

Donovan despertou com o aroma de bacon e ovos. Ainda deitado, sorriu satisfeito. Pela primeira vez desde que deixara a casa de seus pais, no Wyoming, para tentar viver a própria vida vendo outras paisagens e convivendo com outras pessoas, ele estava acordando com aquele cheiro, um cheiro que lhe trazia à memória momentos felizes e despreocupados.

Espreguiçou-se, levantou-se e foi tomar uma ducha na esperança de se refazer um pouco da noite que ele e Anne Marie tinham passado. Lembrou-se do momento em que lhe entregara o anel, dizendo que aquele seria o primeiro presente dos muitos que ele pretendia lhe dar pelo resto da vida. Anne Marie sorrira e em seguida chorara de felicidade, alegando que já tinha perdido completamente a esperança de voltar a ser feliz...

E, agora pela manhã, ela se levantara antes dele para lhe preparar o café-da-manhã.

Ao sair do banho, Donovan ficou surpreso ao vê-la vestida para sair.

Vai sair? — perguntou, sem conseguir esconder certa ansiedade.

- O que vai fazer?

Com um sorriso, Anne Marie respondeu:

Tenho um trabalho, querido. Não sei se você se lembra, mas sou secretária da American Demolition. Preciso voltar para lá, dar continui­dade ao que estava fazendo. O senhor Bollen morreu, mas a empresa deve continuar, com os herdeiros.

Donovan anuiu com um sinal de cabeça, e Anne Marie, servindo o café, continuou:

Também preciso pegar meu carro, que ficou no estacionamen­to da empresa. E, depois, passar em meu apartamento para apanhar al­gumas roupas...

Para apanhar tudo o que é seu — interrompeu Donovan. — Você não mora mais lá. Você mora aqui. E não vai fazer nada disso dessa maneira.

Anne Marie franziu as sobrancelhas, intrigada e perguntou:

Como assim? O que quer dizer com isso?

Simplesmente que você já é a minha mulher, e esta é a sua casa. E, quanto à maneira de fazer a sua mudança e mesmo de recuperar seu automóvel, você terá de fazer isso devidamente acompanhada. Não podemos jurar sobre a Bíblia que Munoz ou Ramón não lhe tenham dei­xado um presente explosivo... Por isso, iremos juntos à empresa, você ficará com o meu carro, e eu apanharei o seu depois de vistoriá-lo. De lá, seguirei para o seu apartamento e farei uma vistoria cuidadosa. Aí, eu telefonarei para você avisando que está tudo em ordem e que você pode passar por lá com toda a segurança.

Deu um sorriso e acrescentou:

A menos que você não queira que eu entre em sua casa as­sim... Pode haver algum segredo, alguma coisa que você não queira me mostrar...

Anne Marie deu uma risada e assegurou:

Não, querido... Não há nada que eu precise esconder de você. Claro, tenho algumas coisas de que ficaria envergonhada se você visse, tais como algumas calcinhas furadas de tão usadas, mas de que eu gosto, os chinelos velhos e feios, mas confortáveis... Coisas assim. Porém, como já estamos dividindo nossas vidas, você saberá entender minhas manias...

Ficando subitamente séria, ela alertou:

Mas fico preocupada, Steve... E se houver, realmente, alguma armadilha? Você estará se arriscando...

É o meu trabalho, querida. Não fique preocupada. Minha fun­ção não é desmontar e desativar bombas, mas sim apenas desconfiar de que elas existam em determinado local. Daí, eu tenho de chamar o pes­soal especializado. Por isso, não estarei correndo risco algum. Ao menor indício de montagem, eu me retiro e chamo o esquadrão antibomba.

Saíram juntos e rumaram para a American Demolition, onde Anne Marie ficou; Donovan foi para o apartamento da mulher com o carro dela, que não tinha sido tocado por ninguém desde que o deixara lá. No apartamento de Anne Marie também não havia nada de anormal, e Donovan respirou aliviado ao avisá-la que poderia passar por lá e pegar o que quisesse sem nenhum medo. Terminou a ligação avisando:

Devo chegar em casa por volta de oito horas da noite, querida. Não faça nada na cozinha, pois quero preparar o jantar com você...

Isso significava a realização de mais um sonho secreto de Donovan: poder cozinhar ao lado da mulher amada.

Chegou ao escritório do FBI e, mal tinha entrado em sua sala, Pris­cilla apareceu para lhe dizer:

Temos novidades!

Sentando-se numa das cadeiras diante da escrivaninha de Dono­van, ela explicou:

Já identificamos os suspeitos dos seqüestras dos aviões usados tanto contra as Torres Gêmeas quanto contra o Pentágono e já podemos afirmar que os terroristas agiram em grupos de três a seis para assumir o controle das aeronaves. Todos são árabes. Dois deles tiveram aulas duran­te cinco meses numa escola de aviação na Flórida, em Venice.

Tomou fôlego e continuou:

Recebemos um relatório do serviço secreto alemão, e eles estão investigando uma possível conexão dos terroristas na cidade de Hambur­go. E o nosso secretário de Estado, Colin Powell, que até ontem à tarde ainda estava negando o envolvimento de Bin Laden, à noite afirmou aos jornalistas que os indícios de sua participação direta nos atentados estão se acumulando. Contudo, Bin Laden declarou ao jornal paquistanês Kha-brain que ele não tem nada a ver com isso e que a ação terrorista é obra de um grupo americano.

Donovan sorriu e comentou:

Ele, agora, está com medo e tentando fugir às suspeitas...

Ou está simplesmente querendo ganhar tempo para fazer novos atentados — ponderou Priscilla. — As informações que já temos levam a Bin Laden. Por exemplo, na lista de passageiros de um dos aviões seqües­trados está o nome de um colaborador de Bin Laden. Além disso, rece­bemos de Paris uma informação de que o serviço secreto francês não tem dúvidas quanto à participação de Bin Laden, ao mesmo tempo em que consideram muito improvável a pista alternativa de grupos norte-americanos radicais da extrema direita. Os serviços secretos da Grã-Bretanha e de Israel concordam com os franceses.

Pensativo, Donovan comentou:

Isso vai ser uma guerra espalhada pelo mundo todo... Uma guer­ra que não vai seguir nenhuma regra...

Ergueu os olhos para Priscilla, que concordou:

Exatamente. Vai acabar acontecendo o que poderia ter acon­tecido durante a Guerra Fria. Só que, desta vez, haverá derramamento de sangue a olhos vistos e represálias de ambos os lados. Nós atacaremos abertamente, e eles continuarão a praticar atos de terrorismo...

Os dois ficaram em silêncio durante alguns segundos e, por fim, Priscilla lembrou:

Estamos avançando na investigação, Donovan. E essa pilha de documentos sobre sua mesa é o seu trabalho para hoje. Você terá de analisar todas essas informações, e Castells pediu que dedicasse especial atenção àquelas oriundas de Boston e da Flórida.

Donovan suspirou. A julgar pelo tamanho da montanha de papéis que ele tinha diante dos olhos, não teria nem mesmo tempo de almoçar...

A quantidade de trabalho diminuíra sensivelmente no Saint Lucas Hospital durante a noite de quarta-feira, bem como nos hospitais des­tinados unicamente ao atendimento dos feridos no atentado às Torres Gêmeas. A principal razão para essa diminuição era o dramático fato de não haver sobreviventes em número bastante para ocupar uma tão gran­de estrutura de atendimento tal como fora montada. Os feridos que che­gavam aos hospitais, em sua maioria, eram os bombeiros, paramédicos e voluntários que se acidentavam na busca desesperada por sobreviventes e corpos entre os escombros do que fora o World Trade Center.

No entanto, mesmo assim, Amina não conseguiu descansar durante a noite por causa do desabamento de um monte de entulho que feriu mais de dez voluntários, levados para o Saint Lucas. Steinberg esteve o tempo todo ao seu lado, chegando mesmo a ajudá-la com um dos feridos, que, desesperado com a dor de uma perna fraturada em vários lugares, estava excessivamente agitado e necessitando de uma mão forte para contê-lo.

Na manhã de quinta-feira, a direção do hospital achou que podia dispensar os médicos e o pessoal de enfermagem que vinham trabalhando sem parar desde a manhã de terça-feira. E Amina estava na primeira relação de dispensados, ou seja, a partir de dez horas da manhã, assim que passasse o plantão para o médico do turno seguinte, deveria ir para casa descansar.

Estou mesmo precisando repousar — admitiu Amina para Steinberg. — Aconteceu muita coisa ao mesmo tempo, tanto na cidade, quanto no mundo, quanto em minha vida...

Também preciso de repouso — reconheceu o agente. — Desde aquele seu telefonema avisando dos explosivos na estação do Brooklin, não consegui dormir mais do que algumas horas.

Quando o vejo novamente? — indagou Amina, enquanto Steinberg pegava as malas da médica que o motorista de táxi tinha deixa­do na recepção do hospital na terça-feira.

Muito sério, o agente respondeu:

Quando acordar e abrir os olhos novamente, Amina. Estarei ao seu lado o tempo todo. Pelo menos enquanto não agarrarmos Ibrahim.

Amina deu um sorriso amargo e declarou:

Isso quer dizer que estou sob a custódia do FBI... Sou uma pri­sioneira, não é mesmo?

De forma alguma! — protestou Steinberg. — Estou e estarei ao seu lado por minha vontade! Continuo preocupado com a possibilidade de Ibrahim tentar fazer alguma coisa se ainda estiver em Nova York ou nos Estados Unidos.

E se eu não quiser ter você como... guardião?

Nesse caso, a tarefa que me impus vai se tornar mais difícil e muito mais desagradável, pois terei de manter a vigilância a distância e não poderei contar com o prazer de estar perto de você...

Amina riu alto e, depois de alguns instantes, já entrando no auto­móvel de Steinberg, murmurou:

Em outra circunstância, acho que você apreciaria muito mais a minha companhia... Hoje sou uma mulher amarga, cheia de remorsos... Preciso repensar a minha vida.

Se eu puder ajudar em alguma coisa — sugeriu o agente — e, se a conforta um pouco, saiba que acreditei em você desde o primeiro instante. Acreditei em sua boa vontade, em sua honestidade de princí­pios e em sua ingenuidade. E, depois, vendo-a trabalhar aqui no hospital, percebi que não estava errado. Você talvez tenha errado por um tempo. Mas esse erro já foi redimido. Agora, é andar para diante e procurar tirar o melhor proveito dessa experiência que teve.

Tirando o carro do parque de estacionamento do hospital, Stein­berg convidou:

Você não calcula a vontade que estou de comer uma boa dúzia de esfihas...

Rindo, Amina convidou:

Pois, então, vamos passar num supermercado, e eu farei, em minha casa, as melhores esfihas que já comeu...!

O dia já chegava ao fim quando Natalie, depois de ter trabalhado várias horas no laptop, levantou-se, esticou as belas pernas e disse:

De tudo quanto pude analisar das notícias que chegaram até nós, acho que o mais importante é a mudança de comportamento do ci­dadão norte-americano, que vai fatalmente ocorrer daqui para a frente.

Não há dúvida quanto a isso — concordou Mathew. — Estamos entrando numa guerra, afinal de contas!

Não se trata apenas da guerra, Matt — ponderou Natalie. — Houve uma destruição muito séria de alguns valores estabelecidos. Os atentados contra as Torres Gêmeas e o Pentágono, respectivamente sím­bolos da hegemonia econômica e militar dos Estados Unidos, mostraram que o país não é invulnerável. Ora, o conceito de invulnerabilidade esta­va arraigado no norte-americano, especialmente nos jovens, uma geração que cresceu num período de intensa prosperidade, que tomou ciência da Guerra da Coréia e do Vietnã apenas nas aulas de História, que mal sabe dizer o que foi a Guerra Fria e que ainda não estava se interessando, por serem muito jovens, pela Guerra do Golfo. Para eles, os ataques ao World Trade Center foram uma descoberta terrível da sua vulnerabilidade e do poder do ódio no mundo. Descobriram, de repente, que este país não é uma potência invencível que impõe respeito e até medo a todo o restante das nações. Há quem não tenha medo de enfrentá-lo e foi isso que os terroristas fizeram. Até este momento, os americanos consideravam a liber­dade algo absolutamente natural. A partir de agora, será preciso debater formas de defendê-la. Não apenas aceitar as decisões governamentais, mas participar ativamente delas, opinando e até mesmo vetando aquelas que venham a se confrontar abertamente com o desejo ou convicção da maioria.

Isso é verdade — concordou Mathew. — Deverá haver uma mudança no que concerne ao patriotismo cego do americano. O ufanis­mo deverá dar lugar a um sentimento de soberania mais racional e a uma consciência das verdadeiras forças e fragilidades do país.

Procurou uma folha numa montanha de papéis de rascunho que se acumulavam sobre a mesa e, ao encontrá-la, mostrou-a a Natalie, informando:

Acabei me desviando um pouco no meu setor de pesquisa... Mas acho que cheguei a uma conclusão válida.

Natalie devolveu-lhe a folha de papel, alegando que estava cansa­da de ler, e pediu-lhe que resumisse o que tinha feito. Mathew acendeu um cigarro e declarou:

Basicamente, o que imagino é que não se pode descartar a possibilidade de Saddam Hussein estar diretamente ligado a estes atentados. Ele tem motivos, experiência e recursos não apenas para ajudar os terroristas envolvidos nestes ataques suicidas, mas também para orquestrá-los a distância. Além disso, o próprio James Woolsey, que foi di­retor da CIA de 1993 a 1995, afirma que há evidências, embora apenas circunstanciais, que sugerem que Saddam colaborou com Bin Laden no passado. Uma associação de Saddam com Bin Laden traria vantagens para os dois: Bin Laden obteria a publicidade que deseja, e Saddam, a sua vingança contra os Estados Unidos. Também há evidências de li­gações entre o serviço secreto iraquiano e Ramzi Yousef, acusado de ter organizado o primeiro atentado a bomba contra o World Trade Center em 1993. Também é sabido que, desde 1993, Saddam vem travando uma campanha secreta de terror contra a América. Porém, ao mesmo tempo, é preciso pensar que o ramo do fundamentalismo islâmico de Bin Laden é ideologicamente conflitante com a ditadura ao estilo stalinista de Saddam, e isso faz com que sejamos obrigados a repensar na viabilidade de uma aliança entre esses dois... E que nos leva a crer que o terrorismo não é constituído por um exército com uma só bandeira, uma só ideologia e sob o mando de um só general. Há muitas bandeiras, muitas ideologias e infinitos generais. Cada um com seu motivo pessoal. E o alvo é um só: a democracia, a liberdade.

Apagando o cigarro num cinzeiro que já estava transbordando, Mathew finalizou:

— Para agravar, Saddam foi o único líder mundial que comemorou abertamente os ataques e disse que a América merecia o que aconteceu. Ele declarou que a América está colhendo os espinhos plantados por seus governantes.

O estado de saúde de Marialva piorava a cada hora. Apenas semi-consciente, mantendo-se confusa, ela apenas pedia água, muita água, e, muitas vezes, como se estivesse no meio do deserto do Saara. O médi­co, chamado às pressas, fez o diagnóstico de descompensação diabética e internou-a.

O caso é muito grave — avisou ele. — No estado depressivo em que ela se encontra, teremos sorte se conseguirmos compensá-la a tempo.

Fernando, por sua vez, estava desesperado. Era muita coisa ao mes­mo tempo, muita tragédia que despencava sobre seus ombros sem lhe dar sequer tempo para respirar.

Não estou agüentando mais, Clara — queixou-se ele para a secretária, na sala de espera da UTI onde se encontrava Marialva. — Todo o meu mundo está caindo, quebrando, se desfazendo...

Acho que você deveria tomar um calmante e tentar repousar — sugeriu Clara. — Há quanto tempo está sem dormir?

Não consigo conciliar o sono. Durmo aos pouquinhos, cochilo apenas. E isso está me acabando...

Vou pedir ao médico que lhe dê um sedativo, Fernando...

Não! — exclamou ele, enérgico. — Não quero nada disso! Preciso estar plenamente consciente quando receber notícias de meus filhos... E de Marialva.

Clara suspirou. Desde sempre soubera da teimosia de Fernando e que, quando este enfiava alguma coisa na cabeça, não havia o que o fi­zesse mudar de opinião. Contudo, ela estava vendo o patrão — e amigo definhando, exausto... Não podia deixar que ele permanecesse daquele jeito ou piorasse.

Pois acho que você deveria tentar descansar um pouco, Fernan­do. De qualquer forma, com Marialva assim, você não irá para os Estados Unidos. Pelo menos, não agora. Por que não vai descansar um pouco?

Fernando ia responder, ia dizer que tinha de ir para Nova York, que nada o impediria, quando a porta da UTI se abriu e o médico apareceu.

Já por sua fisionomia, Fernando e Clara perceberam que as notícias não seriam boas.

Ela está em coma profundo — disse o médico. — Com poucas chances de sair.

Fernando desatou a chorar, e Clara, procurando manter a calma, perguntou:

Mas o que foi que aconteceu, doutor? Como ela foi ficar desse jeito?

Ela é diabética; isso nós todos sabíamos. Com a notícia do atentado e toda a atribulação que isso causou, ela não tomou a insulina e teve o quadro agravado pela imensa descarga emocional. A glicemia subiu muito e...

Com um suspiro triste, completou:

Agora, tudo o que podíamos fazer já fizemos. Temos de aguardar. Mas, repito, as possibilidades são diminutas.

Marialva morreu às quatro e meia da tarde. Seu coração sofreu uma parada irreversível e, depois de mais de meia hora de luta, os médicos desistiram.

Fernando passou muito mal, teve dores no peito e, se não estivesse num hospital, sua situação também poderia ter se agravado. Mas, tei­moso, assim que se sentiu um pouco melhor, recusou a internação que o médico propunha e, alegando que tinha de cuidar do velório e do enterro da esposa, saiu acompanhado de Clara.

Você poderia muito bem ter ficado no hospital — insistiu a se­cretária. — Eu posso cuidar de toda a burocracia para você...

No entanto, Fernando argumentou que era o mínimo que poderia fazer por Marialva, e o máximo que permitiu foi que Clara ficasse ao seu lado. Nem mesmo deixou que ela dirigisse o carro.

Preciso fazer alguma coisa, Clara. Ficar sem fazer nada será mui­to pior para mim — disse ele.

Não há nenhuma Samira Zegaib neste catálogo — disse Flávio, com impaciência. — Já procuramos de todos os jeitos possíveis e imagi­náveis e não encontramos nada!

Mas eu sei que ela tem telefone! — exclamou João Antônio. — Eu mesmo vi o Fefê ligar para ela!

Pode ser um telefone celular — arriscou Flávio. — E não há catálogo de telefones celulares.

Mas será que ninguém aqui no Brasil sabe como localizar essa moça? — arriscou Josiane, a secretária de João Antônio. — Será que ela não tinha nenhuma amiga...?

Como posso saber? — exasperou-se João Antônio. — Não a conheci; Fefê nunca falava dela...

Talvez a família dele saiba alguma coisa — ponderou Flávio. — Se eles estavam namorando, e ele iria se encontrar com ela em Nova York, seria mais ou menos natural que Fefê deixasse com os pais alguma indicação de como encontrá-lo...

João Antônio refletiu por alguns instantes e murmurou:

Não estou querendo mexer com a família dele por enquanto... É um trunfo que estou reservando para mais tarde...

Mas parece não haver outro jeito — insistiu Flávio. — Se qui­sermos saber como encontrá-la e, talvez, encontrar Fefê, temos de falar com a família do rapaz!

Vamos esperar mais um pouco — decidiu João Antônio. — Te­mos outra pista que podemos tentar. Sabemos qual o hotel onde Fefê estava hospedado. Acho provável que essa tal de Samira tenha ao menos telefonado para ele. Com um pouco de sorte, ela telefonou, não o encon­trou e deixou algum recado, ou mesmo deixou uma forma de Fefê entrar em contato com ela.

Se você realmente tivesse posto alguém vigiando os passos de Fefê desde que ele deixou o Brasil, talvez tivéssemos mais possibilidades... Mas você só quis assustá-lo! Não quis gastar com uma vigilância real... — murmurou Flávio, em tom de repreensão.

E, não dando oportunidade para João Antônio retrucar, completou:

É o que eu digo sempre... A economia é a base da porcaria!

Já era noite quando Samira deixou a casa de Yussef e tomou o ca­minho de volta para seu apartamento.

Vinha a pé pelas ruas, com um sorriso a lhe iluminar o rosto, urna esperança a lhe animar a vida e a certeza de que tudo daria cer­to. Com Yussef por trás, na verdade, nada poderia sair errado. Nin­guém, mas absolutamente ninguém, em Nova York, saberia melhor falsificar documentos. E, o que era ainda mais importante, ninguém tinha as ligações de Yussef para "esquentar" tão perfeitamente esses papéis falsos.

Sim, pois para o que ela pretendia não bastavam papéis. Era preci­so que esses documentos, embora falsificados, fossem reconhecidos como "verdadeiros", ou seja, precisariam constar nos cadastros oficiais, para ja­mais virem a ser alvo de qualquer suspeita.

E ela sabia que Yussef era capaz de fazer isso. Seus contatos nas embaixadas de vários países permitiam que ele tivesse acesso a infor­mações que ninguém mais conseguia ter. Além disso, permitiam-lhe aproximar-se das pessoas corruptas absolutamente necessárias nas ope­rações desse tipo.

Por outro lado, Samira sentia-se satisfeita consigo mesma por ter conseguido não contar ao velho árabe os verdadeiros motivos que a leva­vam a lhe pedir esse favor. Assim, o segredo continuaria apenas entre ela e Fefê; ninguém mais saberia de nada, e isso representava mais segurança para o plano.

"Por mais que Yussef seja confiável, nunca se sabe o que pode acon­tecer", ponderou ela, apressando o passo ao voltar para sua casa. "Ele pode ser preso, torturado... Pode ser obrigado a contar coisas, a falar sobre suas atividades e a revelar o que não deve. Não custa nada tomar mais essa precaução."

Além de manter o segredo, ela tinha tomado todos os cuidados para não revelar a identidade do namorado. O árabe avisara que precisa­ria de várias fotografias de Fefê e de algumas informações sobre ele. Preferivelmente, de um passaporte que ele tivesse, de documentos que usasse, para facilitar as falsificações. E ela alegara que isso seria absolutamente impossível, pois ele tinha perdido todos os documentos e, justamente por isso, precisava de outros. E mentira deslavadamente, afirmando que ele precisaria passar algum tempo escondido, uma vez que era casado no Bra­sil, e que iria ficar com ela. Mais tarde, quando ele tivesse conseguido re­solver uma porção de pequenos detalhes que o prendiam à vida anterior, ele se divorciaria e tudo voltaria ao normal.

Samira percebera muito bem que Yussef não engolira a história, mas também não a contestara nem fizera mais perguntas. Apenas sorrira e pedira que ela providenciasse as fotografias. Depois disso, seria preciso ter paciência até a segunda-feira seguinte, para apanhar os documentos. Para ele e para ela.

— Fefê ficará contente — imaginou. — E nós poderemos deixar este país, pelo menos enquanto as coisas estiverem ainda quentes... Até será bastante agradável tirar umas férias por alguns meses, viajar, espairecer, fazer planos... Depois, voltaremos e começaremos a trabalhar.

Cansada, ela viu um táxi vazio — uma verdadeira avis rara na oca­sião — e fez sinal para que parasse.

O taxista estacionou ao seu lado, e ela embarcou, estranhando um pouco que o automóvel estivesse ostentando várias bandeiras dos Estados Unidos, na antena do rádio, sobre o capô e sobre o porta-malas.

Dando ao motorista um endereço apenas próximo à sua casa, Sa­mira notou que, como ela, o homem tinha feições de árabe.

Olhando pelo retrovisor, ele deu um sorriso nervoso e declarou:

Não estamos mais seguros aqui, patrícia...

Samira pensou, por um momento, dizer-lhe que ela não era árabe — ele que prestasse atenção às roupas que estava usando. Entretanto, não o fez, e o motorista prosseguiu:

Nós, árabes e muçulmanos, estamos trabalhando com muito medo. Já houve, de ontem para hoje, casos de colegas que foram agredidos e tiveram seus carros destruídos. Os americanos estão nos confundindo com terroristas, sem fazer nenhuma distinção. Todos nós somos adeptos de Bin Laden, para eles.

Samira resmungou um assentimento, e o motorista continuou:

Fomos aconselhados pelo sindicato, a pôr bandeiras norte-ame­ricanas nos carros. Mas parece que isso não está adiantando muita coisa. Fui apedrejado hoje à tarde, quando estava perto do Empire State. Com bandeiras e tudo.

Balançou a cabeça, desanimado, e completou:

Quando liberarem as fronteiras, irei para o México... Pelo me­nos por algum tempo. Depois, se houver possibilidade, voltarei. Caso contrário, irei para o Brasil. Lá não há essa mentalidade, não há tanta discriminação!

Samira franziu as sobrancelhas e perguntou, interessada:

As fronteiras do país estão fechadas?

O motorista, olhando-a novamente pelo retrovisor, respondeu:

Logo após os atentados, os americanos fecharam a fronteira com o México, moça. Parece que eles estão com medo de outros ataques vindos por lá. Ou que mais terroristas entrem no país pelo México. Nin­guém entra e ninguém sai sem passar por uma investigação rigorosíssi­ma. Vi, na televisão, a fila de caminhões em El Paso, pois estão quase desmontando cada carro que quer entrar nos Estados Unidos. E, do lado de cá, cada pessoa que quer ir para o México é investigada a fundo, pois os federais acham que os terroristas podem estar querendo deixar o país por esse meio.

Samira fez uma careta de desagrado. Essa notícia atrapalhava um bo­cado seus planos, uma vez que ela tinha pensado em sair dos Estados Uni­dos pelo México, de carro, caso os aeroportos continuassem interditados.

Já perto de seu apartamento, o motorista alertou:

Só sei que essa situação não pode durar muito tempo... A econo­mia está parada, o povo está exaltado. Isso não é bom. Se o governo não tomar rapidamente uma medida de retaliação, os americanos vão começar a querer fazer justiça com as próprias mãos. E, como não podem ir até o Oriente Médio para pegar Bin Laden, vão descontar toda a raiva em cima de nós, árabes e muçulmanos, que, no momento, já somos muito mais ame­ricanos do que qualquer outra coisa. Mas os americanos estão buscando alguém em quem jogar a culpa dos atentados e nem sequer querem admitir que nós somos cidadãos americanos exatamente como eles. Não podemos ser incriminados pelos atos de terroristas radicais e fanáticos!

Quando Samira entrou em seu apartamento, encontrou Fefê em ponto de ebulição. O rapaz estava extremamente nervoso, andando de um lado para o outro, quase subindo pelas paredes.

Mas onde você esteve esse tempo todo?! — perguntou ele, com a voz alterada. — Você quase me matou! Já estava para sair à sua procura, a despeito de tudo o que isso pudesse significar!

Procurando acalmá-lo, ela respondeu:

Imagino que você tenha ficado preocupado, querido. Mas é que tive de fazer tudo a pé. Caminhar daqui até o final de Midtown... Só pe­guei um táxi na volta e ainda assim fiz o motorista me deixar bem longe.

Deu-lhe um beijo e comemorou:

Fico feliz sabendo que você pensou tanto em mim... É bom saber que a gente representa alguma coisa para alguém!

Fefê retribuiu o beijo em silêncio, sentindo-se um pouco sem-graça. Na verdade, de toda a preocupação que sentira, a maior parte não tinha sido em função propriamente de Samira, mas sim dele mesmo. O que sucederia se algo acontecesse à moça e, de repente, ele se visse sozi­nho? Teria coragem de dar continuidade ao seu plano? Como faria para arrumar documentos novos? Não lhe passou pela cabeça procurar saber como Samira resolveria esse problema. O que importava é que ele fosse resolvido e — disso ele tinha certeza — sem ela, jamais ele haveria de consegui-lo.

Deixando-se cair sobre o sofá, Samira adiantou:

Precisamos tirar fotografias suas. Fotografias para documentos e passaporte. E isso precisa ser o mais depressa possível.

Você conseguiu? — perguntou Fefê, com a excitação estampada em seu rosto. — Conseguiu como fazer novos documentos?

Sim — respondeu a moça. — Na segunda-feira tudo estará pron­to, desde que eu consiga entregar as fotografias ainda amanhã de manhã. O que quer dizer que temos de providenciar isso ainda hoje.

Fefê olhou para o relógio e constatou que já passava de nove e meia da noite.

Mas onde poderemos fazer isso, a essa hora?

Há muitas cabinas automáticas de fotografias pela cidade. Até mesmo em supermercados que ficam abertos a noite inteira e em lojas de conveniências. Deixe-me descansar apenas um pouquinho e podere­mos dar uma volta a pé, procurando por um desses lugares. A esta hora, acho que não haverá muito perigo de, por azar, encontrar alguém que o reconheça.

Com expressão preocupada, o rapaz comentou:

Vi, pela televisão, que os policiais andam parando as pessoas e revistando-as. Parece que todos são suspeitos... E, se alguém pedir meus documentos...

É um risco que teremos de correr — salientou Samira, muito séria. — Não há como fazer de outra maneira. Para fabricar novos docu­mentos, precisaremos dessas fotografias. Você sabe que são fotografias em formato especial e impossíveis de tirar dentro de casa.

O rapaz suspirou e, enquanto Samira preparava um café para re­compor um pouco as forças, ele confidenciou, a voz sumida:

Há algo que... esqueci... de lhe dizer...

Samira olhou para ele e corrigiu:

Não é bem assim, querido. Aposto que você simplesmente não quis me dizer...

Fefê ignorou o comentário e continuou:

João Antônio disse que haveria alguém seguindo meus passos desde o aeroporto de Guarulhos até que eu entregasse o dinheiro na mão do fornecedor...

Samira sorriu e indagou:

E você acha que, depois de tudo o que aconteceu, esse homem está ainda "em sua cola"?

Nunca se sabe — respondeu Fefê. — Tudo é possível neste mun­do. Até mesmo eu ter morrido e, ao mesmo tempo, continuar vivo...

Despejando a água fervente sobre o pó no coador, Samira assegurou:

Pois acho que não precisa se preocupar mais quanto a isso, querido. Primeiro porque, mesmo que você estivesse sendo seguido quando saiu do hotel, seu perseguidor, ou vigia, como queira, teria per­dido sua pista na confusão que se seguiu aos dois atentados. Segundo, porque você está morto, na concepção de todo mundo. Inclusive de João Antônio...

Fefê não concordava muito com a opinião de Samira, mas preferiu não esticar mais o assunto. Imaginava que, se estivesse realmente sendo seguido, seu perseguidor estaria sabendo que ele não chegara a entrar no WTC e que, portanto, não estaria morto.

Como se estivesse lendo os pensamentos do rapaz, Samira completou:

E veja bem, querido... Se você estivesse sendo seguido e tivesse sido visto fora do WTC, pode acreditar que seu perseguidor teria dado um jeito de se apoderar dessa maleta...

Fefê refletiu por alguns instantes e acabou concordando com a moça. Querendo mudar de assunto, comentou:

O Aeroporto Internacional de Newark, em Nova Jersey, foi rea­berto depois de ficar fechado por mais de 33 horas. Mas é só para pousos.

As decolagens ainda estão proibidas. Portanto, ainda estamos prisionei­ros, mesmo que tenhamos documentos perfeitos...

Isso não vai durar muito tempo — ressaltou Samira. — Nova York é o centro financeiro do mundo. Não pode permanecer isolada. E, de qualquer maneira, há outros meios de deixar o país. Está certo que os Estados Unidos sofreram um atentado terrível e que isso obrigou certa mudança no relacionamento dos americanos com os estrangeiros. Mas a nação continua intacta, bem como sua Constituição e os direitos das pessoas. Nós poderemos sair daqui, sem problemas. Basta que tenhamos os documentos adequados e que a vida tenha assumido uma conotação um pouco mais normal.

Fefê fez uma expressão de dúvida e ponderou:

O país está em regime de guerra. Os americanos passaram a desconfiar de todo e qualquer estrangeiro, e num nível tal que obrigou até mesmo o nosso governo a se posicionar de uma maneira que fere frontalmente todos os acordos diplomáticos tecidos até hoje entre Bra­sil e Estados Unidos no que diz respeito a clandestinos. Você sabe, por exemplo, que existem várias dezenas de milhares de brasileiros de Go­vernador Valadares, Minas Gerais, morando e trabalhando nos Estados Unidos. Muitas dessas pessoas não estão aqui regularmente. Com esse atentado, muitos brasileiros tiveram de entrar em contato com as auto­ridades simplesmente para dizerem que estão vivos, que não estão entre as vítimas. Assim, surgiu o medo de uma ação drástica do Departamento de Imigração dos Estados Unidos. Com isso, muitos valadarenses seriam diretamente prejudicados. Então, pasme! A prefeitura de Governador Valadares conseguiu a garantia, do Consulado-Geral do Brasil em Nova York, de que os nomes de habitantes da cidade emigrados ilegalmente para os Estados Unidos, e que eventualmente estejam desaparecidos ou feridos após o atentado ao World Trade Center, não serão fornecidos a órgãos de controle de imigração norte-americanos! Você acredita numa coisa dessas?! Amigos e parentes dos emigrados, apesar de telefonarem para a prefeitura, preocupados, em busca de informações que temem revelar os nomes completos de quem procuram, não precisam mais ter nenhuma preocupação! O governo brasileiro estará garantindo... a ile­galidade! A lista dos emigrados de Valadares não será repassada às auto­ridades norte-americanas!

Samira sorriu e lembrou:

Mas nada disso se aplica ao nosso caso. Ao seu caso, mais espe­cificamente. Você terá de estar desaparecido. E possui a melhor justifica­tiva do mundo. Ninguém jamais poderá duvidar que você não esteja en­tre os escombros das Torres Gêmeas ou, simplesmente, pulverizado com a explosão do impacto, uma vez que esta se deu justamente no andar em que você deveria estar.

O rapaz teve um estremecimento. Cada vez que ele lembrava que ele teria de estar naquele local, tinha uma terrível sensação de que era, realmente, outra pessoa...

Não gosto de tocar nesse assunto — retrucou ele. — Acho que vou demorar muito tempo para me acostumar com a idéia de que fui poupado...

Samira sorriu, pegou as xícaras de café e, pondo-as na pia da cozi­nha, justificou:

É um bom motivo para você começar uma vida nova... E, agora, não vamos esperar mais e vamos tratar dessas fotografias. Amanhã, antes do almoço, tenho de levá-las. E não sei se não vou ter de fazer todo o caminho, mais uma vez, a pé...

Passava um pouco de dez horas da noite quando os dois saíram em busca de uma máquina automática de fotografias. Pessimista como sempre, Fefê manifestara muitas dúvidas sobre a segurança de se deixar fotografar. Segundo ele, a máquina poderia estar calibrada para fazer có­pias ocultas, que, posteriormente, seriam utilizadas pelo FBI com o obje­tivo de saber quem andara tirando fotografias para passaportes justamente nesse período crítico.

Tudo é possível em Nova York — admitiu Samira. — Mas há certas coisas que ultrapassam qualquer limite. Isso que você está dizendo é, sem dúvida, uma delas. Há uma questão de possibilidade física, Fefê. Não vejo como essas máquinas poderiam ser preparadas para esse tipo de trabalho, em tão pouco tempo, principalmente num instante em que todas as atenções estão voltadas para o resgate de sobreviventes que ainda possam existir sob os escombros das Torres Gêmeas.

Samira estava com a razão. Após a tragédia, o esforço dos nova- iorquinos estava integralmente concentrado em tentar encontrar quem ainda estivesse com vida no que restara do World Trade Center. Além disso, as pessoas que não estavam direta ou indiretamente envolvidas nos trabalhos de resgate lutavam desesperadamente para retomar a vida normal. Por isso, muitos bares e pequenos restaurantes, embora exi­bissem em suas fachadas bandeiras dos Estrados Unidos a meio pau, estavam abertos.

Entretanto, o sentimento de dor não parecia — e nem poderia — ser fácil de suplantar. Em muitas esquinas, moradores da cidade reuniam-se para orar pelos mortos nos atentados, e em várias ruas Samira e Fefê presenciaram manifestações pela paz.

As pessoas temiam que o ocorrido pudesse desencadear uma guer­ra mundial, e isso parecia ser mais possível desde que o presidente Bush, num pronunciamento, anunciara claramente que a humanidade estava entrando, com aqueles atentados, na primeira guerra do século XXI. Uma guerra que não seria nem ao menos parecida com as outras, que te­ria como características o que o próprio presidente afirmara: uma guerra longa, terrível e suja.

O que ele quis dizer com a palavra "suja"? Estaria ele dizendo que os americanos usariam as mesmas armas que os terroristas? Ou armas piores? Estaria o presidente antevendo a guerra bacteriológica, a guerra química? Ou afirmou isso só por força de expressão?

Como frisara Samira, tudo tinha de ser considerado possível. E, apesar de toda a desgraça, no meio daquela tragédia, algumas pessoas es­tavam auferindo lucros. Pelo menos, lucros políticos. E entre essas pesso­as estavam o presidente Bush, Collin Powell, o secretário de Estado, e o prefeito Rudolph Giuliani, que, quase como um super-herói das histórias em quadrinhos, estava sempre presente, incansável, parecendo ter o dom da ubiqüidade pelo fato de se encontrar em todos os lugares ao mesmo tempo. Era inegável seu mérito, sua força política, sua presteza e versa­tilidade. Entretanto, também era inegável que essa sua onipresença só era possível graças aos próprios nova-iorquinos e ao seu inacreditável e incomensurável espírito de patriotismo.

Até mesmo Fefê, normalmente alienado quanto às coisas que acon­teciam e que não se relacionassem diretamente com seu universo particu­lar, era capaz de observar. Os nova-iorquinos dedicavam-se de corpo e alma a atender os vitimados pelo desastre, não apenas aqueles que estavam no World Trade Center, ou em suas proximidades, no momento da tragédia e que, com certeza, já não necessitavam de ajuda. A maior preocupação de todos os moradores da cidade estava voltada para aqueles que... sobraram. Para os familiares das vítimas, para seus amigos. Aqueles de quem, certa­mente, dependeria a reestruturação da vida. Estes, sim, precisavam enxer­gar que o mundo não tinha acabado e que a vida, como num espetáculo circense após a queda fatal da trapezista, teria de continuar. E essas pessoas precisavam de amparo em todos os sentidos. Precisavam de amparo material e psicológico. Precisavam sentir que, apesar de estarem numa cidade gran­de, acachapante como qualquer megalópole, não estavam sozinhas. Não há dinheiro para comprar víveres? Medicamentos? Roupas? Combustível? Bastou uma breve e rápida menção de alguém para que cinqüenta milhões de dólares fossem recolhidos de pessoas que, sem mesmo ninguém pedir, deram dinheiro para amenizar o sofrimento de seus concidadãos. Ninguém precisou dizer que os hospitais teriam necessidade de sangue: longas filas de doadores se formaram, e a quantidade de voluntários foi tão grande que a própria defesa civil teve de anunciar: "Agradecemos muito a manifestação de solidariedade, mas ainda não sabemos como ou onde vamos usá-los; nós os chamaremos assim que for necessário".

O povo norte-americano se manifestava e revelava uma das principais razões de seu país ser a potência que é: demonstrava a união, o patriotismo, o espírito de luta e a vontade férrea de não se deixar abater. Passados os primei­ros momentos de desespero, ele se reagrupava com o objetivo de, a qualquer custo, continuar de pé e manter sua posição de hegemonia mundial.

Esse tipo de raciocínio estava muito longe da capacidade de en­tendimento de Fefê, que, voltando para o apartamento em companhia de Samira, depois de ter tirado as fotografias necessárias, viu um grupo de jovens recolhendo doações — fossem quais fossem, dinheiro, roupas, mantimentos, remédios — pela rua, e um cidadão tirar o agasalho que estava usando para depositá-lo na cesta de doações.

Eles vão fazer um bom dinheiro vendendo essas doações — co­mentou ele, com um sorriso sarcástico.

Você está enganado, Fefê — retrucou Samira, com um tom de repreensão. — Esses jovens estão fazendo isso por amor ao próximo, por amor ao seu país. É por isso que, aqui, podemos confiar nas coisas e pode­mos ter mais certeza do futuro. Porque as pessoas não pensam como você. Porque o objetivo é o conjunto, e não apenas o indivíduo.

Ora! — protestou o rapaz. — Não venha querer me dizer que aqui não há corrupção, que o americano é acima de tudo honesto e que só pensa em seu vizinho! Estou cansado de saber que eles só pensam em ganhar! E não importa como, não importa se eles têm de pisar nos pobres, se têm de aniquilar os povos que estão por baixo!

Não foi isso que eu disse. Nenhum povo, nenhuma nação pode ser perfeita. O que eu quis dizer é que aqui há mais patriotismo. Há mais respeito pelo país e, portanto, mais respeito pelo ser humano.

Antes que o rapaz pudesse contestar, Samira finalizou:

O que se vê nos filmes de Hollywood é apenas o reflexo de uma sociedade. Não pode jamais ser considerado o reflexo da mentalidade do povo. Talvez seja por isso mesmo que os filmes norte-americanos mostrem sempre riqueza e atos de heroísmo.

Fefê não teve o que contestar. Em primeiro lugar, porque jamais sabe­ria argumentar com Samira e, segundo, porque tinha a desagradável certeza de não ter preparo para tanto. Sentia-se humilhado e diminuído, consciente de que, apesar de ter a mesma idade dele e de mal ter conseguido completar o Ensino Médio, aquela moça sabia muito mais, estava muito mais preparada para a vida. Esse sentimento, misto de inveja e respeito, deixava-o preocu­pado. Estaria ele, um dia, intelectualmente à altura de Samira? E, mais preo­cupante ainda: Samira seria, mesmo, somente uma aspirante a modelo? Não seria, ela mesma, a pessoa que deveria vigiá-lo nos Estados Unidos? Não seria impossível que João Antônio a tivesse cooptado...

Samira calou. Ficou um pouco preocupada, com medo de ter se deixado levar pela empolgação e falado demais, mostrado muito o lado que, desde sempre, soubera ser melhor que ficasse escondido.

Enquanto tomava banho, ela se recordou do taxista árabe dizendo-lhe que iria deixar o país, pelo menos por algum tempo, até que as coisas se normalizassem um pouco e os muçulmanos deixassem de ser conside­rados culpados pelos norte-americanos — todos eles, sem exceção — por aqueles atentados. Era lamentável ter de ir embora, abandonar uma vida, por causa de diferenças étnicas ou religiosas...

"Talvez haja um bocado de precipitação", ponderou ela, ensaboando-se. "Assim que o governo focar um pouco mais os verdadeiros suspei­tos, essa agressividade vai terminar."

Por ela, não sairia de Nova York. Mesmo que tivesse de ficar tran­cada em casa por várias semanas, não sairia. Confiava nos americanos, acreditava na justiça. Ela não era nem sequer muçulmana! Nem árabe! Era brasileira! Como poderia vir a ser perseguida?

No entanto, lembrara-se da cena com a vizinha, sentira os olhares agressivos na rua, apesar da roupa que estava usando, e vira os grupos de pessoas em manifestações anti-muçulmanas.

Acima de tudo, porém, havia Fefê. Ele teria de sair o quanto antes dos Estados Unidos, principalmente de Nova York, pois, apesar de ser uma megalópole, estava cheia de brasileiros, dentre os quais, por azar, poderia existir alguém que o conhecesse.

— Ele estará mais seguro num outro país — calculou Samira. — E terá de ficar afastado do convívio da maioria das pessoas durante um bom tempo.

Enquanto isso, na sala, Fefê também estava preocupado. Ele ficara bastante assustado com tudo o que dissera Samira, e a idéia de que ela, realmente, fosse algo mais que uma simples candidata a modelo não lhe saía da cabeça. Como ela sabia, por exemplo, onde buscar documentos falsificados? Como ela conseguira aquele contato? Em sua mente, onde essas coisas estavam intimamente ligadas aos filmes de espionagem a que já assistira, ele via Samira — a sua Samira — como uma espiã, traba­lhando na retaguarda de um grupo de terroristas árabes, e ele, com seu milhão de dólares, sendo seqüestrado por esse grupo, obrigado a entregar sua maleta e, depois... Não! Era melhor imaginá-la como uma agente de João Antônio; dessa forma, pelo menos, poderia contar com o amor que ela manifestava por ele, Fefê...

Sacudiu a cabeça com energia, jogando para trás a imaginária mecha de cabelos e tentando, com esse gesto, varrer para longe os maus pensamentos.

Estava se deixando levar pela fantasia; nada disso era possível... Sami­ra era uma modelo, era sua namorada, seria sua esposa. Esposa e cúmplice!

Ou seria cúmplice do grupo que estaria de olho nele?

Pelo fato de ter conhecido a moça por intermédio de Erik e por causa de algumas coisas que ela mesma já lhe dissera, sabia que Samira estivera intimamente ligada ao narcotráfico. Talvez jamais tivesse sido pombo-correio ou mesmo tivesse efetivamente, na acepção do termo, tra­ficado drogas. Mas estivera envolvida, disso não havia a menor dúvida. E ele também já tinha se informado de que o terrorismo, especialmente o terrorismo no Oriente Médio, era sustentado em grande parte pelo di­nheiro do narcotráfico.

Não era impossível que tivesse existido alguma ligação. Ou, quem sabe, que ainda existisse!

"Estou ficando louco!", pensou. "Estou imaginando coisas! Se isso fosse verdade, Samira não estaria chorando por minha causa... E teria, certamente, arrumado uma maneira de me tomar esse dinheiro e, depois, deixar que me matassem, uma vez que, oficialmente, estou morto."

Nesse instante, um pensamento fez com que seu estômago se con­traísse: quem poderia garantir que Samira tinha ido contatar um falsifi­cador de documentos e não simplesmente avisar sua célula terrorista de que haveria um milhão de dólares disponíveis para facilitar a fuga dos terroristas que estariam sendo perseguidos?

Já estava começando a se sentir tomado pelo pânico quando a porta do banheiro se abriu e Samira, nua como Deus a pôs no mundo, surgiu.

Sentando-se no colo de Fefê, ela disse:

— Acho que não temos muito mais o que fazer até amanhã de manhã, não é mesmo, meu amor?

E, beijando-o, ela fez com que se apagassem, de uma só vez, todos os maus pensamentos que povoavam a mente do rapaz, substituindo-os por outros, também considerados maus por muitas pessoas, com certeza, infinitamente mais agradáveis...

 

Mathew e Natalie passaram praticamente a noite toda trabalhando e, por isso, acordaram perto de onze horas da manhã naquela sexta-feira.

Durante o café-da-manhã, Mathew comentou:

Esses ataques terroristas contra o World Trade Center e contra o Pentágono inauguram um novo tipo de conflito mundial. Não se trata mais de um embate entre nações com a utilização de aparatos bélicos mais ou menos convencionais. Trata-se de um confronto de um Estado contra grupos esparsos de terroristas, com as mais diversas nacionalida­des, fazendo uso dos meios mais surpreendentes como forma de ataque. E o pior é que os terroristas não são profissionais, são fanáticos que não se incomodam com a morte.

É verdade — admitiu Natalie. — E esse fanatismo não deve ser atribuído apenas a questões religiosas ou étnicas. Há um ódio fa­nático. Ódio contra o Ocidente, talvez... Ou contra as instituições ocidentais.

Natalie ergueu os olhos para fixá-los em Mathew e continuou:

Numa época em que se busca a globalização e maior integração entre os povos, esses atentados modificaram tudo. Eles criaram um am­biente geral de desconfiança que poderá levar a um sensível aumento da xenofobia. Com isso, tudo ficará prejudicado, a começar pela economia mundial, pois os investidores, principalmente os americanos, não terão nenhum tipo de incentivo em pôr dinheiro em outros países, uma vez que não podem garantir que haverá retorno. Muito pelo contrário, eles esta­rão com medo de receber como troco exatamente o que aconteceu com o World Trade Center. No lado político e militar, se Bush realmente passar a agir como vem advertindo nestas últimas quarenta e oito horas, que vai intervir em todos os lugares onde houver terroristas, ele estará declarando guerra a todos os países do mundo!

É um risco que o planeta está correndo: saltar do fundamentalismo religioso e étnico para o fundamentalismo econômico e cultural norte-americano... — ironizou Mathew, em tom jocoso.

Estou falando sério! — protestou Natalie. — Você pode ver nas notícias e informações que obtivemos pela Internet! Em todos os países, inclusive nos ditos aliados aos Estados Unidos, há quem insis­ta que os americanos são, basicamente, os maiores culpados pelo que aconteceu.

Impedindo com um gesto que Mathew a interrompesse, Natalie prosseguiu:

Não estou defendendo essa idéia; muito pelo contrário. Estou apenas dizendo que há quem pense assim e não são poucas pessoas! Afir­mam, por exemplo, que o isolacionismo e o endurecimento de George W. Bush com relação a tratados internacionais que ele se recusou a apoiar, como o Tratado de Kyoto, levaram à exacerbação de um espírito anti-americano em muitos países. Você falou de um fundamentalismo norte-americano. Pois saiba que, para muitos analistas de política internacio­nal, você está absolutamente certo!

Tomando fôlego, ela acentuou:

Ontem, no Salão Oval, Bush deixou muito clara a política agres­siva que pontuará os relacionamentos internacionais dos Estados Unidos a partir de agora. Ele declarou que não vai apenas perseguir, encontrar e eliminar os terroristas que atacaram as Torres Gêmeas e o Pentágono, mas também que vai acabar com os Estados que patrocinam o terrorismo. Na minha opinião, isso tem o peso de uma declaração de guerra à maioria dos países do Oriente Médio. Em resumo, Bush disse que a partir de agora o governo americano vai intervir militarmente onde quer que haja sombra de terroristas... E Colin Powell, que, apesar da Guerra do Golfo, sempre man­teve uma postura mais branda, menos agressiva, garantiu que a ação militar norte-americana não vai se limitar a um grupo de terroristas, mas vai se am­pliar e estender a um combate generalizado contra o terrorismo, em âmbito global. Com tudo isso, não é à toa que muitos cientistas políticos estejam interpretando a atitude americana como um verdadeiro fundamentalismo!

Mathew balançou afirmativamente a cabeça e, em tom preocupa­do, destacou:

Nós, americanos, desde sempre nos baseamos e muito na Cons­tituição. Para tudo. Inclusive e, principalmente, o presidente. Assim, para uma declaração de guerra, segundo a Constituição é preciso o pre­sidente pedir autorização ao Congresso. Também diz que é preciso haver um Estado confrontante para que haja guerra. Porém, o terrorista é apátrida. Numa guerra contra o terrorismo, não há um Estado contra quem declarar uma guerra. Daí, muito provavelmente, o presidente Bush ficará de rédeas soltas. E nós estaremos lutando contra um inimigo oculto, sem bandeira, sem regras para guerrear. Portanto, se o inimigo não se atém a regras, os americanos também poderão fazer o mesmo. Imagine, por exemplo, se ficar provado que o grande culpado é mesmo Bin Laden. O que impede o presidente Bush de comparar o estrago feito no World Trade Center e no Pentágono, em termos de destruição e número de vítimas, a um ataque nuclear restrito? E, conseqüentemente, o que o impediria de ordenar o lançamento de um míssil com ogiva nuclear, um desses que chamamos de armas nucleares táticas, com alcance de cinco mil quilôme­tros e capacidade de destruição localizada, sem o comprometimento de toda a atmosfera de um país e de seus vizinhos?

E quem garante que essas armas funcionem realmente assim? — discordou Natalie. — Será possível que esses técnicos e estrategistas que afirmaram uma tal barbaridade nem sequer tenham pensado que pode existir um fenômeno natural chamado vento? E que esse vento, com cer­teza, arrastará as partículas radioativas em suspensão na atmosfera para lugares bem distantes do alvo em si?

— Como o Iraque poderia saber que o prédio de sua embaixada, em Washington, estaria correndo risco de ser destruído? — perguntou

Donovan a Castells ao entrar em sua sala, por volta de dez horas da manhã.

Castells olhou para ele com expressão de quem não estava enten­dendo nada, mas Donovan explicou:

O imóvel da P Street, 1.801, em Washington, pertence ao governo do Iraque. Ali funcionava a embaixada desse país. Há qua­tro meses, um alto funcionário do governo iraquiano tentou fazer um seguro de cerca de oitocentos milhões de dólares sobre o imóvel. No entanto, o prédio, com tudo o que ainda resta lá dentro, não vale mais de dez milhões. O negócio quase saiu! A seguradora, alegando que o embargo contra o Iraque a impedia de realizar qualquer tipo de transa­ção com esse país, consultou o Departamento de Estado, que a liberou para negociar. E a operação só não foi efetivada porque aconteceram os ataques...

Castells continuou a olhar aparvalhadamente Donovan, que finalizou:

Está percebendo? A P. Street fica perto da Casa Branca. Se o alvo de um desses aviões fosse a Casa Branca, com certeza a onda de destruição atingiria essa rua e a ex-embaixada do Iraque! Eles sabiam que os atentados iriam ocorrer! Portanto, fica muito clara uma conexão entre Bin Laden e Saddam Hussein no que se refere a esses ataques!

Castells coçou o alto da cabeça e murmurou:

O que você está afirmando é grave, Donovan... Até agora, todas as atenções estão voltadas para Bin Laden. Saddam, apesar de suas decla­rações anti-americanas, parecia estar fora desses atentados...

Veja bem, chefe — argumentou Donovan. — Por mais dinhei­ro e capacidade técnica que Bin Laden possa ter, ele jamais conseguiria montar todo o aparato necessário para atos terroristas desse porte sozi­nho. Para começar, temos de nos dobrar à realidade: Bin Laden comanda a Al-Qaeda, que, no fundo, não passa de uma grande quadrilha de ban­didos. Eles não possuem nem sequer cultura para desenvolver um plano tão bem engendrado e tão bem orquestrado. O Talibã, que controla o Afeganistão, não dispõe nem mesmo de uma força aérea! O país, em si, não tem recursos para comprar comida. Povo miserável, governo também miserável. Era preciso, pois, que houvesse outro cofre financiando toda essa operação. Bin Laden entraria com a mão-de-obra, e Saddam, com o dinheiro. Pelo menos com uma parte importante dessa soma.

Com isso, você está concordando com a opinião de muitos — observou Castells. — Você está dizendo que a guerra contra o terror não deve se restringir ao Afeganistão, mas deve alcançar o Iraque. É uma con­sideração muito perigosa, especialmente nestes dias, em que as diretrizes para a retaliação deverão sair justamente de nossas análises...

Pessoalmente, não concordo com guerra nenhuma — retrucou Donovan, enérgico. — Mas sou obrigado a admitir que uma retaliação é necessária. Ao lado disso, também sou obrigado a admitir que essa reta­liação, se for restrita, só servirá para incrementar o terror. Elimina-se Bin Laden, mas não se elimina o terrorismo. Acaba-se com Saddam Hussein, mas não se acaba com o terrorismo. Israel continuará a sofrer ataques ter­roristas dos palestinos, e assim por diante. Extirpar o terrorismo do mun­do é uma missão, a meu ver, impossível. Porém, acho que os americanos, que vestem a imagem de protetores da humanidade, da liberdade e da democracia, têm de forçar a diminuição dos atos terroristas. Pelo menos têm de eliminar a possibilidade de acontecerem atentados tão bem orquestrados e que só são possíveis com a interferência de outros governos, como é o caso do Iraque!

Isso parece ser um saco sem fundo — avaliou Castells, desani­mado. — Ou você acha que cada um desses líderes extremistas não tem seu sucessor? Ou sucessores?

É claro que eles têm! Mas, se diminuirmos seu raio de ação e acabarmos com a possibilidade de enviarem dinheiro para sustentar ati­vidades terroristas, contribuiremos, e bastante, para a paz.

Ou seja, para que exista a paz, é preciso fazer uma guerra de proporções monstruosas, suja, sem quartel, sem regras... — retrucou Castells.

Infelizmente, sim — admitiu Donovan. — E talvez essa seja a mais difícil e terrível missão que os americanos estão se impondo.

Steinberg acordou com o corpo dolorido por ter dormido no sofá da sala do apartamento de Amina, pequeno demais para seus quase dois metros de altura. Entretanto, além das dores musculares em virtude da má posição em que adormecera, ele acordou porque ouviu ruídos muito raros em sua rotina: som de água correndo, barulho de fritura numa frigideira e... cheiros! Havia um delicioso cheiro de comida no ar e, a despeito da dúzia de esfihas que ele comera antes de dormir, Steinberg sentiu que seu apetite de leão acordava também.

Levantou-se, foi até a diminuta cozinha e viu Amina preparando o café-da-manhã. E ele viu Amina... Realmente... Ela estava usando um robe em estilo oriental, quase transparente, de seda, que lhe mol­dava espetacularmente as formas e faria pecar até mesmo o mais santo frade carmelita.

Vendo que ele se aproximava e percebendo que seu olhar revelava claramente o nível de pensamentos que lhe iam pela cabeça, Amina sor­riu e explicou:

Não me olhe assim, Kirk! Não tenho nenhuma outra roupa mais decente para ficar em casa... Além do mais, estou em minha casa!

Não estou reclamando — murmurou Steinberg. — Muito pelo contrário! O problema é que tive a impressão de que havia morrido e que estava no céu, com um anjo por perto...

Sentando-se numa cadeira muito perto de Amina, ele indagou:

A que horas você tem de entrar no hospital?

Recebi um telefonema de lá — respondeu a moça. — Eles estão com excesso de voluntários e só precisarão de mim à noite. Tenho o dia todo de liberdade...

O agente franziu as sobrancelhas, intrigado. De fato, ele lembrava de ter ouvido, ainda bem cedo, o telefone celular de Amina tocar; ouvira-a responder alguma coisa, como "então está ótimo, assim poderei descan­sar um pouco mais", e desligara. No entanto, ele estava ao lado de Amina quando, na véspera, ela se despedira do chefe de plantão, e este dissera que ela deveria entrar em serviço às oito horas da manhã... Além disso, ele sabia que o serviço dos voluntários estava concentrado nos hospitais mais próximos à área do desastre.

Steinberg olhou o relógio, constatou que passava pouco de seis e meia da manhã e perguntou:

Tem certeza que esse telefonema foi dado do hospital?

Por que está perguntando isso? — quis saber Amina, ficando subitamente muito séria. — Por que não teria sido o hospital?

Alguém pode estar interessado em que você fique em casa... Ou que, pelo menos, não esteja num local excessivamente vigiado — respon­deu o agente.

Amina empalideceu. Com voz trêmula, indagou:

Você acha que Ibrahim...?

Não podemos afastar essa possibilidade, Amina — advertiu Steinberg. — E, aliás, acho que é muito possível que tenha sido ele.

Olhando com gula para o prato de panquecas que a moça punha sobre a mesa, ele continuou:

Vamos analisar a questão. Ibrahim sabia de sua existência. Sabia que você deveria viajar e que não foi. Provavelmente supôs que Hafez tenha sido denunciado por você. Ele não conseguiu sair de Nova York; portanto, está escondido por aqui. Sabia que você, uma vez que continuava em Nova York, poderia ter ido ao hospital em que sempre trabalhou. Seria muito simples telefonar durante a noite para lá e ficar sabendo que você estaria entrando em serviço às oito horas da manhã. Por outro lado, ele pode ter estado vigiando o hospital e viu que eu estava com você. Pode ser que ele tenha imaginado que, se você não fosse trabalhar durante o dia inteiro, hoje, eu não teria por­que ficar aqui. O que o impede de tentar matá-la depois que eu saísse de seu apartamento?

Sem dar tempo para Amina comentar, Steinberg continuou:

Ele tem pelo menos dois motivos. Primeiro, ele pode estar sim­plesmente querendo vingar o que aconteceu com Hafez. Segundo, ele pode até achar que você é uma agente infiltrada no grupo e que, só por isso, deve morrer.

Mostrando o aparelho de telefone, o agente pediu:

Ligue para o hospital e confirme seu horário. Não custa nada verificar...

Amina não se fez de rogada. Ligou para o hospital e, ao desligar, olhou com terror para Steinberg, confirmando:

Não houve qualquer alteração de horário na escala de plantonistas... Eles não ligaram para mim...

O agente meneou a cabeça, cheio de preocupação, e murmurou:

Se não fosse tão perigoso, poderíamos aproveitar a oportu­nidade...

Amina fixou os olhos em Steinberg e, enérgica, provocou:

Pois vamos aproveitar, Kirk! Não tenho medo de servir de isca! E, se isso pode facilitar para o FBI apanhar Ibrahim...

Você não é obrigada a nada disso — advertiu Steinberg. — E você não tem culpa de ter se apaixonado por um terrorista.

Não me lembre disso! — pediu Amina. — Quero esquecer que um dia me relacionei com Hafez! Se pudesse voltar o tempo...

Steinberg calou. Ele podia entender o que Amina estava sentindo, uma mistura de frustração e ódio, de decepção e arrependimento. E não poderia fazer muita coisa para ajudá-la. O tempo seria, realmente, o me­lhor remédio.

Foi arrancado de seus pensamentos pela pergunta da médica:

O que vamos fazer?

O agente refletiu por alguns instantes e respondeu:

Vamos dar a ele a oportunidade de atacá-la. Eu irei embora...

Não! — quase gritou Amina, segurando com desespero o braço de Steinberg. — Não me deixe sozinha! Morrerei de medo!

Steinberg sorriu e explicou:

Não estarei longe, Amina. Apenas quero que ele saiba que não estarei aqui dentro. Nem você. Assim que eu sair, você também sai­rá. Irá fazer algumas compras, andará sem rumo certo. Com certeza ele aproveitará a oportunidade. Mas eu estarei vigiando. E, quando Ibrahim tentar agir...

E se ele me alvejar de longe? Quem garante que não vai tentar algo assim? Você nem mesmo verá quem atirou... No entanto, se eu ficar aqui em casa, ele terá de entrar em meu apartamento para fazer alguma coisa. E terá de passar pela porta da frente do edifício.

Não é uma boa idéia — retrucou o agente. — Ele já pode estar dentro do prédio e...

Amina se levantou da cadeira em que estava sentada e foi até o fo­gão apanhar a chaleira de café. Ela estava estendendo a mão para pegá-la pela alça quando a porta de serviço do apartamento se abriu com violên­cia e um homem surgiu, empunhando uma pistola.

Ibrahim! — gritou Amina.

Foi a última palavra que a médica pôde pronunciar.

O estampido seco da pistola calibre 9 mm de Ibrahim se fez ouvir, e a moça, atingida em pleno rosto, foi arremessada para trás, de encontro à pia, caindo já morta, no chão.

Com a agilidade de um gato e a força de um leão, Steinberg se er­gueu e empurrou a mesa contra o intruso, desequilibrando-o. No instante seguinte, antes que Ibrahim pudesse se recuperar da surpresa, a pesada mão do agente já batia contra seu rosto, com a violência de um coice de mula. Ouviu-se um ruído choco, como o barulho que faz um pote de barro ao se quebrar, e Ibrahim foi arremessado contra a parede, batendo nela com a nuca. Dali, com os olhos esbugalhados, escorregou lentamente para o chão, soltando a arma que empunhava.

Steinberg olhou para o árabe estendido no chão da cozinha. Agarrou-o pela gola do paletó com a intenção de lhe fazer algumas per­guntas. Porém, logo percebeu que Ibrahim jamais poderia responder a qualquer questão... O sangramento que lhe saía pelos ouvidos era sinal mais do que evidente que seu cérebro, destroçado pela potência dos im­pactos, primeiro pelo soco que lhe dera o agente e logo em seguida pela pancada contra a parede, tinha ficado grande demais para o tamanho de sua caixa craniana...

Morto! — exclamou Steinberg, decepcionado. — Está morto! Não agüentou a pancada...

Ergueu-se e voltou-se para o cadáver de Amina.

Maldição! Afinal, ele conseguiu... E por minha culpa!

Samira teve muito trabalho para convencer Fefê a ficar no aparta­mento enquanto ela ia entregar as fotografias para Yussef. O rapaz estava extremamente desconfiado — a idéia de que Samira estivesse realmente ligada a uma célula terrorista, ou mesmo a João Antônio, voltara-lhe com o raiar do dia e, para piorar seu estado de espírito, a moça se recusara a dar qualquer informação sobre como conseguiria tão facilmente os novos documentos — além disso, ele estava ficando muito entediado, sem nada para fazer ali a não ser ver televisão. E pensar bobagens. Entretanto, com a ameaça de que, se ele continuasse a insistir, ela não iria a lugar nenhum e, dessa maneira, ficariam sem os tão desejados documentos, Samira aca­bou por fazê-lo desistir.

— Tenha um pouco mais de paciência, querido — pediu ela. — Dentro de mais dois ou três dias, nós poderemos deixar os Estados Uni­dos, e você poderá voltar a circular à vontade.

Pôs na bolsa os dez mil dólares que Yussef lhe pedira e, renovando as recomendações de Fefê não mostrar que estava vivo, saiu.

Desde o início da noite anterior chovia e ventava muito em Nova York, tornando ainda mais difícil o trabalho dos inúmeros grupos de voluntários e dos mais de mil e quinhentos homens da Guarda Na­cional que permaneciam na tentativa quase impossível de encontrar sobreviventes nos escombros do World Trade Center. A área do desas­tre estava totalmente isolada; somente os socorristas estavam autori­zados a entrar, e os jornalistas continuavam sendo mantidos a vários quarteirões de distância.

Contudo, os nova-iorquinos concentravam seus esforços na tenta­tiva de retomar a vida normal e, assim, Samira já podia ver mais pessoas andando nas ruas e mais estabelecimentos comerciais abertos.

Passava um pouco de dez horas da manhã quando, já a dois quartei­rões de seu apartamento, ela conseguiu, com relativa facilidade, um táxi e, informando ao motorista apenas a direção de onde desejava ir — em hipótese alguma ela queria deixar alguma pista —, afundou-se no banco traseiro do automóvel, mergulhando em seus pensamentos.

As coisas estavam evoluindo bem e, se Fefê não cometesse ne­nhum erro, havia muitas possibilidades de tudo dar certo. De posse dos documentos, eles poderiam ir para o México e fazer um pouco de turis­mo até que o ambiente nos Estados Unidos melhorasse e, o que era mui­tíssimo importante, até que eles se acostumassem perfeitamente com as novas identidades.

Na véspera, Yussef chegara a sugerir que eles voltassem direta­mente para o Brasil, uma vez que não poderiam continuar nos Estados Unidos. Porém, Samira dissera que não, que achava melhor que fossem para o México ou para qualquer outro país latino-americano, mas o Brasil também seria perigoso para o namorado.

Lá ele estaria correndo o mesmo perigo — explicara a moça, sem entrar em mais detalhes. — Não podemos, pelo menos por enquan­to, ir para lá.

No entanto, no noticiário televisivo da manhã, ela vira que a fron­teira com o México ainda estava sendo muito vigiada, e isso não era bom. Ansioso como era, Fefê poderia não suportar a pressão e, de repente, pôr tudo a perder.

"Talvez seja melhor ficar algumas semanas aqui mesmo, nos Esta­dos Unidos", pensou ela. "Desde que estejamos bem longe de Nova York, acho que não correremos perigo. Depois que ele já estiver mais calmo e mais habituado com o novo nome, então poderemos sair do país."

Sorriu interiormente, lembrando-se que tinha achado o rapaz um tanto quanto estranho pela manhã. Parecia arredio, cheio de medo e des­confiança. Quando ela lhe pedira os dez mil dólares para pagar Yussef, Fefê chegara a vacilar, e ela lhe perguntara se ele, depois de tudo o que aconte­cera, ainda não confiava nela, se achava que ela iria fugir com o dinheiro.

Se minha intenção fosse essa, Fefê, eu poderia muito bem ter aproveitado enquanto você estava dormindo ou tomando banho para pe­gar essa sua maleta e simplesmente desaparecer — defendera-se Samira, mostrando-se ofendida.

Saltou do táxi a três quadras de distância da casa de Yussef e, pu­xando a gola do blusão para se proteger do vento que açoitava a cidade, caminhou até lá, sempre olhando para trás e para os lados, verificando cuidadosamente se não estava sendo seguida ou se, por azar, o taxista que a trouxera não a via parada diante da porta de Yussef.

Nada disso aconteceu, porém. As pessoas que passavam por ela, na rua, caminhavam apressadas para fugir da chuva e ainda pareciam alheias a tudo, preocupadas apenas com a própria segurança, que, àquela altura, todos achavam ser muito precária. O medo estava estampado em suas fisionomias e bastava o som de um avião no céu da cidade para que todos olhassem instintivamente para cima. Nova York ainda demoraria muito para voltar a ser o que era até a manhã daquela fatídica terça-feira.

Yussef recebeu-a com o sorriso de sempre, apanhou as fotografias e o dinheiro, explicando que não era para ele, jamais cobraria um centavo sequer de Samira, mas era para o falsificador.

Você sabe como são essas pessoas — ilustrou ele. — Não fazem nada sem antes ver o dinheiro.

Samira sorriu, fingiu acreditar no que dizia o velho árabe e per­guntou:

Quando os documentos ficarão prontos?

- Segunda-feira ao meio dia — respondeu Yussef. — Quer que man­de entregar em sua casa?

Não. Virei apanhá-los. Prefiro assim.

Yussef assentiu com um sinal de cabeça e, depois de examinar aten­tamente as fotografias de Fefê, aconselhou:

Não simpatizei com ele. Espero que você saiba o que está fazendo...

Samira sorriu e, prontamente, retrucou:

- Sim, Yussef. Eu sei o que estou fazendo. Ele quer se casar comigo; é um homem que tem muito dinheiro e, acima de tudo, gosto dele. Sei que serei feliz. Sei que nunca mais vou precisar fazer o que fiz para poder sobreviver!

Já conversamos sobre a vida que você levou, Samira — ponderou o árabe, com expressão severa. — E você sabe muito bem qual é a minha forma de pensar. Havia outras maneiras de sobreviver, só que nenhuma delas dar-lhe-ia chance de se projetar no mundo das modelos. E, além disso, você sempre quis ter uma vida... muito confortável. Isso não é simplesmen­te sobreviver. E tem preço, quase sempre um preço muito alto.

Samira corou um pouco, mas não replicou. Em seu íntimo, sabia que Yussef estava com a razão. Ela poderia ter sido balconista, garçonete, faxineira... Nova York sempre ofereceu, a quem estivesse disposto, um vasto mercado de trabalho. Entretanto, como ele dissera, essas atividades, além de permitirem somente sonhos muito rasos, estariam afastando-a de seu objetivo. Como uma faxineira ou uma babá poderia ter oportunidade de se aproximar de um caçador de modelos? E, como poderia chamar a atenção de alguém de fato interessante, se não estivesse bem-vestida e produzida? Sim, Yussef estava certo, mas ela não se arrependia do que tinha feito até aquele momento!

Você está se tornando cúmplice de um crime muito sério — ad­vertiu Yussef. — E eu só posso lhe pedir, mais uma vez, que tome cuidado e que pense muito bem.

Devolveu-lhe cinco mil dólares e ordenou:

Você não deve falsificar seus documentos. Por mais que os ára­bes e muçulmanos estejam passando por maus bocados aqui nos Estados Unidos, todos sabemos que isso é apenas temporário. Em pouco tempo, as pessoas vão entender as diferenças que existem entre árabes, muçulmanos e terroristas, e as coisas voltarão ao normal.

Com um sorriso, acrescentou:

E, além do mais, de que adianta eu lhe arrumar documentos com outro nome? Com o rosto que você tem, com esses olhos, essas so­brancelhas... Qualquer um percebe que você é árabe!

Voltando a ficar sério, finalizou:

Não vou falsificar documentos para você. Para seu namorado, sim. Mas, para você, não!

Ao contrário de como achava que seria a própria reação, Samira sentiu-se intimamente bem com a recusa de Yussef. A princípio, ela ti­nha achado que seria uma ótima idéia ter documentos novos, com outro nome, até mesmo com outra nacionalidade. No entanto, à medida que o tempo ia passando, mais e mais ela se convencia do risco inútil que estaria correndo. Na verdade, ela não precisava desaparecer e não tinha nenhum motivo para se esconder de quem quer que fosse. Além disso, quem poderia garantir que Fefê não a abandonaria de um momento para o outro, não desapareceria também para ela? Talvez ele a amasse, naquele instante. Mas... seria esse amor definitivo? E o amor que ela sentia pelo rapaz? Seria definitivo? Teriam sido os dois, realmente, feitos um para o outro? Ou tudo aquilo não seria, como ela mesma já dissera, apenas uma paixão que desapareceria com o tempo?

Não se deve esquecer a possibilidade de alguma coisa sair erra­do — prosseguiu o árabe. — Se o seu namorado for apanhado, você pode ser levada de arrasto. Será muito mais simples você se livrar, dizendo, por exemplo, que não sabia de nada. Mas, se você também estiver com documentos falsos, tudo será muito mais complicado. Hoje em dia, para um árabe, isso é encrenca para muito tempo!

Samira procurou afastar esses pensamentos de sua cabeça e, agra­decendo a Yussef todo o carinho que ele estava manifestando e por toda a sua preocupação por ela, despediu-se e saiu.

A sorte estava lançada. Dentro de três dias, Fefê começaria uma vida totalmente nova e ela...

Bem... Ela o estaria acompanhando. Pelo menos, por enquanto. E continuaria a ser Samira.

Quando, por fim, chegou ao seu apartamento, ela encontrou Fefê muito nervoso e impaciente. E esse seu estado piorou ainda mais quando Samira lhe disse que os documentos, realmente, só ficariam prontos na segunda-feira e que só haveria documentos falsos para ele.

O diabo é ter de esperar até segunda-feira! — exclamou ele, cheio de raiva. — Isso quer dizer, esperar aqui, trancado neste apar­tamento!

Caminhando de um lado para o outro, como um leão preso numa jaula, ele rosnou:

Não vou agüentar! Preciso sair, preciso de ar!

Voltando-se para Samira, perguntou com raiva:

E por que você não quis documentos falsos, como eu?

Samira refletiu por alguns instantes e respondeu, procurando man­ter a calma:

Porque não quis. Não acho que seja necessário. Eu não tenho nenhum motivo para me esconder, além do fato de estar dando guarida a você. Além disso, já lhe disse qual é o meu objetivo de vida. Quero ser uma modelo famosa e, quando isso acontecer, quero que seja com o meu nome verdadeiro. Foi por isso que não quis documentos falsos para mim. Eu não morri, não desapareci. Não sou procurada ou perseguida por ninguém.

O rapaz fez um gesto de impaciência e, recomeçando a caminhar pela sala, repetiu:

Não vou agüentar! Sei que não vou agüentar! Preciso sair um pouco, ou vou explodir aqui dentro!

Você precisa é ter paciência, Fefê — aconselhou Samira, agastada. — A idéia foi sua, eu estou procurando ajudá-lo até mesmo além do que seria minha obrigação... Você terá de agüentar, terá a paciência necessária!

Pondo o almoço diante do rapaz, concluiu:

Já está na hora de você entender que nem tudo acontece como você quer que aconteça! Nem todo mundo tem de se curvar e se matar para fazer as vontades do senhor Carlos Fernando!

Irritada, ainda acentuou:

Se você acha que vai explodir, se quer começar a gritar e a chamar a atenção dos vizinhos, pode pegar sua maleta e ir embora! Se você quiser pôr tudo a perder simplesmente por não ter paciência por um final de semana, pode sumir de minha vida! Eu não estou disposta a me arriscar por alguém que seja tão infantil! Que segurança poderei ter? Você acha que é apenas o dinheiro que você tem na maleta que está me atraindo?

Sentindo que ia começar a chorar e não querendo que Fefê a visse assim tão abalada, Samira foi para o quarto.

O rapaz foi atrás dela e, segurando-a pelos ombros, lamentou:

Desculpe-me, Samira... Estou muito nervoso; compreenda. Não fique assim comigo, por favor.

Incapaz de conter o pranto, Samira encostou a cabeça no ombro de Fefê e, aos soluços, admitiu:

Também estou nervosa, pode acreditar. Isso tudo tem sido muito pesado! E estou preocupada com você. Sei que é difícil ficar prisioneiro, não poder sair, não poder telefonar, não poder mostrar que está vivo. Entendo seu estado de espírito, Fefê. Mas, por favor, entenda o meu!

Acariciando os cabelos da moça, Fefê sussurrou ao seu ouvido:

Acalme-se, querida. Não chore mais. Terei paciência. Vou ten­tar me acalmar. Você tem razão. Serão só mais três dias e pronto. A partir daí teremos a vida toda pela frente!

Depois do almoço, sentados diante do aparelho de televisão, os dois começaram a conversar sobre o que fariam a partir do instante em que estivessem com os documentos de Fefê nas mãos.

Quer dizer que você acha melhor não irmos para o México? — perguntou o rapaz.

A inspeção e a revista na fronteira estão muito severas — respon­deu Samira. — Acho que você, nervoso como está, vai deixar transparecer alguma coisa. E, aí, sim, tudo pode se complicar. Estou imaginando que será muito melhor irmos viajar um pouco pelos Estados Unidos, assim meio sem rumo, para que você se acostume com a nova identidade e até que fique mais calmo. Teremos de passar a fronteira como se isso fosse a coisa mais natural do mundo e não como se estivéssemos fugindo. Isso, sim, pode ser muito perigoso. Os fiscais e os agentes do FBI têm muita experiência com pessoas que estão escondendo algo. Já imaginou se desconfiarem de você?

Fefê foi obrigado a admitir que Samira estava certa. Com o clima de nervosismo que imperava em todo o país — na realidade, em todo o mundo — depois dos atentados da terça-feira, era de se esperar que os estrangeiros que estivessem deixando o país seriam investigados a fundo. Qualquer um poderia ser terrorista e, seguindo essa teoria, a fiscalização estaria sendo feita, realmente, de forma muito rigorosa. E, se descobris­sem a maleta com o dinheiro então...

E a maleta de dinheiro? — perguntou Fefê, cheio de aflição. — Não podemos ficar andando com ela por aí!

Podemos deixá-la num guarda-volumes. Já vi muitos filmes em que isso acontece — respondeu Samira, em tom de brincadeira.

E, vendo a expressão de espanto do rapaz, esclareceu:

Mas é claro que uma solução vista em cinema pode não valer para a vida real. Você põe a mala num guarda-volumes e, de repente, acontece uma denúncia de bomba, coisa que pode ser muito possível num momento como este, e daí a polícia revista todos os armários... Encontram a maleta com um milhão de dólares! O que vai acontecer? Simplesmente vão atrás do dono da maleta nem que tenham de procurar no inferno, pois terão certeza de que ele está envolvido em alguma coisa errada!

Podemos pôr o dinheiro num cofre de banco — sugeriu Fefê.

Também não funciona, querido. Você terá de mostrar o conteú­do da maleta. Podem surgir dúvidas, podem fazer perguntas... É perigoso.

Depois de refletir por alguns momentos, Samira avaliou:

Acho que o melhor será abrir várias contas pequenas, em vários bancos. Assim, você não despertará suspeitas. Depositar um milhão de dólares sempre pode levantar curiosidade. Mas você abrir vinte contas de cinqüenta mil dólares, não. E abrir contas aqui nos Estados Unidos é bem mais simples do que no Brasil...

Fefê concordou com um sinal de cabeça e murmurou:

Não vou depositar nada em meu nome, meu novo nome, por enquanto. Se houver alguma encrenca, isso significa perder todo o di­nheiro. Vamos depositar tudo em seu nome, menos o que vamos levar para a viagem.

Não quero que você ponha dinheiro em meu nome! — protes­tou Samira. — Seria uma loucura! Meu nome é árabe, já imaginou o que poderiam pensar? O FBI imediatamente estabeleceria uma investigação e, mesmo que jamais consigam provar que eu tenha ligação com os terro­ristas, minha vida estará acabada! Você sabe muito bem que é fácil acusar e destruir, mas é praticamente impossível você reconstruir o nome, mes­mo que seja absolutamente inocente.

Os dois se calaram mais uma vez e, imersos em seus pensamentos, olharam para a televisão onde, nesse instante, um jornalista confirmava que o FBI já tinha uma lista com os nomes de todos os terroristas. Não era uma notícia nova; já na véspera, os noticiários tinham falado sobre isso, mas sem fornecer números nem outros detalhes. Algumas outras informa­ções, porém, estavam sendo divulgadas como, por exemplo, a já certeza que o FBI tinha de que os terroristas tinham agido em grupos de três a seis para assumir o controle dos Boeing usados na operação.

Outro comentário do jornalista fez com que Samira se inclinasse, interessada, para a televisão e pedisse, com um gesto, que Fefê a deixasse escutar. O jornalista afirmava que a identificação dos suspeitos tinha sido o resultado de uma fantástica operação de coleta de informações em qua­tro Estados da União. Muitas pessoas de origem árabe tinham sido detidas para interrogatório e contas bancárias estavam sendo investigadas.

Eu estou certa — murmurou Samira. — Esse dinheiro é uma verdadeira bomba! E não pode sair daqui!

O jornalista declarava que, segundo informações de fontes fide­dignas, alguns dos suspeitos do seqüestro do vôo 11, da American Air­lines, de Boston a Los Angeles, que atingiu o World Trade Center, ti­nham entrado nos Estados Unidos pelo Canadá e organizado a operação a partir de uma célula de militantes terroristas na cidade de Springfield, em Massachusetts. Assim, com o objetivo de localizar as outras pessoas envolvidas, o FBI estava passando um pente-fino em todas as estradas, numa fiscalização rigorosíssima, especialmente depois que a polícia de Boston encontrara, logo no dia 12, nesta quarta-feira, um Nissan Altima prateado da locadora Alamo, na área de estacionamento do aeroporto da cidade. Nesse carro foi encontrada uma mala com um guia de pilotagem de avião em árabe, uma tabela de cálculos de consumo de combustível para aviões e uma cópia do Corão. Uma investigação feita na locadora revelou que quem alugara o veículo exibira carteira de motorista do Es­tado de Nova Jersey.

Estou preocupado — disse Fefê, torcendo as mãos. — Será que não vai ser perigoso circular pelo país, com toda essa fiscalização?

Acho que sim — respondeu Samira, também apreensiva. — Se formos apanhados com todo esse dinheiro, não teremos como explicar coisa nenhuma. Seremos suspeitos de qualquer jeito...

Mais para si mesma, comentou:

Talvez o melhor seja não fazermos nada. Acho que aqui em casa estaremos mais seguros. Nós e o dinheiro...

Antes que Fefê pudesse protestar, ela explicou:

Poderemos sair. Basta que fiquemos longe de locais onde possa haver qualquer tipo de confusão. Nova York é uma cidade imensa, Fefê, e é mais fácil estar escondido no meio da multidão do que num deserto, concorda?

O rapaz deu um resmungo afirmativo, e Samira continuou:

Ninguém está nos procurando, e há todas as indicações de que você realmente esteja entre os escombros das Torres Gêmeas. Portanto, não há qualquer suspeita que leve o FBI a buscá-lo em outros lugares.

Sorriu da expressão de desagrado que o rapaz fez quando ela men­cionou seu cadáver soterrado e enfatizou:

E agora, que você, além de tudo, já está com outro visual, fica menos provável que alguém o reconheça.

Fefê levantou da poltrona e foi se olhar ao espelho, recolocando a barba e o bigode postiços. De fato, ele ficava bastante diferente e, dentro de mais alguns dias, poderia dispensar o disfarce, pois já estaria com o rosto completamente coberto pela própria barba.

Bem... Se você acha mais seguro... — murmurou ele, voltando para o sofá. — Então ficaremos aqui.

Baixando voz, perguntou:

Mas... e os vizinhos? Não vão fazer perguntas, não vão achar suspeito?

O que pode haver de suspeito em eu ter o meu namorado aqui em casa? — retrucou Samira. — Ou o meu marido? Ninguém tem nada a ver com a minha vida! Além do mais, você não tem nada de árabe, não vamos receber absolutamente ninguém; vamos estar sozinhos aqui dentro ou passeando. Não há o que temer, pode ficar descansado.

Abraçando o rapaz, Samira finalizou:

Nós teremos a nossa lua-de-mel um pouco diferente... Mas, nem por causa disso, ela deixará de ser inesquecível!

Pela Internet, já perto da hora do jantar, Fefê ficou sabendo que sessenta e oito brasileiros, de todos os que estavam com paradeiro desco­nhecido após os atentados terroristas, tinham sido localizados. Segundo a informação do Itamaraty, havia ainda muitos que não tinham entrado em contato com suas famílias no Brasil ou com o Consulado, em Nova York, e que estavam sendo diligentemente procurados. Várias equipes de funcionários do Consulado estavam trabalhando para esse fim, recebendo informações por telefone e pela Internet, analisando listas divulgadas pe­las autoridades americanas, visitando hospitais e locais onde havia iden­tificação de corpos e telefonando para pessoas amigas ou que tivessem alguma relação com os desaparecidos.

É estranho que ninguém telefone para você — disse Fefê, lem­brando que, desde sua chegada ao apartamento de Samira, o telefone não tinha tocado uma só vez.

Não há por que alguém ligar — ponderou a moça. — Eu nunca tive qualquer relação com o World Trade Center... Nunca trabalhei lá e, para dizer a verdade, só estive lá uma única vez, já faz bastante tempo, como turista.

Sem conseguir disfarçar certo constrangimento, confessou:

E, no meio em que tento trabalhar, as amizades são muito di­fíceis de acontecer. O mais comum é justamente o contrário, ou seja, um clima de intensa rivalidade e, se uma menina puder prejudicar outra, pode estar certo de que o fará! Por isso, não tenho amigas ou amigos... Nem parentes. Na verdade, não tenho ninguém que se interesse em ligar para saber como estou.

Por um breve momento, Fefê se lembrou de seus pais, que estariam sofrendo imensamente com a perda de toda a prole de uma só vez. No en­tanto, jogando a cabeça para trás com seu velho gesto de afastar a mecha imaginária de cabelos, pensou: "Não posso me preocupar com eles. Não agora. Um dia, quando tudo estiver assentado, eles vão me reencontrar... E aí, quem sabe, conseguirão entender o que fiz e por quê. De qualquer maneira, três dias já se passaram, e eles terão de se conformar."

Com uma ponta de raiva contra si mesmo, lembrou que, se não fosse por causa de Erik, ele não teria se envolvido com João Antônio e, conseqüentemente, não precisaria estar se escondendo. Voltaria para o Brasil e, então, oficialmente e sem que o pai pudesse ter qualquer al­ternativa, assumiria o lugar do irmão, herdaria a empresa, enfim, ficaria com tudo. Com João Antônio no circuito, porém, isso seria impossível. Ele o escravizaria, daria um jeito de tê-lo nas mãos, faria de sua vida um inferno. E ele jamais teria como explicar para o pai. A atitude que estava tomando, o caminho que escolhera, sem dúvida nenhuma, seria cruel para sua família, e ele estava consciente disso. Mas, em sua opinião, esta era a única solução.

Sentado diante da televisão, olhando sem ver o que se passava no vídeo, ele escutou Samira acabando de preparar o jantar e se deu conta de que, desde os dezoito anos de idade, jamais tinha ficado tanto tempo dentro de casa, sem ir a um restaurante ou a uma boate. E sentiu saudades de São Paulo, do grupo de amigos, especialmente de Gustavo.

"Como ele terá reagido?", pensou. "O que eles todos estarão fazen­do hoje, uma sexta-feira à noite?"

Ouviu Samira chamar, avisando que ia servir a mesa, e, com um suspiro, levantou-se do sofá e dirigiu-se para a cozinha.

Jantaram em silêncio, ouvindo as notícias, preocupados com o avizinhar-se de uma nova vida.

O mundo todo também parecia estar começando uma nova era, caracterizada pela insegurança das pessoas e pelo medo com relação ao futuro. Os atos terroristas da terça-feira tinham marcado muito profun­damente, e não havia quem não estivesse tenso. As últimas notícias da­vam conta de cinco mil desaparecidos nos escombros das Torres Gême­as. Eram cinco mil pessoas que não estavam em nenhuma outra guerra que não fosse a luta pela sobrevivência, talvez até mesmo pela hegemo­nia financeira. De qualquer forma, porém, as armas que brandiam eram seus computadores, seus talões de cheques e seus cartões de crédito. E foram diretamente atingidas por um ato da suja guerra do terrorismo. Desses cinco mil desaparecidos, centenas eram bombeiros, policiais e paramédicos que tinham sido atingidos pelo desmoronamento da torre sul. Eram pessoas que ali se encontravam para tentar salvar as outras. Sua guerra era contra o tempo, contra o terrível inimigo chamado fa­talidade. E todas elas tinham em comum o fato de que, ao deixarem suas casas nas primeiras horas da manhã do dia 11, tinham a certeza e a segurança de que, ao anoitecer, estariam de volta a seus lares, reunidas com suas famílias. E isso não aconteceu.

Ao lado de toda essa tragédia e dos atos de verdadeiro heroísmo das equipes de resgate, o povo norte-americano clamava por uma reta­liação. O The New York Times cobrou abertamente do presidente Bush uma posição forte de liderança diante do desafio feito contra a nação. Houve sérias críticas com relação às primeiras ações do presidente, que denotavam uma grave e preocupante impressão de indecisão. George Bush, porém, se emocionou e emocionou o povo. Na visita que fez ao que restara do World Trade Center, no meio dos escombros, com uma bandeirinha dos Estados Unidos na mão e um megafone na outra, o pre­sidente discursou aos bombeiros, policiais e voluntários que trabalham no resgate, instigando seu patriotismo e sua coragem, e prometeu vingança aos que humilharam o sistema de defesa e causaram tanta dor ao país. Falou de guerra, assegurando claramente retaliação e desforra. Prometeu ataque militar aos responsáveis pelo ato de terror. Afirmou que não veria fronteiras e quem não estivesse ao lado dos Estados Unidos estaria com os terroristas e, como tal, seria tratado como inimigo. Não se incomodou com algumas advertências públicas feitas por dirigentes de outras nações, como a Rússia, por exemplo. Começou a montar seu plano de batalha, deu satisfações ao Congresso e ao povo. E as maiores redes americanas de televisão adotaram um tom patriótico na cobertura dos acontecimentos que haviam marcado a história da nação, com vinhetas que revelavam co­ragem, resistência e guerra, ajudando a criar um clima de união nacional. Via-se patriotismo por toda parte. Bandeiras norte-americanas estavam desfraldadas em todos os lugares, e as fábricas não estavam dando conta dos pedidos. E, ao lado das bandeiras, muito freqüentemente, viam-se cartazes e faixas exultando o espírito de luta e coragem dos americanos.

Também havia cartazes e pessoas apregoando idéias xenofóbicas e racistas, principalmente contra os árabes e os muçulmanos.

Não era possível dizer que o povo norte-americano estava contra os árabes e muçulmanos. A maioria não estava e era perfeitamente ca­paz de fazer a distinção entre árabes, muçulmanos e terroristas, da mes­ma maneira que faria essa distinção entre terroristas e não-terroristas. No entanto, havia aquela minoria xenofóbica fanática que estava se aproveitando dos acontecimentos e da comoção popular. Mesquitas es­tavam sendo apedrejadas; cidadãos americanos, porém muçulmanos ou de origem árabe, estavam sendo hostilizados; e até mesmo pessoas que não eram nem árabes, nem muçulmanos, como alguns hindus, estavam sofrendo discriminações. Um hindu, proprietário de um posto de gaso­lina, havia sido assassinado por um fanático norte-americano. E, apesar dos esforços da polícia e do próprio presidente, as pessoas com raízes no Oriente Médio e ligadas à religião muçulmana estavam se sentindo cada vez mais ameaçadas.

Essas notícias, principalmente as que denunciavam o comporta­mento antiárabe e antimuçulmano que estava se formando, preocupavam sobremaneira Samira e Fefê. A jovem, apesar de não querer demonstrar, estava com medo. Sabia que não poderia ficar trancada em casa eterna­mente. Na segunda-feira, por exemplo, deveria ir buscar os documentos de Fefê. Roendo-se interiormente, ela se perguntava por quanto tempo aquela hostilidade iria continuar. Já Fefê preocupava-se com seu lado apenas, nem sequer percebendo a conotação egoísta de seu pensamento.

E se seu amigo for apanhado com as minhas fotografias? Estarei perdido! — desabafou, desesperado.

Samira olhou para ele e admitiu:

Pode apostar que não estará mais perdido do que ele mesmo, Fefê... E, na verdade, sou capaz de apostar que ele engoliria todas as fo­tografias que estiverem em sua casa unicamente para não comprometer ninguém!

 

Se, para Fefê, aqueles dois dias — sábado e domingo — foram longos, para Samira foi muito pior. Ela já não sabia o que fazer para acalmar o rapaz, para fazê-lo deixar de andar de um lado para o outro, impaciente, resmungando, achando tudo ruim e desagradável.

Fefê alegava que precisava de espaço, precisava ver outras pes­soas, estar ao lado de gente, enfim, que precisava viver. Não se preo­cupava se essas palavras poderiam ou não magoar a moça, não mais se interessava pelo que estava acontecendo no país e no mundo e aborrecia-se quando Samira queria assistir aos noticiários, pois, segundo ele, as notícias eram sempre as mesmas, sobre mortos, desaparecidos, Bin Laden e guerra.

Na verdade, o mundo estava passando por uma terrível tormenta durante aquele fim de semana. As atenções do mundo dividiam-se entre os atentados contra os Estados Unidos, em Nova York e em Washington, e o extremista muçulmano Osama Bin Laden. Bin Laden já era procurado pela justiça norte-americana pelos atentados de agosto de 1998 contra as embaixadas dos Estados Unidos no Quênia e na Tanzânia, que deixaram mais de duzentos mortos e milhares de feridos. Este negava a autoria dos ataques aos Estados Unidos e afirmar que tudo teria sido obra de um grupo de terroristas americanos. Além disso, Bin Laden sempre dissera odiar os Estados Unidos por causa de sua política de manter regimes pró-ocidentais no seio do Oriente Médio.

Contudo, as investigações procedidas pelo FBI e por agências is­raelenses e européias apontavam diretamente para Bin Laden. Por meio de informações obtidas de provedores da Internet, o FBI voltou-se clara­mente ao milionário dissidente saudita.

E, nas ruas, o povo também se dividia, uma parte da população pedindo a paz, e outra, muito mais numerosa e significativa, exigindo a retaliação.

No entanto, o presidente Bush buscava, antes de tomar a decisão de um ataque militar a Bin Laden — o que significa dizer ao Afega­nistão —, o apoio mundial à causa do antiterrorismo. E estava conse­guindo, principalmente pela ação de Tony Blair, primeiro-ministro da Grã-Bretanha, que, imediatamente após os ataques, declarara seu total apoio aos Estados Unidos e manteve contato com as principais lide­ranças européias para discutir maneiras de apoiar os Estados Unidos e enfrentar essa nova conjuntura internacional. Segundo Blair, o ataque dos terroristas aos Estados Unidos não atingia apenas aquele país, mas todos os países democráticos do mundo, uma vez que, entre as vítimas, encontravam-se pessoas de muitas nacionalidades. Com veemência e extrema eficiência, Blair pregou a necessidade de se criar uma aliança de todos os países democráticos para enfrentar e erradicar o terrorismo internacional. Afirmando peremptoriamente que o Reino Unido, assim como os Estados Unidos, não aceita a declaração de inocência de Bin Laden, assegurando que o Ocidente teria provas suficientes para incri­minar o saudita, Blair disse ter certeza de que o presidente Bush tomaria a decisão de um ataque de maneira calculada e inteligente, a fim de não haver peso para pessoas realmente inocentes.

Aos poucos, o cerco político contra o regime talibã, no Afeganis­tão, ia se apertando e isolando cada vez mais o país, já devastado por mais de vinte anos de guerras. O Paquistão fechou sua fronteira com o Afega­nistão, alegando que não admitiria mais refugiados em seu território, e a China fechou completamente sua fronteira com o Paquistão, com medo de que terroristas afegãos fugissem para lá. Em contrapartida, o Talibã fechou o espaço aéreo do Afeganistão.

A guerra era iminente, talvez apenas uma questão de dias, e Samira mal podia acompanhar às notícias, porque Fefê, irritadiço e impaciente, não a deixava prestar atenção à televisão.

Assim, quando chegou a manhã de segunda-feira, a jovem respi­rou aliviada e, antes mesmo que o rapaz se levantasse, dirigiu-se para a casa de Yussef. Era cedo, mas ela ocuparia o tempo com qualquer coi­sa, faria algumas compras — estava mesmo precisando comprar roupas para Fefê —, desde que não ficasse outra manhã inteira agüentando seu nervosismo.

— Depois do almoço, ele poderá sair um pouco, quem sabe isso vai acalmá-lo... — murmurou, já na calçada — Ele está impossível!

Caminhou alguns quarteirões e, fazendo sinal para um táxi, pen­sou, apreensiva: "Será que ele não vai mudar? Será que não vai entender que ele não poderá, pelo menos durante um bom tempo, ter a mesma vida de antes? Se ele continuar assim, poderá ser descoberto... Ele tem de mudar de vida!".

Com um suspiro, indicou para o motorista o endereço de uma loja de moda masculina em Midtown e, acomodando-se melhor no banco, procurou se convencer de que Fefê tinha motivos para estar muito nervo­so e até mesmo bastante descontrolado. Afinal, trocar de vida não é bem exatamente como trocar de camisa... E havia seus pais, seus amigos, todo um entourage de que ele teria de desistir.

"Não deve ser fácil", pensou ela. "No fundo, tenho muita pena dele!"

O enterro de Marialva, na tarde de sexta-feira, foi muito duro para Fernando. Ele sempre se achara um indivíduo perfeitamente pre­parado para enfrentar a morte, mas enganara-se redondamente. E es­tar ali, à beira do túmulo, enterrando sua mulher, sua companheira de tantos anos, sem nenhum dos filhos ao seu lado, era triste demais. Principalmente quando vinha à sua mente a lembrança de que era muito possível que ele não viesse a encontrar os corpos de Fefê, Ma­rina e Gilberto. E Tony... Eles estavam no meio dos escombros do World Trade Center, se é que não tinham sido literalmente pulveriza­dos na explosão.

Fernando chorou muito, sentiu-se muito mal e nem mesmo a pre­sença constante e preocupada de Clara amenizou um pouco tanta dor.

Por que não fui eu, no lugar deles todos? — perguntava-se, entre soluços — O que vai ser de mim a partir de agora?

Foi a muito custo que Clara e os muitos amigos que compareceram ao sepultamento de Marialva conseguiram arrastá-lo do cemitério e fazê-lo sentar-se ao lado de Clara, para que ela o levasse embora.

Não quero ir para casa — disse ele. — Leve-me para um hotel. Não vou suportar ficar sozinho lá. Cada canto, cada objeto vai me lem­brar Marialva, e sei que não vou agüentar. Leve-me para um hotel e fique um pouco comigo.

Clara nada disse, apenas obedeceu. Sabia entender perfeitamente o que Fernando estava sentindo e, como funcionária de confiança e ami­ga da família desde há muitos anos, sabia também que, naquele momen­to, seria a única pessoa que conseguiria fazê-lo relaxar um pouco — ou melhor — que conseguiria convencê-lo a relaxar.

Enquanto deixava o cemitério Getsêmani e rumava para a região da avenida Paulista, onde estavam os melhores hotéis da cidade, Clara tentou imaginar como seria a vida de Fernando a partir de toda aquela tragédia. Ele ficara sozinho. Absolutamente sozinho.

Como se estivesse adivinhando o que Clara estava pensando, Fer­nando murmurou:

Agora, só tenho você...

Você sempre me teve, Fernando... Sabe muito bem disso — as­segurou ela. — E sabe que sempre poderá contar comigo.

Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes e, respirando fun­do, Fernando perguntou:

Você irá para Nova York comigo?

De qualquer maneira eu iria — respondeu Clara. — No estado em que você se encontra, não o deixaria ir sozinho de jeito nenhum! Tanto que, quando reservei sua passagem para amanhã à noite, reservei uma para mim também...

Clara levou-o para o Maksoud Plaza, acompanhou-o até a suíte, obrigou-o a tomar mais um comprimido de sedativo e disse que ficaria ali na ante-sala, até que ele adormecesse.

Não! — exclamou Fernando. — Não saia de perto de mim! Fique aqui comigo, só conseguirei descansar alguma coisa se você estiver o tempo todo ao meu lado!

Fernando descalçou os sapatos, espichou-se sobre a cama e pediu:

Segure minha mão, Clara... Por favor!

Clara sentou-se ao seu lado, segurou sua mão direita e acalentou-o:

Está bem... Fique sossegado. Estarei aqui, Fernando. Ao seu lado, pelo tempo que você quiser... Aliás, como sempre estive...

 

Houve alguma dificuldade para João Antônio se fazer entender pelo recepcionista do hotel em Nova York, onde Fefê estivera hospedado. Foi só depois de alguns angustiantes minutos que o funcionário conseguiu entender que aquele homem que estava telefonando de São Paulo não falava uma só palavra em inglês e que seria necessária a ajuda de um intérprete. Quando, finalmente, uma voz feminina atendeu com um sota­que tipicamente carioca, João Antônio respirou aliviado.

Antes do atentado, vocês tiveram um hóspede chamado Carlos Fernando Henriques. Por favor, gostaríamos de ter alguma notícia sobre ele... — disse.

São parentes? — perguntou a mulher.

Não. Somos amigos deles. Não temos quaisquer notícias e esta­mos preocupados.

Após uma breve pausa, a mulher revelou:

Essas informações devem ser dadas pelo Consulado do Brasil em Nova York, senhor. Nós só podemos dizer que ele esteve hospedado aqui, chegou no dia 10, saiu de manhã no dia seguinte e não voltou mais.

— Ele recebeu algum telefonema enquanto esteve aí? Ou ligou para alguém?

Houve outra pausa, e a mulher respondeu:

Não estamos autorizados a dar esse tipo de informação, senhor. Sinto muito.

João Antônio fez uma careta, agradeceu com má vontade e desli­gou. Voltando-se para Flávio, comentou:

Eles não informam nada. Nada além daquilo que já desconfia­mos. Ele simplesmente desapareceu.

Com um suspiro, acrescentou:

E alguma coisa me diz que ele desapareceu com o meu di­nheiro...

Olhando intensamente para seu chefe, Josiane avisou:

Sou capaz de apostar que, se ele fez isso, ainda está escondido em Nova York. Com a confusão que está reinando naquela cidade, ele não deve ter conseguido fugir para outro país. Os vôos estão atrapalhados, tudo está numa balbúrdia incrível...

Você tem razão, Josie — concordou João Antônio. — E esta é a minha esperança. Se esse rapaz está ainda em Nova York, pode estar certa que ele está com essa tal de Samira, e nós vamos encontrá-lo!

Voltando-se para Flávio, acrescentou:

Essa moça que falou comigo ao telefone, por exemplo... Tenho certeza de que ela sabe muito mais do que me disse. E, diante de uma nota de cem dólares, ela há de abrir o bico!

Levantando-se, murmurou:

De qualquer maneira, talvez seja interessante tentarmos alguma coisa com a família dele. Pode ser que saibam o telefone de Samira...

Sem esperar pela ordem, Josiane apanhou o número da residência de Fefê em sua agenda e ligou. Depois de alguns momentos, desligou e afirmou:

Não atendem... É estranho...

Tente na empresa do pai dele — sugeriu Flávio.

A moça fez a ligação e, quase um minuto depois, anunciou:

Caiu numa secretária eletrônica. A empresa está fechada por luto. A mãe de Fefê morreu...

Flávio fez uma careta, e João Antônio soltou um palavrão.

Isso é péssimo — disse ele. — Significa que realmente aconte­ceu uma desgraça, e a velha não agüentou...

Deu alguns passos pelo escritório e insistiu:

Mas de maneira nenhuma afasta a possibilidade de Fefê ter fugi­do com meu dinheiro e essa tal de Samira! E só há, mesmo, uma maneira de descobrir: indo até lá.

Quer que providencie o vôo, chefinho? — perguntou Josiane. — Vão vocês dois?

Sim. Mas, antes de qualquer coisa, veja se consegue, por meio daqueles nossos amigos da Polícia Federal, descobrir quem está viajando para os Estados Unidos por estes dias. Tenho certeza de que o pai de Fefê irá para lá, principalmente agora que a mulher morreu. E, se ele tiver alguma pista do filho ou da namorada dele, será uma bênção para nós!

Mathew e Natalie passaram a manhã do sábado tentando localizar Samira. Natalie, teimosa, não se conformava de perder o contato com a amiga, especialmente com uma amiga que poderia vir a ser extremamen­te útil para o trabalho que ela planejava desenvolver sobre a vida das pretendentes a modelo nos Estados Unidos.

Ela tem de estar em algum lugar! — disse a moça, procurando desesperadamente nos catálogos telefônicos da cidade e arredores. — Ninguém pode desaparecer dessa maneira, e menos ainda uma moça que pretende ser top model!

Muita coisa pode ter acontecido com ela, querida — ponderou Mathew. — Por exemplo, ela pode até ter sido vítima de um acidente... Pode ter mudado de país, voltado para o Brasil...

Eu saberia — afirmou Natalie, categórica. — Se Samira tivesse voltado para o Brasil, com certeza teria falado para alguém, e o comen­tário chegaria aos meus ouvidos. Da mesma maneira, se tivesse ocorrido algum acidente ou se ela tivesse resolvido tentar a sorte na Europa.

Mathew suspirou, desalentado. Aquela busca absolutamente infru­tífera já o estava exasperando e ele tinha de se controlar para não confes­sar para Natalie que estavam perdendo tempo e que ela ganharia muito mais se fosse procurar outra fonte.

Pendurada pela enésima vez ao telefone, finalmente Natalie falou com alguém, abriu um sorriso e, ao desligar, anotou alguma coisa num pedaço de papel, afirmando:

Acho que tenho uma pista. Consegui contatar outra moça, ou­tra pretendente a modelo, que trabalhou com Samira num clube notur­no. Talvez o proprietário ou o gerente de lá saiba alguma coisa.

Mostrou a anotação que fizera a Mathew e indagou:

Conhece este lugar?

Mathew leu a anotação e, balançando afirmativamente a cabeça, respondeu:

Sim. Trata-se de um clube bastante mal-afamado de Manhat­tan. Fica no Lower East Side, uma área habitada por imigrantes de baixa renda. De dia é um camelódromo e de noite é o point da boêmia nova-iorquina. Esse clube, o Nude Star, fica na rua mais importante, a Ludlow. Duvido que esteja aberto a esta hora; por isso, nem adianta telefonar. O melhor será darmos um pulo lá hoje à noite.

Com um sorriso, acrescentou:

Se você não conseguir descobrir nada, o mínimo que pode acontecer é aproveitarmos a noite de sábado bastante bem. Na Ludlow ficam os bares e cafés mais badalados de Nova York, como o Max Fish ou o Bono Jox, que sempre recebe estrelas famosas do cinema e da Broadway. O problema é que a cidade está vivendo o maior drama de sua existência e isso pode significar que não haverá qualquer movimento por lá ou, mes­mo, que tudo esteja fechado...

Não custa tentar — argumentou Natalie. — E, de qualquer ma­neira, é a única coisa que temos...

Mathew sorriu, deu um beijo em Natalie prometendo que, por ela, faria qualquer coisa, iria a qualquer lugar.

Ficarei feliz se conseguir rever Samira — revelou Natalie. — Não sei por quê, mas essa moça sempre despertou minha curiosidade... Sempre tive a impressão de que ela vive uma vida cheia de mistérios e de emoções...

Retribuindo os carinhos de Mathew, arrematou:

Ela me passou uma incrível sensação de força espiritual... E eu gosto de pessoas que são espiritualmente fortes.

 

Como um autêntico casal em lua-de-mel, Donovan e Anne Marie gostariam de ter a oportunidade de passar aquele fim de semana — o primeiro em que estariam juntos, começando uma nova vida — sem fazer outra coisa que não fosse a materialização de um amor inesperado, que surgira sem qualquer aviso, e que, no entanto, se manifestava tão intensamente. Entretanto, a situação não o permitia. Nova York ain­da estava de pernas para o ar, a confusão reinava, o medo imperava e, acima de tudo, a perplexidade tomava conta de todos. Ninguém mais podia dizer que estava em segurança, não havia quem pudesse garantir que estaria vivo no instante seguinte, tendo em vista os acontecimentos do dia 11 de setembro. O conceito de segurança e a impressão de pode­rio absoluto, de que tanto se orgulhavam os americanos, tinham vindo abaixo junto com as Torres Gêmeas.

Passava um pouco de sete horas da manhã quando Donovan, já vestido, acordou Anne Marie com um beijo, avisando:

Estou indo para a agência, querida. E, como já é uma rotina, não sei a que horas poderei voltar...

O importante é que volte, Steve — ressaltou a mulher. — Não saberia mais viver sem você...

Donovan sorriu. Ele também tinha certeza de que jamais pode­ria enfrentar a vida sem Anne Marie e, de forma extremamente egoísta, agradecia aos céus o incidente dos explosivos, pois este permitira que ele a conhecesse.

Fique tranqüila — disse o agente, beijando-a mais uma vez. —

Eu voltarei. E farei de tudo para não ter de trabalhar amanhã. Afinal, é domingo, e nós dois merecemos pelo menos um dia de repouso por sema­na, não acha?

Algumas horas com você já representam uma vida inteira para mim, Steve — reiterou Anne Marie. — Não se preocupe. Faça seu tra­balho, não mude seu ritmo nem sua rotina. Nossa vida terá de ser uma recompensa pelo nosso esforço, todos os dias, até o final dos tempos. Você é uma pessoa importante para a segurança de todos nós. O máximo que posso pedir é que tome cuidado e não se arrisque inutilmente.

Pela mente dos dois, num átimo, passou a imagem de centenas de pa­ramédicos e bombeiros sendo soterrados pelo desabamento da torre sul...

Não há esse perigo, querida. Meu trabalho não está sendo nas ruas, e o máximo que pode acontecer é eu ter uma indigestão por causa do péssimo café que servem lá na agência...

Contudo, ambos sabiam que o perigo não era somente esse. Na véspera, pelo menos uma centena de boatos sobre ameaças de bombas e de atentados tinha chegado ao sistema de telefonia do FBI. Apesar de toda a segurança que sempre cercava a agência, jamais poderia ser afas­tado o risco de um atentado lá mesmo, até provocado por algum funcio­nário desequilibrado ou, simplesmente, simpatizante da causa palestina, por exemplo...

Donovan se despediu e desceu para a garagem do prédio para apa­nhar seu automóvel, já imaginando que naquele sábado estaria com todos os seus instantes tomados, analisando as listas de passageiros que chegavam aos Estados Unidos nas próximas viagens internacionais. Seria um trabalho árduo e que muitos outros analistas julgavam ser absolutamente inútil, mas que, na verdade, era necessário. Era a maneira mais simples de procurar por possíveis terroristas ou, até mesmo, por pessoas que de alguma manei­ra pudessem estar ligadas ou relacionadas, direta ou indiretamente, com o atentado que os Estados Unidos tinham acabado de sofrer.

Enquanto Donovan saía da garagem para mergulhar no ainda bas­tante caótico trânsito de Nova York, Anne Marie tratava de se levantar para começar uma rotina que ela quase já tinha esquecido: arrumar a casa não apenas para ela, mas também para o homem que amava.

Com um sorriso, começou pelo quarto de dormir, onde a cama mais parecia um campo de batalha que qualquer outra coisa, as roupas espalha­das pelo chão, atiradas ali logo no começo da noite.

"Chega a ser egoísmo de minha parte estar me sentindo feliz numa ocasião como esta", pensou. "Com tanta desgraça, com tanta dor nesta cidade..."

No entanto, não poderia se culpar por ter encontrado a felicidade justamente nessa época e, apanhando uma camisa de Donovan que tinha ido parar embaixo da cama, murmurou:

— Só temos de pedir a Deus que não haja uma guerra mundial por causa de tudo isso. Temos de pedir a paz; precisamos encontrar uma solu­ção para que não haja tanta violência.

Donovan ficou surpreso ao encontrar Steinberg em sua sala, com uma expressão terrível, com aspecto de velório.

Você parece estar muito mal... — comentou Donovan.

Amina morreu — disse Steinberg. — E por minha culpa. Não vou me perdoar nunca...!

Com lágrimas nos olhos, e por várias vezes lutando para evitar cair no choro, Steinberg contou o que tinha acontecido. Ao terminar, avisou:

Castells disse que eu deveria tirar o dia de folga, beber, me recu­perar... Mas sei que isso não vai adiantar nada. Por isso estou esperando por você. Quero que me dê alguma coisa em que eu possa ajudar. É im­possível que não haja alguma coisa que eu possa fazer e que me permita esquecer, ao menos um pouco, o que aconteceu.

Enxugando com as costas da mão direita a lágrima que, finalmente, conseguira escorrer por seu rosto, lamentou com um gemido:

Minha missão era protegê-la... E não consegui!

Donovan bateu amistosamente nas costas do companheiro, mur­murou algumas palavras com a intenção de confortá-lo e, apanhando uma pasta cheia de papéis, entregou-a para Steinberg, aconselhando:

Também acho que mergulhar rio trabalho é a melhor solução quando se tem de enfrentar um momento como esse, meu amigo. Por isso, vá para sua sala e tente estudar esta pasta. Aqui você tem cópias de duas relações: uma de pessoas que estão desaparecidas após o atentado e a outra contém a listagem das pessoas que estarão chegando aos Estados Unidos nos próximos vôos, vindos do Brasil. Veja se consegue estabelecer alguma relação entre as duas.

Antes que Steinberg dissesse qualquer coisa, Donovan explicou:

Estou lhe entregando esta lista de propósito. O Brasil é um país aliado e não é considerado um centro fornecedor de terroristas. Por isso mesmo, há pouca possibilidade de constar, nessa listagem, alguma coisa suspeita. Contudo, a verificação precisa ser feita e, se você a puder fazer, já vai me ajudar bastante. E, com certeza, também se ajudará.

Steinberg resmungou um agradecimento, sobraçou a pasta que este lhe entregara e retirou-se, dirigindo-se para sua sala.

Sabendo do estado de espírito em que Steinberg se encontrava, Castells pediu para sua assessora de pesquisas, Priscilla, ajudar o agente. Sua intenção, na verdade, era impedir que ele, distraído e ainda muito abalado com a morte de Amina, deixasse passar alguma informação im­portante. Assim, menos de cinco minutos depois de ter se instalado para começar a estudar as listas, Steinberg viu, agradavelmente surpreso, a moça entrar em sua sala trazendo uma grande bandeja de esfihas e duas garrafas de refrigerante.

— O chefe achou que você poderia estar com fome — comentou ela, sorrindo. — E, se quiser ajuda com essas listas...

Como Priscilla já imaginava, Steinberg atacou as esfihas como se estivesse morto de fome e, enquanto ele as devorava uma atrás da outra, ela começou a ajudá-lo na análise das listagens que Donovan lhe entregara. Aliás, um trabalho extremamente maçante, enfadonho e cansativo.

Acho que, se tivesse de fazer isso por uma semana inteira, iria parar num hospício — comentou Priscilla, após pouco mais de uma hora de verificação das listagens. — Não pode haver coisa mais horrível para se fazer! Meus trabalhos de pesquisas são, no mínimo, mais interessantes!

Mas é preciso, Priscilla — retrucou Steinberg. — De repente, encontramos um suspeito... E evitamos outro atentado como o de terça- feira...

A moça suspirou e, com um gesto de desalento, voltou a apanhar a listagem que tinha largado sobre a mesa, comentando:

O pior de tudo é a semelhança desses nomes brasileiros... Ferrei­ra, Pereira, Pedreira... Isso atrapalha um bocado!

Mostrando uma das folhas a Steinberg, acrescentou:

Ainda bem que há casos que são patentes... Como esse aqui, por exemplo. Está claro que alguém veio procurar por outro alguém... Há um desaparecido chamado Carlos Fernando Henriques, e alguém, que vai chegar amanhã, chamado Fernando Henriques.

Com um sorriso, arriscou:

Aposto dez contra um que há uma relação entre essas duas pes­soas! E uma relação muito próxima!

Steinberg assentiu com um sinal de cabeça, recomendou-lhe que anotasse os nomes e, depois de alguns segundos, perguntou:

Tem algum histórico desse caso? Alguma informação comple­mentar?

Nada de importante. Apenas que esse tal de Carlos Fernando não voltou ao hotel em que estava hospedado. Ninguém pagou a conta nem foi procurar por seus pertences. Parece não haver dúvida de que ele foi mais uma vítima do atentado.

E, provavelmente, esse caso não representa nenhum interesse para nós. Parece tratar-se de um nome bem brasileiro; não há qualquer suspeita. Se houvesse algum nome árabe na história...

Priscilla leu com mais atenção as informações sobre o caso na lista de desaparecidos e, pondo de lado aquela folha, confirmou:

Não... Não há mais nada. Apenas consta que ele recebeu a visi­ta de uma moça que ficou em seu apartamento até por volta de meio-dia e foi embora chorando muito.

— Um drama que deve ter se repetido milhares de vezes durante o dia 11... — murmurou Steinberg. — Alguém esperando notícias, al­guém se desesperando, vendo o mundo ruir juntamente com as Torres Gêmeas...

 

Fefê examinou com desconfiança os documentos que Samira lhe entregara.

Mas estou completamente diferente nessa fotografia! — excla­mou. — É outra pessoa! Não sou eu de maneira nenhuma!

A moça deu uma risada e, levando-o pela mão até diante do espe­lho do quarto de dormir, explicou:

Você está esquecendo que tem de usar a barba postiça até que a sua cresça, querido!

Obrigou-o a colocar a barba e os bigodes postiços e, pondo ao lado do espelho o documento com a fotografia, perguntou:

Está melhor agora? Você se reconhece nessa nova pessoa?

Um sorriso iluminou a fisionomia de Fefê e ele murmurou:

Realmente... Agora sou eu...

Apanhando o documento em sua mão, corrigiu:

Melhor dizendo, agora é esse tal de Ferdinando Ibanez... Espa­nhol, solteiro, 24 anos de idade, publicitário...

Com apreensão, olhou para Samira e indagou:

Não está muito próximo? Fernando e Ferdinando... Também publicitário...

Acho que isso foi de propósito — respondeu Samira. — Talvez seja mais fácil para você se acostumar.

Deu uma nova risada e acrescentou:

Já imaginou se ele lhe pusesse um nome completamente dife­rente e, como profissão, médico?

Fefê foi obrigado a admitir que Samira tinha razão. Sua adaptação à nova identidade seria muito mais complicada se quem lhe falsificara os documentos tivesse inventado o nome, por exemplo, de Lazslo, húngaro e médico...

Sim... — consentiu. — Devem existir certas normas nessa his­tória de falsificar documentos... A nova identidade tem de ser ao menos compatível com a anterior; caso contrário, seria inevitável um conflito complicadíssimo entre a personalidade anterior e a nova...!

Voltando a sorrir, comentou:

Agora, poderei ter mais liberdade! Não preciso mais ficar preso em casa o dia inteiro!

De qualquer maneira, Fefê... — retrucou Samira, com expressão preocupada — ...você não deve abusar. Será melhor não aparecer demais e não creio ser aconselhável você freqüentar qualquer lugar onde possa haver brasileiros. Especialmente lugares onde você corra o risco de ser reconhecido!

Ora! — argumentou ele, com um muxoxo. — Quem você está pensando que sou? Um artista famoso? Alguém tão destacado assim que ve­nha a ser reconhecido aqui em Nova York? E, ainda por cima, usando barba e bigode, como um autêntico espanhol? Nada disso, Samira! Já agüentei demais essa prisão! Quero sair, fazer alguma coisa, ver gente... Quero ter a sensação de estar realmente vivo e não sob o entulho das Torres Gêmeas!

Samira deu de ombros. Que ele fizesse o que bem entendesse, ora bolas! Exatamente esse tema tinha sido o motivo de todas as desavenças e exasperações do fim de semana... Se Fefê estivesse querendo sair, que saís­se, que fosse passear! Mas que corresse o risco sozinho! Ela não estaria por perto para ser indiciada como cúmplice de falsificação de documentos ou qualquer outra coisa semelhante. Aliás, fora exatamente isso que Yussef alertara quando lhe entregara os documentos:

Não se exponha, Samira. No princípio, até que ele esteja per­feitamente adaptado à nova identidade, é melhor que você não esteja por perto. Se a polícia o pegar, será problema dele. Mas, se pegar vocês juntos, você terá muito trabalho para explicar que não tem nada a ver com o assunto!

Mas ele só vai usar essa identidade falsa durante uns poucos dias! — mentira a moça. — Só até poder resolver os problemas com a ex-mulher e poder voltar para o Brasil!

Yussef sorrira e, acariciando o rosto de Samira, desmentiu:

Sei que isso não é verdade, Samira. Mas não importa. Tome cuidado e não se exponha. De maneira nenhuma, entendeu?

E, naquele instante, vendo a reação de Fefê quanto à possibilidade de estar correndo algum perigo de ser reconhecido e percebendo o grau de absoluta irresponsabilidade do rapaz, a moça era obrigada a admitir que Yussef estava certo. Não seria impossível que Fefê fizesse ou falasse alguma coisa que o denunciasse.

Se você quiser sair, esteja à vontade — disse ela. — Mas eu não vou junto. Tenho muita coisa para arrumar aqui em casa e, além do mais, não acho que seja prudente você aparecer na rua, assim, usando uma bar­ba postiça que lhe foi dada apenas para tirar a fotografia...

Não vou precisar usar a barba postiça — teimou Fefê. — Minha barba natural já está suficientemente grande para que eu possa dispensar esse porco-espinho na cara!

Esforçando-se para não deixar transparecer a irritação que a infan­tilidade de Fefê lhe causava, Samira suspirou e concordou:

Está certo, querido... Saia. Vá passear e espairecer. Assim, no mínimo, você vai melhorar um pouco o seu humor... Só lhe peço que tome cuidado. Seria muito idiota, por causa de um passeio que poderia perfeitamente esperar um pouco mais, pôr a perder todo esse esforço!

Resmungando que não estava de mau humor e que não precisa­va que ela cuidasse dele como se fosse sua mãe, Fefê foi para o quarto se trocar.

Exatamente no instante em que ele estava apanhando uma camisa no guarda-roupas, o telefone tocou. O rapaz ouviu Samira atender, com entonação de grande alegria:

Natalie! Mas que surpresa! Como foi que você me descobriu?

Samira ouviu a resposta da amiga e afirmou:

Mas é claro que pode! Não vou sair! Estarei esperando por vocês aqui em casa! Será ótimo revê-la!

Deu-lhe o endereço, despediu-se e, ao desligar, viu Fefê, avisando-o:

Uma amiga minha, do Brasil, virá me visitar daqui a pouco, com o namorado. Será até bom que você não esteja, querido. Ela mora em São Paulo e, de repente...

Fefê riu, repetiu que ele não era assim tão famoso a ponto de uma moça vinda do Brasil reconhecê-lo e, jogando a mecha imaginária de cabelo para trás, assegurou:

Mas, de qualquer maneira, vou voltar no fim da tarde. Quero fazer umas compras e devo demorar um pouco. Levarei seu celular e você me telefona...

Isso é perigoso! — exclamou Samira. — Se alguém descobre o número de meu celular lá no Brasil e telefona... Se você atender, tudo estará perdido!

Fefê anuiu com a cabeça. Samira estava certa. Havia pelo menos uma pessoa a quem ele dera o número do celular de Samira: Gustavo. E havia João Antônio que poderia descobrir esse número.

Tem razão — disse ele. — Eu telefono antes de vir para cá. É bem mais seguro.

Acabou de se vestir, deu um beijo de despedida na moça e, lépido, ganhou o corredor.

Sentia-se como um prisioneiro a quem acabara de ser concedida a liberdade.

No saguão de entrada do edifício, olhou-se no espelho e sorriu. Com um novo penteado e a barba já bem crescida, sua fisionomia estava bastante mudada e ele mal podia se reconhecer.

— Minha mãe não me reconheceria — murmurou ele, deixando o prédio.

Caminhou sem rumo, olhando para todos os lados, aproveitando a liberdade, porém ainda um pouco preocupado, tendo a constante im­pressão de que estava sendo observado ou seguido. Somente depois de ter percorrido alguns quarteirões se acalmou um pouco, adquirindo mais segurança e a certeza de que não seria possível ser reconhecido por quem quer que fosse, ali em Nova York, no meio de uma multidão de pessoas e tão longe de São Paulo.

Entrou em várias lojas, viu vitrines, foi a uma livraria e comprou um livro, fez um lanche, tomou café... E viu pessoas, viu o movimento, fartou-se de observar tudo, conscientizando-se de que era, de fato, a pri­meira vez que saía à rua simplesmente para passear, desde que chegara a Nova York.

Por um momento, pensou em tomar um táxi e ir até o local do atentado, queria ver de perto o que restara das Torres Gêmeas, mas logo desistiu da idéia. Na realidade não haveria nada de diferente para ver ali, tudo fora transmitido pela televisão; além do mais, Fefê não tinha muita certeza de como reagiria quando visse os escombros e se imaginasse no meio de todo aquele entulho, esmagado ou, pior ainda, vivo, ferido, espe­rando um socorro que jamais chegaria a tempo.

Acima de tudo, não poderia desprezar o risco de ter o azar de encontrar alguém que estivesse procurando por ele, por seus irmãos ou por Tony.

"Talvez até mesmo meus pais...", pensou ele. "Ou o João Antô­nio..."

Lembrando-se dos pais, sentiu uma pontada de remorso e de sauda­de. Como estariam eles reagindo à tragédia que se abatera sobre a família? Teve uma súbita e desesperadora vontade de ligar para sua mãe, de lhe dizer que ele, pelo menos ele, tinha sobrado, só que não poderia aparecer por um bom tempo.

"Será que ela compreenderia? Será que seria capaz de guardar o segredo?", perguntou-se Fefê.

A muito custo, dominou-se. Não, não podia telefonar. Não podia correr nenhum tipo de risco. Quem poderia garantir que João Antônio, por intermédio de seus contatos, não tivesse mandado grampear os tele­fones de sua casa e do escritório da empresa?

— Aquele bandido é capaz de qualquer coisa — murmurou Fefê. — E, com tanto dinheiro envolvido, realmente seria capaz de qual­quer medida!

Entrou em outro café, sentou-se a uma das mesas perto da por­ta e, enquanto esperava a garçonete trazer-lhe uma coca-cola e uma torta de maçã, examinou o relógio. Eram quase cinco horas da tarde. O tempo passara rápido, ele saíra do apartamento de Samira pouco depois de uma hora!

"Ela já deve estar liberada", pensou Fefê. "Mas vou ligar antes de voltar..."

Terminou de comer, pagou, saiu do café e dirigiu-se a uma cabina telefônica com o objetivo de ligar para o apartamento de Samira.

No entanto, justamente aquele telefone não estava funcionando, e outra cabina, a pouco mais de cinqüenta passos dali, estava ocupada e mais cinco pessoas aguardavam sua vez de utilizá-la.

Fefê deu de ombros, pensando: "Ora, vou direto para lá. A esta altura, a visita já deve ter ido embora e, de qualquer maneira, perguntarei ao porteiro na hora que chegar. Com certeza, ele saberá dizer se Samira já está sozinha. E sempre poderei falar com ela pelo interfone".

Menos de meia hora depois que Fefê deixara o apartamento, Nata­lie e Mathew chegaram.

O reencontro foi carregado de emoção; as duas amigas se abraça­ram, perguntaram-se sobre as novidades, contaram, o que tinham feito desde a última vez em que tinham se visto. Depois, entraram no inevitá­vel assunto dos atentados e da tragédia do World Trade Center.

Temi que você estivesse lá — comentou Natalie. — Afinal, havia inúmeros escritórios de agências no World Trade Center...

Com um sorriso triste, Samira admitiu:

Acho que jamais estaria num desses escritórios... Minha carreira nunca chegou a decolar a esse ponto.

Com um suspiro, acrescentou:

Apesar de ter a ambição e a esperança de me transformar, um dia, numa top model, creio que falta alguma coisa em minha personalidade para tanto...

Sem querer, Samira esbarrara no verdadeiro motivo que levara Na­talie a procurá-la e esta, aproveitando a oportunidade, explicou-lhe que estava começando a desenvolver os estudos para uma grande matéria so­bre a vida das pretendentes às passarelas internacionais da moda.

Imagino que seja um assunto de interesse para muitas pessoas — argumentou Natalie, ao terminar a explanação de seu projeto. — Hoje em dia, há uma grande tendência, entre as adolescentes, de procurar es­colas de modelos. Porém, sabe-se que apenas umas poucas conseguem algum sucesso, e são muito raros os casos de verdadeiro estrelato.

Samira meneou afirmativamente a cabeça, concordando:

É verdade. A maioria das moças frustra-se, e elas, envergonha­das e humilhadas pela derrota, não voltam para casa. Muitas caem nas drogas ou na prostituição. Outras, no desespero de manter as medidas exigidas pelas agências de modelos, acabam doentes, verdadeiros esque­letos humanos.

Baixando um pouco a voz, confessou:

Eu mesma passei por uma fase assim... Cheguei a perder quase quinze quilos. Quando percebi que teria de pôr silicone nos seios, pois eles estavam caindo depois de tanto emagrecimento, desisti. Resolvi que seria mais aconselhável eu tentar me transformar numa modelo fotográ­fica, em que as formas mais cheias, mais curvilíneas, são preferidas... De­pois, se for o caso, serei uma modelo de passarelas.

E drogas, Samira? Você chegou a usar ou usa alguma droga? — indagou Natalie.

E, sem jeito, desculpou-se:

É claro que você não precisa responder, se não quiser... Aliás, acho que eu deveria ter feito pergunta de outra maneira, de forma mais política...

Samira riu e respondeu:

Não se preocupe, Natalie. Nunca usei drogas. Nenhuma.

Voltando a ficar séria, prosseguiu:

Na verdade, experimentei maconha umas duas ou três vezes e cheirei cocaína uma vezi Passei mal, muito mal! Com a maconha, achei que ia vomitar a alma e com a cocaína... Tive a impressão de que meu peito iria explodir, tal a forma como meu coração batia. Depois disso, nunca mais.

Por muito pouco, Samira não se deixou levar pelo entusiasmo que a visita de Natalie lhe causava e não lhe contou que seu envolvimento com drogas tinha sido outro. Ela teve de se controlar para não falar de Erik, do tráfico, do papel sujo que ela representara levando drogas — princi­palmente o superecstasy — para suas colegas e arrumando documentos falsos para os vapores do holandês quando eles se metiam em encrencas e tinham de abandonar o país às pressas.

A conversa prosseguiu, Samira falando sobre sua vida, evidente­mente omitindo os trechos mais comprometedores ainda que não escon­desse as dificuldades pelas quais tinha passado. Não disse nada a respeito de ter sido obrigada a se prostituir para poder sobreviver durante as épo­cas mais difíceis, mas não se negou a responder afirmativamente quando Natalie perguntou sobre ela se despir nos clubes noturnos.

Eu precisava sobreviver, Natalie — disse Samira, desculpando-se. — E, muitas vezes, o sol não brilhou para mim. Aceitei um emprego de stripper num clube noturno; afinal de contas, olhares não arrancam pedaços...

Com um sorriso, concluiu:

E acredito que qualquer mulher gosta de ser admirada e desejada pelos homens!

Já eram quase seis horas quando a porta de entrada do apartamento se abriu e, para surpresa e susto de Samira, Fefê entrou.

 

Depois de várias horas analisando, revisando e tentando encontrar correlações entre os incontáveis nomes das listas que recebera de Dono­van, Steinberg já estava completamente exasperado.

Continuo achando que esse trabalho é absolutamente inútil — re­clamou o agente. — Ficar procurando uma relação entre nomes de desapa­recidos e de passageiros de vôos que vêm para cá... É trabalho de chinês!

Mas acredito que seja necessário — contestou Priscilla. — O FBI precisa saber quem está vindo para os Estados Unidos nesta época difícil e a razão dessa viagem. Principalmente as pessoas que estão vindo para Nova York!

Isso só será possível se perguntarmos a cada uma dessas pessoas suas razões para viajar — ponderou Steinberg. — E pode apostar que a maioria vai dizer que veio para cá a negócios! Uma em cada duas ou três mil dirá que está vindo para Nova York com a finalidade de reconhecer um cadáver ou de ter notícias mais confiáveis sobre o paradeiro de um parente ou conhecido...

Desanimado, acrescentou:

Até agora, só encontrei um passageiro dando como motivo o atentado...

Mostrou uma anotação que fizera e confirmou:

Este tal Fernando Henriques... Parece que seus três filhos e o genro estão desaparecidos.

Como vê, seu trabalho trouxe algum resultado — murmurou Priscilla, com um sorriso.

Por sua vez, durante o dia todo, Donovan não fizera mais do que se dedicar à análise das informações que chegavam às suas mãos, pro­venientes do verdadeiro exército de agentes que buscavam, em todo o mundo, ligar nomes e fotografias a possíveis terroristas ou a pessoas que, relacionadas de alguma maneira com prováveis suspeitos, pudessem aju­dar a definir com precisão os autores dos atentados a Nova York e ao Pen­tágono, bem como fornecer indicações que permitissem prever e prevenir novos atos semelhantes.

No entanto, não era somente isso: havia a análise de complicadas operações bancárias envolvendo diversos países, inúmeras instituições financeiras, uma miríade sem fim de empresas e pessoas físicas com os nomes mais esquisitos que se pudesse imaginar. E nomes também extre­mamente conhecidos tanto na sociedade quanto nos meios econômicos.

Mas como é que se explica toda essa movimentação na conta bancária deste homem? — perguntou Donovan, em certo momento. — Durante um ano ele não movimentou mais que vinte mil dólares, no total. De repente, entram duzentos mil e, no dia seguinte, saem cento e oitenta mil...!

Entregando o caso a um de seus assessores, recomendou:

Levante tudo o que puder a respeito deste tal de Edward Müller. Algo me parece estar cheirando mal...

Menos de quinze minutos depois, o assessor voltou e disse:

Müller morreu há dois anos. Esta conta não poderia estar sendo movimentada...

Anote todos os dados referentes ao caso e mande chamar o ge­rente da agência bancária. Ele vai ter de explicar como é que um defunto assina ordens de transferência ou cheques!

Inúmeros outros casos semelhantes ou quase semelhantes foram detectados durante o dia, dando um trabalho monstruoso para a equipe de agentes especializados na área econômica e contábil. E cabia a Dono­van toda a carga da coordenação.

Como se tudo isso não bastasse, era ele que tinha de atender os jornalistas mais importantes e, em especial, aqueles que estavam fazendo pesquisas e coberturas justamente sobre essa área, ou seja, a área que com­preendia a estratégia econômica dos terroristas. Esse trabalho deveria, na verdade, ter sido feito no correr de vários anos anteriores, pelo menos desde que Osama Bin Laden tinha declarado seu ódio mortal pelos Esta­dos Unidos e começara a praticar e apoiar atos terroristas que só seriam possíveis com a alocação de verdadeiras fortunas. O espírito capitalista, porém, impedira certas verificações... O dinheiro entrava em contas ban­cárias, era utilizado; as importâncias eram significativas e, ainda assim, ninguém fizera muitas perguntas. Além disso, havia direitos garantidos pela Constituição, havia a individualidade e a privacidade a serem res­peitadas... E os Estados Unidos eram um país livre, no qual a liberdade sempre fora o bem mais precioso. Individualidade e privacidade faziam parte integrante do conceito americano de liberdade.

Entretanto, desde aquele fatídico dia 11 de setembro, muita coisa ha­via mudado, e o governo, por intermédio do FBI, principalmente, estava desesperadamente interessado em saber detalhes da vida de cada um dos que estavam em solo americano, bem como daqueles que, não estando nos Esta­dos Unidos, de alguma maneira se relacionavam com o país. Os americanos, de repente, tinham ficado com medo da própria liberalidade e liberdade.

Entre os muitos jornalistas famosos que telefonaram para Donovan querendo saber novidades, o agente devotou uma maior atenção a Mathew Jackson, que ele conhecia e respeitava havia já algum tempo. Mathew era preciso, conciso, objetivo, não gostava de perder tempo e, assim, também não queria que os outros perdessem tempo com ele. Ainda na parte da ma­nhã, enviara a Donovan um e-mail explicando que estava desenvolvendo uma reportagem sobre a influência dos atentados na economia mundial e que apreciaria receber algumas informações e, principalmente, algumas opiniões. Donovan digitara uma resposta, desculpara-se por não ter ainda muita coisa a declarar e, já no fim da tarde, mais por delicadeza do que com um objetivo definido, enviara-lhe a relação, por e-mail, dos desaparecidos brasileiros, uma lista que o Consulado do Brasil lhe havia mandado, com nome e fotografias de todos. Anexou a listagem dos passageiros que acaba­vam de chegar ou que estavam por chegar do Brasil, alegando que, como sabia que Mathew tinha estado nesse país por algum tempo, talvez tivesse interesse em dar uma olhada em todos aqueles nomes.

 

- É uma estranha sensação de déjà-vu... — murmurou Natalie quan­do entrou em casa, precedendo Mathew. — Só não estou conseguindo localizar a imagem... E isso está me irritando!

É impressão sua, querida — disse o jornalista. — Apenas uma impressão e nada mais!

A moça balançou negativamente a cabeça e insistiu:

Não, Matt. Tenho certeza de que já o vi antes. E aquele jeito de jogar a cabeça como se estivesse afastando um pouco de cabelo da testa... Mas ele estava com cabelos curtos... E, ao mesmo tempo, tenho certeza que ele me reconheceu.

Sem dar tempo a Mathew de contestar, Natalie perguntou:

Você não achou que ele ficou um pouco atrapalhado no instante em que nos viu? E a atitude de Samira?

Não notei nada de anormal — confessou Mathew. — Samira disse que ele estava afônico e com dor de garganta. Por isso, o rapaz se recolheu ao quarto logo após ter chegado.

Natalie riu com uma ponta de escárnio e ponderou:

Pois é justamente tudo isso que está me deixando intrigada, Matt. O rapaz chegou, entrou na sala e me pareceu ter se assustado. Não disse uma palavra, nem mesmo nos cumprimentou. E Samira explicou que ele estava doente, com laringite e afônico, por isso não podia falar. Mandou-o para o quarto descansar e...

Apertando um pouco os olhos, concluiu:

E ela me pareceu bem apressada em tirá-lo de nossa frente. Além disso, não acha que teria sido normal ela ter mencionado que o namorado estava adoentado? Mas não, Samira não disse nada disso e, bem ao con­trário, disse que ele tinha saído para dar uma volta! E, pelo que eu saiba, pessoas doentes não saem para passear, concorda?

Mathew estava ligando o computador e assentiu com a cabeça, murmurando:

Talvez você tenha razão, querida... A atitude dos dois foi, no mínimo, muito pouco educada.

Olhou para Natalie, enquanto esperava que a conexão com a In­ternet se completasse, e arrematou:

E é bem verdade que a conversa entre vocês duas morreu a par­tir do instante em que esse moço chegou. Pensando bem, pareceu-me que Samira ficou muito sem jeito e ansiosa para que fôssemos embora...

Voltando a se fixar na tela do computador, destacou:

Aquele agente do FBI, Steve Donovan, enviou uma imensa re­lação de nomes... É uma listagem de brasileiros desaparecidos, fornecida pelo Consulado do Brasil em Nova York...

Com um sorriso de admiração, exclamou:

O pessoal do Consulado está bem preocupado! Esta lista tem até as fotografias dos desaparecidos...!

Cedendo o lugar para Natalie, finalizou:

Veja você mesma, querida... Talvez até conheça alguém... En­quanto isso, vou começar a preparar alguma coisa para comermos.

Natalie não se fez de rogada e, sentando-se diante do compu­tador, começou a olhar a enorme seqüência de nomes, endereços e fotografias.

Meu Deus! — murmurou ela. — Quanta gente...! Quantos de­saparecidos...!

Às suas costas, ela podia ouvir Mathew batendo ovos e o chiado da frigideira, na qual o jornalista tinha posto manteiga e algumas fatias de bacon para fritar.

Foi quando o jornalista despejou os ovos batidos na frigideira e tampou-a para que a omelete ficasse pronta mais depressa e sem a neces­sidade de virá-la, que Natalie viu a imagem na tela.

Achei! — exclamou a moça, excitada. — É ele! Tenho certeza disso!

Mathew inclinou-se para a frente, olhando para a fotografia de Fefê que aparecia no monitor, e afirmou:

Nunca o vi antes... E, para ser sincero, não é nem parecido com o namorado de sua amiga!

Nesta fotografia ele está sem barba, Matt — explicou Natalie. — Exatamente como o conheci. Agora, ele está usando os cabelos mais curtos e deixou crescer a barba. Por isso está diferente. Mas é ele, tenho certeza!

Mostrando para o jornalista as informações sobre a fotografia, assegurou:

Você sabe que tenho uma memória muito boa... E jamais esque­ceria aquele cacoete idiota que esse rapaz tem.

Muitas pessoas podem ter o mesmo tique nervoso... — ponde­rou Mathew.

Pode dizer o que quiser, querido — protestou Natalie. — Mas te­nho certeza. E, agora, depois de ver essa fotografia, a cena voltou à minha mente. Parece até que foi ontem...! Você estava junto comigo; estávamos numa festa em São Paulo, a festa da Carolina Arruda. Lembro-me que ele ficou olhando para mim, parecia querer me comer com os olhos...

Isso não é de surpreender — murmurou Mathew, mal disfarçan­do uma ponta de ciúme. — Você chama a atenção de qualquer homem, em qualquer lugar...

Natalie fingiu não ter ouvido e continuou:

Ele jogava a cabeça para trás a todo instante, como se o cabelo o atrapalhasse. E esse gesto me marcou bastante... Lembraria dele daqui a cinqüenta anos, Matt!

Matt voltou para a cozinha, cortou pão, serviu a omelete, abriu duas latas de cerveja e chamou Natalie para comer. Sentando-se à mesa, prosseguiu:

Segundo as informações do Consulado, ele se chama Carlos Fernando Henriques e chegou a Nova York no dia 10. Hospedou-se no Manhattan Park Hotel, saiu na manhã do dia seguinte e não regressou.

Tomando um gole de cerveja, Matt indagou:

Você acha que ele se aproveitou do atentado para desaparecer? Mas com que interesse? E a família, os amigos?

Você está fazendo perguntas que não sei responder, querido — analisou a moça. — Pelo menos, por enquanto. Mas hei de descobrir! Hei de tirar isso a limpo!

Com determinação, concluiu:

Agora, a mosca da curiosidade me picou, querido. E não vou desistir! Há algo podre nesse caso, e vou descobrir o que é!

Samira estava apavorada e, ao mesmo tempo, revoltada com Fefê.

Mas por que você não ligou? — perguntou ela, sem esconder a raiva que estava sentindo.

Eu tentei — mentiu ele. — Mas não atendia...

E impossível! — exclamou Samira, irritada. — Não saí daqui, estive o tempo todo ao lado do telefone e ele não tocou uma só vez!

Olhando com raiva para o rapaz, acrescentou:

E você poderia ter se informado com o porteiro! Ele teria dito que Natalie ainda não tinha saído!

Fefê não teve o que dizer. De fato, se esquecera por completo de perguntar, na portaria do prédio, se Samira estava ainda com a visita. Su­bira, simplesmente, e só deu conta de si e de sua imprudência depois que já abrira a porta do apartamento e vira o casal de jornalistas.

Vira e reconhecera imediatamente Natalie.

Com isso, você me obrigou a inventar a mentira mais estapa­fúrdia do mundo! — queixou-se Samira. — Imagine! Dizer que você está afônico e não pode falar, porque tive medo que você não conseguisse se expressar corretamente em espanhol...! Natalie e Matt falam fluente­mente esse idioma e logo perceberiam a farsa! Acha que eles engoliram minha desculpa? Acha que eles são tão estúpidos a esse ponto?!

Teria sido pior se eu dissesse alguma coisa — defendeu-se Fefê. — Já imaginou se eu não fosse esperto e não tivesse percebido o seu golpe?

Esperto! — quase gritou Samira, — Você teria sido esperto se tivesse ligado da portaria! Mas não! Não ligou, achou que não era preci­so! E, agora...

Levantando-se do sofá onde estava sentada, Samira alertou:

Agora, o mais sábio será fugirmos daqui. Aliás, é o único cami­nho que temos para seguir: desaparecermos os dois de Nova York!

O rapaz, bastante constrangido, murmurou:

É... Acho que você tem razão... Temos de desaparecer. E isso, imagino, será um grande problema...

Samira não respondeu e, pisando duro, ainda cheia de raiva, dirigiu-se para o quarto para arrumar as malas.

Para onde vamos? — quis saber Fefê.

Não tenho a menor idéia — respondeu a moça. — Só sei que precisamos sumir. Não quero correr mais riscos.

Sim, Samira não queria mais se expor da maneira que estava fazen­do. Sentia em seu íntimo que Fefê representava um perigo imenso para ela por causa de sua irresponsabilidade e imaturidade. E lembrou-se de Yussef quando este se recusara a lhe fazer documentos falsos e recomen­dara que não pusesse seu pescoço no laço.

Começando a arrumar uma mala para Fefê, ouviu que ele ligava o aparelho de televisão, na sala, e pensou: "Fugir daqui com ele será a mesma coisa que nada... Esse idiota é capaz de pôr tudo a perder por causa de sua falta de cuidado! E serei presa como cúmplice; acabarei atrás das grades como uma criminosa quando, no fundo, o máximo que fiz de erra­do foi aceitar a sua mentira!".

Notou, de repente, que não estava arrumando as roupas de Fefê com o carinho costumeiro; muito pelo contrário, chegava a sentir raiva de si mesma e não conseguia deixar de pensar que, na verdade, estava fa­zendo papel de tola preocupando-se tanto com alguém que não via nada a não ser o próprio umbigo.

"Ele é muito egoísta", pensou, já fechando a mala. "E eu não posso continuar assim! Não posso!"

Percebeu que o rapaz nem mesmo estava ali no quarto, ao seu lado.

"Nem sequer parece estar preocupado! Enquanto eu fico aqui, pi­sando em cima de espinhos, roendo-me de preocupação, ele está vendo televisão...! Será possível que ele não esteja sentindo a gravidade da si­tuação?! Será que não está vendo que posso ser incriminada? E com este meu nome árabe...! E claro que serei condenada e, certamente, serei ex­pulsa do país e proibida de voltar! O que significa, simplesmente, o fim de qualquer sonho que eu possa ter!"

Samira tinha de tomar uma decisão. Precisava sair de Nova York, disso tinha certeza. Também sabia que não poderia sair e deixar o rapaz em seu apartamento, seria o mesmo que admitir a cumplicidade. E, ao mesmo tempo, não tinha coragem de chutá-lo porta afora, como se fosse um cão indesejável. Ela teria de convencê-lo de que uma separação seria a única saída, mesmo que apenas temporária.

Na verdade, pensando mais friamente, a moça não tinha a menor vontade de abrir mão das comodidades e possibilidades que aquele um milhão de dólares significavam e, ainda que uma parte de sua alma se revoltasse com aquela maneira de pensar, Samira achava que, depois de tudo o que fizera por Fefê, depois dos perigos pelos quais tinha passado, do medo que tinha vivido e do desespero que vivenciara, ela bem que merecia alguma coisa do que estava na maleta...

"Sim", pensou Samira. "Será apenas por alguns dias, até que a situ­ação fique mais tranqüila..."

Com voz sumida, sentindo medo das próprias palavras, ela olhou para o rapaz e murmurou:

Acho que seria mais inteligente nós nos separarmos, Fefê...

Você quer dizer... que vai me abandonar? — perguntou ele, com o pavor estampado em sua fisionomia. — Vai me deixar?

Samira forçou um sorriso e respondeu:

Não é bem assim, querido... Vamos nos separar por algum tem­po. Será mais fácil para nós dois se deixarmos o país isoladamente. Se Natalie, de fato, o reconheceu e estiver querendo descobrir alguma coisa, ela e Matt vão procurar inicialmente por mim. Talvez até mesmo o FBI venha, antes de qualquer um, fazer-me algumas perguntas. E por isso que não quero ser encontrada por ninguém. Claro, não adiantará nada eu sumir e deixar você aqui no meu apartamento. Você será interrogado e tenho certeza de que não agüentará cinco minutos antes de contar toda a verdade.

Não sou idiota! — protestou Fefê. — Por que acha que vou fraquejar?

Samira não respondeu e continuou:

Você sairá antes de mim. Irá embora agora mesmo e levará o dinheiro. Dará um jeito de sair dos Estados Unidos e irá para...

Pensou um pouco e, com um sorriso, lembrou:

Você voltará para o Brasil, mas não irá para São Paulo. Irá para Vitória, no Espírito Santo, e esperará por mim.

Mas... Voltar para o Brasil?! Será perigoso! E se eu for reconhe­cido?

Acho que não haverá perigo de ser reconhecido, Fefê — asse­gurou Samira. — Não em Vitória. De mais a mais, você não precisa ficar na capital. Poderá ir para Guarapari ou outra praia qualquer, que seja próxima.

O rapaz refletiu por alguns instantes e perguntou:

E quanto tempo você vai demorar para me encontrar?

Pouco tempo, querido — respondeu Samira. — No máximo uma semana.

Uma semana? Por que tanto tempo? E por que não vamos juntos?

Não posso sair daqui sem mais nem menos, Fefê — explicou a moça. — Não posso fazer as coisas de forma leviana, de maneira a deixar suspeitas. Preciso dar a impressão de que saí de Nova York para um trabalho fotográfico, entende? E preciso deixar bem claro para a Natalie, ou para quem quer que seja, que não estou fugindo. Por isso, vou esperar três dias antes de viajar. Nesse intervalo de tempo, o que tiver de acontecer acontecerá, ou seja, se Natalie estiver muito interessada em descobrir alguma coisa, ela virá me procurar. Ela, ou o FBI. Tenho certeza de que não me deixarei apanhar por perguntas comprometedoras.

Sem dar tempo a Fefê de contestar, Samira acrescentou:

Já passei por algumas situações muito difíceis, querido... Já en­frentei interrogatórios dos mais pesados... Pode estar certo que saberei me livrar de perguntas capciosas.

Apanhando a valise com o dinheiro, entregou-lhe, confirmando:

Dentro de uma semana nos encontraremos no hotel Alice Vi­tória, está certo?

O rapaz sentiu uma pontada no estômago e, com angústia, per­guntou:

E como vou fazer para sair do país?

Os aeroportos estão liberados. Você poderá sair daqui mesmo. Compre uma passagem para Miami e de lá, vá para o Brasil. Fique pelo menos um dia em Miami, faça algumas compras e, só então vá para Vitó­ria. Se não houver um vôo direto, faça uma escala em Brasília.

Fefê anuiu com um sinal de cabeça, abriu a valise de dinheiro, apa­nhou alguns maços de cédulas e disse:

Está certo. Farei como está mandando. Só que não levarei todo o dinheiro. Acho que seria muito perigoso, eu ficaria muito nervoso ao passar pela alfândega e...

Sorriu com tristeza e completou:

Você passará com essa valise com muito mais facilidade.

Samira ia protestar, ia dizer que o risco era exatamente o mesmo, mas Fefê calou-lhe a boca com um beijo, explicando:

Além disso, se você estiver com o dinheiro, sei que vai se sentir obrigada a devolvê-lo para mim... Será mais difícil você me abandonar.

Você sabe que não vou abandoná-lo, Fefê... — protestou a moça. — E que jamais ficaria com seu dinheiro!

Nosso dinheiro, Samira — corrigiu o rapaz. — O dinheiro que vai nos possibilitar uma nova vida. Seja onde for!

 

Yussef sorriu ao ver Samira à porta de sua casa.

Entre, minha filha — disse ele. — Para ser sincero, eu a estava esperando... Alguma coisa me dizia que você não iria demorar a aparecer.

Preciso de um conselho, Yussef — declarou a moça, enquanto o árabe fechava a porta às suas costas. — E acho que só mesmo você seria capaz de me dizer o que fazer.

Você já sabe a resposta, Samira. De mim, na realidade, o que você quer é que eu confirme o que lhe está indo pela cabeça e pela alma...

A moça suspirou e, sentando-se numa das grandes almofadas da sala de Yussef, explicou:

A situação começou a ficar muito perigosa, Yussef. Meu namo­rado...

...está fazendo você correr riscos — completou o árabe. — E você está com medo.

Samira não respondeu e Yussef prosseguiu:

Não é preciso que você me conte nada para que eu adivinhe que ele é muito imaturo, muito irresponsável. Posso garantir que não é um homem para você. Esse rapaz chegou em sua vida num momento em que qualquer palha pareceria uma tábua de salvação, porque você estava muito fragilizada, necessitando de alguém que a amparasse.

Fixando os olhos da moça, o árabe ressaltou:

Ou que fosse exatamente o contrário: alguém que necessitasse de apoio e que possibilitasse a você mesma se auto-afirmar e aumentar sua auto-estima. Ao lhe servir de cajado, você estava simplesmente tentando se apoiar, se ajudar. Você se apegou a ele, deu-lhe tudo de si, mas, de repente, começou a ver que as coisas não podem funcionar apenas unilateralmente...

Eu o fiz voltar para o Brasil, há pouco — murmurou a moça. — Ele irá para lá, e dentro de uma semana deverei encontrá-lo.

Se você quiser, minha filha — disse Yussef, com um sorriso. — Se você não usar sua inteligência...

Ele deixou o dinheiro comigo. Uma fortuna...

Um dinheiro que ele nem mesmo pode dizer que existe...

Como pode saber? — perguntou Samira. — O que o faz dizer isso, Yussef?

As circunstâncias. Alguém com uma fortuna legítima nas mãos jamais iria precisar de documentos falsos. É incoerente, concorda? Assim, na realidade, esse dinheiro é de quem está com ele, de ninguém mais!

Você está querendo dizer que eu devo ficar com...?

Deve deixar a tempestade passar. E deve se proteger — respondeu o árabe. — Depois, você saberá o que fazer, sem qualquer remorso, sem qualquer dor de consciência. Neste momento, o mais sábio é esperar.

Samira olhou estupefata para Yussef. Então, o velho pediu:

Conte-me o que aconteceu para fazê-la tomar a atitude de mandá-lo de volta para o Brasil.

A moça se ajeitou um pouco melhor sobre a almofada e, pausadamente, com detalhes, sem esconder nada, contou-lhe toda a história.

Ao terminar, Yussef tomou-lhe as mãos e frisou:

A imprudência foi cometida logo no início, quando você acei­tou ser usada por esse homem. Mas não se preocupe. Você tem uma saída fácil e, creio eu, muito boa...

Servindo chá para si e para Samira, o árabe aconselhou:

Você vai procurar essa sua amiga. Faça-o imediatamente. Diga-lhe que seu namorado desapareceu. Mostre que suspeita de alguma coisa, diga que acha que ele está fugindo dela, dessa amiga que esteve em sua casa hoje. Se esta realmente estiver desconfiando de algo, ela certamente vai lhe con­tar. Se você estiver enganada e não houver qualquer dúvida, ela vai se mos­trar surpresa, até mesmo poderá assumir uma posição defensiva no intuito de querer garantir que jamais houve qualquer coisa entre ela e esse rapaz, uma vez que será essa a suspeita que você vai levantar. De qualquer maneira, de­pois que você falar com ela, possivelmente muita coisa há de mudar.

E quanto ao dinheiro? — quis saber Samira. — O que faço com ele?

Deixe-o em algum lugar seguro. E nem pense em ir para o Brasil. Pelo menos durante algum tempo. Deixe que esse homem pense o que quiser. Você deverá apenas estar pensando em sua segurança. Depois, o tempo há de lhe trazer as respostas e de lhe mostrar o caminho a seguir.

Mas eu não posso fazer isso! — exclamou Samira. — Ele vai esperar por mim! E eu estou com quase todo o seu dinheiro!

Yussef suspirou e disse:

Você veio até mim em busca de um conselho, Samira. E este é o conselho que eu posso lhe dar. Siga, se quiser. Mas tenha sempre em mente que você estará correndo um grande perigo, caso decida continuar apoiando essa mentira. Lembre-se que o país está atravessando um período muito difícil, em que as incertezas e as inseguranças imperam. Uma mí­nima suspeita de envolvimento com terroristas será suficiente para estra­gar a vida de qualquer um. E, com muito mais facilidade, a vida de uma mulher que possui nome árabe. Em épocas como esta, é muito mais fácil acusar do que provar inocência e, no seu caso, apesar de não estar metida com nenhum terrorista, será muito complicado explicar as coisas. Será impossível você fazer qualquer um acreditar que agiu por amor e que esse tal de Carlos Fernando estava tentando fugir do jugo paterno e de um traficante brasileiro.

Samira ficou em silêncio. Terminou sua xícara de chá e, despedindo-se do velho árabe, analisou:

Preciso pensar, Yussef... Vou pensar no que vou fazer... De qual­quer maneira, muito obrigada. No meio de toda essa minha angústia, fico feliz ao perceber que posso contar com um verdadeiro amigo...

Você sempre poderá contar comigo, Samira — retrucou Yus­sef, beijando-a no rosto. — Não importa qual seja a decisão e o cami­nho que resolva tomar, minha casa sempre será sua, e eu sempre estarei ao seu lado.

Samira deixou a casa do árabe ainda muito confusa. Por sua men­te, dezenas de imagens passavam, em rápida sucessão, aumentando ainda mais sua angústia e desespero. Via-se presa em meio a um terrível in­terrogatório do FBI, os agentes querendo saber como tinha conseguido tanto dinheiro; imaginava Fefê sendo levado, algemado, para a cadeia; via-se chegando ao Brasil e imediatamente sendo presa pela polícia fe­deral como cúmplice de um crime de falsidade ideológica. E, ao mesmo tempo, ela se via em Paris ou em Londres, usando o dinheiro que estava em seu poder para sustentar o início de uma carreira promissora como modelo fotográfico, sem a necessidade de se prostituir ou sequer trabalhar de stripper para poder sobreviver...

E via Natalie balançando a cabeça negativamente e avisando que, infelizmente, sua função como jornalista era a de esclarecer a verdade, doesse a quem doesse...

Natalie! Sim, ela precisava ver Natalie! No mínimo, saberia com um pouco mais de precisão qual terreno ainda teria de pisar. Saberia se Natalie quer investigar o assunto com rigor ou...

Yussef estava certo. O seu primeiro passo teria de ser procurar por sua amiga.

Fez sinal para um táxi e, remexendo em sua bolsa, encontrou o endereço que Natalie lhe dera. Disse ao motorista para onde queria ir e, afundando-se no banco traseiro do automóvel, deixou que seus pensa­mentos a levassem para longe dali.

Onde esconderia o dinheiro? Certamente não poderia depositá-lo num banco e, pelo que já tinha percebido, de nada adiantaria — como pensara a princípio — abrir diversas contas pequenas em vários bancos. Tampouco poderia deixar em seu apartamento. Com certeza, seria um local que o FBI haveria de vasculhar...

"Realmente, poderia alugar um armário num guarda-volumes," pen­sou. "Mas, com a ameaça de outros atentados terroristas, é bem provável que o FBI efetue revistas nesses armários em busca de volumes suspeitos. E, se descobrirem uma maleta com quase um milhão de dólares..."

Por mais que tentasse, não conseguia imaginar um esconderijo ade­quado para todo aquele dinheiro. Chegou a desejar que Fefê, desistindo da viagem, tivesse voltado ao apartamento e apanhado a maleta. Mas — Samira sabia — isso era impossível, mesmo porque o rapaz não tinha ficado com nenhuma chave de sua casa.

"E se o FBI já foi avisado por Natalie e já foi vasculhar minha casa?", imaginou Samira, com um calafrio.

Mas isso seria impossível. Não acreditava que Natalie tomasse uma atitude drástica a esse ponto sem antes ter conversado com ela, sem pro­curar uma explicação...

Tentando ser otimista, ponderou: "Na realidade, talvez eu esteja me precipitando. Não posso ter certeza de que Natalie reconheceu Fefê. Estou apenas supondo essa possibilidade..."

E tentou se convencer de que era por mera cautela que Samira estava se dirigindo para o endereço que a amiga lhe dera, de que era por simples cuidado que ela estava tão ansiosa por saber o que Natalie teria para lhe dizer...

"Yussef está certo, como sempre", pensou. "O melhor é fazer com que Natalie não suspeite de mim. Preciso fazê-la acreditar que fui aban­donada por Fefê. E, depois, vamos ver o que vai acontecer. Porém, no momento, preciso dar um jeito de esconder esse dinheiro. E não consigo imaginar como poderei fazer isso!"

Passou-lhe pela cabeça a idéia de procurar João Antônio, no Brasil, e devolver-lhe o que restava dentro da maleta. Poderia inventar uma his­tória qualquer e tudo estaria resolvido. Porém, com a mesma velocidade que lhe viera esse pensamento, ele se afastou. Samira sabia que isso seria absolutamente impossível de fazer e, além do mais, seria extremamente perigoso. Ela estaria arriscando muito com o Departamento do Tesouro, mesmo que depositasse o dinheiro na conta de João Antônio. Ela seria chamada, e muitas perguntas haveriam de lhe ser feitas... Perguntas que ela jamais conseguiria responder sem se comprometer seriamente, sem pôr o laço no pescoço de Fefê e do próprio João Antônio.

"Na verdade, acho que ele não gostaria de receber esse dinheiro dessa maneira. João Antônio também estaria correndo o risco de ter de responder a muitas perguntas... Só se ele viesse buscar a maleta, mas, nesse caso, iria querer saber onde está o Fefê. E aposto que não me per­guntaria essas coisas da maneira mais delicada!"

Ainda estava tentando encontrar uma solução, quando o motorista do táxi estacionou diante de um prédio bonito e moderno, avisando:

— Pronto, senhorita. Chegamos!

 

Natalie olhou incrédula para a amiga e, pela terceira vez, perguntou:

Mas você não o conhecia até esta segunda-feira? Nunca o tinha visto?

Não — respondeu Samira, mostrando-se extremamente cons­trangida. — Nunca o vi antes. Era para ter sido um caso passageiro, ape­nas mais um caso, um rapaz que vinha dormir em minha casa, esticando uma noitada.

Fingindo um sorriso sem-graça, corrigiu:

Na verdade, o que aconteceu foi um pouco diferente... Eu aten­di a um chamado, você entende? Um chamado para um programa no Manhattan Park... Acabamos adormecendo e acordamos com o estrondo do primeiro atentado. Daí, ficamos apavorados e resolvemos ir para casa. Para minha casa, uma vez que toda aquela região estaria um inferno, mes­mo que não fosse interditada.

Em tom de quem pede compreensão, Samira explicou:

Ele foi ficando... Disse que não tinha para onde ir, que ainda estava um bocado perdido. Ficou em minha casa. Sempre se mostrou delicado, bem-educado, cavalheiro. E eu acabei por me deixar levar.

Com um suspiro, concluiu:

Acho que você pode compreender, Natalie... Minha vida não tem sido nada fácil... Achei que ele estava apaixonado por mim e pensei que seria a oportunidade que eu estava esperando para deixar essa vida. Afinal, creio que não exista mulher nenhuma que goste de ser garota de programa...

Fixando o olhar de Natalie, juntou:

E, então, aconteceu a visita de vocês. Quando ele chegou e a viu... Bem... Você pôde perceber a reação, não é mesmo? Dez minutos depois que vocês saíram, ele pegou sua mala e, sem dar uma palavra como explicação, foi embora.

Natalie balançou a cabeça em sinal de dúvida e investigou:

As coisas não estão muito claras, Samira. Você me disse que foi ao encontro dele no Manhattan Park. Como uma garota de programa. Qual foi o nome que ele lhe deu?

Antes que a moça respondesse, Natalie disse:

Não pode ter sido Ferdinando, pois você teria de se identificar na recepção do hotel e pedir para falar com ele ou para subir ao seu apartamento. E ele estava registrado como Carlos Fernando, não como Ferdinando...

Como pode saber? — perguntou Samira, assustada. — Por que você diz que o nome dele é Carlos Fernando?

Em lugar de responder, Natalie apontou para o monitor do compu­tador, onde a fotografia de Fefê se encontrava, bem como as informações prestadas pelo hotel ao FBI.

Samira sentiu o sangue fugir de suas faces e balbuciou, fingindo extrema surpresa:

Mas... é ele! É o Fefê! O Ferdinando...!

Muito séria, Natalie ameaçou:

Você sabe qual é a minha obrigação, Samira... Sabe que eu devo denunciar essa minha descoberta às autoridades americanas. E terei de fazer isso contando com detalhes onde eu o encontrei, ou seja, em seu apartamento, em sua companhia.

Mas isso vai me comprometer! — exclamou Samira, com deses­pero na voz. — Serei chamada, terei de prestar esclarecimentos...! Pelo amor de Deus, Natalie! Não faça isso!

Natalie não respondeu. Limitou-se a olhar para Samira com ex­pressão de pena e, levantando-se, mostrando que nada mais haveria para dizer, afirmou:

Não posso jurar sobre a Bíblia, Samira... Mas sou capaz de apos­tar que você está escondendo a verdade. Não sei por qual razão, mas sinto que não está me dizendo o que realmente aconteceu.

Dirigindo-se para a porta, abriu-a e arrematou:

Sinto muito, amiga... Mas não posso fazer nada. Já comuniquei ao FBI e, agora, a continuidade disso está nas mãos dos agentes. Sincera­mente, espero que você não tenha se envolvido demais nesse assunto.

Samira percebeu que de nada adiantaria pedir o que quer que fosse a Natalie e, já apressada, querendo chegar à sua casa o mais depressa pos­sível por causa do dinheiro, despediu-se e saiu.

"Pior do que eu estava imaginando", pensou, enquanto aguardava o elevador, sem coragem de olhar para trás, para a porta do apartamento, onde ela sabia que Natalie estaria.

Não gostaria que você se prejudicasse, Samira — disse Natalie, no instante em que o elevador chegou. — De alguma maneira, sinto que você não merece isso.

Mesmo que Samira quisesse responder alguma coisa, não o teria conseguido, a voz presa em sua garganta, o coração apertado pelo medo.

Sim, medo... Um medo horrível de chegar à sua casa e encontrar, à sua espera, os agentes federais e um par de algemas.

Essa não entendi — disse Mathew, assim que Samira fora embora. — Você não comunicou nada ao FBI...

Eu tinha certeza que Samira viria me procurar, Matt — respon­deu Natalie. — Ela viria me sondar, ver até que ponto eu tinha realmente reconhecido seu namorado. E, é claro, ela veio tentar afastar suspeitas.

Continuo sem entender. Agora, ela já sabe que você real­mente reconheceu o rapaz. O que espera que ela faça? Acha que ela vai entregá-lo à polícia? Ou acha que ela vai comunicar o que acon­teceu ao FBI?

Ela não vai fazer nada disso, querido — asseverou Natalie. — Ela vai fugir. Vai desaparecer do mapa, e eu quero que Samira faça exa­tamente isso.

Diante da expressão aparvalhada de Matt, ela sorriu e explicou:

Vou esperar até amanhã de manhã para entrar em contato com o FBI. Quero dar à Samira uma oportunidade de escapar dessa enrascada em que se meteu. Não acho que ela seja uma criminosa. Aliás, tenho certeza de que ela não fez nada de mais, apenas abrigou o rapaz, provavel­mente sem saber de nada. Agora, Samira está apavorada. A esta altura, ela deve estar amargamente arrependida por ter sido conivente com ele. Só o medo que está sentindo já é castigo suficiente, e não vejo nenhuma necessidade de fazê-la passar por momentos piores.

Mathew meneou a cabeça em sinal de dúvida e murmurou:

Mas, se ela foi conivente, também é criminosa. E você, que este­ve afastada dela por tanto tempo, não pode pôr sua mão no fogo...

Posso até concordar com você, querido. Mas continuo achan­do que a peça importante desse jogo é esse tal de Carlos Fernando. Ninguém mais. E veja bem que Samira não me disse nada a respeito de ser conivente. O que ela me contou — e é o quanto me basta — foi que o namorado fugiu logo depois de nos ter visto. Ou seja, podemos interpretar o fato imaginando que ela veio nos dizer que ele desapa­receu por ter achado que nós o reconhecemos... Ou que ele me reconheceu e se apavorou.

Com firmeza, Natalie declarou:

Vou concentrar minha atenção no rapaz. A história que Samira me contou não convenceu... Deve existir alguma razão muito séria para que esse tal de Carlos Fernando queira desaparecer dessa maneira. Nin­guém age assim, ninguém troca de vida por uma bobagem qualquer!

Você não está imaginando que esse caso possa ter alguma rela­ção com os atentados, está? — perguntou Mathew.

Não. Aliás, tenho certeza de que isso tudo não tem a menor relação com terroristas. Acontece que, mesmo abalado por causa do que aconteceu, o país continua a andar... E outros crimes, outras coisas ile­gais continuam a acontecer. Ou, no mínimo, prosseguem em andamento. Nada me impede de pensar que esse tal de Carlos Fernando esteja metido, por exemplo, com um assassinato... Ou com contrabando, tráfico, qual­quer atividade ilegal! Não esqueça que Samira confessou ser uma garota de programa... Quem pode garantir que esse seu namorado não seja um intermediário no tráfico de mulheres?

E que pressentiu ser a grande oportunidade de sua vida, para desaparecer, o incidente das Torres Gêmeas... — completou o jornalista.

Mathew meneou afirmativamente a cabeça e acrescentou:

É... Talvez você tenha razão... De qualquer maneira, para querer desaparecer, ser dado como morto, ele precisaria ter um motivo muito bom e, é claro, esse motivo estaria alicerçado em alguma coisa muito ilegal... e perigosa!

Exatamente! E, por achar que esse caso merece uma denúncia e uma investigação mais cuidadosa, é que vou entrar em contato com o FBI e dizer exatamente o que aconteceu. Será problema dos agentes rela­cionar Samira com qualquer coisa. Só que, em vez de fazer meu relatório agora, vou deixar para amanhã cedo. Se Samira for esperta...

Mathew soltou um suspiro e concordou:

Faça o que você quiser. Na realidade, não tenho nenhum inte­resse nesse caso; não acredito que um rapaz que esteja aproveitando essa catástrofe para desaparecer de circulação possa exercer qualquer influên­cia na economia nacional ou internacional. Principalmente sendo ele um absoluto desconhecido. Para mim, trata-se de um crime de falsa ideologia que, evidentemente, merece ser investigado e punido, mas que não me concerne em nada. Seria, isso sim, do âmbito de um jornalista criminal.

Estalou um beijo na testa de Natalie e arrematou:

E pode ficar tranqüila que eu não vou atrapalhar seus planos. Tome o caminho que achar melhor. O máximo que posso fazer é lhe oferecer minha ajuda no que diz respeito a um contato com o agente que me enviou essa rela­ção de nomes e acompanhá-la ao escritório do FBI, caso seja necessário.

Esquentando água para fazer um café, Natalie presumiu:

Realmente, espero que Samira desapareça dos Estados Unidos ainda esta noite. E espero que o faça sem esse rapaz. Será uma desgraça se ela for apanhada tentando fugir com ele...

Também acho — concordou Mathew. — Dificilmente ela con­seguiria se livrar de uma acusação de cumplicidade. E amargaria alguns bons anos atrás das grades...

 

Samira respirou aliviada quando, ao chegar ao seu prédio, per­guntou ao porteiro se alguém a havia procurado, e este respondeu que não.

Subiu para seu apartamento, arrumou uma mala com roupas, se­parou cerca de vinte mil dólares da maleta, pondo-os em sua bolsa, e guardou a maleta com o resto do dinheiro dentro da mala de roupas. Gravou na secretária eletrônica uma mensagem informando que ela ti­nha ido fazer um ensaio fotográfico, por isso estaria ausente nos próxi­mos quinze dias, e saiu.

Vai viajar? — indagou o porteiro quando Samira passou por ele.

Sim — respondeu a moça. — Fui chamada para fazer um traba­lho. Vou demorar pelo menos duas semanas.

O porteiro desejou-lhe sorte, e Samira ganhou a calçada.

Teve sorte: mal dera cinco passos, um táxi parou para desembarcar uma senhora idosa, e a moça imediatamente ocupou seu lugar.

Vamos para o La Guardia — ordenou. — E o mais depressa que você puder.

No trajeto, Samira conseguiu, finalmente, se acalmar um pouco e pensar com mais racionalidade.

Ela estava com quase um milhão de dólares, estava indo para o aeroporto e sabia que precisava sair do país. O problema era saber para onde iria e como esconderia todo aquele dinheiro, como faria para que a maleta não fosse vista pelo pessoal da alfândega.

"É pior do que tentar passar dez quilos de cocaína...", pensou. "Com a diferença que é muito mais difícil disfarçar o volume de um milhão de dólares!"

Seu problema estava resumido a atravessar a fronteira para o Mé­xico. De lá, não teria problemas em embarcar para qualquer um desses paraísos fiscais como as Ilhas Cayman, onde abriria uma conta bancária e, depois, de onde estivesse, administraria o dinheiro sem problemas. Ou, o que seria ainda melhor, poderia efetuar o depósito no México mesmo, mas com destino, por exemplo, a Montevidéu, no Uruguai.

Sorriu consigo mesma com esse pensamento: ela administraria o dinheiro. Não pensara que Fefê é que deveria fazer isso.

De fato, Samira estava já convencida de que Yussef estava certo e que ela deveria esperar um pouco para voltar a se encontrar com o rapaz.

"Sempre poderei encontrar uma desculpa qualquer", pensou ela. "Direi que tive de fugir do FBI ou qualquer coisa assim. Enquanto isso, ele estará se habituando com sua nova identidade e deixará de representar tanto perigo para mim. E, de qualquer maneira, ele poderá falar comigo pelo meu celular..."

Sentiu um frio no estômago. O celular! Da mesma forma que Fefê poderia estabelecer contato com ela, qualquer outra pessoa também poderia! Até mesmo, e principalmente, o FBI! Seria fácil rastreá-la e localizá-la...

Lembrando-se de que alguém lhe dissera, certa vez, que um celu­lar desligado não tem como ser rastreado, a moça tirou-o de sua bolsa e desligou-o. Para maior segurança, tirou-lhe a bateria.

"Preciso me livrar desta porcaria!," pensou Samira, aflita.

Pensou em atirá-lo pela janela, mas logo lembrou que o motoris­ta poderia perceber e, se fosse interrogado, certamente não esconderia o acontecido. Deixá-lo, como se o esquecesse, no táxi ou em qualquer outro lugar, seria o mesmo que nada. Era preciso destruí-lo, da mesma maneira que fizera Fefê com o dele, no dia 11 de setembro. A diferença é que, segundo lhe contara, ele tivera sorte e o seu aparelho tinha sido pisoteado até a desintegração total, pela multidão em pânico.

Nesse instante, o táxi foi obrigado a parar por causa de um semá­foro fechado, e Samira viu, a pouco mais de vinte metros, o luminoso de uma loja de conveniências e ao lado, uma farmácia aberta.

Por favor — disse ela, ao motorista —, estacione diante da far­mácia... Preciso comprar algo...

O motorista assentiu com um balançar de cabeça e estacionou a pouco mais de quinze metros depois da loja de conveniências, no único lugar onde era possível parar.

Espere aqui — instruiu a moça. — Volto num instante.

Apanhou a bolsa e o celular e desceu do carro, rumando para a farmácia.

Comprou uma escova de dentes e um desodorante, pagou e saiu, dirigindo-se para a loja de conveniências.

No entanto, ao se aproximar da entrada do estabelecimento, num movimento falsamente desastrado, Samira deixou cair o celular no chão e, fingindo tentar apanhá-lo, chutou-o para o meio da rua.

O inevitável aconteceu. Um automóvel passou com a roda traseira sobre o aparelho, despedaçando-o.

A moça sorriu interiormente. Tinha conseguido.

Entrou na loja de conveniências, comprou uma revista de moda e, ao sair, jogou na lata de lixo a bateria do celular.

Ao regressar ao táxi, comentou com o motorista:

Acabei de perder meu celular... Deixei cair no chão, e ele foi parar no meio da rua. Um carro passou por cima...

O motorista fez uma expressão de piedade e, dali até o aeroporto, contou-lhe com detalhes como tinha perdido seu celular, enquanto pes­cava no Maine e, ao tentar fisgar um peixe grande enquanto falava com um amigo pelo telefone, deixara-o cair na água.

Perdi o celular, mas apanhei o peixe! — disse ele, no momento em que recebia o dinheiro da corrida, já no portão principal do aeroporto. — Boa viagem, moça!

Arrastando sua bagagem, Samira sentia-se completamente perdi­da. Ainda não tinha conseguido encontrar uma resposta para seu proble­ma, ou seja, como fazer para atravessar a fronteira com o México sem que descobrissem a maleta de dinheiro.

Caminhando meio sem rumo pelo imenso saguão, ela cruzou com dois senhores que conversavam, em tom revoltado.

Eles deveriam verificar todas as bagagens de todos os passagei­ros, não importa qual seja o destino — disse um deles. — Qualquer um pode estar carregando armas!

É verdade! — concordou o outro. — Mas só estão sendo cuida­dosos com as bagagens de mão. Nos vôos domésticos, não estão verifican­do as malas que vão no compartimento de carga...

Samira, mais uma vez, sorriu interiormente. Então, havia uma possibilidade... Pelo menos, ela poderia se afastar de Nova York e, conseqüentemente, de uma ação mais imediata do FBI. Embarcaria para qualquer lugar ao sul, depois daria um jeito de ir para o México. E, simplesmente, deixaria a maleta de dinheiro dentro de sua mala de roupas.

Decidida, caminhou na direção do balcão da United e, depois de refletir um pouco, comprou uma passagem para El Paso, num avião cujo embarque já estava sendo chamado e que estaria decolando dentro de quinze minutos.

A senhorita tem muita bagagem de mão? — perguntou a fun­cionária do balcão de check in.

Só minha bolsa. E duas malas de roupas — respondeu Samira, esforçando-se para se mostrar calma. — Sou modelo... Quando viajo sou obrigada a levar um mundo de roupas...

A funcionária sorriu, pôs as etiquetas nas duas malas de Samira, entregou sua bolsa para um agente de segurança que estava ao seu lado — que apenas a abriu e a sopesou, não examinando o conteúdo — e, ao devolvê-la para Samira, confessou:

Eu gostaria de ter sido modelo... Mas sou baixinha demais!

Samira retribuiu o sorriso, apanhou a bolsa e viu que suas duas malas estavam já na esteira rolante. Em seu íntimo, torcia para que elas fossem diretamente para o carrinho que as levaria para o avião e que não passassem por qualquer revista minuciosa.

Ouviu o chamado para seu vôo pelo alto falante e, em passos apres­sados, dirigiu-se para o portão de embarque.

"Estamos em cima da hora", pensou. "Não haverá tempo para re­vistar minhas malas..."

Samira só conseguiu respirar com um pouco mais de alívio quando escutou o avião ligar as turbinas e sentiu a trepidação no momento da decolagem.

"Agora, só falta chegar a El Paso... E terei vencido a primeira etapa desta provação..."

No desembarque no aeroporto de El Paso, Samira novamente sen­tiu medo. O local estava sob intensa e ostensiva vigilância — evidente­mente por causa da fronteira com o México —, e os agentes de segurança fitavam todos, desconfiados.

No entanto, provavelmente por sua simpatia e pela beleza do sorri­so com que a moça presenteou os dois funcionários, ninguém pensou em abrir as malas de uma pessoa tão bonita, que dizia ser modelo fotográfico e cujas malas continham apenas uma incrível quantidade de roupas que daria um trabalho infernal dobrar outra vez...

E, assim, Samira viu-se no saguão do aeroporto, livre de suspeitas — pelo menos temporariamente —, mas ainda com o problema de sair do país e depositar todo aquele dinheiro numa conta segura.

Estava se dirigindo para a lanchonete do aeroporto para tomar um café, quando viu o balcão da empresa de táxis-aéreos e imediatamente lembrou-se de como Erik tinha conseguido fazer sair dos Estados Unidos dois de seus funcionários, com nada menos que duzentos quilos de cocaína: em um táxi-aéreo e que, por incrível coincidência, tinha sido fretado ali mesmo, em El Paso... E lembrava muito bem do nome do piloto, pois tinha sido ela mesma que tratara de toda a negociação: era um chicano chamado Pablo Fuentes.

Deixando de lado a idéia de tomar o café, Samira caminhou até o balcão da companhia de táxis-aéreos e se dirigiu à sonolenta funcionária que ali se encontrava:

Por favor, estou procurando pelo piloto Pablo Fuentes...

Ele não trabalha para nós — respondeu a mulher, com evidente má vontade.

Samira insistiu:

Sabe onde posso encontrá-lo?

A funcionária olhou para ela com desconfiança e indagou, por sua vez:

Está querendo fazer um vôo?

E, antes que Samira pudesse responder, acrescentou:

Nossa companhia atende todos os aeroportos da região e pode­mos pousar em pistas particulares...

Samira forçou um sorriso e explicou:

Não se trata de nenhum vôo... Preciso conversar com ele.

E, fazendo-se muito séria, completou:

É um assunto absolutamente particular.

A mulher deu uma risada e, balançando a cabeça afirmativamente, murmurou:

Sim... Acho que entendo... E acho que será muito difícil você voltar a encontrar esse safado.

Ergueu os olhos para Samira e, com uma expressão de comiseração no rosto, afirmou:

Você não é a primeira moça que vem a El Paso procurar por esse bandido! Eu mesma, o dia em que o reencontrar...

Serviu café de uma garrafa térmica em dois copos descartáveis, entregou um para Samira e continuou:

Talvez você consiga alguma informação com um de seus com­panheiros... Daqui a pouco o comandante Santiago vai chegar. Os dois são conterrâneos e estavam sempre juntos. Acho que ele poderá lhe dizer alguma coisa...

Era exatamente isso que Samira queria. Poder conversar em par­ticular com um piloto para, da maneira mais discreta possível, sondá-lo sobre a possibilidade de realizar um vôo... clandestino.

Àquela hora, o aeroporto de El Paso estava completamente de­serto — o vôo em que Samira chegara tinha sido o penúltimo; haveria outro pouso perto de três horas da madrugada — mas, nem por causa disso, a empresa de táxis-aéreos fechava. Em tom de revolta, a funcio­nária explicou que havia muitos rancheiros que vinham à cidade no fim da tarde e que queriam voltar para seus ranchos pouco antes do amanhecer.

E eu tenho de ficar aqui, esperando que eles apareçam para tra­tar os vôos! E isso quando não sou obrigada a cuidar deles, tão bêbados se encontram!

Samira sorriu, compreensiva, e a mulher continuou:

Com esses atentados, os vôos particulares aumentaram. Isso está nos dando um movimento muito acima do esperado e estamos sendo obrigados a contratar pilotos e aviões extras. O próprio Santiago é dono do avião que pilota, um Aero Commander muito bom.

Era mais uma informação interessante para Samira. Se Santiago era proprietário do avião, talvez fosse ainda mais fácil do que estava imaginando.

Curiosa, a mulher quis saber o que fazia Samira. Ela estava come­çando a contar os percalços da vida de uma modelo fotográfico, quando um homem de cerca de trinta e cinco anos de idade, alto e simpático, vestindo um uniforme de comandante, aproximou-se.

Aí está o comandante Santiago — avisou a funcionária da com­panhia de táxis-aéreos, com um sorriso embevecido.

E, voltando-se para o piloto, comunicou:

Esta moça está procurando por Fuentes... Eu disse que talvez você pudesse informá-la sobre o seu paradeiro...

O comandante franziu as sobrancelhas, intrigado, e Samira, apressando-se, explicou:

Tenho um assunto estritamente particular para resolver com Pablo Fuentes... Se puder me ajudar a localizá-lo, creio que poderei re­compensá-lo pelo trabalho...

Assim dizendo, Samira sorriu de modo provocante, e Santiago, percebendo que a recompensa provavelmente não estaria restrita a di­nheiro, convidou:

— Vamos tomar um café na lanchonete... E lá poderemos conver­sar mais à vontade.

A funcionária não escondeu uma expressão de profundo desagrado, mas nada disse, e Samira, sempre puxando o carrinho com suas malas, acompanhou Santiago.

Você perde seu tempo procurando por Fuentes — advertiu Santiago, tomando um gole de café. — Principalmente se ele lhe fez alguma coisa...

Samira sorriu e, pousando a mão sobre o antebraço de Santiago, retrucou:

Ele não me fez nada, comandante. A não ser um vôo, há cerca de um ano, levando dois amigos para o México. Eu o conheci, naquela ocasião, simplesmente porque fiz contato para marcar e pagar a viagem.

Santiago olhou interessado para a moça, e esta prosseguiu:

Estou precisando fazer um vôo semelhante. Só que aconteceram esses atentados... E as coisas se tornaram extremamente difíceis.

Com expressão angustiada, Samira revelou:

E eu preciso efetuar essa entrega! Há muito dinheiro em jogo e, talvez, minha própria vida!

O comandante balançou a cabeça afirmativamente e indagou, em voz baixa:

É... alguma coisa ilegal?

Sim — respondeu Samira, no mesmo tom. — Por isso, pagarei bem para que você me leve ao outro lado da fronteira.

Santiago estava mais do que acostumado a esse tipo de proposta, depois de mais de quinze anos como piloto na região de fronteira com o México. Pelo menos duas vezes por semana ele era procurado por alguém que queria levar algum tipo de contrabando para fora do país ou que dese­java fazer entrar uma mercadoria sem passar pelos trâmites alfandegários normais. E ele jamais recusava. Exatamente por isso, tinha conseguido comprar aquele avião, uma bela casa nos arredores de El Paso e podia se dar o luxo de levar uma vida boa, sem medir despesas, especialmente com mulheres bonitas.

Entretanto, havia duas coisas que ele jamais transportara e jamais transportaria: drogas e armas. Fixando os olhos de Samira, perguntou:

Você está levando alguma droga?

Não se trata de drogas, comandante — respondeu prontamente Samira. — Mas não posso deixá-lo revistar a bagagem. Se quiser acreditar em minha palavra e receber um bom pagamento...

Santiago procurou analisar sua interlocutora. Ela, de fato, não pare­cia ser alguém que estivesse desempenhando o papel de vapor de cocaína ou de qualquer outra droga. Era segura demais para ser uma simples inter mediária, alguém a quem lhe tivessem entregado um pacote de cocaína ou de heroína cristalizada. Tampouco parecia ser uma agente do FBI que­rendo pilhá-lo em delito.

Preciso saber o que está transportando — insistiu ele. — Não carrego drogas ou armas, por dinheiro nenhum no mundo...

Pois fique sossegado que a mercadoria que preciso levar para o lado de lá da fronteira não é nenhuma droga e nenhuma espécie de armamento.

Com um olhar carregado de promessas, assegurou:

E eu vou voltar para os Estados Unidos, comandante. No seu avião, depois que tiver feito a entrega da encomenda. E aí, poderei des­cansar pelo menos dois dias... Em qualquer lugar que seja longe de Nova York e de El Paso!

Santiago entendeu o que Samira dissera nas entrelinhas e, retri­buindo o sorriso que lhe fora esboçado, alertou:

Não é aconselhável deixar o país diretamente daqui. Há muita fiscalização, tanto do lado americano quanto do mexicano. O melhor é irmos até outra cidade e, de lá, passaremos para o México, para a cidade que quiser.

Examinando seu relógio, perguntou:

Quanto tempo calcula que vai demorar lá?

Ante o olhar inquisidor de Samira, explicou:

Não posso fazer um plano de vôo para o lado de lá da fron­teira sem ter de dar muitas explicações aos federais que estão aqui. Mas posso ir sem problema para qualquer lugar dentro dos Estados Unidos. Basta estabelecer uma rota com tempo suficiente para atra­vessar a fronteira sem que isso seja facilmente percebido, e pronto.

Samira balançou a cabeça com veemência e anunciou:

Preciso ir a Monterrey. Minha primeira idéia era simplesmente atravessar para Ciudad Juárez e, de lá, pegar um avião para o meu destino. Mas encontrei dificuldades com revistas de bagagens e, para não arriscar, achei melhor fazer uma escala em El Paso. A rota que será feita não im­porta. O que importa é chegar.

Santiago refletiu por alguns instantes e, num guardanapo de papel, rabiscou alguns números, comentando:

Será uma viagem longa, e isso é bom. Poderemos ir até Laredo e, pela manhã, você atravessará a fronteira. Só que vou estabelecer um plano de vôo para Corpus Christi, com escalas em Laredo e San Antonio. Uma vez em Laredo, simularei uma pane no avião para poder esperá-la. Daí, iremos para Corpus Christi, onde poderemos ficar esses seus dois dias de folga...

Samira olhou preocupada para Santiago e replicou:

Isso não está resolvendo o meu problema. Como é que vou pas­sar de Laredo para o México, sem ter problemas com a alfândega e os federais? E de que maneira vou poder voltar?

Santiago riu e, segurando o queixo de Samira com o polegar e o indicador da mão esquerda, ressaltou:

Pois é justamente nesses pequenos detalhes que farei jus à soma de cinqüenta mil dólares que essa sua viagem maluca vai lhe custar. Quando você chegar a Laredo, terá outro avião à sua espera, com outro piloto. Ele vai levá-la a Monterrey sem nenhum problema, vai esperá-la e trazê-la de volta... para mim.

Pela primeira vez desde que acordara naquele fatídico dia 11 de setembro, Samira sentia-se bem, pelo menos parcialmente segura e ali­viada, apesar de fisicamente estar esgotada. Afinal, havia quase quarenta e oito horas que não sabia o que era uma cama... É verdade que cochilara no avião de Santiago e, depois, no Cessna de Contreras, o piloto que a transportara a Monterrey, numa viagem de ida e volta com duas escalas para reabastecimento.

Finalmente, alcançara seu objetivo e conseguira enviar o dinheiro para um banco em Montevidéu, uma vez que o gerente do banco a que tinha ido, em Monterrey, depois de abocanhar um pacote de cinco mil dólares, dissera-lhe que as Ilhas Cayman já não eram o paraíso fiscal de alguns anos atrás, e que o melhor lugar seria o Uruguai.

Cayman tem sido objeto de investigações... Isso não acontece com os bancos de Montevidéu. E você poderá ter acesso fácil, estando no Brasil — explicara o homem. — Não precisará dar satisfações, não precisará temer o Imposto de Renda...

E é claro que poderei contar com o seu silêncio — dissera Sami­ra, com expressão séria.

O gerente sorriu, batera com a mão sobre o peito, exatamente onde acabara de pôr os cinco mil dólares, e respondera:

Sou um homem leal, senorita. E especialmente leal para com aqueles que são generosos...

Santiago pousara seu Aero Commander na pista de Corpus Christi pouco depois de dez horas da noite e, cavalheiro, oferecera o braço para Samira, imaginando:

Você deve estar cansada... Vamos jantar e, depois, conheço um hotel discreto e muito confortável, onde você poderá repousar.

O jantar tinha sido excelente, e o hotel, exatamente como Santia­go dissera, era agradável, aconchegante e confortável.

Samira tomou um banho reconfortante, vestiu-se e rumou para o bar, ao encontro do comandante.

Ela estava surpresa. Imaginara que Santiago, assim que chegassem ao hotel, iria partir para o ataque, não lhe dando tempo sequer de tomar banho. Mas não. O homem era um verdadeiro gentleman — sugerira-lhe que fosse se banhar e que, se estivesse muito cansada, que fosse deitar e repousar.

Estarei no bar tomando um drinque antes de dormir, Samira — afirmara. — Não se preocupe comigo. Meu quarto é contíguo ao seu e, se precisar de alguma coisa, é só me chamar.

Era uma atitude de fato surpreendente para um latino, e Samira não pôde deixar de estranhar e de, por um breve instante, achá-la suspeita. Chegou a se arrepender de não ter fugido enquanto estava em Monterrey, tomando um ônibus até Cidade do México e deixando o piloto mexicano e Santiago a ver navios...

Contudo, sabia que isso só dificultaria as coisas. Santiago poderia ficar revoltado com sua atitude e denunciá-la ao FBI. Ou, o que seria ainda pior, às autoridades mexicanas. Samira sabia o quanto seria com­plicado explicar qualquer coisa à polícia do México, sempre carregada de suspeitas contra todos, sempre achando que qualquer estrangeiro poderia ser um guerrilheiro disfarçado...

Assim, ela resolvera voltar e arcar com o peso de ter de passar pelo menos uma noite na cama de Santiago...

E, naquele instante, enquanto caminhava em direção ao balcão do bar onde o comandante a estava esperando com um sorriso de boas-vindas, Samira começava a compreender que não tinha feito uma má escolha.

Aquele homem era simpático, inteligente, esperto e, principal­mente, maduro.

E Deus sabia como ela estava precisando de um homem maduro!

Você está ainda mais bonita do que quando a conheci, Samira — elogiou Santiago, recebendo-a com um beijo no rosto.

Obrigada — disse ela, retribuindo o beijo. — Você é muito gen­til, pois, na verdade, estou me sentindo um trapo, de tão cansada...

Eu lhe disse que se quisesse ir deitar...

Precisava conversar um pouco antes de dormir, Santiago...

E, automaticamente, acrescentou:

Estive muito nervosa nos últimos dias...

Percebi. E estou percebendo, também, que agora você está mui­to mais calma...

Samira sentiu que sua última frase tinha sido excessivamente sin­cera e, sem esconder a preocupação, tentou se justificar:

Pois é... Tive muito trabalho... Muita pressão, Santiago...

Por favor — adiantou o comandante, segurando-lhe as mãos. — Chame-me de Ruy... E não precisa procurar desculpas; não há necessi­dade nenhuma de ocultar alguma coisa de mim. Não sou do FBI, não sou espião, sou apenas um piloto que recebeu uma boa quantia para fazer uma viagem e para lhe proporcionar uma maneira segura de depositar uma grande soma de dinheiro num banco fora dos Estados Unidos. E isso é um segredo que levarei para o túmulo, pode acreditar.

Samira sentiu um calafrio. Arregalando muito os olhos, ela ga­guejou:

Mas... Como sabe...? O quê...?

Ruy Santiago inclinou-se para ela, sorriu e, beijando-a delicada­mente sobre os lábios, explicou:

Sou um homem vivido e experiente, minha querida... Quando você começou a falar comigo, poderia apostar que você jamais estaria metida com drogas. Muito menos com armas ou coisas assim. O que você teria em mãos e que precisaria levar para fora do país com tanta urgência? Diamantes?

Ele balançou a cabeça negativamente e prosseguiu:

Não. Se estivesse com diamantes, teria escolhido uma maneira muito mais simples de se desfazer deles. Nova York é o centro mundial do comércio de diamantes. Teria sido muito fácil você vendê-los por lá mesmo, apesar dos atentados. Restava apenas uma mercadoria: dinheiro. Dólares. Nada mais do que isso. Dinheiro que precisava sair do país. E, é claro, que confirmei minhas suspeitas mandando o piloto que a levou até Monterrey segui-la discretamente... E ele a viu entrar num banco.

Samira não teve outra reação senão sorrir. Aceitando um cálice de vinho do Porto, perguntou:

Agora que você sabe, o que pretende fazer? Vai me chantagear?

Santiago riu e esclareceu:

Há pouco você disse que sou um homem gentil. Sou mesmo. Gosto de ser assim, gosto de ser educado e, na medida em que isso é possível, sou também um homem honesto. Você pagou os cinqüenta mil que lhe pedi pelo serviço. Dou-me por plenamente satisfeito. E, por es­tar satisfeito, é que fiz questão de pegar dois quartos, aqui no hotel. Não serei capaz de me olhar no espelho amanhã de manhã, se imaginar que você dormiu comigo como parte do pagamento ou como se me estivesse fazendo um favor...

A moça tomou um pequeno gole de vinho e, depois de alguns ins­tantes, assegurou:

— Pode acreditar que você vai poder se olhar no espelho, Ruy... E com muito mais orgulho do que tem feito até hoje!

 

Fefê estava simplesmente apavorado. O medo que sentia era tanto que nem sequer conseguia raciocinar direito.

Desceu do apartamento de Samira, ganhou a rua e percebeu-se an­dando colado às paredes, buscando se esconder de tudo e de todos, como se fosse um verdadeiro fugitivo, vendo em qualquer pessoa que lhe diri­gisse um olhar um agente do FBI à sua caça.

Só sentiu um pouco mais de segurança quando conseguiu pegar um táxi e mandou o motorista seguir para o aeroporto.

Estavam já próximos à Brooklin Bridge quando, no rádio do automóvel, sintonizado numa estação de notícias, ouviu um repórter anunciar que o FBI tinha detido, naquela tarde e num aeroporto de Nova York, três pessoas suspeitas tentando embarcar num vôo para Boston.

Foi o bastante para seu coração bater mais forte e para que seu es­tômago se contraísse dolorosamente.

Não! Ele não poderia ir para o aeroporto, em hipótese alguma! Samira estava errada; seria impossível ele tomar um avião! Com certeza, seria descoberto, seria desmascarado e preso!

No entanto, já tinha ordenado ao motorista que o levasse ao La Guardia... Como fazer para alterar o destino da corrida sem levantar sus­peitas? Como explicar para o homem que tinha mudado de idéia?

"O jeito é ir até o aeroporto", pensou. "Uma vez lá, poderei avaliar a situação e, se achar que é perigoso, pegarei outro táxi e voltarei. Samira disse que esperaria três dias antes de viajar..."

O trajeto até La Guardia foi uma autêntica provação. Afundado no banco traseiro do táxi, Fefê procurava não mostrar o rosto através da janela e, mesmo para o motorista que poderia observá-lo pelo retrovi­sor, ele tentava esconder o máximo possível sua fisionomia. Chegando à entrada principal do aeroporto, teve de se esforçar muito para impedir que o tremor em sua mão, ao pagar a corrida, acabasse por denunciar o nervosismo que possuía.

Desceu do táxi e, com o coração na mão, viu que havia policiais e agentes de segurança por todos os lados. Com passos vacilantes — seus joelhos pareciam querer dobrar-se a cada instante e suas pernas tremiam como varas verdes —, dirigiu-se para a área de venda de passagens.

"Se há tantos policiais e seguranças uniformizados, imagine quan­tos estão à paisana!", pensou. "Não conseguirei passar... Não conseguirei escapar!"

Caminhou para uma cabine telefônica e tentou ligar para Samira. O telefone de seu apartamento não atendia. Tentou o celular, também em vão, e sentiu o desespero aumentar, a angústia tomar conta de toda a sua alma.

Sentiu-se total e completamente desamparado e desorientado.

Lembrou da mãe...

Recordou-se de que, muito tempo atrás, ainda criança, brigara com todos em casa, e sua mãe lhe dissera que a família sempre seria seu último arrimo, sempre haveria de ser seu porto seguro e, por isso mesmo, ele não deveria jamais afirmar que não queria mais saber da família e que queria ir embora de casa.

— Um dia você vai querer ouvir a minha voz — dissera Marialva. — Vai sentir que nós somos o seu único apoio! E, nesse dia, você vai dar valor à família!

Fefê lembrou-se do episódio e, de repente, sentiu que a predição de sua mãe estava se cumprindo: ele queria, precisava, necessitava ouvir sua voz. Mesmo que nada dissesse, mesmo que apenas escutasse a mãe aten­dendo o telefone, dizendo aquele "alô" que ele conhecia tão bem...

Sim, teria de se contentar apenas em ouvi-la; não poderia falar nada, afinal de contas os mortos não falam...

Tinha de ligar, porém. Parecia-lhe que o simples fato de ouvir a voz da mãe haveria de lhe trazer o estímulo e a coragem de que necessitava para continuar.

Com determinação, ligou para sua casa, na Granja Viana, em São Paulo, no Brasil, a cerca de dez mil quilômetros de distância.

E ficou segurando o fone, olhando para ele aparvalhado, mais per­dido do que nunca, quando a secretária eletrônica anunciava: "A família Henriques está de luto pela morte de Marialva Henriques, que não con­seguiu suportar a dor da perda de seus três filhos e de seu genro."

 

Não foi preciso muito tempo ou sacrifício para Josiane ter em mãos um fax com a relação de passageiros das companhias aéreas que já estavam fazendo vôos para Nova York. Da mesma maneira, a esperta secretária não teve nenhum trabalho para encontrar o nome de Fernando Henri­ques entre os passageiros que deveriam embarcar, já no dia seguinte, com destino aos Estados Unidos.

O velho não iria para Nova York à toa... — murmurou João Antônio. — Ele pode ter sido contatado por Fefê...

Ou pode estar indo para lá simplesmente para ver se encontra o filho — disse Flávio.

Talvez... Mas, de qualquer maneira, é a única possibilidade que te­mos. Acho impossível que o pai de Fefê não tenha como se comunicar com a namorada dele! E, se esse maldito não morreu, só pode ter fugido com ela!

Ele também pode estar fugindo do pai — ponderou Josiane. — Como você mesmo disse, seria o mais lógico, seria exatamente o que você faria, se estivesse no lugar de Fefê!

É uma possibilidade — admitiu João Antônio. — Mas não po­demos pensar no pior! Temos de ter a esperança de que o velho Fernando tenha como encontrar o filho ou, no mínimo, essa tal de Samira!

Voltando-se para Josiane, ordenou:

Consiga duas passagens para o mesmo vôo de Fernando Henri­ques. Não quero desgrudar os olhos desse velho!

Vendo que Flávio abria o paletó para tirar sua arma e verificar-lhe a carga, rosnou:

Não seja idiota, Flávio! Você não conseguiria embarcar em avião nenhum levando sua artilharia! Trate de deixar isso aqui e não quero ver você nem mesmo com um cortador de unhas!

Mas... — protestou o gorila. — Como vamos fazer? Vamos liqüi­dá-los com as mãos limpas?!

Com certeza não vamos liqüidá-los — respondeu João Antônio. — O pai dele não tem nada a ver com a história; vai servir apenas para nos levar até Fefê. O que quero é apenas recuperar o meu dinheiro e dar uma lição naquele porcaria... E pode estar certo de que existem muitas outras maneiras de fazer com que ele desapareça... Não é isso que ele deve estar pretendendo, se estiver vivo? Desaparecer? Pois nós vamos lhe dar a oportunidade... E de uma maneira que a polícia de Nova York não tenha a menor pista de nós...

Deu uma risada irônica e perguntou a Flávio:

Ou você quer ser condenado por assassinato, nos Estados Unidos?

Ainda rindo da expressão desesperada de Flávio — ele simples­mente sentia-se nu, quando desarmado —, Josiane ligou para a compa­nhia de turismo que habitualmente atendia João Antônio e, depois de alguns instantes, avisou:

Chefinho, é impossível... Esse vôo que você quer está lotado... Mas podem ocorrer desistências. A moça da empresa de turismo disse que há muita gente desistindo de voar para Nova York, por causa dos atentados.

Pois então deixe-nos na lista de espera. E diga para essa moça que nós queremos ser os primeiros da fila, entendeu? Se ela não fizer isso, nunca mais compro uma só passagem na mão dela!

Fernando despertou sentindo uma tontura que ele não conseguia controlar e que o impedia de fazer qualquer movimento.

— É uma labirintite — sentenciou Clara. — Tive uma dessas quan­do uma amiga morreu atropelada e fui obrigada a fazer o reconhecimento do cadáver. Vou chamar um médico.

Apesar dos protestos de Fernando, Clara ligou para a recepção do hotel e, menos de quinze minutos depois, o médico chegou.

Síndrome de Meunière — explicou o doutor. — Uma labirintite provavelmente de fundo emocional. O senhor vai precisar ficar em repouso absoluto e deverá tomar religiosamente as medicações que vou lhe prescrever.

Não há necessidade de internação, doutor? — quis saber Clara.

Só se ele começar a vomitar demais e, com isso, se desidratar. Daí, vai precisar tomar soro... Por enquanto, o mais importante é fazer repouso.

Isso quer dizer que não vou poder viajar... — balbuciou Fernan­do. — Preciso ir para Nova York...

O médico sorriu e alertou:

O senhor nem sequer conseguiria chegar até o banheiro sozi­nho, doutor Fernando. Acho que durante os próximos dez dias não deve pensar em nenhuma aventura maior do que sair da cama e chegar até a mesa...

Fernando fez uma careta e, antes que pudesse fazer qualquer protes­to, Clara salientou:

Há males que vêm para bem, Fernando... Se serão necessários dez dias para você poder viajar, acho que tudo está de bom tamanho. Você já não estava, mesmo antes de essa labirintite se manifestar, em condições de enfrentar o que deve lhe esperar lá em Nova York... Durante estes dias, você terá oportunidade de se recuperar um pouco e se preparar tanto físi­ca quanto psicologicamente para essa viagem.

Pousando a mão sobre o antebraço de Fernando, acrescentou:

E há muito tempo venho lhe dizendo que você precisa des­cansar... Ninguém é de ferro! Agora, você está obrigado a parar um pouco, a pensar em você mesmo... Depois que o doutor lhe der alta, aí sim, já mais recomposto, tenho certeza de que será capaz de enfrentar qualquer coisa!

Fernando grunhiu alguma coisa como "eu não posso deixar de ir para Nova York", mas estava se sentindo tão mal que não teve forças para argumentar e, fechando os olhos, apenas reclamou:

Tenho a impressão que a cama vai virar de cabeça para baixo comigo...

É assim mesmo — explicou o médico. — E, daqui a pouco, qual­quer movimento que faça vai lhe causar vômitos. Por isso é importante que tome os remédios. Para evitar que vomite demais e que comece a se desidratar...

Prescreveu a receita, solicitou a Clara que tomasse as providências para que um mensageiro do hotel comprasse as medicações e, recomen­dando mais uma vez que Fernando evitasse se movimentar, despediu-se dos dois e deixou o quarto.

Mas é muito azar... — resmungou Fernando. — Logo agora...!

A natureza é sábia, Fernando — admitiu Clara. — Quando ela percebe que a carga está excessiva para os ombros de alguém, dá um jeito para que essa pessoa seja obrigada a se aliviar um pouco do peso...

Mas e a empresa? Não posso ficar longe tanto tempo! Há muito trabalho para fazer!

De qualquer modo, a empresa está de luto — disse a secretária. — Pelo menos por vinte e quatro horas ela estará fechada. Amanhã eu irei para lá e tomarei conta de tudo.

Não! — protestou Fernando, quase gritando. — Não quero que você fique longe de mim! Não vou suportar ficar sozinho!

Está bem — disse ela, com um sorriso. — Se você prefere assim, ficarei ao seu lado. Poderei telefonar para qualquer um dos contadores e solicitar que assuma o controle da situação, ao menos temporariamente...

Com um sorriso, completou:

Vou pedir que tragam chá, bolachas e algumas frutas... Você não poderá comer nada pesado durante os próximos dias. Depois, telefonarei para a agência de turismo que reservou nossas passagens, cancelando-as. Deixarei a data do vôo em aberto, pois não sabemos realmente quando você poderá viajar.

E, apanhando o telefone, pensou: "Se é que ainda vai querer ir para Nova York, coisa que vou dar um jeito de fazê-lo desistir..."

 

- Não vejo nenhuma relação desse caso com o atentado ou com terroristas — alegou Donovan, olhando fixamente para Natalie. — E você precisa entender que todo o nosso efetivo está voltado para a caça aos terroristas neste momento!

Entendo perfeitamente — assentiu a jornalista. — Mas aconte­ce que pode haver uma relação...

Ante o olhar interrogativo de Donovan, Natalie explicou:

Já sabemos que esse tal de Carlos Fernando Henriques e Fer­dinando Ibanez são a mesma pessoa. Carlos Fernando estava envolvido com Samira Zegaib, brasileira descendente de árabes. Ela, apesar de negar para mim que não sabia de nada, pode perfeitamente estar mentindo. E tenho certeza de que, a esta altura dos acontecimentos, Samira já deu um jeito de desaparecer.

Pode ser apenas um crime de falsidade ideológica — insistiu Do­novan. — Nada que implique o FBI, muito menos numa situação caótica como a atual!

Pode ser... — admitiu a moça. — Mas há algo mais e que foi você mesmo que me contou agora há pouco... O pai de Carlos Fernando tinha reservado duas passagens para cá. E deu como motivo da viagem procurar pelo filho que, segundo se supõe, estaria no WTC exatamente no momento do atentado. Porém, ontem à noite, a reserva foi cancelada, e dois homens foram chamados da lista de espera.

Com um sorriso capaz de fazer entrar em ebulição um bloco de gelo, Natalie completou:

E eu conheço pelo menos um desses homens... João Antônio é proprietário de uma rede de danceterias em São Paulo. Eu o vi inúmeras vezes e, freqüentemente, Carlos Fernando estava ao seu lado ou conver­sando com ele.

Não vejo nada de mais nesse fato, a não ser uma grande coinci­dência... — ponderou Donovan.

Também é possível que seja coincidência... Mas pode ser que haja alguma relação importante com o tráfico de drogas.

Donovan franziu as sobrancelhas, intrigado, e Natalie prosseguiu:

Muitas danceterias, em São Paulo, são na realidade pontos de distribuição de drogas pesadas. E sei que as de João Antônio fazem parte desse grupo. Será que é apenas coincidência o fato de, uma vez que o pai de Carlos Fernando não tenha vindo, seja justamente esse João Antônio que tenha aproveitado a passagem? Ou será que, de alguma maneira, a empresa de importação e exportação dos Henriques não esteja metida no negócio do narcotráfico?

Donovan ficou pensativo por alguns segundos e, voltando-se para Mathew, concordou:

Não deixa de ser uma possibilidade... E, de fato, os atentados não fizeram com que a rotina da criminalidade se alterasse. Especialmente o tráfico, que, segundo a opinião dos psicólogos do Departamento, deve ter aumentado durante estes dias, já que as pessoas, mais angustiadas, mais desesperadas, buscam o ilusório amparo das drogas como uma fuga da realidade...

Respirou fundo e finalizou:

Está certo. Vou destacar dois homens para esperar esse tal de João Antônio Dorini... Vamos, no mínimo, fazer-lhe algumas perguntas.

 

Samira despertou com o sol já bem alto, sentindo-se como se tives­se levado uma surra durante toda a noite. Com um pouco de dificuldade, esticou o braço para a sua esquerda e tocou o corpo nu e quente de Ruy Santiago. Sorriu consigo mesma. Fazia muito tempo que ela não sentia um homem — um homem de verdade — junto a si. Ruy fora simplesmen­te espetacular, delicado, carinhoso... e eficiente. E ela sentira-se segura, o que era mais importante do que qualquer outra coisa.

Ao toque carinhoso de Samira, Ruy Santiago despertou e, abraçando-se a ela, indagou:

E agora? O que pretende fazer?

Samira suspirou e, depois de alguns instantes, admitiu:

Sinceramente, não sei... Preciso sair dos Estados Unidos. E acho que o melhor é fazê-lo de alguma maneira que eu não precise me identi­ficar nas fronteiras. Há uma imensa possibilidade de eu estar sendo pro­curada.

Posso imaginar — riu Santiago. — E também posso sugerir uma boa solução...

Samira encarou-o, interessada, e Santiago prosseguiu:

Não sou americano, Samira. Sou mexicano. Na realidade, como os gringos dizem, sou um chicano, filho de um americano, que nunca soube quem é ou quem foi, com uma mexicana. Portanto, não tenho nenhum problema de ir para o México e voltar. Posso fazer esse trajeto à vontade.

Mas isso, se você estiver sozinho — ponderou Samira. — Mi­nha presença pode ser um grande embaraço e, se já me descobriram, poderá ser extremamente perigoso o fato de você estar me levando para fora do país.

Santiago sorriu, acariciou o rosto de Samira e revelou:

Tenho algum dinheiro investido fora dos Estados Unidos. Sabe como é... O Departamento do Tesouro não pode saber de onde eu ti­rei tudo o que ganhei durante estes últimos dez anos. Assim, posso dizer que não sou um homem pobre. Talvez não chegue a ser um milionário, mas posso perfeitamente deixar de ser um piloto comercial e não passarei fome de jeito nenhum.

Com um gesto, impediu que Samira o interrompesse e continuou: — Já faz algum tempo que venho pensando seriamente em deixar a pro­fissão. Meu desejo é mudar para longe dos Estados Unidos, para um lugar onde eu possa usufruir o dinheiro que consegui juntar.

Beijando os lábios de Samira, contou:

Só não fiz isso até agora porque não tive o estímulo necessário, ou seja, não encontrei uma mulher que eu pudesse levar comigo e que, depois de um mês ou até menos, não decidisse ir embora e exigir uma fortuna como indenização.

Acariciou os seios nus de Samira e, com um sorriso, declarou:

Acho que você é essa mulher. Pelo menos, não terá necessidade nenhuma de querer me extorquir...

Samira sorriu. Erguendo-se sobre o cotovelo esquerdo e fazendo com que os bicos de seus seios roçassem no peito de Santiago, ela perguntou:

Como pode ter tanta certeza?

Pelo meu instinto, Samira — garantiu o aviador, prontamente. — Além do mais, você está amarrada a mim de alguma maneira... Eu sei o seu segredo, e você não gostaria que eu o revelasse, especialmente para o Tesouro dos Estados Unidos...

Você está me chantageando...

Não, de maneira nenhuma! Não estou dizendo que vou denunciá-la, se você não ficar comigo. Estou afirmando que você não me deixará simplesmente pelo fato de temer que eu a denuncie!

Samira meneou afirmativamente a cabeça. Sim, Santiago tinha razão... Ela não poderia deixá-lo assim, sem mais nem menos! Que se­gurança teria de que ele não pegaria o primeiro telefone e ligaria para os federais? No entanto, se os dois estivessem juntos, ele jamais faria isso.

Mas... E sua família? — perguntou ela, por fim.

Não tenho ninguém desde que minha mãe morreu — lamentou Santiago, com uma sombra de tristeza no olhar. — Sou um homem abso­lutamente solitário.

E seu avião? Se você o abandonar, certamente criará suspeitas...

Poderei vendê-lo hoje mesmo, Samira. Aquele piloto que a le­vou para Monterrey é um dos candidatos. Basta que eu telefone para ele vir apanhar o avião e depositar o dinheiro em minha conta, e essa parte do problema estará resolvida.

E que parte resta? — quis saber Samira.

Você se casar comigo! — confessou Santiago.

E, antes que Samira se recuperasse da surpresa, explicou:

Com certeza, você estaria sendo procurada por seu nome verda­deiro, ou seja...

Samira Zegaib — disse a moça, com um sorriso. — Você não me tinha perguntado até agora...

Simplesmente porque isso não me interessava e até era bem me­lhor que eu o ignorasse. Mas, agora, as coisas podem tomar outro rumo. Não sei se notou, mas assinei a ficha do hotel como senhor e senbora Santiago...

Notei — reconheceu Samira. — E confesso que até achei gra­ça... Um casal dormindo em quartos separados!

Porém contíguos — replicou Santiago. — E isso reforça um pouco a idéia de sermos casados. Um de nós pode não conseguir dormir ao lado de outra pessoa, isso é comum...

Mas nós conseguimos dormir juntos — riu Samira, acarician­do o peito do aviador. — Está certo que não dormimos a noite inteira, mas...

As mulheres levam vantagem sobre os homens em muitas situa­ções — argumentou Santiago, retomando o assunto. — Uma delas é essa que você está vivenciando. Basta um casamento, e você pode mudar de nome... Basta uma tintura nos cabelos e uma maquiagem mais pesada, e você muda até de fisionomia.

Mas, para casar, precisarei mostrar meus documentos! E aí, se meu nome já estiver divulgado...

Esse risco, a meu ver, não existe. Primeiro, porque não houve tempo hábil, na situação atual, para que seu nome tenha sido posto na lista de procurados e impedidos de deixar o país. Segundo, porque há uma infinidade de cartórios que farão esse casamento trocando a apresentação de documentos por umas poucas notas de cem dólares... E outra infinida­de de pessoas que, por quantias ainda menores, providenciarão o resto de documentos necessários para você poder deixar o país em perfeita segu­rança. Você passará a ser oficial e legalmente Samira Santiago, esposa do digno cidadão mexicano Ruy Santiago!

E para onde iremos?

Veja bem. Não é bom correr riscos desnecessários, mesmo que você esteja com toda a documentação legalizada. Assim, já para evitar qualquer situação, digamos, anormal, não viajaremos de avião comer­cial. Pegaremos meu aeroplano e pousaremos na fazenda de um conhe­cido meu, em Brownsville, ao lado de Matamoros. De lá, um barco de pesca oceânica poderá nos levar para qualquer lugar da costa mexica­na, onde esse piloto meu amigo e comprador de meu avião poderá nos apanhar em segurança e nos levar para Cidade do México, de onde partiremos, aí, sim, em linha comercial, para qualquer lugar longe dos Estados Unidos.

Para o Brasil? — perguntou Samira, ansiosa.

Principalmente para o Brasil. Só preciso telefonar para esse meu amigo vir pegar meu avião. Ele é que nos levará para Brownsville.

Samira pensou um pouco e, erguendo os olhos para Santiago, ponderou:

Concordo com tudo isso, querido... Só que há uma coisa...

Já sei o que vai me dizer — interrompeu Santiago, com um sor­riso que não conseguia disfarçar uma ponta de tristeza. — Há alguém... Alguém que estará esperando por você no Brasil...

Samira balançou afirmativamente a cabeça, confirmando:

Sim... E essa pessoa é a verdadeira dona desse dinheiro. Pelo menos de uma boa parte dele. E eu devo encontrá-la no Brasil, no estado do Espírito Santo... Dentro de cinco ou seis dias.

Santiago ficou em silêncio por quase um minuto e, então, per­guntou:

Essa pessoa é importante para você?

Foi importante, Ruy. Não é mais. Muita coisa aconteceu, pensei bastante... Conheci você... Mas não quero deixar de encontrá-lo, não pode­rei dormir sossegada enquanto não lhe entregar aquilo que lhe pertence.

Santiago deixou escapar um suspiro e, depois de outros segundos de silêncio, destacou:

Isso não interfere em nada, Samira. Você estará comigo quando encontrar com esse homem. E eu quero que você lhe diga, na minha frente, que não há mais nada entre vocês dois.

Segurando o queixo da moça entre o polegar e o indicador, beijou-lhe docemente os lábios e completou:

— Algo me diz que nossa relação não será simplesmente uma aven­tura, Samira... E, ainda que um pouco assustado com a velocidade com que as coisas estão acontecendo para mim, sinto-me extremamente feliz com isso!

 

A notícia da morte de sua mãe não poderia ter sido dada de forma mais cruel. Ainda se outra pessoa lhe tivesse avisado, Fefê teria ao menos com quem se manifestar, a quem fazer perguntas, alguém que lhe respondesse, que dissesse que a mãe morrera sem sofrer... Mas, as­sim, pela gravação fria e imparcial de uma secretária eletrônica, uma máquina...!

Não teve nem mesmo consciência de repor o fone no gancho, deixando-o dependurado, e saiu da cabine telefônica sem nada enxergar, a cabeça rodando como um pião, os flashes de memória assaltando-o.

Lembrou-se de sua mãe preparando-lhe o jantar, arrumando suas roupas, dando um último retoque em sua gravata quando saía para algu­ma festa. Recordou-se de Marialva aconselhando para o marido a não for­çar demais o filho caçula, garantindo que Fefê ainda era excessivamente criança para assumir qualquer responsabilidade maior...

E, como um pano de fundo, aquela frase da secretária eletrônica, martelava-lhe os ouvidos: "Não conseguiu suportar a dor da perda de seus três filhos e de seu genro..."

Então... Ele era culpado! E muito culpado; aliás, o único!

— Se eu tivesse ao menos telefonado, se não tivesse inventado essa coisa maluca de desaparecer...! — murmurou, caminhando sem rumo. — Com certeza ela não teria morrido!

Andando pelo saguão do aeroporto, nem sequer percebeu que saía, que empurrava a pesada porta de vidro que dava para a calçada, já no lado externo.

— Fui o culpado! — exclamou. — O único culpado!

Percebeu, de repente, que grossas e quentes lágrimas brotavam-lhe dos olhos, embaciando sua visão, ao mesmo tempo em que soluços incontroláveis começavam a lhe sacudir todo o corpo.

Sentiu uma súbita tontura, vacilou, segurou-se a um poste de ilu­minação, rodou como um bêbado e...

Sua mão escorregou. Caiu junto ao meio-fio, exatamente no ins­tante em que um pesado ônibus encostava para parar no ponto. O choque não foi grande, mas foi fatal: a cabeça de Fefê foi alcançada pelo pára-choque dianteiro do ônibus, com um estalo que pareceu, às testemunhas que assistiram à cena, o som de um pote se quebrando.

Fefê, possivelmente, nem sequer sentiu a aproximação da morte...

 

João Antônio e Flávio desembarcaram um tanto quanto nervosos. Incontáveis homens e mulheres usando coletes do FBI circulavam pelas dependências do aeroporto, e isso os estava angustiando. Indivíduos ha­bituados a viver, de alguma forma, sempre à margem da lei, a presença de tantos policiais deixava-os com os nervos à flor da pele.

Na fila de passageiros que tinham de passar pelo fiscal da imigração, Flávio comentou, baixinho:

Meu Deus! A polícia está ouriçada aqui!

E como é que você queria que estivesse, idiota? — retrucou João Antônio. — Depois do que aconteceu, a fiscalização e o policiamento estão mais do que rigorosos!

Procurando acalmar o gorila — e também a si mesmo — João An­tônio acrescentou:

Mas não temos nada a temer! Não estamos armados, não estamos trazendo nada de ilegal... Viemos aqui a negócios e, no fundo é isso mesmo!

Flávio meneou a cabeça em sinal de dúvida e comentou:

Não gosto disso...

Por fim, chegou a vez de os dois passarem pelo fiscal, que, sem mui­ta delicadeza, pediu-lhes os documentos.

Flávio estava na frente. O fiscal verificou-lhe a documentação e deixou-o passar. Em seguida, apanhou o passaporte de João Antônio.

Já no instante em que o fiscal conferiu o nome, João Antônio sentiu que alguma coisa estava mal. O funcionário da imigração cha­mou um policial que estava ali perto e que, bruscamente, fez João An­tônio deixar a fila.

Foi nesse instante que os nervos de Flávio não mais suportaram. Num movimento rápido, instintivo, esquecendo-se de que estava desar­mado, levou a mão direita para dentro do paletó, buscando o coldre axilar de que jamais se separava.

O movimento foi obviamente mal interpretado pelos policiais que ali se encontravam e que, também nervosos, não vacilaram em fazer uso de suas armas. Flávio caiu, crivado por pelo menos seis projéteis, e João Antônio, vendo seu companheiro tombar, desvencilhou-se do guarda que o estava segurando e correu para o corpo de Flávio, gritando.

Novamente, os policiais não tiveram contemplação e fizeram fogo. Atingido nas costas e na cabeça, João Antônio caiu, já morto, debruçado sobre o cadáver do comparsa.

 

- Não, Fernando — exclamou Clara, consternada. — Não há a menor sombra de dúvida. O corpo que encontraram é mesmo de Fefê...

Ajeitou os travesseiros de Fernando e prosseguiu:

Foi encontrado há quatro dias, o crânio completamente esmigalhado.

Fernando suspirou, seus lábios tremeram um pouco, uma lágrima escorreu por seu rosto e, com a voz embargada, imaginou:

Será que ele sofreu?

Não acredito — assegurou Clara, prontamente. — Ele nem deve ter percebido a morte! Segundo me disseram por telefone, sua cabeça foi praticamente destruída. A comprovação foi feita pelas impressões digitais.

Fernando não mais procurou conter o pranto e, entre soluços, gemeu:

Pobre Fefê... Logo agora que ele estava começando a aprender a trabalhar...!

Clara nada disse. Aliás, ela jamais diria para Fernando o verdadeiro teor do telefonema que recebera de Natalie, havia pouco mais de duas horas. Jamais contaria para ele que Fefê tinha morrido atropelado por um ônibus e que os documentos que encontraram em seu poder não eram de Carlos Fernando Henriques, mas sim de Ferdinando Ibanez. Também levaria para a sepultura a conclusão a que a tal jornalista, Natalie, tinha chegado: Fefê decidira assumir outra identidade e fugir. Fugir de alguma coisa que ninguém jamais saberia o que poderia ser. Tudo o que Fefê planejara tinha terminado no pára-choques de um ônibus, possivelmente poucos instantes de ele embarcar para essa fuga.

Clara pedira para Natalie não deixar a história chegar ao Brasil, ao conhecimento de Fernando Henriques.

Ele está muito doente, não vai suportar — declarara ela para Natalie. — E trazer a público toda a verdade não vai ajudar em nada... Deixe que o pai dele continue pensando que Fefê morreu no atentado.

Natalie relutara, protestara, dissera que a função de jornalista a obrigava a relatar a verdade, mas, depois de muitas súplicas e lágrimas de Clara, acabara por aceitar.

Na realidade — concluíra a moça —, ele já foi castigado pelo crime que cometeu. Um castigo até bem desproporcional... Não faria sen­tido castigar também o seu pai. Pode ficar sossegada. Além disso, depois de tudo o que está acontecendo aqui em Nova York, qualquer notícia que não esteja diretamente ligada a terrorismo tem uma imensa possibilidade de ser relegada a planos mais do que secundários. Basta não insistir, que a verdade sobre o Carlos Fernando será esquecida.

E a namorada dele, Samira? — indagara Clara. — Ele esteve com ela, não?

Natalie demorara um pouco, mas afinal respondera:

Sim... Eu também estive com ela. Samira percebeu que eu tinha reconhecido Carlos Fernando... E ele deve ter percebido, também. Acho que ele se apavorou, quis fugir e... houve o acidente.

E ela? Onde está?

Não se sabe. Depois que ela esteve comigo, numa tentativa de descobrir até onde eu estava sabendo ou, no mínimo, desconfiada, nunca mais a vi.

Depois de alguns instantes de silêncio, Natalie perguntara:

Vocês virão buscar o corpo?

Não! — quase gritara Clara. — Deixe que o enterrem aí mesmo. Depois, só me passe o número da sepultura e o local... Será muito melhor assim para o pai dele!

Enquanto Clara estava recordando a conversa com Natalie, Fer­nando parou de chorar e chamou-a.

Será que eles o puseram num caixão bonito? — perguntou ele.

Clara pensou um pouco e respondeu:

Vi, na televisão, que os caixões que a prefeitura de Nova York destinou para as vítimas do WTC são bem bonitos... Claro que são tristes, mas bonitos.

Fernando tomou um gole de água do copo que Clara lhe aproxima­va dos lábios e avaliou:

Não vou buscá-lo, Clara... Pelo menos, não agora... Seria pro­longar o meu sofrimento.

Com a ponta do lençol, enxugou uma lágrima e, segurando com força a mão de Clara, confessou:

Agora estou sozinho... E ainda não sei o que farei... Sem ne­nhum objetivo na vida...

 

Steinberg entrou na sala de Castells um pouco ressabiado. Não era do feitio do chefe chamá-lo para uma missão, sem que antes falasse com Donovan, seu parceiro e superior hierárquico.

Como vai sua vida? — perguntou Castells, fazendo-o sentar e oferecendo-lhe um cigarro.

Vai bem, obrigado... — respondeu Steinberg, cheio de des­confiança.

Preciso informar algo — avisou Castells. — Você foi transferi­do para outro setor do FBI... Um setor mais calmo, onde provavelmente você não vai ter como matar todos em que põe essas patas!

Steinberg mexeu-se na cadeira, incomodado, e Castells, muito sé­rio, explicou:

Donovan vai sair completamente da área "ação" e vai assumir a chefia de toda a área de pesquisa sobre terrorismo. E ele quer que você vá com ele.

Mas eu detesto a área burocrática! — reclamou Steinberg. — Essa história de ficar vendo papéis e arquivos de computador não é comigo!

Bem... — murmurou Castells. — É pegar ou largar... Pedir de­missão, quero dizer.

Steinberg refletiu por alguns instantes. Sua vontade era de pedir demissão, de se declarar injustiçado... Mas, ao mesmo tempo, sabia que essas determinações dentro do FBI nunca eram eternas. Mais dia, menos dia, Castells haveria de precisar dele novamente na área de campo, na "ação". Era uma simples questão de ter paciência.

Com um suspiro, o agente concordou:

Está certo... Contanto que não me impeçam de comer minhas esfihas...

 

Acho que ele não virá mais — disse Santiago, sem disfarçar o alívio. — Já estamos aqui há três dias além do prazo que você mesma estipulou, e esse seu... amigo... não apareceu.

Ninguém abandona um milhão de dólares assim! — protestou Samira. — Alguma coisa deve ter acontecido.

O casal Samira e Ruy Santiago tinha chegado à cidade de Vitória, capital do Espírito Santo, cinco dias atrás e, exatamente como ela tinha combinado com Fefê, hospedaram-se no Alice Vitória.

Durante os dois primeiros dias, ela ensaiara exaustivamente o que diria para Fefê no momento em que ele chegasse.

Não sei a razão de você se preocupar tanto — protestara San­tiago. — Basta dizer que tudo acabou e que ele pode pegar sua parte do dinheiro... É só fazer um cheque!

Ele vai espernear... — dissera Samira. — E eu gostaria de magoá-lo o menos possível!

Faça o que quiser — encerrara Santiago, um pouco ríspido. — Desde que não invente de voltar para ele e me abandonar...

Samira riu, abraçou o marido e garantiu:

Não tem esse perigo, meu amor... Posso ter demorado para en­contrar o meu homem. Mas encontrei! E esse homem é você! E eu só o abandonaria se você, e só você, desse motivo para isso!

Santiago retribuiu o carinho de Samira, forçou um sorriso e perguntou:

Quanto tempo mais você vai esperar?

Samira olhou intensamente para Santiago e pôde perceber que ele estava bastante agastado com tudo aquilo.

Não quero mais esperar, Ruy — respondeu ela. — Só acho que deveria dar uma satisfação. E devolver-lhe pelo menos a metade do dinheiro.

Santiago anuiu com a cabeça e, depois de alguns momentos, concluiu:

Ele deve ter sido apanhado pelo FBI, querida... Do jeito que você me contou que ele é, jamais teria conseguido disfarçar o nervosismo. E, daí a ser preso pelos federais, o passo é mínimo.

Inclinando-se um pouco, deu um beijo em Samira e convidou:

Vamos embora amanhã. Temos o Brasil inteiro para conhecer e esta terra vale a pena! Se ele tiver realmente interesse em encontrá-la, pode estar certa de que o fará. E, quanto mais tempo demorar, melhor!

Samira retribuiu o beijo e murmurou:

Você tem razão, querido... Não há por que ficar perdendo tem­po. E, se ele aparecer, saberei o que lhe dizer...

 

Donovan passou a se dedicar ao trabalho de análises das informa­ções que chegavam diariamente à sua mesa. Milhares de contas bancá­rias foram verificadas, e os dados dos correntistas foram checados, mi­lhares de pessoas foram investigadas, centenas foram detidas para mais averiguações.

Do trabalho intenso de Donovan e de mais cerca de quatro mil agentes do FBI e da CIA, o Pentágono e a Casa Branca elaboraram um plano de ação anti-terrorista — que, na verdade, deveria estar em execu­ção e funcionamento desde muito tempo atrás — e alianças internacio­nais, que culminaram com o ataque contra o Afeganistão, vinte e seis dias depois dos atentados contra as Torres Gêmeas e o próprio Pentágono.

As primeiras bombas caíram sobre Cabul no dia 7 de outubro de 2001, às nove horas da noite — uma da tarde, horário de Brasília — e sobre Kandahar, um pouco mais ao sul e principal base política do mulá Mohamed Omar, líder do Talibã.

 

                                                                                Ryoki Inoue  

 

                      

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