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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RASTRO DE MORTE / Blake Pierce
RASTRO DE MORTE / Blake Pierce

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Ele olhou para o relógio.
14h59.
Faltava menos de um minuto para a campainha tocar.
Ashley vivia a apenas doze ruas do colégio, a cerca de 1,5 km, e quase sempre fazia o trajeto sozinha. Só uma coisa o preocupava: que hoje seria uma daquelas raras ocasiões em que ela estaria acompanhada.
Cinco minutos depois do sinal tocar, ela apareceu, e o coração dele afundou no peito ao vê-la caminhando com duas outras garotas ao longo da Main Street. Elas pararam num cruzamento e começaram a conversar. Isso não ia dar certo. Elas tinham que ir embora. Tinham que ir.
Ele sentiu a ansiedade crescer em seu estômago. Este deveria ser o dia.
Sentado no banco do motorista de sua van, tentava controlar o que gostava de chamar de seu eu verdadeiro. Era seu eu verdadeiro que emergia quando ele estava fazendo experimentos em seus espécimes em casa. Era seu eu verdadeiro que lhe permitia ignorar os gritos e súplicas daqueles espécimes, de modo a poder focar em seu importante trabalho.
Ele tinha que manter seu eu verdadeiro escondido. Lembrava a si mesmo de chamá-las de garotas e não de espécimes. Lembrava que devia usar nomes apropriados, como "Ashley". Ele também se lembrava de que, para outras pessoas, ele parecia completamente normal e que, enquanto agisse assim, ninguém poderia descobrir o que seu coração abrigava.
Vinha fazendo isso há anos, agindo normalmente. Algumas pessoas até diziam que ele era tranquilo. Gostava disso. Significava que ele era um bom ator. E, ao agir normalmente quase o tempo todo, ele havia modelado uma vida, de certa forma, uma que algumas pessoas poderiam até mesmo invejar. Ele podia se esconder mesmo à vista de todos.
Mas agora ele podia sentir aquilo pulsando em seu peito, implorando para sair. O desejo estava dominando-o... ele tinha que contê-lo.
Fechou os olhos e respirou fundo algumas vezes, tentando lembrar as instruções. Na última respiração profunda, inspirou por cinco segundos e então expirou lentamente, permitindo que o som que havia aprendido escapasse lentamente de sua boca.
“Ommmmm...”
Então, abriu os olhos — e sentiu uma onda de alívio. As duas amigas dela haviam virado para o oeste, na Clubhouse Avenue, na direção do mar. Ashley continuou seguindo sozinha para o sul, pela Main Street, perto do parque de cães.
Em algumas tardes, ela ficava por lá, observando os cães correr pelo chão coberto de lascas de madeira, atrás de bolas de tênis. Mas não hoje. Hoje, ela caminhava com determinação, como se tivesse um compromisso.
Se soubesse o que estava por vir, ela não teria se importado.
Esse pensamento o fez sorrir.
Ele sempre a achou bonita. À medida que se aproximava centímetro por centímetro atrás dela, sempre dando passagem à onda de adolescentes que atravessavam a rua com imprudência após largar da escola, ele novamente admirou seu corpo atlético, esbelto, de surfista. Ela estava usando uma saia rosa que terminava um pouco acima dos joelhos e uma blusa azul vivo, bem justa.
Ele começou sua aproximação.
Uma calma morna se espalhou sobre seu corpo. Ativou um cigarro eletrônico de aparência original que estava sobre o console central da van e pisou suavemente no acelerador.
Ele encostou o veículo perto dela e a chamou pela janela aberta do passageiro.
"Ei".
De início, ela pareceu surpresa. Apertou os olhos enquanto olhava para dentro do veículo, sem poder dizer quem era.
"Sou eu", ele falou, casualmente. Ele estacionou a van, esticou-se e abriu a porta do passageiro, para que ela pudesse ver quem era.
Ela se inclinou um pouco para olhar melhor. Após um momento, ele notou uma expressão de reconhecimento passar pelo rosto dela.
"Ah, oi. Desculpe", a garota falou.
"Tudo bem", ele disse, para tranquilizá-la, antes de dar um longo trago.
Ela olhou mais atentamente para o aparelho na mão dele.
"Nunca vi um assim".
"Quer dar uma olhada?" ele ofereceu, da maneira mais relaxada que pôde.
Ela assentiu e se aproximou, inclinando-se. Ele também se inclinou na direção dela, como se fosse tirar o aparelho de sua boca para dá-lo a Ashley. Mas quando ela estava a menos de um metro de distância, ele apertou num botão do aparelho, que fez um pequeno compartimento se abrir, e que lançou uma substância química bem no rosto dela, numa pequena nuvem. No mesmo instante, ele levantou uma máscara em seu próprio rosto, para não inalar o gás.
Foi tudo tão sutil e tranquilo que Ashley nem mesmo notou. Antes que ela pudesse reagir, seus olhos começaram a fechar, seu corpo ficou sem forças.
Ela já estava inclinada para frente, perdendo a consciência, e tudo o que ele teve que fazer foi puxá-la para o banco do passageiro. Para um observador casual, poderia até mesmo parecer que ela entrou no veículo por vontade própria.
O coração dele estava acelerado, mas lembrou a si mesmo que deveria manter a calma. Ele já tinha chegado até ali.
Aproximou-se do espécimen, fechou a porta do passageiro e afivelou o cinto de segurança dela, e depois o seu. Por fim, ele se permitiu dar uma última respiração profunda, inspirando e expirando devagar.
Quando se certificou de que podia ir embora sem ser notado, partiu com o veículo para a rua.
Logo, ele se misturava ao tráfego do meio da tarde do sul da Califórnia, apenas mais um motorista dentre milhares de outros, voltando para casa, tentando navegar num mar de humanidade.

 

 

 


 

 

 


CAPÍTULO UM

Segunda-feira

Final da tarde

A detetive Keri Locke suplicou a si mesma para não fazer isso daquela vez. Como a mais nova detetive da Unidade de Pessoas Desaparecidas da Los Angeles Pacific Division, setor oeste (LAPD), esperava-se que ela trabalhasse mais duro do que qualquer um na divisão. E como uma mulher de 35 anos, que havia se juntado à polícia há apenas quatro anos, ela achava que devia ser a policial mais esforçada em toda a LAPD. Não podia se dar ao luxo sequer de dar a impressão de estar fazendo corpo mole.

Ao seu redor, o departamento fervilhava, agitado. Uma idosa de origem hispânica estava sentada numa mesa próxima, dando um depoimento sobre o roubo de uma bolsa. No final do corredor, um ladrão de carros estava sendo fichado. Era uma tarde típica, do que havia se tornado o novo padrão de normalidade em sua vida. E ainda assim, aquele impulso recorrente a consumia, sem poder ser ignorado.

Ela cedeu. Levantou-se e foi até a janela que dava para a Culver Avenue. Ficou ali parada, e podia ver seu próprio reflexo no vidro. Sob a luz ondulante do sol da tarde, ela parecia meio humana, meio fantasma.

Era como se sentia. Ela sabia disso objetivamente: que era uma mulher atraente. Com 1,70 m de altura e cerca de 59 kg — 60, se fosse sincera — cabelos loiros escuros e um corpo que havia escapado da gravidez relativamente ileso, ela ainda atraía olhares por onde passava.

Mas se qualquer um olhasse mais atentivamente, veria que seus olhos castanhos estavam vermelhos e tristes, sua testa era uma massa emaranhada de linhas prematuras, e sua pele frequentemente tinha a palidez de... bem, de um fantasma.

Como na maioria dos dias, ela estava usando uma blusa simples por dentro de calças pretas e sapatilhas pretas que compunham um look profissional, mas com o qual era fácil de correr. Seus cabelos estavam puxados num rabo de cavalo. Era seu uniforme não-oficial. Praticamente, a única coisa que mudava diariamente era a cor da blusa que ela usava. Tudo isso reforçava seu sentimento de que estava apenas sobrevivendo, mais do que realmente vivendo.

Keri sentiu algum movimento com o canto do olho e foi tirada de seus pensamentos. Estavam vindo.

Pela janela, podia-se ver que a Culver Boulevard estava quase deserta. Havia uma ciclovia e calçadão do outro lado da rua. Na maioria dos dias, no final da tarde, a avenida estava tomada de pedestres. Mas hoje era um dia incrivelmente quente, com temperaturas bem acima dos 32°C e nenhuma brisa, mesmo aqui, a menos de 8 km da praia. Os pais e as mães que normalmente buscavam seus filhos a pé da escola foram pegá-los em seus carros com ar condicionado hoje. Exceto uma.

Exatamente às 16h12, pontualmente, uma menina de bicicleta, com cerca de sete ou oito anos, pedalava lentamente pela ciclovia. Ela usava um vestido branco chique. Sua jovem mãe vinha logo atrás, vestindo calça jeans e camiseta, com uma mochila pendurada casualmente sobre um dos ombros.

Keri lutou conta a ansiedade que borbulhava em seu estômago e olhou ao redor para ver se alguém no escritório a estava observando. Ninguém parecia se importar com ela. Então, permitiu-se ceder à ânsia que estava tentando ignorar o dia inteiro e olhou atentamente.

Keri as observava com olhos invejosos, de adoração. Ela ainda não podia acreditar, mesmo após tantas vezes, nesta janela. A garota era a igualzinha a Evie: os cabelos loiros cacheados, os olhos verdes, até mesmo o sorriso levemente torto.

Ela ficou ali numa espécie de transe, olhando pela janela por muito tempo depois da mãe e da filha terem desaparecido de vista.

Quando finalmente saiu do seu torpor e voltou para o ambiente da delegacia, a idosa hispânica estava indo embora. O ladrão de carros havia sido fichado. Algum novo canalha, algemado e aborrecido, havia deslizado até seu lugar próximo ao local em que seria fichado, com um oficial uniformizado e alerta de pé à sua esquerda.

Ela levantou os olhos para o relógio digital na parede acima da cafeteira. Eram 16h22.

Eu realmente fiquei parada naquela janela por dez minutos inteiros? Isso está piorando, ao invés de melhorar.

Ela caminhou de volta para sua mesa de cabeça baixa, tentando não fazer contato visual com nenhum colega de trabalho curioso. Sentou-se e olhou para os arquivos em sua mesa. O caso Martine estava praticamente encerrado, esperando apenas uma assinatura do promotor antes que ela pudesse jogá-lo na gaveta como "encerrado até julgamento". O caso Sander estava suspenso até a CSU apresentar seu relatório preliminar. A divisão Rampart pediu à Pacific para investigar uma prostituta chamada Roxie, que havia desaparecido; um colega de trabalho havia dito a eles que ela havia começado a trabalhar na Westside e eles esperavam que alguém na unidade dela pudesse confirmar isso, para que eles não tivessem que abrir um caso.

O complicado em relação a pessoas desaparecidas, pelo menos adultas, era que desaparecer não constitui um crime. A polícia tinha mais liberdade para investigar no caso de menores, dependendo da idade. Mas, em geral, não havia nada que impedisse alguém de simplesmente sumir de sua vida. Isso acontecia mais frequentemente do que a maioria imaginava. Sem algumas evidências ou golpes sujos, a polícia estava limitada no que poderia fazer legalmente para investigar. Por causa disso, casos como o de Roxie frequentemente se perdiam nas engrenagens do sistema.

Com um suspiro, Keri percebeu que, com exceção de algo extraordinário, não havia motivo para ficar além das cinco horas da tarde.

Ela fechou os olhos e se imaginou, a menos de uma hora daquele momento, de volta à sua casa-barco, servindo uma dose de três dedos — certo... quatro — de Glenlivet e relaxando, comendo o que sobrou da comida chinesa que ela pediu na véspera e assistindo a reprises de Scandal. Se essa terapia personalizada não desse certo, ela teria que voltar ao sofá da Drª Blanc, uma alternativa pouco animadora.

Ela já havia começado a arquivar seus casos do dia quando Ray entrou na sala e afundou na cadeira do outro lado da mesa grande que eles dividiam. Ray era oficialmente o detetive Raymond “Big” Sands, seu parceiro de quase um ano e seu amigo por mais de sete.

Ele fazia jus ao apelido. Ray (Keri nunca o chamava de "Big"— ele não precisava ter o ego massageado) era um cara negro com 1,90 m de altura, 104 kg, com uma careca brilhante, um dente inferior lascado, um cavanhaque meticulosamente aparado, e uma queda por usar camisas sociais um tamanho menor que o dele, apenas para enfatizar seu porte físico.

Aos 40 anos, Ray ainda parecia o boxeador de 20 anos que ganhou medalha de bronze nas Olimpíadas, e o levantador de peso profissional, com um recorde de 28-2-1, que ele vinha sendo desde os 28. Foi nessa época que um canhotozinho desajeitado, doze centímetros mais baixo que ele, arrancou seu olho direito com um gancho violento e interrompeu sua vida bruscamente. Depois disso, ele usou um tapa-olho por dois anos, mas não gostou do desconforto, e finalmente começou a usar um olho de vidro, que funcionava para ele, de certa forma.

Assim como Keri, Ray entrou para a força policial mais tarde que a maioria, quando buscava um novo propósito no início de seus 30 anos. Ele foi sendo promovido rapidamente e agora era o detetive sênior da Unidade de Pessoas Desaparecidas, ou UPD, da Pacific Division.

"Você parece uma mulher sonhando com ondas e uísque", ele falou.

"É tão óbvio assim?" Keri perguntou.

"Sou um bom detetive. Meus poderes de observação são inigualáveis. Além disso, você já mencionou seus animados planos para hoje à noite duas vezes".

"O que posso dizer? Eu sou uma mulher com objetivos, Raymond".

Ele sorriu, seu olho bom traindo uma simpatia que sua postura física escondia. Keri era a única que tinha permissão de chamá-lo por seu verdadeiro nome. Ela gostava de misturá-lo um pouco com outros apelidos, menos elogiosos. Frequentemente, ele fazia o mesmo com ela.

"Ouça, Pequena Miss Sunshine, talvez fosse melhor você usar os últimos minutos de seu turno trocando informações com a CSU sobre o caso Sanders, ao invés de ficar sonhando em beber durante o dia".

"Beber durante o dia?" ela disse, fingindo estar ofendida. "Não se trata disso se eu começar a beber depois das cinco, Homem de Aço".

Ele ia replicar quando o telefone tocou. Keri atendeu antes que Ray pudesse dizer alguma coisa e estirou a língua para ele, em tom de brincadeira.

"Pessoas Desaparecidas da Pacific Division. Detetive Locke falando".

Ray também atendeu em sua linha, mas permaneceu em silêncio.

A mulher ao telefone parecia jovem, no final dos vinte ou no início dos trinta anos. Antes mesmo que ela dissesse por que estava ligando, Keri pôde notar a preocupação em sua voz.

"Meu nome é Mia Penn. Eu moro nas imediações da Dell Avenue, nos canais de Venice. Estou preocupada com minha filha, Ashley. Ela deveria ter chegado da escola às três e meia. Ela sabia que eu a levaria para uma consulta no dentista às 16h45. Ela me enviou uma mensagem de texto logo depois de sair da escola, às três, mas ainda não chegou e não está atendendo a nenhuma de minhas ligações ou mensagens. Minha filha não costuma fazer isso, nunca. É muito responsável".

"Srª Penn, Ashley geralmente volta de carro ou a pé para casa?" Keri perguntou.

"A pé. Ela ainda está na décima série... tem 15 anos. Ainda nem começou a fazer aulas de direção".

Kery olhou para Ray. Sabia o que ele ia dizer, e não podia realmente discutir a respeito. Mas algo na voz de Mia Penn mexeu com ela. Sentia que a mulher estava quase perdendo o controle. Queria pedir a ele para dispensar o protocolo, mas não conseguia achar uma justificativa plausível para isso.

"Srª Penn, aqui é o Detetive Ray Sands. Estava na linha. Quero que a senhora respire fundo e então me diga se a sua filha já chegou em casa tarde antes".

Mia Penn desatou a falar, ignorando a parte da respiração profunda.

"É claro", ela admitiu, tentando esconder a angústia em sua voz. "Como eu falei, ela tem 15 anos. Mas sempre me mandou uma mensagem ou ligou quando se atrasava por uma hora ou coisa assim. E nunca se tínhamos um compromisso".

Ray respondeu sem levantar os olhos para Keri, que, ele sabia, olhava-o com ar de reprovação.

"Srª Penn, oficialmente, sua filha é menor de idade e, portanto, as leis típicas sobre pessoas desaparecidas não se aplicam como para um adulto. Temos uma autoridade mais ampla para investigar. Mas, falando sinceramente com a senhora, uma adolescente que não responde às mensagens de sua mãe e que não chegou em casa menos de duas horas depois de largar da escola... isso não vai dar início ao tipo de resposta imediata que a senhora espera. Neste ponto, não há muito que podemos fazer. Numa situação assim, o melhor que a senhora poderia fazer era vir até a delegacia prestar uma queixa. Faça isso. Não há problema algum e poderia facilitar o processo se precisarmos acelerar as coisas mais tarde”.

Houve uma longa pausa antes que Mia Penn respondesse. A voz dela tinha um tom afiado que não se fazia notar antes.

"Por quanto tempo eu preciso esperar antes que você 'acelere', detetive?" ela perguntou. "Mais duas horas é suficiente? Tenho que esperar até escurecer? Até a manhã seguinte? Aposto que se eu fosse..."

Seja o que for que Mia Penn ia dizer, ela se deteve, como se soubesse que qualquer outra coisa que acrescentasse seria contra-produtivo. Ray ia responder, mas Keri levantou a mão e lhe deu seu olhar já patenteado de "deixe que eu cuido disso".

"Ouça, Srª Penn, aqui é a detetive Locke novamente. A senhora falou que mora nos Canais, não foi? Fica no meu caminho para casa. Diga-me seu email. Vou enviar para a senhora o formulário de pessoas desaparecidas. Pode começar a preenchê-lo e eu vou passar aí para ajudá-la a finalizá-lo e tornar mais rápida a sua inclusão no sistema. O que acha?"

"Agradeço muito, detetive Locke. Obrigada".

"Sem problema. E, ei, talvez Ashley chegue em casa quando eu aparecer aí e eu poderei dar a ela um sermão severo sobre manter a mãe mais bem informada... e de graça".

Keri pegou sua bolsa e suas chaves, preparando-se para ir à casa de Penn.

Ray não havia dito uma palavra desde que ela desligou o telefone. Ela sabia que ele estava fervilhando por dentro, mas se recusou a levantar os olhos. Se ele a olhasse nos olhos, então, seria ela quem iria receber um sermão, e não estava a fim mesmo.

Mas, aparentemente, Ray não precisava fazer contato visual para compartilhar o que queria dizer.

"Os Canais não ficam no caminho da sua casa".

"Eles ficam só um pouquinho fora do meu caminho", ela insistiu, ainda sem levantar os olhos. "E daí que terei que esperar até seis e meia para voltar para a marina e para a Olívia Palito e Associados? Não é grande coisa".

Ray deu um suspiro e se recostou em sua cadeira.

"Sim, é grande coisa. Keri, você trabalha como detetive aqui por quase um ano. Gosto de ter você como parceira. E você já fez um ótimo trabalho, mesmo antes de conseguir seu distintivo. O caso Gonzales, por exemplo. Acho que não poderia ter resolvido e tenho investigado esse tipo de caso por mais de uma década a mais do que você. Você tem um tipo de sexto sentido sobre essas coisas. Foi por isso que a usamos como recurso nos velhos tempos. E é por isso que você tem o potencial para ser uma detetive realmente notável".

"Obrigada", ela disse, apesar de saber que ele não tinha terminado.

"Mas você tem uma fraqueza principal e ela vai arruiná-la se não a controlar. Precisa deixar o sistema funcionar. Ele existe por uma razão. 75% do nosso trabalho vai se resolver por conta própria nas primeiras 24h, sem a nossa ajuda. Precisamos deixar isso acontecer e nos concentrar nos outros 25%. Se não fizermos isso, vamos terminar exaustos. Podemos nos tornar improdutivos, ou, pior — contra-produtivos. E, desse jeito, estaremos traindo as pessoas que realmente precisam de nós. Faz parte de nosso trabalho escolher nossas batalhas".

"Ray, eu não estou pedido um alerta na mídia nacional ou coisa do tipo. Estou apenas ajudando uma mãe preocupada a preencher a papelada. E, sinceramente, fica a apenas 15 minutos do meu caminho de casa".

"E..." ele falou, aguardando.

"E havia algo na voz dela. Está escondendo algo. Apenas quero falar com ela cara a cara. Pode não ser nada. E, se não for nada, vou embora".

Ray meneou a cabeça e tentou pela última vez.

"Quantas horas você desperdiçou com aquela criança de rua em Palms que você tinha certeza de que tinha desaparecido, mas que não tinha? Quinze?"

Keri deu de ombros.

"É melhor prevenir do que remediar", ela murmurou.

"É melhor estar empregada do que ser demitida por uso inapropriado dos recursos do departamento", ele contra-argumentou.

"Já passou das cinco", Keri falou.

"E daí?"

"E daí que estou fora do meu horário de serviço. E aquela mãe está esperando por mim".

"Até parece que você nunca trabalha fora do expediente. Ligue para ela, Keri. Diga-lhe para enviar os formulários por email quando tiver terminado. Diga para ela ligar se tiver alguma dúvida. Mas vá para casa".

Keri vinha sendo o mais paciente que podia, mas, no que lhe dizia respeito, a conversa terminava ali.

"Vejo você amanhã, Sr. Tudo-nos-conformes", ela disse, apertando o braço dele.

Enquanto ela se dirigia para o estacionamento em direção ao seu Toyota Prius prata de dez anos, ela tentou se lembrar do caminho mais rápido até os Canais de Venice. E já sentia uma urgência que não conseguia compreender.

Um sentimento desagradável.


CAPÍTULO DOIS


Segunda-feira

Final da tarde


Keri dirigiu o Prius pela hora do rush até a fronteira oeste de Venice, dirigindo mais rápido do que gostaria. Algo a impulsionava, um sentimento instintivo emergia, um de que ela não gostava.

Os Canais ficavam a apenas alguns blocos dos pontos turísticos mais visitados, como a Boardwalk e Muscle Beach, e levou 10 minutos dirigindo para cima e para baixo da Pacific Avenue antes que ela finalmente encontrasse uma vaga para estacionar. Ela estacionou o carro e deixou seu celular dirigi-la pelo resto do caminho a pé.

Os Canais de Venice não são apenas o nome de um bairro. Eles consistem num conjunto de canais de verdade, construídos pelo homem no início do século 20, inspirados nos canais originais da famosa cidade italiana. Eles se estendiam por cerca de dez quarteirões logo ao sul da Venice Boulevard. Algumas das casas que se alinhavam junto à superfície da água eram simples, mas a maioria era extravagante, no sentido praieiro. Os terrenos eram geralmente pequenos, mas algumas das casas valiam alguns milhões de dólares.

A casa na qual Keri chegou estava entre as mais impressionantes. Tinha três andares, e apenas a cobertura era visível, por causa da alta parede de estuque que a protegia. Ela circulou a casa partindo dos fundos, que ficava de frente para o canal, até o portão principal. Ao fazer isso, notou várias câmeras de segurança nas paredes da mansão e da casa em si. Várias delas pareciam estar monitorando seus movimentos.

Por que uma mãe de vinte e poucos anos com uma filha adolescente vive aqui? E por que uma segurança tão grande?

Ela alcançou o portão de ferro forjado da frente e se surpreendeu ao encontrá-lo aberto. Entrou e já ia bater na porta, quando ela se abriu de dentro da casa.

Uma mulher se adiantou para encontrá-la, usando jeans desfiados e uma regata branca, com cabelos castanhos longos e volumosos e pés descalços. Como Keri suspeitou ao ouvi-la ao telefone, ela não podia ter mais de 30 anos. Mais ou menos da altura de Keri e facilmente uns nove quilos mais magra, ela era bronzeada e estava em forma. E era linda, apesar da expressão angustiada em seu rosto.

O primeiro pensamento de Keri foi: esposa troféu.

"Mia Penn?" Keri perguntou.

"Sim. Por favor, entre, detetive Locke. Eu já preenchi os formulários que você enviou".

Dentro, a casa se abriu num vestíbulo imponente, com duas escadas de mármore combinando que levavam ao andar de cima. Havia espaço suficiente ali para jogar uma partida de basquete. O interior era imaculado, com obras de arte cobrindo cada parede e esculturas adornando mesas de madeira entalhadas que pareciam ser obras de arte também.

O lugar poderia aparecer na revista Casas que lhe Fazem Questionar sua Autoestima. Keri reconheceu um quadro em destaque como um Delano, que, por si só, valia mais que a patética casa-barco de 20 anos de idade que ela chamava de lar.

Mia Penn a guiou até uma das salas mais simples e ofereceu-lhe um lugar para sentar e uma garrafa de água. No canto da sala, um homem musculoso vestindo calças e blazer estava casualmente encostado na parede. Ele não disse nada, mas seus olhos não se desviavam de Keri. Ela notou uma pequena elevação no quadril direito dele, sob o blazer.

Arma. Deve ser um segurança.

Assim que Keri se sentou, sua anfitriã não perdeu tempo.

"Ashley ainda não respondeu a minhas chamadas ou mensagens. Ela não tuítou desde que largou da escola. Nenhum post novo no Facebook. Nada no Instagram". Ela suspirou e acrescentou: "Obrigada por vir. Nem posso explicar o quanto isso é importante para mim".

Keri assentiu lentamente, estudando Mia Penn, tentando ter uma ideia de quem ela era. Assim como ao telefone, quase não conseguia disfarçar o pânico que sentia.

Ela parece realmente temer que algo tenha acontecido com sua filha. Mas está escondendo algo.

"Você é mais jovem do que eu imaginava", Keri falou, finalmente.

"Tenho 30 anos. Tive Ashley aos 15".

"Uau".

"Sim, muita gente tem essa reação. Sinto que, por termos idades tão próximas, temos uma conexão. Juro que, às vezes, eu sei o que ela está sentindo, mas antes de vê-la. Eu sei que parece ridículo, mas temos esse vínculo. E sei que não é uma evidência, mas posso sentir que algo está errado".

"Ainda é cedo para entrar em pânico", Keri disse.

Elas passaram aos fatos.

Mia tinha visto Ashley pela última vez naquela manhã. Estava tudo bem. Ela comeu iogurte com granola e morangos fatiados no café. Foi para a escola de bom humor.

A melhor amiga de Ashley era Thelma Gray. Mia ligou para ela quando a filha não apareceu após a escola. De acordo com Thelma, Ashley estava na aula de geometria do terceiro período, como era esperado, e tudo parecia normal. A última vez que ela viu Ashley foi no corredor, por volta das 14h. Ela não tinha ideia de por que a amiga ainda não tinha chegado em casa.

Mia também falou com o namorado de Ashley, um garoto com pinta de atleta chamado Denton Rivers. Ele disse que havia visto Ashley na escola de manhã, e só. Ele escreveu algumas mensagens para ela algumas vezes depois da escola, mas ela nunca respondeu.

Ashley não tomava nenhuma medicação; não tinha problemas de saúde. Mia falou que havia averiguado o quarto da filha há algumas horas, e que estava tudo normal.

Keri registrou tudo apressadamente num caderninho, fazendo anotações específicas de nomes que ela contactaria mais tarde.

"Meu marido deve voltar do escritório a qualquer minuto. Sei que também vai querer falar com você".

Keri levantou os olhos do seu caderno. Algo na voz de Mia havia mudado. Parecia mais cautelosa.

Seja lá o que for que ela está escondendo, aposto que tem relação com isto".

"E como se chama o seu marido?" ela perguntou, tentando parecer casual.

"O nome dele é Stafford".

"Espere", Keri disse. "Seu marido é Stafford Penn, o senador americano Stafford Penn?"

"Sim".

"Essa informação é bem importante, Srª Penn. Por que não a mencionou antes?"

"Stafford me pediu para não dizer", ela se desculpou.

"Por quê?"

"Ele disse que queria falar sobre isso com você quando chegasse".

"Quando mesmo ele vai chegar?"

"Daqui a menos de dez minutos, com certeza".

Keri a encarou, tentando decidir se forçava um pouco as coisas. Por fim, ela preferiu se conter por ora.

"Você tem uma foto de Ashley?"

Mia Penn deu a ela seu celular. O protetor de tela era a foto de uma adolescente em um vestido de verão. Ela parecia a irmã mais nova de Mia. A não por Ashley ter os cabelos loiros, era difícil diferenciar quem era quem. A garota era um pouco mais alta, com uma estrutura mais atlética e um bronzeado mais intenso. O vestido não escondia suas pernas musculosas e ombros fortes. Keri suspeitou que ela surfava.

"Seria possível que ela apenas tenha se esquecido da consulta e esteja pegando ondas lá fora?" Keri perguntou.

Mia sorriu pela primeira vez desde que Keri a conheceu.

"Estou impressionada, detetive. Você teve esse palpite com base apenas na foto? Não, Ashley gosta de surfar de manhã, quando as ondas são melhores e há menos bagunceiros. Mas conferi a garagem. A prancha dela está lá".

"Você poderia também me enviar esta foto, assim como alguns closes de sua filha com e sem maquiagem?"

Enquanto Mia fazia isso, Keri fez outra pergunta.

"Qual a escola dela?"

"É a West Venice High".

Keri não pôde esconder sua surpresa. Ela conhecia bem o lugar. Era uma grande escola pública de ensino médio, um caldeirão de milhares de jovens, com tudo o que isso envolvia. Ela havia prendido vários alunos da West Venice.

Por que diabos a filha rica de um senador americano estuda lá ao invés de numa escola privada sofisticada?

Mia deve ter lido a surpresa no rosto de Keri.

"Stafford nunca gostou disso. Ele sempre a quis em escolas privadas, a caminho de Harvard, onde ele estudou. Mas não apenas para dar a ela um melhor ensino. Ele também queria mais segurança", ela disse. "Eu sempre quis que ela estudasse em escolas públicas, misturada com crianças de verdade, onde pudesse aprender sobre a vida real. É uma das poucas batalhas que realmente ganhei dele. Se Ashley terminar machucada por causa de algo na escola, será minha culpa".

Keri queria cortar aquele tipo de pensamento rápido.

"Primeiro, Ashley vai ficar bem. Segundo, se algo acontecesse com ela, seria culpa da pessoa que a machucou, não da mãe que a ama".

Keri observou para ver se Mia Penn havia acreditado naquilo, mas não soube dizer. A verdade era que sua frase tranquilizadora tinha o objetivo de evitar que uma fonte valiosa entrasse em colapso mais do que para demonstrar apoio. Ela decidiu continuar pressionando.

"Vamos falar um pouco mais sobre isso. Havia alguém que quisesse fazer mal a ela, ou a você ou a Stafford, aliás?"

"À Ashley, não; a mim, não; a Stafford, nada específico, que eu saiba, a não ser o que se relaciona ao território de fazer o que ele faz. Quero dizer, ele recebe ameaças de morte de eleitores que afirmam ser alienígenas. Então, é difícil saber o que levar a sério".

"E você não recebeu nenhuma ligação pedindo resgate, certo?"

O súbito estresse no rosto da mulher era palpável.

"Você acha que foi isso?"

"Não, não, não, estou só checando todas as possibilidades. Não acho que seja nada ainda. Essas são apenas perguntas de rotina".

"Não. Ninguém ligou exigindo resgate".

"É óbvio que vocês têm algum dinheiro..."

Mia concordou com a cabeça.

Venho de uma família muito rica. Mas ninguém sabe disso, na verdade. Todo mundo imagina que nosso dinheiro vem de Stafford".

"Só por curiosidade, de quanto estamos falando, exatamente?" Keri perguntou. Às vezes, esse emprego tornava a discrição impossível.

"Exatamente? Eu não sei... temos uma casa à beira-mar em Miami e uma casa num condomínio em São Francisco, ambas estão no nome de empresas. Estamos no mercado de ações e temos muitos outros bens. Você viu as obras de arte na casa. Se contarmos tudo, provavelmente estaremos falando de cerca de 55 a 60 milhões".

"Ashley sabe disso?"

A mulher deu de ombros.

"Até certo ponto... ela não sabe o valor exato, mas sabe que tem muito dinheiro e que o público não deve ficar sabendo de quanto. Stafford gosta de projetar uma imagem de 'homem do povo'".

"Ela poderia falar sobre isso? Talvez, apenas para suas amigas?"

"Não. Ela recebeu instruções estritas para não fazer isso". A mulher suspirou e então disse, "Deus, vou me calar realmente. Stafford ficaria lívido se me ouvisse".

"Vocês dois se dão bem?"

"Sim, é claro".

"E quanto à Ashley? Você se dá bem com ela?"

"Não há mais ninguém no mundo mais próxima a mim".

"Certo. Stafford se dá bem com ela?"

"Eles se dão bem".

"Haveria alguma razão pela qual ela quisesse fugir de casa?"

"Não. De jeito nenhum. Não é o que está acontecendo aqui".

"Como estava o humor dela recentemente?"

"Bom. Ela é feliz, estável, tudo isso".

"Nenhum problema com garotos..."

"Não".

"Drogas ou álcool?"

"Não posso dizer nunca. Mas, em geral, ela é uma moça responsável. Este verão, ela fez um treinamento como salva-vidas júnior. Tinha que acordar às cinco da manhã todo dia para isso. Ela é confiável. Além disso, ainda não teve tempo de se entediar. Esta é a segunda semana desde a volta às aulas".

"Algum drama por lá?"

"Não. Ashley gosta dos seus professores. Ela se dá bem com todos os outros jovens. Também vai entrar no time de basquete feminino".

Keri encarou a mulher e perguntou, "Então, o que você acha que está acontecendo?"

A confusão tomou conta do rosto da mulher. Seus lábios tremeram.

"Eu não sei". Ela levou os olhos para a porta da frente, e então, de volta para Keri, e disse, "Só quero que ela volte para casa. Onde diabos está Stafford?"

Como se aproveitando a deixa, um homem entrou na sala. Era o senador Stafford Penn. Keri o havia visto dezenas de vezes na TV. Mas, em pessoa, passava uma impressão que não era transmitida pela tela. Com cerca de 45 anos, ele era alto e musculoso, facilmente com 1,80 m, com os cabelos loiros, como os de Ashley, um maxilar bem definido e olhos verdes penetrantes. Ele tinha um magnetismo que quase parecia vibrar. Keri engoliu em seco quando ele estirou a mão para apertar a dela.

"Stafford Penn", ele falou, apesar de notar que ela já sabia disso.

Keri sorriu.

"Keri Locke", ela disse. "Unidade de Pessoas Desaparecidas da LAPD, Pacific Division”.

Stafford deu um rápido beijo na bochecha da esposa e se sentou ao seu lado. Ele não perdeu tempo com cortesias.

"Agradecemos por ter vindo. Mas, pessoalmente, acho que podemos esperar até amanhã de manhã".

Mia olhou para ele, sem acreditar.

"Stafford..."

"Jovens escapam de seus pais", ele continuou. "Eles se desligam. Faz parte do processo de crescer. É por isso que pedi a Mia para ser discreta ao ligar para você. Duvido que esta seja a última vez que vamos lidar com esse tipo de coisa e eu não quero ser acusado de ser um pai chorão e superprotetor".

Keri perguntou: "Então, o senhor acha que não há nada de errado?"

Ele balançou a cabeça.

"Não. Acho que ela é uma adolescente fazendo o que adolescentes fazem. Para ser honesto, estou quase feliz por este dia ter chegado. Isso mostra que ela está ficando mais independente. Grave minhas palavras, ela vai aparecer esta noite. No pior dos casos, amanhã de manhã, provavelmente, de ressaca".

Mia o encarava, incrédula.

"Primeiro que tudo", ela disse, "é uma tarde de segunda-feira durante o ano letivo, não as férias de verão em Daytona. E, em segundo lugar, ela não faria isso".

Stafford balançou a cabeça.

"Todos nós enlouquecemos um pouco algumas vezes, Mia", ele falou. "Diabos, quando eu fiz 15 anos, bebi dez cervejas em duas horas. Literalmente, botei os bofes para fora por três dias. Lembro que meu pai deu uma boa risada ao saber disso. Acho que ele estava orgulhoso de mim, na verdade".

Keri assentiu, fingindo que aquilo era completamente normal. Não havia razão para irritar um senador dos EUA se pudesse evitar.

"Obrigada, senador. Provavelmente, o senhor está certo. Mas, já que estou aqui, se importaria se eu desse uma rápida olhada no quarto de Ashley?"

Ele deu de ombros e apontou para a escada.

"Pode ir".

No andar de cima, no final do corredor, Keri entrou no quarto de Ashley e fechou a porta. A decoração era como ela esperava — uma cama chique, guarda-roupas combinando, pôsteres de Adele e da lenda do surfe de um braço só, Bethany Hamilton. Ela tinha um abajur de lava retrô no criado-mudo. Sobre um de seus travesseiros, estava um bicho de pelúcia. Era tão velho e surrado que Keri não sabia dizer se era um cachorro ou uma ovelha.

Ela ligou o MacBook na mesa de Ashley e ficou surpresa ao ver que não era protegido por senha.

Que adolescente deixa seu laptop desprotegido sobre a mesa para qualquer adulto intrometido dar uma olhada?

O histórico da internet mostrava as buscas apenas dos últimos dois dias; as anteriores haviam sido limpas. O que restava parecia, principalmente, se relacionar a um trabalho de biologia que ela estava pesquisando. Havia ainda algumas visitas a sites de agências de modelos locais, assim como algumas em Nova York e Las Vegas. Outro era o site para um campeonato de surfe próximo em Malibu. Ela também havia visitado o site de uma banda local, chamada Rave.

Ou esta garota é a santinha mais chata de todos os tempos, ou ela está deixando essas coisas à vista de propósito para apresentar uma imagem que ela quer que seus pais engulam.

O instinto de Keri a avisou que era o último caso.

Ela se sentou no pé da cama de Ashley e fechou os olhos, tentando canalizar o modo de pensar de uma garota de 15 anos. Ela já teve essa idade. Ainda tinha a esperança de ter uma em casa. Após dois minutos, abriu os olhos e tentou olhar para o quarto como pela primeira vez. Escaneou as prateleiras, procurando por qualquer coisa fora do comum.

Keri já estava quase desistindo quando seu olhar caiu sobre um livro de matemática no final da prateleira de Ashley. O título era Álgebra para a 9ª série.

Mia não havia dito que Ashley estava na 10ª série? Sua amiga Thelma a viu na aula de geometria. Então, por que ela estava mantendo um velho livro didático? Apenas para o caso de precisar relembrar alguma coisa?

Keri pegou o livro, abriu e começou a folheá-lo. Após dois terços do volume, fácil de passar batido, ela encontrou duas páginas cuidadosamente coladas com fita adesiva. Havia algo duro entre elas.

Keri abriu parte da fita e algo caiu no chão. Ela o pegou. Era uma carteira de motorista falsa, mas extremamente parecida com uma autêntica, com o rosto de Ashley nela. Mas o nome que se lia no documento era Ashlynn Penner. A data de nascimento indicava que ela tinha 22 anos.

Mais confiante de que agora estava na pista certa, Keri se moveu rapidamente pelo quarto. Ela não sabia quanto tempo tinha antes dos Penn desconfiarem de algo. Após cinco minutos, encontrou mais alguma coisa. Escondida num tênis, nos fundos do armário, estava uma cápsula de uma bala 9mm usada.

Ela puxou um saco de evidências, embalou a cápsula junto com o documento falso e saiu do quarto. Mia Penn estava andando pelo corredor na sua direção quando ela fechou a porta. Keri podia ver que algo havia acontecido.

"Acabo de receber uma ligação da amiga de Ashley, Thelma. Ela tem falado com algumas pessoas sobre ela ainda não ter chegado em casa. Disse que outra amiga, chamada Miranda Sanchez, viu Ashley entrar numa van preta na Main Street, ao lado do parque para cães perto da escola. Ela disse que não podia dizer ao certo se Ashley entrou no veículo por conta própria ou se foi puxada para dentro. Não pareceu tão estranho para ela até ouvir que Ashley estava desaparecida".

Kery manteve uma expressão neutra, apesar do súbito aumento na pressão sanguínea.

"Você conhece alguém que tenha uma van preta?"

"Ninguém".

Keri começou a andar depressa pelo corredor, na direção da escada. Mia Penn tentou desesperadamente acompanhar seu ritmo.

"Mia, quero que você ligue para a seção de investigação da delegacia, no mesmo número em que ligou para mim. Diga para quem quer que atenda — provavelmente, será um cara chamado Suarez — que eu pedi para você ligar. Dê a ele a descrição física de Ashley e o que ela estava vestindo. Dê também a ele os nomes e informações de contato de todos que você mencionou: Thelma, Miranda, o namorado, Denton Rivers, todos. Então, diga a ele para me ligar".

"Por que vocês precisam de todas essas informações?"

"Vamos interrogar todo mundo".

"Você está começando a me assustar. Isto é ruim, não é?" Mia perguntou.

"Provavelmente não, mas é melhor prevenir do que remediar".

"O que posso fazer?"

"Preciso que você fique aqui no caso de Ashley ligar ou aparecer".

Elas desceram. Keri olhou ao redor.

"Onde está seu marido?"

"Ele foi chamado de volta ao trabalho".

Keri se conteve para não dizer nada e se dirigiu à porta da frente.

"Aonde você está indo?" Mia gritou atrás dela.

Sobre o ombro, Keri gritou de volta:

"Vou achar sua filha".


CAPÍTULO TRÊS


Segunda-feira

Entardecer


Do lado de fora, enquanto andava apressadamente até o carro, Keri tentou ignorar o calor refletido pela calçada. Gotas de suor se formaram em sua sobrancelha após um minuto, apenas. Quando ligou para o número de Ray, ela resmungava baixinho.

Estou a apenas seis malditas ruas do Oceano Pacífico, no meio de setembro. Quando vai esfriar um pouco?

Após chamar sete vezes, Ray finalmente atendeu.

"O que foi?" ele perguntou, parecendo ofegante e irritado.

"Preciso que me encontre na Main Street, em frente ao colégio West Venice High".

"Quando?"

"Agora, Raymond".

Espere um segundo". Ela podia ouvi-lo se movimentando e resmungando em voz baixa. Parecia estar acompanhado. Quando voltou ao telefone, ela notou que ele havia saído do quarto.

"Eu estava meio enganchado aqui, Keri".

"Bem, desenganche-se, detetive. Temos um caso".

"É aquele negócio de Venice?" ele perguntou, claramente exasperado.

"É. E por favor, pode ir baixando a voz. Quer dizer, a menos que você pense que a filha de um senador dos EUA desaparecendo numa van preta não vale a pena ser checado".

"Jesus. Por que a mãe não mencionou o negócio do senador pelo telefone?"

"Por que ele pediu para ela não fazer isso. Ele estava tão despreocupado quanto você, talvez até mais. Espere um segundo".

Keri chegou ao seu carro. Ela pôs o telefone no viva-voz, colocou-o no banco do passageiro e entrou. Enquanto manobrava, ela contou a ele sobre todo o resto — a habilitação falsa, a cápsula de bala, a garota que viu Ashley entrando na van, possivelmente contra a sua vontade, o plano para coordenar os interrogatórios. Quando estava terminando, seu celular emitiu um bipe e ela olhou para a tela.

"É Suarez ligando. Quero passar alguns detalhes para ele. Estamos acertados? Você já se desenganchou?"

"Estou entrando no carro agora", ele respondeu, sem se importar com a provocação. "Posso chegar em 15 minutos".

"Espero que tenha oferecido minhas desculpas a ela, seja lá quem for", Keri disse, incapaz de ocultar o sarcasmo em sua voz.

"Ela não é o tipo de garota que precisa de desculpas", Ray replicou.

"Por que não estou surpresa?"

Ela trocou as chamadas sem se despedir.


*


Quinze minutos depois, Keri e Ray caminharam pelo trecho da Main Street onde Ashley Penn pode ou não ter sido raptada. Não havia nada que fosse obviamente fora do comum. O parque de cães ao lado da rua vibrava com latidos felizes e donos gritando para pets com nomes como Hoover, Speck, Conrad e Delilah.

Cães com donos ricos e desocupados. Ah, Venice.

Keri tentou afastar esses pensamentos alheios e retomar o foco. Não parecia haver nada de mais acontecendo. Ray claramente sentia o mesmo.

"Seria possível que ela apenas tenha ido para algum lugar ou fugido?" ele brincou.

"Não estou eliminando essa possibilidade", Keri replicou. "Definitivamente, Ashley não é a princesinha inocente que sua mãe pensa que ela é".

"Elas nunca são".

"Seja o que for que aconteceu, é possível que ela tenha um papel nisso. Quanto mais conhecermos sua vida, mais saberemos. Precisamos falar com algumas pessoas que não vão nos dar o discurso oficial. Como aquele senador... não sei o que se passa na cabeça do cara. Definitivamente, ele não estava confortável comigo investigando a vida deles".

"Tem alguma ideia do por que disso?"

"Ainda não, a não ser a intuição de que ele esconde alguma coisa. Nunca conheci um pai tão blasé sobre sua filha desaparecida. Ele estava contando histórias sobre tomar um porre de cerveja aos 15 anos. Ele estava forçando a barra".

Ray estremeceu.

"Fico feliz por não ter chamado a atenção dele para isso", ele falou. "A última coisa de que você precisa é de um inimigo que tenha a palavra senador na frente do nome".

"Eu não ligo".

"Bem, você deveria", ele disse. "Algumas palavras dele para Beecher ou Hillman, e você já era".

"Eu já era cinco anos atrás".

"Ah, qual é..."

"Você sabe que é verdade".

"Não comece”, Ray disse.

Keri hesitou, olhou para ele, e então voltou sua atenção novamente para o parque de cães. A alguns metros dali, um filhotinho de pelo marrom estava rolando de costas, feliz, na terra.

"Quer saber algo que nunca lhe contei?" ela perguntou.

"Não tenho certeza".

"Após, o que aconteceu, você sabe..."

"Evie?"

Keri sentiu o coração apertar ao ouvir o nome da filha.

"Isso. Houve uma época, depois do que aconteceu, em que eu estava tentando desesperadamente engravidar. Durou uns dois ou três meses. Stephen nem conseguia acompanhar”.

Ray não disse nada. Ela continuou.

"Então, acordei uma manhã e me odiei. Senti como alguém que tivesse perdido um cão e fosse direto para um abrigo conseguir um substituto. Senti-me como uma covarde, como se estivesse sendo egoísta, ao invés de manter o foco onde deveria. Eu estava abandonando Evie, ao invés de lutar por ela".

"Keri, você precisa parar de fazer isso consigo mesma. Realmente, você é seu pior inimigo ".

"Ray, eu ainda posso senti-la. Ela está viva. Eu não sei onde ou como, mas está".

Ele apertou a mão dela.

"Eu sei".

"Ela tem 13 anos agora".

"Eu sei".

Eles caminharam pelo resto da rua em silêncio. Quando chegaram no cruzamento da Westminster Avenue, Ray finalmente falou.

"Ouça", ele disse, num tom que indicava que estava focando no caso novamente, "podemos seguir cada pista que aparecer. Mas esta é a filha de um senador. E se ela não partiu simplesmente para uma pequena aventura, as garras vão aparecer neste caso. Logo, os Federais vão se envolver. O FBI também vai querer entrar. Até as nove da manhã de amanhã, você e eu seremos escanteados".

Provavelmente era verdade, mas Keri não ligava. Ela lidaria com isso amanhã. No momento, eles tinham um caso em que trabalhar.

Ela deu um profundo suspiro e fechou os olhos. Após ser seu parceiro por um ano, Ray havia finalmente aprendido a não interrompê-la quando ela estava tentando se concentrar.

Após cerca de 30 segundos, ela abriu os olhos e olhou em volta. Após um momento, apontou para uma loja do outro lado do cruzamento.

"Ali", ela falou, e começou a caminhar.

Aquele trecho de Venice, a norte da Washington Boulevard até as proximidades da Rose Avenue, era uma estranha intersecção de humanidade. Havia as mansões dos Canais ao sul, as lojas caras da Abbot Kinney Boulevard diretamente ao leste, o setor comercial ao norte, e a parte mais alternativa, de surf e skate, ao longo da praia.

Mas, por toda essa área, havia gangues. Elas eram mais fáceis de ver à noite, especialmente mais perto da costa. Mas a LAPD da Pacific Division estava rastreando 14 gangues ativas na grande Venice, ao menos cinco delas consideravam o ponto em que Keri estava como parte de seu território. Havia uma gangue negra, duas hispânicas, uma gangue de motociclistas tipo "supremacia branca", e uma gangue composta principalmente por surfistas que traficavam drogas e armas. Todas elas conviviam de maneira conflituosa nas mesmas ruas, junto com clientes assíduos de bares, prostitutas, turistas deslumbrados, veteranos sem teto e moradores antigos, hippies comedores de granola, que adoravam vestir camisetas tie-dye.

Como resultado, os negócios na área tinham um pouco de tudo, de barzinhos hipster até salões de tatuagem de henna, passando por farmácias de manipulação vendendo maconha medicinal, até o lugar na frente do qual Keri estava de pé agora, o escritório de um fiador profissional.

Ficava no segundo andar de um prédio recentemente reformado, logo acima de uma loja de sucos.

"Dê uma olhada", ela disse. Acima da porta da frente, havia uma placa com os dizeres Fiador Profissional Briggs.

"O que é que tem?" Ray perguntou.

"Olhe logo acima da placa, em cima de 'Fiador'".

Ray fez isso, confuso, de início, e então espremeu seu olho bom para ver uma câmera de segurança muito pequena. Ele olhou na direção para a qual a câmera apontava. Ela se dirigia à intersecção. Além desse ponto, estava o trecho da Main Street perto do parque de cães, onde Ashley teria, aparentemente, entrado na van.

"Boa sacada", ele disse.

Keri deu um passo para trás e estudou o lugar. Provavelmente, estava mais movimentada agora do que há algumas horas. Mas não era exatamente uma área tranquila.

"Se você quisesse raptar alguém, seria num lugar como este?"

Ray balançou a cabeça.

"Eu? Não, eu faço mais o tipo beco escuro".

"Então, que tipo de pessoa é tão descarada para raptar alguém em plena luz do dia perto de um cruzamento movimentado?"

"Vamos descobrir", Ray disse, encaminhando-se para a porta.

Eles subiram a escada estreita até o segundo andar. A porta do escritório estava escancarada. Dentro, à direita, um homem grande com uma barriga igualmente grande estava descansando numa poltrona reclinável, folheando a revista Armas & Munição.

Ele levantou os olhos quando Keri e Ray entraram. Após uma rápida olhada, decidiu que não constituíam uma ameaça, e acenou com a cabeça para os fundos da sala. Um homem de cabelos compridos com uma barba desalinhada, sentado numa mesa, fez sinal para se aproximarem. Keri e Ray sentaram-se nas cadeiras em frente à mesa do homem e esperaram pacientemente enquanto ele terminava uma ligação com um cliente. A questão não era os 10% em dinheiro vivo, era o colateral para o valor total. Ele precisava de uma escritura confiável de uma casa, ou do documento legalizado de um carro, algo assim.

Keri podia ouvir a pessoa no outro lado da linha implorando, mas o cara de cabelos longos não se deixou levar.

Trinta segundos depois, ele desligou e focou nas duas pessoas à sua frente.

"Stu Briggs", ele disse, "o que posso fazer por vocês, detetives?"

Ninguém havia mostrado um distintivo. Keri estava impressionada.

Antes que eles pudessem responder, ele olhou mais de perto para Ray, e então quase gritou.

"Ray Sands — O homem-areia! Eu vi você na noite passada, aquela luta com o canhoto; como era o nome dele?"

"Lenny Jack".

"Certo, isso, sim, é isso, Lenny Jack... o Jack Attack. Ele não tinha um dedo, ou algo assim, não era? O mindinho?"

"Ele perdeu depois".

"Sim, bem, mindinho ou não, achei que você ia derrotá-lo, realmente achei. Quero dizer, as pernas dele estavam como borracha, seu rosto, um polpa sanguinolenta. Ele estava cambaleando por todo lado. Mais um bom soco, era tudo de que você precisava; apenas mais um. Inferno, meio soco teria sido o bastante. Você poderia ter apenas soprado na cara dele e ele teria caído".

"Foi o que pensei também", Ray admitiu. "Em retrospectiva, foi provavelmente por isso que baixei minha guarda. Parece que ele tinha um soco sobrando escondido na manga".

O homem deu de ombros.

"Parece que sim. Perdi dinheiro naquela luta". Ele pareceu perceber que a perda dele não havia sido tão grande quanto a de Ray e acrescentou, "quero dizer, não foi muito. Não em comparação a você. Mas não é tão ruim, o olho. Posso dizer que é falso, porque conheço a história. Mas acho que a maioria das pessoas não percebe".

Houve um longo silêncio enquanto ele recuperava o fôlego e Ray deixou o homem se contorcer, meio sem graça. Stu tentou novamente.

"Então, você é um policial agora? Por que o homem-areia está sentado na frente da minha mesa com esta bela senhorita, perdoe-me, esta bela oficial de paz?"

Keri não gostou do tom condescendente, mas deixou passar. Eles tinham prioridades maiores.

"Precisamos dar uma olhada nas filmagens mais recentes de sua câmera de segurança", Ray disse. "Especificamente, das 14h45 até as 16h".

"Sem problemas", Stu respondeu, como se recebesse esse tipo de pedido todo dia.

A câmera de segurança era operacional, necessária, na verdade, considerando a clientela do estabelecimento; ela transmitia em tempo real não apenas para um monitor, mas também para um disco rígido, onde tudo era gravado. A lente era uma grande angular e cobria a interseção inteira da Main e de Westminster. A qualidade do vídeo era excepcional.

Numa sala dos fundos, Keri e Ray assistiram às imagens gravadas no monitor de um computador. A seção da Main Street na frente do parque de cães era visível até cerca de metade do quarteirão. Eles tinham a esperança de que, seja lá o que tenha acontecido, ocorreu naquele trecho da estrada.

Nada de excepcional apareceu até cerca de 15h05. O sinal do colégio obviamente havia tocado, já que jovens começaram a fluir pela rua, em todas as direções.

Às 15h08, Ashley surgiu na tela. Ray não a reconheceu imediatamente, então, Keri apontou para ela — uma garota confiante numa saia e blusa justa.

Então, lá estava, a van preta. Ela encostou perto da garota. As janelas eram muito escuras, o que era ilegal. O rosto do motorista não era visível, já que ele usava um boné com a aba puxada para baixo. As duas viseiras do carro estavam abaixadas e o brilho do sol forte da tarde tornava impossível ter uma visão clara do interior do veículo.

Ashley parou de andar e olhou para dentro da van. O motorista parecia estar falando. Ela disse algo e se aproximou. Quando fez isso, a porta do passageiro se abriu. Ashley continuou a falar, parecendo se inclinar na direção da van. Ela estava conversando com o motorista. Então, de repente, estava dentro. Não ficou claro se ela entrou voluntariamente ou se foi puxada. Após alguns segundos, a van casualmente voltou para a rua. Sem cantar pneus. Sem acelerar. Nada fora do comum.

Eles assistiram às cenas novamente, na velocidade normal, e então, uma terceira vez, em câmera lenta.

No final, Ray deu de ombros e disse, "Eu não sei. Ainda não posso dizer. Ela entrou, é tudo que posso dizer com certeza. Se foi ou não contra sua vontade, não posso dizer.

Keri não podia discordar. O vídeo era irritantemente inconclusivo. Mas algo não estava certo. Ela só não sabia dizer o quê. Ela voltou as filmagens e deixou que passassem novamente até o ponto em que a van estava o mais perto possível da câmera de segurança. Então, apertou pause. Foi o único momento em que a van ficou completamente na sombra. Ainda era impossível ver o interior do veículo. Mas algo estava visível.

"Você está vendo o que estou vendo?" ela perguntou.

Ray assentiu.

"A placa está coberta", ele notou. "Eu colocaria isso na categoria 'suspeita'".

"Eu também".

O celular de Keri tocou. Era Mia Penn. Ela foi direto ao assunto, sem nem dizer olá.

"Acabo de receber uma ligação da amiga de Ashley, Thelma. Ela disse que acha que acaba de receber uma ligação acidental do celular de Ashley, como se o telefone estivesse no bolso de alguém. Ela ouviu um monte de gritos, como se uma pessoa estivesse gritando com outra. Havia música alta tocando, então, ela não podia dizer exatamente quem estava gritando, mas ela acha que era Denton Rivers".

"O namorado de Ashley?"

"Sim. Eu liguei para o celular de Denton para ver se ele tinha notícias de Ashley, sem contar que havia falado com Thelma. Ele disse que não tinha visto ou falado com Ashley desde a escola, mas parecia inquieto. E a música ‘Summer Sixteen’, de Drake, estava tocando ao fundo quando eu liguei. Liguei para Thelma novamente para ver se essa era a música que ela ouviu quando recebeu a ligação. Ela disse que era. Então, liguei imediatamente para você, detetive. Denton Rivers está com o celular da minha filhinha e eu acho que ele também está com ela."

"Certo, Mia. Isso vai ajudar muito. Você fez um ótimo trabalho. Mas preciso que permaneça calma. Quando eu desligar, me envie uma mensagem com o endereço de Denton. E lembre-se, isso pode ser totalmente inocente".

Ela desligou e olhou para Ray. O olho bom dele sugeria que ele estava pensando o mesmo que ela. Em segundos, seu celular vibrou. Ela encaminhou o endereço para Ray enquanto ele descia apressadamente as escadas.

"Precisamos correr", ela disse, enquanto entravam em seus carros. "Isso não é inocente de jeito nenhum".


CAPÍTULO QUATRO


Segunda-feira

Início da noite


Keri tentou manter a calma quando, dez minutos depois, chegou na casa de Denton Rivers. Ela diminuiu a velocidade do carro, examinando-a, e então estacionou um quarteirão depois, Ray logo atrás dela. Ela sentiu aquele latejar em seu estômago, que lhe dizia quando algo ruim estava para acontecer.

E se Ashley está nessa casa? E se ele fez algo com ela?

A rua de Denton tinha uma série de casas térreas muito parecidas, bem próximas umas das outras. Não havia árvores na rua e a grama na maioria dos minúsculos gramados na frente das casas há muito tempo tinha se tornado marrom. Denton e Ashley claramente não tinham o mesmo padrão de vida. Esta parte da cidade, ao sul da Venice Boulevard e alguns quilômetros para dentro, não tinha nenhuma casa que valesse milhões de dólares.

Keri e Ray caminharam rapidamente juntos pelo quarteirão, e ela conferiu seu relógio: passava pouco das seis horas. O sol estava começando sua longa e lenta descida sobre o oceano para o oeste, mas não ficaria realmente escuro por mais duas horas.

Quando chegaram na casa, ouviram música alta vindo de dentro. Keri não a reconheceu.

Ela e Ray se aproximaram em silêncio, agora ouvindo gritos — raivosos e sérios, uma voz masculina. Ray pegou sua arma e sinalizou para ela contornar e ir pelos fundos, e então indicou com a mão o número "1", sinalizando que eles entrariam na casa em exatamente um minuto. Ela olhou para seu relógio para confirmar o tempo, assentiu, pegou sua arma e correu ao redor da casa na direção dos fundos, abaixando-se quando passava por janelas abertas.

Como detetive sênior, Ray geralmente era o mais cauteloso dos dois quando se tratava de entrar numa propriedade privada. Mas ele claramente pensou que estas eram circunstâncias exigentes que não requeriam um mandato. Havia uma garota desaparecida, um suspeito potencial dentro e uma gritaria raivosa. Era justificável.

Keri checou o portão lateral. Destrancado. Ela abriu-o o mínimo possível, para evitar o ranger das dobradiças.

Era improvável que qualquer pessoa dentro da casa pudese ouvi-la, mas não queria arriscar.

Quando chegou no quintal, abraçou a parede de trás da casa, mantendo-se alerta. Uma barraca suja e caindo aos pedaços perto da cerca nos fundos da propriedade a deixou desconfortável. A porta ondulada enferrujada parecia que ia cair a qualquer momento.

Ela caminhou agachada pelo quintal e ficou parada ali por um momento, tentando ouvir a voz de Ashley. Mas não ouviu nada.

Nos fundos da casa, havia uma porta de madeira com tela, destrancada, que levava a uma cozinha no estilo dos anos 70, com uma geladeira amarela. Keri podia ver alguém no final do corredor, na sala, gritando ao som da música e sacudindo seu corpo, como se ele estivesse batendo a cabeça em uma roda de punk rock invisível.

Ainda não havia nenhum sinal de Ashley.

Keri olhou novamente para seu relógio — eles entrariam a qualquer momento.

Bem na hora combinada, ela ouviu uma batida forte na porta da frente. Abriu a porta de tela dos fundos ao mesmo tempo em que ouviu o som, abafando o clique surdo do ferrolho. Ela esperou — um segundo barulho alto a permitiu fechar a porta de trás ao mesmo tempo. Ela se movia suavemente pela cozinha e pelo corredor, olhando para cada porta aberta à medida que passava.

Na porta da frente, que estava aberta, exceto pela tela, Ray bateu com força, e então, com mais força ainda. De repente, Denton Rivers parou de dançar e foi até a porta. Keri, escondendo-se no limite da sala de estar, podia ver seu rosto no espelho ao lado da porta.

Ele parecia visivelmente confuso. Era um garoto bonito — cabelo castanho curto, olhos azuis escuros, um corpo esbelto, uma estrutura forte que sugeria que ele era provavelmente um lutador, ao invés de jogador de futebol americano. Sob cirscunstâncias normais, ele era provavelmente um gato, mas agora essa bela aparência estava mascarada por uma expressão horrível, olhos vermelhos e um corte em sua têmpora.

Quando ele abriu a porta, Ray mostrou o distintivo.

"Ray Sands, Unidade de Pessoas Desaparecidas do Departamento de Polícia de Los Angeles", ele disse, com uma voz baixa, mas firme. "Gostaria de entrar e perguntar algumas coisas sobre Ashley Penn".

O pânico passou pelo rosto do garoto. Keri já havia visto aquela expressão — ele ia correr.

"Você não está em apuros", Ray falou, sentindo a mesma coisa. "Eu só quero conversar".

Keri notou algo preto na mão direita do rapaz, mas como seu corpo bloqueava parcialmente a visão, ela não podia dizer o que era. A policial levantou sua arma, mirando nas costas de Denton. Lentamente, ela destravou a pistola.

Ray a viu fazer isso com o canto do olho e olhou para a mão de Denton. Ele tinha uma visão melhor do item que o garoto estava segurando e não havia ainda levantado sua própria arma.

"Isto é o controle remoto do aparelho de som, Denton?"

"Hã-han".

"Você poderia por favor colocá-lo no chão à sua frente?"

O garoto hesitou e então disse, "Certo". Ele abaixou o aparelho. Era realmente um controle remoto.

Ray guardou sua arma no coldre e Keri fez o mesmo. Quando Ray abriu a porta, Denton Rivers se virou e ficou surpreso ao ver Keri de pé na sua frente.

"Quem é você?" ele perguntou.

"Detetive Keri Locke. Trabalho com ele", ela disse, apontando para Ray com a cabeça. "Bela casa, Denton".

Dentro, a casa estava um lixo. Lâmpadas haviam sido arremessadas contra a parede. Os móveis estavam fora do lugar. Uma garrafa de uísque estava numa mesa lateral, meio vazia, perto da fonte da música — um alto-falante com bluetooth. Keri desligou o som. Com a sala subitamente em silêncio, ela olhou para o lugar mais meticulosamente.

Havia sangue no carpete. Keri registrou o fato mentalmente, mas não disse nada.

Denton tinha arranhões profundos em seu antebraço direito, que poderiam ter sido feitos por unhas. O corte em sua têmpora não estava mais sangrando, mas havia sangrado recentemente. Os pedaços de uma foto despedaçada dele com Ashley estavam espalhados pelo chão.

"Onde estão seus pais?"

"Minha mãe está no trabalho".

"E o seu pai?"

"Está ocupado no cemitério".

Sem se impressionar, Keri disse, "Bem-vindo ao clube. Estamos procurando por Ashley Penn".

"Que se dane".

"Você sabe onde ela está?"

"Não, e estou cagando e andando para isso. Eu e ela terminamos".

"Ela está aqui?"

"Você está vendo ela aqui?"

"O celular dela está aqui?" Keri pressionou.

"Não".

"É o celular dela no seu bolso de trás?"

O garoto hesitou e então falou, "Não. Acho que vocês deveriam ir embora agora".

Ray chegou desconfortavelmente perto do garoto, segurou a mão dele e falou, "Deixe-me ver este celular".

O garoto engoliu em seco e então tirou o aparelho do bolso. A capa era rosa e parecia cara.

Ray perguntou, "Isto é de Ashley?"

O garoto permaneceu calado, desafiador.

"Posso ligar para o número dela e ver se toca", ele disse. "Ou você pode me responder direto".

"Sim, é dela. E daí?"

"Sente nesse sofá e não se mova", Ray disse. Então, disse para Keri, "Faça sua busca".

Keri começou a vasculhar a casa. Havia três pequenos quartos, um banheiro minúsculo e um armário de roupa de cama, tudo parecia inócuo. Não havia sinais de luta ou de cativeiro. No corredor, ela encontrou a cordinha para o sótão e puxou. Caiu um uma escada de madeira, rangendo, que levava ao andar de cima. Ela subiu os degraus cuidadosamente. Quando chegou em cima, pegou sua lanterna e examinou o lugar. Era tão pequeno que só era possível se mover por ele agachado. O teto tinha pouco mais de um metro de altura e vigas dificultavam a movimentação, mesmo se abaixando.

Não havia muito lá em cima. Apenas uma década de teias de aranha, um monte de caixas cobertas por poeira e um baú de madeira maciça no extremo oposto.

Por que alguém colocou o item mais pesado e assustador no lado mais distante do sótão? Deve ter sido difícil empurrá-lo até aquele canto.

Keri suspirou. É claro que alguém o colocara ali apenas para dificultar as coisas para ela.

"Tudo certo aí em cima?" Ray gritou, da sala de estar.

"Sim. Estou apenas checando o sótão".

Ela subiu o último degrau e se agachou, tomando cuidado para pisar nas estreitas vigas de madeira. Ela tinha medo de dar um passo em falso e desabar pelo forro de gesso. Suada e coberta por teias de aranha e poeira, ela finalmente chegou ao baú. Quando o abriu e examinou seu interior com a luz da lanterna, sentiu alívio ao descobrir que não havia corpo nenhum. Estava vazio.

Keri fechou o baú e caminhou de volta para a escada.

De volta na sala de estar, Denton não havia saído do sofá. Ray estava sentado diretamente na frente dele, sentado numa cadeira de cozinha. Quando ela entrou, ele levantou os olhos e perguntou: "Alguma coisa?"

Keri balançou a cabeça. "Já sabemos onde Ashley está, detetive Sands?"

"Ainda não, mas estamos trabalhando nisso. Certo, Sr. Rivers?"

Denton fingiu não ouvir a pergunta.

"Posso ver o celular de Ashley?" Keri perguntou.

Ray deu o aparelho a ela sem entusiasmo. "Está travado. Teremos que pedir ao departamento de informática para fazer a mágica deles".

Keri olhou para Rivers e disse, "Qual a senha dela, Denton?"

O garoto assumiu um ar de zombaria. "Não sei".

A expressão severa de Keri o fez saber que ela não engolia aquilo. "Vou repetir a pergunta mais uma vez, muito educadamente. Qual a senha dela?"

O garoto hesitou, decidindo, e então disse, "Honey".

Para Ray, Keri disse, "Há uma barraca lá fora. Vou dar uma olhada".

Os olhos de Rivers olharam rapidamente nessa direção, mas ele não disse nada.

Lá fora, Keri usou usou uma pá enferrujada para arrombar o cadeado na porta da barraca. Um raio de luz do sol passava através de um buraco no teto. Ashley não estava lá; havia apenas latas de tinta, ferramentas velhas e outras tranqueiras aleatórias. Ela já estava quase saindo quando notou uma pilha de placas de carro da Califórnia numa prateleiraa de madeira. Ao examinar mais atentamente, havia seis pares, todas com adesivos do ano corrente.

O que isto está fazendo aqui? Precisamos ensacar as placas.

Ela se virou para sair, mas uma súbita brisa fechou a porta enferrujadada com força, bloqueando a maior parte da luz que entrava na barraca. Jogada na semi-escuridão, Keri se sentiu claustrofóbica.

Ela inspirou fundo, e então, novamente, tentou regular a respiração quando a porta se abriu rangendo, deixando um pouco de luz entrar.

Deve ter sido assim para Evie. Sozinha, jogada na escuridão, confusa. Foi isso que minha menininha teve que enfrentar? Esse foi o pesadelo que ela viveu acordada?

Keri engasgou de emoção. Ela imaginou Evie trancada num lugar como este uma centena de vezes. Na semana seguinte, faria cinco anos desde que ela desapareceu. Esse seria um dia difícil de enfrentar.

Muito aconteceu desde então — a luta para manter seu casamento à medida que suas esperanças esmaeciam, o divórcio inevitável de Stephen, o início de um ano "sabático" como professora de criminologia e psicologia na Universidade Loyola Marymount, oficialmente para fazer uma pesquisa independente, mas realmente porque a bebedeira e o sexo casual com os estudantes haviam forçado a administração a agir. Para todo lugar que ela se virava, via os pedaços quebrados de sua vida. Ela havia sido forçada a enfrentar seu fracasso final: a inabilidade de encontrar a filha que havia sido roubada dela.

Keri enxugou as lágrimas do rosto com força, e se repreendeu em silêncio.

Certo, você falhou com sua filha. Não falhe com Ashley também. Recomponha-se, Keri!

Lá mesmo, na barraca, ela ligou o celular de Ashley e digitou "Honey". A senha funcionou. Pelo menos Denton tinha sido honesto sobre algo.

Ela tocou em Álbum. Havia centenas de fotos, a maioria delas bem normais — selfies adoráveis de Ashley com amigas na escola, ela e Denton Rivers juntos, algumas fotos de Mia. Mas, espalhadas aqui e ali, ela ficou surpresa ao ver que havia também fotos mais ousadas.

Várias foram tiradas num bar vazio ou algum tipo de clube, claramente antes de abrir ou depois do bar fechar, com Ashley e suas amigas visivelmente bêbadas e numa festa hardcore, bebendo cervejas, levantando suas saias e exibindo calcinhas fio-dental. Em algumas, elas estavam fumando maconha ou enrolando baseados. Garrafas de bebida alcóolica estavam por todo lado.

Quem Ashley conhecia que tinha acesso a um lugar como este? Quando isso aconteceu? Quando Stafford estava em Washington? Como a mãe dela não sabia de nada disso?

Mas foram as fotos com a arma que realmente prenderam a atenção de Keri. Ela apareceu de repente ao fundo, uma SIG 9mm, colocada discretamente sobre uma mesa perto de um pacote de cigarros, ou num sofá perto de um saco de batatas fritas. Em uma foto, Ashley estava ao ar livre, num lugar parecido com um bosque, perto de um rio, atirando em latas de refrigerante.

Por quê? Era apenas por diversão? Ela estava aprendendo a se proteger? Se sim, então, do quê?

Interessante que as fotos com Denton Rivers diminuíram consideravelmente ao longo dos últimos três meses, enquanto aumentava o número de fotos de um cara extremamente bonito, com uma longa cabeleira loira, selvagem e volumosa. Em várias das fotos, ele estava sem camisa, exibindo seu abdominal malhado. Parecia muito orgulhoso de si. Uma coisa era certa —definitivamente, não era um garoto do ensino médio. Ele parecia ter mais de vinte anos.

Era ele que tinha acesso ao bar?

Ashley também havia tirado várias fotos eróticas de si mesma. Em algumas, exibia sua calcinha. Em outras, estava nua, exceto por um fio-dental, frequentemente, tocando a si mesma de maneira sugestiva. As fotos nunca mostravam seu rosto, mas eram definitivamente Ashley. Keri reconheceu o quarto. Em uma foto, ela podia ver a estante de livros, com o velho livro de matemática escondendo sua habilitação falsa. Em outra, podia ver o bicho de pelúcia de Ashley ao fundo, descansando no travesseiro com sua cabeça virada, como se não suportasse assistir. Keri sentiu vontade de vomitar, mas se segurou.

Ela voltou ao menu principal do celular e tocou nas Mensagens para ver os textos da garota. As fotos eróticas do Álbum haviam sido, uma a uma, enviadas de Ashley para alguém chamado Walker, aparentemente, o cara do abdômen sarado. As mensagens que acompanhavam as fotos deixavam pouco para a imaginação. Apesar da conexão especial de Mia Penn com sua filha, parecia que Stafford Penn entendia Ashley muito melhor que a mãe.

Havia também uma mensagem para Walker enviada há quatro dias, que dizia, Dei o fora em Denton oficialmente hoje. Esperando um pouco de drama. Te aviso qualquer coisa.

Keri desligou o celular e se sentou ali, no escuro da barraca, pensando. Ela fechou os olhos e deixou a mente divagar para longe. Uma cena começou a se formar na sua cabeça, tão real que parecia estar acontecendo naquele momento.

Era uma bela manhã ensolarada de setembro, com o céu azul sem fim da Califórnia. Elas estavam no parquinho, ela e Evie. Stephen voltaria naquela tarde de uma escalada em Joshua Tree. Evie usava uma camiseta violeta, shorts brancos, meias brancas com lacinho e tênis.

O sorriso dela era largo. Seus olhos eram verdes. Seu cabelo era loiro e ondulado, puxados em dois rabos de cavalo, um em cada lado. Seu dente superior da frente estava lascado; era um dente permanente, não de leite, e precisaria ser consertado em algum momento. Mas toda vez que Keri falava sobre isso, Evie entrava num estado de pânico total, então, não havia acontecido ainda.

Keri estava sentada na grama, descalça, com papeis espalhados ao seu redor. Estava se preparando para sua palestra na Conferência de Criminologia da Califórnia. Ela tinha até acertado com um palestrante convidado, um detetive da LAPD chamado Raymond Sands, que havia consultado em alguns casos.

"Mamãe, vamos tomar um frozen yogurt!"

Keri conferiu seu relógio.

Ela havia quase terminado e havia uma Menchie’s no caminho de casa. "Dê-me cinco minutos".

"Isso significa um sim?"

Ela sorriu.

"Significa um grande, grande, sim".

"Posso colocar confeitos ou apenas frutas de cobertura?"

"Deixe-me ver... o que as fadas iam preferir?"

"O quê?"

"Confeitos de fada! Entendeu?"

"É claro que entendo, mamãe, eu não sou bebê!"

"É claro que não é. Minhas desculpas. Só me dê cinco minutos".

Ela voltou sua atenção para o discurso. Após um minuto, alguém passou caminhando por ela, cobrindo a página com sua sombra. Aborrecida pela distração, ela tentou se concentrar novamente.

De repente, o silêncio foi quebrado por um grito horripilante. Keri levantou os olhos, atônita. Um homem num moletom esportivo e boné de beisebol estava fugindo rápido. Ela pôde apenas ver suas costas, mas percebeu que ele segurava algo em seus braços.

Keri ficou de pé, procurando desesperadamente por Evie. Ela não estava em lugar nenhum. Keri começou a correr atrás dele, mesmo antes de ter certeza. Um segundo depois, a cabeça de Evie surgiu da frente do homem. Ela parecia aterrorizada.

"Mamãe!" ela gritou. "Mamãe!"

Keri correu atrás dela, desatando numa corrida. O homem tinha uma grande vantagem. Quando Keri chegou à metade do gramado, ele já estava no estacionamento.

"Evie! Solte-a! Pare! Alguém pare aquele homem! Ele está com minha filha!"

As pessoas olhavam ao redor, mas pareciam confusas. Ninguém ajudou. E ela não viu ninguém no estacionamento para detê-lo. Ela olhou para onde ele estava indo. Havia uma van branca no ponto mais afastado do estacionamento, estacionada paralelamente ao meio-fio, para facilitar a saída. Ele estava a menos de 15 metros do veículo quando ela ouviu a voz de Evie novamente.

"Por favor, mamãe, me ajude!" ela implorou.

"Estou indo, bebê!"

Keri correu ainda mais, sua visão embaçada pelas lágrimas queimando seus olhos, esforçando-se além da fadiga e do medo.

Ela chegou ao outro lado do estacionamento. O asfalto estava quebradiço e feria seus pés descalços enquanto ela corria, mas ela não se importava.

"Aquele homem está com minha filha!" ela gritou novamente, apontando na direção deles.

Um adolescente de camiseta e sua namorada saíram de seu carro, apenas a algumas vagas da van. O homem passou correndo por eles. Eles pareceram aturdidos até que Keri gritou novamente.

"Pare-o!"

O adolescente começou a caminhar na direção do homem, e então desatou a correr. Nesse momento, o raptor havia alcançado a van. Ele deslizou a porta, abrindo-a, e jogou Evie para dentro, como um saco de batatas. Keri ouviu o baque surdo quando corpo dela bateu contra a parede.

Ele fechou a porta com força e começou a contornar o veículo para o lado do motorista, quando o adolescente o alcançou e agarrou seu ombro. O homem virou e Keri conseguiu vê-lo melhor. Ele estava usando óculos de sol e um boné bem enterrado na cabeça, e era difícil de ver pelas lágrimas. Mas ela pôde distinguir um pouco de cabelo loiro e o que parecia parte de uma tatuagem no lado direito do seu pescoço.

Mas antes que ela pudesse discernir qualquer coisa, o homem levou o braço às costas e deu um soco no rosto do adolescente, que caiu amassando a lataria de um carro próximo. Keri ouviu o som nauseante de algo se quebrando. Então, o homem puxou uma faca de um estojo preso no cinto e mergulhou-a no peito do adolescente. Ele a retirou e esperou um segundo para ver o garoto cair no chão antes de entrar apressadamente no banco do motorista.

Keri forçou-se a afastar as cenas que havia acabado de presenciar para longe de sua mente e focou apenas em alcançar aquela van. Ela ouviu o motor dar partida, e viu a van começar a se mover. Estava a menos de seis metros de distância.

Mas o veículo estava ganhando velocidade agora. Keri continuou correndo, mas podia sentir seu corpo começar a desistir. Ela olhou para a placa, pronta a memorizá-la. Não havia nenhuma.

Procurou as chaves do seu carro, e então percebeu que estavam em sua bolsa, lá no parquinho. Ela correu de volta para onde estava o adolescente, esperando pegar as dele e alcançar aquele carro. Mas, quando chegou, viu sua namorada ajoelhada sobre ele, soluçando incontrolavelmente.

Ela levantou os olhos novamente. A van estava muito distante agora, deixando um rastro de poeira. Ela não tinha placa, nenhuma descrição possível, nada para oferecer à polícia. Sua filha havia ido embora e ela não sabia como tê-la de volta.

Keri caiu no chão ao lado da adolescente e começou a chorar também, os gemidos desesperados das duas impossíveis de diferenciar.

Quando ela abriu os olhos, estava de volta à casa de Denton. Ela não se lembrava de sair da barraca ou de caminhar pela grama morta. Mas tinha, de alguma forma, chegado na cozinha de River. Era a segunda vez que isso acontecia naquele dia.

Estava ficando pior.

Keri voltou para a sala de estar, olhou nos olhos de Denton e disse: "Onde está Ashley?"

"Eu não sei".

"Por que você estava com o celular dela?"

"Ela deixou aqui ontem".

"Besteira! Ela terminou com você há quatro dias. Não estava aqui ontem".

A expressão de Denton mudou visivelmente ao receber aquele golpe verbal.

"Certo, eu peguei dela".

"Quando?"

"Esta tarde, na escola".

"Você simplesmente pegou da mão dela?"

"Não, esbarrei com ela após o último toque e peguei da bolsa dela".

"Quem tem uma van preta?"

"Eu não sei".

"Um amigo de vocês?"

"Não".

"Alguém que você contratou".

"Não".

"Como você ficou com esses arranhões no braço?"

"Eu não sei".

"E esse corte na testa?"

"Eu não sei".

"De quem é o sangue no carpete?"

"Eu não sei".

Keri mudou o peso do corpo de um pé a outro e tentou controlar a fúria que tomava conta de seu sangue. Podia sentir que estava perdendo a batalha.

Ela olhou por ele e disse, sem emoção, "Vou perguntar mais uma vez: onde está Ashley Penn?"

"Dane-se".

"Essa é a resposta errada. Você pode pensar nisso no caminho para a delegacia".

Ela se virou, hesitou um pouco, e então, subitamente girou o corpo e deu um soco nele, com um punho fechado, no mesmo ponto de seu machucado anterior. Ele se abriu e o sangue espirrou para todo lado, algum respingo foi parar na blusa de Keri.

Ray olhou para ela sem acreditar, congelado. Então, ele levantou Denton Rivers com um forte puxão e disse, "Você ouviu a madame! Mova-se! E não tropece e bata a cabeça em mais nenhuma mesa".

Keri sorriu ironicamente para ele, mas Ray não sorriu de volta. Ele parecia horrorizado.

Uma coisa assim poderia custar a ela seu emprego.

Mas Keri não ligava. Tudo que ela queria naquele momento era fazer aquele punk falar.


CAPÍTULO CINCO


Segunda-feira

Noite


Keri dirigiu o Prius com Ray no banco do passageiro enquanto seguiam a viatura que ela havia chamado para transportar Rivers até a delegacia. Keri ouvia em silêncio enquanto Ray falava ao telefone.

A capitã à frente da Divisão Oeste de LA era Reena Beecher, mas ela seria notificada da situação pelo diretor da Unidade de Crimes Graves da Divisão do Pacífico, chefe de Keri e de Ray, o tenente Cole Hillman. Era para ele que Ray estava prestando informações agora. Hillman, ou "Martelo", como alguns de seus subordinados o chamavam, tinha jurisdição sobre pessoas desaparecidas, homicídio, roubo e crimes sexuais.

Keri não era muito fã dele. Achava que Hillman parecia mais interessado em tirar o dele da reta do que se arriscar, se fosse preciso, para resolver os casos. Talvez o cargo de liderança o tenha amolecido. Ele não tinha escrúpulos para reclamar furiosamente com detetives que não limpassem seus quadros — suas pilhas cada vez mais altas de casos abertos. Daí o apelido, "Martelo", que ele parecia adorar. Mas, no entender de Keri, ele era só um hipócrita que se aborrecia quando eles não encerravam os casos e se irritava quando eles assumiam riscos para solucionar esses mesmos casos. Keri pensou que um apelido mais apropriado seria "idiota". Mas já que ela não podia chamá-lo disso, sua pequena rebelião era nunca chamá-lo pelo apelido preferido dele também.

Keri acelerou pelas ruas da cidade, tentando acompanhar a viatura à sua frente. A seu lado, Ray recapitulava, para Hillman, como uma ligação no final daquela tarde sobre uma adolescente que estava desaparecida por algumas horas havia subitamente se transformado, potencialmente, num sequestro real, envolvendo a filha de 15 anos de um senador dos EUA. Ele descreveu o vídeo de segurança no escritório do fiador, a visita à casa de Denton River (omitindo certos detalhes), e tudo o mais que aconteceu.

"A detetive Locke e eu estamos levando Rivers para a delegacia, para mais interrogatório".

"Espere, espere", Hillman disse. "O que Keri Locke está fazendo neste caso? Isto está muito além da posição dela, Sands”.

"Ela recebeu a ligação, tenente. E descobriu quase todas as pistas que temos até agora. Estamos quase na delegacia. Vamos lhe dar mais informações quando chegarmos lá, senhor".

"Está bem. Também estarei lá em breve. Tenho que chamar a capitã Beecher, de toda forma. Ela vai querer se manter informada sobre este caso. Convoquei uma reunião com toda a equipe em 15 minutos”.

Ele desligou sem dizer mais uma palavra.

Ray se voltou para Keri e disse, "Vamos ser escanteados assim que dermos a eles todas as informações, mas pelo menos, fizemos algum progresso".

Keri franziu o cenho.

"Eles vão estragar tudo", ela disse.

"Você não é a única boa investigadora nesta cidade, Keri".

"Eu sei. Tem você também".

"Obrigado pelo elogio um pouco exagerado, parceira".

"Pode apostar", ela replicou, e então acrescentou, "Hillman não gosta de mim".

"Não sei do que está falando. Acho que ele só lhe acha um pouco... impertinente para alguém com tão pouca experiência".

"Pode ser isso. Ou ele pode ser apenas um otário. Tudo bem. Também não gosto dele".

"Por que diz isso?"

"Porque ele é um puxa-saco e burocrata, e não consegue pensar fora da caixa. Também, quando ele passa por mim pelo corredor, seus olhos não vão acima do meu busto".

"Ah. Bem, se você vai levantar essa queixa contra todo policial que faz isso, só vão sobrar imbecis".

Keri olhou para ele como quem sabia do que ele estava falando.

"Exatamente", ela disse.

"Vou tentar não levar isso para o lado pessoal", ele disse.

"Não seja tão sensível, Gigante de Ferro".

Ele se sentou calmamente no banco do passageiro. Keri podia perceber que Ray queria dizer algo mas não estava certo de como faria isso. Finalmente, ele falou.

"Você vai falar sobre o que aconteceu na casa?"

"O quê?"

"Você sabe, você batendo num menor de idade".

"Ah, aquilo. Melhor não. Além disso, achei que você falou que ele bateu a cabeça na mesa".

"Se ele não estiver envolvido nisto e der queixa, pode haver consequências".

"Não estou preocupada".

"Bem, eu estou. Talvez seja porque você está se aproximando do aniversário. Tem falado com a Drª Blanc ultimamente?"

O silêncio de Keri dizia tudo.

"Talvez, devesse fazer isso", ele disse, suavemente.

Keri estacionou na delegacia, terminando conversa.

Denton Rivers foi colocado numa sala de interrogatório enquanto Keri preenchia um formulário de queixa contra ele por roubo, especificamente, do celular de Ashley. Seria o bastante mantê-lo preso por algumas poucas horas. Então, com sorte, eles saberiam mais.

Depois disso, dirigiram-se à Sala de Conferência A, a grande sala onde os comandantes distribuíam as tarefas no início do turno. A reunião geral de Hillman estava prestes a começar.

Quando eles chegaram, Hillman e seis dos detetives mais experientes da Divisão já estavam esperando, incluindo dois do setor de homicídios. Ray se misturou perfeitamente. Keri não estava tão confiante. Naquele momento, com todos os olhos voltados para ela, ela se sentiu como um inseto sob uma lupa.

Não se sabote. Você também pertence a este lugar.

O tenente Cole Hillman levantou-se para falar. Ele havia completado cinquenta anos recentemente, mas as profundas rugas em seu rosto sugeriam um homem que havia envelhecido prematuramente pelas coisas que presenciou no trabalho. Seu cabelo grisalho começou a retroceder apenas levemente. Ele tinha um tronco sólido e uma leve pança que tentava esconder com camisas folgadas. Já passava das sete horas da noite, mas ele ainda usava um paletó e gravata. Keri não se lembrava de vê-lo com outra roupa.

"Antes de tudo, obrigado a todos por vir tão rapidamente. Como vários de vocês já sabem, este caso envolve Ashley Penn, a filha do senador dos EUA, Stafford Penn. Mesmo que ele não fosse um amigo íntimo do prefeito e do governador, isso seria de alta prioridade. Mas ele é, então, a pressão aumenta. Podemos esperar ajuda de nossos amigos do FBI em breve. Mas, por ora, precisamos proceder como se isso permanecesse como nosso caso. Meu entender é que o senador não acredita que isto é um rapto. Ele pensa que sua filha pode estar numa festa em algum lugar. Isso é possível. As imagens dela entrando naquela van são inconclusivas. Mas até que suas suspeitas sejam comprovadas, vamos investigar cada uma das pistas, entendido?"

Cabeças asentiram e houve um murmúrio geral de concordância do grupo. Hillman continuou.

"Aparentemente, a notícia se espalhou entre os alunos da escola da garota, a West Venice High, e isso já está começando a explodir nas redes sociais. Já recebemos a primeira ligação de um repórter local se intrometendo. Amanhã de manhã, provavelmente será manchete em todo noticiário do Estado. Nesse ponto, serei claro — quando os jornalistas abordarem vocês, e eles farão isso, digam que não têm nada a declarar. Não importa quem estiver fazendo a pergunta, encaminhe para o departamento de relações públicas. Entendido?"

Todo mundo concordava.

"Certo, bom", Hillman disse. "Agora, provavelmente temos apenas algumas poucas horas para trabalhar nisto antes que os Federais reivindiquem formalmente a jurisdição. Vamos fazê-las valer a pena".

Com isso, ele se virou para Ray e disse, "Detetive Sands, poderia por favor nos passar todas as informações do caso rapidamente?”

Ray, apoiado numa parede no fundo da sala, mudou desconfortavelmente de posição e disse, "Se não se importa, senhor, a Detetive Lock esmiuçou este caso e sabe muito mais sobre ele do que eu. Acho que ela está mais bem preparada".

Todo mundo olhou para Keri, que estava sentada ao lado do parceiro.

Hillman franziu o cenho, mas disse, "Detetive Locke, parece que o palco é seu".

Ela sentiu um aperto no peito. A visão de uma van branca descendo pela rua a toda velocidade enquanto os pés ensanguentados dela ardiam apareceu como um flash diante de seus olhos.

"Detetive Locke? Você está bem?" Hillman perguntou.

Ray cutucou a parceira.

"Keri..." ele sussurrou.

"Sim, senhor, estava apenas organizando meus pensamentos", ela disse, voltando a si. Ela pensou em ir até a frente da sala, mas decidiu que não. Gostava de ter o apoio da parede para se encostar.

Levou apenas um momento para seu nervosismo diminuir quando ela entrou nos detalhes do caso. Ela descreveu para eles o que tinha ocorrido até agora, em ordem cronológica. Mostrou as imagens da van flagradas pela câmera de segurança e então conectou o celular de Ashley a um grande monitor de tela plana, para mostrar as fotos da pasta Álbum.

Ela não omitiu nada, mesmo sabendo que, assim que compartilhasse tudo, seu valor para o caso desapareceria aos olhos de Hillman, e ele poderia removê-la da investigação. Mas se isso significava que Ashley seria encontrada, era um pequeno preço a pagar.

"O que há com o garoto, o Rivers? Ele é um suspeito legítimo?" O detetive Manny Suarez perguntou. Tinha sido para ele que Mia Penn havia ligado mais cedo, a pedido de Keri. Um homem atarracado, de olhos sonolentos, em seus 40 anos, com uma barba eternamente por fazer, Suarez era muito mais esperto do que aparentava, algo que era proposital.

"Denton Rivers, o ex-namorado, está na Sala de Interrogação Dois. Ele não vinha sendo muito cooperativo até agora. Ainda precisa ser minuciosamente questionado para ver se era ele dirigindo a van preta, se contratou alguém para fazer isso, ou qualquer coisa útil que ele saiba. Ashley deu o fora nele há quatro dias. É possível que ele tenha surtado — pensado que, se ele não podia ter Ashley, ninguém poderia. Ele tem um motivo, mas não será o bastante para mantê-lo preso se não descobrirmos mais".

Keri respirou fundo e olhou ao redor da sala. Todos estavam prestando extrema atenção ao que dizia. Pelo menos, parecia que eles estavam levando isso a sério. Ela continuou.

"A CSU precisa examinar a casa dele, em Woodlawn. Precisam testar o sangue no carpete para ver se combina com o de Ashley. Havia também seis pares de placas de veículos aparentemente roubadas na barraca. Os donos dessas placas precisam ser interrogados sobre quando elas desapareceram e se eles viram quem as levou. Toda câmera de segurança na área de Main, Westminster, e ruas dos arredores precisam ser revistas assim que possível. O novo namorado de Ashley, Walker, precisa ser encontrado e interrogado. Todos os amigos e professores de Ashley precisam ser encontrados e interrogados".

O Detetive Suarez interrompeu, nesse ponto.

"Eu fiz uma lista com base no que Mia Penn me contou ao telefone. Podemos começar a interrogá-los assim que a reunião terminar".

"Obrigada, Manny. Talvez, também tenhamos que contar com alguém da força-tarefa anti-drogas. Ashley estava conseguindo maconha com alguém. O traficante dela deve ser encontrado e questionado. Tenho um pressentimento de que ele saberá mais sobre o outro lado da vida de Ashley, coisas que seus amigos podem estar relutantes em revelar. O mesmo vale para seja quem for que fez a carteira de motorista falsa para ela".

Na frente da sala, o tenente Hillman recebeu uma curta ligação de alguém e então levantou a mão para Keri parar de falar.

Ele mudou o monitor para o modo TV e sintonizou no noticiário. A âncora local, Amber Smith, uma instituição em LA, interrompeu o episódio da novela com um plantão.

"Temos recebido informações de que Ashley Penn, a filha do senador da Califórnia, Stafford Penn, está desaparecida. Ela teria desaparecido após largar da West Venice High School nesta tarde".

Uma foto de Ashley apareceu na tela, juntamente com um número de telefone. Amber continuou.

"Este é um relatório muito preliminar e ainda não foi verificado até o momento, mas qualquer pessoa que souber algo sobre o paradeiro de Ashley Penn deve ligar para a Polícia de Los Angeles, no número que está na tela. Vamos atualizar este caso à medida que se desenrola, e ter um relatório completo no jornal Action News, às onze horas. Agora, voltamos à programação normal".

Hillman desligou o monitor. Ele parecia frustrado, mas não surpreso.

"É nossa deixa, pessoal. Vamos dividir tudo e seguir em frente. Também, que fique claro: isto é um trabalho em equipe. Vou repetir. Este é um trabalho em equipe. Se você está pensando em impressionar para subir de posto ou reter informações para se beneficiar, ou fazer qualquer outra coisa que não faça este caso avançar o mais rápido possível, quero que se levante agora e saia desta sala".

Todo mundo olhou ao redor. Ninguém se levantou.

"Certo, então, vamos começar. Brody, você supervisiona a busca na casa de River, em Woodlawn. Edgerton, trabalhe com o setor de tecnologia para ver se conseguimos algumas localizações rastreando aquele celular. Suarez, traga as amigas de Ashley, Thelma Gray e Miranda Sanchez, até aqui, para interrogatórios. Cada uma deve vir acompanhada de um pai ou mãe. Não queremos dar vacilo. Patterson, coordene com todos os estabelecimentos perto da escola para obter qualquer imagem de câmera de segurança que eles tenham. Você está na caçada à van preta. Sterling e Cantwell, vocês ficarão responsáveis pelo interrogatório de Denton Rivers. Ele está na Sala de Interrogatório Dois".

Todo mundo se dispersou.

Keri e Ray foram deixados sozinhos na sala com Hillman, sem saber ao certo o que fazer. Eles não haviam recebido nenhuma tarefa. Então, o tenente apontou para eles.

"Vocês dois, venham comigo".


CAPÍTULO SEIS


Segunda-feira

Noite


Hillman se dirigiu ao seu pequeno escritório. Havia um sofá aparentemente confortável encostado na parede, mas ele os levou para as duas desconfortáveis cadeiras de metal na frente da sua mesa e se sentou do outro lado, na frente deles. Keri quase não podia vê-lo, atrás de pilhas de pastas que tomavam a maior parte da mesa.

"Bom trabalho, detetives. Ray, você sabe que Brody está se aposentando no final do ano, certo?"

"Sim, senhor".

"Isso significa que haverá uma vaga em Homicídios. Você tem interesse?"

Keri observou a boca de Ray se abrir. Ele olhou para Hillman, e então para ela. Ela sorriu para ele, mesmo sentindo um aperto no peito. Isso pareceu ajudá-lo novamente a se recompor.

"Tenho que responder agora?"

"É claro que não. Mas não espere demais. Há muito interesse, mas quero que você se candidate".

"Obrigado, senhor".

Hillman assentiu, e então voltou sua atenção para Keri.

"Locke, primeiro que tudo, bom trabalho. Foi a sua tenacidade que fez este caso andar. Nós realmente estaríamos muito atrás se você não tivesse ganho essa vantagem. E, depois desse começo difícil, você esmiuçou muito bem os detalhes do caso durante a reunião geral. Acho que você realmente tem futuro aqui".

Ela sentiu que estava vindo.

"Mas..." ela disse.

Hillman parecia estar genuinamente pesaroso.

"Mas este caso está ganhando rapidamente uma dimensão política. Temos que agir com cautela, considerando o que está em jogo. E estamos provavelmente apenas a horas dos Federais assumirem. Não podemos dar nenhum passo em falso.

"Não faremos isso", ela prometeu.

Os olhos de Hillman brilharam. Qualquer simpatia que ele vinha demonstrando desapareceu de seu rosto.

"Denton Rivers ameaçou dar queixa contra você".

"Pelo quê?" Keri perguntou, exibindo mais indignação do que sentia.

"E aquele corte enorme na cabeça dele?"

"Ele já o tinha quando chegamos lá. E então, ele tropeçou e bateu a cabeça na mesa de centro".

"Nem venha com essa merda! Não insulte minha inteligência, detetive. A decisão foi tomada. Não podemos ter nenhum outro suspeito tropeçando em mesas de centro. Você está fora do caso".

"Fora?" ela repetiu, atônita.

Hillman confirmou com a cabeça.

"Nós ainda vamos usá-la como um recurso, se necessário. Obviamente, você é bem versada nas particularidades do caso. Mas, além disso, sim, você está fora. Não posso aceitar nada que coloque uma condenação em risco".

Ray pigarreou.

"Como todo o respeito, senhor..."

Hillman levantou a mão.

"Nem se dê ao trabalho, Sands. A decisão foi tomada".

Ele continuou a falar, mas Keri não o ouvia. Uma imagem apareceu como um flash pela sua cabeça, de uma menininha sendo jogada numa van, e de um baque alto quando o corpo dela bateu contra a parede do veículo. Então, uma voz a tirou do devaneio.

"Locke, você está aqui?"

A voz de Hillman estava alta, como se ele tivesse feito a pergunta mais de uma vez.

Ela disse, "Sim, senhor".

"Certo. É isso, então. Vá para casa e durma um pouco".

Ray se levantou e disse, "Senhor, se ela está fora do caso, eu também estou".

O tenente Hillman franziu o cenho.

"Preciso que você coordene as imagens das câmeras de segurança com Patterson".

Ray suspirou, decidindo, e então disse, "A detetive Locke é minha parceira. Ou nós dois estamos dentro ou estamos fora".

Keri nunca havia visto aquela expressão no rosto de Hillman. Sua boca se deformou numa contração. As linhas em sua testa formavam sulcos ainda mais profundos que os usuais. Ele parecia estar lutando desesperadamente para conter seu gênio forte.

"Não foi um pedido, detetive Sands", ele rosnou, por fim.

"Nesse caso, senhor, não estou me sentindo muito bem. Acho que preciso de uma dispensa médica".

Keri disse baixo, "Ray, não".

Ele a ignorou, encarando Hillman com seu olho bom.

O velho encarou de volta e, após o que pareceu uma eternidade, pareceu abrandar. Ele balançou a cabeça, sem acreditar e disse: "Certo. Tenha sua ‘dispensa médica’. Agora, saia daqui antes que o suspenda".

Eles saíram do escritório.

Keri voltou-se para ele; ele parecia tão atordoado quanto ela.

"O que fazemos agora?" Keri perguntou.

"Encontre-me no seu carro em cinco minutos. Tenho que concluir algumas coisas".

"Aonde estamos indo?"

"Encher a cara", ele respondeu.


*


Quinze minutos mais tarde, pouco depois das oito, eles estavam sentados num canto do Clive's, um bar em Culver City popular entre policiais. Keri estava no seu segundo Glenlivet. Ray bebericava uma cerveja leve.

"Tentando manter sua silhueta feminina?" ela provocou.

"Tenho que me manter em forma no caso do próximo suspeito que você atacar tentar reagir".

"Tem razão. Sabe, estou começando a pensar que me ter como parceira não é tão bom para sua carreira, Ray".

"Começando a pensar...?" ele perguntou, incrédulo.

"Sério... eu não tenho muito controle de impulso e você sempre parece pagar o preço por isso. você ficou do meu lado com Hillman, então, agora ele está irritado com você, possivelmente colocando aquele emprego em Homicídios em risco. Eu sou como um pneu furado humano. Devia ficar longe de mim".

"E se eu não quiser ficar longe de você?" ele perguntou, com mais sinceridade do que Keri estava preparada para encarar.

Ela bebeu mais algumas doses de scotch e deixou que o álcool aquecesse suas entranhas. As doses estavam começando a fazer efeito e ela considerou dar uma resposta sincera. Ray pode ser transferido para Homicídios. Talvez, eles devessem finalmente falar sobre o que exatamente significavam um para o outro — parceiros, amigos, mais?

Mas, antes que ela pudesse responder, Ray pareceu perder a paciência e falou rapidamente.

"Quero dizer, se eu perdesse você como parceira, quem me ensinaria todos aqueles golpes Krav Magá?"

Keri sentiu o momento passar e decidiu deixar ir... por ora.

"Sim, você ficaria perdido sem mim. De outra forma, teria que depender do boxe, daqueles ganchos, socos e crewcuts".

"Uppercuts", ele disse suavemente, sorrindo.

"Sim, aqueles".

"Você sabe, foi o que pensei que Lenny Jack estava preparando para mim naquela última luta, um uppercut. Mas ele me surpreendeu com aquele gancho e, bam, adeus globo ocular. Eu era arrogante demais".

"Arrogante não é uma palavra que me vem à mente quando penso em você; convencido, talvez, mas não arrogante".

"Você não me conheceu naquela época, Keri. Eu era arrogante. Eu estava ganhando um bom dinheiro. Tinha coisas boas. Tinha uma mulher que me amava e dois filhos que me adoravam. E não dei o devido valor a tudo isso. Eu torrava dinheiro como se não valesse nada. Eu traía minha esposa. Não passava tempo com meus filhos. Tratava as pessoas mal. E fui para aquela luta preguiçoso, me sentindo no direito. Tive o que mereci".

"Não diga isso".

"É verdade. Eu mereci perder aquela luta. E eu mereci perder tudo. Mereci ser abandonado por Delilah e por ela ter levado as crianças. E eu mereci perder aquele olho também. Olhando para trás, na verdade, mudou minha vida para melhor. Eu comecei a me importar um pouco com as outras pessoas. Deu-me a liberdade de tentar fazer alguma diferença. É estranho dizer, mas pode ter sido a melhor coisa que já me aconteceu. Bem, quase a melhor".

Fingindo não notar aquele último comentário, Keri concordou com a cabeça. Os dois haviam vivenciado momentos que mudaram suas vidas, e que os mandaram por um novo caminho profissional. A diferença era que, para Ray, a polícia era uma vocação. Para ela, era uma missão com um único objetivo: encontrar sua filha.

"Tive o mesmo sonho novamente na noite passada", ela disse.

"Aquele no parque?"

Ela assentiu.

"Desta vez, cheguei tão perto. Estava correndo tão rápido. Eu olhei para baixo e vi meus pés deixando pegadas de sangue no cascalho. Eu quase podia me esticar e tocar na van. Evie estava olhando para mim através da janela traseira. Ela gritava, mas não saía nenhum som. A van teve um solavanco e ela saiu de vista. Então, eu acordei. Estava tão encharcada de suor que tive que trocar de roupa".

"Sinto muito, Keri", Ray falou. Ela se recusou a olhar para ele, com medo de deixá-lo ver que seus olhos estavam úmidos.

"Ray, um dia, vou encontrá-la?"

"Vamos encontrá-la juntos. Prometo. E quando a acharmos, ela terá várias festas de aniversário para compensar. Talvez, eu venha como um palhaço", ele acrescentou, tentando suavizar o momento. Ela decidiu acompanhá-lo.

"Porque isso não seria assustador de forma alguma".

"O que quer dizer? Eu sou um docinho!"

"Você tem um problema na pituitária. Colocá-lo numa fantasia de palhaço não vai melhorar as coisas, João Grandão".

"Você que está dizendo, Fievel".

Keri abriu a boca para revidar, quando o celular de Ray tocou. Ele atendeu antes que ela pudesse dizer uma palavra.

"Salvo pelo gongo", ela balbuciou.

"O que foi?" ele perguntou à pessoa no outro lado da linha. Então, passou a ouvir, puxando seu caderninho e escrevendo furiosamente. Ele não disse uma palavra até terminar tudo.

"Obrigado, Garrett. Fico te devendo essa".

"O que houve?" Keri perguntou, depois que ele desligou.

"Temos que ir", ele disse, levantando-se e deixando algumas notas sobre a mesa. Eles se dirigiram à porta.

"Quem era?"

"O detetive Patterson. Antes de sairmos da delegacia, eu pedi para ele me ligar se houvesse algum avanço no caso. Ele está checando as imagens de câmeras de segurança perto da escola. Você lembra que a placa da frente da van estava coberta?"

"Sim?"

"Bem, parece que o cara esqueceu de cobrir a de trás. A câmera de segurança de um estúdio de tatuagem na Windward a pegou. Eles têm uma pista. Pertence a um cara chamado Johnnie Cotton. Ele tem uma longa ficha criminal. Posso lhe dar mais detalhes no carro. Mas o mais importante é que ele é um traficante de drogas amador".

"Por que isso é importante?"

"Porque você conhece um de seus clientes".

"Quem é?" Keri perguntou, enquanto eles se dirigiam apressadamente para o carro.

"Denton Rivers. Patterson disse que o garoto acabou de admitir isso a Sterling e a Cantwell. Foi Cottom o responsável pelo primeiro corte na cabeça de Denton e pelos arranhões também. Aparentemente, o garoto não estava pagando suas contas".

"Você está achando que Johnnie Cotton levou Ashley como uma colateral?"

"É uma teoria".

"Então, por que estamos com tanta pressa?"

"Primeiro, me dê suas chaves", Ray disse.

"Por quê?"

"Porque você não lida com seu Glenlivet tão bem quanto imagina".

Keri teve que admitir que a sensação de calor das doses não havia passado. Ela deu a ele as chaves do seu carro.

"Agora, vai me dizer por que a pressa?"

"Porque Patterson me disse que Hillman está reunindo uma equipe de ataque para invadir a casa de Cotton. Eles estarão lá em cerca de 45 minutos.

"E daí?"

"Daí que Cotton mora perto dos campos de petróleo de Baldwin Hills".

"Isso fica a dez minutos daqui", Keri disse.

"Sim, é isso. Que tal uma excursão agora?"

"Achei que estivéssemos fora do caso".

"Você está fora do caso. Eu estou de licença por motivo de doença. Mas, subitamente, me sinto muito melhor. O que posso fazer se você estava no carro quando decidi perseguir uma pista viável?" Ele estava sorrindo de orelha a orelha.

"Hillman vai matar você".

"Não vai, se ele quer me dar aquele emprego na Homicídios. Então, você está dentro ou não?"

Keri levantou as sobrancelhas.

Esse cara se esqueceu de com quem está falando?

"Dirija", ela disse.

Em segundos, eles estavam acelerando pela rua, com a sirene tocando. Se conseguissem ganhar tempo, chegariam na casa de Cotton meia hora antes da cavalaria.

E se Ashley estiver machucada, você vai implorar para que a cavalaria apareça.


CAPÍTULO SETE


Segunda-feira

Noite


Enquanto abriam caminho pelo tráfego no horário do rush, Ray repassou as informações que Patterson havia lhe dado sobre Johnnie Cotton. Ele havia sido pego numa operação policial contra pornografia infantil seis anos atrás, quando tinha 24 anos, e terminou passando dois anos preso em Lompoc. Liberado agora, faria parte do registro de ofensor sexual pelo resto de sua vida. Isso poderia explicar por que vivia numa zona industrial da cidade, onde era muito menos provável que ele violaria a regra de estar a trinta metros de distância de qualquer escola ou parque infantil.

Mas, apesar desse crime ser grave, não era por isso que eles estavam agora se dirigindo à casa dele. Mas sim por causa da van que possuía e da alegação de Denton de que ele era seu traficante. Essas duas coisas juntas bastavam para Hillman ter um mandato para entrar em sua propriedade. Mas o tenente Cole Hillman era um homem cauteloso. Tanto Keri quanto Ray estavam confiantes de que, assim como a gritaria que eles haviam ouvido na casa de Denton, esses detalhes sobre Cotton criavam circunstâncias exigentes, que não necessitavam de um mandato. Nenhum deles precisava dizer em voz alta: eles iam entrar na casa.

Cotton vivia ao lado de Baldwin Hills, um bairro rico, primariamente afro-americano, no coração da região oeste de Los Angeles.

A maioria das casas ficava sobre montanhas que se elevavam o suficiente para oferecer vistas panorâmicas da cidade em dias de leve neblina. Mas Cotton não vivia nesse bairro. Sua casa ficava ao sul, num trecho um tanto desolado de terra, ocupada por campos de petróleo e pelas gruas que não paravam de bombeá-los, sugando-os até secar.

Sua propriedade de quase meio hectare ficava no final da Stocker Street, num trecho da Santa Fe Road, cheia de fornecedores de pedras e cascalho, fábricas, ferro-velhos, e as casas decrépitas dos donos desses negócios.

Keri e Ray chegaram na casa de Cotton logo após o pôr do sol. Eles desligaram a sirene ao encostar perto da La Cienega Avenue. Ray desligou os faróis também. Eles estacionaram na rua, a vários metros de distância da casa de Cotton, perto da propriedade vizinha. Era algum tipo de cemitério para tratores, escavadeiras e caminhões quebrados, que lançavam sombras negras feéricas para o céu, que escurecia rapidamente.

Não havia postes de luz na área, o que exacerbava as sombras. Alguns dos prédios tinham pequenas luzes sobre as portas de entrada, mas ficavam tão distantes na estrada que não eram de muita ajuda para Keri e Ray.

Eles revisaram o plano antes de prosseguir.

"Temos cerca de 25 minutos, no máximo, antes que a equipe policial chegue", Ray notou. "Vamos manter o foco em encontrar Ashley e tirá-la de lá em segurança. Deixaremos os profissionais lidarem com a prisão, se possível. Parece bom?"

Keri assentiu.

O portão lateral para o cemitério de veículos paralelo ao terreno de Cotton estava aberto, então, eles entravam da maneira mais silenciosa possível.

Acho que o dono deste lugar não está muito preocupado com alguém mexendo nas suas coisas sem ser notado.

As propriedades estavam divididas apenas por uma cerca de um metro e meio de altura. Cuidadosamente, eles atravessaram a área por uns cem metros, antes de finalmente avistarem uma estrutura na propriedade de Cotton. Era uma pequena casa térrea com luzes amareladas em seu interior, aparecendo pelas cortinas fechadas.

Atrás dela, bem afastadas na escuridão, eles podiam agora distinguir várias outras construções, a maior delas parecia com um prédio de metal com dois andares — uma casa de solda, aparentemente — seguida por várias outras, menores e mais decadentes. Nenhuma delas tinha iluminação interna ou externa.

Eles pularam a cerca, entraram na propriedade de Cotton e se aproximaram da casa em silêncio, movendo-se num largo círculo, navegando pelas carcaças de velhos carros enferrujados apoiados em pneus murchos, sem ar.

Com exceção do rumor abafado do tráfego a um quilômetro e meio de distância e dos latidos distantes de um cão solitário, eles não ouviam mais nada.

"Eu não vejo uma van", Keri sussurrou. Ela tentou ignorar o suor escorrendo por suas costas, fazendo sua blusa colar em sua pele pegajosa. Apesar do calor sufocante, sentiu um arrepio.

"Ele pode não estar em casa".

Eles continuaram a se mover, um passo cuidadoso de cada vez, sem saber se estavam prestes a tropeçar numa tira de pneu ou pisar num explosivo caseiro de algum tipo. Com um cara como Johnnie Cotton, que claramente não gostava de visitas inesperadas, nunca se sabe.

Eles percorreram todo o caminho até a casa e espiaram pelo espaço estreito entre as cortinas. Puderam ver uma pequena sala de estar. Uma televisão velha com uma antena antiga estava num canto, com estática aparecendo na tela. Parecia não haver nenhum movimento dentro da casa. A luz que eles haviam visto vinha de um abajur. Um pequeno ventilador no chão oscilava de um lado para o outro, numa tentativa fútil de manter o lugar ventilado. A não ser pelo zumbido das pás, eles não ouviram nenhum som vindo do interior.

Os dois engatinharam ao redor da lateral da casa, passando por uma janela fechada e às escuras, e então seguiram para os fundos, onde uma janela corrediça estava aberta para o ar fluir. Através da tela, viram um quarto. Um pouco de luz entrava dentro do cômodo, vindo de um corredor, o suficiente para mostrar que as paredes estavam cobertas de fotos de garotas jovens, quase todas usando roupas de dormir e biquínis. Não era pornografia infantil — tudo nas paredes estava disponível numa banca de revista. Mas a imensa quantidade delas era perturbador.

"Acho que velhos hábitos são difíceis de abandonar", Ray murmurou.

Eles continuaram sua busca, espiando em cada janela disponível, e finalmente concluíram que o homem não estava em casa. Acharam uma porta dos fundos, que Ray destrancou com um cartão de crédito, entraram e realizaram uma rápida busca do lugar, testando interruptores apenas quando necessário e só por alguns segundos, no caso de Cotton voltar de repente.

No guarda-roupa do quarto principal, Ray identificou uma caixa de sapato sobre uma prateleira de cima. Ele começou a puxá-la quando ambos ouviram um barulho sob seus pés, como se alguém estivesse correndo. Eles gelaram, olhando um para o outro.

"Ashley?" Ray moveu os lábios, sem emitir nenhum som.

"Ou talvez Cotton, se escondendo", Keri sussurrou de volta.

Keri puxou o tapete da sala, revelando um alçapão. Apenas um ferrolho sobre ele impedia alguém de abri-lo. Keri desembainhou sua arma e colocou a mão no ferrolho, enquanto Ray mirava sua arma na porta. Silenciosamente, ela contou de três para um com uma mão enquanto se preparava para abrir o alçapão com a outra. Quando terminou de contar, ela abriu a porta bruscamente, de modo que ela ficou apoiada no chão, e se levantou em seguida.

Por um segundo, nada aconteceu. Então, eles ouviram o som de alguém correndo de novo. À medida que se aproximava, parecia mais um galope. E então, algo emergiu do porão abaixo deles, quase mais rápido do que seus olhos podiam acompanhar.

Um pastor-alemão enorme aterrissou no chão em suas quatro patas, rosnando. Seu pelo estava mal cuidado e Keri podia sentir seu cheiro de onde estava, a meio caminho do outro lado do quarto. O cão girou sua cabeça e viu Ray no guarda-roupa. Ele rosnou novamente e saltou na direção dele, as garras em suas patas fazendo barulho ao arranhar o piso de madeira.

"Feche a porta!" Keri gritou. Ray fez como ela mandou, conseguindo bater a porta um pouco antes do animal alcançá-lo. O cão se voltou imediatamente, olhando para a origem da voz. Seus olhos se travaram em Keri. Ela viu os músculos do cão ficando tensos enquanto ele se preparava para pular.

Diferente de Ray, ela estava no centro da sala. Não havia maneira de chegar na porta antes do cão alcançá-la.

O que vou fazer?

Ela percebeu que sua mão já estava sobre a sua arma, no coldre. Não queria usá-la, mas temia não ter escolha. Estava claro que o cão havia sido treinado para atacar e ela duvidava que ele pegaria leve com ela. Subitamente, uma voz gritou do armário.

"Ei, coisa feia! Venha me pegar!"

O cão se virou para olhar brevemente para a porta fechada do armário. Keri usou o momento para escanear o cômodo.

Não tenho aonde ir. Ele é mais rápido que eu. Não posso correr mais rápido que ele. Não posso vencê-lo numa luta. Nem mesmo sei se posso puxar minha arma antes dele me alcançar.

O cão perdeu interesse na voz e voltou sua atenção para Keri. Então, uma ideia lhe ocorreu. Mas, para fazê-la funcionar, ela precisaria de outra distração. Foi como se Ray tivesse lido sua mente. Ele abriu a porta do armário com barulho e gritou de novo.

"Qual o problema, Cujo? Está com medo?"

O cão latiu e tentou enfiar o nariz pela porta, sem sucesso.

Era tudo de que Keri precisava. Ela se ajoelhou rapidamente. O cão desistiu de Ray e focou em Keri. Ray continuou a gritar, mas o animal o ignorou. Uma longa linha de saliva pendia de sua boca aberta. Seus dentes pareciam brilhar na luz macilenta do abajur. Houve um momento de calma e então ele pulou, um torpedo canino se dirigindo diretamente para ela. Do canto do olho, Keri viu Ray abrir a porta do armário, sua arma apontada para o cão, que se movia rapidamente.

"Não!" Keri gritou enquanto ela levantava rápido a porta do alçapão, para criar uma barreira entre ela e o cão. O animal, que já estava no ar, não pôde fazer nada para evitar bater na porta, antes de cair nos degraus do porão. Mesmo quando ela começou a fechar a porta, Keri viu o cachorro subindo de volta os degraus, aparentemente, sem ferimentos. Ela bateu a porta com força numa fração de segundo antes do cão bater de frente com ela. Keri o ouviu escorregar pelos degraus novamente por um segundo, e então recobrar as forças para um novo golpe.

Ela se deitou na porta do alçapão, pressionando todo o seu peso sobre a porta, e se preparou para a próxima colisão. Quando ela veio, lançou-a alguns centímetros no ar. Quando recuperou o fôlego, o cão estava rosnando e subindo os degraus pela terceira vez.

Naquele momento, Ray já a havia alcançado e mergulhou também sobre a porta do alçapão. Desta vez, quando o cão bateu nela, não houve movimento. Eles ouviram um latido alto, e então o som suave de patas enquanto o cachorro regressava pela escada, aparentemente vencido, por fim.

Keri rolou para o lado, trancou a porta do porão e deu um suspiro de alívio. Ray ficou deitado a seu lado, ofegante. Após alguns segundos, Keri se sentou e olhou para ele.

"Cujo?" ela perguntou.

"Foi a única coisa que me ocorreu".

Devagar, os dois se levantaram e olharam ao redor. Keri notou que a caixa de sapato no armário que Ray estava segurando caíra no chão, espalhando centenas de fotos. Elas eram todas de garotas nuas, de cinco anos, mais ou menos, até o final da adolescência.

Sem nem mesmo pensar, Keri começou a vasculhá-las, procurando por Evie, até que Ray colocou a mão sobre seu ombro e disse, calmamente, "Agora não".

"Ray!"

"Agora não. Não estamos aqui para isso. Além do mais, não vão sair daí. Vamos".

Ela hesitou e então arrebatou a caixa do armário e correu com ela para a sala, mais perto da luz do abajur. Lá, ela jogou as fotos restantes no chão antes de Ray poder detê-la, e começou a vasculhar rapidamente entre elas.

Evie está aqui. Eu sei.

Ray tentou agarrar seu pulso, mas ela se livrou de sua mão, torcendo-o.

"Ela está aqui, Ray! Deixe-me em paz!"

"Veja!" ele sibilou, apontando para a entrada da casa.

Subitamente, a frente da casa se iluminou.

Faróis iluminaram o interior da casa, ainda um pouco distantes, mas se aproximando rápido. Era Cotton, voltando para casa.

"Vamos!" Ray insistiu.

Eles colocaram as fotos novamente na caixa e no armário, esticaram o carpete sobre o alçapão e, de alguma forma, conseguiram sair pela porta dos fundos assim que Cotton entrava pela porta da frente. Ficaram ali, sem se mover, imaginando se ele havia ouvido a porta bater. Um segundo se passou e, então, mais outro. A porta dos fundos não abriu. Não apareceu ninguém. Ray puxou de leve o braço de Keri e eles conseguiram se mover silenciosamente através da escuridão, em direção aos fundos do terreno.

Na estrutura de dois andares, um prédio pré-fabricado de metal, Keri disse, "Vamos voltar".

"Não".

"Ray..."

"Não, você vai atirar nele".

"Só se ele me der uma razão".

"Ele já lhe deu uma razão".

"Ray, por favor".

"Não, é para seu próprio bem. Lembre-se de por que você está aqui — para encontrar Ashley. Somos da Unidade de Pessoas Desaparecidas, não do setor de crimes sexuais. Além disso, a força de ataque estará aqui a qualquer momento para cuidar dele".

Keri assentiu, em silêncio. Ele estava certo. Ela precisava manter o foco agora. Haveria tempo para rever as fotos mais tarde. Voltaram sua atenção para o prédio à frente. A porta principal estava destrancada. Dentro, estava tudo completamente escuro.

Keri chamou baixinho: "Ashley!"

Nenhuma resposta.

"Fique aqui e me dê cobertura", ela disse. "Vou conferir".

"Não acenda nenhuma luz".

"Não se preocupe. E me avise se Cotton tentar fugir".

Depois de dar dez passos, Keri estava na escuridão completa. Ela puxou uma lanterna minúscula e a usou para iluminar o ambiente.

"Ashley!"

Ninguém respondeu.

Não tem como isto não dar em nada. Ela tem que estar aqui em algum lugar.

Ela conferiu os cantos e atrás das portas, mas não encontrou ninguém. O lugar era enorme e havia esconderijos demais onde se esconder — ou ser escondido. Eles precisavam de muita iluminação.

Assim que ela pensou nisso, o prédio foi banhado com luz. Keri se abaixou, sem saber o que estava acontecendo. Ray se escondeu atrás de um tambor de duzentos litros perto da entrada. Então, ela percebeu que a luz vinha dos faróis de um veículo ao lado da casa. As luzes dançaram pela estrutura e então desaparecerem pelo longo caminho de cascalho para a Santa Fe Road.

Keri correu de volta até Ray, mas, no momento em que chegou seu parceiro, ele já estava ao telefone.

"O suspeito está dirigindo uma van preta, dirigiu-se ao norte pela Santa Fe Road".

Ele parou para ouvir a pessoa do outro lado da linha.

"Entendido. Nenhuma evidência da garota desaparecida na casa. Não sabemos se o suspeito está armado. Vamos permanecer no local caso ele retorne. Desligo".

Ele se virou para olhar para Keri.

"Era Brody. Ele está com a equipe de ataque. Disse que estão com Cotton sob vigilância. Aparentemente, Hillman está lidando com alguma crise secreta no momento, mas ele estava na linha, em sistema de conferência. Ele só quer usar a força de ataque em último caso. Se Ashley não estiver aqui nesta propriedade, ele espera que Cotton nos leve até seu paradeiro".

Keri começou a responder, mas ele a interrompeu.

"Sei o que você está pensando. Não se preocupe. Há seis veículos no seu rastro e ele está dirigindo uma grande van preta. Ele não vai escapar, Keri".

"Não era isso que eu estava pensando".

"Não?"

"Certo, sim, era. Mas você não precisa ser tão condescendente a respeito".

"Desculpe".

"Eu te perdoo. Agora, vamos aproveitar a situação".

Eles voltaram para o prédio de metal de dois andares. Keri procurou pelo interruptor e acendeu a luz. O local ganhou vida. Estava cheio de ferramentas e máquinas industriais. Uma rápida busca revelou que Ashley não estava lá. Eles encontraram um pé-de-cabra e começaram a usá-lo para abrir todo galpão e oficina no terreno. Procuraram em todos eles. Todos estavam vazios.

Começaram a gritar a plenos pulmões.

"Ashley!"

"Ashley!"

"Ashley, você está aqui?"

Ela não estava.

Keri voltou para a casa caminhando apressadamente, com Ray bem atrás de si. Ela empurrou a porta dos fundos com força e foi direto ao armário, abrindo a porta.

A prateleira estava vazia.

A caixa de sapato não estava mais lá.

Keri procurou-a mais um pouco, antes da frustração se apossar dela. Então, agarrou o abajur sobre a mesa de canto da sala de estar e o jogou contra a parede. A base de cerâmica se esmigalhou por todo o chão. Sob as tábuas do assoalho, o cachorro começou a latir. Ele havia retomado sua coragem.

Ela desabou no sofá e deixou sua cabeça pender para trás. Ray, que havia permanecido de pé em silêncio ao lado da porta dos fundos, caminhou até ela e se sentou ao seu lado.

Ele ia começar a falar quando o celular de Kery tocou. Ela o pegou. Era Mia Penn.

"Detetive Locke, onde você está?"

"Procurando por sua filha, Srª Penn", ela respondeu, tentando esconder o quanto estava arrasada.

"Poderia vir aqui imediatamente?"

"Por quê? O que aconteceu?"

"Por favor, apenas venha aqui o mais rápido que puder".


CAPÍTULO OITO

Segunda-feira

Noite


A residência dos Stafford estava um caos. Keri e Ray tiveram que lutar para abrir caminho pelo circo montado por jornalistas e cinegrafistas na frente da casa. Mesmo dentro da residência, eles podiam ouvir os gritos dos repórteres. Uma equipe de segurança diferente levou-os até uma cozinha enorme, onde encontraram Mia chorando e Stafford caminhando irritado, de um lado a outro. Quando ela os viu entrar, Mia enxugou os olhos e pigarreou.

"Tivemos uma longa visita de um cara que aparentemente manda em tudo na delegacia Pacific", Mia falou. "Cole Hillman".

"Acho que sabemos qual era a crise secreta", Keri disse a Ray. Então, voltando-se para Mia, "É nosso chefe".

"Bem, ele disse que tinha uma equipe altamente experiente trabalhando, que estava dirigindo as investigações pessoalmente e que você fez um ótimo trabalho, mas que, agora, está fora do caso".

"Isso é verdade", Keri afirmou.

"Eu disse a ele que de jeito nenhum", Mia retrucou. "Então, ele falou que você não tinha experiência".

Keri assentiu. Era verdade.

"Sou detetive há apenas um ano".

"Quando não recuei, ele também falou que você não estava pronta para as pressões de um caso como este, que você teve uma filha raptada há cinco anos e que nunca mais se recuperou realmente. Ele disse que, às vezes, você divaga por alguns minutos durante um tempo ou pensa que toda garotinha é sua filha".

Keri suspirou.

Quem diabos Hillman pensa que é para falar com uma civil desse jeito? Isso não era algum tipo de violação de RH?

Ainda assim, ela não podia negar.

"Sim, isso é verdade também".

"Bem, quando ele disse isso, falou como se fosse uma coisa ruim", Mia contou. "Mas vou dizer a verdade. Se Ashley ainda estiver desaparecida em cinco anos, eu faria exatamente o mesmo — veria o rosto dela em todo lugar que eu olhasse”.

"Ela não estará..."

"Sim, assim espero, mas não é esse o ponto. O ponto é, você entende... entende o que está acontecendo, e ele não tem a menor ideia. Disse a ele categoricamente que eu não apenas a quero de volta no caso, mas que também exijo que você esteja à frente das investigações. Stafford me deu total apoio nisso".

O senador assentiu.

"Não haveria um caso agora se não fosse por você", ele disse.

Keri sentiu um nó no estômago.

"Acho que vocês estão subestimando o tenente Hillman".

"Não importa, Stafford e eu queremos você no caso e deixamos nossa opinião bem clara".

"O que ele disse?"

"Ele disse que era um assunto complexo, que ele trabalha na polícia há muito tempo, e que tem uma compreensão muito mais ampla de quem trazer para o caso para que as coisas sejam bem feitas, mais do que nós dois. Ele foi educado, mas no final, basicamente, sua posição foi de que dois civis, ainda que um seja senador, não diriam a ele como dirigir seu departamento".

"Há muito mérito nisso".

"Talvez, mas eu não ligo. Queremos você tratando do caso, e dissemos isso a ele".

Keri meneou a cabeça.

"Veja, agradeço pelo voto de confiança, mas..."

"Nada de ‘mas’. Para nós, você está à frente das investigações. Não falaremos com mais ninguém".

"E eu?" Ray perguntou com um sorriso, tentando diminuir a tensão do momento.

"Quem é você?" Mia perguntou, aparentemente notando a presença dele pela primeira vez.

"Este é o meu parceiro, Ray Sands. Ele me ensinou quase tudo que sei sobre ser uma policial".

"Então, acho que você pode ficar", Mia replicou, no que pareceu um tom levemente mais relaxado. "Agora, diga-nos o que há de novo... alguma coisa?"

Keri lhes falou sobre o que aconteceu na casa de Denton River, e como eles conseguiram a placa da van preta e acabaram de fazer uma busca nas instalações do dono da van, um ex-presidiário chamado Johnnie Cotton, mas não encontraram Ashley. Ela não mencionou que o cara era o traficante da filha deles ou qualquer coisa sobre as imagens da câmera de segurança. Não queria alimentar falsas esperanças.

Stafford olhou fixamente para ela e então disse, "Se você estivesse no comando, o que faria, agora mesmo, neste exato momento?"

Ela refletiu um pouco.

"Bem, estamos seguindo algumas pistas e não posso discuti-las ainda. Mas se elas não derem em nada daqui a uma hora, acho que liberaria um alerta na mídia nacional. Assim, uma descrição tanto de Ashley quanto da van preta seriam divulgados pelos jornais. Às vezes, seguramos isso, se acharmos que poria a criança num risco ainda maior. Mas não vejo uma desvantagem nesta situação. Ray?"

"Concordo. Se nossas pistas atuais não vingarem, divulgaríamos todas as informações relevantes e veríamos qual poderia ser o retorno".

"Incluindo a placa do veículo?" O Senador Penn perguntou.

"Correto", Ray disse. "Mas, como a detetive Locke mencionou, precisamos ver como algumas pistas se desenvolvem antes de tomar esse próximo passo".

"Pelo que entendi, foram você dois que encontraram as filmagens da van?" Mia perguntou.

"Correto", Ray respondeu.

"E não Cole Hillman e sua equipe extremamente bem preparada?"

"Srª Penn..." Keri começou.

"Mia. Acho que você pode me chamar pelo primeiro nome, dadas as circunstâncias".

"Ok, Mia, e, por favor, me chame de Keri. Sim, Ray e eu encontramos a van. Mas o tenente Hillman está apenas fazendo o que acha melhor. Estamos nos esforçando ao máximo para recuperar sua filha. Vamos tentar trabalhar juntos ao invés de entrar em conflito, está bem?"

Mia assentiu.

"Quanto tempo leva para liberar o alerta nacional?"

"Depois de aprovado, apenas alguns minutos", Ray disse a ela. "Posso começar as preliminares, de modo que podemos apertar o gatilho imediatamente depois da aprovação".

Mia olhou para Stafford, buscando apoio.

Ele hesitou.

"Stafford?"

Ele tinha uma expressão de dúvida e disse, "De repente, temos toda essa loucura acontecendo na vida dela. O tenente Hillman mencionou uma habilitação falsa, fotos mostrando maconha e álcool e... nudez. Ele mencionou um novo namorado que é bem mais velho que ela. Parte de mim ainda se pergunta se ela apenas foi para uma festa com algum cara numa van e está bêbada demais para entrar em contato. Se ela chegar em casa bêbada de manhã, depois que um alerta nacional foi liberado, minha carreira, francamente, está acabada. Inferno, considerando a loucura da imprensa, já deve ter acabado, de toda forma".

Mia apertou a mão dele.

"Ela está em sérios problemas, Stafford, eu posso sentir. Ashley não estaria por aí bêbada. Ela precisa de nós agora, neste instante. Ela precisa de tudo que podemos dar a ela. Esqueça sobre sua carreira e pense na sua filha. Se, no fim das contas, ela foi raptada e não fizemos isso, você nunca se perdoaria".

Ele deu um suspiro, refletindo sobre as opções pela última vez. Depois, olhou para Keri e disse, "Vamos adiantar as coisas, então, se pudermos".

"Certo", Keri falou, "deixem-nos rastrear essas últimas poucas pistas. Se nada se materializar, vamos postar o alerta dentro de uma hora. Temos que ir agora".

"Posso pelo menos oferecer a vocês algo para comer antes de irem?" Mia perguntou. "Quando foi a última vez que comeram algo?"

Quase que imediatamente ao ouvir a pergunta, o estômago de Keri começou a roncar. Ela não havia comido nada desde o almoço, há quase nove horas. E mais, os drinques no bar haviam lhe dado uma leve dor de cabeça. Ela olhou para Ray e podia notar que ele estava pensando a mesma coisa.

"Talvez alguns sanduíches, se não for muito incômodo", ele disse. "Não podemos fazer muita coisa até ouvir notícias de Brody".

"Vocês não podem nos dizer o que são essas pistas às quais se referem?", o senador Penn perguntou.

"Ainda não. Elas podem ser úteis. Podem ser nada. Não queremos colocar vocês numa montanha-russa emocional, além do que já estão".

"Odeio montanhas-russas", Mia balbuciou, para ninguém em particular.

Dez minutos mais tarde, depois de devorar seus sanduíches, o celular de Ray tocou.

"Sands falando", ele disse, com a boca cheia. Ele ouviu com atenção por um minuto, enquanto todo mundo permanecia em silêncio. Quando desligou, voltou-se para os outros. Keri podia dizer que havia más notícias antes dele falar.

"Lamento dizer que nossas pistas não deram em nada. Tínhamos uma equipe de vigilância seguindo Johnnie Cotton enquanto ele dirigia sua van pela cidade. Em algum ponto, ele tentou despistá-los e eles tiveram que detê-lo. Ashley não estava na van. Ele está na delegacia neste momento".

"Ele está sendo interrogado?" o Senador Stafford perguntou.

"Estava, mas começou a pedir um advogado desde o começo. O cara já passou por esse tipo de situação antes. Ele sabe que não há vantagem nenhuma em falar".

"Talvez ele fosse mais receptivo se a detetive Locke tivesse conversasse com ele", o senador Penn sugeriu.

"Talvez... ela é ótima com interrogatórios. Mas não acho que Hillman fosse aprovar. Este caso já está turbulento o bastante e não acredito que ele queira fazer algo que ponha em risco uma condenação".

"O tenente Hillman me deixou seu cartão quando esteve aqui, mais cedo. Acho que vou usá-lo. Por que você dois não voltam para a delegacia? Tenho a impressão de que, na hora em que chegarem lá, ele terá mudado de opinião".

"Senador, com todo o devido respeito, assim que um suspeito pede por um advogado, o tempo começa a correr. Só podemos segurá-lo por pouco tempo, antes que isso seja visto como uma grotesca violação de seus direitos".

"Então, é melhor chegarem lá rápido". Ele olhou para os dois com tanta decisão que não puderam fazer outra coisa a não ser se perguntar se seria possível. Keri olhou para Ray, que deu de ombros.

"Vamos", ele disse. "Não custa nada tentar".

Eles se dirigiram para a porta, escoltados mais uma vez pelos seguranças. Estavam quase do lado de fora quando Mia correu até eles. Ela abriu a boca, mas, antes que pudesse falar, Keri se antecipou.

"Não se preocupe, Mia. Vou pedir a liberação do alerta assim que entrarmos no carro. Vamos trazê-la de volta em breve".

Mia lhe deu um leve abraço, e então acenou para os seguranças ajudá-los a navegar pela turba de jornalistas espremidos do lado de fora do portão. Com seus gritos indagadores e flashes brilhantes, os repórteres pareciam chacais naquele momento. Mas, muito em breve, poderiam ser uma ferramenta útil para fazer uma adolescente voltar para sua família.

Então, por que tenho um sentimento tão ruim no meio do meu estômago?


CAPÍTULO NOVE


Segunda-feira

Noite


Johnnie Cotton já estava na Sala de Interrogatório 1 quando Keri chegou na delegacia. Ela deixou Ray no carro dele, na casa de Denton River, e esperava que ele chegasse a qualquer momento. Hillman não estava por perto, mas o detetive Cantwell a encontrou no corredor do lado de fora da sala e contou-lhe que Hillman teve que colocá-la de volta no caso, e que ela estava autorizada a interrogar Cotton. Ele falava casualmente, sem emoção, mas sob essa aparência, ela podia sentir o desdém do detetive veterano. Mas preferiu ignorar isso.

Enquanto esperava seu parceiro chegar, ela fitou Johnnie Cotton pelo espelho falso da sala de interrogatório. Já que eles haviam tentado evitar um encontro na casa dele, esta era a primeira chance real que Keri tinha para observá-lo.

Ele não se parecia com o estereótipo de um pedófilo. Seus olhos não lacrimejavam constantemente. Seu queixo não era especialmente fraco. Seus ombros não eram caídos. Ele não era particularmente rechonchudo ou pálido. Era apenas um cara aparentemente normal — cabelos pretos, constituição média, talvez seu rosto tivesse espinhas demais para um homem de 30 anos, talvez fosse um pouco baixinho. Mas, no conjunto, ele passava despercebido, o que era, é claro, muito mais perturbador. Seria preferível se esses tipos fossem facilmente identificáveis.

Cotton estava de pé no canto da sala, suas mãos algemadas à sua frente, com as costas pressionadas contra a parede. Ela suspeitou que essa tinha sido sua posição padrão na penitenciária, apenas para sobreviver. Pedófilos não eram populares por lá.

Keri tomou uma decisão rápida. Ela não iria esperar por Ray. Havia algo sobre esse cara que a fazia pensar que ele se calaria se confrontado pela presença intimidante do parceiro dela. Isso poderia ser usado, se necessário, mas mais tarde. Então, entrou na sala.

Os olhos de Cotton voltaram-se rapidamente para ela, e então se desviaram quase que no mesmo instante.

"Venha até aqui", Keri disse. O homem obedeceu. "Agora, siga-me".

Ela o guiou para fora da sala de interrogatório. Cantwell e Sterling, que estavam conversando no corredor, viraram-se, surpresos.

"Locke, o que está fazendo?" Sterling perguntou.

"Voltamos logo".

Com isso, ela o levou pelo corredor até o banheiro feminino, enquanto seus colegas detetives assistiam, atônitos.

"Esperem aqui", ela disse a eles, e então fechou a porta e focou em Cotton.

"Aqui, não existem câmeras. Nem microfones". Ela desabotoou a blusa, expondo seu sutiã e barriga, e disse, "Não estou usando nenhum fio. O que disser, ficará apenas entre mim e você. Diga-me que quer um advogado".

O homem olhou para ela, confuso.

"Diga", Keri disse. "Diga, 'Eu quero um advogado'".

Ele obedeceu.

"Quero um advogado".

"Não, você não pode ter um", Keri disse. "Vê o que acaba de acontecer? Se este lugar estivesse monitorado, coisa que não está, nada que você disser poderia ser usado contra você agora, porque acabei de lhe negar seus direitos presentes na Constituição. O ponto é que estamos sozinhos. Não estou aqui para machucá-lo. Não estou aqui para enganá-lo. Você compreende?"

O homem assentiu.

"A única coisa que quero é Ashley Penn". O homem abriu a boca para falar, mas Keri o interrompeu. "Não, não diga nenhuma palavra ainda. Deixe-me apenas estabelecer um pouco mais a fundação de nossa conversa. Há algumas horas, eu invadi sua casa, procurando por Ashley. Você não estava. Eu vi a caixa de sapato em seu armário. Vi todas as fotos".

Uma gota de suor brilhou na testa do homem.

"Quando você chegou em casa, viu que elas haviam sido encontradas. Estou certa?"

Ele concordou com a cabeça.

Você percebeu que alguém as havia visto. Você as levou para algum lugar e destruiu tudo antes de ser preso. Estou certa?"

"Sim".

"Bem, entre mim e você, isso não vai funcionar. Eu as vi e posso testemunhar sobre isso. Meu depoimento será mais do que suficiente para revogar sua liberdade condicional. Tudo o que tenho que fazer é abrir a boca e você volta direto para a cadeia. Aqui está minha proposta. Eu tenho Ashley Penn de volta e você mantém sua liberdade".

O homem refletiu.

Então, começou a falar. "Aquelas fotos, nunca as quis. Elas simplesmente chegam pelo correio".

"Besteira".

"Não, é verdade. Elas apenas aparecem".

"De quem?"

"Eu não sei", ele disse. "Nunca tem um remetente no envelope".

"Bem, se você não quer as fotos, por que não as queima?"

Ele deu de ombros.

"Não pude".

"Porque gosta demais delas?"

Ele suspirou.

"Sei que é difícil de entender", ele disse. "Acho que alguém está armando para mim. Eles queriam as fotos em minha casa. Sabiam que eu não conseguiria simplesmente me livrar delas. Eles queriam que a polícia as encontrasse. Querem me mandar de volta para a prisão. E agora, aqui está, realmente acontecendo. Deveria tê-las queimado no momento em que apareceram".

"Você ainda pode sair dessa", Keri disse. "Onde está Ashley Penn?"

"Eu não sei".

Keri franziu o cenho.

"Diga-me o que fez com ela".

"Nada".

"Eu não acredito em você, Johnnie".

"Juro por Deus", ele disse. "De acordo com o jornal, ela foi levada após as aulas, certo? No meio da tarde?"

"Sim".

“Bem, eu estava no trabalho", ele disse. "Eu trabalho no Rick’s Autos, em Cerritos. Passei o dia todo lá. Só saí depois das cinco. Você pode ligar para Rick e ele vai lhe dizer. Ele me avisou que se eu faltasse mais um dia de trabalho, seria demitido".

“Você tem faltado muito ao trabalho recentemente?”

"Eu falto um dia aqui e ali. Mas Rick me repreendeu, então tive o cuidado de ficar o dia inteiro. Além disso, eles têm câmeras de segurança lá. Você pode me ver no terreno o dia inteiro. Não saí em hora nenhuma, nenhuma vez, nem mesmo por cinco minutos. Eu até almocei na copa. Confira. Ligue para ele, ele vai lhe dizer".

Keri se sentia cada vez mais desconfortável. Seu álibi era tão específico que seria fácil abrir buracos nele se não fosse verdade, o que significava que, provavelmente, era.

"O dia todo?" Keri perguntou.

"É. Também recebi uma ligação por volta das duas horas, de um cara querendo fazer uma... compra..."

"Não se preocupe, Johnnie, não quero prendê-lo por tráfico. Continue".

"Bem, ele queria me encontrar no estacionamento do Shopping Cerritos. Mas eu não conhecia o cara e, como eu disse, Rick..."

"Havia lhe dado um último aviso, eu sei. Então, se você estava lá, quem estava com sua van?"

"Ninguém. Estava comigo o dia todo".

"Alguém estava com ela".

"Não, ninguém", ele disse. "Estava parada lá mesmo, no estacionamento. Eu literalmente caminhei ao redor dela o dia todo. Estava lá".

"Ela aparece nas filmagens, levando Ashley".

"Isso é impossível. Estava comigo. Veja as câmeras de Rick. Você vai ver".

Keri levou Cotton de volta à sala de interrogatório. Quando ela saiu, Ray estava lhe esperando.

"Não posso lhe deixar sozinha por um segundo", ele disse.

"Siga-me", ela disse a ele, dando a entender que não estava para brincadeira.

Eles se dirigiram para a garagem onde a van preta de Cotton estava sendo examinada. Keri digitou o número da placa no computador. Para sua surpresa, não combinava com a van. As placas na van de Johnnie Cotton estavam registradas para um Camry branco de uma mulher chamada Barbara Green, de Silverlake.

"O que diabos está acontecendo?" Ray perguntou, atônito.

"Quer saber minha teoria?" Keri disse.

"Por favor".

"Quem levou Ashley Penn estava tentando pôr a culpa em Johnnie Cotton", ela disse. "Ele usou uma van preta para o rapto, do mesmo tipo e modelo da de Cotton. Ele roubou as placas de Cotton, de modo que pudéssemos identificá-lo, mas cobriu a da frente, para parecer que Cotton estava sendo esperto".

Ray entrou no jogo.

"E ele substituiu as placas de Cotton pela de Barbara Green, para que o cara não notasse a diferença, até que fosse tarde demais".

"Exatamente", Keri concordou. "E posso apostar que quem fez isso também enviou para Cotton aquelas fotos das meninas. Cotton afirma que elas apenas apareciam pelo correio, sem endereço do remetente. Quem quer que fosse sabia que o cara não conseguiria jogá-las fora e que nós as encontraríamos quando fizéssemos uma busca pela casa, fazendo-o parecer ainda mais culpado".

"Então, Cotton não é o cara que estamos procurando", Ray disse.

"Não. Mas isso não é o pior. Seja quem for o cara, tem planejado tudo por um tempo. Ele sabia que Cotton era o traficante de Denton Rivers. Ele sabia que ele era um pedófilo. E ele tentou ativamente enfraquecer o álibi de Cotton, tentando encontrar-se com ele no shopping".

"Então, voltamos à estaca zero", Ray disse.

Keri balançou a cabeça.

"Pior que a estaca zero", ela disse. "Desperdiçamos a única coisa que Ashley Penn não tem: tempo".


CAPÍTULO DEZ


Segunda-feira

Noite


Ashley estava tendo dificuldade para abrir os olhos. Ela sabia que estava consciente, mas tudo parecia pesado e vago. Ela se lembrou de quando tinha onze anos e rompeu um ligamento em seu tornozelo, enquanto surfava; teve que passar por uma cirurgia e ser anestesiada. Quando acordou, teve essa mesma sensação, como se estivesse acordando não apenas de um sono, mas quase que da morte.

Há quanto tempo estava deitada ali?

Sua cabeça doía. Não havia uma fonte única de dor. Latejava por todo lado, tanto que ela temeu que, ao se mover, tornaria a dor pior.

Apesar de sua ansiedade sobre a dor que isso iria causar, Ashley decidiu que era a hora de abrir seus olhos.

Estava completamente escuro. Ela não podia ver nada.

E foi aí que o medo começou a tomar conta dela. Isto não era um hospital.

Onde estou?

Ela imaginou que era assim que alguém devia se sentir após ser dopada. Isso disparou outro espasmo de medo.

Como cheguei neste lugar? Por que não me lembro de nada?

Ashley tentou controlar o terror que começou a se apossar dela. Lembrou-se de como lidou com a situação quando uma onda imensa a derrubou de sua prancha de surfe e a forçou para baixo, em direção ao fundo do oceano. Entrar em pânico não a ajudou. Ela não podia lutar contra a onda. Tinha que permanecer calma e esperar que passasse. Tinha que sentir o medo, mas deixá-lo passar por ela, de modo que pudesse agir quando a onda passasse.

Ela se forçou a fazer o mesmo aqui. Não podia ver nada, nem se lembrar de nada, mas isso não significa que não podia fazer nada. Ela decidiu tentar se sentar.

Empurrou os cotovelos até se sentar, ignorando as marteladas em sua cabeça. Depois que diminuíram um pouco, examinou a si mesma na escuridão. Ainda estava usando sua blusa e saia. Seu sutiã e calcinha não tinham sumido, mas ela estava sem sapatos. Estava sentada sobre um colchão fino, seus pés descalços sobre o piso de madeira arranhado. A não ser pela dor generalizada e enxaqueca, achou que não tinha mais machucados.

O ouvido direito dela estava estranho. Ela estendeu o braço e percebeu que seu brinco tinha sumido e que seu lóbulo estava latejando. O brinco esquerdo ainda estava lá.

Ela se esticou para ter uma ideia do entorno. O chão definitivamente era de madeira, mas havia algo estranho nele que ela não conseguia definir. Continuou a tatear o ambiente, até seus dedos tocarem uma parede na extremidade do colchão. Para sua surpresa, era metal. Ela bateu com o nó dos dedos na superfície. Apesar de ser espesso, o barulho ecoou pelo material.

Ela usou a parede para se apoiar enquanto ficava de pé e passou os dedos pela parede, dando passos pequenos, cautelosos. Após um momento, tornou-se claro que a parede era curva. Ela a seguiu, num círculo, até que seus pés bateram no colchão novamente. Estava em algum tipo de quarto cilíndrico. Era difícil estimar as dimensões, mas imaginou que era do tamanho de uma garagem para dois carros.

Ashley se sentou novamente no colchão e se surpreendeu com o som que isso causou. Bateu os pés no piso de madeira e percebeu o que parecia estranho sobre ele antes: parecia oco embaixo, como se ela estivesse num deck.

Ficou parada por um minuto, tentando se lembrar de algo, qualquer coisa, para apenas retornar à sua cabeça latejante. Ela podia sentir o medo começando a se apossar dela mais uma vez.

O que é este lugar? Como cheguei aqui? Por que não consigo me lembrar de nada?

"Olá!"

Um rápido eco voltou para ela, sugerindo uma estrutura fechada, com um teto alto. Ninguém respondeu.

"Tem alguém aí?"

Nenhum som retornou.

Seus pensamentos se voltaram para seus pais. Estariam procurando por ela? Ela tinha desaparecido por tempo suficiente para eles começarem a se preocupar? Seu pai sequer notaria que ela tinha sumido?

Seus olhos se encheram de lágrimas. Ela as enxugou com força com as costas das mãos. O senador Stafford Penn não gostava de bebês chorões.

"Mãe!" ela gritou, ouvindo o pânico crescer em sua voz. "Mãe, me ajude!"

A garganta dela parecia uma lixa, de tão áspera. Há quanto tempo não bebia nada? Há quanto tempo estava aqui?

Engatinhou ao redor do chão, tateando qualquer coisa que encontrasse, além do colchão. Para sua surpresa, sua mão tocou numa caixa plástica no centro do cômodo. Ela tirou a tampa e sentiu seu interior. Havia várias garrafas de plástico, vários recipientes, e... uma lanterna?

Sim!

Ashley a ligou e o quarto ganhou vida. Quase que imediatamente, ela percebeu que não era realmente um quarto. Ela estava em algum tipo de silo, suspensa perto do topo, onde o teto se afunilava até um ponto três metros acima de sua cabeça. Na caixa de plástico, havia garrafas de água, um pouco de sopa, manteiga de amendoim, carne seca, papel higiênico e um pão. Ao lado da lixeira havia um balde de plástico. Ela podia imaginar para que servia.

Moveu a luz da lanterna, na esperança de que houvesse uma porta. Nada. Mas o que chamou a atenção dela foram as mensagens pelas paredes.

Ela foi até a mais próxima, escrita com um marcador preto.

Eu sou Brenda Walker. Morri aqui em julho de 2016. Diga a minha mãe, a meu pai e a minha irmã, Hanna, que eu sempre vou amá-los.

Então, havia um número de telefone. O código de área era 818 — de San Fernando Valley.

Jesus!

Ashley continuou a mover a luz pelas paredes. Havia outras mensagens, escritas com letras diferentes. Algumas eram curtas e diretas, como a de Brenda. Outras eram longas e desconexas, aparentemente escritas ao longo de vários dias. Havia pelo menos uma dúzia de nomes diferentes, e suas mensagens literalmente cobriam a superfície do lugar.

Ashley começou a hiperventilar. Seus joelhos vacilaram e ela caiu no chão, agarrando as bordas da caixa para se apoiar. A lanterna caiu sobre o pão. Ela fechou bem os olhos e respirou devagar, inspirando e expirando, tentando apagar as mensagens na parede de sua mente.

Depois de um minuto, abriu os olhos novamente e olhou para a caixa. A lanterna havia rolado do pão e estava no fundo, perto de um pouco de manteiga de amendoim.

Isto vai me fazer muito bem, já que sou alérgica.

Ela pegou a lanterna e jogou o frasco de manteiga de amendoim de lado. Quando ele mudou de posição na caixa, ela viu algo que tinha passado despercebido antes. Então, inclinou-se, olhando mais de perto. Era um marcador preto grosso.

Foi nesse ponto que Ashley começou a gritar.


CAPÍTULO ONZE


Segunda-feira

Noite


Keri estava esperando na porta da frente, tentando manter a paciência. Ela estava lá, de pé, há mais de dois minutos.

Depois que a pista de Johnnie Cotton não tinha dado em nada, Hillman disse a eles para recomeçar do zero. Ainda tinham que confirmar tudo que Cotton havia dito. Patterson estava supervisionando a busca da van de Cotton, apenas para o caso de algo aparecer. Sterling foi até a Rick’s Autos, em Cerritos, encontrar-se com o chefe dele, para ver as imagens das câmeras de segurança e confirmar seu álibi.

Edgerton, o especialista em tecnologia, havia pego o celular que Cotton lhe deu com prazer para tentar rastrear o número do misterioso cliente que queria se encontrar para uma venda de drogas no estacionamento do shopping. Um policial também iria trazer para ele o laptop que Ashley tinha em casa, para que pudesse examiná-lo profundamente e descobrir qualquer coisa que pudesse estar escondendo.

Suarez estava digitando os relatórios de suas entrevistas com Thelma Gray e Miranda Sanchez. Cantwell estava realizando uma busca por vendas de vans pretas que batiam com a do sequestrador no Condado de LA ao longo do último mês, e conferindo se os donos tinham antecedentes criminais.

Ray havia voltado para a escola de Ashley para se encontrar com o diretor e para ver as imagens de câmeras de segurança das ruas ao redor nos últimos dias. Eles esperavam que o sequestrador estivesse cercando a escola e tivesse cometido algum desleixo, como ter saído da van, de modo que pudesse ser identificado.

Brody havia sido removido inteiramente da busca para investigar um tiroteio de um atirador em um carro em Westchester. O próprio Hillman estava revendo casos recentes de raptos de adolescentes no condado, procurando por semelhanças.

Keri convenceu Hillman a deixá-la conferir Walker Lee, o cara mais velho com quem Ashley parecia estar envolvida nas últimas semanas. Ela sabia que ele diria sim apenas para tirá-la da delegacia, e levá-la para longe do centro das investigações. Mas Keri não se importava. Não tinha muita esperança em nenhuma dessas outras áreas de busca e imaginou que podia tentar uma nova pista.

Walker Lee vivia em North Venice, logo após a Rose Avenue. A área estava repleta de galerias de arte, pequenos restaurantes veganos, spas orgânicos e centenas de lofts de artistas, que era apenas uma maneira chique de descrever apartamentos tipo studio, sem mobília, apenas com o básico. Mas por serem chamados de "loft" e por estarem localizados em Venice, os donos dos prédios podiam cobrar US$2,5 mil por mês por 46 metros quadrados. O mesmo lugar em Sherman Oaks sairia por menos de mil.

A casa de Lee era uma variação do tema. Ficava no que parecia ser uma antiga oficina mecânica, na qual cada estação de reparos havia sido isolada das demais e transformada num apartamento. Keri duvidava que a música alta que seus vizinhos ouviam de sua unidade era abafada pelos separadores baratos de placas de gesso.

Keri bateu novamente na porta da frente. Minutos antes, Walker Lee havia gritado que tinha acabado de sair do banho e precisava de um minuto para se vestir.

"Já teve tempo suficiente, Sr. Lee. Abra agora ou vou abrir esta porta para você".

Um segundo depois, a porta se abriu.

Walker Lee — o novo namorado de Ashley — estava de pé na sua frente. Ele parecia exatamente com o cara nas fotos. Como em várias delas, não estava usando camisa ou sapatos, apenas uma calça jeans com um botão aberto e um zíper fechado só até a metade, que exibia seu abdômen definido. Seus longos cabelos loiros estavam molhados e a água pingava de algumas mechas sobre o piso de concreto aos pés dele. Ele era tão bonito que Keri teve que se esforçar para não olhar.

"Entre. Você disse que tinha algumas perguntas sobre Ashley?" ele disse, enquanto passava uma toalha em seus cabelos.

Keri assentiu e o seguiu para dentro do loft, tentando não ficar olhando para as costas dele. Não admira que Ashley havia sido fisgada. Este cara era um gato, mesmo para os padrões de Hollywood. Ele a levou pela área principal, que funcionava como quarto, através da cozinha, que costumava ser o escritório de uma oficina, e para o que ela imaginou ter sido um dia a sala de descanso. Keri notou que a porta e as paredes eram acolchoadas. Seu sistema interno de alerta disparou por um momento, enquanto se perguntava por que ele a estava levando para um cômodo isolado acusticamente. Mas quando ela olhou para dentro, entendeu. Havia sido convertido num minúsculo estúdio de ensaios, equipado com torres de alto-falantes, baterias, microfones, equipamento de edição de áudio, amplificadores, guitarras, caixas de som, uma infinidade de fios e até um sofá onde se deitar. Quase não havia espaço para se mover. Lee se sentou no sofá e esperou Keri começar a falar. Ela se sentou numa cadeira dobrável de metal na frente dele.

"Como eu já disse, a razão pela qual estou aqui é Ashley Penn. Você sabe onde ela está?"

O homem passou os dedos pelo cabelo, com uma expressão confusa no rosto.

"Em casa?"

"Não".

"Ela não está aqui, se é a isso que você quer chegar".

"Você tem uma van preta?"

"Não".

"Conhece alguém que tem uma van preta? Alguém da banda, talvez?"

"Não. Eu não entendo. Quer me dizer o que está acontecendo?"

"Você não assiste ao noticiário?"

"Eu não tenho uma TV, e já que não estávamos tocando hoje, tenho ensaiado aqui a noite toda. Saí apenas para tomar um banho, faz 15 minutos".

"Você estava sozinho? Algum de seus companheiros de banda pode confirmar seu paradeiro?"

"Não. Eu gosto de trabalhar em material novo sozinho. Está perguntando seu eu tenho um álibi? Sério, o que está acontecendo?"

Keri explicou como Ashley havia desaparecido após a escola naquela tarde, enquanto estudava o rosto dele, tentando detectar se ele já sabia do que ela estava falando. Ele não deixou passar nada suspeito, apenas choque. Ela não sabia se era genuíno ou se as habilidades performáticas dele se estendiam a interrogatórios policiais.

Enquanto ela falava, ele pegou dois copos, colocou uísque em ambos e ofereceu um para Keri.

Ela negou com a cabeça, então ele colocou o copo sobre um alto-falante.

"Obrigada, mas não".

"Você não bebe?"

"Não quando estou trabalhando", ela mentiu. "Quem iria querer raptar Ashley?"

Walker esvaziou seu copo.

"Tem algumas coisas acontecendo", ele disse. "Mas, cara, não posso falar para a polícia a respeito".

"Por que não?"

“Porque poderia me prejudicar mais tarde”.

"Veja, não leve a mal, mas estou cagando e andando para isso", Keri disse. "A menos que você tenha algo a ver com o caso, não me interessa. Então, deixe de drama e apenas fale".

"Ah, cara..."

"Você quer ajudá-la, certo?"

"É claro que sim".

"Então, fale. Diga-me o que sabe".

Ele parecia estar contemplando suas opções, então olhou bem nos olhos de Keri e disse, "Beba primeiro sua bebida".

"Eu já disse..."

"É, eu sei, você está trabalhando", ele disse. "Você quer que eu fale e lhe conte coisas que podem terminar me prejudicando? Certo, então, vamos empatar o jogo. Você faz algo que pode lhe causar problemas. Você bebe, eu falo. O acordo é esse".

Keri olhou-o de alto a baixo. Então, ela pegou o copo e se inclinou na direção dele, com os ares de flerte de que ela ainda se lembrava, de uma vida passada.

"Deixe-me fazer uma pergunta primeiro", Keri disse, já sabendo da resposta, "qual a sua idade?"

"Tenho 23. É muito jovem para você, detetive?"

"De jeito nenhum", ela disse a ele, recostando-se novamente. "E Ashley tem 15, pelo que me lembro. Então, o que você tem feito com ela é, tecnicamente, estupro estatutário. Suponho que seja uma das coisas que você receia compartilhar”.

O homem assentiu. Keri colocou o copo de volta em seu lugar e o encarou.

"Vamos ser claros, Walker. Posso chamar você de Walker, não é?"

Ele balançou a cabeça, sem saber se ela ainda estava flertando ou não. Ela esclareceu isso para ele.

"Walker, além de estupro estatutário, imagino que seu celular tenha várias fotos de Ashley nua. Isso é possessão de pornografia infantil, que também constitui um crime sexual. Na verdade, cada foto conta separadamente. Em geral, eu chamaria meu parceiro muito grande e deixaria que ele batesse em você até que seus órgãos internos vazassem no vaso sanitário, mas não tenho tempo agora. A única coisa para que tenho tempo agora é encontrar Ashley. Então, fale. Diga-me alguma coisa, qualquer coisa, e pare de se preocupar com você por dez segundos. Se for honesto comigo, não terá nada com que se preocupar. Se não, eu serei o seu pior pesadelo, garanto".

Walker engoliu em seco. Era bom ver o sorriso desaparecer do rosto dele, ainda que brevemente. Depois de se recompor, ele falou tudo.

De acordo com ele, apesar da sua banda, Rave, estar indo razoavelmente bem aqui em LA, eles até tinham um single rodando na KROQ, ele não achava que poderiam se destacar na multidão. Havia competição demais aqui. Walker — o vocalista e compositor — estava pensando em largar a banda e ir para Vegas, tentar carreira solo. Ele era o rosto da banda, era ele quem escrevia as músicas, ele tocava a guitarra principal. Imaginou que seria um peixe grande numa lagoa menor se fosse para o deserto.
Depois que se estabelecesse, poderia voltar e encher as casas de show, ao invés de clubes. Ashley viria com ele.

"Então, vocês dois iam fugir?"

Walker deu de ombros. "Morar juntos é uma maneira melhor de descrever. Eu vou ser grande. Ela também. Você a viu, não é? Ela é linda. Ela tem procurado algumas agências de modelo por lá. Elas mostraram interesse".

As informações dele batiam com as buscas pela internet que Keri havia encontrado no laptop no quarto de Ashley.

"Havia apenas um pequeno problema", ele continuou. "Ela sempre teve dinheiro — nunca teve que pedir. Ela sabia que seus pais não lhe dariam nada se fosse embora. Então, começou a brincar sobre fingir seu próprio sequestro e pedir um resgate a eles".

Keri tentou esconder o choque que sentiu. Ashley poderia realmente estar por trás de seu próprio desaparecimento? Isso não batia com nada sobre o caso até agora.

"Você acha que foi o que aconteceu?"

Ele balançou a cabeça.

"Não, era só brincadeira. Se eu tivesse que apostar, colocaria essa merda toda nas costas de Artie North".

Keri nunca havia ouvido falar naquele nome.

"Quem é Artie North?"

"Ele é um segurança sinistro da escola de Ashley. Um dia, ele nos flagrou, eu e Ashley, lá fora, atrás das arquibancadas, sabe, sendo... muito afetuosos. Ele gravou com seu celular. Então, o doidinho tentou chantagear Ashley para ela fazer sexo com ele. Caso contrário, disse que colocaria o vídeo num monte de sites pornôs.

"Ela fez isso? Fez sexo com ele?"

"Não. Alguém deu uma surra nele, ao invés".

"Você?"

Ele deu de ombros.

"Não me lembro. O importante é que ela me disse que ele tem olhado com raiva para ela desde então".

Keri recapitulou as informações em sua cabeça, tentando fazer sentido de tudo que ele lhe havia dito. Rockeiros predatórios, seguranças sinistros, sequestros possivelmente falsos — ela havia acabado de passar de pista nenhuma para pistas demais. Keri se levantou.

"Não saia da cidade, Walker. Vou checar cada uma dessas suspeitas. E se descobrir que mentiu para mim, vou voltar com meu parceiro para uma visita mais... íntima e pessoal, entendeu?"

Ele assentiu. Ela pegou o copo da caixa de som, bebeu tudo de um só trago, e jogou nele o copo vazio enquanto saía pela porta.

"E, pelo amor de Deus, vista uma camisa".

Do lado de fora, ligou para Suarez e pediu a ele para trabalhar em todas as informações sobre Artie North e repassá-las imediatamente para ela. Então, ligou para Ray.

"Onde você está?" perguntou.

"Acabo de terminar aqui na escola. Estou indo para a delegacia".

"Encontro você lá e lhe pego. Nem entre".

"O que houve?"

"Temos um novo suspeito. E gostaria de sua companhia quando tiver uma conversinha com ele".

"Certo. Você parece animada".

"Consegui múltiplas pistas enquanto era paquerada por um loiro-burro, então, você sabe, minha confiança aumentou".

"Estou muito feliz por você", Ray disse, sarcasticamente.

"Sabia que ficaria. Vejo você em cinco minutos".

Keri desligou, colocou a sirene no teto do carro, e a ligou. Ela adorava dirigir com a sirene ligada.


CAPÍTULO DOZE


Segunda-feira

Noite


Keri e Ray estacionaram no terreno de armazenamento e manutenção da Divisão 22 do metrô de Lawndale. Acontece que Artie North não trabalhava apenas como segurança na escola de Ahsley, mas também tinha um segundo emprego como segurança no terreno, localizado logo após a Aviation Boulevard, perto da Rosecrans Avenue.

Keri não gostava da aparência do lugar. Mesmo durante o dia, era desconfortável. Mas, à noite, com iluminação limitada, o vasto terreno, cheio de vagões de metrô imóveis, imensos e pesados, era simplesmente assustador. Era o tipo de lugar em que ela imaginava que Evie era mantida presa, em seus piores pesadelos.

Suarez havia ligado enquanto dirigiam para o sul e dito a ela que Artie North tinha uma van, mas que era branca, não preta. Obviamente, isso não o inocentava, já que pintar o veículo teria sido fácil.

E por que tantas vans? Será que todo suspeito tem que ter uma?

Eles caminharam até a entrada. Havia um grande portão automático na frente, com um guarda à direita. Keri notou que não havia nenhuma van no estacionamento principal, mas ela não podia

ver o estacionamento dos funcionários no outro lado do portão, por causa do escritório. Não dava para ver ninguém pela janela, então, Keri apertou no interfone ao lado da porta. De forma involuntária, sua mão foi conferir sua arma. Ray a viu fazer isso e franziu levemente o cenho.

"Não vamos atirar em ninguém a menos que seja necessário, certo? Tudo que temos contra este cara é o que seu novo namorado cantor contou".

"E a van... não se esqueça da van, Megatron".

Antes que Ray pudesse responder, um cara atarracado, sonolento, veio dos fundos do escritório. Parecia que eles o tinham acordado. Keri não gostava de fazer julgamentos precipitados, mas, olhando para ele, não sabia como podia sustentar sequer um cinto, quanto mais a segurança de uma escola ou de um terreno ferroviário municipal.

Enquanto caminhava até eles, o corpo todo de Artie North balançava. A camisa de seu uniforme transbordava na frente do seu corpo, aparentemente, impulsionando-o a cada passo. Seu rosto era pálido e inchado, e seus olhos azuis pálidos eram úmidos sob as luzes fluorescentes. Ele parecia ter cerca de 1,75 m, mas passava muito dos 110 quilos.

Não era difícil imaginar que um cara com essa aparência passava a maior parte de seu tempo assistindo pornografia sob a luz embotada do monitor de um computador e teria que chantagear adolescentes comprometidas para conseguir alguma ação ao vivo.

Quando ele se aproximou da janela, Keri levantou seu distintivo.

"LAPD. Você é Artie North?"

"Sim".

"Queremos fazer algumas perguntas. Podemos entrar?"

Artie hesitou.

"Acho que eu deveria ligar para o gerente".

"Sr. North, eu não estava perguntando. Estava sendo educada. Você precisa abrir a porta".

Ele fez isso sem mais nenhuma palavra. Quando entraram, Ray começou o interrogatório.

"Você também é segurança na West Venice High?"

"A-ham".

"Conhece uma estudante chamada Ashley Penn?"

"Claro. Ela é do segundo ano. Por que, algo errado?"

"Ela está desaparecida", Keri disse. "Não ouviu falar?"

"Não, não sabia".

Isso parecia duvidoso. Estava em todos os noticiários. Assim que eles enviaram o alerta, toda a mídia entrou num frisson permanente.

Assim que entraram, Artie trancou a porta e voltou-se para eles.

"Por favor, sentem-se".

Keri olhou ao redor. Dentro, havia um centro de segurança de primeira classe, com rádios, telefones, todos os equipamentos que um guarda poderia querer, e um estojo de arma fechado. A parte de trás do prédio tinha dormitórios, uma pequena cozinha e um banheiro.

"O que aconteceu com Ashley?" Artie perguntou.

Keri respondeu à pergunta dele com outra pergunta.

"Sr. North, como é possível que não tenha ouvido nada sobre isso? Está em todos os jornais".

Artie sorriu pesaroso, enquanto estendia o braço para mostrar a sala.

"Todo este equipamento chique, mas eles não me permitem ter uma TV. E monitoram o uso da internet no computador, então, eu apenas deixo-o no site da empresa. Um cara foi demitido alguns meses atrás por acessar o site da ESPN enquanto estava trabalhando".

"É difícil para você, Sr. North, não poder surfar na web durante turnos tão longos?" Keri perguntou.

Ele olhou para ela, curioso.

"O quê?"

"Não importa. Vou direto ao ponto. Recebemos uma denúncia de que você tem um vídeo comprometedor de Ashley; que estava ameaçando publicá-lo se ela não fizesse sexo com você".

Artie parecia genuinamente chocado.

"De forma nenhuma", ele disse.

"Isso não é verdade?"

"Não. Quem disse uma coisa dessas?"

"É confidencial. Você fala com Ashley na escola?"

"Um pouco. Falo com todo mundo".

"O que fala com ela?"

"Oi, tenha um bom dia, vá para a aula, coisas normais".

Ray levantou e começou a caminhar pela sala, como se estivesse interessando no equipamento de segurança. Como os olhos de Artie o seguiam, Keri abafou um sorriso. Essa era uma manobra padrão de Raymond Sands para deixar uma pessoa de interesse menos confortável — andar sem rumo, demorar-se, ficar rondando. Ter um policial alto afro-americano se sentindo confortável em seu espaço pessoal tendia a deixar a maioria das pessoas desconcertadas. Às vezes, eles deixavam as coisas cair.

"Você tem dois empregos?" Keri perguntou, forçando a atenção de Artie de volta para ela.

"Sim. Trabalho na escola até as três e então venho para cá, para o pátio. Meu plantão vai até as dez, mas fico aqui a noite toda se precisarem".

"Então, você vai diretamente para escola de manhã?"

"Sim".

"Quais dias?"

"De segunda a quinta-feira. Nos finais de semana, vou para casa".

"E onde fica?"

"Tenho uma velha fazenda perto de Piru, a oeste de Santa Clarita. Não funciona mais como uma fazenda realmente, mas a propriedade é bem valiosa, então, eu tento mantê-la bem cuidada. Por quê?"

"Qual foi a última vez em que esteve lá?"

"Esta manhã, quando saí para ir à escola. Não vou voltar até a noite de sexta-feira, após o final do meu turno, às dez".

"Você tem uma van?"

"Sim".

"Posso vê-la?"

"Claro. Fica ao lado do prédio".

Eles foram dar uma olhada. Era branca e estava muito suja. Ray se aproximou e passou a ponta dos dedos num lado do veículo. Não tinha sido lavado em semanas e Keri duvidava que tivesse sido pintada desde que saiu da fábrica onde fora montada. Ela se voltou para Artie.

"O pátio do metrô tem algum veículo aqui?"

"Claro..."

"Alguma van?"

"Não, nenhuma van. Eles são caminhonetes, na maioria, e algumas SUVs velhas".

Keri mudou de assunto. Ela podia notar que ir de um lado para o outro estava deixando Artie desconfortável, o que era algo bom.

"Ashley está saindo com um cara com cabelo grande e loiro", ela disse. "Ele é o cantor de uma banda chamada Rave. Já viu Ashley com ele?"

O homem concordou.

"Ah, sim", ele disse.

"Onde?"

"Ele ficava por ali, bem atrás das arquibancadas, onde ficam algumas barracas com equipamentos", ele disse. "Às vezes, Ashley vai até lá se encontrar com ele".

"Para fazer sexo?"

"E, às vezes, mais que isso", ele acrescentou.

"O que quer dizer?"

"Bem, suspeitei que eles estavam negociando drogas ou coisa assim, então, comecei a ficar de olho neles. Há uns dois meses, eu me esgueirei até lá. Eles haviam realmente invadido uma das barracas. Quando olhei para dentro, eles estavam, você sabe, tendo relações".

"Você filmou?"

Artie parecia horrorizado.

"Não. Disse ao cara para não se aproximar mais dos terrenos da escola. Ele ficou com muita raiva, como se estivesse tentando me assustar ou coisa assim, mas eu não recuei. Disse a ele para ir embora, naquele momento, e nunca mais voltar. Ele parecia querer me dar um soco, mas não tentou. Bom para ele, porque eu estava pronto para isso. No final das contas, simplesmente foi embora. Ashley foi com ele. No dia seguinte, ela implorou para que eu não dissesse a ninguém o que eu tinha visto. Disse a ela que não diria, desde que o namorado ficasse fora do campus".

"Quando foi isso?"

"No início desta semana".

"Ele voltou?"

"Não que eu saiba".

"E o que fez você pensar que eles estavam vendendo drogas?" Ray perguntou, lembrando-o de por que havia entrado naquele assunto em primeiro lugar.

"Ah, sim. Depois que eles saíram da barraca, naquele dia, notei algumas ampolas no chão, quatro, mais ou menos. Parecia muito só para uso pessoal".

"Deu para ver o que era?"

"Era tudo pó branco. Podia ser cocaína, heroína, talvez, metanfetamina. Não sou especialista".

“Você entregou os dois?”

"Está brincando? O pai daquela menina é um senador dos Estados Unidos. E se ela dissesse que não era dela e eu sou encontrado com todas aquelas drogas? Em quem as pessoas iriam acreditar? Quem tem mais poder? Eu joguei as ampolas no lixo e segui em frente".


*


Cinco minutos depois, já no carro, Keri dirigia calada de volta para a delegacia, perdida em seus pensamentos. Ray finalmente quebrou o silêncio.

"Parece que as histórias de North e de seu namorado são um pouco contraditórias".

"Você acha?"

"Em quem você acredita?"

"Tenho que escolher um? Talvez, os dois estejam mentindo. Tudo o que sei é que meu cérebro está tostado. Toda pista que conseguimos termina nos levando de volta ao começo. E, se ela foi raptada, está ficando sem tempo".

"Você está começando a duvidar disso?"

"Ray, eu não sei mais no que acreditar".

De repente, seu telefone tocou. Ela colocou-o no viva-voz e uma voz feminina desconhecida disse, "Keri Locke?"

"Sim".

"Meu nome é Britton Boudiette. Sou amiga de Ashley Penn. Gostaria de encontrá-la imediatamente, se possível".

"Para falar sobre o quê?"

"Sobre algumas coisas que eu preferia não esclarecer por telefone. Por favor. Pode ser importante. Não traga ninguém mais. Só você".

Keri pegou os contatos dela e desligou. Então, ela se virou para Ray e comentou, num tom cínico que nem sabia que era capaz de ter: "Não traga ninguém com você? Na história da polícia, alguma coisa boa já resultou dessa frase?"


CAPÍTULO TREZE


Segunda-feira

Noite


Vinte minutos depois, após deixar Ray de volta na delegacia, Keri estacionou na ruela atrás da casa de Britton Boudiette, piscou com o farol alto três vezes, como ela lhe disse para fazer, e então desligou as luzes e o motor.

Quase que imediatamente, uma figura feminina saiu de um cômodo nos fundos da casa para um deck no segundo andar. Ela desceu pela estrutura até o térreo, veio apressadamente até o carro, e, calmamente, sentou-se no banco do passageiro.

Keri se sentiu ridícula. Ela estava tendo um encontro secreto em seu carro com uma menina de 15 anos, no meio da noite. Se os pais da adolescente descobrissem, a policial se perguntou se poderiam prestar algum tipo de queixa contra ela. Afastou esse pensamento e tentou levar Britton a sério.

A garota era afro-americana, bonita e atlética — e estava vestindo calça de pijama de flanela com imagens de quadrinhos e uma camiseta rosa. Ela foi direto ao assunto.

"Ashley iria me matar se soubesse que me encontrei com você. Você, absolutamente, positivamente, tem que manter isso em off. Não pode dizer a ninguém o que vou lhe contar".

"Não direi, a menos que seja absolutamente necessário", Keri a tranquilizou, no fundo, não prometendo nada. De toda forma, Britton parecia satisfeita.

"Certo", ela disse. "Eu, sinceramente, não sei se alguma coisa do que vou dizer vai ajudar. Ashley vinha se comportando de forma meio louca ultimamente".

"Como assim?"

"Ela está com esse novo namorado, Walker Lee, que é o vocalista da Rave, que você provavelmente nunca ouviu falar, mas que é uma banda muito legal, e que acaba de lançar seu primeiro single, "Honey". É bem irado. De toda forma, Walker tem sido uma influência terrível para Ashley".

"De que forma?"

"Bem, começou com ele conseguindo uma identidade falsa para Ashley, para que ela pudesse entrar nos clubes e assistir aos shows da banda. Então, havia drogas e bebidas, não muita, nada maluco, mas, você sabe, Ashley só tem 15 anos".

"Britton, você não está me dizendo nada que eu já não saiba", ainda que fosse novidade para ela que a habilitação falsa tinha vindo de Walker.

Britton pareceu hesitar por um momento, e então prosseguiu.

"Daí, eles começaram a cometer crimes só pela emoção".

"O que quer dizer?"

"Nada malicioso ou violento, apenas pela adrenalina, sabe? Há duas semanas, eles roubaram um carro e saíram por aí dirigindo como loucos. Eles têm feito muito sexo em lugares públicos, onde podem ser pegos. E, semana passada — você sabe onde fica a Nakatomi Plaza, na Avenida das Estrelas?"

"Sim".

Keri conhecia bem o lugar.

Na verdade, chamava-se Fox Plaza, mas frequentemente se referiam a ela como Nakatomi Plaza, porque era chamada assim no filme Duro de Matar, pelo menos, antes de explodir. O arranha-céus de 35 andares se localiza no coração da Century City, um enclave a oeste conhecido por suas firmas de advocacia e agências de talentos.

"Eles se esconderam no prédio até a hora de fechar", a garota disse. "Então, passaram a noite na cobertura, bebendo vinho e fumando maconha. Na manhã seguinte, eles saíram sem ninguém notar. Os pais de Ashley pensaram que ela estava dormindo na minha casa naquela noite. Eu menti por ela, mas, aqui entre nós, não gostei de fazer isso".

Tudo aquilo era interessante, mas se iria levar Keri a algum lugar, ela ainda não podia saber.

"Mas aqui vai a pior parte", a garota disse. "Recentemente, Walker comprou uma arma".

"Para quê?"

"Ele está com alguns problemas. Acho que alguém está atrás dele e, talvez, dele e de Ashley, não tenho certeza. Ela disse que tinha alguma coisa a ver com Walker perdendo algumas drogas que ele devia a alguém. Essa era a principal coisa que queria lhe dizer. Ela pode estar envolvida em algo. Eu não sei. Mas sei que estavam planejando fugir para Vegas".

"Para se tornarem estrelas do mundo da música e da moda, certo?"

"Acho que não. Acho quer era mais para escapar do que seja lá que está acontecendo aqui". A garota deu um suspiro. "Os pais de Ashley não sabem de nada disso e você tem que prometer que não vai contar a eles. Estou contando a você apenas porque alguma coisa pode estar por trás do desaparecimento dela".

Keri deu batidinhas no braço da menina.

"Você está fazendo a coisa certa".

"Alguma coisa ajuda?"

"Ainda não sei. Talvez..."

"Há mais uma coisa que você precisa saber", a garota disse. "Isso é algo que você absolutamente precisa prometer não divulgar, porque Ashley me contou como um segredo total".

"Eu entendo", Keri disse, novamente, sem prometer nada.

A garota estudou Keri por um momento e então falou, "A mãe de Ashley, Mia, vem de uma família muito rica. Seus pais, ou seja, os avós de Ashley, confiavam todos os seus negócios jurídicos a uma firma de advocacia aqui de LA, a 'Peterson & Love'. Você conhece?"

Keri assentiu. Era um dos maiores escritórios de advocacia da cidade, muito político, com vários ramos em outros Estados. Existia há muito tempo.

"Sim".

"Certo, bem, eles usaram a influência deles para conseguir para a sua filha, Mia, um emprego na firma, quando ela tinha 14 anos, durante as férias de verão, entre a nona e a décima série. Ela tirava cópias, dava recados, guardava livros nas prateleiras, coisas assim".

"Certo".

"Bem, Stafford era sócio da firma naquela época", a garota disse. "Ele tinha 30 anos, naquele verão. Enfim, ele pegou Mia em seu escritório uma noite, depois que todo mundo saiu, e a deflorou".

"Deflorou?"

"Sim, isso significa que ela era virgem na época", Britton disse, solene.

"Ah, certo". Keri tentou manter uma expressão séria.

"Não me entenda mal, foi consensual, mas ele era um homem adulto, nada menos que um advogado, e Mia era apenas uma criança. Ela engravidou. Ele queria que ela abortasse, mas ela se recusou e terminou tendo uma filha, Ashley. Depois disso, Mia e Ashley se mudaram para Paris por sete anos e depois voltaram para cá. Mia tinha 22 quando voltaram, e Ashley tinha sete anos".

"Isso é... não sei... insano", Keri disse.

"Acredite em mim, eu sei", a garota disse. "Mia e Stafford resolveram as coisas entre eles depois desse longo intervalo e, eventualmente, casaram. Ele formalmente 'adotou' Ashley. Tecnicamente, nunca negou que era o pai biológico dela, mas, ao adotá-la, a maioria das pessoas apenas supôs que ele era seu padrasto. Enfim, foi Mia quem teve a ideia de Stafford entrar na política, ela financiou as campanhas dele. Foi assim que ele se tornou senador. Ninguém fora do seu círculo mais íntimo sabe que ele é, na verdade, o pai biológico. Se o público descobrisse como a família foi criada, sua carreira política estaria arruinada. Mia contou tudo isso a Ashley, que então me contou quando estava um pouco bêbada, uma noite".

"Não consigo ver como isso se encaixa em algo", Keri disse.

"Também não. Só pensei que você devia saber que Stafford não é tão certinho como ele gostaria que as pessoas pensassem. Pessoalmente, não gosto dele".


*


Depois se certificar de que Britton voltou em segurança para seu quarto, Keri retornou à delegacia. No trajeto de volta, ela percebeu algo. Mia pode ter pedido para Keri dirigir o caso porque elas tinham um vínculo. Mas quando Stafford a apoiou, não foi porque pensou que ela era a melhor pessoa para o trabalho. Mas sim porque ele achou que ela era a pior.

Se alguém ia terminar bisbilhotando suas vidas e possivelmente encontrar alguns de seus segredos, ele não se importaria se esse alguém fosse uma detetive novata, emocionalmente frágil, alguém que já havia sido repreendida várias vezes em sua curta carreira. Se as coisas desandassem, ela seria o bode expiatório perfeito. Keri percebeu que havia caído na armadilha.

E ela tinha um problema ainda maior. Não tinha ideia do que mais ele escondia.


CAPÍTULO CATORZE


Segunda-feira

Tarde da noite


Enquanto ela encostava o carro para entrar no estacionamento da delegacia, Keri viu que os repórteres já haviam tomado conta do lugar. Pareciam um enxame de abelhas ao redor do seu carro, até que dois policiais fardados os afastaram o suficiente para que ela pudesse entrar no estacionamento. Felizmente, havia um portão separando as vagas dos funcionários do estacionamento geral, de modo que eles não podiam chegar muito perto.

Enquanto ela caminhava do seu carro para a entrada lateral, os flashes das câmeras e as perguntas aos gritos se misturavam. Ainda que ela quisesse responder às perguntas deles, não conseguia distinguir uma da outra. Era tudo apenas barulho.

Ao olhar para o relógio digital ao entrar na delegacia, Keri viu que já passava muito das onze. Se Ashley realmente havia sido raptada naquela van depois da escola, agora ela poderia estar bem longe, como em São Francisco, Phoenix, Tijuana, ou até em Las Vegas.

Ela caminhou até sua mesa, notando que quase ninguém levantou os olhos para olhar para ela. Alguns pareciam estar realmente focados em seu trabalho. Mas outros pareciam evitar o contato visual de propósito.

Ray estava absorto no exame de arquivos antigos, na mesa compartilhada deles. Ela desabou na sua cadeira e suspirou profundamente. De repente, sentiu-se profundamente cansada.

"Aquela adolescente dedo-duro compartilhou alguma coisa que fizesse a terra tremer?" ele perguntou, sem levantar os olhos.

"Ela me ofereceu algumas fofocas apetitosas. Mas nada que mude as coisas, até onde posso ver. O que você está fazendo?"

"Examinando casos antigos", ele disse. "Tentando encontrar um modus operandi semelhante, vans pretas, o que for".

"O caso de Evie está aí?"

"Sim, mas eu pulei. O padrão parece não bater", ele disse, então, finalmente olhou para ela. "Você discorda?"

"Não. Este cara foi muito mais cuidadoso e deliberado que o raptor de Evie. A não ser pela van, quase nada mais bate entre os casos".

Ray concordou.

"Como você está indo, Moranguinho?" ele perguntou. Ela podia notar que ele estava preocupado. Ela tentou mostrar uma expressão corajosa, mas não podia sequer pensar em revidar com um apelido que o insultasse.

"Eu estou bem... apenas cansada e frustrada".

"Não tem trabalhado fora do expediente?"

"Não nas últimas horas", ela o assegurou. "Sinto que estamos apenas batendo contra a parede. Eu sei que, em algum lugar, toda essa porcaria em que temos navegado será uma pista real que nos levará a Ashley. Mas é difícil ver isso agora".

"Bem, plante um sorriso no rosto, porque seu destemido líder está vindo para cá".

Keri levantou os olhos, e viu o tenente Hillman caminhando até eles.

"Alguma novidade, Sands?" ele perguntou, bruscamente.

"Não senhor; estou apenas examinando casos antigos, para buscar conexões".

"E você, Locke?" ele perguntou, evitando mencionar o fato dela ter sido removida e restabelecida no caso em questão de horas.

"Acabei de me encontrar com uma amiga de Ashley que disse que Stafford Penn teve um caso com Mia quando ele tinha 30 anos e ela tinha 14. Ela disse que ele é o pai biológico de Ashley. Pode afetar a próxima campanha dele, mas não tenho certeza de como isso nos ajuda. Ou Artie North ou Walker Lee estão mentindo sobre suas interações, mas, novamente, não tenho certeza de que encontrar a verdade sobre essa questão nos leva para mais perto de Ashley".

"Descobrimos que os dois têm o rabo preso", Hillman disse a ela, "mas, até agora, nada foi conclusivo. Estamos trabalhando para conseguir mandatos para as gravações de chamadas telefônicas de todo mundo que interrogamos esta noite, para ver se existe algo estranho, mas isso ainda vai levar algumas horas. Na verdade, não tenho certeza se ainda há algo que vocês possam fazer no momento. Minha recomendação é: vão para casa, os dois, e tentem fechar os olhos por algumas horas. Vou precisar de ambos um pouco renovados para examinar esses registros de ligações telefônicas amanhã de manhã".

"Acho que vou simplesmente cair meio morta na sala de descanso", Keri disse.

"Isso não foi um pedido, detetive Locke. O ex-namorado de Ashley, Denton Rivers, está sendo liberado enquanto eu e você conversamos e ele tem se queixado para seu advogado sobre a brutalidade da polícia. Eles passarão por aqui nos próximos cinco minutos e eu não quero uma cena quando ele começar a gritar ou apontar para você".

"Mas, senhor..."

"Nada de ‘mas’. Tenho certeza de que eles vão falar com a imprensa na saída. Não preciso daquele garoto todo irritado quando fizer isso. Se ele vir você, ficará com mais raiva ainda. Então, vá para casa. Eu mesmo vou embora em dez minutos".

"E, aliás, o que vai acontecer com o garoto?" Ray perguntou.

"Pelo que entendi, o traficante do rapaz, Johnnie Cotton, confessou ter batido nele. Tentar dar uma queixa alegando que ele foi espancado no mesmo lugar na cabeça, na mesma tarde, tanto pelo seu traficante quanto por uma policial, tudo isso enquanto era investigado por raptar sua namorada? Você acha que ele teria muita chance de ganhar esse processo?"

"Não, senhor", Ray disse, sorrindo.

"Também acho que não. Mas quanto menos combustível adicionarmos no fogo deles, melhor. É por essa razão que quero os dois fora daqui agora".

"Sim, senhor", Ray disse, ficando de pé.

"Sim, senhor", Keri repetiu, fazendo o mesmo. Eles caminharam rapidamente para a saída.

"Estejam ambos aqui às seis da manhã", Hillman gritou, atrás deles. "Já estaremos com os registros das ligações prontos".

"Quer uma carona?" Ray perguntou a ela. "Eu ouvi você dizer que estava cansada. Deixe seu carro aqui. Eu podia até mesmo desabar na sua casa... no sofá. Poderíamos vir juntos amanhã".

"Obrigada pela oferta, mas estou bem. Preciso passar no banheiro, de toda forma. Vejo você amanhã, às seis".

Ray olhou como se quisesse dizer algo mais, mas interrompeu-se e apenas concordou com a cabeça.

"Vejo você às seis", ele confirmou e afastou-se em direção ao estacionamento.


*


Keri esperou num compartimento do banheiro por 15 minutos para se assegurar que tanto Ray quanto Hillman haviam ido embora.

Quando voltou para a sala principal da delegacia, notou que estava quase vazia. Suarez ainda estava na mesa dele, digitando relatórios. Edgerton, o detetive que adorava tecnologia, estava fazendo algum tipo de triangulação de torre de celulares que Keri não compreendia muito bem. Um detetive de Vice estava registrando uma queixa de um mané que disse que havia sido roubado pela prostituta com quem estava. Um sem-teto estava sentado, algemado a um banco, no canto. Ele havia defecado no capô do carro de um cara que ele afirmava ter jogado café nele. O dono do carro, que parecia mesmo um otário, na opinião de Keri, fervilhava enquanto esperava por um policial para prestar queixa. Keri esperava que isso levasse um bom tempo.

Ela voltou para sua mesa o mais discretamente possível, e se sentou. Não iria para casa. E ela sabia que não conseguiria dormir na sala de descanso, apesar do cansaço. Uma garota precisava desesperadamente da sua ajuda, e não podia decepcioná-la. Em algum lugar, havia uma conexão que solucionaria este caso. Keri apenas esperava encontrá-la.

Ela pegou um dos casos sobre a mesa de Ray e começou a folheá-lo. Não havia similaridades óbvias. Ela pegou outro e não obteve nada de mais. Keri afundou em sua cadeira e fechou os olhos por alguns segundos. Então, ela pegou um novo arquivo — nada.

Ela se levantou e foi até a janela, a mesma em que havia observado mãe e filha passarem mais cedo, naquela tarde. Do lado de fora, a noite estava tranquila. Era quase meia-noite. Todas as pessoas normais estavam em casa, dormindo, naquele momento. Ela pensou em ir para a casa-barco, mesmo que fosse apenas para assistir TV por algumas horas, na esperança de limpar a mente.

Só mais um caso.

Ela voltou para a mesa e pegou mais um caso, aleatoriamente. Uma menina negra de dez anos, chamada London Jaquet, desaparecida quando caminhava da escola para casa. Nunca mais se ouviu falar dela. Isso foi há seis anos. Tecnicamente, o caso estava "aberto", mas algumas páginas estavam grudadas, porque não haviam sido lidas há muito tempo.

Similaridades com o de Ashey: do sexo feminino, após a escola, jovem.

Similaridades com o de Evie: do sexo feminino, nunca mais se ouviu falar dela, idade da escola elementar.

Keri pôs o caso de lado e pegou outro. Era de um homem hispânico de 44 anos, que desapareceu há dois anos. Suas tatuagens indicavam filiações a gangues. O arquivo era fino. Ninguém havia trabalhado muito nele. Keri o colocou de lado e pegou mais outro.

Uma menina coreana de seis anos, chamada Vanda Kang, desaparecida do banco de trás de um carro quando sua mãe entrou numa loja de bebidas na Centinela Avenue, para comprar um pacote de cigarros. Sete anos depois, aos 13 anos, a menina foi encontrada viva e saudável, vivendo com um casal branco rico em Seattle, que afirmava ter adotado a criança.

Na verdade, um homem chamado Thomas Anderson, conhecido como O Fantasma, foi identificado como o raptor, há um ano e meio. Ele foi julgado, e fez ele mesmo sua defesa no tribunal. O arquivo dizia que, se as evidências não fossem tão esmagadoras, ele poderia ter se livrado da condenação. Anderson foi muito convincente no tribunal. Atualmente, ele estava terminando o primeiro ano de uma sentença de dez. Sua sentença deveria ser cumprida na Penitenciária Estadual Folsom, mas, por causa de super lotação, ele permanecia na cadeia do condado, na Unidade Correcional Twin Towers, no centro de LA. Keri havia estado lá algumas vezes. Ela não gostava do lugar.

Ela se sentou em sua cadeira, girando de um lado para o outro, enquanto uma ideia não saía de sua mente.

O Fantasma é um raptor profissional de crianças. Isto é um negócio. E um negócio como este requer clientes, colegas de trabalho e um intermediário. Foi preciso toda uma rede de conexões.

Talvez essa ideia não estivesse completamente errada. Era um trabalho profissional, e o vídeo daquela câmera do escritório de fiador certamente fez com que parecesse um, então, por que ela estava falando com namorados e traficantes?

Vou pegar um profissional, preciso falar com um profissional.

Keri se levantou, pegou sua bolsa e se dirigiu até a porta. Suarez levantou rapidamente os olhos, que pareciam os de um zumbi, e acenou com a cabeça. O cara sem-teto jogou um beijo para ela. Ela piscou para ele e saiu. Já era meia-noite. Isso significava que era um novo dia. E um novo dia significava um novo começo. E que melhor maneira de recomeçar do que com um fantasma.


CAPÍTULO QUINZE


Terça-feira

Madrugada


Quando Keri entrou na sala de concreto sem janelas na Twin Towers, ela olhou para o homem que havia sido arrancado de sua cela e arrastado até ali no meio da noite. Ele estava sentado, então, ela não podia avaliar sua altura, mas parecia estar no início dos cinquenta anos. Ainda assim, Keri estava mais do que feliz ao ver seus pulsos algemados à mesa de metal. Mesmo usando as roupas folgadas da prisão, o Fantasma projetava uma força calma, contida.

Toda parte visível do seu lado direito estava coberta de tatuagens, das pontas dos dedos, subindo pelo seu pescoço, até o lóbulo da orelha. O lado esquerdo não tinha nenhuma. Seu cabelo preto volumoso estava bem dividido e penteado. Seus olhos escuros brilhavam de curiosidade. Ele esperava pacientemente por ela, sem dizer uma palavra.

Keri deslizou para o banco fixo no outro lado da mesa e se esforçou para esconder seu desconforto. Ela ponderava sobre como prosseguir, e decidiu começar com mais mel do que vinagre.

"Bom dia", ela disse. "Lamento tirá-lo de sua cama tão tarde da noite, mas espero que possa me ajudar. Sou a detetive Keri Locke, do Departamento de Pessoas Desaparecidas da LAPD".

"O que posso fazer por você, detetive?" ele ronronou, como se estivesse acordado, esperando por ela esse tempo todo.

"Você raptou aquela menina coreana para um casal de Seattle", ela disse. "Foi contratado para isso".

"Foi por esse motivo que fui preso", ele disse, friamente.

Keri se inclinou para a frente.

"O que quero saber é, como aquelas pessoas lhe encontraram?"

"Pergunte a elas".

Keri pressionou, dizendo, "Quero dizer, lá estão eles, aparentemente, pessoas respeitáveis, mas, de alguma forma, puderam encontrar você. Como essa conexão é feita?"

"Por que pergunta?"

Keri se perguntou o quão sincera podia ser com esse cara. Ela tinha a impressão de que, se entrasse no tradicional jogo de gato e rato, ele apenas se calaria. E não havia tempo para isso.

"Estou trabalhando num caso. Uma garota de 15 anos foi raptada ontem após a escola. Cada segundo conta. Talvez, o homem que fez isso tenha sido contratado, assim como você. Como ele teria sido contratado? Como eles o encontraram?"

O Fantasma pensou por um momento.

"Você acha que eu poderia conseguir uma xícara de chá verde? Acho muito calmante".

"Leite ou açúcar?" Keri perguntou.

"Nada", ele respondeu, se encostando na cadeira o quanto suas algemas permitiam.

Keri acenou com a cabeça para o guarda, que balbuciou algo ininteligível no seu walkie-talkie.

"Você está me pedindo para trair uma relação de confiança, Detetive Locke. Isso é muita coisa num lugar como este. Se eu sair, posso estar em risco".

"Minha impressão é que você sabe como se cuidar".

"Seja como for, preciso de algumas garantias de que minha ajuda será retribuída".

"Sr. Anderson, se suas informações forem úteis neste caso, vou escrever uma longa e favorável carta sobre você para o conselho de liberdade condicional, explicando o quanto cooperou comigo hoje. Pelo que sei, agora, você não tem direito nem a uma audiência pelos próximos quatro anos. Está correto?"

"Você tem feito uma boa pesquisa", ele notou, seus olhos brilhando de prazer.

"Por que penso que não sou a única?" ela disse. O chá chegou num triste copinho de isopor branco. Enquanto ele bebia, Keri não pôde evitar fazer a pergunta que a estava incomodando.

"O senhor parece um homem esperto, Sr. Anderson. Como foi pego com tantas evidências que lhe levaram a se condenado, apesar de seus poderes de persuasão?"

O Fantasma bebeu o chá luxuriosamente antes de responder. Algo sobre a maneira como ele se comportava fez Keri se perguntar qual a história de vida desse cara. Ela estava tão focada na tarefa à mão, que não lhe ocorreu olhar mais além de sua ficha. Mas ele não tinha a postura de nenhum criminoso que já havia conhecido. Mentalmente, ela se determinou a examinar o histórico dele quando tivesse tempo.

"Isso é suspeito, não é? Como você pode ter certeza, detetive, que as coisas não ocorreram exatamente como eu havia previsto? Que eu não estou exatamente onde quero estar agora?"

"Parece um cara tentando encobrir um plano que deu errado".

"Parece, não é?" ele disse, sorrindo, expondo dentes perfeitamente brancos.

"Então, vamos aos negócios?" Keri solicitou.

"Uma última coisa antes de começarmos. Se eu ajudá-la e você não cumprir o seu lado do acordo, é o tipo de coisa que um homem como eu lembraria por um longo tempo. É o tipo de coisa que pode me manter acordado à noite".

"Espero que não esteja me ameaçando, Sr. Anderson", ela disse, com mais confiança do que sentia.

"É claro que não. Estou apenas dizendo que ficaria muito triste".

"Vou anotar isso. Você tem minha palavra", Keri disse, e falava sério. "Mas estou trabalhando contra o relógio aqui, então, este é momento de você ser útil".

"Muito bem. Como as conexões são feitas? Às vezes, é tão simples como a Craigslist ou edições online de semanários locais. Mas, na maior parte do tempo, é através da dark web. Você conhece, eu presumo?"

Keri assentiu. A dark web era um mercado negro onde compradores e fornecedores de vários empreendimentos criminosos podiam se encontrar. Anderson continuou.

"Se as pessoas souberem o que estão fazendo, essas transações são quase impossíveis de rastrear. Cada comando é criptografado com tecnologia de ponta. Uma pessoa pode dizer, sem rodeios, 'Quero fazer meu tio desaparecer, Glendale, em duas semanas'. Sem uma chave de criptografia, ninguém poderá identificar você, incluindo as pessoas que responderem ao seu post. Esse anonimato funciona dos dois lados. Uma vez que o interesse foi estabelecido, comunicação adicional geralmente acontece no mundo real através de e-mails anônimos ou celulares ‘descartáveis’ através de um código pré-estabelecido".

Keri não estava impressionada.

"Eu já conheço boa parte desse processo", ela disse. "O que preciso de você são coisas específicas — nomes de colegas que podem fazer um trabalho como o que estou investigando. Preciso de uma pista".

"Eu não posso oferecer a você nomes de batismo, detetive Locke. Não funciona assim. Todo mundo tem um apelido, como o meu".

"O Fantasma?"

"Sim. Pode parecer tolice, mas nós nos referimos uns aos outros por eles também. Nossos nomes próprios aparecem se formos pegos".

"Então, como um cliente em potencial se conecta a um de vocês?"

"Muito disso é executado através de advogados de defesa", ele disse. "Eles terminam defendendo pessoas que são pegas. Seus clientes lhes dizem quem está no jogo; essas comunicações são protegidas sob o privilégio advogado-cliente. Os advogados falam para outros advogados ostensivamente, para ajuda em seus casos, então, o privilégio continua presente, e os nomes se espalham. Enquanto você e eu conversamos, há advogados por toda a Califórnia que poderiam lhe dizer os nomes de uma dúzia de pessoas que matariam por dinheiro. E, é claro, como informação confidencial".

Fazia sentido de um ponto de vista logístico, mas parecia bizarro demais para ser verdade.

"Isso não funciona se eles estão estabelecendo conexões", Keri disse. "Então, eles também são criminosos e o privilégio desaparece".

O homem deu de ombros.

"Como você saberia disso?"

"O seu advogado arranja contratos?"

O homem sorriu.

"Responder a essa pergunta não está de acordo com meus próprios interesses. Tudo o que posso dizer é que meu advogado é bem conectado, como qualquer advogado de respeito deve ser".

Este cara é uma figura.

"Dê-me alguns apelidos, Sr. Anderson".

"Posso não".

As palavras eram claras, mas havia uma hesitação na forma como foram pronunciadas. Ele estava claramente pensando naquela carta para a condicional.

"Certo, esqueça os nomes. Você conhece um cara que trabalhou nesta área há cerca de cinco anos? Dirigia uma van preta, loiro, com uma tatuagem no lado direito do pescoço?"

"Essa descrição física bate com a metade dos caras daqui. Eu mesmo tenho bastante arte corporal", ele disse, inclinando a cabeça, de modo que ela pudesse ver melhor a tatuagem no pescoço dele.

"E quanto à van?"

"Isso delimita bem as coisas. Não há como ter certeza, mas o cara que você descreveu pode ser alguém que eles chamam de o Colecionador. Eu não sei seu nome verdadeiro, e, sinceramente, não quero saber. Nunca o conheci pessoalmente. Aliás, nunca nem vi esse cara”.

"O que você sabe sobre ele?"

"Dizem que ele é um matador de aluguel. Mas esse não é seu negócio principal. Seu trabalho primário é raptar e vender pessoas, geralmente, crianças".

Para vender.

As palavras dispararam um calafrio pela espinha de Keri. Evie foi roubada e vendida para quem fez a maior oferta? De alguma maneira estranha, era quase reconfortante. Pelo menos então, havia uma chance de que alguém realmente a queria para fazer parte de sua família, como aquela menina coreana em Seattle. Mas se ela havia sido apenas levada aleatoriamente e posta à venda, não era possível saber quem a compraria, ou por qual razão.

Keri se forçou a focar, tirando-se à força de seu transe. Há quanto tempo ela estava nele? Dois segundos? Vinte? Ela olhou rapidamente para Anderson, que sorria, paciente. Ele teria notado algo? O guarda estava alheio a tudo, lendo mensagens em seu celular.

Ela tentou recuperar o foco.

"Como se entra em contato com ele, esse Colecionador?"

"Não se entra".

"Como as pessoas ficam sabendo de suas futuras vendas?"

"Alguém como você não fica sabendo".

"Onde ele opera? Em que cidade?"

"Eu não saberia dizer. Sei que ele tem sido contratado para trabalhos por toda a Califórnia, Arizona e Nevada. Estou certo de que em mais Estados também".

"Qual o nome do seu advogado... que lhe defendeu no tribunal?"

"Está no meu arquivo judicial".

"Sei que está no seu arquivo. Poupe-me um pouco de tempo. Vai ajudá-lo em sua carta para a condicional".

Anderson hesitou por um momento. Ele parecia um jogador de xadrez pensando dez jogadas à frente.

"Jackson Cave", disse, por fim.

Keri tinha ouvido falar.

Jackson Cave era um dos advogados de defesa mais proeminentes da cidade. Seu escritório-boutique ficava no centro, perto da cobertura do US Bank Tower, perto do centro de convenções. Era uma boa localização, mas também ficava convenientemente localizada a dez minutos de carro da unidade prisional em que eles estavam.

Keri se levantou.

"Obrigada por seu tempo, Sr. Anderson. Vou cuidar daquela carta assim que tiver um tempo livre".

"Agradeço por isso, detetive".

"Aproveite o resto de sua noite", ela disse, enquanto se dirigia até a porta.

"Farei meu melhor", ele replicou, então, antes dela sair, acrescentou: "Mais uma coisa".

"Sim?"

"Eu lhe diria para não contatar o Sr. Cave, mas eu sei que seria inútil. Você fará isso. Entretanto, eu gostaria de lhe pedir para não citar meu nome. Tenho uma boa memória para quem pisa na bola comigo. Mas a dele é ainda melhor".

"Boa noite", ela disse, sem concordar com nada. Enquanto caminhava pelo corredor, ainda que estivessem separados por uma parede, Keri podia jurar que os olhos do Fantasma estavam sobre ela.


*


De volta ao carro, enquanto se dirigia até a delegacia, Keri tentou tirar da mente a imagem de Thomas Anderson e se fixar no que ele havia dito.

O Colecionador. Teria sido esse o homem que levou Evie? Ele teria levado Ashley também?

Ela inseriu o apelido no computador do seu veículo enquanto estava parada sob um poste. Mais de 30 casos apareceram, só na Califórnia. Ele havia sido mesmo responsável por tantos sequestros ou detetives preguiçosos apenas decidiram usá-lo como um bode expiatório quando não conseguiam nenhum avanço em seus casos? Ela notou que em nenhum lugar do sistema aparecia um nome próprio, uma foto ou prisão.

Ela tinha quase certeza de que havia alguém que poderia identificá-lo, mas duvidava que a pessoa seria muito cooperativa. Seu nome era Jackson Cave. Keri queria desesperadamente dirigir até a casa dele, bater em sua porta e começar a interrogá-lo. Mas ela sabia que não podia, e que não faria bem nenhum.

Quando ela chegasse até Jackson Cave, guardião dos segredos de raptores de crianças, ela queria estar por cima. Mas, no momento, estava exausta e desorientada. Não apenas aquilo não seria bom para confrontar Cave, como também não iria ajudar Ashley Penn.

Ela colocou o ar condicionado no último volume na esperança de clarear a sua mente. Mesmo sendo quase uma da manhã, um medidor mostrava que a temperatura estava em 31°C do lado de fora. Quando esse calor ia dar uma trégua?

E, se ela estava suando pela blusa, Keri podia apenas imaginar pelo que Ashley estava passando. Ela ainda estaria na traseira de alguma van sufocante? Amarrada em algum lugar, dentro de um armário? Sendo abusada em alguma sala dos fundos abafada?

Seja lá onde ela estivesse, era responsabilidade de Keri encontrá-la. Haviam se passado quase dez horas desde seu desaparecimento. A experiência a havia ensinado que cada segundo perdido era um segundo mais perto da morte. Ela tinha que encontrar uma nova pista — ou talvez uma antiga. Quem havia mentido para ela desde o início deste caso? Quem está mentindo mais?

Então, algo lhe ocorreu. Havia alguém. Ela não iria direto para a delegacia. Keri faria uma parada muito importante primeiro.


CAPÍTULO DEZESSEIS


Terça-feira

Madrugada


O suor descia pelo rosto de Ashley enquanto ela escaneava as paredes, num pânico controlado. Devia estar uns dois graus mais quente neste tubo de metal do que do lado de fora.

Ela olhou para cima. A mais ou menos um metro e meio acima de sua cabeça, no topo do silo, havia um grande alçapão de metal, medindo 1 x 1,5 m, bem fechado. As dobradiças estavam do lado de fora. Ela percebeu que deve ter sido colocada aqui através daquele alçapão. Isso significava que deve haver algum tipo de escada fixa subindo pelo lado do silo para chegar à abertura. Se pudesse chegar até ela, poderia haver alguma forma de descer até o chão.

Ela pulou e roçou o metal com as pontas dos dedos — quase.

Então, subiu na caixa de plástico, esticando-se... mas a caixa colapsou de repente sob seu peso.

Ashley ficou de pé novamente, frustrada. Ela precisava de uma vara longa. Talvez, ele se abriria se ela pressionasse um pouco.

Mas, talvez estivesse trancado com um cadeado do lado de fora.

Uma vara longa...

Ela olhou ao redor. As tábuas de madeira do assoalho poderiam servir, se ela pudesse soltar uma.

Como?

Elas estavam presas com parafusos.

Nada em sua caixa de mercadorias podia ser usado como uma chave de fenda.

Então, ela notou que as latas de sopa tinham abas para puxar. Ela puxou a tampa, retirou a sopa e moveu a aba para a frente e para trás, até que se soltou da tampa.

Ela descobriu que todos os parafusos estavam afundados na madeira cerca de meio centímetro, mais ou menos, não muito, mas o suficiente para a aba não poder se fixar à superfície do parafuso.

Ela teve uma ideia. Após tomar a sopa (por que desperdiçá-la?), raspou toda a madeira ao redor do parafuso com a borda da lata. Foi difícil, mas conseguiu expor a cabeça do parafuso o bastante para fixar a aba no vinco. Segurando a aba o mais apertado que podia e pressionando para baixo com força, ela conseguiu fazer o parafuso se mover.

Levou um bom tempo, pelo menos uns 15 minutos, para retirá-lo todo. Havia dez parafusos naquela tábua.

O projeto levaria duas horas e meia se os músculos de sua mão aguentassem, mais, se ela fizesse pausas. Na verdade, se ela deixasse os últimos dois parafusos no final da tábua, talvez pudesse levantá-la a partir do lado oposto e forçá-los a sair. Isso diminuiria o tempo para duas horas. A bateria da lanterna duraria por esse período.

Ela não escreveria nenhuma mensagem nas paredes com o marcador.

Vou dar o fora daqui!


*


Ignorando o ar imóvel e sufocante do silo pelo que pareceu uma eternidade, Ashley lentamente removeu um parafuso após o outro. Ela podia se imaginar forçando a abertura no teto, e então pulando e agarrando a porta, elevando-se para cima e através do alçapão, descendo pela escada e correndo noite adentro, para onde não pudesse ser encontrada.

O momento da verdade havia finalmente chegado.

Ela colocou a tábua na vertical, arrancou-a dos parafusos restantes, levantou-a até encostá-la na borda do alçapão, e empurrou.

Nada aconteceu.

Ela empurrou com toda a sua força; nada. Bateu a tábua novamente contra o alçapão com toda a força que podia reunir. Não mexeu um centímetro. Estava completamente trancada pelo lado de fora.

Ashley desabou no chão, exausta e derrotada. Ela curvou o corpo e fechou os olhos, pronta para enfrentar o destino que estava reservado para ela. Mas então, uma lembrança surgiu em sua mente, de outro momento em que ela se sentiu derrotada.

Enquanto surfava no Havaí, há dois anos, uma onda muito maior do que qualquer uma que ela já havia visto no sul da Califórnia a derrubou. Com pelo menos seis metros de altura, jogou-a num leito de coral quase cinco metros abaixo, no fundo do oceano. Sua roupa de neoprene ficou presa num pedaço afiado de coral. Ela não podia escapar.

Ashley lutou, mas sabia que estava ficando sem fôlego. Então, uma segunda onda veio, empurrando-a ainda mais para dentro do coral. Ela sentiu o coral cortando sua carne. Mas, desta vez, quando a onda passou, percebeu que ela havia, de algum modo, libertado-a do coral em que estivera presa.

Com sua última gota de força, ela tomou impulso para a superfície, seus olhos focados apenas no pontinho de luz do sol que se aproximava cada vez mais. Sua primeira respiração ao emergir na superfície permanecia sendo o momento mais poderoso de sua vida. Era melhor do que qualquer droga que havia tomado, qualquer cara com quem havia dormido. Era o verdadeiro norte dela.

E se ela pôde encontrar isso uma vez, sabia que poderia encontrar novamente.

Ela se sentou.

Tateou um pouco e encontrou a lanterna, focando a luz pela abertura onde a tábua estava. Debaixo da plataforma de madeira, havia algum tipo de funil enferrujado gigante. As paredes se afunilavam até uma abertura com cerca de sessenta centímetros de diâmetro.

O corpo dela podia passar por ela? Seria quase. Talvez ela pudesse deslizar pela passagem. Ela também poderia entalar e ficar presa. Era difícil de dizer.

Parecia haver algo entalado na abertura, cerca de um metro e meio dentro dela. O que era? Teias de aranha? Grãos podres envelhecidos? Não era um bloqueio sólido e, certamente, não fazia parte da estrutura em si. Parecia frágil, como se o peso do corpo dela pudesse esmagá-lo. Ainda assim, ela não podia ter certeza e não podia ver além dele.

Ashley deixou cair a lata vazia de sopa.

A lata ricocheteou contra a parede da abertura ao bater no bloqueio, então, passou por ele e caiu no chão. Levou um tempo até chegar no fundo. A queda era grande.

O suor pingava pelo rosto de Ashley.

Se ela puxasse mais uma tábua, haveria espaço suficiente para seu corpo passar no funil. Era possível, talvez, que ela passasse pela abertura sem ficar presa, caísse no chão sem quebrar suas costas e se matar, e então encontrasse uma porta ou abertura de algum tipo pela qual ela pudesse escapar.

Era igualmente possível que ela ficasse entalada, inextricavelmente presa e incapaz de se mover. Seu próprio peso poderia espremer seu corpo e comprimir seu peito. Ela poderia sufocar ou coisa pior: estar sempre na iminência de sufocar, sem nunca realmente chegar lá.

Ela não poderia se matar. Teria uma morte horrível, imóvel.

Ashley gritou a plenos pulmões e bateu numa parede do silo com a tábua. A frustração era grande demais.

"Ajuda! Alguém me ajude! Eu não fiz nada!"

Ela enfiou a tábua para baixo, no cilindro, e conseguiu alcançar o bloqueio. Ao cutucá-lo, ela percebeu, com horror, o que era.

Ossos.

Ossos cobertos com anos de poeira e teias de aranha, e ar estagnado. Alguém já havia testado sua ideia de descer e havia ficado preso.

Ashley correu para longe daquela visão até que a parede a deteve. Ela não queria morrer daquela forma. Era horrível demais.

Seus olhos se encheram de lágrimas. Não havia saída — nem para cima, nem para baixo. Estava presa. O medo se apossou dela novamente.

"Mamãe!" ela gritou. "Me ajude!"


CAPÍTULO DEZESSETE


Terça-feira

1h da manhã


Os olhos de Keri pesavam enquanto ela dirigia do centro da cidade de volta para Venice. Às 1h da manhã numa terça-feira, o trânsito geramente brutal de Los Angeles era uma brisa, mas ela ainda não estava com o humor de apreciá-lo. Percebeu que estava se aproximando da linha divisória no meio da avenida, na Lincoln Boulevard, e puxou a direção novamente. Ela ligou o rádio, sintonizou numa música eletrônica horrorosa e baixou todas as janelas do carro, deixando o ar quente da noite bater em seu rosto e cabelos.

Alguém estava mentindo para ela. As histórias do rockeiro convencido Walker Lee e do segurança Artie North eram completamente contraditórias. Mas, sem evidências para continuar, ela dependia do seu instinto.

Era por isso que estava estacionando seu carro perto do apartamento de Lee. Ela pensou em ligar para Ray, mas decidiu que dormir um pouco faria bem ao parceiro. Além disso, se as coisas dessem errado, seria melhor que isso fosse um projeto solo.

Ela bateu na porta e Lee respondeu em segundos. Ficou óbvio que ele não estava dormindo. Keri podia ver uma mala aberta sobre o sofá atrás dele. Estava cheia até a borda.

Ela olhou para a mala e para ele. Então, disse, "Eu falei com o guarda, Artie North. Ele negou ter qualquer gravação de Ashley ou usar algo do tipo para tentar obrigá-la a fazer sexo".

Walker revirou os olhos.

"Aquele merdinha está mentindo".

"Mesmo que esteja, quanto mais eu fico remoendo isso, mais me parece que você queria usá-lo como isca. Há algo acontecendo que você não me falou. Eu lhe disse antes, seja sincero comigo e não terá com que se preocupar. Mas, minta para mim..." Ela deixou a frase no ar.

Walker Lee ficou parado na porta, claramente indeciso sobre como proceder. Keri tentou ajudá-lo. Ela apontou com a cabeça para a mala.

"Vai sair da cidade?"

"Sim".

"Quando?"

"A qualquer minuto, na verdade".

Ela tentou conter a língua, mas não pôde. "Isso é meio patético, não acha? Com Ashley precisando de qualquer pessoa que possa ajudá-la no momento?"

Seu olhar se tornou petrificado.

"Sabe de uma coisa? Já basta. Sinto muito se algo aconteceu com Ashley, mas estou cansado de ficar aqui".

Keri estava surpresa com a determinação na voz dele. Ele havia agido de maneira tão tranquila até agora que ela havia acreditado. Mas, definitivamente, estava escondendo alguma coisa. Ela só não tinha certeza se tinha a ver com o desaparecimento de Ashley.

"Importa-se de eu entrar?" ela perguntou, enquanto passava por ele e já estava bem dentro do apartamento.

Apesar de sua pressão sanguínea estar aumentando, ela caminhou rápida, mas calmamente, para o estúdio dele. Ele tentou acompanhar, dizendo futilmente, "Na verdade, eu me importo".

Keri foi até o suporte tipo pedestal no meio do cômodo, lentamente, removeu o microfone, e olhou para o objeto introspectivamente, como se nunca tivesse visto um antes. Então, de repente, ela balançou o microfone pelo fio, num círculo bem acima da sua cabeça, permitindo que a frustração do dia lhe desse forças. Walker Lee observou-a por um momento, mudo de espanto. Então, ele recuperou a coragem e abriu a boca.

"Ei, não..." ele começou. Mas antes que pudesse terminar a frase, Keri mudou a trajetória do microfone e o balançou na direção dele. Bateu como um jato na testa dele, acima do olho esquerdo.

Ele caiu no chão, atordoado. Após um momento, tocou no ferimento e então viu que sua mão estava coberta de sangue, que descia profusamente pela bochecha sobre seu peito nu.

Levou um segundo para que Walker registrasse o que estava acontecendo. Enquanto Keri esperava que ele processasse, caminhou até o balcão e pegou um trapo. Então, jogou-o na direção dele.

"O que fez com meu rosto?" ele choramingou pateticamente.

Keri sabia que provavelmente havia ido longe demais, mas ela estava comprometida, naquele ponto. Sentia-se completamente desperta agora.

"Estou cansada de suas brincadeiras. Isso acaba aqui. Entendido?"

O homem colocou o pano no ferimento para estancar o sangue e disse, "Vou processar você".

"A única coisa que você vai fazer é me dizer o que eu preciso saber agora, Walker. Se não, o outro lado da sua cabeça vai levar uma porrada parecida, para combinar. Ou talvez eu ataque a mão com que você toca a guitarra, em seguida. Você me trouxe até este estúdio à prova de som e deu em cima de mim. Eu me defendi com todas as minhas forças. É nessa história que todo mundo vai acreditar a menos que você comece a falar agora mesmo".

Se ele vinha escondendo algo todo esse tempo, Keri podia dizer que ele estava prestes a ceder, finalmente.

"Veja, a única coisa a mais em que posso pensar é: tem esse cara que fica por ali, perto da Boardwalk, de quem eu e Ashley compramos drogas de vez em quando; nada sério, apenas maconha e ecstasy. Ele atende pelo nome de Auggie".

Keri nunca havia ouvido falar dele. Ou era um amador ou usava um nome falso.

"Certo, continue".

"Bem, da última vez que compramos dele...quando foi? Na noite de quarta-feira, sim, foi isso...ele ficou olhando para Ashley de uma forma muito estranha o tempo todo, como um lobo olhando para um coelhinho, ou algo assim. Eu não disse nada, mas não gostei. Ele nos deu a droga, eu dei a ele o dinheiro, mas, então, ele queria mais. Disse que o preço tinha aumentado. Falou para eu voltar com o resto do dinheiro nos próximos dias. Então, ele fez um comentário misterioso, que eu entendi como sendo uma ameaça vaga contra Ashley se eu não voltasse para pagar mais a ele. Eu nunca voltei. Que se dane, não era justo. Ele aumentou o preço sem me dizer. Não entro nesse tipo de jogo. Também ouvi dizer que os capangas dele usam uma van para roubar TVs, computadores e coisas assim. Mas não sei qual a cor".

Keri tentou imaginar. Se Walker estivesse dizendo a verdade, então, Ashley conhecia Auggie e não hesitaria em se aproximar de uma van em que ele estava.

"Você deveria ter me contado isso antes".

"O que eu deveria ter feito antes era nunca ter envolvido Ashley nessa estupidez, para começar", ele admitiu. "Eu deveria tê-la mantido segura. Não sei como tudo isso ficou tão fodido".

Keri olhou mais de perto para ele. O lado esquerdo de seu rosto estava coberto de cabelo loiro grudado de sangue. Mas ela sentiu algo mais próximo da sinceridade. Talvez ainda houvesse esperança para ele. Mas isso não era sua preocupação no momento.

"Sabe onde Auggie mora?"

"Não. Mas ele frequenta um clube de mergulho chamado Blue Mist Lounge, na Windward e Pacific, bem do lado da Prefeitura. É onde todo mundo se encontra com ele".

Ficava a menos de um quilômetro da casa de Ashley. Keri pegou cinco notas de vinte da bolsa, jogou no chão, e disse, "Para pagar os pontos desse corte. Há uma clínica de urgência a dez quarteirões daqui, a leste". Ela parou e acrescentou, "E não tropece em mais nenhum balcão".

Ele assentiu, compreendendo. E então, surpreendeu-a.

"Tenha cuidado com Auggie, detetive. Ele é realmente um cara mau".

"Obrigada", ela disse enquanto saía, sem dizer em voz alta o que se passava em sua mente.

Neste momento, quem está se sentindo realmente má sou eu mesma.


CAPÍTULO DEZOITO


Terça-feira

Madrugada


Keri ligou para Ray no caminho. Ela não queria, mas o Blue Mist Lounge era o tipo de lugar que precisava de cobertura.

"Dormindo?" ela perguntou.

"Estava", ele rebateu, não muito satisfeito.

Uma pausa.

"Você não estava", ele percebeu. "E precisa de mim".

"Bingo", ela disse.

Ele suspirou alto.

"E se você precisa de mim, deve ser algo grave".

"Certo novamente", ela disse.

"Eu te odeio, Locke".

"Eu te amo, Grandão".

Ele suspirou alto novamente. Houve um barulho de algo rangendo, e ela soube que ele estava se levantando da cama.

"Você tem sorte de eu estar sozinho desta vez", ele disse. "Qual o endereço?"

Quinze minutos depois, Keri encostou o carro na frente do Blue Mist e esperou, sabendo que Ray chegaria a qualquer minuto. Enquanto ela esperava, deu uma olhada na ficha de Auggie. Ele era um vigarista e traficante de menor importância, mas tinha temperamento explosivo. Havia passado 16 dos seus 34 anos encarcerado, principalmente por brigas. Não havia registro de raptos, mas uma vez ele manteve uma namorada presa no armário de um quarto por 12 horas porque pensou que ela havia roubado um pouco de metanfetamina dele.

Ray apareceu e ela saiu do carro, ficando de pé ao seu lado.

Ele olhou para o clube.

"O Blue Mist, hã?” perguntou. "Sabia que podia esperar um convite seu para um encontro elegante".

Eles se aproximaram da porta em silêncio, Ray se tornando mais tenso, naturalmente, ela sabia, preparando-se para enfrentar problemas.

Esperando por eles, na porta da frente do clube, estava um guarda tipo pit bull. Mas ambos mostraram seus distintivos e, depois de dar uma olhada em Ray, deu um passo para o lado.

Eles passaram pelo guarda e subiram as escadas para entrar no clube. Música hip-hop no maior volume pulsava das caixas de som. Keri notou que ela era a única pessoa branca no lugar e achou-se um pouco culpada pelo alívio que sentiu por ter Ray ao seu lado.

Eles se moveram rapidamente para a sala VIP dos fundos, que tinha seu próprio segurança. Ray acenou com a cabeça para ele e mostrou seu distintivo, e ele deu um passo para o lado, enquanto entravam.

A porta se fechou atrás deles, bloqueando a música do salão principal. Lá dentro, uma mulher num pequeno palco no canto estava cantando Billie Holiday. Estava muito mais movimentado do que Keri esperava, na madrugada de um dia de semana.

Eles olharam ao redor. Ray apontou com a cabeça para um canto escuro do cômodo e balbuciou, "Sr. Rastafári".

Auggie estava sentando numa grande cabine, longe da multidão. Duas mulheres estavam sentadas a seu lado, cada uma de um lado. Keri reconheceu-as como prostitutas. Elas se aconchegavam no homem, competindo pela atenção dele. Uma garrafa de uísque estava no meio da mesa, meio vazia, com copos ao redor. As mulheres riam alto com tudo que Auggie dizia e nenhuma notou a aproximação de Ray e Keri, até chegarem na mesa.

Ray deslizou para o lado de uma das mulheres, que estava vestindo uma blusa vermelha decotada. Keri permaneceu de pé.

"E aí, pessoal?", ele disse, simpático.

No início, a mulher pareceu assustada, mas assim que deu uma boa olhada nele, sorriu. Keri ignorou o sentimento desconfortável de estar levemente com ciúmes de uma prostituta.

Auggie não falou nada, mas seu corpo todo ficou tenso, lembrando a Keri uma cascavel pronta para o bote.

De repente, a mulher no outro lado dele, que usava um tubinho bem justo, bateu a mão sobre a mesa e disse, "Você é o Sandman!"

A mulher ao lado de Ray não entendeu.

"O Sandman! O lutador de boxe!"

A Tubete passou para o lado de Ray e deslizou até sua coxa estar completamente pressionada contra a dele, colocando-o no meio de um sanduíche de prostitutas.

"Não posso acreditar que o Sandman está aqui!" ela quase gritou, alegre.

Keri estava observando Auggie atentamente. No espaço de cerca de dez segundos, a expressão dele passou de suspeita para inveja, e depois para medo. E então, ela viu algo passar pelo seu rosto que ela não podia identificar bem. Foi apenas quando ele pulou sobre a mesa e na direção da porta de saída que ela percebeu o que era: desespero.

Auggie era rápido, mas Keri havia antecipado algo dele e se moveu para detê-lo com o ombro quando os pés do suspeito aterrissaram no chão. Ele viu o que ela estava fazendo e se ajustou no ar, de modo que eles esbarrassem diretamente, seu corpo de quase 90 kg batendo nela com força. Keri pesava quase 30 kg a menos do que ele e sabia que, ainda que estivesse bem posicionada, absorveria a violência do impacto.

Ela estava certa.

O corpo dele bateu no dela com uma força que a derrubou, e fez sair rolando pelo chão. A parte de trás de sua cabeça bateu forte no piso de madeira, mas ela usou o momentum da queda para dar um salto reverso e ficar de pé novamente. Mas, ao se levantar, cores explodiram atrás de seus olhos e seu crânio gritou de dor.

Ela percebeu, meio segundo muito tarde, que estava diretamente no caminho de saída de Auggie, e que ele planejava passar por ela ao invés de ao redor dela. Ela caiu de joelhos para evitar se tornar um simples boneco, mas não ajudou muito. Ele esbarrou nela e, quando os dois caíram, o joelho dele aterrissou em sua barriga, deixando-a sem fôlego. Ela sentiu a bile subir pela garganta, enquanto arfava, em busca de ar. Auggie se levantou desajeitadamente e disparou para a porta.

Deitada de barriga para baixo no chão, Keri viu Ray se livrar desesperadamente das prostitutas e saltar da cabine. Ele correu até ela, mas Keri usou a pouca força que tinha para fazer um sinal com a mão, mandando-o ir atrás de Auggie. Ele assentiu e passou correndo pela porta, atrás de sua presa.

Keri ficou deitada por alguns segundos, arfando por ar. Quando rolou o corpo e começou a levantar, sentiu braços em seus ombros, ajudando-a a ficar de pé. Eram Decote e Tubete. Ela agradeceu com um movimento de cabeça, ainda sem conseguir falar, e saiu cambaleante pela porta atrás de Ray e de Auggie.

"Para que lado foram?" balbuciou para o segurança. Ele apontou para a entrada nos fundos. Ela correu até ela e abriu a porta, que levava a uma escadaria vacilante de metal no beco que passava pelos fundos o clube. Então, Keri ouviu vozes.

Ao longe, ela viu que Ray tinha acuado Auggie contra a cerca. O suspeito tentou pular a cerca, mas perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Ray vinha em seu encalço e estava a apenas três metros quando Auggie se virou com uma arma na mão. Ele atirou.

Ray seguiu em frente.

Auggie atirou novamente, bem quando Ray pulou sobre ele. Eles colapsaram atracados e Keri não conseguia mais distinguir o que estava acontecendo. Ela desceu os degraus às pressas, pulou os dois metros que separavam o último degrau do solo, e correu na direção dos homens. Estava a meio caminho quando percebeu o que estava acontecendo.

Auggie errou os dois tiros. Ray havia aterrissado sobre ele, e mantinha-o preso enquanto lhe dava uma surra monumental. O rosto de Auggie parecia uma polpa. Ele não estava se movendo.

"Ray, pare!" ela gritou. "Precisamos dele vivo!"

As palavras dela pareceram sacudi-lo, tirando-o de seu transe, e ele parou de socar. Ele rolou de cima de Auggie sobre suas costas e ficou ali deitado sobre o asfalto, ofegante.

Keri correu e fitou os olhos inchados e sanguinolentos de Auggie. Ele estava consciente. Sua respiração era superficial, mas ele estava respirando.

"Oi, Auggie", ela disse. "Demos apenas uma passadinha para falar com você sobre uma de suas clientes, uma garota chamada Ashley Penn".

O homem não disse nada.

"Mas, agora, você está preso por tentativa de assassinato de um policial. Nosso encontro poderia ter sido bem diferente".

O homem estremeceu de dor e deixou escapar uma palavra: "Coopero".

Keri rolou o corpo dele grosseiramente até ficar de barriga para baixo e puxou seus braços às costas, para algemá-lo.

"Ah, é melhor você cooperar mesmo, Auggie. Caso contrário, esse foi apenas o primeiro round com o Sandman".


CAPÍTULO DEZENOVE


Terça-feira

Madrugada


Por trás do vidro da sala de observação, Keri, Ray e Hillman assistiam enquanto Auggie caminhava de um lado para o outro na Sala de Interrogatório 1. Ninguém lhe disse uma palavra em 45 minutos, desde que Keri havia prometido a ele que sua saúde dependia de sua cooperação. Vários detetives, funcionários do FBI e CSIs estavam no the Blue Mist Lounge, processando a ruela onde um suspeito havia atirado num policial. Auggie estava ferrado. Ele teria que responder por uma dúzia de processos, sendo um deles nada menos que tentativa de assassinato. Ninguém queria deixá-lo escapar.

Hillman olhou para Keri. Ela sabia que ele estava chateado por ter que voltar à delegacia no meio da noite.

"Você tem cinco minutos, no máximo. Se o cara sequer mencionar a palavra 'advogado', quero que você pare imediatamente de falar e saia da sala. Quero este aí fora das ruas e isso significa que vamos jogar estritamente de acordo com as regras. Já estou me arriscando mantendo-o aqui agora ao invés de numa sala de emergência. Não quero algum advogado de defesa corrupto mexendo os pauzinhos para liberá-lo. Estamos entendidos?"

"Sim, senhor".

Keri levou um sengundo para arrumar sua blusa dentro da calça e garantir que o cabelo estava fora do rosto. Ela estava com uma dor de cabeça enorme e possivelmente tinha uma costela rachada. Mas não queria que Auggie pensasse que ele tinha lhe causado sequer um hematoma.

Ela entrou na sala de interrogatório e disse, "Lembra-se de mim?"

Auggie começou a dizer algo, mas Keri levantou a mão para que se calasse. "Não diga a palavra advogado. Se disser, terei que parar de falar e não poderei ajudar você".

Auggie assumiu um ar de zombaria.

"Vocês dois nunca se identificaram", ele disse. "Pensei que estavam lá para me roubar, ou coisa assim. Foi por isso que corri. No beco, quando atirei, foi legítima defesa. Tenho uma licença para a arma. Você pode checar. Não fiz nada de errado".

Keri revirou os olhos.

"Veja, você vai passar algum tempo na cadeia, é assim que as coisas são, simplesmente. Mas se esse tempo será de cinco ou de cinquenta anos, pode depender muito bem de quantos amigos você fizer por aqui nos próximos cinco minutos. Então, aqui está sua única chance. Conte-me sobre Ashley Penn".

Auggie não precisou que ela perguntasse duas vezes.

"Pessoalmente, eu nunca vendi nada para ela, ou para quem quer que seja, aliás".

Era mentira, mas Keri deixou passar. Ela sentiu que havia mais vindo.

"Mas...?"

"Mas ouvi boatos que ela frequentava a vizinhança de vez em quando, se é que você me entende. Eu também ouvi um boato de que ela tinha feito uma compra muito grande recentemente, porque ia viajar para outro Estado. Ela queria uma reserva até que pudesse encontrar um vendedor por lá".

"Para qual Estado?"

"Eu não sei".

"Com quem ela ia?"

"Eu não sei".

"Era um cara de cabelo grande?"

"Eu sei de quem você está falando. Aquele cantor de rock", Auggie disse. "Não, não era com ele. O boato é de que era com uma de suas amigas".

Isso é novo. Será que Ashley tinha um plano B e Walker descobriu? Ele não iria gostar disso.

"Pode descrever essa garota?" ela perguntou.

"Não, tudo o que sei são rumores. Havia um monte de boatos sobre essa garota".

Keri saiu da sala. Hillman havia lhe dado cinco minutos, e ela havia usado menos de dois.

Sua mente estava a mil.

Será que Walker havia descoberto sobre o plano e tentou interrompê-lo? Será que ele puxou Ashley para dentro da van, inicialmente apenas para convencê-la a não ir embora, mas então, talvez as coisas escalaram, após isso? Talvez, as coisas se tornaram violentas? Walker não tinha um álibi. Mas ele também não tinha uma van.

Ela ficou de pé do lado de fora da sala de interrogatório, revirando as opções em sua cabeça até que Hillman e Ray saíram da sala de observação para se juntar a ela.

"Aí está. Ela fugiu", Hillman disse.

Keri duvidava disso.

"Talvez planejasse isso, mas não acho que foi o que aconteceu".

"Por que não?"

"A garota que entrou naquela van não parecia estar partindo para algum tipo de aventura", ela disse.

Hillman balançou a cabeça.

"Talvez ela e essa garota misteriosa estivessem indo para o lugar onde estavam os mantimentos para a viagem. Walker Lee não disse que ela estava pensando em fingir seu próprio sequestro?"

"Ele disse. Mas acrescentou que era brincadeira. Não é impossível, mas sinto que há algo estranho. Tudo neste caso indica que houve um rapto".

Hillman suspirou fundo. Ela podia sentir que ele estava tentando não perder a paciência.

"São quase três da manhã. Estamos trabalhando nisso sem parar por mais de dez horas e não temos nada firme para indicar que ela foi levada, ao invés de ir embora por conta própria. Inelizmente para você, detetive Locke, não perseguimos casos com base em intuição. Então, esse seu pressentimento não é o bastante para continuar".

Ela precisava dele a seu lado, então Keri lutou contra o impulso de replicar de forma muito dura.

"É mais do que um pressentimento, senhor".

"Então, o que é?"

"Eu não sei", Keri disse. "Não posso pensar agora".

"Exatamente", Hillman disse. "Parecemos zumbis. Isso significa que vamos todos voltar para casa e descansar um pouco, que é o que você deveria ter feito, em primeiro lugar. Essa é uma ordem". Ele focou em Keri e repetiu as palavras. "Uma ordem".

"Certo", ela disse.

"Durmam", ele repetiu, antes de acrescentar, "mas quero todo mundo de volta aqui às sete da manhã".


*


Antes de voltar para casa, Keri fez uma rápida parada em sua mesa. Ela queria fazer uma busca tanto por Thomas "O Fantasma" Anderson quanto por seu advogado de defesa, Jackson Cave, no banco de dados, para ver se algo apareceria, num passe de mágica. Ela estava curiosa sobre Anderson, mas o tempo estava curto, então, decidiu focar em Cave, que era mais relevante no momento. Havia muita informação, mas nada que o incriminasse.

Ainda assim, não pôde deixar de suspeitar que Cave poderia ter alguma informação sobre o Colecionador. Ele até poderia saber seu nome real. Keri tinha que descobrir. Mas como?

Mesmo que ela invadisse seu escritório, ele não teria um arquivo na escrivaninha com a etiqueta "sequestradores de aluguel". Era o tipo de informação que ele mantinha muito bem guardada num canto de sua memória. E ela precisava encontrar uma maneira de acessá-la. Talvez, ela pudesse achar algum fato sórdido sobre ele, algo que poderia fazê-lo perder o direito de advogar se não cooperasse com ela. Chantagem era uma ferramenta útil.

Ela respirou fundo e perdeu o foco por um momento. Quase instantaneamente, pensamentos sobre Evie inundaram sua mente. Ela viu a expressão de terror no rosto da filha enquanto ela olhava de volta para sua mãe naquele dia, no parque, seu pequeno corpo preso nos braços de um estranho. Ela ouviu os gritos em sua mente.

"Mamãe! Mamãe!"

Keri sentiu seus olhos encherem de lágrimas e correu para o banheiro antes que alguém pudesse notar. Assim que estava num compartimento, ela cedeu, permitindo que os soluços silenciososo arruinassem seu corpo. Ela sentou-se no chão do banheiro por cinco minutos antes de se sentir confiante para levantar.

Quando saiu do banheiro, Ray estava esperando. Ele colocou seus braços ao redor dela.

"Pensei que tinha ido para casa", ela disse

"Bem, parece que eu não fui. Quer que fique com você?"

Ela refletiu por meio segundo.

"Não, eu estou bem".

"Tem certeza?"

"Não". Ela sorriu e disse, "Ray, será que eu um dia estarei bem?"

"Você já está bem", ele disse. "Vai apenas levar mais algum tempo para processar tudo.”

"Eu não quero processar tudo. Eu quero encontrar Evie".

"Você vai", ele disse. "Nós vamos. O que você precisa é permanecer forte até lá. Certo?"

Ela se apoiou no abraço dele.

"Você é uma boa pessoa, Gigante".

"Você também, Polegarzinha", ele disse. "Já lhe agradeci por me deter antes de eu matar Auggie?"

"Não".

"Obrigado", ele disse.

 

Cinco minutos depois, Keri estava no Prius. Exausta e tomada por energia pura ao mesmo tempo. Ela sabia que tinha que ir para casa desabar por algumas horas se queria raciocionar sobre este caso. Mas havia uma coisinha que precisava fazer primeiro.


CAPÍTULO VINTE


Terça-feira

Madrugada


Lutando contra o sono, Keri dirigiu até West Venice High. Ela ouviu rumores de que uma vigília estava acontecendo. Estacionou perto da entrada principal e caminhou até lá. Era difícil de não ver. Cerca de quarenta estudantes e professores estavam de pé debaixo da escada principal, acendendo velas, dando as mãos e falando sobre Ashley. Alguns conversavam em voz baixa entre si. Outros falavam dramaticamente para as câmeras de TV que tinham se instalado no local. Alguns policiais fardados permaneciam de pé ao lado do movimento, encostados contra no capô de sua viatura, assistindo a tudo.

Keri se moveu entre eles o mais discretamente possível. Essas pessoas podiam estar dispostas a falar, especialmente fora do ambiente intimidante de uma delegacia. Talvez ela pudesse descobrir algo de valor em conversas casuais, que interrogatórios formais podem deixar passar.

O professor de geometria do terceiro período de Ashley, Lex Hartley, um homem calvo atarracado de cinquenta e poucos anos, disse que Ashley era uma boa menina, uma garota normal, apesar de ter que admitir que suas notas caíram recentemente.

"Fale-me sobre Artie North".

Hartley pareceu surpreso.

"Por quê? Ele está envolvido?"

"Estou apenas checando alguns boatos. Você já ouviu alguns rumores de que ele estava estorquindo Ashley em troca de sexo?"

"De forma alguma. Conheço Artie há cinco anos. Ele é um cara bacana, um pouco solitário, talvez. Mas ele leva a proteção desses jovens a sério".

"Há um mês, mais ou menos, ele levou uma surra?"

"Sim. Ele também trabalha como segurança no pátio de manutenção da Metrolink. Dois sem-teto o atacaram quando ele estava tentando expulsá-los do terreno".

"Foi isso que ele lhe contou?"

"Sim".

"Ele parecia ter apanhado muito?"

"Não sei... tinha um olho roxo, um lábio estourado".

Na atual guerra de histórias conflitantes entre Artie North e Walker Lee, Keri se perguntou se verdade iria aparecer algum dia.

A detetive continuou a avançar pelo grupo, reunindo fragmentos de informação de estudantes mais próximos.

Uma garota chamada Clarice Brown disse que Ashley estava aprendendo a atirar. Ela disse que era para proteção, mas não estava claro se ela estava protegendo a si mesma ou a outra pessoa. Ela sussurrou que Ashley estava usando muitas drogas ultimamente. Para conseguir o dinheiro, estava penhorando as joias de sua mãe, que roubava do cofre.

Miranda Sanchez, a garota que originalmente viu Ashley entrar na van, também estava lá. Ela disse que muitas garotas na escola eram vadias invejosas, que odiavam Ashley. Elas começaram todo tipo de boato. Nunca se sabia o que era verdade sobre Ashley ou o que era completamente falso, mentiras espalhadas por haters. Pessoalmente, ela gostava de Ashley.

Um garoto mais novo, chamado Sean Ringer, contou que Ashley disse a ele há umas duas semanas que o senador estava com problemas. Ela não havia elaborado o assunto, mas parecia sincera quando disse isso, talvez até um pouco assustada.

Pelo canto do olho, Keri viu um movimento súbito em sua direção. Um repórter do canal KTLA a havia visto e estava caminhando apressadamente com uma equipe de filmagem a reboque. Ela virou as costas, colocou o boné de beisebol que mantinha no bolso de trás para esse tipo de situação, e rapidamente abriu caminho pelas pessoas, voltando para o carro. Keri ouviu o repórter gritar uma pergunta, cerca de 10 metros às suas costas.

"Detetive Locke, é verdade que o FBI assumiu a investigação de Ashley Penn?"

Ela continou a se mover, sem dizer nada, caminhando o mais rápido que podia sem começar a correr.


*


De volta ao carro, a caminho da casa-barco, Keri tentou processar tudo que havia sido jogado nela nos últimos minutos.

O FBI havia assumido a investigação? Ela queria ligar para Hillman, mas pensou melhor sobre isso, às 3h30 da manhã.

Ela tentou separar os rumores dos fatos. Ashley tinha comprado uma arma? Artie North foi espancado por alguém? Ahsley estava penhorando joias? O senador Penn estava com algum tipo de dificuldade?

Ao invés de obter pistas concretas, tudo o que ela tinha agora eram mais perguntas, e quase nenhuma com respostas simples. Percebeu, tarde demais, que havia apenas piorado as coisas indo para a escola. Se ela tivesse ido direto para casa, já estaria dormindo. Ao invés, dirigia pelas ruas de Venice no meio da noite, no momento, habitadas por traficantes, prostitutas e seus cafetões. Ela estava cansada demais para se importar com qualquer um deles. Além disso, sua cabeça e costela ainda latejavam após sua altercação com Auggie.

Quando se aproximou da Windward Circle, há apenas alguns blocos de onde Ashley havia desaparecido, os pensamentos de Keri se voltaram para Evie. Como ela podia ajudar alguma adolescente que nem conhecia quando não pôde ajudar sua própria filha?

Então, lhe ocorreu — Evie era uma adolescente agora. Quer dizer, se estivesse viva.

Cale-se! Nem pense nisso. Como ousa? Ela está contando com você para encontrá-la, para salvá-la. Se desistir, como ela poderá permanecer forte? Vou encontrá-la, Evie. Eu vou! Não desista, bebê. A mamãe não desistiu. Eu te amo tanto.

Ela afastou esses pensamentos. Isso não ajudava. Tinha que permanecer focada. Quando este caso estivesse encerrado, ela abordaria Jackson Cave, encontraria uma forma de obrigá-lo a falar sobre o Colecionador. Ela não era mais uma professora universitária. Tinha todos os recursos da LAPD à sua disposição e queria usá-los. Ela encontraria esse Colecionador, ou morreria tentando.

E foi aí quando ela a viu, lá mesmo, na esquina da Windward com a Main. Era Evie!

Ela havia visto suficientes simulações computadorizadas de progressão da idade para reconhecer as semelhanças. A garota loira na esquina com a mini-saia preta justa tinha exatamente a mesma estrutura óssea e cor de pele de sua filha. Sim, ela usava maquiagem pesada e era forçada a usar uma blusa justa que era ofensiva para uma garota da sua idade. Mas as características batiam.

Keri quase vomitou ao ver o homem branco, pálido e grande ao lado dela, com uma mão descansando firmemente na base das costas da menina. Ele já tinha passado bastante dos 40 anos e tinha facilmente 1,80 m e 110 quilos. E, claramente, era o cafetão.

Keri enterrou o pé no freio. O Prius cantou pneu e girou, parando perto do meio-fio em que eles estavam. Ela saltou do carro e circulou o veículo.

"Evie!" gritou.

O homem grande deu um passo à frente para bloquear seu caminho.

Ela tentou movê-lo para o lado para chegar à garota, mas ele agarrou o pulso direito dela com força.

"O que você acha que está fazendo, sua doida varrida?"

Keri nem olhou para ele. Seus olhos estavam focados apenas em Evie.

"Você deveria tirar as mãos de mim, Jabba", ela rosnou.

Ele apertou ainda mais o pulso dela.

"Mesmo mulheres de meia idade não tocam na mercadoria antes de negociar", ele disse.

Keri percebeu que, com ele segurando seu pulso direito, era impossível pegar sua arma. Ele tinha sorte. De outro modo, já teria levado um tiro.

Ela parou de puxar e ele involuntariamente relaxou a mão. Ela sabia que não poderia se soltar, mas conseguiu que ele baixasse a guarda. Aproximou-se e pisou com força no peito do pé dele com seu salto alto. Ele gemeu e se dobrou, mas não largou o pulso de Keri. Ela se virou e golpeou a cabeça dele, que estava abaixada, com o cotovelo esquerdo. Ele soltou-a e cambaleou para trás.

Ela teria pego sua arma, mas seu pulso estava fraco e dormente. Keri não tinha certeza que poderia segurá-la, quanto mais atirar. Ao invés, deu um passo na direção dele e chutou, esperando que pudesse aproveitar o estado cambaleante dele para derrubá-lo no chão. Ela fez um bom contato, mas o cafetão conseguiu agarrar seu tornozelo e a derrubou junto com ele.

Sem subestimá-la mais, ele imediatamente rolou sobre ela, esmagando-a com todo o seu peso. Ele pressionou seus joelhos nas costelas já doloridas de Keri, fazendo-a gritar de dor. Então, inclinou-se e passou os braços ao redor do pescoço da mulher. Seus olhos estavam brilhantes de fúria e saliva pingava da boca dele para o cabelo dela.

Keri sentiu que só lhe restavam alguns poucos segundos de consciência. Ela olhou para Evie, que estava imóvel e aterrorizada no meio-fio. Sua vista começou a embaçar.

Isso não acaba assim!

Keri se forçou a focar no homem sobre ela. Ele era forte, mas também confiante demais.

Use isso.

Com um movimento rápido e hábil, ela levantou as duas mãos ao mesmo tempo e espetou os dois olhos abertos dele com os polegares. Ele urrou e a largou imediatamente. Ela não perdeu tempo: esticou-se para trás e usou toda a sua força para socá-lo no pomo de Adão. Ele tossiu e quase vomitou. Quando abriu a boca para tomar ar, ela bateu no queixo dele para cima, com a base da palma de sua mão aberta. Ela o ouviu gritar e sabia que seus dentes haviam se trincado sobre a língua dele.

Keri empurrou o homem e girou seu corpo, antes de ficar de pé. Antes que ele pudesse se recompor, deu-lhe um chute nas costas e ele caiu no chão, de barriga para baixo. Ela caiu sobre ele, cravando um joelho no côncavo das suas costas. Puxando as algemas com uma mão, ela agarrou um dos pulsos dele, e então prendeu-o ao outro. Por fim, Keri se levantou novamente e colocou o pé na nuca do infeliz.

"Não se mova, idiota", ela disse a ele, "ou vai usar uma bolsa de colostomia pelo resto da vida".

O corpo dele ficou flácido e ela sabia que ele não iria tentar mais lutar. Ela se permitiu respirar fundo, profundamente, antes de pegar seu rádio e chamar reforço. Finalmente, virou-se para olhar para Evie, que ainda estava imóvel, petrificada, sob um poste de luz.

Foi só então, sob uma luz mais forte e ao ficar bem perto dela, que Keri percebeu que não era Evie de jeito nenhum. Na verdade, a não ser por ser jovem, loira e branca, na verdade, elas não se pareciam tanto assim.

Keri pôde sentir um soluço subir pela sua garganta e o forçou novamente para baixo. Ela baixou os olhos para seu rádio e fingiu mexer em alguns controles, para que a garota à sua frente não pudesse ver a devastação em seu rosto. Quando teve certeza de que podia falar sem uma voz embargada, ela levantou os olhos.

"Qual o seu nome, querida?"

"Sky".

"Não, seu nome verdadeiro".

"Eu não devo..."

"Diga-me seu nome verdadeiro".

A garota olhou para o homem no chão, temerosa de que ele pulasse na sua garganta e, então, disse, "Susan".

"Qual seu sobrenome, Susan?"

"Granger".

"Susan Granger?"

"Sim".

"Quantos anos você tem, Susan?"

"Catorze".

"Catorze? Você fugiu de casa?"

Os olhos da menina se encheram de lágrimas.

"Sim".

"Bem, eu e outras pessoas vamos ajudar você", Keri disse. "Gostaria disso?"

A garota hesitou e disse, "Sim".

"Você não precisa se preocupar mais com este cara", Keri disse. "Ele não vai mais machucar você. Ele tem lhe obrigado a fazer sexo com outros homens?"

A garota assentiu.

"Ele tem lhe feito usar drogas?"

"Ah-hã".

"Bem, isso tudo acabou", Keri disse. "Vamos levar você para um lugar seguro, imediatamente. Entendeu?"

"Sim".

"Bom. Acredite em mim, você está segura agora".

Duas viaturas pararam perto delas.

"Os policiais em um destes carros vão levá-la a um lugar seguro para passar a noite. Você se encontrará com um conselheiro pela manhã. Vou lhe dar meu cartão e quero que o use se tiver qualquer dúvida. Estou procurando por uma garota desaparecida mais ou menos de sua idade. Mas assim que encontrá-la, vou voltar para checar se você está bem, certo, Susan?"

A garota assentiu e pegou o cartão.

Enquanto os policiais a levavam, Keri se inclinou para perto do cafetão, ainda estatelado no chão, e sussurrou, "Estou usando todas as minhas forças para não atirar atrás da sua cabeça. Você entende o que estou dizendo?"

O homem virou o pescoço, olhou para ela e disse, "Vá se foder".

Apesar de seu cansaço, o corpo de Keri vibrava de raiva. Ela se afastou sem responder, com medo de fazer exatamente o que lhe havia prometido. Os policiais uniformizados se aproximaram. Enquanto um agarrou o criminoso para colocá-lo no carro, Keri falou com o outro.

"Preencha a ficha dele. Não permita que ele faça sua ligação por pelo menos algumas horas. Não quero ele pagando fiança antes de podermos colocar a garota num lugar seguro. Estarei lá para escrever meu relatório depois de dormir algumas horas".

Ela viu o outro policial abaixar a cabeça do cafetão para entrar no banco de trás da viatura e se aproximou.

"Deixe-me ajudar com isso", ela ofereceu, agarrando o homem pelo cabelo e batendo a cabeça dele contra o teto do veículo. "Ah, desculpe, eu escorreguei".

Keri voltou para seu carro. O som dos xingamentos dele ao longe pareciam uma música suave para ela.

Enquanto dirigia para casa, finalmente indo para a casa-barco, ela ligou para um número para o qual raramente ligava.

"Alô", respondeu, sonolenta, uma voz feminina.

"Aqui é Keri Locke. Preciso falar com você".

"Agora? São quatro da manhã".

"Sim".

Uma pausa e, então, "Certo".


CAPÍTULO VINTE E UM


Terça-feira

Pouco antes do amanhecer


"Estou colapsando". Ela imaginou o desapontamento que sabia estar no rosto de sua psiquiatra designada pelo departamento, Drª Beverly Blanc.

"Como assim?"

Keri explicou, colocando tudo para fora de uma só vez.

Ela estava vendo o rosto de Evie em todo lugar. Não parava de pensar nela. Talvez, porque a marca de cinco anos estava chegando, na semana que vem. Ela não sabia. Só sabia que estava acontecendo, mais frequentemente que em qualquer outro momento, desde os primeiros seis meses após o rapto. Ela não tinha tido nenhum branco em seis meses. Mas agora, havia tido vários episódios de "apagar" nas últimas 12 horas. Pior, ela se tornou violenta. Bateu na cabeça de um garoto do ensino médio. Lançou um microfone na cabeça de outro cara. E havia confrontado deliberadamente um traficante e um cafetão.

Ela tinha uma pista de que Evie talvez tenha sido levada por alguém cujo codinome era "O Colecionador". Um advogado local, Jackson Cave, pode saber o nome verdadeiro do homem e seu paradeiro, mas nunca diria a ninguém voluntariamente.

Além disso, ela estava trabalhando no caso Ashley Penn.

"Eu sei", Drª Blanc disse. "Vi você na TV".

Ela estava no caso, então, foi afastada, em seguida, voltou para ele; agora, ela não sabia qual seu status.

Drª Blanc disse: "Você está absorvendo mais do que pode processar. Está como um balão com muito ar sendo bombeado para dentro dele. Se não parar, você vai explodir. Precisa ou sair do caso Ashley Penn ou colocar Evie na espera. Pare de pensar nela até que este caso esteja resolvido".

Keri estremeceu.

"Não posso deixar o caso".

"Por que não?"

"Porque, se sair, e algo terminar acontecendo, não poderia viver sem me culpar".

A Drª Blanc deu um suspiro.

"Então, você tem que deixar Evie ir por ora. Precisa parar de se fixar nela. E você precisa fazer o mesmo com o Colecionador".

"Isso é impossível".

"Veja", Drª Blanc disse, "aqui está a realidade. Se Evie estiver morta..."

"Ela não está!"

"Certo, mas se ela estiver, deixar os pensamentos sobre ela de lado por um tempo não vai afetá-la, de uma maneira ou de outra. Se ela não estiver morta, então, provavelmente encontrou uma maneira de lidar com sua vida atual. O medo e desespero que você viu no rosto dela, no momento do rapto, não existe mais".

"Não podemos ter certeza disso", Keri disse.

"Sim, podemos", Drª Blanc disse. "Emoções como essas são insustentáveis. Se ela estiver viva, esteja onde estiver, o mais provável é que encontrou uma maneira de funcionar no dia a dia. Ela está em algum tipo de rotina. Ajustou-se a ela. Colocar o Colecionador e esse advogado de lado por uma semana ou duas não fará uma diferença significativa para Evie no grande esquema de sua vida.

"Na verdade, se você se apressar na caçada a esse tal Coleiconador, pode até mesmo cometer erros que você não faria mais tarde, quando estiver pensando direito. Você pode dar a dica a ele de que está vindo. Ele pode escapar. Então, limpe sua mente, pare de pensar no advogado também, e trabalhe no caso Ashley Penn se for isso que você tem que fazer. Depois, volte a ele quando estiver saudável e puder se centrar totalmente nisso. Faz sentido para você?

Keri suspirou. "Sim".

"Você também precisa descansar, Keri. O descanso é extremamante importante. Vá para casa e durma pelo menos oito horas. Considere isso ordens médicas.

"Posso tentar, talvez, três horas".

"Fechado".


*


Keri foi para casa.

Nesse dias, "casa" era uma casa-barco de vinte anos de idade, em processo de deterioração, ancorada na Marina Bay, em Marina del Rey. Havia uma parte chique da marina mais a oeste, com luxuosos prédios de apartamentos e iate clubes. Mas a Doca H, onde Keri vivia, era muito mais classe operária. A casa dela ficava entre barcos de pesca industriais e embarcações quase gastas demais para navegar, dos mais antigos. O dono anterior a havia batizado de Sea Cups, e pintado à mão um sutiã rosa num dos lados. Não fazia exatamente o estilo de Keri, mas ela nunca conseguiu arranjar tempo ou energia para raspar o desenho.

A boa notícia é que tinha eletricidade, água, uma pequena cozinha, e banheiro com sistema de bombeamento, e não a mantinha presa a nada. Ela podia abandonar seu "lar" sem pensar duas vezes e fugir para o Alasca, se sua vida exigisse isso, de repente. A má notícia é que não tinha chuveiro ou lavanderia. Essas tarefas precisavam ser feitas no final da estrada, na estação de apoio da Marina, ou no trabalho.

Também quase não tinha espaço. Tudo estava no caminho de alguma outra coisa. Se você quisesse um objeto, tinha que mover três. Para pessoas com casas, a ideia de viver numa casa-barco pode parecer uma aventura, ou algo exótico. Para alguém como Keri, que, na realidade, fazia isso todo dia, o charme já havia se dissipado há muito tempo.

Keri foi até a cozinha, serviu para si uma generosa dose de uísque e se dirigiu para o deck, no teto. Enquanto subia a escada, viu que uma foto na parede estava torta. A casa-barco não balançava muito, mas, às vezes, ela se movia o bastante para fazer as coisas mudarem de lugar ou caírem. Ela endireitou a foto, olhando, mas sem processar realmente o que via.

Após um momento, percebeu que estava olhando para o que costumava ser sua família. Era uma daquelas fotos posadas na praia que eles haviam tirado na época de pré-escola de Evie. Estavam sentados ao lado de algumas pedras, com o oceano ao fundo. Evie estava na frente, com um vestidinho branco. Seus cabelos loiros eram mantidos fora dos olhos por uma faixa de cabelo verde que combinava com seus olhos.

Keri e o marido estavam atrás dela. Stephen vestia calças cáqui e uma camisa branca fora da calça. Keri estava vestida de modo parecido, numa blusa branca leve e uma saia cáqui. Stephen tinha uma mão nos ombros de Evie e a outra em volta da cintura de Keri. Essa lembrança de sua intimidade casual passou como um flash pela sua mente. Havia se passado um longo tempo desde que alguém a havia tocado daquela maneira confortável, conhecida.

Ela lembrou que havia sido difícil não espremer os olhos naquele dia, porque a sessão de fotos era de manhã, e o sol forte do início do outono estava bem nos olhos deles. Evie reclamou sobre isso, mas de algum modo conseguiu abrir bem os olhos para esta foto específica. Keri não pôde deixar de sorrir com a lembrança.

Ela deixou a foto para trás enquanto subia as escadas até o deck, e se acomodava numa espreguiçadeira barata que havia comprado da Amazon, por impulso. Fechou os olhos e tentou sentir o movimento quase imperceptível da casa-barco. A foto passou por sua mente novamente. A Keri Locke daquela época não a reconheceria agora.

A foto tinha sido tirada quase quatro anos antes de levarem Evie. Olhando para trás, aquela vida foi a mais perfeita que Keri chegou a ter. De algum modo, ela havia sobrevivido a uma infância que não desejaria a ninguém para se tornar uma bem-sucedida professora universitária de criminologia e psicologia na LMU. Era uma consultora respeitada pela LAPD. Era casada com um proeminente advogado da área de entretenimento, que nunca deixava seu trabalho interferir com um recital da pré-escola ou festa de Halloween.

E ela tinha uma filha que a fazia ver cada dia que ser criança não tinha que envolver trauma. Podia se tratar de admiração e alegria. Era uma época com canteiros de abóbora para visitar e cookies com gotas de chocolate para preparar juntas. Com domingos em que eles podiam fazer amor de maneira furtiva, apressada, antes que pequenos pés pudessem ser ouvidos galopando até o quarto. Ela era feliz e nem percebia o quanto.

A Keri do passado ficaria horrorizada com a atual, bebendo goles de uísque como se fosse água, sozinha numa casa-barco batizada com um tamanho de sutiã. Ela tentou relembrar como tudo se despedaçou. Primeiro, veio a bebedeira para esquecer, então, as brigas aos gritos com um marido que se tornou frio e distante. Keri sabia agora que havia sido uma forma de auto-proteção, uma maneira que Stephen encontrou para sovreviver ao pesadelo acordado que eles compartilhavam, para mantê-lo a um braço de distância. Mas, na época, isso a deixava furiosa, fazia-a pensar que ele não ligava para o que aconteceu com a filha deles.

Depois que ele finalmente saiu de casa, um ano depois, a casa parecia tanto vazia quanto cheia de lembranças, então, ela se mudou para a casa-barco. Ela também foi passando de mão em mão, de um homem a outro, na universidade. Às vezes, eram os formandos, às vezes, estudantes da graduação — quem quer que estivesse disposto a fazê-la se sentir bem por alguns poucos momentos e ajudá-la a esquecer a angústia que consumia a maior parte de suas horas acordada.

Isso continuou por cerca de um ano, até que um rapaz de 19 anos especialmente ingênuo, apaixonado, largou a faculdade porque Keri havia casualmente seguido em frente. Seus pais ameaçaram processar. A faculdade, de origem jesuíta, não teve escolha a não ser resolver as coisas rápida e silenciosamente. Parte do acordo era a demissão de Keri.

Foi por volta dessa época que Stephen lhe contou que ia se casar com uma de suas clientes, uma jovem atriz com um faturamento de seis dígitos, que atuava num drama médico. Eles iam ter um bebê, um menino. Keri passou por uma semana bêbada ao ouvir essa notícia. Foi pouco tempo depois que um ex-colega, um detetive da Pacific Division chamado Ray Sands, veio até o barco com uma proposta.

"Ouvi dizer que as coisas não estão indo como você esperava, ultimamente", ele disse, sentado no mesmo deck em que Keri estava curvada agora. "Talvez, só precise de um novo começo".

Ele contou a ela sobre sua própria descida em espiral pelo buraco do coelho, desesperado, e como ele conseguiu se arrastar para fora ao preferir parar de sentir pena de si mesmo e fazer a diferença com a vida que ele ainda tinha.

"Já pensou em se candidatar para a Academia de Polícia?" ele perguntou.

A marina estava em silêncio, a não ser pelo som das ondas lambendo os cascos dos barcos e um alerta de neblina distante, ecoando de maneira fúnebre na escuridão. Keri podia se sentir adormecendo e decidiu não lutar contra isso. Ela pôs seu copo de lado, puxou uma coberta sobre si e fechou os olhos.


*


Seu sono foi interrompido pelo toque do celular. Olhou piscando para a tela, tentando diminuir sua visão embaçada. Eram 5h45. Ela havia dormido por menos de duas horas. Espremeu os olhos para ver quem estava ligando. Era Ray. Ela atendeu.

"Eu estava, finalmente, dormindo", falou, irritada.

"Acharam a van preta!"


CAPÍTULO VINTE E DOIS


Terça-feira

Alvorecer

 

Impulsionada sobretudo pela adrenalina, Keri saiu da Rodovia 210 perto de La Canada-Flintridge e se dirigiu para o norte pela Angeles Crest Highway. O sol estava nascendo à sua direita e ela podia ver o Laboratório de Propulsão a Jato a distância, enquanto seguia a sinuosa estrada de mão-dupla, para dentro da Floresta Nacional de Los Angeles.

Em minutos, a imensa cidade logo ao sul ficou para trás e ela se viu cercada por árvores imensas enquanto seguia seu caminho para cima, subindo a encosta de uma montanha íngreme, rochosa. Um pouco depois das 6h30, ela chegou ao seu destino, uma estação de descanso com banheiro numa pequena estrada sem calçamento, logo a oeste do Woodwardia Canyon.

Um pouco menos de um quilômetro mais adiante, quatro viaturas estavam de frente para uma van preta. Duas eram da LPDA e duas eram do posto do xerife de LA. Um caminhão da CSU também estava lá e ela podia ver os investigadores se debruçando sobre o veículo, coletando evidências. Ray e Hillman estavam um pouco afastados, no acostamento, conversando. Os detectives Sterling e Cantwell também estavam com os dois, ouvindo atentamente.

Keri saiu do carro e foi até eles. Ela queria ter se lembrado de trazer uma jaqueta. A esta hora, nas montanhas, fazia frio, mesmo durante uma onda de calor. Ela tremia levemente, incerta se era por causa do frio ou da visão à sua frente.

As portas da van estavam totalmente abertas. Dentro, não havia sangue ou sinais de luta. O cinzeiro estava cheio de pontas de cigarro. Na parte de trás, um saco de papel marrom cheio de barras de granola, salgadinhos de batata, Gatorade e torradas havia se rasgado. As chaves estavam na ignição.

Ray viu Keri e caminhou até ela.

"Eles estavam fugindo", ele disse, mostrando a ela uma nota escrita à mão dentro de um saco transparente de evidências.


Vou começar uma nova vida.

Tudo o que quero é que todo mundo me deixe em paz.

Se me trouxer de volta, simplesmente vou fugir de novo.

Ashley

 

Keri balançou a cabeça.

"Isso é besteira".

"Não, é legítimo", Ray disse. "Tiramos uma foto e enviamos por mensagem para Mia Penn. Ela disse que, definitivamente, é a letra de Ashley. Além disso, o pedaço de papel é de artigos de papelaria que Ashley ganhou no aniversário dela. A mensagem estava presa no painel com um brinco, que também, definitivamente, pertencia a Ashley".

"Não engulo essa", Keri disse.

"Olhe ao redor, Keri, Ray disse. "Você está na Angeles Crest Highway, na direção nordeste. Meu palpite é que eles planejavam evitar as autoridades, permanecendo nela mais ou menos até Wrightwood, então, pegar a Rodovia 15 ao norte, para Vegas. Achamos que eles pararam aqui para usar o banheiro e outras instalações. Quando voltaram para a van, ela não pegou".

"Como você sabe?"

"Nós tentamos, observe". Ele a levou até o carro, ajustou suas luvas e girou a chave. Nada aconteceu. "O terminal da bateria está coberto de corrosão. Não está fazendo contato com o cabo".

"Tudo o que você tem que fazer é tirá-la, raspar o interior com uma chave e depois enroscar de novo no lugar".

"Você sabe disso, eu sei disso, mas uma garota de 15 anos não sabe", ele disse. "Não deu partida e eles deram o fora daqui".

"Você continua dizendo 'eles'. Com quem ela estava?" ela perguntou.

"Quando se trata desta garota, só Deus sabe".

Keri ficou parada em silêncio, tentando compreender.

Então, ela disse, "De quem é a van?"

"Dexter Long".

Keri nunca havia ouvido o nome antes.

"Quem é ele?"

"Um universitário na Occidental College", Ray disse. "A van está registrada em seu nome. Aparentemente, alguém a roubou de uma garagem do campus. O garoto nem sabia que tinha sido levada. Ele vive num dormitório e não dirigia o veículo há mais de um mês".

"Ele não a emprestou a niguém?"

"Não".

"Então, como conseguiram as chaves?"

"Ele as deixa no visor."

"Com a porta destravada?"

"Aparentemente, sim".

"Merda".

"Pois é".

"Vocês estão conseguindo digitais?"

"Eles já fizeram isso", Ray disse. "Mas se ela está com outro adolescente que não tem idade suficiente para dirigir, a menos que o garoto tenha antecedentes, nada vai bater numa busca".

Hillman se aproximou e disse, "Temos desperdiçado tempo e energia com nada".

Keri franziu o cenho.

"Acha que isso é verdade? Que Ashley fugiu?"

Ele concordou com a cabeça.

"Não há nada mais para pensar", ele disse. "Eu não sei com quem, ou por que, exatamente, mas, não me importo, a este ponto. Pelo que entendo, não é mais um caso da LAPD".

"O que quer dizer?"

"Não é mais da nossa jurisdição. O Condado se ofereceu para coordenar com o FBI quando eles assumirem oficialmente", Hillman disse. "Vamos todos voltar para casos em que as pessoas estejam realmente desaparecidas. Temos uma pilha deles".

"Mas..."

Hillman interrompeu-a.

"Nada de 'mas'", ele disse. "Estamos fora do caso. Não me desafie, Locke. Você está sobre gelo fino no momento. Pelas minhas contas, você teve altercações físicas com pelo menos três pessoas nas últimas 12 horas. E essas são apenas as que fiquei sabendo. Essa baboseira de bancar a renegada para por aqui. Estou tentando ser o mais claro que posso porque falo realmente sério".

Ray pôs uma mão no ombro de Keri.

"Acho que o tenente Hillman pode ter razão nesse ponto", ele disse. "Rastreamos toda pista possível. Mas nada comprova que Ashley Penn foi sequer raptada, Keri. Enquanto isso, temos muita coisa que sugere que ela fugiu".

"Isso pode ter sido plantado".

"Tudo é possível, eu acho. Mas, se for assim, o Condado e o FBI vão determinar. Deixe para lá, Keri. Ashley Penn não é sua filha. Ela é uma garota problemática, mas não é mais nosso problema".

"Se você estiver errado, então, estamos perdendo um tempo valioso".

"Eu assumo as consequências disso", Hillman disse, antes de se afastar.

Sim, mas não é você que vai ter pesadelos.


CAPÍTULO VINTE E TRÊS


Terça-feira

Amanhecer


Quando Ashley acordou, ela podia dizer imediatamente que algo estava diferente. O interior do silo não estava mais escuro como breu. Ao invés, raios fracos de sol se espremiam pelas bordas do alçapão, no topo. Era o bastante para permitir-lhe distinguir as coisas sem usar a lanterna.

Ela ficou de pé de um salto. Depois de levar um momento para se ajustar, notou mais uma coisa.

Um feixe de luz do sol também se espremia através de um buraco em um lado do silo. O buraco era do tamanho de uma moeda, na parede, um pouco acima de sua cabeça. Quando ela pulou, pôde dar uma olhada no outro lado, mas não muito.

Ela precisava de um banco. Vasculhando a caixa de mantimentos, encontrou algumas das latas de sopa. Depois de empilhá-las no chão em cada lado do buraco, pôs as tábuas soltas entre elas, criando uma prancha. Ashley subiu com cuidado, apoiando as mãos na parede interna do silo, e pôde "encaixar" um olho no buraco e ver o que havia no exterior. Ela viu um velho celeiro dilapidado, uma pequena casa de fazenda e caminhos de terra batida esburacados cortando os campos, que haviam sido abandonados há muito tempo e agora estavam cobertos de mato. Carcaças enferrujadas de carros e máquinas agrícolas se espalhavam pelo terreno.

Olhando para baixo, ela teve uma ideia da altura em que estava. O silo tinha, no mínimo, 12 metros.

Ela não gostava de altura, nunca gostou. Não gostava nem mesmo do trampolim alto na piscina.

Não havia sinal de vida do lado de fora — nem de pessoas, carros, cães, nada. Seu raptor não estava em lugar algum no terreno.

Olhando novamente para baixo, para a altura da queda, ela observou uma boa quantidade de luz abaixo, quase como se estivesse vindo através de uma porta ou janela na base do silo. Pendurou a tábua reta pelo funil e bateu a ponta contra os ossos, até que eles caíram. Com a abertura agora desobstruída, ela podia ver o solo. O chão abaixo parecia sujo, com um pequeno amontoado de grãos velhos. Avaliando com base na profundidade que os ossos haviam afundado nos grãos, ela estimou que eles formavam uma camada de cinco a oito centímetros de espessura.

Eu poderia cair?

Olhando novamente para baixo, Ashley tentou imaginar a queda. Era uma longa descida. Duvidou que a fina camada de grãos oferecessem um bom amortecimento. E a abertura... era grande o suficiente para ela passar? Podia ser. Qual seria a melhor posição para pular? Com seus braços ao lado do corpo ou esticados acima da cabeça? Ela se imaginou ficando presa com os braços para baixo e então com os braços para cima. Qual seria a posição preferida dela se ficasse presa naquele buraco pelo resto de sua vida? Ela afastou esse pensamento.

Não é construtivo.

Naquele momento, com apenas uma tábua removida, ela não poderia cair, mesmo que quisesse. Teria que remover mais uma tábua. Ela refletiu sobre o que podia fazer.

Dane-se. Vou fazer isso.

Pelo menos, ela podia tirar mais uma tábua e ter essa opção disponível.

Ashley foi mais eficiente desta vez, removendo a tábua em duas horas. Então, teve uma ideia. Usando as bordas afiadas de uma lata de sopa, ela cortou o colchão e então enfiou a espuma e as partes externas de algodão através da abertura, até caírem no chão, lá embaixo. Todos caíram na mesma área geral, criando 15 a 20 centímetros adicionais de amortecimento. Se ela aterrissasse bem no topo da pilha, poderia ter até 25 centrímetros para amortecer a queda. Não era muito para aquela altura, mas estava melhor do que antes. Além do mais, o acolchoamento cobriu a maior parte dos ossos, então, pelo menos as chances de um deles batendo nela no impacto diminuíram. Eram as pequenas coisas.

Ela olhou para a caixa de mantimentos, perguntando-se se podia jogar alguma comida lá embaixo, para levar consigo. Era uma opção intrigante. Mas teve medo de bagunçar o acolchoamento ou que algo duro ficasse preso. Não havia sentido em ter todo esse trabalho apenas para aterrissar numa lata de sopa e quebrar as costas.

Então, um pensamento lhe ocorreu que deixou-a tão orgulhosa que ela até sorriu pela primeira vez desde que esse pesadelo começou. Ela tirou sua saia e blusa e os jogou pela abertura também. Agora, vestindo apenas seu sutiã e calcinha, pegou a pasta de amendoim da caixa.

Podia ser alérgica ao troço, mas ele também podia ser útil de outra maneira. Ela abriu o pote e começou a espalhar a gosma por todo o seu corpo, prestando especial atenção à parte externa de suas coxas, nádegas, quadril, barriga e costelas. Quando ela caísse com os braços sobre a cabeça, talvez, estar coberta com a substância escorregadia a ajudasse a passar pela abertura.

Quando terminou, Ashley se permitiu focar um momento em silêncio. Ela já começava a se sentir empolgada com a queda, como ficava antes de um campeonato de surfe. Quase que involuntariamente, sua respiração ficou mais lenta. Tudo pareceu mais nítido. Chegou a hora.

Ela deu um passo até a borda e olhou para baixo.

Apesar de estar na posição certa, não gostava da ideia de pular no funil de pé. Seria uma queda um pouco menor se ela entrasse no buraco se pendurando de uma das tábuas restantes, e então se soltasse. Ela posicionou a lanterna para apontar para dentro da abertura, de modo que teria um bom visual quando caísse. Então, ela se pendurou numa das tábuas presas do assoalho e ficou balançando acima da abertura.

Certo, agora! Adeus mãe. Adeus, papai! Amo vocês. Sinto muito por tudo isso.

Eu não quero morrer.

Sua respiração se acelerou; para dentro e para fora, para dentro e para fora.

Ela podia sentir o pânico crescendo.

Não! Isto é loucura!

Ela tentou freneticamente subir novamente, mas não pôde. Simplesmente, não havia mais força em seus braços.

Ela estava presa, sem outra chance a não ser se soltar.

Ao perceber isso, sua respiração diminuiu novamente. A inevitabilidade lhe deu um sentimento inesperado de calma. Ela fechou seus olhos por um longo segundo e abriu-os novamente, pronta para focar na tarefa à frente. Oscilou um pouco para a frente e para trás, tentanto cair diretamente sobre a abertura.

Quando chegou o momento certo, Ashley Penn soltou-se e despencou numa queda livre.


CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Terça-feira

Início da manhã

 

Durante todo o caminho de volta para Venice, Keri quebrou a cabeça. Tudo apontava para a fuga de Ashley, assim como Hillman e Ray acreditavam. De fato, batia com todas as evidências. Ainda assim, não parecia certo. De volta à cidade, ela não foi à delegacia. Não queria lidar com os olhares condescendentes e comentários sussurrados que, ela sabia, estariam lhe esperando por lá.

Keri preferiu dirigir sem destino por todos os pontos que ela percorreu na noite passada — o colégio de Ashley, o Blue Mist Lounge, o bairro artístico onde Walker Lee morava, qualquer lugar familiar. Uma hora depois, ligou para Mia Penn e disse, "Você acredita que Ashley fugiu?"

"Não quero acreditar. Mas tenho que admitir que é possível".

"Sério?"

"Veja, com base em tudo que descobri ontem, é bastante óbvio que eu não tinha ideia de quem era minha própria filha", ela disse. "Como algo assim acontece?"

"As crianças escondem coisas", Keri disse.

"Sim, eu sei, mas isso foi... Eu não sei, tão extremo, todas as coisas que ela estava fazendo. Pensei que tínhamos um bom relacionamento. Mas, no fim, é como se ela não confiasse em mim o bastante para me contar tudo. Tenho tentado descobrir o que fiz que a levou a se afastar..."

"Não se culpe", Keri disse. "Já passei por isso. Ainda estou passando. Não desejo isso para ninguém".

"Veja", Mia disse. "Estou escolhendo acreditar que Ashley foi embora por conta própria. Ela vai nos ligar mais cedo ou mais tarde e vamos descobrir o que fizemos de errado. Estou preparada para esperar e dar a ela espaço".

"Posso passar aí..."

"Não".

"Mas..."

"Não é uma boa ideia", Mia disse. "Aqui entre nós, Stafford teve um acesso de raiva com aquele alerta nacional. Ele quebrou tudo em nosso quarto hoje de manhã. Acha que vai perder sua cadeira no senado com toda essa publicidade negativa, está convencido disso".

"E ele acha que a culpa é minha?" Keri perguntou.

"Só não se aproxime. Vai passar, mas, por ora, mantenha certa distância".

"Podíamos rever as evidências", Keri disse.

"Keri, não é nada pessoal, mas pare!"

A ligação caiu.

Mais à frente, na estrada, numa área escolar, uma van preta arrancou em direção à rua. Keri percebeu uma movimentação pela janela de trás, o que pareciam cabelos loiros para cima e para baixo.

Keri acelerou e conseguiu emparelhar os veículos. O motorista era um cara com trinta e poucos anos, com o rosto coberto de cicatrizes de acne, longos cabelos castanhos oleosos e um cigarro pendendo da mão que descansava na janela. Keri fez um movimento para ele encostar. Ele lhe deu uma dedada e acelerou.

Ela o perseguiu, esticando-se para pôr a sirene no teto do carro. Assim que ela ia ligar a sirene, o sinal à frente deles ficou vermelho e a van parou, cantando pneu. Keri desviou para a direita, para evitar chocar-se com ele por trás. Ela pisou fundo no freio, e o carro parou. Saindo do Prius, levantou o distintivo para o homem, pela janela aberta do lado do passageiro.

"Quando lhe der uma ordem para encostar, obedeça!"

O homem assentiu.

"Agora, saia deste maldito carro e venha até aqui".

O homem obedeceu.

Sem tirar o olho dele, Keri abriu a porta lateral da van. Não havia ninguém dentro. Havia flores, nada mais. Ela olhou para a porta corrediça e notou algo que não havia visto antes: um letreiro em que se lia "Entrega de Flores do Brandy".

O homem havia contornado a frente do veículo e estava de pé na frente dele.

"Abra a porta de trás", ela ordenou.

Ele abriu. Não havia crianças dentro. Apenas mais flores. Ela percebeu que o que ela pensou ser cabelo loiro era mais provavelmente um monte de girassois na parte de trás da van.

Estou perdendo a cabeça.

Keri olhou para o motorista e podia sentir que ele estava decidindo se devia ficar confuso, assustado ou com raiva. Ela decidiu que era melhor fazer a escolha por ele.

"Ouça-me", ela rosnou. "Você arrancou naquela rua lateral como um morcego saindo do inferno no meio de uma área escolar. E então, quando eu lhe mando encostar, você me dá uma dedada? Tem sorte de não lhe prender por desacato".

"Desculpe por ter arrancado daquele jeito. Mas eu não sabia que você era uma policial. Se uma mulher num Prius com uma expressão estranha quer que eu encoste, eu não vou fazer isso automaticamente. Você precisa ver o meu lado".

"É só por isso que vou deixar você ir, com uma advertência. Eu cheguei bem perto de bater no seu rabo. Dirija devagar, entendeu?"

"Sim, senhora".

"Bom. Agora, dê o fora daqui".

Ele obedeceu. Keri voltou para seu carro e ficou apenas sentada dentro dele por um minuto, contemplando o quão perto havia chegado de atacar outra pessoa aleatoriamente. E esse não era um traficante ou um cafetão, ou mesmo um tolo aspirante a ser uma estrela do rock. Era só um entregador de flores. Ela precisava se conter, mas não parecia não saber como. Era como uma fome que nunca passava. E, até se sentir saciada, Keri sabia que não seria capaz de se acalmar.

No momento em que percebeu isso, ela soube que havia apenas um lugar para ir, e não era para casa ou para a delegacia. Na verdade, estava a menos de cinco minutos de carro de onde ela estava agora.


*


Enquanto Keri estacionava o carro na estreita rua residencial lotada de vans de noticiários, repórteres, paparazzi e curiosos, ela terminou sua ligação. Estava falando com a oficial do Serviço de Proteção à Criança e ao Adolescente designada para o caso de Susan Granger. A mulher, Margaret Rondo, assegurou que Susan seria enviada a um abrigo seguro para mulheres e crianças. Ficava em Redondo Beach, numa rua residencial, e parecia uma casa qualquer vista de fora, exceto pelo fato das paredes externas serem um pouco altas e por algumas câmeras discretas. O cafetão de Susan, que, Keri descobriu, atendia pelo apelido de Crabby, nunca poderia encontrá-la.

E, graças ao detetive Suarez, a papelada de Crabby havia misteriosamente se extraviado e ele ficaria preso na unidade de Twin Towers por mais 48 horas, tempo mais do que suficiente para Keri escrever um relatório que garantiria que ele não teria direito à fiança.

Após Keri insistir um pouco, Rondo relutantemente deixou-a falar com Susan por um momento.

"Como você está?" ela perguntou.

"Assustada. Pensei que você estaria aqui".

"Ainda estou procurando por aquela garota desaparecida sobre a qual lhe contei, mas quando tudo se acalmar, prometo conferir como você está indo, certo?"

"A-hã". Susan parecia desanimada.

"Susan... aposto que muitas pessoas lhe fizeram promessas e não cumpriram, não foi?"

"Sim".

"E posso notar que você acha que vou fazer a mesma coisa, certo?"

"Talvez".

"Bem, eu não sou como essas pessoas. Você já tinha visto alguém dar uma surra em Crabby como eu na noite passada?"

"Não".

"Você acha que alguém assim, que lutou com um cara enorme e fedorento sobre ela, e terminou deixando-o de barriga para baixo, algemado, não pode dar um jeito de vir visitá-la?"

"Acho que pode".

"Isso está certo pra cacete!... desculpe meu linguajar. Estarei aí quando puder. E, quando vier, mostrarei a você alguns dos golpes que usei. Que tal?"

"Legal. Você pode me mostrar o negócio dos polegares nos olhos?"

"É claro. Mas só usamos aquilo em emergências, certo?"

"Tenho estado em muitas emergências".

"Sei que sim, querida", Keri disse, recusando-se a deixar sua voz revelar emoção. "Mas tudo acabou agora. Vejo você em breve, ok?"

"Certo".

Keri desligou e ficou sentada em silêncio no carro por um momento. Ela se permitiu imaginar todos os horrores pelos quais Susan Granger passou, mas apenas por alguns poucos segundos. E quando ela sentiu pensamentos de Evie na mesma situação querendo entrar em seu cérebro, ela os afastou. Este não era o momento de chafurdar na dor. Este era um momento para agir.

Ela saiu do carro e caminhou rapidamente na direção da casa dos Penn. Eram quase oito da manhã, tarde o bastante para uma visita. Na realidade, ela não ligava para que horas eram. Havia algo estranho na sua mais recente conversa telefônica com Mia. Isso estava atormentando-a desde então. E ela estava prestes a obter algumas respostas.

No segundo em que foi vista, Keri foi cercada por um enxame de repórteres. Ela continuou caminhando a passos largos e alguns deles tropeçaram uns sobre os outros, tentando acompanhar seu ritmo. Ela lutou com o sorriso no canto de seus lábios. Assim que passou pelo portão da mansão, os repórteres pararam, como se houvesse algum tipo de campo de força impedindo-os de avançar.

Ela bateu na porta. O segurança da sua primeira visita foi quem abriu. Quando ela passou por ele, enfiando-se para dentro da casa, ele hesitou, obviamente, considerando se devia detê-la. Mas, depois de olhar nos olhos dela, ele se conteve.

"Eles estão na cozinha", explicou. "Por favor, deixe-me levá-la até lá. Se você simplesmente entrar, pensarão que sou inútil e vão me demitir".

Keri fez essa gentileza e diminuiu o passo o suficiente para deixá-lo ir na sua frente. Quando entraram na cozinha, Keri viu Mia sentada na mesa de café da manhã usando seu roupão de banho, tomando goles curtos de café. Stafford Penn estava de costas para ela enquanto passava de canal para canal na televisão da cozinha. Todas as estações falavam sobre Ashley.

Mia levantou os olhos e a expressão cansada em seu rosto desapareceu. Seus olhos mostram um lampejo de — não era raiva — algo mais parecido com medo. Ela começou a falar.

"Eu disse para você..."

Keri levantou a mão, e algo no gesto dela fez Mia interromper-se no meio da frase. O senador Penn se virou para ver o que era aquela comoção. Ele abriu a boca, mas ao ver a expressão no rosto de Keri, também se deteve imediatamente.

"Já vou avisando que vou dispensar as formalidades. Primeiro, não há tempo para isso. E, segundo, não tenho paciência".

"Do que está falando?" perguntou o senador Penn.

Keri focou em Mia.

"Eu sei que você não acredita que Ashley fugiu, não mais do que eu acredito. Durante toda a tarde de ontem e a noite passada, você insistiu que investigássemos. Tinha certeza de que ela havia sido raptada. Então, eu ligo esta manhã e, de repente, você acha que ela foi embora por conta própria? Quer dar a ela espaço? Eu não engulo essa. Nem por um segundo".

"Francamente, eu não me importo com o que você acredita", Stafford Penn disse. "Eu lhe disse que isto era uma adolescente descobrindo a vida. E agora dá para ver que eu estava certo. Você só não quer aparecer mal na frente dos outros".

Keri o estudou de perto. O homem era um político, claramente dos bons, para ter alcançado sua posição atual. E estava acostumado a fazer as pessoas acreditarem nele, sejam eleitores, repórteres, ou adolescentes que traçava em seu escritório de advocacia.

Mas Keri não era nada disso. Ela era detetive na LAPD. E ela sabia muito bem como identificar um mentiroso, mesmo um com tanta prática quanto o senador Stafford Penn.

"Você está mentindo para mim. E, por isso, juro por Deus, eu não me importo se você é um senador ou o presidente dos Estados Unidos, eu não me importo se vai me custar meu emprego. Vou prendê-lo por dificultar uma investigação. E vou fazer isso levando-o para fora dessas portas algemado na frente de todos aqueles repórteres e jogando-o no banco de trás do meu pequeno carrinho amassado. Vamos ver se você vai ser reeleito depois dessa".

Do canto do olho, Keri viu o segurança cobrir sua boca para esconder um largo sorriso.

"O que você quer?" Penn sibilou através de dentes trincados.

Quero saber especificamente o que você está escondendo de mim.

Stafford nem hesitou, "Eu não estou escondendo nada".

Mia olhou para ele. "Stafford..."

"Mia, pare".

"Vamos, Stafford, já basta".

"Já acabamos por aqui", o senador disse, olhando para Keri. Ela encarou-o de volta por vários segundos.

"Aparentemente, terminamos", ela concordou, puxando suas algemas e caminhando na direção dele.

Mia se levantou.

"Diga a ela", ela disse, num tom enérgico que Keri nunca havia ouvido vir dela antes.

Ele balançou a cabeça.

"Ela não tem o direito".

"Stafford, diga a ela ou eu direi".

Ele suspirou, então, balançou a cabeça como se estivesse atordoado pela estupidez do que estava prestes a fazer.

"Espere aqui". Ele se dirigiu ao andar de cima. Um minuto mais tarde, voltou e deu a Keri um pedaço de papel. "Isso chegou pelo correio esta manhã". Era um pedaço de papel ofício, com palavras digitadas.


Você me prejudicou. Agora, você será prejudicado.

A lei do retorno é foda. Prepare-se para dançar de acordo com a música.


"Não posso acreditar que estava escondendo isto", Keri disse.

Stafford suspirou. "Não é relevante".

"Por que você diz isso?"

"Porque estou 90% certo de quem enviou".

"Quem?"

"Payton Penn; meu meio-irmão. "Temos o mesmo pai, mas mães diferentes".

Keri disse, "Ainda não entendo".

Payton, para dizer de forma leve, é um fracassado", Stafford disse. "Ele odeia esta família. Ele me odeia, por causa de alguns eventos que ocorreram quando éramos mais jovens. Além disso, obviamente tem inveja de como minha vida se desenrolou. Ele odeia Mia, porque ele nunca conseguiria alguém como ela. E ele odeia Ashley, principalmente porque Ashley o odeia. Ele sabe coisas sobre nossa família, incluindo algo que o público não sabe e que compartilho com você sob sigilo: eu sou o verdadeiro pai de Ashley".

Keri assentiu solenemente, fingindo estar honrada e surpresa pela grande revelação dele.

"Agradeço por me confiar essa informação, senador. Eu sei que sua privacidade é importante para você e não vou violar isso. Mas estou esperando pela parte em que me explica por que seu meio-imrão não deveria ser um suspeito".

"Temos dado a ele dinheiro desde que me tornei senador para mantê-lo calado sobre Ashley e... algumas outras coisas de que não precisamos tratar no momento. Então, não tem sentido ele pôr tudo isso a perder agora. Ele está colocando seu dinheiro garantido em risco. Além disso, não é nem mesmo um pedido de resgate".

"O que quer dizer?"

"É típico de Payton. Ele não quer ir até o fim. Veja como a carta é vaga. 'Você me prejudicou?' Isso poderia vir de milhares de pessoas daqui ou de Washington. Ele nem mesmo pede por dinheiro de fato".

"Então, o que você acha que está acontecendo?"

"Conhecendo meu irmão, ele ouviu falar do desaparecimento de Ashley e pensou que poderia lucrar com isso, escrevendo esta carta. Mas ele não tem os culhões de realmente pedir um resgate. Apenas deixa a opção aberta para o futuro, se tiver a coragem. Ou é isso ou ele achou que este era um momento para me chutar enquanto estou no chão, aproveitando que estou no fundo do poço. Ele não tem muitas chances de me atacar. Então, não quis perder a oportunidade".

"Certo. Mas o que lhe dá tanta certeza de que ele não teve coragem para raptá-la?"

"Porque quando Ashley desapareceu ontem após as aulas e Mia começou a surtar, eu liguei para um detetive particular que uso ocasionalmente, apenas para checar. Payton estava no trabalho o dia todo ontem, até as cinco. Como você sabe, Ashley entrou na van um pouco depois das três".

"Tem certeza de que ele estava no trabalho?"

"Sim. O investigador me enviou uma cópia das imagens da câmera de segurança do prédio. Ele aparece em várias delas".

"Ele poderia ter contratado alguém".

"Ele não tem dinheiro para isso".

"Pensei que você estivesse dando dinheiro a ele".

"Não o bastante para contratar alguém para raptar minha filha".

"Talvez, o parceiro dele esteja planejando ficar com uma parte do resgate".

"Do resgate que ele não pediu? Basta, detetive. Eu respondi a suas perguntas. Isso é uma rua sem saída. E, para que você saiba, vou ligar para o tenente Hillman e relatar que você me ameaçou. Com seu histórico, não sei ao certo como isso será para você".

"Ah, cale-se, Stafford!" Mia gritou para ele. "Se você se importasse a metade com sua filha como se importa com sua carreira, nada disso estaria acontecendo!"

Parecia que alguém havia lhe dado um tapa no rosto. Seus olhos ficaram úmidos e ele se virou rapidamente, sem responder, focando sua atenção de volta na televisão.

"Levo você até a porta", Mia disse. Enquanto caminhavam para a porta da frente, um pensamento ocorreu a Keri.

"Mia, Payton já teve acesso à casa?"

"Bem, tentamos nos reconciliar com ele algumas vezes ao longo dos anos. Até permitimos que ficasse conosco no feriado prolongado, na Páscoa passada. Não deu muito certo".

"Ele estava sempre sob supervisão?"

"Não, quero dizer, isso teria anulado o propósito. Estávamos tentando resolver nossas diferenças. Ter seguranças seguindo-o durante o final de semana teria minado um pouco essa confiança, não acha?"

"E terminou mal?"

"Ele e Stafford entraram uma briga aos gritos e ele foi embora mais cedo. Foi a última vez que o vi".

"Obrigada", Keri disse, e saiu rapidamente. Os repórteres ainda estavam do lado de fora e ela não queria parecer suspeita, então, tentou não correr até seu carro.

Mas chegou perto disso.

Havia algo que ela precisava fazer urgentemente.


CAPÍTULO VINTE E CINCO


Terça-feira

Meio da manhã


Enquanto Keri acelerava subindo as estradas cheias de curvas da Rodovia 18 na direção do Lago Arrowhead, seu celular tocou. Ela esperava que, naquela altura, nas montanhas, não tivesse sinal e que as chamadas fossem direto para a caixa postal. Não teve tanta sorte. Contra seu melhor julgamento, ela atendeu, apertando o botão de viva-voz no painel.

A voz do tenente Hillman surgiu alta e clara.

"Onde você está?" ele perguntou. Ele não estava gritando, e ela podia notar que isso estava custando todo o seu esforço.

"Estou indo para a choupana de Payton Penn, subindo até o Lago Arrowhead".

"Dê meia-volta agora", ele disse. "Eu já lhe disse que o Condado e o FBI assumiram o caso. Ao invés de seguir minhas ordens, você decide ameaçar um senador dos EUA?"

"Eu não estava ameaçando. Eu estava investigando".

"Keri..." Ele estava quase implorando.

"Stafford tem um meio-irmão, Payton Penn, que colocou uma nota na caixa de correspondência dele".

"Eu já sei disso", Hillman disse.

"Sabe?"

"Sim", ele disse. "E nós estamos checando. Mas, até agora, o que o senador disse parece bater. Tudo apoia a teoria de que ela fugiu. No máximo, esta é uma tentativa amadora de tirar vantagem da situação para extorquir dinheiro. Penn não quer dar queixa. É um problema de família que ele quer tratar com calma".

"Ele deveria, pelo menos, checar".

"Os Federais estão fazendo isso. Se algo aparecer, eles vão atrás. Mas você indo lá apenas chama atenção para algo que Penn quer manter em segredo".

"Você trabalha para ele agora?" ela perguntou, com mais energia do que o previsto.

"Detetive, pare!" Hillman gritou. "Quero que você dê meia-volta imediatamente. Você está ofcialmente fora deste caso".

"Veja, eu estou quase na casa de Payton. Vou apenas checar as redondezas para confirmar que Ashley não está lá. Vou entrar e sair em cinco minutos".

"Detetive Locke", ele disse, numa voz calma e baixa que a preocupou mais do que quando ele gritava, "você é uma policial imensamente competente. Mas sua insubordinação é inaceitável. Estou suspendendo-a do seu serviço policial, suspensão que entra em vigor imediatamente. Volte para a delegacia e entregue sua arma e distintitvo. Você continuará a receber seu salário até uma audiência formal, se quiser uma. Mas, neste momento, você não está mais autorizada a agir como parte do Departamento de Polícia de Los Angeles. Você me compreende?"

Keri pesou as palavras dele, bem consciente de que este era um ponto sem volta. Mas ela teve vários pontos assim no passado. Isso estava longe de ser o pior deles. Então, começou a falar.

"Tenente Hillman, ainda está aí?"

"Detetive..." ele rosnou.

"Tenente, está me ouvindo? Alô, alô? Acho que a ligação está caindo. Está cortando".

"Locke, não ouse fingir..."

Keri terminou a ligação.


*


Keri estacionou a cerca de 400 metros mais abaixo, na estrada que levava à choupana de Payton Penn, no coração das montanhas San Bernardino. Ela saiu devagar, impressionada com o silêncio e o isolamento do lugar. Ela sentiu aquele nó familiar no estômago enquanto se preparava para o que poderia encontrar à medida que seguia pelo restante do caminho a pé.

Quando chegou no caminho que levava até a porta da choupana, ela descobriu que era essencialmente uma trilha de chão batido, levando a uma colina íngreme para dentro da floresta. Ela nem conseguia avistar a choupana da estrada.

Ao começar a subida, Keri se perguntou pela terceira vez na última hora se deveria ligar para Ray. Eles não haviam se falado desde que ele abraçou a teoria de Hillman sobre Ashley ter fugido, no local em que encontraram a van. Ela sabia que não deveria deixar sua raiva estar no caminho num momento como este. Entrar furtivamente na propriedade de um suspeito potencialmente perigoso era arriscado sob quaisquer circunstâncias.

Mas, sozinha, era ainda pior.

Por fim, ela disse a si mesma que estava protegendo-o ao não ligar. Hillman já a havia suspendido. O que ele faria com Ray se ele a ajudasse? Parte dela sabia que ela estava se enganando. Ray viria se ela pedisse, sob qualquer circunstância.

Ela afastou esse pensamento. Era tarde demais para isso. Estava sozinha. E precisava caminhar na ponta dos pés.

O aroma de pinheiros flutuou pelo ar enquanto ela subia mais. Sua respiração se tornou difícil. Ela sentia o suor escorrer pelas suas costas. Keri vivia numa casa-barco numa marina — a melhor definição do nível do mar. Este lugar estava a quase dois mil metros de altitude. E a manhã fria começava a dar espaço para o calor do fim do verão. Ela estimou que já estava passando dos 27 °C. E suas dores e machucados do bate-boca com Johnnie Cotton e Crabby, o cafetão, não estavam ajudando. Caminhar era uma luta.

De repente, um baque alto perfurou o ar — um tiro vindo de cima. Aparentemente, Payton Penn estava em casa e estava armado.

Keri confirmou o status da sua arma e conferiu o sinal do celular. Ainda estava surpreendentemente forte. Ela apertou o passo, consciente de que agora era, tecnicamente, uma civil com uma arma entrando na propriedade privada de um cidadão. Ela estava invadindo. Payton Penn poderia atirar nela e tornar isso um caso razoável de legítima defesa.

Pela fração de um segundo, Keri considerou voltar. Esse não era o plano mais inteligente. Mas, se ela não fosse lá em cima, não tinha certeza de quando, ou se, alguém mais iria. Como se sentiria se descobrisse, mais tarde, que estava tão perto de Ashley e não deu os últimos passos para chegar até ela?

Keri subiu pela estrada de terra, um passo cuidadoso de cada vez, tomando cuidado com rochas e árvores próximas no caso de precisar se esconder. Ela estava mais perto do local dos tiros agora. Eram intermitentes, o que condizia com a prática de tiro ao alvo.

Ela estava longe o suficiente para não conseguir mais ouvir o barulho dos carros da estrada abaixo. A não ser pelos ecos dos tiros, era silencioso aqui em cima. As árvores altas abafavam o barulho e bloqueavam o sol. A sensação era mais de um crepúsculo do que daquela hora da manhã, 9h45. A estrada serpenteava no sopé de uma montanha, levando à choupana isolada. Keri percebeu que, a essa distância, ninguém poderia ouvir alguém gritando por ajuda.

Levou mais dez minutos de caminhada antes da choupana aparecer. O velho lugar decrépito ficava numa ampla clareira no meio de um círculo de árvores. Uma velha pickup estava estacionada perto da porta da frente. Agora, os tiros, vindos de trás da choupana, podiam ser ouvidos quase que perfeitamente.

Keri espiou por trás de um rochedo coberto de musgo e avaliou o lugar. Ninguém estava à vista. Os tiros continuavam. Se era uma prática de tiro ao alvo, era uma sessão longa. O cara estava nitidamente se divertindo. Keri se perguntava como ele reagirira se a visse, ambos com uma arma.

Seu coração batia forte. O suor descia pela sua testa e caía dentro dos seus olhos. Ela o enxugou com as costas da mão, acalmou sua respiração, examinou a área uma última vez e se dirigiu rapidamente para a choupana. Se Payton aparecesse subitamente, Keri estaria em plena vista.

Os tiros pararam.

Ele está recarregando? Ele terminou e está voltando para a choupana?

Ela foi até a pickupe e se agachou atrás do veículo, ouvindo atentamente. Em algum lugar acima, dava para ouvir o motor de um jato. À sua direita, abelhas trabalhavam num trecho com cactos selvagens, zumbindo levemente enquanto voavam das flores de uma planta espinhosa para outra.

Keri saiu de trás da pickup, ficou ali de pé, em campo aberto por um instante, e então, silenciosamente, foi até o lado da choupana, onde espiou pela porta de tela. O lugar era bem como ela esperava — um sofá grande, uma mesinha de centro de madeira velha com um laptop ultrapassado coberto de poeira sobre ela, um fogão à lenha, uma pia cheia de pratos sujos, entulho por todo lado. Fumaça de cigarro pairava no ar.

Não havia sinal de Ashley.

De repente, a porta dos fundos da choupana se abriu e alguém entrou, ainda não visível. Segundos depois, Penn entrou no cômodo principal. Ele tinha uma incrível semelhança com Stafford, mas parecia mais endurecido, mais castigado pela vida. Ele tinha a barba por fazer e seus olhos eram injetados. O destino tinha sido mais duro com ele do que com Stafford. Usava jeans sujos e uma camiseta vermelho vivo. O suor encharcava as axilas da camisa. Ele colocou duas pistolas sobre a mesa de centro. Então, foi até a geladeira, pegou uma cerveja e tirou a tampa.

Keri decidiu que era um bom momento, como qualquer outro, para entrar. Ela empurrou a porta de tela destrancada e entrou na casa.

"Não se mova!" ela gritou, com a arma apontando para seu peito. Eles estavam a menos de dois metros de distância.

Payton Penn obedeceu. A cerveja estava nos seus lábios e ele não fez nenhum movimento para baixá-la. Ele parecia surpreendentemente calmo, considerando as circunstâncias.

"Onde está Ashley Penn?" Keri perguntou.

O homem sorriu.

"Posso abaixar esta cerveja? Você disse não se mexa e eu não quero quebrar as regras".

Keri assentiu. Ele afastou a garrafa dos lábios e se esticou para colocá-la mesinha lateral. Mas, no último instante, ele virou a garrafa direção dela e lançou-a com força sobre Keri.

A policial havia se preparado para algo do tipo e desviou da garrafa. Ela sentiu um pouco de cerveja respingar no seu pescoço, mas, a não ser por isso, evitou completamente o contato. Payton pareceu perceber que a tinha subestimado, mas era tarde demais. Ela não estava mais diretamente no caminho dele e ele não podia interromper seu momentum.

Keri tirou o dedo do gatilho e deu uma coronhada nele, de modo que a cabeça de Payton bateu na base do punho da pistola. As pernas do homem vacilaram e ele caiu no chão, consciente, mas desorientado.

"Levante-se", Keri ordenou, jogando as algemas nele. "E coloque-as. Se tentar mais alguma coisa, atiro na rótula do seu joelho".

Ele ficou de pé.

"Bem, isso é interessante", ele disse, sorrindo, e acrescentou, "Está com medo de atirar em mim em algum lugar permanente?"

Ela apontou a arma para o peito dele e estreitou os olhos.

"Se não me disser onde está Ashley, você não será muito útil para mim. Eu talvez tenha que levá-lo lá para trás e usar você para praticar tiro ao alvo".

Parte dela esperava que ele revidasse. A ideia de fazê-lo sangrar e chorar era extremamente atraente. Mas isso não ajudaria Ashley. Ele parecia sentir que ela estava no limite e colocou as algemas sem discutir. Então, pareceu recuperar sua coragem e a encarou. Seus olhos brilhavam. Naquele momento, Keri percebeu que ele era meio louco.

"Além de exigir meu advogado, eu gostaria de invocar meu direito de permanecer em silêncio", ele disse, antes de acrescentar, com uma piscadela, "E agora?"


CAPÍTULO VINTE E SEIS


Terça-feira

Final da manhã


Keri revistou Penn às pressas antes de algemá-lo ao aquecedor. Então, ela fez uma busca pela propriedade, gritando o nome de Ashley. Ela abriu várias portas e bateu em quantas paredes pôde sem bagunçar as coisas demais para a CSU. Quando chegassem na choupana, iam querer a cena o mais pristina possível e ela não queria fazer nada que pudesse comprometer evidências. Mas não encontrou nada que ligasse Ashley ao lugar.

Enquanto isso, o tempo inteiro em que ela buscava, Payton Penn repetia a mesma palavra várias e várias vezes, como um mantra: "Advogado".

Por fim, ela decidiu levá-lo, mas não para a Pacific Division, que ficava a duas horas de carro e tinha um tenente irritado esperando para confiscar o distintivo e a arma dela. Provavelmente, nada que aconteceu na choupana iria fazer Hillman mudar de ideia sobre isso. Ela ligou para a subestação Twin Peaks, do departamento do xerife de San Bernardino, para avisá-los que teriam visitantes.

Ao revistar Payton Penn antes de levá-lo morro abaixo, ela descobriu um celular em seu bolso. Estava emitindo um bip baixo a cada três segundos.

"O que é isto?" ela perguntou.

"Advogado", ele perguntou.

Keri o jogou no sofá, frustrada.

"Falando sério", ele disse, "é um sinal de alerta que vai para o meu advogado. Eu o acionei enquanto você fazia uma busca ilegal na minha casa. Já que não confio que me deixará entrar em contato com ele, eu mesmo fiz isso. Então, se está pensando em continuar me irritando, apenas saiba que meu advogado estará aqui em breve".

"Que tipo de pessoa tem um sinal de alerta no celular para contactar seu advogado? É como um bat-sinal para otários".

"Advogado", Payton Penn disse, voltando a sua atitude não-cooperativa.

Keri deixou o celular no sofá enquanto desciam a montanha. Se o advogado estava em seu encalço, ele pelo menos seria um pouco retardado pelo aparelho.


*


Keri estava frustrada. Enquanto esperava sentada na subestação Twin Peaks, duas horas depois de prender Payton Penn, ela não estava mais perto de encontrar Ashley do que quando irrompeu pela porta daquela choupana.

Ela tentou interrogá-lo várias vezes pela pequena cela no canto da sala, mas ele apenas continuava repetindo "advogado", e um número de telefone com o código de área 213. Isso significava que seu advogado ficava no centro de Los Angeles, e não era um matuto local. O xerife, um homem chamado Courson, deve ter percebido isso também, porque houve um momento em que ele puxou Keri de lado e disse a ela que não tinha outra opção a não ser ligar para o número. Eles não queriam um processo por violação de direitos civis de algum advogado rico de LA. Não podiam se dar a esse luxo.

Então, ele deu a ela notícias ainda piores. Ele havia ligado para o chefe dela na Pacific Division para informá-lo sobre a detenção, falou com um cara chamado Hillman, que queria que ela ligasse para ele imediatamente. O xerife disse que ela podia fazer uma vídeo-conferência em seu escritório, onde teria alguma privacidade. Ela agradeceu e, relutante, fez a ligação do equipamento de vídeo do xerife, surpreendentemente moderno.

Hillman e Ray apareceram na tela. Ela ficou feliz porque, pelo menos, não era o pelotão inteiro.

"Poderia se explicar?" Hillman perguntou. Ela começou a falar.

"Senhor, Payton Penn tem um motivo para raptar Ashley. Seu próprio irmão suspeita que a carta ameaçadora que eles receberam veio dele. E aquela nota na van que todo mundo estava tão certo de que Ashley escreveu pode ser forjada. Payton ficou com a família do seu irmão há poucos meses. Mia me contou que ele não era supervisionado. Poderia ter facilmente pego os artigos de papelaria do quarto de Ashley. Ter pego coisas que ela havia escrito e usado-as para escrever uma nota que podia se passar como a letra dela. Se ele tem planejado isso há algum tempo, então, teve a oportunidade de praticar".

Para sua surpresa, nenhum dos dois falou.

"O que foi?" ela perguntou.

Hillman parecia quase envergonhado quando começou a explicar.

"Sobre isso... o FBI me contou que eles começaram a análise preliminar da mensagem de Ashley e encontraram algumas... anomalias".

"O que isso significa?"

"Significa que eles não têm mais certeza de que foi ela quem escreveu".

Keri tentou não passar na cara dele, mas não se conteve e cutucou:

"Você ainda quer minha arma e distintivo?"

A vergonha desapareceu do rosto de Hillman.

"Não fique convencida, Locke. Nós dois sabemos que a ligação não caiu mais cedo. Além disso, no meu entender, você não encontrou nada que o incriminasse na choupana".

"Eu só pude fazer uma busca superficial. Preciso voltar e fazer uma mais aprofundada".

"E fará isso, assim que tiver um mandato".

"As circunstâncias exigem, senhor".

"Quando você entrou na casa pela primeira vez, talvez. Mas isso não vai mais colar. Precisamos seguir as regras a partir de agora. Dê-nos uma ou duas horas aqui e nós teremos resolvido toda a papelada. Você pode esperar na estação aí em cima e liderar a busca assim que obtivermos a aprovação. Estou enviando Sands para ajudar. Ele deve chegar na hora em que tivermos o mandato autorizado".

Ray mudou de posição desconfortavelmente ao lado de Hillman, mas não disse nada. O xerife Courson apareceu na porta do escritório.

"O advogado de Penn está aqui", ele disse. Keri assentiu.

"Tenho que ir", ela disse a Hillman.

"Certo. Mas você não deve dar mais nenhum passo sem autorização. Está entendido?"

"Sim, senhor", ela disse, antes de desligar e voltar para a sala principal da delegacia.

Mesmo antes do xerife apresentá-lo, Keri já sentiu aversão pelo advogado. Na superfície, ele era atraente. Seu cabelo preto liso estava puxado para trás, como o de um lobo de Wall Street dos anos 80. Ele tinha um sorriso largo que lembrava-a vagamente do Coringa, dos filmes do Batman. Seus dentes eram artificialmente brancos e sua pele era artificialmente bronzeada. Seu terno provavelmente custava mais de cinco mil dólares. Quase tudo nele transpirava falta de sinceridade. Tudo, a não ser seus olhos, brilhantes e alertas, e atualmente focados nela.

"Detective Keri Locke", disse o xerife Courson, "este é o advogado do Sr. Penn, Jackson Cave".

Cave caminhou na direção dela e estendeu a mão. Keri se forçou a não reagir visivelmente, ainda que cada uma de suas terminações nervosas estivesse no limite. Este era o homem que potencialmente poderia levá-la ao Colecionador, e talvez até a Evie.

"Prazer em conhecê-la, detetive", ele disse, enquanto segurava a mão dela entre as suas e lhe dava aquele aperto de mão de político cafona que era tão comum hoje em dia. "Tenho ouvido falar muito de você recentemente".

"Posso dizer o mesmo do senhor, advogado", ela disse, fitando-o sem piscar.

"Ah, isso é curioso", ele disse, parecendo sinceramente intrigado. "Talvez pudéssemos tomar um drinque alguma hora e trocar histórias de guerra, num lugar menos... rústico".

Do canto do olho, Keri podia ver que o xerife Courson parecia ter gostado tanto de Jackson Cave quanto ela.

"O senhor pode esperar sentado".

"Claro. E eu sugiro que você também espere sentada caso queira manter meu cliente preso por mais tempo. Ele será liberado em poucas horas, assim que retornarmos a um tribunal de LA e mostrarmos a um juiz as imagens em que o Sr. Penn aparece no trabalho o dia todo ontem, incluindo na hora exata do suposto rapto da sobrinha. Parece que você perdeu a viagem até aqui em cima numa caça ao pé grande, detetive".

"Eu não diria que foi uma viagem perdida, Sr. Cave. Afinal, eu o conheci. E tenho a impressão de que vamos esbarrar um no outro novamente".

Ela fez um sinal com a cabeça para o Xerife Courson e ele a seguiu até seu escritório.

"Xerife, preciso lhe pedir um favor".

"O que é?"

"Poderia retardar esse negócio o máximo possível? Não se ofereça para levar Penn de volta a LA. Peça que a LAPD ou o xerife do condado venha e assuma a custódia. Leve o tempo que puder com a papelada. Em outras palavras, torne o processo mais lento. Preciso de tempo para ganhar uma vantagem neste caso antes que esse otário do Cave comece a estragar tudo. A vida de uma garota pode depender disso".

"Honestamente, detetive, eu estava inclinado a fazer tudo isso por conta própria. Payton Penn tem sido um incômodo para mim há anos, e seu advogado não me agradou muito também".

"Ótimo. Posso sair diretamente pelo seu escritório? Quanto mais tempo levar antes de Cave perceber que fui embora, mais vantagem posso ter".

"A porta fica bem ali", ele disse.

Keri não precisava ouvir duas vezes.


*


No caminho de volta para a casa de Payton Penn, Keri ligou para Ray.

"Vou subir de volta para a choupana", ela disse a ele, sem nem dizer bom dia.

"Também é bom falar com você, parceira", ele disse, claramente, tão irritado quanto ela estava com ele. "Não faça nada estúpido, Keri. Estou a caminho de lá agora. Teremos o mandato em breve. Apenas espere por ele".

"Ashley pode estar morta até lá".

"Ainda não estamos nem cem por cento certos de que ela foi raptada, quanto mais por este cara".

"Raymond, você preferiria ser demasiadamente agressivo e estar errado ou descuidado demais e estar errado? Se eu estiver errada, o pior que pode acontecer é eu ser demitida ou processada. Mas se ela foi levada e nós desacelerarmos agora, uma garota poderia terminar morta. Não é uma decisão difícil".

"Certo, mas se ele é o cara e você encontra algo sem um mandato? Pode ser inadmissível num tribunal".

"Consegui luvas de borracha e serei cuidadosa, para não deixar nenhum rastro. Eu já estive no lugar para prendê-lo. Então, encontrar meu DNA não será surpresa.

"Há alguma coisa que eu possa dizer para lhe fazer esperar?" ele suplicou.

"Você pode me dizer que Ashley Penn acabou de ser encontrada sã e salva. Menos que isso, não".

Ela ouviu Ray dar um suspiro profundo.

"Vou estar lá em cima em cerca de noventa minutos. Por favor, tenha cuidado".

"Pode deixar, Godzilla".


CAPÍTULO VINTE E SETE

 

Terça-feira

Fim da manhã


Quando voltou a si, a primeira coisa que Ashley sentiu foi dor. Era tão intensa que ela, de início, não podia identificar de onde estava vindo. Parte sua estava com medo demais para abrir os olhos e conferir. Pelo menos, ela sabia que estava deitada sobre suas costas. A não ser por isso, tudo estava confuso. Ela não tinha ideia de por quanto tempo havia desmaiado.

Inspirou fundo e se forçou a abrir os olhos. A primeira coisa que notou foi que havia aterrissado bem no meio da área acolchoada que ela havia criado com o colchão. A segunda coisa que ela notou foi que sua cabeça estava latejando de dor. Seu corpo pode ter batido no chão primeiro, mas, provavelmente, a parte de trás de sua cabeça também. Havia sangue por todo lado.

Ela olhou para sua mão esquerda dolorida e viu que o pulso estava dobrado de forma não-natural. Era óbvio que estava quebrado. Sua perna direita também latejava. Ela virou a cabeça para olhar melhor. Algo definitivamente estava errado com sua canela. Toda a parte inferior da perna estava inchada, quase do tamanho de uma bola de futebol. Ela mudou de posição e, involuntariamente, gritou de dor. O cóccix parecia ter se partido ao meio. Se foi nele que ela aterrissou, provavelmente ele se partiu.

Ashley se forçou a rastejar em direção à porta do silo. Cada movimento enviava pontadas de dor por todo o seu corpo. Com olhos cheios de lágrimas, ela viu o que parecia uma mesa de exames reconfigurada, num canto. Havia tiras nos lados e um encosto de cabeça. Decidiu não pensar em para que ela poderia ser usada.

Havia uma pequena mesa e uma cadeira ao lado da porta, em que ela se apoiou para se levantar. Sentou-se cautelosamente na borda da mesa enquanto recuperava o fôlego. Estava brutalmente quente na base do silo e seu corpo seminu estava pegajoso por causa da mistura de manteiga de amendoim, suor e sangue. Ela percebeu que as roupas que havia jogado pelo funil ainda estava sobre a pilha que havia amortecido a queda, mas não havia como voltar para pegá-las.

Ashley levou a mão até a maçaneta e um pensamento terrível lhe ocorreu.

E se eu passei por tudo isso e a porta estiver trancada do lado de fora?

Ela começou a rir, consciente de que estava um tanto histérica, mas incapaz de parar. Eventualmente, ela se acalmou, agarrou a maçaneta e empurrou.

Abriu. A luz do sol inundou o lugar, cegando-a temporariamente. Quando seus olhos se ajustaram, ela levou um momento para avaliar a área. Do lado de fora, tudo estava em silêncio e parecia normal. Um pássaro voou perto, uma suave brisa soprou em seu cabelo. A cerca de cem metros, havia uma antiga casa de fazenda. Atrás dela, estava um celeiro dilapidado. Ao redor, havia campos estéreis que não eram cultivados há anos.

Ela agarrou a cadeira e se dirigiu à direção oposta, descendo por um caminho de terra batida coberta por mato e folhas secas. Ela usava a cadeira como um tipo de andador, mancando por causa de sua perna esquerda enquanto se apoiava com sua mão direita e antebraço esquerdo. Ela virava a cadeira e se sentava quando precisava descansar.

Ashley seguiu pela estrada até o topo de um colina. Quando chegou lá, o que viu a fez querer gritar de alegria. Havia uma estrada pavimentada a cerca de duzentos metros de distância. Era um longo caminho, mas, se ela conseguisse chegar, poderia pedir ajuda.

De repente, ouviu o inconfundível som de um carro. Virando a esquina, vinha um sedã prata conversível. Duas mulheres jovens, provavelmente apenas alguns anos mais velhas que ela, estavam sentadas na frente.

Sem pensar, ela gritou.

"Ei! Aqui! Ajudem-me! Por favor!"

Ela balançou seu braço bom desesperadamente. Elas estavam longe demais para ouvi-la, de todo modo, mas, quando o carro passou, Ashley ouviu música alta ecoando dos alto-falantes. Elas nem mesmo olharam em sua direção.

O silêncio retornou à fazenda. Então, ela ouviu um baque surdo, como uma porta de tela sendo fechada com força. Ela olhou na direção da casa de fazenda. Um homem estava de pé na frente da casa. Ele estava usando a mão para proteger seus olhos enquanto patrulhava o horizonte.

Ashley, percebendo que estava no topo de uma colina, imediatamente se jogou no chão e ficou deitada. Ela agarrou uma perna da cadeira, tentando virá-la de lado, mas o esforço necessário era imenso, e levou uns bons dez segundos antes que a cadeira tombasse.

Ela esperou, ofegando em silêncio, esperando não ter sido vista por milagre.

Então, ao longe, ela ouviu a porta de um carro se fechar e um motor ser ligado. O ruído aumentou à medida que o veículo ganhava velocidade. Estava chegando mais perto. Ela rolou para o outro lado da colina, o melhor que podia, ignorando a dor, tentando se afastar o máximo possível da estrada de terra.

O veículo parou. Ficou imóvel enquanto uma porta se abriu e então se fechou. Ashley ouviu passos se aproximando. Uma figura apareceu no topo da colina, mas o sol estava nos seus olhos e ela não podia distinguir quem era. Ele deu um passo à frente, bloqueando os raios.

"Olá", ele disse, amigavelmente.

As lembranças que ela havia bloqueado inundaram o cérebro de Ashley mais rápido do que ela podia processar. A jovem reconheceu o homem. Ele era o cara que ela havia visto há duas noites, na loja de conveniência perto da escola. Ela se lembrava dele flertando com ela e como ela gostou, porque ele era bonito e provavelmente tinha pouco mais de 30 anos. Seu nome era Alan. Ela até mesmo teria lhe dado seu número, se não fosse por Walker. E ele era o mesmo cara que enconstou perto dela numa van preta depois da escola, na tarde de ontem. Ela teve apenas um segundo para registrar que era ele antes de tudo ficar escuro. Essa era a última coisa de que se lembrava antes de acordar no silo.

E agora ele estava de pé sobre ela, o homem que a raptou, saudando-a com simpatia, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

"Você não parece bem", ele disse, ao se aproximar. "Está toda ensanguentada. Seu pulso e perna estão num péssimo estado. E, por Deus, você está seminua. Realmente, deveríamos levá-la de volta para dentro e examiná-la. Então, podemos retomar os experimentos".

Enquanto ele se aproximava, mesmo que ela soubesse que ninguém poderia ouvi-la, Ashley começou a gritar.


CAPÍTULO VINTE E OITO


Terça-feira

Meio-dia


Keri vestiu as luvas de borracha e entrou na choupana de Payton Penn pela segunda vez naquele dia. Ela caminhou pelo terreno ao redor antes de entrar, para checar a possibilidade de Ashley estar sendo mantida em algum local subterrâneo. Mas não encontrou nada.

Isso não a surpreendeu. Com seu álibi hermético, não havia como Penn poder ter levado Ashley ele mesmo, o que significava que ele teve que ter ajuda. E se ele não quis sujar as mãos, não fazia sentido fazer com que a trouxessem de volta para sua própria casa. Ela estava sendo mantida em algum outro lugar.

Portanto, a primeira coisa que ela fez ao entrar na choupana foi abrir o laptop velho que ficava sobre a mesa de centro. A poeira que havia se acumulado sobre ele deixou-a nervosa. Isso significava que não era usado há algum tempo. Era de se esperar que Penn viesse mantendo contato com seu comparsa regularmente.

Uma busca rápida mostrou que o histórico da internet foi limpo. Nada suspeito em si. Mas, no contexto, isso aumentou sua desconfiança.

Por que um cara que vive sozinho numa choupana isolada limpa seu histórico? Não precisa esconder sites pornográficos de ninguém, por exemplo. Então, o que ele está escondendo?

Ela acessou os favoritos dele e entrou na sua conta do Yahoo. Para um cara que era tão cauteloso com seu histórico de busca, ele era bem descuidado o email. Não havia se deslogado da última vez em que esteve online e a página carregou diretamente para sua caixa de entrada, ao invés de requerer uma senha. Keri fez algumas buscas rápidas — "raptar", "sobrinha", "Penn"— sem sorte. Ela pensou por um momento, e então tentou "van". Um email apareceu com o nome de usuário bambamrider22487. Ela fez uma busca por outros emails com esse nome e acertou em cheio.

O primeiro era de bambamrider22487, enviado há um mês, e dizia:


Re: O Grande Jogo:

Através de nosso amigo mútuo, eu concordei em vender meu ingresso para você. Vai custar US$20. Estará esperando por você sob o assento 21, na parte superior da seção 13 do Estádio Dodger, nesta quinta-feira à noite. Se pegá-lo, presumo que você quer assistir e o preço é alto.


Payton, com o nome de usuário PPHeeHee, respondeu:


Estarei lá.


A próxima troca de emails foi duas semanas mais tarde, de Payton Penn para bambamrider22487. E dizia:


Como solicitado, tenho uma van para o jogo. Está no estacionamento recomendado. As chaves estão presas com fita adesiva no estepe, no lado do motorista.


A troca de emails seguinte foi há uma semana, de bambamrider22487 para Payton Penn:


O jogo é daqui a uma semana, contando a partir de hoje. 1500-West. Por favor, confirme. Esta é a última chance de cancelar a participação.


Payton respondeu uma hora depois:


Confirmado.


Algumas coisas eram fáceis de descobrir. O grande jogo era, obviamente, o rapto. Ela suspeitava que o preço de US$ 20 significava US$ 20 mil para levar Ashley. A van era auto-explicativa. 1500-West correspondiam, quase certamente, às horas no formato militar, significando 15h na West Venice High.

Mas se Payton estava no jogo do Dodgers, ele já tinha um ingresso. Então, o que era o "ingresso" deixado sob o assento? Então, ocorreu a Keri. Havia algo em um dos emails dizendo, "Como solicitado, tenho uma van para o jogo".

Mas não havia nenhum email solicitando uma van. Deve ter sido verbalmente. O "ingresso" era um celular, provavelmente, um descartável. Keri olhou para o celular de Payton sobre o sofá onde ela o havia jogado mais cedo. Era um Android sofisticado — definitavemente, não um descartável. Isso significava que o outro estava em algum lugar da casa, provavelmente bem escondido, considerando sua natureza delicada.

Keri fechou o laptop e olhou ao redor. Ela tentou se colocar no lugar de Payton Penn. Onde ele esconderia o celular?

Ele é cuidadoso o bastante para saber que precisa esconder o celular. Ele limpou seu histórico de busca. Mas também deixou seu email acessível. Ele foi esperto o bastante para configurar algum tipo de sinal de emergência no celular para contatar seu advogado. Mas também admitiu isso para mim. Este homem é uma combinação de paranoico, desleixado, preguiçoso e convencido. Onde um cara assim deixaria seu celular?

Ocorreu-lhe que ele ia querer que o aparelho estivesse facilmente acessível de qualquer lugar que estivesse na pequena choupana, mas não muito na cara. Estava, provavelmente, nesta sala. Enquanto seus olhos escaneavam os arredores, Keri imaginou Payton correndo para pegar o celular, esperando chegar até ele antes de acessar seu email.

Perto, mas não perto demais.

E então seus olhos recaíram sobre o único item na choupana que não parecia pertencer a Payton Penn. Sobre a cornija acima da lareira, entre uma lata vazia de cerveja e um caixa vazia de DVD de algo intitulado Quase ilegal: Volume 23, estava um pequeno relógio antigo, com o tamanho aproximado de uma caixa de lenços, com números romanos ornamentais na frente. Não parecia o estilo de Payton, na opinião de Keri. Além do mais, marcava 6h37, e agora eram 12h09.

Ela caminhou até lá e o pegou. Era muito mais leve que o esperado e ela podia ouvir um ruído de algo dentro ao sacudir o objeto. Ela sentiu ao redor das bordas até seu dedo roçar num pequeno entalhe na madeira do fundo. Ela o apertou e o fundo inteiro do relógio cedeu. Dentro, havia um pequeno cubo com um celular com flip dentro.

Keri retirou o celular e olhou o histórico de ligações. Começando há três semanas, várias chamadas chegaram até Payton, de diferentes números. Ela ligou para cada um. O primeiro era de um telefone público. O segundo era de um orelhão diferente; o mesmo para o terceiro e para o quarto. Então, no sétimo número, após chamar seis vezes, a ligação terminou numa breve mensagem de secretária eletrônica.

"Deixe uma mensagem". A voz era calma e comum, mas Keri sentiu que tinha que ser do raptor de Ashley. Ela colocou todos os números em seu próprio celular, cuidadosamente devolveu o de Payton para o relógio, colocou-o novamente sobre a cornija e saiu da choupana.

De volta em seu carro e descendo a estrada sem fim que levava até o lar de Payton, ela fez três ligações. A primeira foi para o detetive Edgerton, na delegacia. Ele era o guru de tecnologia da unidade. Keri deu a ele todos os números e pediu que rastreasse suas localizações. Ela também forneceu o nome de usuário do Yahoo "bambamrider22487". Tinha quase certeza que era uma conta anônima. Esse cara era muito mais cauteloso que Payton. Então, ela pôs Edgerton na espera enquanto ligava para o xerife Courson. Foi breve e objetiva.

"Xerife, estou saindo da cidade, mas me dei conta de que não tem ninguém protegendo a choupana de Payton Penn. Nossa equipe CSU ainda vai levar mais uma hora, mais ou menos, para chegar lá. Eu iria odiar se alguém, vamos dizer, um advogado ricaço de LA, fosse até a cabana e 'limpasse' o lugar. Talvez você possa enviar alguém do seu pessoal para fazer a segurança do local até a chegada da nossa equipe".

"Acho que essa é uma ideia maravilhosa, detetive", Courson concordou. "Um oficial estará lá em dez minutos".

"Obrigada", ela disse, antes de voltar para Edgerton, que já tinha as informações de que precisava.

Sua próxima ligação era para Ray, mas caiu direto na caixa postal. Isso não foi uma surpresa, já que ele estava provavelmente subindo pelas montanhas até Twin Peaks no momento, numa área com sinal limitado. De toda forma, ela deixou uma mensagem.

"Ray. Espero que você ouça essa mensagem em breve. Payton Penn está envolvido. Encontrei emails entre ele e um raptor de aluguel na choupana. Também encontrei um celular de fachada com números no histórico. Edgerton rastreou os números para mim. O último tinha um endereço e um nome — Alan Jack Pachanga, 32 anos. Ele entra e sai da cadeia desde que era adolescente, principalmente por brigas, assalto à mão armada e outras coisas boas. Mas ele ficou meio fora do radar nos últimos dois anos. Vive numa fazenda perto de Acton. Edgerton pode lhe dar os detalhes exatos se você ligar para ele. Estou indo para lá agora. A esta hora do dia, com sirene, acho que vou levar pouco mais de uma hora. Talvez queira se juntar a mim? Vou tentar me conter até você chegar lá. Mas você me conhece, sempre faço algo estúpido".

Ela desligou e jogou o celular no banco do passageiro, percebendo que ainda devia estar um pouco chateada com seu parceiro por não ficar do seu lado mais cedo. Ou havia algo mais?

Ela afastou o pensamento. Eles trabalhariam em seus problemas mais tarde.

Enquanto Keri entrava na rodovia 138 e se dirigia ao oeste, ela colocou a sirene no teto e pisou fundo no acelerador, indo o mais rápido que a estrada montanhosa permitia.

Aguenta firme, Ashley. Eu estou chegando.


CAPÍTULO VINTE E NOVE


Terça-feira

Início da tarde


O caminho mais rápido para Acton, partindo de Twin Peaks, era pela rodovia 138 oeste, já que ela cortava caminho e circulava a Floresta Nacional Angeles, ao norte. Na maior parte do trajeto, ela era de mão dupla, mas, com a sirene ligada, os motoristas puxavam rapidamente para o lado e ela podia andar muito mais depressa. Em pouco mais de uma hora, Keri entrou na rodovia 14 no Antelope Valley e se aproximava dos limites de Acton, onde a fazenda de Pachanga estava localizada.

Ela passou pela entrada da propriedade, cujo portão estava trancado com uma corrente, e dirigiu por mais quatrocentos metros antes de retornar. Ela saiu da estrada a cerca de cem metros da fazenda e dirigiu lentamente o Prius ao longo da estrada de terra, estacionando atrás de um monte de arbustos altos, que esconderiam o carro muito bem, a menos que alguém chegasse perto.

Pegou seus binóculos e tentou ter uma ideia da fazenda. Infelizmente, um caminho de terra batida — parecia mais uma trilha, na realidade — levava até uma colina e ela não podia ver o que estava do outro lado da subida.

Keri pegou o celular para ligar para Ray, que não havia retornado. Só então percebeu por quê. Agora, ela não tinha sinal de celular. Era de se esperar, num lugar tão afastado. Em retrospecto, ela deveria ter ligado para ele quando estava passando perto de Palmdale, onde ela certamente teria sinal.

Ela notou o ícone de envelope piscando e percebeu que tinha uma mensagem de texto, apesar de não ter ouvido-a chegar. Era de Ray, e dizia:

"Cheguei em Twin Peaks. Recebi sua mensagem. A caminho da fazenda. Não seja estúpida. Espere por mim".

A hora de envio era 13h03, há cerca de meia hora. Se ele dirigisse tão rápido quanto ela, chegaria em cerca de trinta minutos, um pouco depois das duas. Keri poderia esperar tanto?

Seus pensamentos foram para Jackson Cave. Obviamente, Payton Penn havia falado com ele. E se ele disse a Cave para contactar Pachanga e dizer a ele que a prisão estava iminente e que ele devia se livrar de qualquer evidência de seu crime, incluindo Ashley? Era uma preocupação razoável. Se isso aconteceu, ela podia já estar atrasada demais. Esperar mais meia hora seria irresponsável.

Keri não tinha escolha.

Tinha que entrar.


*


Keri pegou sua arma e binóculos, vestiu seu colete à prova de balas, pôs os óculos de sol e caminhou pela estrada silenciosa que levava até a propriedade de Pachanga.

Chegando ao portão da fazenda, Keri notou que, apesar do portão e da corrente estarem enferrujadas, o cadeado era brilhante e novo em folha. Uma placa suja dizia:

Propriedade privada.

Não ultrapasse.

Ao invés de tentar pular o portão, ela se agachou para passar entre a cerca de arame farpado que circulava toda a propriedade e começou a subir a colina. Não caminhava pela estrada em si, no caso de um carro aparecer de repente, mas a cerca de dez metros de distância, onde ela podia se jogar nos densos arbustos, para se esconder.

Quando se aproximou do topo, Keri deitou de barriga no chão e se arrastou pelo resto do caminho. Ela levantou sua cabeça e examinou toda a área.

Em alguma época, deve ter sido uma fazenda produtiva. Havia campos demarcados, um silo de grãos, um celeiro e uma casa de fazenda. Mas obviamente não era usada com esse propósito há muitos anos. Os campos estavam cobertos de mato e havia vários tratores velhos assombrando silenciosamente aquelas terras. De fato, vários veículos enferrujados pontilhavam a propriedade. Nenhum parecia estar em condições de funcionar. O celeiro estava caindo aos pedaços. E o silo também estava coberto de ferrugem. O leito seco de um riacho dividia o meio da fazenda em duas metades.

Não havia muita cobertura para ela descer a colina e olhar ao redor. Keri teria que rastejar por mais cinquenta metros através dos arbustos antes de chegar a uma área com árvores, que corria ao longo do riacho até a casa de fazenda. De lá, ela poderia usar algumas das árvores e veículos abandonados para esconder sua aproximação do silo e do celeiro. Seria um processo lento, mas realizável.

Ela checou seu celular pela última vez — ainda sem sinal. Keri colocou-o no silencioso por precaução, enfiou os binóculos no bolso e começou a descer a colina.

Dez minutos depois, chegou na casa da fazenda. A porta da frente estava trancada. Ela circulou a casa, agachada, espiando pelas janelas, mas não viu movimento algum. Então, dirigiu-se para o celeiro, movendo-se rapidamente atrás de uma perua sem pneus e várias árvores ao longo do caminho.

Chegou na entrada e olhou para dentro. Não viu ninguém, mas, no meio do celeiro, logo abaixo do palheiro, estava uma pickup vermelha brilhante.

Pachanga deve estar aqui em algum lugar!

Ele deve ter posto o veículo no celeiro para mantê-lo escondido de quem passava pela estrada. Cuidadosamente, ela foi até a caminhonete e olhou pela janela aberta. As chaves estavam na ignição.

Keri silenciosamente puxou as chaves e colocou-as no bolso da sua calça. Pelo menos agora, se ela encontrasse Ashley, tinha uma maneira de tirá-la dali. E a menos que um daqueles tratores ainda funcionasse, Pachanga não teria como segui-las.

Um som alto de algo batendo em metal tirou-a de seus pensamentos otimistas.

Ela correu para trás do celeiro para ver de onde tinha vindo.

Um homem estava descendo a escada fixada na lateral do silo. O som deve ter vindo dele fechando o alçapão no topo. Ela não podia ver seu rosto, mas seu cabelo era loiro, queimado de sol. Ele vestia jeans, botas de trabalho e uma camiseta branca que contrastava com sua pele bronzeada. Da distância em que estava, Keri estimou que não era muito alto, talvez 1,70 m de altura. Mas seu corpo era forte e musculoso. Ela imaginou que ele pesava mais de 90 kg e seus bíceps se sobressaíam das mangas da camisa.

Keri não pôde deixar de se perguntar se este era o Colecionador. Seria este o homem que havia levado Evie? Ele era loiro e ela lembrou que havia visto cabelo loiro sob o boné do raptor de Evie. Mas aquele homem tinha uma tatuagem em seu pescoço e Pachanga claramente não tinha.

É claro que o cabelo podia ser mudado, e as tatuagens, removidas, mas algo não batia. Este cara parecia mais jovem, em torno dos trinta anos. Então, ele teria vinte e poucos anos quando Evie foi levada. Mas Keri lembrou que havia rugas perto do canto dos olhos do outro homem — um detalhe do qual ela não se lembrava até este momento. O raptor de Evie tinha provavelmente 40 anos ou mais.

Keri sentiu-se deslizar em uma de suas divagações sombrias e afastou esses pensamentos. Este não era o momento, nem o lugar. Ela tinha um trabalho a fazer e não podia se dar ao luxo de "apagar", ainda que brevemente, agora.

Pachanga chegou ao final da escada e se virou, enxugando o suor da sobrancelha com o antebraço. Keri estava impressionada pelo quanto ele era bonito. Seus olhos eram de um tom azul-céu e ele tinha um sorriso meio torto. Não era difícil imaginar Ashley se aproximando da van, só para olhar para ele mais de perto.

Pachanga olhou ao redor da propriedade por um momento, e então desapareceu na base do silo através de uma porta de metal que fechou atrás de si.

Keri se moveu rapidamente através das árvores, até estar imediatamente do lado de fora da porta. Não havia janelas no silo e ela tinha quase certeza de que não poderia ser detectada. Então, encostou o ouvido na porta e diminuiu o ritmo da respiração para não interferir no que poderia ouvir.

Ela podia identificar uma voz. Era masculina e as palavras eram ditas num tom baixo e calmo. Não conseguia compreender o que ele estava dizendo, mas ele soava quase brincalhão. Então, ela ouviu outra voz — mais alta, assustada, feminina. Ela estava quase chorando, mas falava de maneira intermitente. Suas palavras soavam arrastadas, como se ela tivesse sido drogada. Keri não podia entender muita coisa. Mas duas palavras eram claras:

"Por favor! Não!"

Keri conferiu sua arma, removeu a trava de segurança, respirou longa e profundamente e então, em silêncio, girou a maçaneta devagar. Ela abriu a porta apenas o bastante para espiar dentro do silo. Quase não podia acreditar no que viu.

Ashley Penn estava deitada no que parecia uma mesa de exames, com a cabeça apoiada num angulo de 45 graus. Suas pernas estavam amarradas em estribos e seus braços esticados para baixo, para a base da mesa, com tiras de couro. Sua cabeça estava presa em algum tipo de viseira que a impedia de se mover. Ela estava usando apenas calcinha e sutiã e seu corpo inteiro estava coberto por sangue e alguma substância marrom. Algo estava errado com seu pulso esquerdo, que pendia sem vida em uma tira. A parte inferior de sua perna direita também parecia muito machucada. Estava roxa e terrivelmente inchada. Um aparelho ao lado da mesa emitiu um bip e Keri viu cada tira se esticar e puxar os membros de Ashley, cerca de um centímetro. Ela gritou de dor.

Parece uma versão automatizada do cavalete medieval. Se isso continuar por muito tempo, os braços e pernas dela serão arrancados do seu corpo.

Keri se conteve para não correr diretamente para a garota. Não havia sinal de Pachanga. Ela esticou o pescoço para ver se ele estava se escondendo atrás da porta — nada. Então, notou outra porta alguns metros atrás da mesa. Estava entreaberta. Ele deve ter entrado ali.

Keri voltou a olhar para Ashley e viu que a garota estava olhando diretamente para ela. Keri levou o indicador aos lábios para ela fazer silêncio, e entrou. Ashley parecia estar tentando desesperadamente formar uma palavra, mas sem sucesso. Keri olhou para a pequena mesa ao lado da porta e notou um pequeno monitor em preto e branco sobre ela.

Quando olhou para ele, tentando identificar a imagem na tela, Ashley conseguiu emitir uma palavra:

"Aatráásss!"

Tudo depois disso pareceu acontecer de uma vez. Keri percebeu que o monitor estava conectado a uma câmera de segurança que voltada para a porta principal do silo. E enquanto ela processava que Pachanga deve tê-la visto nas imagens, a única palavra de Ashley se tornou clara em sua cabeça.

Atrás!

Naquele instante, no monitor, ela viu uma imagem aparecer rapidamente e percebeu que era Alan Jack Pachanga — e que ele estava bem atrás dela.


CAPÍTULO TRINTA


Terça-feira

Início da tarde


Keri viu o cano de chumbo na mão de Pachanga pelo monitor. Ele estava segurando-o acima da cabeça, preparando-se para descer o cano na direção da mão com que ela segurava a arma, esperando soltar a arma e esmigalhar seu antebraço no processo.

Ela girou rapidamente para a direita. O cano desceu pesado onde sua mão estava, mas agora, era seu ombro esquerdo que estava no lugar. Keri ouviu o som de algo quebrando quando sua clavícula cedeu. Ela caiu para trás no chão, gritando de dor, temporariamente cega pelos brilhantes flashes luminosos de agonia.

Quando sua visão clareou, ela viu Pachanga dirigindo-se até ela, a apenas alguns passos de distância. Ela levantou o braço direito e atirou. Ele gemeu alto, confirmando que havia sido atingido, mas Keri não estava certa de onde. Ele colapsou sobre ela e rolou para o lado, no chão. Por meio segundo, achou que ele estivesse morto.

Mas ele não estava. Ela o viu se apoiar na perna direita e percebeu que o havia sido atingido na parte superior da coxa. Ela puxou a arma sobre o corpo para atirar pela segunda vez. Mas ele viu o movimento dela, agarrou o cano e a golpeou, arrancando a arma da mão de Keri, que foi arremessada juntamente com o cano. Ambos saíram voando através do chão do silo e pararam sob a mesa na qual Ashley estava deitada.

Pachanga pulou sobre ela. Antes que Keri pudesse detê-lo, o homem havia agarrado seus braços, prendido-os no solo e estava subindo sobre seu corpo. Ele era incrivelmente forte.

"É um prazer conhecê-la, senhora. Desculpe pelas circunstâncias desagradáveis", ele disse, antes de dar-lhe um soco no rosto.

Keri sentiu os ossos de sua órbita ocular quebrando e novamente uma chuva de luz explodiu em seu cérebro. Ela se preparou para um segundo soco, mas ele não veio. Outro grito do canto da sala dizia a Keri que os membros de Ashley haviam sido puxados por mais um centímetro. Ela levantou seus olhos cheios de lágrimas para ver Pachanga sorrindo, olhando para ela de cima.

"Sabe, você é uma mulher muito bonita para sua idade madura. Eu deveria manter o espécimen lá em cima da mesa intocada para fins de negociação. Pude apenas fazer experimentações limitadas. Mas não tenho tais limitações com você. Acho que terei que torná-la meu experimento especial, se é que me entende. Você sabe o que quero dizer?"

Surpreendentemente, ele estava sorrindo com simpatia, como se tivesse simplesmente acabado de convidá-la para uma xícara de café. Keri não respondeu, o que pareceu desapontá-lo. Seu largo sorriso se contorceu até virar uma careta terrível. Sem aviso, ele se inclinou para trás e atingiu Keri na costela, exatamente na mesma que já estava latejando de sua luta com Auggie e com o cafetão.

Se já não estava quebrada, agora, definitivamente, quebrou. Keri arfou em busca de ar, sentindo uma dor tão lancinante que ela não sabia onde focar. Podia ouvir Pachanga falando, mas as palavras dele eram abafadas pelo rugido de angústia em sua própria cabeça.

"... você vai ver meu Verdadeiro Eu. Poucos espécimes tiveram o privilégio. Mas posso lhe dizer que você é especial. Você encontrou minha Base, e sozinha. Isso só pode significar que você escolheu estar aqui comigo. Estou envaidecido".

Keri teve medo de estar desmaiando. Se isso acontecesse, era o fim. Ela tinha que fazer algo rápido para mudar a dinâmica. Pachanga estava tagarelando em algum tipo de êxtase delirante, falando sobre bases e eus verdadeiros. Ela não tinha a menor ideia do que ele estava falando. Os olhos dele brilhavam de loucura e ele babava um pouco. Parecia alheio ao ferimento em sua perna, que sangrava de maneira profusa. A ferida... ela teve uma ideia.

"Ei", ela disse, interrompendo o discurso dele. "Por que você não cala a boca, seu fracassado infeliz?"

O fervor extasiado nos olhos dele desapareceu, sendo substituído por fúria.

Ele elevou seu punho acima de sua cabeça novamente, pronto para agredi-la. Mas, desta vez, Keri enterrou seu polegar fundo dentro do ferimento da bala. Ele caiu no chão, saindo de cima dela. Keri estava preparada para isso e rolou junto com ele, mantendo seu polegar no buraco em carne viva na coxa de Alan, enterrando fundo, girando o polegar, recusando-se a interromper o contato. Com sua mão esquerda, ela puxou as chaves da pickup de seu bolso, juntou-as e, ignorando a rajada de dor que sacudiu-a do ombro até a ponta dos dedos, golpeou o rosto de Pachanga com força. Ela o atingiu uma vez na bochecha, abrindo um rasgão nela, e outra vez no olho esquerdo, antes que ele pudesse se soltar e fugir.

Quando ele fez isso, Keri usou a mesa para ficar de pé. Ela olhou para seu adversário. Ele estava curvado numa bola, as mãos no rosto, sangue jorrando de seus dedos. Ela começou a se mover na direção da arma, mas, ao fazer isso, Pachanga deixou cair as mãos e fitou-a com seu olho bom. Ele sabia o que ela estava fazendo e não ia deixar que ela chegasse até a arma. Ashley gritou novamente quando a máquina puxou mais uma vez seus membros.

Não havia boas escolhas aqui, então, Keri tomou a única decisão que podia. Ela se virou e correu para fora pela porta do silo.


*


Ela esperou até se afastar por cerca de cinquenta metros antes de olhar novamente para o silo. Ela sabia que nunca poderia alcançar a arma. Sua única chance de salvar Ashley e a si mesma era atrair Pachanga para longe da garota; chamar sua atenção.

Quando ela olhou ao redor, ele não estava à vista.

Ah, Deus, não funcionou. Ele permanece com ela. Vai matá-la.

Ela tinha que fazer alguma coisa.

"Ei, Alan", ela gritou, "o que foi? Está desistindo? Não pode com uma mulher de verdade? Não sabe o que fazer a menos que estejamos amarradas? Acho que estamos vendo seu Verdadeiro Eu agora. E parece que ele é um covarde".

Ela ficou ali parada, esperando alguma resposta, rezando por algum tipo de reação. Nada. Ele não estava mordendo a isca.

Então, ele surgiu na porta. Alan se encostava nela para se apoiar. Ele havia tirado sua camiseta e amarrado-a ao redor do ferimento da perna. Não havia nada que pudesse fazer sobre seu rosto, que era uma máscara de sangue no lado esquerdo e estava quase limpo no lado direito. Ele parecia um monstro do Halloween.

Alan cambaleou atrás dela, lento e desajeitado, mas com propósito. Ela cambaleou à frente dele na direção do celeiro, ignorando seu ombro, suas costelas e rosto — tudo latejava sem dó. Quando ela chegou no celeiro, virou-se novamente.

"Vamos, garanhão", ela gritou, "não me quer? Não pode me fazer gritar se não puder me pegar. Pensei que você estaria no controle, garotão. Mas parece um pequeno fracote".

Pachanga parou por um momento ao lado de um antigo sedã, descansando seu braço sobre ele para evitar cair. Keri pensou que ele ia dizer algo. Ao invés, ele puxou uma arma — a arma dela — da parte de trás da cintura da calça e mirou.

Deve ter sido por isso que ele demorou tanto para sair do silo. Para pegar a arma dela. Ele mirou em Keri e atirou. Ela se moveu rápido e entrou correndo para dentro do celeiro. Entrou na pickup e procurou no molho de chaves antes de finalmente conseguir enfiar a chave certa na ignição. Ela a girou e sentiu uma onda de alívio quando o motor rugiu, ganhando vida.

O braço esquerdo dela estava quase sem utilidade, então, Keri teve que se esticar, cruzando o corpo, para fechar a porta. Ela ajustou o câmbio automático, pisou no acelerador, e passou pela parede dos fundos do celeiro, na direção em que ela havia visto Pachanga pela última vez.

Ela esperava que Alan estivesse perto o bastante para que pudesse simplesmente passar por cima dele. Mas ele se movia devagar, e ainda estava a uns bons trinta metros de distância. Ela mirou diretamente nele e acelerou com tudo.

Pachanga levantou a arma dela e começou a atirar. O primeiro tiro despedaçou o para-brisa. Keri se encolheu, mas continuou dirigindo. Ela ouviu mais tiros, mas não pôde discernir aonde foram. Então, houve um baque surdo e ela percebeu que uma bala atingira um dos pneus. Ela sentiu a caminhonete virar para a direita na direção do riacho seco, e então capotar. Ela perdeu a noção de quantas vezes o veículo capotou antes de parar.

Keri tentou se orientar. Descobriu que a caminhonete havia aterrissado sobre o lado do motorista, e Keri estava deitada na porta. Ela podia ver o céu azul através da janela do passageiro.

Ela não tinha ideia se a dor que sentia eram dos novos machucados que ela havia sofrido no acidente ou dos antigos. Tudo se misturava. Ela se puxou para cima, de modo a ficar de pé, sobre a porta do lado do motorista. Então, esticou-se para a janela do passageiro, mas algo a puxou de volta. Ela olhou para baixo e viu que seu pé estava preso sob o freio. Ela tentou se soltar, mas, sem poder usar seu braço esquerdo, era impossível. Ela estava presa.

De repente, o rosto de Pachanga apareceu na janela aberta do passageiro. Antes que Keri pudesse reagir, ele enroscou uma corrente ao redor do pescoço dela, torceu e apertou bem. Keri começou a arfar em busca de ar. Ela tentou baixar o corpo, mas ele a puxou para cima novamente.

"Pensei em usar a arma, mas decidi que isto seria mais divertido", ele disse, sem se preocupar com o pedaço solto de sua bochecha que se movia quando ele falava.

Keri tentou falar, esperando que, se pudesse enganá-lo, ele soltaria a corrente e tentaria entrar na caminhonete atrás dela. Mas nenhuma palavra saiu.

"Acabou o falatório, madame", Pachanga rosnou, sem nenhum resquício de charme. "Você vai desmaiar em mais alguns segundos. E então, vou levá-la de volta para a Base, onde farei coisas com você que lhe farão desejar estar morta".

Keri tentou enfiar seus dedos sob a corrente, mas estava apertada demais. Ela podia sentir a escuridão começar a envolvê-la. Num esforço fútil para reagir, ela pressionou seu joelho contra a buzina, esperando que o som estridente o assustasse. Sem resultado. Ainda assim, ela apertava a buzina, como um último sopro de rebelião.

O céu azul se tornou cinza e tudo começou a latejar. A luz esmaeceu. As pálpebras de Keri tremularam. Do canto do olho, ela pensou ter visto a sombra de um pássaro passar sobre sua cabeça. Ela ouviu um grunhido. E então, havia apenas escuridão.


*


Quando Keri voltou a si, percebeu que devia ter estado inconsciente por muito pouco tempo. Seu joelho ainda estava na buzina. A pressão em seu pescoço havia sumido. Na verdade, a corrente pendia frouxa, e ela pôde tirá-la. Ouviu um barulho vindo de fora, mas não pôde identificá-lo.

E então, de repente, dois corpos bateram na caminhonete acima dela. Pachanga estava embaixo, lutando para se libertar. Mas alguém estava sobre ele, golpeando-o repetidas vezes com socos no rosto, no corpo e então no rosto novamente.

Era Ray.

Ele continuou a socar até Pachanga ficar parado, deitado. Sua cabeça pendia para um lado e estava espremida contra a janela traseira da pickup. Ele estava inconsciente.

Ray ficou de pé, olhou para o homem abaixo dele, e então deu-lhe um chute no estômago. Pachanga não se moveu.

Ray olhou para dentro da cabine da caminhote, para falar com Keri.

"Você está bem?" ele perguntou.

"Já estive melhor", ela replicou, sua voz áspera e rouca.

"Eu lhe dise para esperar por mim", ele disse gravemente, mas com um sorriso brincando em seus lábios. Keri já ia responder quando um grito alto rasgou o ar.

"É Ashley. Ela está amarrada em um tipo de cavalete de tortura naquele silo. Vai arrancar os membros dela. Você precisa ir até lá agora!"

"Mas e este cara?" ele perguntou, indicando Pachanga com a cabeça.

"Não acho que ele vá causar muitos problemas. Vá até Ashley. Agora! Eu estou bem aqui".

Ray assentiu e desapareceu de vista.

Keri deixou-se cair para o fundo da cabine e fechou os olhos.

Alguns minutos depois, os gritos de Ashley finalmente pararam. Ray havia chegado até ela.

Lentamente, Keri abriu os olhos. O mundo voltou rapidamente, trazendo consigo toda a dor. Ela esquecer isso focando sua atenção em soltar seu pé de baixo do pedal do freio. Levou um minuto, mas ela conseguiu soltá-lo. Então, puxou-se para cima, preparando-se para sua próxima grande tarefa — sair da caminhonete. Ela olhou para cima procurando pelos melhores apoios para a mão. Imediatamente, viu que algo estava errado.

Pachanga havia sumido.

Tentando permanecer calma, Keri dobrou o corpo contra a janela de trás da cabine e pôs os pés no painel, criando tensão suficiente para subir centímetro por centímetro. Eventualmente, ela subiu o bastante para enganchar seu braço direito ao redor do retrovisor do lado do passageiro. Seu braço esquerdo ainda pendia sem vida ao lado dela, então, ela pisou no volante e empurrou enquanto se apoiava no retrovisor. Com a força combinada, ela conseguiu tirar a metade superior do seu corpo para fora do veículo. Então, olhou ao redor.

Ao longe, viu Pachanga mancando cambaleante na direção do silo. Ele estava quase na porta. Na sua mão direita, segurava a arma de Keri.

Ela tentou gritar, mas sua voz ainda estava fraca e rouca, por causa do estrangulamento.

Ele desapareceu dentro do silo. Cinco segundos intermináveis depois, um tipo ressoou pelo ar.

Keri balançou a metade inferior do seu corpo para fora do veículo e ficou de pé. Ela correu na direção do silo, ignorando cada parte latejante de seu corpo, ignorando o fato de que até respirar era difícil.

Ao passar pelo sedã em que Pachanga parou para se apoiar, ela viu um pé-de-cabra na grama seca ao lado do carro. Ela se inclinou, agarrou firme a alavanca com a mão que estava funcionado e continuou na direção do silo.

Ao se aproximar da porta aberta, ela quis invadir, mas se forçou a ir devagar. Lembrando-se da câmera de segurança, olhou ao redor e viu-a presa numa trave, voltada para o lado oposto de onde ela estava.

Ela correu ao redor do silo, esperando que a porta dos fundos que Pachanga havia deixado aberta mais cedo ainda estivesse entreaberta. Estava. Ela espiou rapidamente o cenário dentro do silo.

Estava muito ruim.

Ray estava sentado, caído contra parede, com sangue escorrendo de uma ferida em seu abdômen. Ela não podia dizer se ele estava vivo ou morto.

Claramente, ele havia libertado Ashley, mas agora Pachanga estava amarrando-a de volta na mesa. Ela lutava desesperadamente, mas estava perdendo a batalha. Ele já havia amarrado todos os membros dela, com exceção da perna direita. A arma estava na cintura da sua calça.

Keri deu um passo à frente, pé-de-cabra na mão. Ashley notou e olhou involuntariamente na direção dela. Pachanga também viu e percebeu que algo estava errado.

Ele se virou e sacou a arma. Keri ainda estava a um metro de distância, longe demais para golpeá-lo. Ele sorriu, fazendo o mesmo cálculo.

"Você é simplesmente cheia de surpresas", ele balbuciou, um sorriso sinistro se abrindo pelo rosto arruinado. "Vamos nos divertir tanto junt..."

Com sua perna livre, Ashley chutou Pachanga diretamente onde ele havia levado o tiro. Ele ficou sem ar e dobrou o corpo com a dor.

Keri se aproximou imediatamente, levantou o pé-de-cabra atrás da cabeça e então levou a ponta curvada para baixo rápido, golpeando o topo do crânio de Alan Jack Pachanga.

Ele caiu de joelhos.

Naquele momento, Keri percebeu que podia parar, que ele iria desmaiar. Que tinha acabado.

Mas ela não pôde parar.

Ela pensou em Evie. Em todos os monstros como este no mundo. Nos advogados imorais. Neste homem sendo libertado de algum modo, algum dia.

E ela não podia permitir que isso acontecesse.

Levantou o pé-de-cabra bem alto, e ele levantou os olhos para ela e sorriu, sangue escorrendo de sua boca.

"Você não vai fazer isso", ele murmurou.

Ela desceu a barra com cada gota de força que ainda lhe restava — e a barra de ferro ficou alojada no crânio dele.

Pachanga permaneceu ali sem se mover por vários segundos, e então colapsou no chão. A arma de Keri caiu de suas mãos e parou nos pés da policial. Ela a pegou e continuou mirando nele enquanto o rolava com o pé.

Ele olhava fixamente para cima, na direção dela, com um olho azul-céu petrificado.

Alan Jack Pachanga estava morto.

Keri ouviu um choro baixo do outro lado da sala e percebeu algo ainda mais surpreendente.

Ashley Penn estava viva.

Aquilo havia acabado.


CAPÍTULO TRINTA E UM


Quinta-feira

Meio da manhã


Keri estava deitada acordada no leito, aproveitando a solidão. Ela sabia que haveria visitantes mais tarde, mas, no momento, tinha o quarto apenas para si. Tentou juntar os pedaços do que aconteceu nos últimos dias, através da névoa provocada pelo sono e analgésicos.

Porque Ray Sands era mais precavido do que Keri, ele havia chamado reforço quando estava a caminho da fazenda. Os primeiros policiais chegaram quinze minutos depois de Keri matar Pachanga e a fazenda estava repleta de oficiais e técnicos de emergência cinco minutos depois. Após estabilizarem Ray, que estava lutando pela vida, eles levaram todo mundo para o Centro Médico mais próximo, o Palmdale Medical Center, menos de dez minutos depois.

Keri havia se recusado a passar por uma cirurgia da clavícula até que os médicos a informaram que o próprio Ray estava em cirurgia. Ele havia perdido muito sangue, mas eles esperavam que ele sairia dessa.

A maior parte da quarta-feira era obscura. Ela entrava e saía de um estado consciente, mas permaneceu acordada tempo o bastante para ficar sabendo que Ray estava em estado grave, mas estável. Ele estava na CTI. Ashley havia fraturado seu pulso esquerdo, despedaçado a tíbia, o cóccix estava rachado, e tinha uma concussão, tudo por causa da queda. Ela também havia deslocado o ombro esquerdo como resultado do dispositivo de tortura criado por Pachanga. Mas o prognóstico era que ela se recuperaria de tudo isso.

O braço esquerdo de Keri estava numa tipoia. Os médicos disseram que a fratura em sua clavícula era limpa e que ela se recuperaria em seis a oito semanas. Ela tinha uma máscara acolchoada no rosto, muito parecida com a que Ray usava em seus dias de boxeador olímpico. Era projetada para proteger sua órbita de mais lesões. Ela teria que usá-la por mais uma semana, pelo menos. Seu pescoço estava num suporte para proteger os músculos que haviam sido deformados pela corrente. Não havia nada que eles realmente pudessem fazer sobre suas costelas quebradas, a não ser acolchoar a área. Ela tinha vários outros arranhões e hematomas, assim como uma concussão. Mas tudo isso pareceia menor em comparação com o que aconteceu aos outros dois.

Uma enfermeira entrou, empurrando alguém numa cadeira de rodas.

"Você tem visita", ela disse.

Keri não podia ver quem era enquanto estava deitada, então, ela apertou o botão em seu controle remoto para ficar numa posição sentada.

Ficou surpresa ao ver que era Ashley.

Ashley se aproximou, ficou ali por um tempo, claramente, sem saber o que dizer.

Keri decidiu quebrar o gelo.

"Parece que vai demorar um pouco até você poder surfar novamente".

O rosto de Ashley se iluminou com a ideia.

"É", ela concordou. "Mas os médicos disseram que eu vou voltar para a prancha um dia".

"Fico feliz, Ashley".

"Eu só queria... você sabe... humm, você salvou minha vida", ela disse, com os olhos enchendo-se de lágrimas. "Eu realmente não sei como lhe agradecer por isso". Ela enxugou as lágrimas com sua mão boa.

"Sei de uma forma de você me agradecer. Faça valer a pena. Não perca esta oportunidade. Você é uma adolescente e todo adolescente corre riscos. Entendo isso. Mas você estava indo por uma estrada perigosa, Ashley. Já vi muitas garotas pegarem o caminho em que você estava e nunca voltarem. Você tem uma vida boa. Não é perfeita, mas é boa. Você é inteligente. É durona. Você tem amigos. Tem uma cama para dormir toda noite e uma mãe que enfrentaria lobos por você. Muitos jovens não contam com isso. E agora, você tem uma nova chance. Por favor, não a desperdice".

Ashley assentiu. Um abraço parecia apropriado, mas, nas condições em que elas estavam, nenhuma podia fazer isso, então, sorrisos tiveram que bastar. Naqueles sorrisos, ambas disseram mais do que jamais poderiam com palavras. Aquela provação havia criado um vínculo entre elas, um vínculo que Keri sabia que iria durar por toda a vida. Ela iria acompanhar Ashley ao longo do caminho, e Ashley manteria contato com ela. Sabia disso.

Depois que a enfermeira a levou, Keri não pode deixar de pensar na outra garota que havia resgatado: Susan Granger.

Ela chamou uma enfermeira, que a ajudou a ligar para o lar coletivo em que Susan havia sido colocada. Susan parecia estar bem, até mesmo animada. Como se ouvir a notícia do resgate de Ashley de alguma maneira tivesse dado a ela esperança sobre seu futuro também. Caras maus, ela estava aprendendo, não eram tão poderosos, afinal.

Susan concordou em dar a Keri mais alguns dias antes de insistir numa visita pessoalmente. Aparentemente, estar hospitalizada com múltiplas lesões era uma desculpa boa o bastante para ter um prazo maior.

Cerca de uma hora mais tarde, o tenente Cole Hillman entrou na sala. A seu lado, estava Reena Beecher, capitã de toda a Divisão do oeste de LA. Ela era uma mulher alta, vigorosa, com cinquenta e poucos anos. Tinha traços agudos, acentuados por rugas profundas, causadas por anos lidando com o pior da humanidade. Seu cabelo preto-acinzentado estava puxado para trás, num coque apertado. Keri já a havia visto pelos corredores, mas elas nunca haviam se falado antes. Beecher caminhou até a cama.

"Como está se sentindo, detetive?" ela perguntou.

"Não muito ruim, Capitã. Dê-me uma semana e estarei de volta ao trabalho".

Beecher sorriu levemente.

"Bem, acho que lhe daremos um pouco mais de tempo. Mas aprecio sua atitude. Antes do dia ficar uma loucura, queria apenas agradecer por sua diligência e trabalho duro. Se não fosse por você, Ashley Penn estaria quase certamente morta e ninguém sequer estaria procurando por ela".

"Obrigada, senhora", Keri disse, notando a expressão aborrecida de Hillman pelo canto do olho.

"Mas, no futuro, seria melhor se você informasse melhor seus supervisores sobre o que está fazendo. Vou ser sincera — se não fosse pela natureza de alto perfil deste caso, você estaria suspensa agora. Entende o que estou dizendo? Nada mais de dar uma de loba solitária. Você tem um parceiro e uma força para lhe dar suporte. Use-os. Entendeu?"

"Sim, senhora. Como está meu parceiro, a senhora sabe?"

"Deixarei o tenente Hillman lhe contar as novidades... sobre tudo". Ela sorriu polidamente, deu uma batidinha na mão de Keri e deixou o quarto. Hillman sentou-se na cadeira no canto do cômodo.

"O que isso quer dizer?" Keri perguntou. "Contar as novidades sobre tudo? O dia ficará uma loucura?"

Hillman suspirou profundamente.

"Primeiramente, Ray está indo muito melhor. Eles estão mantendo-o sedado, mas vão acordá-lo mais tarde, ainda hoje. Você não precisa perguntar — já reservei seu lugar. Quanto à loucura que a capitã mencionou, há uma coletiva de imprensa agendada para mais tarde hoje, na frente do hospital. O prefeito vai estar lá, juntamente com os pais de Ashley, Beecher, eu, o Diretor Donald e representantes do Xerife, do FBI, do Departamento de Polícia de Palmdale... e, é claro, você".

"Eu? Eu não quero estar lá, senhor".

"Eu sei. Francamente, eu também não. Mas não temos escolha. Você será solicitada a dizer algumas poucas palavras. Nao terá que responder a pergunta nenhuma — sobre a investigação atual e tudo. Na maior parte do tempo, terá que ficar sentada numa cadeira de rodas por uma hora, ouvindo pessoas importantes falando besteira. Não me peça para se livrar dessa. É uma ordem".

"Sim, senhor", Keri disse, relutante. Ela ainda não tinha a força necessária para resistir. "Por falar na investigação, sabe em que pé estamos?"

"Payton Penn é mantido preso na Twin Towers. Com todas as evidências que encontraram na choupana dele, nem mesmo Jackson Cave pode livrá-lo. Provavelmente, ele será julgado na primavera. A busca na casa de Pachanga resultou em muitas evidências de raptos anteriores. Ashley Penn disse a eles para conferir o topo do silo. Aparentemente, algumas das vítimas dele escreveram seus nomes nas paredes internas. Muitas famílias terão um fechamento nesta semana. Eles também encontrarm um laptop na casa da fazenda dele, mas até agora ninguém foi capaz de descobrir a senha. Edgerton está trabalhando nisso agora. Na minha opinião, ele é melhor do que qualquer um que os Federais têm. Então, é nesse pé que estamos na investigação. Eu recomendo que você durma um pouco antes da coletiva de imprensa".

Ele se levantou para sair do quarto e Keri pensou que iria embora sem se despedir.

Então, ele parou na porta, de costas para ela.

Sem se virar, murmurou, relutante: "Bom trabalho, garota".

Então, sem mais uma palavra, foi embora.

Aquelas poucas palavras significavam mais para Keri do que ela podia explicar.

Keri o observou ir embora e chamou novamente a enfermeira, que a ajudou a fazer outra ligação, desta vez, para o detetive Edgerton.

Ele estava bloqueado em relação às tentativas de acessar as informações no laptop. Aparentemente, o computador desligava se você digitasse ou o nome do usuário ou a senha errada dez vezes. Ele já tinha usado oito chances e estava com medo de tentar novamente. Keri pensou um pouco, imaginando Pachanga sobre ela, seus olhos queimando com um êxtase maníaco enquanto pregava seu manifesto perturbador. Então, uma ideia surgiu na mente dela.

"Posso fazer uma sugestão? Se estiver errada, você ainda terá mais uma chance".

"Eu não sei, Keri", Edgerton disse, relutante.

"Ouça. Eu estive com ele. Ele falou comigo. Estava revelando sua alma. Tenho quase certeza de que conheço esse cara".

Houve um longo silêncio. Então:

"Uma única sugestão".

Ela respirou fundo.

"Certo. Para o nome do usuário, tente EUVERDADEIRO. Para a senha, use BASE".

Ela esperou enquanto ele digitava. Houve um longo e desconfortável silêncio, o coração dela batendo forte dentro do peito, enquanto rezava para não estar errada.

"Funcionou!" Edgerton gritou. "Ah, meu Deus! Cacete, Keri. Achamos a veia principal! Estou vendo agora... várias salas de chat na dark web... espere um minuto, está carregando... é isso! Temos acesso a todas elas. Caraca! Isto pode ajudar a solucionar dúzias de casos! Tenho que ir para poder me concentrar! Isto é incrível".

Ela ia perguntar a ele se ele viu o nome "Colecionador" em algum lugar, mas o colega já tinha desligado. Foi melhor assim, provavelmente. Ela queria manter esse detalhe para si mesma por enquanto.

A enfermeira desligou o telefone para ela e reclinou o leito. Keri quis agradecê-la, mas apagou antes de poder pronunciar uma palavra.


*


A conferência de imprensa foi exatamente como Hillman havia previsto. Pessoas importantes falaram demais. Os pais de Ashley a agradeceram. Mia parecia sincera atrás de suas lágrimas. O senador Penn deu um bom show, mas Keri sabia que o desprezava. Mesmo que tenha salvo a filha dele, sua carreira estava arruinada e ele parecia responsabilizá-la por isso.

Por fim, ela foi levada numa cadeira de rodas até o microfone.

Keri havia pensado sobre o que iria falar enquanto ouvia os outros. Após um momento, um plano se formou em sua mente. Nunca teria uma plataforma maior. E ela ia usá-la.

Ela começou agradecendo a todas as pessoas certas e expressando o quão feliz estava por Ashley estar bem.

"Aquela jovem mulher lutou por si mesma até que outros vieram ajudar. Ela mostrou bravura e força, e uma vontade implacável de sobreviver. De fato, foi seu pensamento rápido que ajudou a salvar minha vida. Estou orgulhosa dela e sei que seus pais também estão".

Então, Keri pausou por um segundo antes de decidir continuar. Ela levantou uma foto exibida em seu celular.

Pelo canto dos olhos, percebeu que Hillman balançava furiosamente a cabeça, avisando-a para não fazer isso.

Mas nada a deteria agora.

"Esta é minha filha, Evelyn Locke. Nós a chamávamos de Evie. Na semana que vem, vai fazer cinco anos desde que ela foi raptada, com apenas oito anos de idade". Keri deslizou a tela para revelar outra imagem. "Esta é uma simulação com progressão de idade de como ela pode se parecer agora, aos 13 anos. Eu estou muito feliz com todas as palavras de gratidão de hoje. Mas tudo o que quero é minha garotinha de volta. Então, se esta imagem parece familiar, por favor, contate suas autoridades locais. Eu sinto falta da minha filha e só quero abraçá-la de novo. Por favor, ajudem-me a fazer isso. Obrigada".

Ela foi inundada com uma mar de perguntas, toda a atenção passando da família Penn para Evie, e ela sentiu-se reconfortada e com esperanças.

Talvez eles a encontrariam, afinal.


*


Uma hora mais tarde, Keri estava sentada numa cadeira ao lado do leito de Ray, esperando em silêncio que ele acordasse. Seus pensamentos divagaram para o que ela faria quando estivesse completamente recuperada. Ela estava brincando com a ideia de se mudar da casa-barco. Percebeu que aquele era um lugar para pessoas à deriva. Agora, ela percebia isso. E sentia que precisava seguir em frente se quisesse ter algum tipo de vida.

Talvez ela arrumasse um apartamento, um com dois quartos, então, Evie teria um lugar para dormir quando ela a encontrasse. E ela começaria a ver a Drª Blanc com mais frequência. Ela não havia tido episódios em que "apagava" desde a cirurgia, mas não confiava que eles tinham sumido para sempre. Para conseguir isso, por mais que odiasse admitir, precisaria de ajuda.

E talvez fosse o momento de realmente enfrentar seus sentimentos por Ray. Eles vinham nesta dança delicada por um tempo. Ela sabia que ele queria se aproximar, mas ela estava com medo de deixá-lo entrar em sua vida, aterrorizada de permitir a si mesma realmente cuidar de outra pessoa que pode ser arrancada dela. Ela não queria perdê-lo também.

Mas, então, lhe ocorreu.

Eventualmente, perdemos todo mundo. É o que fazemos com nosso tempo juntos aqui que importa.

Ela sorriu com esse pensamento, suspirando profundamente. Não se sentia tão relaxada há muito tempo. Levantou os olhos e viu que Ray estava consciente e sorrindo para ela, seus olhos brilhando, acolhedores. Ela não sabia há quanto tempo ele estava acordado, mas a ideia dele observando-a lhe deu uma sensação de conforto.

"Como vai, Grandão?" ela perguntou, suavemente.

A voz dele estava fraca e rouca, mas ela o entendeu de toda forma.

"Melhor agora, Sininho".

 

 

                                                   Blake Pierce         

 

 

 

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