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A primeira namorada de Jacko Vance foi Jillie Woodrow. Antes dela, era rejeitado pelas garotas e, quando ficaram juntos, ele tinha apenas 16 anos e ela, 14. Além do treinamento esportivo obsessivo, ela era seu único interesse. Tinham um relacionamento exclusivo, compulsivo e desgastante. Aparentemente ele foi uma influência dominante sobre ela. Ficaram noivos assim que ela fez 16, mesmo com a desaprovação dos pais dela e da mãe de Jacko; não tinha mais contato com o pai nessa época. Depois do acidente em que perdeu o braço, o relato de MM alega que ele a libertou, tendo em vista que não era mais o homem com quem ela tinha aceitado se casar. A versão de TB é de que ela estivera procurando uma maneira de sair da relação claustrofóbica há algum tempo e encarou o acidente como uma saída, alegando que estava com aversão ao ferimento dele e à perspectiva de viver com um homem de prótese. MM e Vance se uniram pouco depois. Logo antes de se casarem, Jillie revelou ao News of the world que Vance a forçara a se entregar a rituais sadomasoquistas, amarrando-a apesar de seus protestos de que aquilo a amedrontava. Vance tentou impedir a publicação da história, negando-a vigorosamente. Não conseguiu uma injunção, mas não entrou com uma ação por calúnia, alegando não poder custear o processo legal. Provavelmente verdade naquele estágio da carreira. Tanto o fim do relacionamento com Jillie em circunstâncias tão estressantes quanto as revelações subsequentes dela podem ter exercido pressão suficiente para desencadear o primeiro da série de crimes de Vance.
— Puta merda — disse Carol ao chegar ao final da análise de Shaz. — Dá mesmo pra gente se perguntar, né não?
— Acha que Jacko Vance pode ser um serial killer? — perguntou Kay.
— Shaz achava. E creio que podia estar certa — respondeu Tony de modo sombrio.
— Tem uma coisa me incomodando nisso aí — comentou Simon. Encorajado por um olhar interrogativo de Tony, continuou: — Se Vance é sociopata, como pode ter salvado aquelas crianças e tentado resgatar o motorista do caminhão no acidente em que perdeu o braço? Por que simplesmente não largou esse pessoal lá?
— Boa observação — elogiou Tony. — Você sabe que odeio teorizar antes de ter os dados, mas, olhando para o que temos até agora, eu diria que Jacko passou a maior parte dos anos de sua formação desesperado por atenção e aprovação. Quando o acidente aconteceu, ele automaticamente pegou o caminho que faria com que ficasse bem aos olhos das outras pessoas. Não é incomum aquilo que parece heroísmo ser uma ânsia desesperada por glória. Acho que foi isso o que aconteceu aqui. Se vocês ainda acham que estamos batendo na porta errada, vou contar pra vocês a conversa que tive com o comandante Bishop hoje à tarde.
Tony contou que Shaz tinha se encontrado com Vance e quais conclusões tirou daquilo.
— Vocês vão ter que contar pro McCormick e pro Wharton que esse arquivo existe — recomendou Carol.
— Não estou querendo fazer isso, não depois da maneira como me trataram.
— Quer que eles prendam o assassino da Shaz, não quer?
— Quero que o assassino da Shaz seja preso — disse Tony com firmeza. — Só não acho que aqueles dois têm a imaginação pra lidar com esta informação. Pensa bem, Carol. Se contar pra eles o que achamos aqui, pra começar, não vão querer acreditar. Vão falar que retocamos os arquivos dela. Posso até imaginar os dois interrogando Jacko: “Bom, seu Vance, a gente pede desculpa por incomodar o senhor, mas a gente acha que a mocinha aqui no sábado passado pensou que o senhor era um serial killer. Burrice, o senhor sabe, mas do jeito que assassinaram ela naquela noite, a gente achou melhor vir aqui pra trocar um dedinho de prosa. Acontece que o senhor meio que pode ter visto alguma coisa, algum esquisitão seguindo ela, um negocinho assim.”
— Com certeza não são tão ruins assim — protestou Carol, sem conseguir conter a gargalhada.
— Que nada, na minha opinião Tony está sendo generoso — resmungou Leon.
— Ele não vão interrogar Jacko Vance — disse Simon. — Vão ficar intimidados e ficar ao lado dele. Só darão um toque nele.
— E o filho da puta daquele Jack Bacana é inteligente. Depois que tiver conhecimento de que sabem da visita da Shaz, vai ser o sr. Santinho em pessoa. Por isso, parte de mim está falando: “não, não conta pra eles”.
Houve um longo silêncio. Depois Simon perguntou:
— E agora, a gente faz o quê?
Tony pegou um bloco de anotação na pasta do notebook e começou a rascunhar.
— Se vamos fazer isso, teremos que fazer direito. O que significa que eu controlo e coordeno. Carol, tem algum lugar que entrega alguma coisa pra comer aqui?
Ela bufou de escárnio e disse:
— Aqui onde eu moro? Faça-me o favor. Tem pão, queijo, salame, atum, salada de fruta. Me dá uma mão, pessoal. Vamos fazer uns sandubas enquanto o nosso líder dá uma meditada.
Quando voltaram quinze minutos mais tarde com uma montanha de sanduíches e uma tigela cheia de batata frita, Tony estava pronto para eles. Esparramados pela sala com garrafas de cerveja e pratos de comida, eles o escutavam explicar o que queria que fizessem.
— Acho que todos concordamos com o balanço de probabilidades: Shaz foi morta por causa do trabalho que fez desde que veio pra Leeds. Não há indício de que tenha sofrido algum tipo de experiência com ameaças pessoais até então. Portanto, assumimos como ponto de partida a suposição de que Shaz Bowman identificou corretamente a existência de um até agora não identificado serial killer de adolescentes. — Ele levantou as sobrancelhas num gesto interrogativo e quatro cabeças assentiram. — A conexão externa nestes casos é Jacko Vance. Shaz presumiu que ele era o assassino, embora não devamos deixar de considerar a possibilidade do nosso alvo ser alguém da comitiva dele. Eu tendo a acreditar que é o Vance.
— O bom e velho Occam — murmurou Simon ironicamente.
— Não somente por causa do princípio do menos complicado — disse Tony. — Minha visão leva em consideração o espaço de tempo que os assassinatos cobrem. Não sei se alguém se manteve profissionalmente próximo a Vance durante esse tempo todo. Mesmo que essa pessoa exista, não estou convencido de que teria o carisma para seduzir mulheres jovens para o que superficialmente parece uma proposta de fuga.
“Então, temos o perfil de Vance feito pela Shaz. É inevitavelmente superficial, ela só teve acesso ao que era de domínio público e àquilo em que conseguiu por as mãos de uma hora pra outra. Parece que usou duas biografias, uma escrita pela esposa, a outra por um jornalista da indústria do entretenimento. Temos que fazer uma busca maior do que essa antes de podermos definir se esse cara é mesmo uma possibilidade a ser considerada em relação a esses assassinatos que estamos postulando. Este é um trabalho incomum para nós, criadores de perfis. Geralmente fazemos deduções partindo do crime para o criminoso. Desta vez estamos partindo de um suposto criminoso para homicídios hipotéticos. Não me sinto inteiramente confortável com isso, pra ser honesto. É um território novo pra mim. Então temos que ser muito cuidadosos antes de aproximarmos nossas cabeças de qualquer parapeito.”
Mais gestos de cabeça indicaram concordância. Leon levantou e foi até a porta para que pudesse fumar sem poluir a comida de ninguém.
— Entendemos o recado — disse Leon arrastando as palavras. — As nossas missões, caso a gente aceite, são...?
— Precisamos localizar a ex-noiva dele, Jillie Woodrow. A pessoa responsável por interrogar a Jillie também vai ter que realizar uma investigação geral sobre a vida pregressa dele: família, vizinhos, amigos da escola, professores e policiais locais ainda na ativa ou recentemente aposentados. Simon, está disposto fazer isso?
Simon parecia apreensivo.
— O que exatamente tenho que fazer?
Tony fez um sinal para Carol com os olhos.
— Descubra tudo o que puder sobre Jacko — esclareceu ela. — Conhecimento profundo do histórico dele. Se precisar de uma história para despistar todo mundo menos a Jillie, fala que estamos investigando ameaças contra Vance e que acreditamos que as razões para isso estão no passado remoto dele. As pessoas adoram um pouquinho de melodrama. Com a Jillie isso não vai funcionar. Talvez seja bom dar a entender que está investigando alegações contra Jacko feitas por uma prostituta, e pode até insinuar que você suspeita que são mentiras maliciosas.
— Beleza. Alguma ideia de como eu a encontro, já que não tenho acesso ao Computador Nacional da Polícia?
— Vou chegar a isso aí num minuto — disse Tony. — Leon, quero que comece a vasculhar o que estava acontecendo na vida dele na época do acidente em que perdeu o braço. E também no início da carreira dele na TV. Veja se consegue encontrar o antigo treinador dele, as primeiras pessoas com quem trabalhou quando estava começando nas transmissões esportivas. Atletas que estiveram na equipe britânica com ele, esse tipo de coisa. Ok?
— Me aguarde — disse Leon, frio e sério dessa vez. — Não vai se arrepender de ter me pedido isso, cara.
— Kay, o seu trabalho vai ser procurar os pais das meninas que a Shaz agrupou e interrogá-los de novo. Todas as perguntas usuais sobre desaparecimento e tudo o que conseguir arrancar sobre Jacko Vance.
— O pessoal desses lugares deve ficar mais do que feliz em te passar os arquivos dos casos — acrescentou Carol. — Vão ficar tão satisfeitos por outra pessoa estar disposta a assumir responsabilidade por casos tão desacreditados. Provavelmente vão te dar acesso total.
— Tudo isso, a detective inspetora-chefe Jordan aqui vai agilizar com antecedência pra vocês — continuou Tony. — Ela será a facilitadora, aquela que vai conversar com os policiais de patentes mais elevadas em outras delegacias de polícia ao redor do país e conseguir as informações com as quais vocês darão início às investigações. Coisas tipo onde Jillie Woodrow está agora, o que aconteceu com o treinador de Vance, quais pais de vítimas se mudaram para Scunthorpe.
Carol ficou olhando boquiaberta por um longo momento. Leon, Simon e Kay ficaram observando com o deleite de adolescentes vendo os mais velhos prestes a se comportarem mal.
— Ótimo — disse ela por fim com a voz cheia de sarcasmo. — Não tenho quase nada pra fazer no trabalho, vai ser um prazer encaixar essas coisinhas aí na minha agenda. Então, Tony, o que você vai tramar enquanto o restante do esquadrão faz o trabalho pesado?
Ele pegou um sanduíche, deu uma conferida no recheio, depois levantou o olhar com um sorriso aparentemente sem malícia alguma.
— Vou balançar a árvore. — Foi o que ele respondeu.
O detetive inspetor Colin Wharton parecia um refugiado daqueles programas realistas terrivelmente previsíveis sobre policiais e ladrões do norte do país, que preenchiam o espaço entre o jornal da noite e a hora de dormir, Micky pensou. Já tivera uma beleza áspera, mas bebeu demais e comer porcarias borraram seus traços e amortalharam seus olhos azuis em bolsas pesadas. Ela o imaginou no segundo e problemático casamento; os filhos do primeiro eram adolescentes infernais; e ele tinha uma vaga, mas preocupante dor recorrente em algum lugar dos seus órgãos internos. Ela cruzou as pernas com discrição e deu a ele o sorriso que tinha tranquilizado mais de mil convidados no estúdio. Micky sabia que Wharton seria completamente cativado por ela. Ele e o detetive Coleguinha, que parecia estar a um passo de pedir um autógrafo.
Olhou o relógio.
— Jacko deve estar de volta a qualquer minuto. Deve ser o trânsito. Mesma coisa com a Betsy. Minha assistente pessoal.
— Você mencionou isso — disse Wharton. — Se não fizer diferença pra você, podemos começar. A gente pode conversar com a sra. Thorne e com o sr. Vance quando eles chegarem.
O detetive consultou uma pasta aberta sobre o colo coberto pela calça extremamente bem passada. — Falaram pra gente que você conversou com a detetive Bowman no dia anterior à morte dela. Como isso aconteceu?
— Temos duas linhas de telefone, um pra mim e outra pro Jacko. Elas não constam na lista telefônica, são bem confidenciais. Só algumas poucas pessoas têm os números. Transfiro a minha pro celular quando estou fora e a detetive Bowman entrou em contato por ela. Deve ter sido lá pelas oito e meia na sexta-feira de manhã... Eu estava com uma das minhas pesquisadoras na hora, ela provavelmente pode confirmar isso. — Percebendo que estava se justificando inconsequentemente, uma marca óbvia de nervosismo, Micky ficou em silêncio por um momento.
— Mas não era a sua pesquisadora? — instigou Wharton.
— Não. Era uma voz que não reconheci. Ela disse que era a detetive Sharon Bowman, da Polícia Metropolitana, e queria marcar um encontro com o Jacko. Meu marido.
— E você disse...? — encorajou Wharton.
— Falei que ela tinha ligado para a minha linha telefônica, ela pediu desculpa e disse que tinham falado que aquele era o número particular dele. Perguntou se ele estava e quando falei que não, pediu para deixar um recado. Eu normalmente não ajo como secretária do Jacko, mas, já que ela era da polícia e eu não sabia do que se tratava, achei que seria melhor anotar e passar pra ele.
Ela sorriu, buscando um ar autodepreciativo de mulher insegura na presença da autoridade. Foi uma performance escabrosa, mas Wharton parecia não ter notado.
— Abordagem sensível, sra. Morgan — disse ele. — Qual era o recado?
— Ela falou que era uma mera formalidade, uma questão rotineira, mas que queria conversar com ele por causa de um caso em que estava trabalhando. Devido a outros compromissos que ela tinha, só poderia ser no sábado, mas a detetive se encaixaria na disponibilidade dele. A hora e o local ficariam por conta do Jacko. Ela deixou um número pra onde ele deveria retornar a ligação.
— Ainda tem esse número? — indagou Wharton, apenas mais uma pergunta padrão.
Micky pegou um bloquinho de anotação e o mostrou a ele.
— Como pode ver, a gente começa uma página nova todo dia... mensagens de telefone, ideias pro programa, miudezas domésticas.
Ela lhe entregou o bloquinho, apontando para algumas poucas linhas no alto da página.
Wharton leu: “det. Sharon Bowman. Jacko. v c ???Sábado??? você decide hora + lugar. 3074676 sgto. Devine.” Aquilo confirmava a afirmação sobre o telefonema que Chris Devine tinha feito a eles, mas Wharton queria conferir.
— Este número... é de Londres?
— É, sim. 0171. — Micky confirmou. — Mesmo código que o nosso, por isso não me preocupei em anotar. Bom, tinha que ser mesmo, não tinha? Ela era da Polícia Metropolitana.
— Ela tinha sido transferida para uma unidade em Leeds — comentou ele expressivamente. — Por isso que ela estava morando lá, sra. Morgan.
— Meus Deus, é claro — disse de maneira insincera. — É, por alguma razão isso simplesmente não ficou registrado. Que esquisito.
— Realmente — disse Wharton. — Então você passou o recado pro seu marido e pronto?
— Deixei uma mensagem de voz pra ele. Mais tarde o Vance me contou que tinha marcado com ela lá em casa no sábado de manhã. Ele sabia que eu não ia me importar, já que a Betsy e eu íamos pegar o Le Shuttle pra desfrutarmos de uma cortesia. Benefícios do trabalho.
Ela deu aquele sorrisão brilhante novamente. Wharton se perguntou com amargura por que as mulheres em sua vida nunca conseguiam ficar tão satisfeitas quando conversavam com ele.
Antes que conseguisse fazer a próxima pergunta, ouviu passos no chão de parquet na sala. Virou um pouco quando a porta atrás de si foi aberta. A primeira impressão que teve de Jacko Vance foi a sensação de que havia ali uma tremenda energia contida dentro de roupas caras. Havia algo irresistivelmente cativante nele, mesmo fazendo algo tão banal como atravessar a sala e estender a mão esquerda em sinal de boas-vindas.
— Inspetor Wharton, presumo — disse Vance calorosamente, fingindo não notar o policial se atrapalhar e ficar meio levantado, estendendo o braço errado e depois trocar os papéis de mão desajeitadamente e dar um aperto esquisito na mão que lhe foi oferecida. — Sou Jacko Vance — apresentou-se fingindo uma humildade que Micky reconheceu ser tão falsa quanto a sua. — Trabalho desesperador, o seu.
Vance virou e se afastou, cumprimentando o detetive que acompanhava com um amigável movimento de cabeça antes de despencar no sofá ao lado da esposa. Acariciou a coxa dela e disse:
— Tudo bem, Micky? — perguntou, a voz gotejando a mesma preocupação que demonstrava aos doentes terminais.
— Estamos acabando de conversar sobre o telefonema da detetive Bowman — contou ela.
— Certo. Desculpa pelo atraso. Fiquei preso no trânsito em West End — justificou ele com os cantos da boca suspensos deixando à mostra um familiar sorriso autodepreciativo. — Então, o que posso fazer por você, policial?
— A sra. Morgan te passou a mensagem da detetive Bowman, correto?
— Com certeza — afirmou com confiança. — Liguei pro telefone que ela me deu e falei com uma detetive sargento de quem o nome esqueci completamente. Falei que se a detetive Bowman viesse à minha casa entre as nove e meia e o meio-dia de sábado, eu a receberia.
— Muita generosidade, um homem tão ocupado como você — comentou Wharton.
Vance suspendeu as sobrancelhas.
— Tento ajudar as autoridades sempre que posso. Não é de jeito nenhum um inconveniente pra mim. Só tinha planejado trabalhar numa papelada naquele dia, depois ir de carro pro meu chalé em Northumberland e dormir cedo. Ia correr uma meia-maratona em Sunderland no domingo, sabe?
Ele se recostou negligentemente, com a certeza de que sua fala despreocupada tinha sido percebida, aceita e classificada como algo a embasar sua inocência.
— Que horas a detetive Bowman chegou? — perguntou Wharton.
Vance fez uma careta e se virou para Micky:
— Que horas foi aquilo? Você estava saindo bem naquela hora, não estava?
— Isso mesmo — confirmou Micky. — Deve ter sido por volta das nove e meia. Betsy provavelmente pode te falar com mais exatidão. É a única nesta casa com algum senso de horário. — Sorriu ironicamente, impressionada com o quanto aquele policial estava disposto a aceitar que duas importantes personalidades da TV, ambas apresentadoras de importantes programas, não conseguissem precisar os horários instintivamente nos últimos trinta segundos. — A gente meio que tinha acabado de passar pela porta. O Jacko estava lá em cima ao telefone, então disse pra ela entrar aqui e depois fomos embora.
— Não a deixei esperando mais do que dois minutos — continuou ele, ininterruptamente. — Ela se desculpou por me incomodar no fim de semana, mas expliquei que, neste trabalho, a gente na verdade não tem fim de semana. Tiramos um tempo para nós quando dá, não é mesmo, querida?
Ele a olhou encantadoramente enquanto passava o braço ao redor dos ombros dela.
— Não com a frequência que eu gostaria.
Wharton pigarreou e perguntou:
— Pode me contar o que é que a detetive Bowman queria conversar com você?
— Você não sabe? É isso que está dizendo? — indagou Micky, com a repórter adormecida dentro de si entrando em ação. — Uma policial despenca lá de Yorkshire até Londres para interrogar alguém do gabarito do Jacko e vocês não sabem o motivo?
Ela parecia abismada, inclinando-se para a frente com os antebraços apoiados nas coxas, as mãos totalmente abertas.
Wharton se mexeu no assento e olhou fixamente para um ponto na parede entre as duas longas janelas.
— A detetive Bowman estava alocada em uma unidade nova. A bem dizer, ela não poderia estar fazendo serviços operacionais atualmente. A gente acha que sabe no que ela estava trabalhando, mas até agora não temos comprovação disso. Ajudaria muito se o sr. Vance pudesse falar o que aconteceu entre os dois no sábado de manhã. — Ele soltou o ar com força pelo nariz e lhes atirou um olhar rápido que misturava constrangimento e súplica.
— Sem problema — disse Vance sossegadamente. — A detetive Bowman se desculpou muito por invadir minha privacidade com suas perguntas, mas falou que estava trabalhando num caso que envolvia uma série de garotas adolescentes desaparecidas. Achava que elas tinham sido seduzidas a fugir com o mesmo indivíduo. Parece que algumas dessas garotas estiverem em aparições públicas minhas pouco tempo antes de desaparecem e ela estava pensando que algum maluco podia estar mirando nas minhas fãs. A detetive falou que queria me mostrar fotos das meninas, só para o caso de eu ter notado algumas delas conversando com alguém em particular.
— Alguém da sua comitiva, é o que está querendo dizer? — Soltou Wharton, orgulhoso por saber a palavra correta.
Vance deu uma risada, uma alta risada barítona.
— Sinto muito desapontá-lo, inspetor, mas o que tenho não é bem uma comitiva. Quando estou fazendo o programa, tenho uma equipe que trabalha próxima a mim. Às vezes, quando estou fazendo APs, isto é, aparições públicas, o meu produtor e o meu pesquisador vão comigo para me fazer companhia e me dar um pouquinho de suporte. Mas, com exceção disso, tudo o que eu gastar com guarda-costas ou qualquer outra coisa sai do meu bolso. E como a maior parte do meu trabalho envolve ganhar dinheiro para a caridade, parece loucura gastar mais do que o absolutamente necessário. Então, como expliquei pra detetive Bowman, não temos empregados fixos. De qualquer forma, há um grupo básico de entusiastas. Suponho que pouco mais de vinte fãs comparecem regularmente a praticamente todos os eventos que faço. Pessoas estranhas, mas sempre as considerei inofensivas.
— É uma marca da celebridade — explicou Micky sem rodeios. — Se você não tem o seu cortejo de gente esquisita, não é ninguém. Homens mal vestidos com anoraques e mulheres com calças de poliéster folgadas e cardigãs de tecido sintético. Todos eles com cortes de cabelo tenebrosos. Não são o tipo de pessoa com quem meninas adolescentes fugiriam, isso garanto pra você.
— E foi mais ou menos isso o que contei para a detetive Bowman — continuou Vance. Eles eram tão tranquilos, tão naturais, ele pensou. Talvez fosse a hora de fazerem alguns programas juntos. Vance memorizou isso para explorar a ideia com o seu produtor. — Ela me mostrou algumas fotos das meninas com que estava preocupada, mas nenhuma delas chamou a minha atenção — informou suspendendo os ombros de maneira a desarmar o policial. — O que não é de se surpreender. Chego a dar trezentos autógrafos em uma AP. Bom, quando falo autógrafo... aquilo está mais pra rabisco. — Olhou pesarosamente para a mão protética. — Escrever é uma das coisas que não consigo mais fazer adequadamente.
Houve um momento de silêncio. A sensação de Wharton foi de que ele teve a duração de um dia inteiro. Procurou uma pergunta relevante.
— Como a detetive Bowman reagiu, senhor, quando você não reconheceu as meninas?
— Ficou desapontada — respondeu Vance. — Mas admitiu que era um tiro no escuro. Eu me desculpei por não ter conseguido ajudar mais, e ela foi embora. Isso deve ter sido por volta das... ah, dez e meia, por aí?
— Então ela ficou aqui mais ou menos uma hora? Isso me parece um tempo bem longo pra algumas perguntas — disse Wharton, mais meticuloso do que suspeitoso.
— Parece mesmo, não parece? — concordou Vance. — Mas a deixei esperando alguns minutos, depois fiz um café pra nós dois, batemos aquele papo-furado habitual. As pessoas sempre querem saber um pouco dos bastidores do Vance Visita. Depois tive que passar por todas as fotos. Fiz isso sem pressa. Meninas desaparecidas são um assunto sério demais pra abordar de maneira superficial, não podemos lidar com isso de forma leviana. Afinal, não houve contato algum com a família depois de todo esse tempo, anos, em alguns casos, de acordo com a detetive Bowman, há chances delas terem sido assassinadas. Merecia a minha atenção.
— Concordo plenamente, senhor — disse Wharton expressivamente, desejando não tê-lo incomodado com aquela pergunta. — Suponho que ela não tenha mencionado quais eram os planos dela para o resto do dia.
Vance abanou a cabeça.
— Sinto muito, inspetor. Tive a impressão de que tinha outro compromisso, mas ela não falou onde nem quando.
— O que foi que te deu essa impressão, senhor? — perguntou Wharton levantando o olhar, pela primeira vez sentindo que podia estar fazendo mais do que chover no molhado com as perguntas rotineiras.
Vance fechou um pouco o semblante como se estivesse pensando.
— Depois que terminei com o negócio das fotografias, ofereci para fazer mais um café. Ela olhou para o relógio e ficou surpresa, como se não tivesse se dado conta da hora. Falou que precisava ir, que não havia percebido que tínhamos ficado conversando por tanto tempo. Saiu daqui poucos minutos depois.
Wharton fechou o caderno.
— Acho que devo fazer a mesma coisa, senhor. Agradeço muito por vocês dois terem dedicado seu tempo pra conversar comigo. Se houver mais alguma coisa, o que duvido muito que tenha, entro em contato. — Ele levantou e deu um aceno de cabeça do tipo “vamos nessa” para o seu subordinado.
— Não precisa falar com a Betsy? — perguntou Micky. — Ela não deve demorar.
— Não acho que vai ser necessário — respondeu Wharton. — Francamente, acho que a vinda da detetive Bowman até aqui não tem praticamente nada a ver com a morte dela. Só temos que amarrar as pontas soltas.
Vance atravessou em direção à porta para conduzi-los até o lado de fora.
— É uma pena vocês terem que se arrastar até aqui quando o trabalho de verdade está lá em Yorkshire — comentou ele, o solidário sorriso adicionando peso à comiseração em sua voz.
Micky se despediu e ficou observando da janela Vance olhar os policiais saírem de sua propriedade. Ela não sabia ao certo o que seu marido estava escondendo, mas o conhecia o suficiente para ter certeza de que aquilo que acabara de ouvir era apenas um parente distante da verdade, da verdade completa e de nada além da verdade.
Quando voltou para a sala, estava apoiada na lareira.
— Vai me contar o que não contou pra eles? — perguntou ela, os olhos fazendo a sagaz avaliação que sempre conseguia penetrar sua lustrosa superfície.
Vance abriu um sorrisão.
— Você é uma bruxa, Micky. Vou, vou te contar o que não contei pra eles. Reconheci uma das meninas nas fotos que a Bowman me mostrou.
Micky arregalou os olhos.
— Reconheceu? Como? De onde?
— Não há necessidade de entrar em pânico — disse ele desdenhosamente. — É perfeitamente inocente. Quando ela desapareceu, os pais entraram em contato com a gente. Disseram que ela era a minha maior fã, blá, blá, blá. Queriam que divulgássemos um apelo para que ela os contatasse.
— E você fez isso?
— É claro que não. Não se encaixava no formato do programa de jeito nenhum. Alguém do escritório mandou uma carta solidária e a gente fez com que um tabloide publicasse a história dizendo: “Jacko implora a fugitiva que telefone para casa.”
— Então por que não contou isso pro detetive? Se você fez algo na imprensa, a reportagem vai estar disponível em algum lugar. Podem achá-la e aí você vai estar na merda.
— Como? Eles nem sabem o que a Bowman estava fazendo, o que me faz achar que não têm os arquivos dela, não é mesmo? Olha, Micky, nunca me encontrei com a menina. Nunca falei com ela. Mas se conto ao detetive inspetor Gambé que a reconheci... porra, Micky, você sabe que a polícia é a peneira mais vazada da cidade. A próxima coisa que você veria seria “Jacko envolvido em interrogatório de assassinato” estampado em todas as primeiras páginas. Não, obrigado. Quero ficar sem essa. Não podem me ligar a nenhuma das fugitivas da Bowman. O rei da negação, lembra?
Micky abanou a cabeça, admirando, para sua surpresa, a audácia de Jacko.
— Você é o cara mais ardiloso que eu já vi — disse ela. — Tenho que admitir isso, Jacko. Quando o assunto é fazer o público comer na sua mão, nem mesmo eu sou páreo pra você.
Ele atravessou a sala, foi até ela e a beijou na bochecha.
— Nunca tente dar uma de malandro pra cima de um malandro.
Ao entrar na sua sala na manhã seguinte, Carol foi pega de surpresa por seu pessoal, que tinha chegado lá antes dela. Tommy Taylor estava esparramado na cadeira em frente a dela, as pernas arreganhadas para enfatizar sua masculinidade. Lee tinha aberto uma fresta da janela e soprava a fumaça para fora, que se juntava à poluição do trânsito. Di estava na sua posição usual, apoiada na parede com os braços cruzados sobre o terno que lhe caía mal. Carol se esforçava para arrastá-la, ainda que à força, às promoções de janeiro para munir a mulher com roupas que tanto serviriam bem nela quanto a embelezariam mais do que as caras e péssimas coisas que vinha usando.
Carol foi direto para o bastião atrás da mesa e abriu sua maleta ao se sentar.
— Certo — começou. — Nosso incendiário em série.
— Mais louco que o Batman — comentou Leon.
— Na verdade, não — contestou Carol. — Aparentemente, o nosso pirômano é tão são quando eu e vocês. Quer dizer, quanto eu, pelo menos, já que não posso falar por vocês três. De acordo com um psicólogo em quem confio irrestritamente, não estamos lidando com um psicopata. O homem responsável por esses incêndios tem um motivo criminal objetivo. E isso aponta para o pessoal do Jim Pendlebury que trabalha meio expediente.
Os três a olharam como se de repente ela tivesse passado a falar sueco.
— O quê? — Lee foi o primeiro a conseguir falar.
Carol distribuiu cópias da lista que o comandante dos bombeiros lhe dera.
— Quero que façam uma verificação detalhada na vida desses homens. Atenção especial a detalhes financeiros. Eles não podem nem sonhar que estamos interessados nisso, entenderam?
Tommy Taylor conseguiu encontrar sua voz:
— Você está acusando o pessoal da brigada contra incêndios?
— Acho que você vai descobrir que os chamamos de bombeiros hoje em dia — comentou Carol delicadamente. — Ainda não estou acusando ninguém, sargento. Estou recolhendo informação suficiente para que possamos ter uma base para tomar uma decisão.
— Bombeiros morrem em incêndios — disse Di Earnshaw de maneira sediciosa. — Ficam feridos. Inalam fumaça. Por que um bombeiro começaria um incêndio? Teria que ser um verdadeiro doente mental e você acabou de falar que esse camarada não é. Não é uma contradição óbvia?
— Ele não está doente — disse Carol com firmeza. — Desesperado, talvez, nas não está sofrendo de doença mental. Estamos atrás de alguém que está tão endividado que não consegue ver mais nada além de como sair dessa situação. Não que ele queira colocar os amigos em risco; só não está se permitindo colocá-los na equação.
Taylor abanou a cabeça com ceticismo e protestou:
— É um puta dum insulto ao corpo de bombeiros.
— Não mais do que investigações externas sobre alegações de corrupção policial. E todos nós sabemos que acontece — argumentou Carol com a voz seca. Ela recolocou os papéis do caso dentro da maleta e levantou o olhar para eles. — Vocês ainda estão aqui?
Lee atirou o cigarro lá embaixo na rua com um gesto eloquente e, depois de se desencostar da parede com um empurrão, saiu desengonçado em direção à porta.
— Estou nessa — disse ele.
Taylor se levantou e rearranjou ostensivamente a evidência externa do seu gênero.
— Certo — falou ele, saindo atrás de Lee e indicando a Di Earnshaw que ela deveria segui-lo.
— Na boa, na boa — disse Carol para as costas em retirada.
Se colunas vertebrais falassem, as de Di Earnshaw teriam soltado um eloquente “vai tomar no cu”. A porta foi fechada depois que saíram, Carol se recostou na cadeira e, com uma das mãos, ficou massageando os nós na base do seu crânio. Aquele dia seria muito longo.
Tony estendeu o braço, atendeu o telefone automaticamente e murmurou:
— Tony Hill, só um minuto.
E terminou a frase que estava digitando no computador. Olhou o telefone na mão como se não tivesse muita certeza de como tinha ido parar ali.
— Oi, desculpe, Tony Hill falando.
— É o detetive inspetor Wharton — informou com a voz neutra.
— Por quê? — perguntou Tony.
— O quê? — indagou Wharton, desconsertado.
— Perguntei por que você está me ligando. O que tem de tão estranho nisso?
— Ah, bom. Estou ligando por pura gentileza — disse Wharton com uma aspereza que contradizia suas palavras.
— Isso é novidade.
— Não tem necessidade de ficar com o pé atrás. Meu chefe não teria o menor problema em conseguir te trazer aqui de novo pra mais uma visitinha.
— Ele teria que ver isso com o meu advogado. Já fiz a vocês a única visita grátis. Então, que gentileza é essa que quer compartilhar comigo?
— Recebemos uma ligação da Micky Morgan, a apresentadora de TV que, você deve ou não saber, é a sra. Jacko Vance. Ela forneceu voluntariamente a informação de que Bowman visitou a casa dela em Londres no sábado de manhã pra conversar com o marido dela. Fomos até lá pra falar com o sr. Vance, e ele é inocente. A Bowman deve ter feito papel de boba em frente à sua galerinha aí, mas não era doida a ponto de repetir aquele absurdo pro próprio sujeito. Descobrimos que a única coisa que ela queria perguntar era se ele tinha visto alguém nos eventos dele perseguindo essas meninas desaparecidas. E ele não viu. O que não é surpresa nenhuma, quando consideramos a quantidade de rostos que passaram por ele por semana. Então veja, dr. Hill, o sujeito está limpo. Eles procuraram a gente, não foi a gente que procurou os dois.
— E pronto? O Jacko Vance falou pra vocês que deu tchau pra Shaz Bowman à porta de casa e isso é o suficiente pra vocês?
— A gente não tem razão pra pensar de outro jeito — disse Wharton com rigidez.
— A última pessoa a vê-la viva? Geralmente não vale a pena dar uma olhada nesse pessoal?
— Não quando ele não tem nenhuma conexão conhecida com a vítima, possui uma reputação de probidade que nunca foi contestada e quando a despedida entre eles aconteceu doze horas antes do crime ter sido cometido — disse Wharton com a voz ácida. — Especialmente quando é sabido que essa pessoa é deficiente e mesmo assim, com um braço só, supostamente dominou um policial altamente treinado e com um corpo totalmente saudável. — Posso fazer uma pergunta?
— Perguntar você pode.
— Alguém testemunhou essa conversa ou ele se encontrou sozinho com a Shaz?
— A esposa dele deixou a Shaz entrar, mas saiu em seguida e os dois ficaram lá pra conversar. A Bowman se encontrou com ele sozinha. Só que isso não faz dele automaticamente um mentiroso, você sabe disso. Participo deste jogo há muito tempo. Sei quando um camarada está contando mentira pra mim. Aceita isto, doutor, você está muito longe do alvo. Não posso falar que te culpo por tentar mudar nossa opinião, mas vamos continuar com as pessoas que ela conhecia.
— Muito obrigado por me informar.
Por não confiar nele a ponto de falar mais alguma coisa, Tony largou o telefone de volta no gancho. A cegueira do bicho homem nunca deixava de assombrá-lo. Não que Wharton fosse um sujeito idiota; estava simplesmente, a despeito dos anos no serviço policial, condicionado a acreditar que homens como Jacko Vance não podiam ser criminosos violentos.
De certa maneira, a ligação de Wharton era o que Tony estava esperando. A polícia não podia vingar Shaz Bowman e justificar seu próprio trabalho. Estava nas mãos dele agora, e havia uma satisfação mordente naquilo. Além disso, a resposta de Wharton à sua pergunta confirmara Vance como principal suspeito aos olhos de Tony. Só podia ser ele. Tony já tinha eliminado o fã psicótico. Agora podia eliminar os membros da comitiva de Vance. Se nenhuma outra pessoa testemunhara a conversa entre os dois, ninguém mais poderia seguir o rastro de Shaz depois dela ter saído da casa dele. Tony pegou o telefone e ligou para o número que encontrara na lista telefônica mais cedo, quando já antecipava esse momento. Assim que a telefonista atendeu, ele pediu:
— Poderia me passar para o escritório da produção do Meio-dia com Morgan? —Depois se recostou, esperando com um pequenino e macabro sorriso curvando seus lábios.
John Brandon tamborilava de leve na alça da sua caneca de café.
— Não gosto disso, Carol — admitiu. Ela abriu a boca para responder e ele levantou o dedo para silenciá-la. — Ah, sei que você, assim como eu, não gosta dessa ideia. Mesmo assim é um grande passo apontar o dedo para o corpo de bombeiros. Só espero que a gente não esteja cometendo um erro terrível aqui.
— Tony Hill já acertou antes — ela o lembrou. — E, quando você olha pra análise dele, ela faz sentido como nenhuma outra.
Brandon abanou a cabeça desesperadamente, dando a impressão de nunca ter estado tão cansado no mundo.
— Eu sei. Só que é uma ideia tão deprimente. Colocar tantas vidas em risco por tão pouco. Quando os policiais sucumbem, pelo menos as pessoas geralmente não acabam mortas.
Ele deu um gole no café. O aroma atravessou flutuando a mesa até Carol e fez sua boca se encher de água. Normalmente, ele lhe oferecia uma caneca; ela não estar compartilhando a perfumada bebida era um indicador do quanto ficara chocado com o relato dela.
— Tá bom — disse ele. — Me mantenha informado sobre as descobertas da sua equipe. Gostaria de ser informado com antecedência sobre uma possível prisão.
— Sem problema. Aconteceu mais uma coisa, senhor.
— A notícia anterior foi a boa ou a ruim?
— Acho que a ruim. Depende do que acha do outro assunto, senhor. — O sorriso de Carol não continha ânimo algum.
O chefe de polícia suspirou e virou um pouco sua cadeira giratória para observar o estuário do lado de fora. Como de costume, o chefe tinha a melhor vista, Carol teve esse pensamento irrelevante enquanto um barco deslizava de uma janela para a seguinte.
— Vamos escutar, então — pediu ele.
— Também diz respeito ao Tony Hill — disse ela. — O senhor soube do assassinato no esquadrão dele?
— Negócio diabólico — definiu Brandon com precisão. — A pior coisa que pode acontecer neste trabalho é perder um policial. Mas perder um daquela forma... é o pior dos pesadelos.
— Especialmente se você tiver memórias como as de Tony Hill pra te inspirar.
— Você não está errada. — Olhou com sagacidade para Carol. — Além da nossa compaixão natural, como nos envolvemos nisso?
— Oficialmente, de jeito nenhum.
— E extraoficialmente?
— O Tony está tendo alguns problemas com West Yorkshire. Aparentemente, estão tratando tanto ele quanto os seus trainees como os principais suspeitos, em vez de uma efetuarem uma investigação efetiva. Tony acha que estão rejeitando outras possibilidades por razões arbitrárias e chegou à conclusão de que o assassino de Shaz Bowman não pode escapar simplesmente porque os policiais responsáveis pela investigação estão adotando essa abordagem mesquinha.
Um sorriso escapuliu e se espalhou pelo rosto de Brandon.
— Palavras dele essas?
O sorriso de Carol em resposta era cúmplice.
— Não literalmente, senhor. Não anotei o que ele estava falando.
— Consigo entender por que ele quer agir — disse Brandon cautelosamente. — Qualquer investigador teria a mesma reação. Mas temos regras na polícia que impedem os policiais de investigarem crimes em que têm interesse pessoal. Essas regras existem por uma razão muito válida: crimes muito próximos distorcem o julgamento dos policiais. Tem certeza de que não seria melhor deixar West Yorkshire seguir com isso da maneira deles?
— Não se isso significar deixar um psicopata nas ruas — opinou Carol com firmeza. — Não estou vendo nada de errado na maneira como a cabeça de Tony está funcionando.
— E ainda não explicou o que é que isso tem a ver com a gente.
— Ele precisa de ajuda. Está trabalhando com alguns policiais da força-tarefa, mas estão todos atualmente suspensos, sem acesso a qualquer canal oficial. Além disso, ele precisa da contribuição de um policial experiente para equilibrar o ponto de vista dele e não vai conseguir isso em West Yorkshire. Só o que querem fazer é encontrar um motivo pra meter o próprio Tony ou alguém da equipe dele atrás das grades.
— Pra começar, nunca quiseram hospedar aquela unidade — comentou Brandon. — Não é de se surpreender que isso seja uma desculpa para detoná-la de vez. Entretanto, o caso é deles e não nos procuraram para pedir assistência.
— Não, mas o Tony procurou. E sinto que estou em dívida com ele, senhor. A única coisa que vou fazer é conseguir algumas informações para dar à equipe dele matéria-prima como nomes e endereços. Pretendo dar a ajuda que puder e prefiro fazer isso com a sua aprovação.
— Quando você diz ajudar...
— Não vou ficar seguindo os passos do pessoal de West Yorkshire. O ponto de vista em que Tony está interessado fica a quilômetros de distância das investigações deles. Não vão saber que estou lá. Não vou colocar o senhor numa desavença entre jurisdições.
Brandon engoliu o resto de café e empurrou a caneca para longe.
— Está certíssima, não vai mesmo. Carol, faça o que tiver que fazer. Mas fará por baixo dos panos. Esta conversa nunca aconteceu e, se essa coisa toda vier à tona, não me encontrei com você.
Ela abriu um sorriso e se levantou.
— Obrigada, senhor.
— Fica fora de problemas, inspetora-chefe — ordenou rispidamente, dispensando-a com um gesto de dedos.
Assim que Carol abriu a porta, ele completou:
— Se precisar da minha ajuda, tem o meu número.
Era uma oferta a qual esperava não precisar recorrer.
Sunderland ficava no extremo norte, Exmouth o ponto mais ao sul. Entre elas, Swindon, Grantham, Tamworth, Wigan e Halifax. Em cada um desses lugares o desaparecimento de uma garota tinha agarrado a atenção de Shaz Bowman. Kay Hallam sabia que, de alguma maneira, tinha que espremer caldo novo daquelas investigações, um deles sustentaria o edifício de evidências circunstanciais que Tony estava construindo contra Jacko Vance. Não era uma tarefa fácil. Anos haviam passado e, com eles, a nitidez da memória. Executá-la sozinha também não era a melhor opção. Em um mundo ideal, seriam dois, e levariam algumas semanas para cumprir a tarefa, conduzindo interrogatórios com cabeças que não estariam exaustas por atravessar o país de cabo a rabo dirigindo.
Não tinha esse luxo. Não que estivesse com vontade de ficar à toa. Quem tinha matado Shaz não merecia um minuto mais de liberdade além do que tivera. Já havia sido difícil demais ficar sentada à espera dos resultados que a detetive inspetora-chefe Jordan conseguira ao passar horas pelejando com ligações telefônicas. Agora havia um modelo a ser seguido, Kay pensava enquanto zanzava de um cômodo ao outro na sua casa estilo vitoriano que antes pertencera a um artesão. O que quer que Carol tivesse feito, obviamente fizera direito.
— Se quiser ser bem-sucedida, mantenha-se próxima de pessoas bem-sucedidas e copie o que elas fazem — recitou Kay, um mantra de uma das suas fitas de desenvolvimento pessoal.
A ligação foi feita na hora do almoço. Carol havia conversado com todas as divisões do Departamento de Investigação Criminal que lidaram com o desaparecimento das meninas. Em três casos, ela inclusive conseguira falar com o investigador responsável, embora os inquéritos apressados demais se precipitaram em concluir que se tratava de adolescentes que não pareciam querer ser encontradas. Ela fez com que o pessoal liberasse os magros arquivos dos casos e trabalhara para obter os endereços e telefones dos pais angustiados.
Kay desligou o telefone e estudou o mapa das estradas. Chegou à conclusão de que conseguiria fazer Halifax à tarde e Wigan à noite. Depois pegaria a rodovia para Midlands e pernoitaria em um motel. Café da manhã em Tamworth, depois despencaria até Exmouth e chegaria lá no final da tarde. Voltaria para a rodovia para passar a noite em Swindon e então seguiria por estradas secundárias até Grantham. Uma parada em Leeds no dia seguinte para fazer um relatório para Tony, e terminaria em Sunderland. Parecia um road movie infernal. Até mesmo Thelma e Lousie foram mais glamourosas do que isso, pensou.
Porém, diferente de alguns dos seus colegas, nunca achou que trabalharia com glamour. Labuta pesada, estabilidade no emprego e um contracheque decente foi tudo o que Kay sempre acreditou que conseguiria na polícia. A promoção a detetive foi uma surpresa. E era boa naquilo, graças a um bom olho para os detalhes, um olhar que seus colegas menos apreciativos gostavam de chamar de analítico, e, para isso, usavam a abreviação “anal”. A criação de perfis parecia a área ideal para usar ao máximo suas habilidades de observação. Não imaginara, entretanto, que o seu primeiro caso seria relacionado a alguém tão próximo, nem que lhe daria essa sensação de ser tão pessoal. Ninguém merecia o que Shaz Bowman tinha sofrido, e ninguém merecia escapar impune por ter feito aquilo.
Esse era o pensamento a que Kay se mantinha agarrada enquanto consumia seu tempo percorrendo a rede de rodovias que cruzavam a Inglaterra. Notou que todos os seus destinos ou eram próximos a uma dessas rodovias ou de uma das outras importantes estradas salpicadas de estabelecimentos de fast-food localizados em postos de gasolina. Ficou se perguntando se havia algum significado naquilo. Vance combinara de se encontrar com suas vítimas em paradas de beira de estrada a que podiam chegar facilmente pegando carona? Era praticamente a única coisa nova a surgir em dois dias de trabalho, pensou desanimada. Isso e um frágil padrão que começava a se formar fraca e fantasmagoricamente. Era deprimente o quanto as histórias dos pais das meninas eram similares e a angustiava a pequena quantidade de detalhes, principalmente no que dizia respeito a Vance. Conseguiu falar com alguns amigos das meninas desaparecidas, todos ajudaram pouquíssimo. Não por que não queriam ajudar; Kay era o tipo de interrogadora com quem as pessoas sempre falavam. A tímida insignificância camuflava sua inteligência; não apresentava ameaça para as mulheres e fazia com que os homens se sentissem protetores. Não, não estavam escondendo alguma coisa, simplesmente não havia muito a ser dito. Sim, as meninas desaparecidas eram loucas por Jacko, sim, tinham ido a eventos em que ele estava presente e sim, estavam muito entusiasmadas com aquilo. Mas nada muito além disso.
Perto de Grantham, estava no piloto automático. Duas noites em motéis com camas macias demais e o constante zip, zing e zoom do trânsito que era diluído ao longo da noite, mas não cessava, pois ainda havia os feixes duplos de luz, situação que não se configurava como uma boa receita para se fazer interrogatórios produtivos, porém era melhor do que não ter dormindo nada, repreendeu-se ao bocejar demoradamente antes de tocar a campainha.
Kenny e Denise Burton não deram sinal de perceber a exaustão dela. Passaram-se dois anos, sete meses e três dias desde que Stacey saíra pela porta da frente e nunca mais voltara. As sombras debaixo dos seus olhos indicavam que nenhum dos dois tinha tido uma noite de sono decente desde então. Eram como gêmeos; ambos baixos, corpulentos, de pele pálida de tanto ficarem dentro de casa, e dedos rechonchudos. Olhando para a parede de fotografias de sua filha magra e de olhos brilhantes, era difícil acreditar na genética como ciência. Sentaram-se em uma sala que era um monumento à expressão “um lugar para tudo e tudo em seu lugar”. Havia muitas coisas na sala apertada; cristaleiras de canto, vão de parede com prateleiras que acomodavam um sem-número de quinquilharias, uma lareira ornamentada e com nichos embutidos. Era uma sala claustrofóbica e timidamente convencional. Com as duas barras da lareira elétrica expelindo um calor empoeirado, Kay mal conseguia respirar. Não era de se admirar que Stacey não ficara relutante em ir embora.
— Ela era um amor de menina — comentou Denise com saudosismo. Era um bordão que Kay passara a odiar, pois escondia todo elemento útil da personalidade adolescente de uma menina. Também a fazia se lembrar desanimada da sua mãe, que sempre obliterava a realidade sobre a identidade de Kay atrás dessa frase anódina.
— Não era como outras por aí — disse Kenny sombriamente, alisando o acinzentado cabelo pra trás e jogando-o por cima da parte careca que ameaçava irromper na cabeça como um galo de desenho animado. — A gente falava pra ela estar em casa às dez, às dez ela estava em casa.
— Nunca teria ido embora por vontade própria — falou Denise, a segunda fala na ladainha dita na hora e no lugar exatos. — Não tinha razão pra isso. Deve ter sido sequestrada. Não tem outra explicação.
Kay evitou mencionar a outra óbvia e dolorosa explicação.
— Gostaria de fazer algumas perguntas sobre os dias que antecederam o desaparecimento da Stacey — informou ela. — Além de ter ido à escola, ela saiu pra algum outro lugar naquela semana?
Kenny e Denise não pararam para pensar. Em contraponto, disseram:
— Foi ao cinema.
— Com Kerry.
— Na semana antes de pegarem a nossa filha.
— Tom Cruise.
— Ela adora o Tom Cruise. — O desafiador tempo verbal presente.
— Saiu na segunda-feira também.
— Normalmente, a gente não deixaria a Stacey sair à noite em dia de aula.
— Mas aquele dia era especial.
— Jacko Vance.
— O herói dela, ele é.
— Ele estava inaugurando um pub.
— Normalmente a gente não deixava a nossa filha ir a pubs.
— Porque ela só tinha 14 anos.
— Mas a mãe de Kerry ia levar, então achamos que estava tudo bem.
— E estava.
— Chegou em casa pontualmente, exatamente na hora que a mãe de Kerry disse que chegariam.
— Não estava se aguentando, a Stacey. Tinha conseguido uma foto autografada.
— Autografada pessoalmente. Para ela pessoalmente.
— Estava com ela. Quando ela se foi.
Houve uma pausa para que Kenny e Denise engolissem sua tristeza.
Kay tirou proveito.
— Como ela ficou depois daquele dia que saiu à noite?
— Muito entusiasmada, não estava, Kenny? Foi como um sonho que se tornou realidade pra ela, conversar com o Jacko Vance.
— Ela chegou a falar com ele? — Kay se esforçou para parecer indiferente. O frágil padrão que tinha discernido fortalecia a cada conversa.
— No mundo da lua, ela estava — confirmou o pai de Stacey.
— Ela sempre quis entrar pra televisão. — O contraponto estava de volta.
— Seu pessoal chegou à conclusão de que ela fugiu pra Londres pra tentar entrar na indústria do entretenimento — contou Kenny desdenhosamente. — De jeito nenhum. Não a e. Era sensível demais. Concordava com a gente. Fique na escola, tire as suas notas dez, aí a gente vê.
— Ela podia ter ido pra televisão — disse Denise saudosa.
— Ela tinha o visual.
Kay interrompeu antes que eles disparassem de novo:
— Ela contou o que conversou com o Jacko Vance?
— Só que ele foi muito amigável — respondeu Denise. — Não acho que disse alguma coisa específica pra ela, disse, Kenny?
— Não teve tempo de ter um interesse pessoal. Um homem ocupado. Dezenas de pessoas, não, centenas de pessoas queriam que ele desse um autógrafo, queriam tocar algumas palavras, tirar uma foto.
As palavras pairaram no ar como a sombra de fogos de artifício.
— Tirar uma foto? — perguntou Kay baixinho. — A Stacey tem a foto que tirou com ele?
Responderam que sim com um gesto sincronizado de cabeça.
— A mãe de Kerry a tirou.
— Poderia vê-la? — repentinamente o coração de Kay passou a bater como um tambor, e a palma das suas mãos começou a suar na sala abafada.
Kenny pegou um álbum estampado em relevo debaixo de uma mesinha de centro com uma mancha de cor desconhecida na natureza. Com a mão bem treinada, abriu rapidamente na última página. Ali, ampliada para vinte por vinte e cinco, estava uma foto um pouco desfocada de um grupo de pessoas ao redor de Jacko Vance. O ângulo estava torto, os rostos borrados, como se vistos através de uma neblina de calor, mas a menina de pé ao lado de Jacko Vance, aquela com quem ele inquestionavelmente estava conversando, com a mão em seu ombro, a cabeça inclinada na direção dela, a menina que olhava para cima com o adorável olhar de um animalzinho de estimação novo era, sem a menor sombra de dúvida, Stacey Burton.
Falar com a detetive sargento Chris Devine tinha sido mais difícil do que Wharton imaginava. Quando ligou para a sala dela, descobriu que tinha tirado alguns dias de licença logo depois de ter feito sua declaração via telefone a respeito do assassinato. Foi a primeira vez que Wharton encontrou alguém genuinamente de luto por Shaz Bowman; ele não tinha sido o policial encarregado de dar a notícia para os arrasados pais da policial.
Quando Chris ouviu a mensagem deixada em sua secretária eletrônica e retornou a ligação, Wharton já estava em Londres interrogando Vance e a esposa. Fora fácil combinarem de se encontrar no apartamento dela depois.
O policial durão nele simpatizou com Chris Devine imediatamente, no momento em que ela abriu a porta e os cumprimentou assim:
— Sinceramente espero que vocês peguem o filho da puta que fez isso.
Ele não ficou incomodado com o conjunto de fotos artísticas de belas mulheres que cobriam as paredes do apartamento. Já tinha trabalhado com homossexuais antes e, no geral, achava que eram muito menos disruptivas do que a maioria das mulheres hétero da força. Seu auxiliar estava menos confiante e, cuidadosamente, escolheu sentar de frente para a parede de vidro daquele moderno bloco de apartamentos que deixava à vista uma antiga igreja que fora, de maneira incongruente, deixada de pé no coração daquele complexo residencial.
— Também espero — disse ele, sentando-se no futon e se perguntando de maneira fugaz como as pessoas conseguiam dormir naquilo.
— Foram ver Jacko Vance? — perguntou Chris antes de se ajeitar na grande poltrona em frente a ele.
— Interrogamos Jacko e sua mulher ontem. Ele confirmou o que você tinha dito sobre o encontro que a detetive Bowman teve com ele no dia em que morreu.
Ela fez um movimento afirmativo com a cabeça, tirando seu volumoso cabelo castanho do rosto.
— Pra mim, Jacko Vance é daqueles tipos que sabem tudo de cor.
— Então o que foi aquilo? — perguntou Wharton. — Por que estava ajudando a detetive Bowman a manter a ilusão de que ainda era da Polícia Metropolitana?
Ela fechou a cara, o que fez a ruga entre seus olhos ficar mais profunda, e perguntou:
— Como?
— O seu telefone no Departamento de Investigações Criminais foi deixado como contato pela detetive Bowman. A impressão que isso deu é que ela ainda era da Polícia Metropolitana.
— Ela ainda era da Polícia Metropolitana — afirmou ela. — Mas não tinha nada de sinistro em dar o meu número como contato. Durante o período de treinamento, os policiais do esquadrão de criação de perfis não podem receber ligações telefônicas no horário de trabalho. Shaz perguntou se eu podia quebrar essa, só isso.
— Por que você, sargento? Por que não o policial da recepção de onde ela está alocada? Por que não deixar o número da casa dela e pedir para ele ligar à noite? — Não havia nada de hostil no jeito de Wharton; ele estava genuinamente interessado na resposta.
— Suponho que seja porque já estávamos em contato por causa do caso — disse Chris, sentindo a irritação aumentar dentro de si, mas sem deixar transparecer nenhum sinal externo. Seus anos na polícia a deixaram com a tendência de ver indireta em tudo e a habilidade de não mostrar sua reação.
— Estavam? Em que sentido?
Chris virou a cabeça e seus olhos escuros vislumbraram o céu além do ombro de Wharton.
— Shaz já tinha pedido a minha ajuda. Precisava de algumas cópias de jornal e fui à Colindale fazer isso pra ela.
— Você foi a responsável por aquela encomenda?
— Fui, sim.
— Ouvi falar. Numa caixa daquele tamanho e tão pesada, devem ter sido centenas de páginas. É muito trabalho pra uma policial tão atarefada como você deve ser — disse Wharton, começando a se inclinar um pouquinho para a frente, agora que suspeitava que podia haver mais ali do que seus olhos conseguiam ver.
— Fiz aquilo na minha folga. Ok, inspetor?
— É muito tempo pra dedicar a uma policial em início de carreira — sugeriu Wharton.
Chris apertou os lábios momentaneamente. Com seu narigão, ela lembrava o Zangado dos Sete Anões.
— Shaz e eu fomos parceiras no turno da noite durante muito tempo. Além de colegas de trabalho, éramos amigas. Ela provavelmente foi a mais talentosa jovem policial com quem já trabalhei e, francamente, sr. Wharton, não vejo como me questionar a respeito do motivo de ter dedicado o meu dia de folga à Shaz vai te ajudar a pegar o assassino dela.
Wharton deu de ombros e disse:
— Histórico. Nunca se sabe.
— Eu sei, pode acreditar. Você deveria estar fazendo perguntas sobre Jacko Vance.
Surpreendendo-se consigo mesmo, Wharton não conseguiu evitar um sorriso irônico.
— Não vai me dizer que você também caiu nessa.
— Se você está se referindo a eu concordar com a teoria da Shaz de que Jacko Vance está matando adolescentes, a resposta é: não sei. Não tive a oportunidade de revisar as evidências dela. Mas o que sei é que Vance falou comigo que ela podia ir à casa dele no sábado de manhã e ela estava morta na manhã seguinte. Agora, da maneira com que trabalhamos aqui, o nosso interesse na última pessoa que sabemos que viu a vítima de assassinato viva é muito grande e, de acordo com a mãe da Shaz, parece que vocês não têm nenhum registro de qualquer outra pessoa que possa tê-la visto depois que Shaz saiu da casa dele. Isso me faria ficar muito interessada em Jacko Vance. O que o esquadrão de criadores de perfis falou sobre isso?
— Tenho certeza de que vai concordar que até que a gente possa descartar definitivamente os colegas imediatos dela de nossa investigação, não podemos usar aquele pessoal pra investigar o caso.
Chris ficou de queixo caído.
— Não estão usando o Tony Hill?
— A gente acha provável que ela fosse conhecida do assassino, e as únicas pessoas que ela conhecia em Leeds eram as que trabalhavam com ela. Você é uma detetive experiente. Tem que ver que a gente não pode arriscar contaminar a investigação confiando em algum deles.
— Você tem o mais talentoso criador de perfis do país na palma da sua mão, um homem que realmente conhecia a vítima e sabia no que ela estava trabalhando, e está ignorando o sujeito. Existe alguma razão pra vocês não quererem pegar o assassino da Shaz? Aposto que o Tony Hill não acha que vocês deveriam descartar Jacko Vance.
Wharton deu um sorriso indulgente.
— Entendo que você fique um pouco emotiva com esse caso.
Chris ferveu por dentro, mas não disse nada enquanto ele continuava:
— Mas posso assegurar a você que conversei com o sr. Vance e não existe nada que sugira que ele tenha alguma coisa a ver com o assassinato. De acordo com ele, o único interesse da detetive Bowman era saber se ele tinha visto alguém do suposto grupo de meninas desaparecidas em companhia de algum dos frequentadores regulares de seus eventos. Ele falou que não tinha visto e pronto.
— E vocês acreditam na palavra dele. Simples assim?
Wharton deu de ombros.
— Como disse, por que a gente não acreditaria? Cadê a evidência que sugere alguma coisa suspeita?
Chris levantou abruptamente e pegou um maço de cigarros em uma mesinha de canto. Acendeu um e se virou para encarar Wharton.
— De acordo com o que a gente sabe, ele foi a última pessoa a ver a Shaz viva — disse ela com a voz hostil.
O sorriso de Wharton almejava conciliação, mas serviu na verdade para enfurecê-la.
— A gente não sabe disso, com certeza. Ela escreveu a letra “T” na agenda depois do encontro com Vance. Como se ela fosse a algum outro lugar. Você não saberia dizer quem esse “T” é, saberia, sargento?
Um trago profundo no cigarro, um sopro demorado de fumaça, depois Chris disse:
— Não consigo me lembrar de ninguém. Desculpa.
— Não acha que pode se referir ao Tony Hill?
Ela deu de ombros.
— Pode, suponho eu. Pode significar quase qualquer coisa. Ela podia estar indo ao Trocadero jogar laser games, ao que me é dado supor. Ela não me falou que tinha algum outro compromisso.
— Ela não veio aqui?
Chris fechou a cara.
— Por que viria?
— Você disse que eram amigas. Ela estava em Londres. Imaginei que ela podia ter dado uma passadinha aqui, especialmente por você ter sido tão prestativa e tudo mais — havia um elemento mais forte na voz de Wharton e ele projetou o maxilar para a frente.
— Ela não veio aqui — reafirmou Chris e fechou a boca com força.
Percebendo o ponto fraco, Wharton forçou um pouco mais.
— Por que acha que ela não veio, sargento? Ela preferia manter um pouquinho de distância entre vocês? Especialmente agora que tinha um namorado?
Chris caminhou energicamente até a porta e a abriu.
— Adeus, inspetor Wharton.
— Essa resposta é muito interessante, sargento Devine — comentou Wharton levantando sem pressa e verificando se seu auxiliar ainda estava tomando nota.
— Se você quer insultar a memória da Shaz e a minha inteligência, não vai fazer isso na minha casa. Da próxima vez, use os meios formais. Senhor. — Ela se apoiou na porta e ficou os observando caminhar pelo corredor até os elevadores.
— Cuzão — murmurou baixinho.
Depois deixou a pesada porta fechar, foi até o telefone e ligou para uma paixão antiga no Ministério do Interior.
— Dee? É a Chris. Oi, querida, preciso de um favor. Tem um psicólogo que trabalha aí, um esquisitão chamado Tony Hill. Preciso do telefone pessoal dele...
Jimmy Linden tinha reparado no jovem homem negro antes mesmo dele chegar ao seu assento na sexta fileira da arquibancada vazia. Anos de trabalho com jovens atletas promissores tinham desenvolvido seu instinto de identificar estranhos. Não precisava ficar de olho apenas nos pervertidos sexuais. Os caras das drogas também eram muito perigosos com suas promessas de esteroides mágicos. E os jovens de Jimmy eram mais propensos a cair nas promessas deles. Qualquer um que quisesse ser o melhor no dardo, martelo, tiro ou disco precisa do tipo de músculo que os anabolizantes providenciam com muito mais facilidade do que o treino.
Não, nunca fez mal algum ficar de olho nos estranhos, especialmente ali no Meadowbank Stadium, onde treinava a equipe júnior escocesa, os melhores do grupo, todos desesperados para chegar àquele auge que os transformaria em campeões. Jimmy olhou novamente para o estranho. Parecia estar em ótima forma, embora, se em algum momento ele sonhara em ser contendor, devia ter dado uma bicuda naquele cigarrinho há muito tempo.
Quando o treino chegou ao fim e os jovens foram para os vestiários, Jimmy viu o estranho levantar e desaparecer escada abaixo. Quando ele emergiu na área ao lado da pista momentos depois, demonstrando que tinha razão oficial para estar ali, Jimmy sentiu os músculos na parte de trás do seu pescoço relaxarem um pouco, o que o fez perceber que até aquele momento eles estiveram tensos. A velhice se aproximava a galope, pensou ironicamente. Estava acostumado a ser tão consciente do próprio corpo que nenhum nervo tremulava sem que ele soubesse.
Antes que pudesse seguir os corpos suados até os vestiários, o estranho entrou na frente dele e mostrou um distintivo. Foi muito rápido para que Jimmy visse a que força ele pertencia, mas sabia o que aquele distintivo significava.
— Detetive Jackson — disse o homem. — Desculpe por incomodá-lo no trabalho, mas me dá meia hora do seu tempo?
Jimmy deu um muxoxo, sua cara comprida afinou ainda mais com seu descontentamento.
— Você não vai achar nenhuma droga nesse grupo — disse ele. — Treino uma equipe limpa, e todos sabem disso.
Leon abanou a cabeça e sorriu.
— Não tem nada a ver com o seu grupo. Preciso que vasculhe a sua memória sobre uma história antiga, só isso.
Não havia nenhum traço das gírias cheias de malandragem que usava com seus colegas criadores de perfis.
— Que tipo de história antiga?
Leon notou que os olhos de Jimmy cintilavam na direção dos discípulos e percebeu que o treinador ainda queria falar com eles. Apressadamente, o acalmou:
— Não é nada pra você ficar preocupado, sério. Olha, vi que tem um café decente logo ali na estrada. Por que não encontra comigo lá depois que terminar aqui e aí a gente conversa?
— Tá bom, então — concordou Jimmy, de má vontade.
Meia-hora depois ele estava sentado de frente para Leon, com uma caneca de chá e um prato empilhado com produtos de padaria que deram à Escócia o apelido de Terra dos Bolos. Ele deve ser um puta de um treinador, Leon pensou enquanto o homenzinho enfiava goela abaixo um merengue coberto de coco. Todos os atletas de arremesso de sucesso que já conhecera eram camaradas grandes, com ombros largos e coxas fortes. Mas Jimmy Linden lembrava um asceta medieval, o clássico corredor de longa distância, uma daquelas criaturas feitas de ossos e tendões que atravessam com facilidade a linha de chegada de maratonas, com os olhos à meia-distância, como se a única coisa que quisessem fosse os próximos 42 quilômetros.
— Então, o que você está querendo? — perguntou Jimmy, limpando a boca com surpreendente delicadeza ao usar um lenço de algodão com um monograma que tirou da manga da blusa de moletom.
— Por razões que vão ficar óbvias, não posso entrar em detalhes demais. Estamos investigando um caso que pode ter raízes num passado distante. Achei que você podia me apontar algumas direções.
— Sobre o quê? A única coisa que conheço é atletismo, filho.
Leon movimentou afirmativamente a cabeça e observou um merengue desaparecer.
— Vou voltar uns doze anos ou mais.
— Quando estava lá no sul? Antes de ter voltado aqui pra cima?
— Isso mesmo. Você treinou Jacko Vance — disse Leon.
Uma sombra atravessou o rosto de Jimmy. Depois ele inclinou a cabeça para o lado e falou:
— Você não está me dizendo que alguém está sacaneando o Jacko e acha que vai se safar dessa, está? — Um divertimento iluminou seus lacrimejantes olhos azuis.
Leon deu uma piscada e falou:
— Você não escutou isso de mim, sr. Linden.
— É Jimmy, filho, todo mundo me chama de Jimmy. Então, Jacko Vance, hein? O que é que quer saber sobre o menino prodígio?
— Tudo o que conseguir se lembrar.
— Quanto tempo você tem?
O sorriso de Leon estava tingido de amargura. Não se esquecera do motivo pelo qual estava em Edimburgo.
— Quanto tempo for preciso, Jimmy.
— Vamos ver. Ele ganhou o título britânico da categoria abaixo de 15 anos quando só tinha 13. Eu estava treinando a equipe nacional. Na época, falei na hora em que o vi arremessar que ele era a melhor chance que tínhamos de ganharmos o ouro olímpico — revelou abanando a cabeça. — E não estava errado. Pobrezinho. Ninguém merece assistir ao evento que deveria estar vencendo enquanto tenta aprender a usar um membro artificial.
Leon entendeu o implícito, mas não dito “nem mesmo Jacko Vance.”
— Ele nunca considerou participar das paralimpíadas? — perguntou Leon.
Jimmy deu uma sopradinha sarcástica:
— O Jacko? Isso significaria admitir que ele é deficiente.
— Então você começou a treinar Jacko quando ele tinha 13 anos?
— Isso mesmo. Ele era trabalhador, é o que digo. Tinha sorte de morar em Londres porque o acesso a mim, às instalações e aos equipamentos era bom e, por Deus, ele aproveitava ao máximo. Eu costumava perguntar se ele não tinha casa.
— E o que ele falava sobre isso?
— Ih, simplesmente dava de ombros. Eu tinha a impressão de que a mãe dele não se importava com o que ele estava fazendo contanto que ficasse fora do caminho dela. Já estava distante do pai nessa época, é claro. Separados, divorciados, seja o que for.
— Os pais não apareciam lá nessa época?
Jimmy negou com um gesto de cabeça e continuou:
— Nunca vi a mãe. Nenhuma vez. O pai dele foi a um evento. Acho que foi na vez em que Jacko ia tentar bater o recorde da categoria júnior, mas estragou tudo. Lembro que o pai tirou um belo sarro dele. Eu o levei para um canto e disse que, se não pudesse apoiar o filho, não era bem-vindo.
— Como ele reagiu a isso?
Jimmy deu um gole de chá e disse:
— Ih, aquele filho da puta idiota me chamou de boiola. Falei pra ele sair daquela porra daquele lugar e foi a última vez que vi o sujeito.
Leon memorizou aquilo. Sabia que o Tony ficaria interessado na história. Da maneira como ele via, o jovem Jacko era desesperado por atenção. Sua mãe era indiferente, o pai, ausente, e ele, por inteiro, estava focado nas conquistas esportivas na esperança de que, de alguma maneira, ganhasse reconhecimento com elas.
— Então era solitário, o Jacko? — perguntou, acendendo um cigarro e ignorando o olhar de reprovação no rosto comprido do treinador.
Jimmy refletiu antes de responder:
— Ele podia até curtir com o pessoal, mas não fazia de verdade parte da galera, sabe o que quero dizer? Era dedicado demais. Não conseguia relaxar muito. Não que fosse solitário. Não, estava sempre acompanhado da Jillie, que ficava com ele direto, sempre elogiando o garoto, falando que era maravilhoso.
— Eram dedicados um ao outro?
— Ela era dedicada a ele. Ele era dedicado a ele mesmo, mas gostava da adoração. Incondicional, como a que se consegue de um cachorro collie. De vez em quando até a Jillie ficava de saco cheio. Movi céus e terras pra manter aquele casal junto. Toda vez que ela ficava chateada por ele a deixar em segundo plano e priorizar os treinos e as competições, eu a animava falando que ela se sentiria maravilhosa quando ele estivesse de pé lá no pódio olímpico, recebendo a medalha de ouro. Dizia também que a maioria das garotas só chegariam perto do ouro chulé das suas alianças de casamento, mas ela ganharia uma medalha de ouro.
— E isso era o suficiente?
Jimmy deu de ombros, abanando a fumaça de Leon com uma das mãos.
— Pra ser honesto, tanto era que acabou sendo a única coisa que a fez continuar. Quando ele começou a competir no circuito profissional, e Jillie estava um pouco mais velha, ela começou a perceber a maneira como os outros rapazes tratavam as suas namoradas. Jacko não ficava muito bem nessa comparação. Se não tivesse perdido o braço, ela toleraria aquilo por causa da aclamação e da grana que viriam com o sucesso; foi naquela época que os atletas estavam começando a ganhar muita grana e a previsão era de que continuariam ganhando. Mas, assim que percebeu que ele não seria mais um caixa eletrônico nem um sujeito muito famoso, dispensou o cara.
Leon estava prestando muita atenção.
— Eu achava que ele tinha terminado com ela. Na época li que ele terminou o noivado porque não era o homem com quem ela tinha aceitado se casar e não era justo amarrar a menina. Foi alguma coisa assim, não foi?
— E você acreditou naquela bobagem toda? Essa foi a história que Jacko inventou pra imprensa pra fazer com que ele parecesse um grande homem e não o infeliz dispensado pela namorada.
Então Shaz podia mesmo estar certa, Leon pensou. A circunstância empilhou dois estressores traumáticos, um sobre o outro. Primeiro, Vance perdera o braço e o futuro. Depois perdeu a única pessoa que acreditara nele como ser humano e não como uma máquina de arremessar. Um homem precisaria ser muito forte para sobreviver a isso incólume; um sujeito torto precisaria se vingar do mundo que fizera aquilo com ele. Leon apagou o cigarro e perguntou:
— Ele que te contou a verdade?
— Não. Foi a Jillie. Eu a levei ao hospital naquele dia. E me encontrei com o Jacko depois que ela falou com ele.
— Como ele lidou com aquilo?
Os olhos de Jimmy gotejavam desprezo.
— Ah, como um homem. Ele me falou que ela era uma puta cruel que estava atrás de uma coisa só. Falei que ele não precisava se entregar aos ferimentos, que podia treinar pros jogos paraolímpicos e que era melhor ter descoberto sobre a Jillie naquele momento. Ele falou pra eu me foder e nunca mais chegar perto dele. Foi a última vez que vi Jacko.
— Não voltou ao hospital?
O rosto do treinador estava desolado.
— Fui lá todos os dias durante uma semana. Ele não me recebia. Recusava terminantemente. Parecia que não se dava conta de que eu também tinha perdido o meu sonho. Enfim, tive a oportunidade de voltar a trabalhar aqui na Escócia, aí voltei e comecei tudo de novo.
— Ficou surpreso quando ele despontou como celebridade da televisão?
— Não posso dizer que fiquei, não. Aquele lá precisa de alguém pra falar que ele é maravilhoso. Direto me pergunto se aqueles milhões de espectadores são suficientes, se ainda é desesperado pra ser adorado como era naquela época. Ele nunca conseguiu enxergar um valor nele mesmo se não fosse refletido nos olhos de outras pessoas.
Jimmy abanou a cabeça e gesticulou pedindo outra xícara de chá.
— Suponho que queira saber se ele tinha inimigos e quais eram os segredos mais profundos e obscuros dele.
Uma hora depois, Leon sabia que o que Jimmy Linden lhe dissera no início da conversa era o que realmente importava. Tinha dado sorte, foi o que percebeu quando estava sentado no carro depois da conversa. Por alguma razão, seu gravador em miniatura não tinha virado a fita automaticamente e gravara apenas a primeira parte da conversa. Sentindo-se muito satisfeito consigo mesmo, Leon arrancou o carro e começou sua longa jornada em direção ao sul, imaginando quem tinha feito o melhor até então. Sabia que não era uma competição. Gostava de Shaz a ponto de fazer aquilo por ela. Mas era suficientemente humano para saber que ter um bom desempenho na rua não lhe faria mal algum. Especialmente desde que entendera que, em relação a Tony Hill, tinha que mostrar mais do que um pouquinho de competência.
Não foi difícil localizar o complexo composto por um estádio esportivo e um centro de lazer. Iluminado em frente às escuras Malvern Hills, era visível a quilômetros de distância na rodovia. Assim que entrou nas estradas menores e no surto de minirrotatórias, Tony ficou contente por ter pedido informações sobre o caminho antes de sair. O centro fora construído muito recentemente e a maioria das pessoas não sabia onde ele ficava, portanto, a voz anônima que lhe dera uma informação precisa pelo telefone estava obviamente acostumada com o processo. Como se constatou mais tarde, ele teria chegado corretamente se tivesse apenas seguido qualquer outro carro indo na mesma direção. O estacionamento já estava lotado e ele teve que estacionar a algumas centenas de metros da entrada principal, onde havia um enorme banner proclamando: “Grande Festa de Inauguração — com o Convidado Especial Jacko Vance e Estrelas do Time Inglês”. Jogadores de futebol para os homens, Jacko para as mulheres, pensou enquanto caminhava energicamente pelo asfalto, agradecido pela maior parte do estádio estar servindo de proteção contra o vento frio da noite.
Ele se juntou à multidão de pessoas impacientes se enfiando pelas catracas, lançando um olhar hábil para a equipe que conferia os ingressos. Escolheu uma mulher de meia-idade que parecia competente e maternal e forçou passagem pelo aglomerado de corpos para se apresentar a ela pela janela. Tony tirou do bolso sua credencial do Ministério do Exterior e a mostrou, medindo sua expressão de maneira que ficasse lastimável e arrasada.
— Dr. Hill, Ministério do Interior, grupo de pesquisa esportiva. Eu deveria ter uma credencial VIP, mas ela não chegou. Suponho que...?
A mulher fechou a cara momentaneamente. Avaliou-o rapidamente para calcular se ele era capaz de alguma coisa e, percebendo que a fila atrás dele crescia, finalmente chegou à conclusão de que, esse problema era de outra pessoa, então apertou o botão que liberava a catraca para deixá-lo passar.
— Você tem que ir pro camarote dos diretores. Dá a volta pela direita, segundo andar.
Tony deixou o movimento natural da multidão carregá-lo para a frente até a ampla área debaixo da arquibancada onde havia muito eco, depois foi se movendo lateralmente com dificuldade para estudar o mapa gigante do estádio inteligentemente disposto abaixo das fileiras de cadeiras. Quem quer que o tenha projetado estava ciente da superfície tridimensional em que seria reproduzido, e isso de alguma maneira fazia com que ele pudesse ser visualizado nitidamente de qualquer ângulo. De acordo com a programação que acabara de adquirir, haveria música ao vivo na arena principal, seguida de uma partida de futebol com os atletas da equipe inglesa, depois um espetáculo de dança irlandesa. Para aqueles que desembolsaram cinquenta libras a mais ou que ganharam uma das promoções feitas pela TV, pelo rádio e pelos jornais locais, havia a oportunidade de conhecer as celebridades. Era ali que ele precisava estar.
Tony avançou, esgueirando-se através da multidão, calculando seus movimentos para que não irritasse ninguém em sua rota até o elevador executivo. O saguão estava isolado por grossas cordas vermelhas. Um segurança usava um cinto carregado com tanto equipamento que dava para repor o estoque de uma loja de ferragens. Ele o observava com um olhar maligno por baixo do boné enfiado na cabeça, mais parecendo um soldado da guarda real britânica. Tony sabia que aquilo tudo não passava de bravata. Mostrou rapidamente sua credencial para o segurança e seguiu com determinação como se a última coisa que estivesse esperando era ser desafiado.
— Um minutinho aí.
Tony já estava em frente ao elevador apertando o botão.
— Está tudo bem — disse ele. — Ministério do Interior. Gostamos de aparecer quando menos esperam. Precisamos ficar de olho nas coisas, você sabe.
Ele piscou e entrou no elevador.
— Não queremos outro desastre como o de Hillsborough, queremos?
As portas se fecharam em frente ao rosto confuso do segurança.
Depois foi fácil. Saiu do elevador, desceu o corredor, entrou pela porta dupla, pegou um copo de algo amarelado e espumante com o garçom mais próximo e estava pronto. Estudou as compridas janelas que se estendiam pela parede do lado oposto e davam vista para o campo projetado para ser usado em qualquer clima. Viu um grupo de balizas pavoneando seus movimentos logo abaixo. Um pequeno grupo de pessoas se aglomerava nas pontas da sala. Na ponta mais longe, Jacko Vance estava perto da janela no meio de um grupo de mulheres de meia-idade e alguns poucos homens. Seu cabelo brilhava na luz refratada dos refletores sobre o campo, os olhos resplandeciam à iluminação suave do camarote VIP. Mesmo já tendo feito duas aparições em prol da caridade naquele dia, sua linguagem corporal ainda era calorosa, acolhedora e seu sorrido tratava a todos como um semelhante bem-vindo. Parecia um deus lidando com seus adoradores sem condescendência. Tony deu um magro sorriso. O terceiro evento desde que começara a vigiar Jacko, e todas as vezes ele se dera bem. Era quase como se houvesse uma conexão, uma fibra ótica invisível conectando o caçador à presa. Dessa vez, entretanto, ele garantiria que esses papéis não se invertessem. Isso ter acontecido uma vez já fora o suficiente.
Tony se moveu para o lado e começou a atravessar a sala usando os convidados legítimos como cobertura. Depois de alguns minutos, percorrera toda a extensão da sala e estava no canto oposto ao de Vance, mas um pouco atrás dele. Seus olhos se moviam de um lado para o outro, analisando a área imediatamente ao redor da estrela de TV sem nunca se prolongar demais, mas também sem deixar de vigiar Vance por mais do que um momento.
Ele não teve muito que esperar. Uma mulher jovem de cabelos louros penteados para trás, óculos estilo John Lennon e lábios vermelhos entrou saltitante na sala segurando uma bolsa em que estava escrito SHOUT! FM, conferindo se o pessoal sob sua responsabilidade ainda estavam a acompanhando. Em seguida, numa fila irregular, vieram três adolescentes emperiquitadas e maquiadas demais, dois jovens com mais espinhas do que charme e uma idosa cujo cabelo estava tão rígido que parecia que os rolinhos ainda estavam presos a ele. Três passos atrás um nerd desengonçado com um colete com uma dúzia de bolsos protuberantes e duas câmeras SLR penduradas de modo negligente ao redor do pescoço. Os vencedores de alguma promoção, supôs. Tony conseguia pensar em uma pergunta que nunca haviam feito a eles: quantas adolescentes Jacko Vance assassinou? Levaria um ou dois anos depois que Tony terminasse o trabalho naquele caso para que ela aparecesse nas revistas de perguntas e respostas sobre trivialidades.
A loura saltitante se aproximou do local em que Vance estava rodeado de admiradores. Tony viu Vance olhá-la, abandoná-la depreciativamente e se concentrar na mulher de meia-idade com um sari turquesa para quem jogara charme anteriormente. A loura se lançou para dentro do círculo fechado ao redor de Jacko, mas foi barrada pela mulher que servia de zagueiro, algo que Tony notara na primeira vez que o vigiara. Seus rostos se aproximaram, depois a assistente pessoal fez um movimento com a cabeça e encostou no cotovelo de Vance. Ao se virar, seu olhar profissional deslizou pela sala e capturou Tony. A varredura dos seus olhos pausou momentaneamente, depois continuou, nada em sua expressão mudou.
Os vencedores da batalha da loura eram encaminhados à presença do seu ídolo. Ele sorria, era a personificação do charme. Batia papo, dava autógrafos, apertava mãos, beliscava bochechas e posava para fotos. A cada trinta segundos, seus olhos perdiam o foco e olhavam infalivelmente para onde Tony estava de pé apoiado na parede, dando golinhos em champanhe sem álcool, sua pose e expressão exalando segurança e confiança.
Assim que os vencedores chegaram ao fim do encontro, Tony se afastou do seu ponto de vista vantajoso e foi até o pequeno grupo, ainda de pé perto de Vance, suas expressões variavam entre êxtase e fingida indiferença, dependendo do quanto achavam que precisavam ser descolados. Todo bondade, Tony se insinuou para o grupo, sua expressão um modelo de abertura e afabilidade.
— Desculpem por me intrometer assim com vocês, mas acho que podem me ajudar. Meu nome é Tony Hill, sou criador de perfis psicológicos. Vocês sabem que as estrelas como Jacko estão sempre sendo atormentadas por espreitadores? Estou trabalhando com uma equipe de policiais excelentes em formas de descobrir quem são esses espreitadores antes que comecem a causar problemas de verdade. O que estamos tentando fazer é desenvolver um perfil psicológico do fã perfeito, aquele considerado o bom apoiador. Pessoas como vocês, o tipo de fã que qualquer celebridade adoraria ter ao lado. Precisamos disso para que possamos desenvolver o que chamamos de perfil de controle. A única coisa de que precisamos é uma entrevista curta com vocês. Meia-hora no máximo. Vamos à casa de vocês ou vocês vêm a nós, pagamos 25 libras, e vocês têm o conforto de saberem que podem ter detido o próximo Mark Chapman.
Ele adorava o jeito como o rosto deles sempre mudava quando mencionava o dinheiro.
Tony tirou do bolso interno tiras de papel a serem preenchidas com nome e endereço.
— O que acham disso? Respondendo anonimamente a um questionário simples vocês ajudam a salvar uma vida e ganham 25 libras. É só preencherem com nome e endereço e um dos meus pesquisadores entrará em contato.
Ele pegou os bonitos cartões em relevo da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis Criminais.
— Este sou eu.
Distribuiu-os. Nesse momento, apenas um dos jovens não estava com a mão estendida para pegar o formulário.
— Peguem aqui — disse Tony, oferecendo-lhes canetas.
Olhou para Vance. Seu rosto ainda estava sorridente, sua boca formava palavras, suas mãos davam tapinhas em um cotovelo aqui, um ombro ali. Mas seus olhos estavam em Tony; escuros, interrogativos e hostis.
A casa não tinha nada de especial, Simon pensou ao estacionar o carro. Uma casa de um andar com um sótão transformado em terceiro quarto em um condomínio que existia há trinta anos que estava no caminho para invalidar o adágio de que a vida começa aos quarenta. Teria se dado muito melhor se ela e Jacko tivessem ficado juntos. Ela certamente não teria acabado em uma cidade como Wellingborough, onde sair à noite para ir à megastore de material de construção era a ideia que a maioria das pessoas tinha de divertimento.
Estava impressionado com a velocidade com que Carol Jordan conseguira o paradeiro de Jillie Woodrow, ainda mais por ela ter se casado novamente há três anos.
— Não pergunta — dissera Carol quando Simon a elogiara, admitindo que ele teria levado dias para fazer um progresso daqueles.
Lembrou que Tony Hill tinha mencionando algo a Carol sobre o irmão dela ser da indústria de computadores e se perguntou se a força-tarefa com poucos recursos financeiros acabara de adicionar roubo de dados às suas irregularidades.
Ficou no carro e observou a casa de Jillie e Jeff Lewis no outro lado da rua. Parecia em ótimo estado de conservação e implacavelmente enquadrada no modelo de casa de bairros residenciais afastados do centro, com seu gramado em perfeito estado, as bordas cheias de hebes e urzes equidistantes umas das outras. Havia um carro de um ano de uso na entrada da garagem e cortinas na janela da frente. Se a atenção de Jillie Lewis tivesse sido chamada pelo barulho do motor, ela poderia o estar observando e ele não teria a menor ideia disso.
Aquele era, muito provavelmente, o mais crucial interrogatório da sua carreira até então, Simon pensou, preparando-se para a tarefa. Não tinha uma ideia clara sobre o que perguntaria, mas Jillie Lewis possuía informações que incriminariam Jacko Vance pelo assassinato de Shaz Bowman, e estava determinado a arrancar isso dela de um jeito ou de outro. Não tivera a chance de descobrir se, em algum momento, teria a chance de se tornar mais do que um colega de Shaz. Porém, era o suficiente para que ele se sentisse em dívida. Simon saiu do carro e vestiu o blazer do seu terno chique. Endireitando a gravata e os ombros, respirou fundo e percorreu o caminho até a entrada.
A porta abriu segundos depois dele tocar a campainha e foi parada abruptamente por uma frágil corrente que não seria suficiente para impedi-lo de entrar em poucos segundos caso essa fosse a sua intenção. Por um breve e louco momento, perguntou-se se aquela era a faxineira ou a babá. A mulher que o encarava pelo vão da porta não possuía nenhuma semelhança superficial com a mulher nas antigas fotos de Jillie Woodrow no jornal nem com as meninas adolescentes da lista de desaparecidas. O cabelo era estilo joãozinho, louro e com luzes, e não escuro e comprido na altura dos ombros como ele estava esperando, além disso, ela tinha perdido qualquer vestígio da gordurinha infantil, estava magra a ponto de Simon, se fosse o marido, estar secretamente fazendo leituras sobre anorexia. Prestes a se desculpar, reconheceu os olhos. A expressão tinha endurecido, havia rugas começando a aparecer nas extremidades, mas aqueles eram os olhos azul-escuros comoventes de Jillie Woodrow.
— Sra. Lewis? — disse ele.
Ela fez que sim e perguntou:
— Quem é você?
Simon mostrou seu distintivo e ela indagou assustada:
— Jeff?
Rapidamente Simon a tranquilizou:
— Não tem nada a ver com o seu marido. Atualmente faço parte de uma unidade especial de investigação em Leeds, mas a força a que pertenço é em Strathclyde. Não tenho nenhuma conexão local.
— Leeds? Nunca fui a Leeds.
Quando ela franziu a sobrancelha, o descontentamento ficou escrito no seu rosto como em um outdoor.
Simon sorriu.
— Sorte sua. Ultimamente, em alguns momentos, gostaria de poder falar a mesma coisa. Sra. Lewis, esta situação é bem constrangedora e seria muito mais fácil pra mim explicar tudo aí dentro com uma xícara de café do que à porta. Posso entrar?
Ela hesitou e fez uma encenação ao olhar o relógio:
— Tenho que ir trabalhar — falou ela, sendo cuidadosa em não dizer quando.
— Não estaria aqui se não fosse importante — insistiu Simon, seu apologético sorriso expunha o charme que usara como um dos recursos para levá-lo até aquele ponto da carreira.
— Acho melhor você entrar, então — disse ela, tirando a corrente e dando um passo atrás.
Ele entrou na sala que mais parecia pertencer a uma casa decorada com o objetivo de ser mostruário de imobiliárias. Impecável, sem graça e imaculada, dando em uma cozinha na qual parecia que ninguém jamais havia cozinhado. Jillie foi na frente e apontou para uma mesa circular espremida em um canto.
— É melhor você se sentar — murmurou ela enquanto pegava uma chaleira verde-escuro que combinava com os azulejos na parede sobre a pia. — Café, então?
— Por favor — aceitou Simon, entalando-se atrás da mesa. — Com leite e sem açúcar.
— Suponho que já se acha bem docinho — comentou Jillie com acidez, pegando um pote de café solúvel barato na prateleira e colocando algumas colheradas em duas canecas de porcelana. — Imagino que isso tem a ver com Jacko Vance, não tem?
Simon tentou não revelar o quanto estava surpreso.
— O que te faz pensar isso?
Jillie se virou, apoiando-se na bancada e cruzando as pernas vestidas com jeans. Cruzou os braços de forma protetora sobre o peito.
— O que mais poderia ser? O Jeff é um vendedor honesto que trabalha muito, sou uma processadora de dados que trabalha meio período. A gente não conhece nenhum criminoso. A única coisa que já fiz que alguma pessoa fora destas quatro paredes podia estar interessada é ter sido namorada do Jacko Vance. A única pessoa com quem já tive alguma coisa e que despertaria o interesse de alguma unidade especial de investigação é a porcaria do Jacko Vance, que volta pra me assombrar de novo.
Foi um desabafo hostil, que ela concluiu dando as costas para Simon e fazendo questão de transformar o ato de servir dois cafés em algo odioso.
— Não tenho muita certeza do que fazer agora — disse Simon. — Desculpa. É óbvio que é um assunto delicado.
Jillie largou o café em frente a ele. Dado o estado impecável da cozinha, Simon ficou surpreso por ela não ter corrido para pegar o pano assim que ele entornou um pouco na mesa de pinho. Em vez disso, recuou e encostou novamente na bancada, agarrando seu café como uma criança agarraria uma mamadeira de água quente.
— Não tenho nada pra falar sobre o Jacko Vance. Sua viagem de Leeds até aqui foi um desperdício. Além disso, suponho que o valor que você ganha por quilômetro rodado é bom, já que são as pessoas que pagam impostos que bancam a conta e não uma empresa mão de vaca.
A amargura dela parecia ter afetado o café, Simon pensou com tristeza, dando um golinho para ganhar tempo e pensar em uma resposta.
— É uma investigação importante — disse ele. — Você poderia nos ajudar.
Ela bateu a caneca na bancada.
— Olha só, não me interessa o que ele fala. Não sou eu que estou importunando o cara. Fiquei de saco cheio disso logo quando casei com o Jeff. A polícia me procurou uma meia dúzia de vezes. Estava mandando cartas anônimas pro Jacko? Estava fazendo telefonemas abusivos pra mulher dele? Empacotei bosta de cachorro e mandei entregar no escritório dele? A resposta de agora é a mesma de antes. Se acham que sou a única pessoa que Jacko Vance chateou na sua jornada egoísta até o topo do pau de sebo, vocês têm um problema sério de deficiência imaginativa. — Ela parou abruptamente e o encarou. — Também não faço chantagem. Pode conferir. Todo centavo que entra e sai desta casa está declarado. Tive que lutar contra essa acusação e ela é outra bobagem do cacete também. — Jillie abanou a cabeça. — Não dá pra acreditar naquele porco. — Ela espumava.
Simon suspendeu as mãos em um gesto conciliador.
— Ei, um minutinho aí. Acho que você está entendendo tudo ao contrário. Não vim me encontrar com você porque Jacko fez uma reclamação. Quero falar sobre Jacko, mas estou interessado só no que ele fez, não no que fala que você fez. É sério!
Ela lhe lançou um olhar afiado.
— O quê?
Apreensivo por talvez ter ido longe demais, Simon continuou:
— Como disse, isto aqui é tudo muito delicado. O nome de Jacko Vance apareceu em uma investigação e o meu trabalho é fazer algumas verificações de antecedentes. Sem alertar o sr. Vance sobre o nosso interesse, se é que você me entende. — Ele esperava não estar transparecendo o nervosismo que sentia. O que quer que tinha imaginado, não era aquilo ali.
— Estão investigando o Jacko Vance? — Jillie soava incrédula, mas parecia que tinha começado a ficar animada.
Simon remexeu na cadeira.
— Como disse, o nome dele apareceu na investigação de um assunto sério...
Jillie deu um soco na coxa.
— Isso! Já não era sem tempo. Não me conta, deixa que adivinho. Ele machucou muito uma pobre mulher e não a aterrorizou o suficiente para fazer com que ela mantivesse a boca fechada, é isso?
Simon sentia o interrogatório escapulir do seu controle. A única coisa que podia fazer era tentar se agarrar ao poder e desejar não perdê-lo ao longo do caminho.
— O que te faz falar isso? — perguntou ele.
— Com certeza isso aconteceria um dia — afirmou ela com um ar quase triunfante. — Então, o que você quer saber?
Quando chegou em casa, os olhos de Tony estavam arranhando de tanto observar os muitíssimos quilômetros de rodovia. Não tinha a intenção de checar a secretária eletrônica, mas a luz piscando capturou seu olhar assim que passou pela porta do escritório. Cansado, apertou o botão para ouvir o recado.
— Oi. Meu nome é Chris Devine. Detetive sargento Chris Devine. Fui parceira da Shaz Bowman no Departamento de Investigação Criminal em Londres durante um tempo. Ela me usou para esquematizar o encontro com o Jacko Vance. Me dá uma ligada quando chegar. Pode ser em qualquer horário, não se preocupa.
Ele pegou uma caneta, rabiscou o número e pegou o telefone assim que o recado terminou. O telefone tocou seis vezes, depois alguém atendeu:
— É a Chris Devine? — perguntou ele ao silêncio.
— É o Tony Hill? — A voz era totalmente sul de Londres.
— Você deixou um recado na minha secretária. Sobre a Shaz.
— Isso. Escuta, aqueles manés de West Yorkshire vieram aqui e me falaram que não estão trabalhando com você. É isso mesmo?
Tony gostava das pessoas que não perdiam tempo.
— Acharam que comprometeria a integridade da investigação deles envolver a mim ou qualquer outro colega imediato da Shaz — respondeu ele causticamente.
— Escrotos — xingou, indignada. — Puta que pariu, eles não têm a menor pista, desculpe meu palavreado educadinho. E aí, está fazendo a sua própria investigação ou o quê?
Era como ser pregado à parede por um peso enorme, pensou Tony.
— Obviamente estou muito ansioso para ver o assassino da Shaz ser pego — tentou ele.
— E o que está fazendo a respeito?
— Por que está perguntando?
— Pra ver se você precisa de mais uma mão, é claro — respondeu ela, exasperada. — A Shaz era uma menina muito bacana e ia ser uma policial excelente. Agora, ou o Jacko Vance passou por cima dela por razões que a gente ainda não conhece por inteiro ou outra pessoa fez isso. De um jeito ou de outro, os dois caminhos levam à porta dele, não é?
— Tem razão — disse Tony. Nesse momento ele soube como o cimento se sente debaixo do rolo compressor.
— E está trabalhando no caso?
— Pode-se dizer que estou.
O suspiro dela soou como uma lufada de ar.
— Bom, pode-se dizer que estou disposta a ajudar. O que você precisa que eu faça?
A cabeça de Tony disparou.
— Estou meio sem mão de obra pra verificar a questão que envolve o Vance e a esposa. Algo que me colocasse no encalço deles poderia ajudar.
— Tipo se Micky Morgan é mesmo lésbica?
— Esse tipo de coisa, é.
— Está querendo dizer que isso não é suficiente? — questionou Chris.
— Isso é verdade?
— Claro que é verdade — bufou ela. — Estão tão dentro do armário que você confundiria esse pessoal com um par de casacos de inverno, mas essa Coca é Fanta.
— Essa Coca é Fanta?
— Isso mesmo. Está com a Betsy há um zilhão de anos. Muito antes até de conhecer Jacko.
— Betsy Thorne? A assistente pessoal dela?
— Assistente pessoal o cacete. Amante, tá mais pra isso. Betsy tinha um buffet pequeno com a ex dela, aí conheceu a Micky Morgan e foi beijinho, beijinho, tchau, tchau. Elas costumavam ir a alguns lugares muito discretos nas antigas. Depois saíram totalmente de cena e aí, do nada, Micky aparece como gostosinha do Jacko Vance. Só que a Betsy continua bem ali na fita. Olha só, Micky não parava de progredir e havia rumores de que os tabloides acabariam sacando que ela era lésbica.
— Como você sabe de tudo isso? — perguntou Tony de maneira tênue.
— Como você acha? Meu Deus, doze, quinze anos atrás, você não ficava neste emprego se fosse assumida. Costumávamos ir aos mesmos lugares. Lugares onde todo mundo estava no mesmo barco, então ninguém caguetava ninguém. Vai por mim, quem quer que o Jacko Vance esteja comendo, não é a mulher dele. Pra te falar a verdade, foi isso que me fez achar que aquele negócio da Shaz podia dar em alguma coisa.
— Você contou isso pra Shaz?
— Praticamente nunca penso na Micky Morgan. Isso só me ocorreu depois que esquematizei o encontro. Ia contar quando ela me ligasse pra contar como tinha sido a parada com o Jacko. Então, não, não cheguei a dar o toque nela. Tem alguma utilidade pra você?
— Chris, isso é fabuloso. Você é fabulosa.
— É o que todo mundo fala, docinho. E aí, vai querer que eu ajude ou o quê?
— Acho que já ajudou.
Quando Carol entrou em seu domínio, o trio já estava lá nos seus lugares de costume, um filete de fumaça do cigarro de Lee vinha caracoleando do canto onde ficava a janela. Ela sentia que fumar era um ato para desafiá-la. Mas apesar de nunca ter fumado — ou talvez exatamente por essa razão —, o leve odor de cigarro era algo que raramente a incomodava. Carol encontrou forças para sorrir e tentou não despencar quando suas costas bateram na cadeira.
— Então, o que a gente tem?
Tommy Taylor colocou o tornozelo esquerdo sobre o joelho direito e se deixou escorrer contorcido na cadeira. Carol não invejou a dor nas costas que lhe aguardava alguns anos mais tarde. Ele jogou negligentemente uma pasta sobre a mesa dela. Ao escorregar em direção a ela, as bordas dos papéis ficaram à vista.
— A gente sabe mais sobre a vida financeira desses camaradas do que as mulheres deles.
— De acordo com o que ouvi falar de Yorkshire, isso não quer dizer muita coisa — comentou Carol. Tommy e Lee Whitbread arreganharam um sorriso. A expressão austera de Di Earnshaw permaneceu imóvel.
— Que isso, senhora, acho que esse aí pode muito bem ser um comentário sexista — protestou Lee.
— Então me processa. O que a gente tem?
— Está tudo na pasta — respondeu Tommy, balançando um polegar na direção dela.
— Resume.
— Di? — disse Tommy. — Você é a feiticeira das palavras.
Di descruzou os braços e enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta verde-oliva que fazia o visual dela dar vontade de vomitar.
—Pendlebury não foi muito cooperativo, mas autorizou o acesso à folha de pagamento, o que nos deu informações sobre detalhes bancários, endereços e datas de nascimento dos nossos suspeitos. Com essa informação, fomos capazes de ter acesso a dívidas em protesto...
— E um passarinho ajudou a gente a dar uma conferida nos empréstimos — Lee completou.
— Mas a gente não comenta isso — repreendeu Tommy.
Carol interveio:
— Dá pra cortar a enrolação e ir direto ao que importa?
Di contraiu os lábios com sua agora já familiar desaprovação.
— Dois candidatos se destacaram. Alan Brinkley e Raymond Watson. Os dois estão muito endividados, como você vai ver. Os dois são daqui. Watson é solteiro. O casamento de Brinkley foi há mais ou menos um ano. Os dois estão prestes a perder as casas, têm dívidas em protesto e estão vendendo o almoço pra comprar o jantar. Esses incêndios têm meio que sido uma bênção pros dois.
— Por pior que seja um acontecimento, alguém sempre sai no lucro — complementou Taylor.
Carol abriu a pasta e pegou as folhas com os dados dos dois homens.
— Bom trabalho. Fizeram bem em conseguir tantos detalhes.
Lee deu de ombros.
— Quando você investiga detalhadamente, vê que Seaford é um grande vilarejo. Favores devidos, favores pagos.
— Contanto que não ultrapassemos o limite quando chegar o dia do pagamento — disse Carol.
— Não confia na gente, senhora? — perguntou Tommy arrastando as palavras.
— Me dê cinco boas razões para confiar.
— Então, quer que a gente traga os caras aqui pra interrogatório? — perguntou Lee.
Carol refletiu por um momento. O que realmente queria fazer era consultar Tony, mas não queria que eles soubessem que a chefe não era capaz de tomar as próprias decisões.
— Falo com vocês de novo quando conseguir analisar isto aqui mais detalhadamente. Podem haver opções mais proveitosas do que tentar arrancar isso deles na marra.
— A gente podia tentar conseguir um mandado de busca — Lee novamente, o incansável da equipe.
— Discutimos isto de novo de manhã — prometeu Carol.
Ela os observou irem embora, depois enfiou a pasta na sua maleta estufada. Hora de dar uma volta pela sala em que ficava o pessoal e se certificar de que o restante do Departamento de Investigação Criminal estava fazendo o que supostamente deveria com os casos que dominavam as pilhas de papéis sobre suas mesas. Desejava que ninguém quisesse inspiração. Transpiração era praticamente tudo o que lhe restava para oferecer.
Estava prestes a passar pela porta quando o telefone tocou.
— Detetive inspetora-chefe Jordan.
— É o Brandon.
— Senhor?
— Estava há pouco conversando com um colega lá em West Yorkshire. No decorrer da conversa, chegamos a falar sobre o assassinato da policial dele. Ele mencionou que parecia que o principal suspeito deles tinha fugido. Um rapaz chamado Simon McNeill. Falou que provavelmente vão soltar um boletim interno amanhã de manhã pedindo para que outras forças fiquem de olho nesse McNeill e o detenham caso o encontrem.
— Ah.
— Achei que isso pudesse te interessar — comentou Brandon despreocupadamente. — Já que nossa área é ao lado da deles.
— Certamente, senhor. Assim que receber a notificação oficial, vou mencionar isso pro esquadrão.
— Não que imagine que ele vá aparecer aqui.
— Hmm. Obrigada, senhor — Carol colocou o fone no gancho cuidadosamente. — Que merda — reclamou baixinho.
Tony lambeu o dedo e arrumou alguns cabelos indisciplinados da sua sobrancelha esquerda. Analisou-se criticamente no espelho que era, com exceção de duas poltronas laranja de polipropileno, a única mobília na sala um pouquinho maior do que um armário, onde lhe pediram para aguardar. Ele achava que seu visual sério estava apropriado, com seu único terno decente, mesmo que Carol lhe tenha dito que parecia um jogador de futebol profissional vindo do passado. Nem mesmo ela poderia criticar sua camisa cinza-chumbo e a gravata magenta escura, ele decidiu.
Ao ser aberta, a porta revelou uma mulher de rosto calmo que se apresentou como assistente pessoal de Micky, mas que ele identificou, graças a Chris, como a amante da apresentadora, Betsy.
— Tudo bem? — perguntou ela.
— Tudo bem.
— Que bom. — A voz dela era calorosa e encorajadora, como a das melhores professoras de escola primária. Seu sorriso, entretanto, era mecânico, Tony concluiu, e era nítido que sua cabeça estava em outro lugar. — Deixe-me dizer que isso é bem incomum para nós, porque normalmente Micky prefere não falar absolutamente nada com os convidados antes da entrevista. Mas porque... bom, porque se sente envolvida, ainda que tangencialmente, com sua perda trágica, quer trocar algumas palavras com você antes. Não tem nenhuma objeção quanto a isso, certo?
Havia algo naquela voz metálica de classe alta que não deixava espaço para objeção. Sorte da Micky, pensou ele, ter uma leoa dessas ao portão.
— Ficaria encantado — respondeu ele com muita sinceridade.
— Bom. Ela estará aqui em alguns minutos. Precisa de alguma coisa? Café? Água?
— O café é de máquina? — perguntou ele.
O sorriso dessa vez era genuíno.
— Creio que sim. Indistinguível do chá, do chocolate quente e da canja.
— Fica pra próxima, então.
A cabeça desapareceu e a porta fechou suavemente. O estômago dele se agitou com a apreensão. Exposições públicas sempre o estressavam. Mas, neste dia, havia a tensão adicional da sua campanha para desestabilizar Jacko Vance a ponto dele cometer um erro. Vigiar as aparições públicas de Vance era apenas o primeiro tiro de alerta. Insinuar-se no coração do programa de TV da esposa de Jacko era incrementar significativamente o risco. Não havia motivo para se enganar.
Tony pigarreava com nervosismo e conferia compulsivamente sua aparência no espelho. A porta foi aberta sem aviso e, de repente, Micky Morgan estava na sala.
— Oi, sra. Morgan — cumprimentou ele, estendendo a mão.
— Dr. Hill — disse Mickey. Seu aperto de mão foi ligeiro, frio e firme. — Obrigada por vir ao programa.
— O prazer é meu. Há tantos mal-entendidos em relação ao que fazemos que toda oportunidade de esclarecer as coisas é bem-vinda. Especialmente agora que estamos nos jornais novamente pelas razões erradas. — Ele baixou os olhos deliberadamente por um momento.
— Totalmente. Sinto muito mesmo pelo que aconteceu com a detetive Bowman. Nós nos encontramos muito rapidamente, mas ela me deu a impressão de ser muito esperta e focada. E também muito bonita, é claro.
Tony concordou com um gesto de cabeça e comentou:
— Ela vai fazer falta. Era uma das melhores jovens policiais com quem já tive o privilégio de trabalhar.
— Posso imaginar. É terrível para os policiais perderem um de seus companheiros.
— Há sempre muita raiva pairando no ar, o que encobre o fato de que eles tendem a sentir que uma morte na família é um reflexo da competência deles, que, de alguma maneira, eles teriam sido capazes de impedir aquilo se simplesmente estivessem trabalhando direito. E, nesse sentido, compartilho da culpa.
— Tenho certeza de que não havia nada que você pudesse ter feito para impedir aquilo — disse Micky, colocando impulsivamente a mão no braço dele. — Quando contei ao meu marido que você viria ao programa, ele disse a mesma coisa, e Jacko tem menos razão para se sentir responsável.
— Nenhuma razão sequer — disse Tony, surpreso por ter conseguido soar tão sincero. — Ainda que agora estejamos começando a achar que o assassino fez contato com ela em Londres, e não em Leeds. Na verdade, gostaria que você me desse a oportunidade de fazer um apelo para que testemunhas se apresentem.
A mão de Micky voou até seu pescoço num gesto curiosamente vulnerável. — Não acham que a seguiram a partir de nossa casa, acham?
— Não há razão para acharmos isso — respondeu ele, precipitadamente.
— Não?
— Não.
— Obrigada por me tranquilizar. — Ela respirou fundo e tirou seu cabelo louro do rosto. — Agora, a entrevista. Vou perguntar por que a unidade foi criada, como foi constituída, com que tipo de crimes lidarão e quando a força-tarefa vai entrar em ação. Depois vou continuar com a Sharon...
— Shaz — interrompeu Tony. — Chame-a de Shaz. Ela odiava ser chamada de Sharon.
Micky assentiu com a cabeça.
— Shaz. Vou continuar com a Shaz, o que vai dar a você a chance de pedir a ajuda que quiser. Tudo bem? Quer aproveitar a oportunidade pra falar mais alguma coisa?
— Tenho certeza de que vou ser capaz de transmitir a mensagem — respondeu ele.
Ela esticou o braço para pegar a maçaneta da porta.
— Betsy, minha assistente pessoal, vocês conversaram mais cedo, virá buscá-lo um pouquinho antes de entrar no ar. Você será o último quadro antes de cortarmos para o boletim de notícias.
— Obrigado — agradeceu ele, com vontade de falar algo que estabelecesse uma ponte entre eles, mas sem saber o que poderia ser. Ela era o melhor caminho dele para passar pelas defesas de Jacko Vance, e, para isso, Tony precisava encontrar uma maneira de manipulá-la para que inconscientemente o ajudasse.
— De nada — respondeu Micky. E foi embora, não deixando nada para trás a não ser o leve aroma de cosméticos. Ele só teria mais uma chance de trazê-la para o seu lado. Esperava fazer um trabalho melhor quando o momento chegasse.
Aquilo tinha que valer a pena, pensou Vance. Teve que cancelar um almoço preparado por Marco Pierre White por causa daquilo, o chef reconhecidamente temperamental o faria sofrer por isso. Trancou a porta do seu escritório e fechou as cortinas. Sua secretária sabia muito bem que não devia passar nenhuma ligação e nem seu produtor nem seu assistente pessoal sabiam que ele ainda estava no prédio. O que quer que Meio-dia com Morgan revelasse, ninguém veria a sua reação.
Ele se jogou no comprido sofá de couro que dominava um lado da sala e colocou os pés para cima. Seu rosto era uma máscara de petulância. Ligou a TV gigante com o controle remoto bem na hora em que os caracteres familiares começaram a aparecer na tela. Não tinha nada a temer, sabia disso. Independentemente daquilo que Shaz Bowman achava que sabia, não fora capaz de convencer seus colegas. Ele já tinha lidado com a polícia. Eles comiam na sua mão, e com toda razão. Era pouquíssimo provável que um psicólogo acadêmico choramingando teorias simplórias pudesse ameaçá-lo sem o apoio da polícia. Contudo, ser cuidadoso o mantivera em segurança até o momento, e ele não cederia à tentação da arrogância que uma carreira de tanto sucesso podia gerar.
Colhera informações sobre Tony Hill com suas fontes, apesar de ter sido menos do que gostaria. Novamente, fora cuidadoso e fizera as perguntas de maneira casual, empenhando-se muito para que não despertassem curiosidade. O que descobriu despertou seu interesse. Ele estava por trás do polêmico estudo do Ministério do Interior que levara à implantação da força-tarefa de criação de perfis a que Shaz havia aspirado. Envolvera-se na caçada a um serial killer em Bradfield e acabara com sangue nas mãos porque não fora inteligente o bastante. E havia um murmurinho de que a sexualidade dele possuía algo que beirava o pervertido. Aquilo tinha feito o nível de adrenalina de Vance disparar, mas era o único aspecto que ele tinha simplesmente que ignorar, senão correria o risco da sua fonte começar a se perguntar por que estava tão preocupado com o psicólogo.
Apesar de fascinado pelas especulações sobre Tony, seus pensamentos não eram páreo para a tela da TV. Sua atração pelo glamour da televisão nunca diminuiu em todos aqueles anos em frente às câmeras. Adorava a mídia, mas, acima de tudo, adorava TV ao vivo, com todos os seus riscos que mantinham todos na corda bamba. Ainda que devesse estar pensando em como neutralizar Tony Hill caso isso se tornasse necessário, não conseguia resistir a Micky. Da familiaridade havia surgido o respeito, e não ressentimento por suas habilidades profissionais e talento. Morgan era realmente uma das melhores. Percebera isso desde o início, quando soube que ela era alguém que deveria ter ao seu lado. Ser capaz de manter essa relação tão efetivamente era uma enorme vantagem.
Ela era boa no início, e melhorou, não havia dúvida quanto a isso. A segurança era parte disso, Betsy, outra. Sua amante mostrara a ela como manter as pontas mais afiadas da agressão submersas por uma camada de sereno, gentil e profundo interesse. A maioria das vítimas de Micky Morgan sequer se davam conta da efetividade com que haviam sido despedaçadas até alguém mostrar a gravação para elas depois. Se houvesse qualquer coisa estranha sobre Tony que pudesse ser revelada, uma entrevista ao vivo com Micky faria isso. Vance sugerira à esposa que poderia haver escuridão à espreita atrás da fachada do seu convidado. Agora, estava nas mãos dela.
Assistiu aos primeiros cinquenta minutos do programa com olhos de especialista, avaliando e estimando o desempenho da sua mulher e dos colegas dela. Aquele repórter de Midlands tinha que ir embora, decidiu. Teria que dizer isso a Micky. Vance odiava jornalistas que usavam a mesma urgência ofegante para histórias de guerras distantes, reforma de armário e tramas de novela. Aquilo revelava uma falta de empatia que a maioria dos jornalistas de sucesso aprendiam a esconder logo no início.
Era estranho, ele pensou, como nunca sentira a menor pontada de desejo sexual por sua mulher. Era verdade que ela não fazia o seu tipo; mesmo assim, ele periodicamente achava atraentes mulheres que não se encaixavam em seu modelo de desejo. Nunca Micky. Nem naquelas raras ocasiões em que a vislumbrara nua. Isso provavelmente se dava pela base da relação deles. Um mortiço vislumbre daquilo que ele realmente queria da espécie feminina e Micky seria história. E ele definitivamente não queria isso. Principalmente agora.
— E depois do intervalo — disse Micky com aquele calor íntimo que ele suspeitava que causava ereções em jovens desempregados em todo o país —, vou conversar com o homem que passa os dias dentro da cabeça de serial killers. O psicólogo criador de perfis dr. Tony Hill revela os segredos internos da nova força-tarefa nacional. E homenagearemos a policial que tragicamente perdeu a vida nessa batalha. Tudo isso, e as notícias da hora, depois do intervalo.
Quando as propagandas entraram, Vance apertou o botão de gravar do aparelho. Colocou os pés no chão e se inclinou para a frente, concentrado na tela. A logo de Meio-dia com Morgan surgia à medida que a última propaganda desaparecia, e sua esposa estava sorrindo como se ele fosse a única luz da sua vida.
— Bem-vindos de volta — disse Micky. — Meu convidado agora é o dr. Tony Hill. É um prazer recebê-lo, Tony.
O diretor trocou para a imagem que dava um close nos dois, dando a Vance a primeira imagem do chefe de Shaz Bowman. A cor foi drenada das suas bochechas e voltou rapidamente num rubor escuro. Tinha pensado que Tony Hill seria estranho. Mas conhecia aquele homem na tela. Ele o tinha visto pela primeira vez há três eventos, uma competição de dança de salão. À espreita pelas bordas, conversando com alguns dos fãs assíduos. Jacko inicialmente o classificara como a última adição ao seu triste esquadrão de acompanhantes. Mas, na noite anterior, no centro esportivo, quando o flagrou distribuindo seu cartão para outras pessoas, desconfiara. Pensou em mandar alguém verificar quem ele era, mas isso escapulira da sua memória. Agora, ali estava o estranho, sentado em um sofá conversando com a esposa de Vance em frente a milhões de espectadores.
Não era um maluco rotineiro. Não era nenhum policial idiota. Aquele era o chefe de Shaz Bowman. E também devia ser um adversário.
— Como a trágica morte de um de seus trainees afetou o esquadrão? — perguntou Micky solicitamente, com os olhos brilhando de maneira perfeita para transmitir uma empatia profunda enquanto se inclinava para a frente.
Os olhos de Tony se afastaram dos dela, a dor óbvia.
— Foi um golpe terrível — respondeu ele. — Shaz Bowman foi uma das mais brilhantes policiais com quem tive o privilégio de trabalhar. Ela tinha o verdadeiro instinto para o trabalho de criação de perfis criminais, e será impossível substituí-la. Mas estamos seguros de que o assassino dela será pego.
— Está trabalhando próximo aos policiais que estão investigando o caso? — perguntou Micky. A resposta dele para o que ela achava ser uma pergunta de rotina foi interessante. As sobrancelhas dele deram um salto e seus olhos se arregalaram momentaneamente.
— Todos na força-tarefa estão fazendo tudo o que podem para ajudar — respondeu ele, ligeiramente. — E é possível que seus espectadores também possam nos ajudar.
Ela ficou impressionada com a velocidade da recuperação dele. Duvidava que um em cada mil espectadores seus tenha notado o abalo.
— De que maneira, Tony?
— Como você sabe, Shaz Bowman foi assassinada no apartamento dela em Leeds. Porém, temos razões para acreditar que esse não foi um assassinato aleatório. Na verdade, o assassino pode muito bem não ser alguém de lá da região. Shaz estava em Londres no sábado de manhã, aproximadamente 12 horas antes de ser assassinada. Não sabemos aonde foi nem com quem se encontrou depois de mais ou menos dez e meia da manhã de sábado. É possível que o assassino tenha feito contato com ela cedo naquele dia.
— Quer dizer que pode ter sido um perseguidor?
— Acho possível que a tenham seguido na volta de Londres para Leeds.
Não era exatamente isso, mas Micky sabia que não tinha tempo para se preocupar com minúcias.
— E você tem esperança de que alguém tenha testemunhado isso?
Tony confirmou com um gesto de cabeça e olhou diretamente para a câmera que estava com a luz vermelha acessa. Ela conseguia ver a sinceridade dele no monitor em frente a si. Meu Deus, ele era talentoso, todo o nervosismo desapareceu quando ele fez o seu fervoroso apelo.
— Estamos procurando qualquer pessoa que tenha visto Shaz Bowman depois das dez e meia no sábado de manhã. Ela tinha uma aparência muito singular. Olhos azuis muito característicos e que chamavam muito a atenção. Você pode tê-la visto sozinha ou com o assassino, talvez abastecendo o carro; tinha um Golf preto, da Volkswagen. Ou possivelmente em algumas das paradas de beira de estrada entre Londres e Leeds. Podem ter visto alguém com um interesse incomum nela. Caso saiba de algo, precisamos que entre em contato conosco.
— Temos o número da polícia de Leeds — cortou Micky quando o telefone apareceu em uma faixa que atravessava a parte de baixo da tela. Ela e Tony desapareceram sob uma foto do rosto de Shaz, que sorria para a câmera.
— Se você viu Shaz Bowman no sábado, não interessa se foi muito rapidamente, ligue para a polícia. Queremos pegá-lo antes que mate novamente — complementou Tony.
— Então não tenham receio de ligar para a polícia de West Yorkshire ou até mesmo para a polícia da sua cidade se puder ajudar. Tony, obrigado por vir e conversar conosco. — Ela virou o sorriso para a câmera porque seu diretor estava berrando lá da sala de controle. — E agora, vamos à redação para o jornal do horário do almoço.
Micky se recostou e soltou o ar num suspiro explosivo.
— Obrigada, Tony — disse ela, retirando seu microfone e se inclinando para a frente. Seus joelhos se tocaram devido à posição no sofá.
— Eu é que agradeço — disse ele apressadamente enquanto Betsy caminhava com seus eficientes passos largos na direção deles. Esticou o braço até o ombro dele para retirar o microfone.
— A gente se vê lá fora — disse Betsy.
Micky levantou abruptamente.
— Foi fascinante. Gostaria que tivéssemos mais tempo.
Agarrando a chance, Tony sugeriu:
— Podíamos jantar.
— Podíamos mesmo, eu gostaria — respondeu Micky soando surpresa consigo mesma. — Tem algum compromisso hoje à noite?
— Não, não tenho, não.
— Vamos combinar hoje à noite, então. Seis e meia está bom? Tenho que jantar cedo por causa do programa.
— Vou reservar uma mesa.
— Não precisa. A Betsy providencia isso, não providencia, Bets?
Houve um lampejo de distração generosa no rosto da mulher, Tony pensou. Quase imediatamente, a máscara profissional estava de volta.
— Sem problema. Só que preciso tirar o dr. Hill do set, Micky — informou ela, lançando a ele um sorriso apologético.
— Ok. Te vejo mais tarde, Tony.
Observou Betsy levá-lo embora, saboreando a expectativa de ter uma conversa inteligente com alguém realmente interessante pra variar. O berro demente em seu ponto eletrônico no ouvido a trouxe de volta para a fria realidade de ter que terminar o resto do programa.
— Vamos direto pra matéria sobre a anarquia na sala de aula, né? — disse ela olhando para a cabine de controle, a mente de volta ao trabalho. Shaz Bowman já tinha virado memória.
Carol observava através da janela da sua sala o porto lá embaixo. O frio era tanto que afastou as pessoas que saíam apenas para passear. Todo mundo lá fora estava apressado, até mesmo os passeadores de cachorros. Ela esperava que seus detetives estivessem seguindo o exemplo. Ligou para o número do hotel que Tony lhe dera. Estava tão ansiosa para saber da participação dele no programa quanto para contar as novidades.
Ela não precisou assistir a TV por muito tempo.
— Alô? — Ela o ouviu dizer.
— O Meio-dia com Morgan foi ótimo, Tony. O que você achou? Encontrou com o Jack Bacana?
— Não, não o vi, mas gostei dela mais do que esperava gostar. É uma boa entrevistadora. Acalma a gente e nos coloca em uma falsa sensação de segurança, depois enfia umas perguntas inoportunas. Mesmo assim, consegui chamar a atenção para as coisas que eu queria.
— Então Vance não estava por lá?
— Não, não no estúdio. Mas ela me contou que falou pra ele que eu participaria do programa, então aposto todas as minhas fichas que Jack Bacana não perdeu o programa de hoje.
— Acha que ela faz alguma ideia?
— De que suspeitamos do marido dela? — Ele pareceu surpreso com a pergunta.
— De que o marido dela é um serial killer.
Ele estava um pouco lento naquela noite, Carol pensou. Normalmente participava de toda conversa como se tivesse lido o roteiro antes.
— Não acho que ela faça a mínima ideia. Duvido que estaria com ele se soubesse. — Tony estava muito positivo. Não era do feitio dele categorizar as coisas de oito ou oitenta.
— Ele age totalmente na surdina.
— Exatamente. Agora temos que pensar no que mais é necessário pra perturbá-lo. Começando por hoje à noite. Vou levar a mulher dele pra jantar.
Carol não conseguiu conter uma pontada de ciúmes, mas manteve a voz firme. Tinha muita experiência com Tony.
— Sério? Como conseguiu isso?
— Acho que ela está realmente interessada na criação de perfis — respondeu ele. — Tomara que eu consiga arrancar dela alguma informação que possamos usar.
— Se existe alguém que consegue isso é você. Tony, acho que temos um problema. Com o Simon.
Relatou, resumidamente, a conversa com John Brandon.
— O que acha? Devemos persuadi-lo a se entregar?
— Acho que deixamos isso pra ele decidir. Se você estiver confortável com isso. Já que ele pode muito bem estar sentado lá na sala da sua casa de novo antes de tudo isso acabar.
— Espero que isso não seja um problema — disse Carol, vagarosamente. — É boletim interno, é só disso que estamos falando. Não é uma caçada humana pelo país com a foto dele espalhada pelos jornais. Bom, pelo menos não por enquanto. Se até a semana que vem ele não estiver em casa ou entrar em contato com a família e os amigos, isso pode ficar sério e, nesse caso, teríamos que persuadi-lo a dar as caras.
— Está supondo que ele não vai se apresentar obedientemente na delegacia de Leeds?
Carol bufou de maneira sarcástica e perguntou:
— O que você acha?
— Acho que ele tem muita coisa investida no que estamos fazendo. E, por falar nisso, como a equipe está se saindo?
Ela o deixou a par da enorme viagem do sofrimento feita por Kay. Quando chegou à parte da fotografia que arrancara das relutantes mãos de Kenny e Denise Burton, Carol o escutou inalar o ar com força.
— Os zelotes — disse ele.
— Oi?
— Zelotes. Fanáticos. Discípulos de Jacko Vance. Estive em três apresentações públicas dele até agora, e alguns obsessivos aparecem todas as vezes. Só uns três ou quatro. Eu os notei na hora.
— Você sempre acaba trombando com os pirados, podia abrir uma empresa de Vigilância de Bairro — disse ela. — Podia chamar de Vigilância de Pirados.
Ele riu.
— A questão é: dois deles estavam tirando foto.
— Isso ajuda a pegar o cara?
— Pode ser. Pode ser mesmo. Isso é muito, muito bom. Pode simplesmente nos dar a dianteira. Ele é inteligente, Carol. É o melhor que já vi, de quem já ouvi falar e sobre quem já li. De alguma maneira, temos que ser melhores. — A voz dele estava suave, mas entusiasmada, carregada de determinação.
— E somos. Somos cinco. Ele só vê as coisas por um ângulo.
— Está certíssima. Converso com você amanhã, tá?
Ela conseguia sentir a ânsia dele para agir, para desligar. Não podia culpá-lo. Micky Morgan seria um grande desafio para suas habilidades e Tony era um homem que adorava desafios. Para conseguir informação nova com ela ou simplesmente usar o jantar para plantar a semente da desconfiança em Jacko Vance, ela não conseguia pensar em ninguém mais eficiente que Tony. Mas Carol ainda não podia deixá-lo desligar.
— Tem uma coisinha mais... o incendiário?
— Meu Deus, nossa, é claro, desculpa. Algum progresso?
Ela resumiu as descobertas da equipe e deu uma breve descrição dos dois suspeitos.
— Não tenho certeza, neste estágio, se trago os dois para serem interrogados e tento conseguir mandados para fazermos buscas nas casas deles ou se ponho alguém para vigiá-los. Achei melhor trocar uma ideia com você.
— Como eles gastam o dinheiro?
— O negócio de Brinkley e da esposa é a ostentação. Carros novos, coisas pra casa, cartão de crédito de lojas. Parece que o Watson gosta de apostar. Levanta uma grana do jeito que for e a passa pros agenciadores de apostas.
Tony ficou calado por um momento. Ela o imaginou franzindo a testa, a mão passando pelo cabelo preto volumoso, os olhos fundos escuros e distantes enquanto sua mente abordava a pergunta.
— Se eu fosse o Watson, apostaria no Brinkley — disse, finalmente.
— Como assim?
— Se o Watson é realmente um jogador compulsivo, está convencido de que é a próxima aposta, o próximo bilhete de loteria que vai resolver todos os problemas dele. É o tipo de pessoa que acredita. Brinkley não tem essa convicção. Acha que, se conseguir se antecipar, se cortar algumas despesas, ganhar uma grana extra, consegue sair dessa confusão seguindo algum caminho convencional. Essa é a leitura que faço. Mas, certo ou errado, levá-los para interrogatório não vai dar resultado. Pode fazer com que os incêndios parem, mas jamais alguém vai ser culpado por eles. Um mandado de busca também não vai ajudar, de acordo com o que você me disse sobre como os incêndios são iniciados. Sei que esta não é a resposta que você quer ouvir, mas a vigilância é a melhor chance que tem de conseguir uma condenação. E você precisa vigiar os dois, para o caso de eu estar errado.
Carol suspirou e reclamou:
— Sabia que você falaria isso. Vigilância. O serviço favorito do policial. Um inferno orçamentário.
— Pelo menos você só tem que vigiar o período noturno. E ele está operando com frequência, ou seja, não vai durar muito tempo.
— Era pra isso me fazer sentir melhor?
— É o melhor que consigo sugerir.
— Ok. A culpa não é sua. Obrigada pela ajuda, Tony. Vai lá e aproveita o jantar. Vou pra casa descongelar uma pizza e, assim espero, receber algumas informações do Simon e do Leon. E, pelo amor de Deus, vai dormir cedo. Durma... — A última palavra soou como um afago.
Tony riu.
— Divirta-se.
— Nossa, pode deixar — prometeu ela, fervorosamente. — E boa sorte, Tony.
— Na falta de milagres, vou ter que me contentar com isso.
O barulhinho do telefone dele sendo desligado cortou qualquer chance de ela lhe contar a outra coisa que iniciara naquele dia. Não conseguia entender exatamente por que se sentiu estimulada a fazer aquilo, mas seu instinto lhe disse que era importante. E sua experiência passada a ensinara dolorosamente que seu instinto era, às vezes, mais confiável do que a lógica. Algo ficou cutucando sua mente até que, em meio a todas as outras tarefas do dia, encontrara tempo para enviar uma pergunta para todas as outras forças policiais do país. A detetive inspetora-chefe Carol Jordan, da polícia de East Yorkshire, solicita informações a respeito de qualquer relato recente sobre meninas adolescentes que desapareceram de casa inexplicavelmente.
— Mike McGowan? É aquele lá no assento do canto, meu bem — disse a garçonete, apontando com o polegar.
— O que ele está bebendo? — perguntou Leon. Mas a garçonete já tinha ido atender outro freguês. O pub estava moderadamente cheio, ocupado quase que só por homens. Em uma cidadezinha de East Midlands como aquela, havia distinções claras entre pubs aos quais os homens iam para passar o tempo com mulheres e aos que iam para evitar a necessidade. A dica ali era o enorme quadro do lado de fora que informava: “Transmissão de esportes o dia inteiro, telas gigantes”.
Leon deu um gole em sua lager com limão e observou Mike McGowan por um momento. Jimmy Linden tinha dado o nome dele como o especialista em Jacko Vance. “Assim como eu, o Mike sacou o Vance desde cedo e escreveu muita coisa sobre ele”, dissera. Quando Leon contatou o antigo jornal de McGowan em Londres, descobriu que o jornalista havia sido demitido três anos antes. Divorciado, seus filhos cresceram e se esparramaram pelo país, e não havia nada que mantivesse McGowan na cara capital, então ele retornara para a cidadezinha de Nottinghamshire onde crescera.
O ex-repórter parecia mais uma caricatura de professor universitário de Oxford ou Cambridge do que qualquer jornalista com atuação em âmbito nacional que Leon já vira. Mesmo sentado, percebia-se que era bem alto. Um varapau de cabelo louro agrisalhado com uma franja pesada que caía sobre seus olhos, óculos grandes com armação casco de tartaruga e uma pele branca e rosada lhe davam o mesmo visual juvenil que alguns famosos transformaram em marca registrada. Seu blazer era do tipo de tweed antigo que levava 15 anos para parecer usado e depois durava mais vinte sem nenhum sinal de desgaste. Debaixo dele, estava com uma camisa de flanela cinza e uma gravata listrada de nó estreito e apertado. Sentado sozinho no estreito assento do canto, observava atentamente a tela de uma TV de 56 polegadas onde dois times jogavam basquete. Enquanto Leon observava, McGowan deu algumas batidinhas com o fornilho de um cachimbo em um cinzeiro, o limpou e encheu automaticamente sem tirar os olhos da tela.
Mesmo quando Leon se aproximou, ele continuou sem mudar a direção do olhar.
— Mike McGowan?
— Eu mesmo. E quem é você? — perguntou ele, a pronúncia local das vogais tão característica quanto as da garçonete despedaçaram a ilusão de sublime academicidade.
— Leon Jackson.
McGowan lhe lançou um rápido olhar avaliativo.
— Alguma relação com Billy Boy Jackson?
Perplexo, Leon quase se benzeu.
— Era meu tio — deixou escapulir.
— Você tem o mesmo formato da cabeça. Eu sabia. Estava na fileira mais próxima do ringue na noite em que Marty Pyeman fraturou o crânio do seu tio. Mas não é por isso que veio me procurar, é?
Essa segunda olhada foi perspicaz.
— Posso te pagar uma bebida, sr. McGowan?
O jornalista abanou a cabeça.
— Não venho aqui por causa da bebida. Venho por causa do esporte. Minha aposentadoria é uma merda. Não tenho dinheiro pra pagar assinatura de TV via satélite nem uma televisão igual a essa. Estudei com o pai do dono, então ele não acha ruim que eu faça uma cerveja durar praticamente o dia todo. Senta e vá direto ao ponto.
Leon obedeceu, tirando o seu distintivo. Tentou fechar e guardá-lo, mas McGowan foi mais rápido.
— Polícia Metropolitana — ele refletiu. — E o que um policial de Londres com sotaque de Liverpool está fazendo com um jornalista aposentado na obscura Nottinghamshire?
— O Jimmy Linden me disse que você talvez possa me ajudar — contou Leon.
— Jimmy Linden? Esse nome é das antigas. — Ele fechou a carteirinha com o distintivo e a empurrou de volta para Leon. — Então, qual é o seu interesse no Jacko Vance?
Leon abanou a cabeça admirado.
— Em nenhum momento eu disse que estava interessado nesse homem. Mas se é sobre ele que você está com vontade de conversar, vá em frente.
— Nossa, estão ensinando sutileza ultimamente — disse McGowan, com acidez, acendendo um fósforo e o acomodando no cachimbo. Puxou e expeliu uma fumaça azul que engoliu toda a frágil espiral do cigarro de Leon. — O que supostamente Jacko fez? O que quer que seja, aposto que nunca vão conseguir trancafiar o cara por isso.
Leon permaneceu em silêncio. Isso quase o matou, mas ele conseguiu. Aquele filho da puta daquele velhinho esperto não ia passar a perna nele, pensou, quase se convencendo.
— Não vejo Jacko há anos — finalmente falou McGowan. — Não fica muito entusiasmado com rostos que o fazem lembrar de como era quando tinha todos os membros. Odeia ser lembrado do que perdeu.
— Não acha que o que ele tem agora pode funcionar como uma compensação? — indagou Leon. — Ótimo emprego, mais dinheiro do que qualquer sujeito razoável conseguiria gastar, esposa linda, casa do tamanho de uma mansão? Quantos atletas que ganharam medalha de ouro se deram melhor do que ele?
McGowan abanou a cabeça lentamente.
— Nada pode compensar um homem que pensa que é um deus pela exposição da sua vulnerabilidade. Aquela moça deu sorte de conseguir sair fora. Ela teria sido a escolha óbvia quando chegasse a hora de fazer alguém pagar pelo que os deuses fizeram com Jacko Vance.
— Jimmy falou que você sabe mais sobre Jacko do que qualquer outra pessoa.
— Só superficialmente. Acompanhei a carreira dele, o entrevistei. Talvez tenha vislumbrado algumas coisas debaixo da máscara, mas não diria que o conhecia. Não consigo pensar em ninguém que tenha conseguido isso. É sério, não há nada que queira falar sobre Jacko Vance que já não tenha colocado por escrito.
McGowan soltou outra nuvem de fumaça. Leon achou que ela tinha cheiro de bolo floresta negra cheio de cereja e chocolate. Não conseguia se imaginar fumando uma sobremesa.
— Jimmy também falou que você guarda recortes de artigos dos atletas que realmente te interessam.
— Nossa, conseguiu arrancar muita coisa do velho Jimmy. Ele deve ter ido mesmo com a sua cara, sempre teve muito respeito por atletas negros. Achava que eles tinham que trabalhar duas vezes mais do que qualquer outro para conseguirem ser aceitos. Suponho que ele acha que, na polícia, deve ser a mesma coisa.
— Ou talvez eu simplesmente seja um bom entrevistador — ironizou Leon. — Alguma chance de você me deixar dar uma olhada nos seus recortes?
— Algum em particular, detetive? — provocou McGowan.
— O senhor poderia me mostrar aqueles que são importantes.
McGowan, os olhos fixos no basquete, disse:
— Uma carreira tão longa quanto a minha, seria difícil escolher destaques.
— Tenho certeza que consegue.
— Isto termina em dez minutos. Quem sabe não vai lá em casa dar uma olhada nos arquivos?
Meia hora depois, Leon estava sentado em uma sala na casa de dois quartos de McGowan que conseguia ser ao mesmo tempo organizada e entulhada. A única mobília era uma surrada cadeira giratória de couro que parecia ter sido usada na Guerra Civil Espanhola, e uma mesa cinza de metal arranhada e manchada. As quatro paredes eram cobertas por prateleiras industriais de ferro abarrotadas de caixas de sapato, todas com uma etiqueta colada na parte externa.
— Isso é incrível — elogiou ele.
— Sempre prometi a mim mesmo que, quando me aposentasse, escreveria um livro — disse McGowan. — É impressionante o quanto a gente se ilude. Eu costumava viajar pelo mundo cobrindo os mais importantes eventos esportivos. Hoje o meu mundo encolheu para as telas de TV do Dog and Gun. Você pode achar que estou deprimido, mas o engraçado é que não, não estou. Nunca me senti tão satisfeito desde que nasci. Isso me lembrou que o que eu mais gostava nos esportes era assistir. Liberdade sem responsabilidade, e é isso o que tenho agora.
— Uma mistura perigosa — disse Leon.
— Uma mistura libertadora. Três anos atrás, você aparecer aqui teria feito com que eu ficasse farejando uma história. Não descansaria enquanto não descobrisse o que estava acontecendo. Agora, é difícil imaginar como posso me importar menos. Estou mais entusiasmado com a luta em Vegas no sábado do que podia estar com qualquer coisa que Jacko Vance disse ou fez.
Ele apontou para uma prateleira.
— Jacko Vance. Quinze caixas cheias. Divirta-se, rapaz. Tenho um compromisso com uma partida de tênis lá no Dog and Gun. Se for embora antes de eu voltar, é só fechar a porta da frente depois de sair.
Quando Mike McGowan voltou logo antes da meia-noite, Leon ainda estava trabalhando sistematicamente nos recortes. O jornalista pegou para ele uma caneca de café solúvel e disse:
— Espero que estejam te pagando hora extra, rapaz.
— Tem mais a ver com amor pelo trabalho, eu diria — comentou Leon, ironicamente.
— A você ou ao seu chefe?
Leon pensou por um momento.
— Um dos meus colegas. Chame isso de dívida de honra.
— É a única que merece ser paga. Vou deixar você aí trabalhando. Tenta não bater a porta quando for embora.
Leon conhecia o som de alguém se preparando para dormir: tábuas de assoalho rangendo, encanamento rosnando, descarga. O silêncio, com exceção do sussurro dos jornais amarelados.
Eram quase duas da manhã quando ele encontrou o que achava que poderia estar procurando. Apenas um recorte, uma nota passageira. Mas era um começo. Quando saiu para a rua escura e vazia, Leon Jackson estava assoviando.
Os olhos dela eram tão cândidos quanto quaisquer outros de que conseguia se lembrar. Ela empurrou o último pedacinho de pato defumado para o garfo, espetou a ervilha derradeira e disse:
— Mas certamente isso tem um efeito em você, passar tanto tempo entrando nessa lógica tão depravada?
Tony levou mais tempo do que precisava para terminar a polenta que enchia sua boca.
— Você aprende a levantar muralhas chinesas — respondeu por fim. — Você sabe, mas não sabe. Sente, mas não sente. Imagino que seja similar ao trabalho do jornalista. Como você dorme à noite depois de dar notícias sobre o massacre em Dunblane ou o atentado a bomba em Lockerbie?
— É, mas estamos sempre fora do evento, e você? Você tem que entrar nele ou com certeza vai fracassar, certo?
— Mas você nem sempre está fora do evento, está? Quando conheceu o Jacko, a história invadiu a sua vida. Deve ter tido que levantar muros entre o que você sabia sobre o homem real e o que noticiava pro mundo. Quando a ex-namorada dele estava fazendo as revelações íntimas pros tabloides, você não tinha como olhar para aquilo simplesmente como mais uma história. Aquilo não afetou a maneira como você enxergava o mundo? — perguntou ele, agarrando a primeira oportunidade que teve para fazê-la falar sobre o marido.
Micky tirou o cabelo do rosto. Doze anos depois, ele conseguia ver que o desprezo por Jillie Woodrow não havia diminuído.
— Vadia — murmurou ela. — Mas o Jacko disse que era quase tudo ficção, e acredito nele. Então aquilo não chegou a passar pelas minhas defesas.
A chegada do garçom a salvou e ele retirou os pratos em silêncio. Depois, sozinhos novamente, Tony repetiu a pergunta.
— Você é o psicólogo — esquivou ela, pegando um maço de Marlboro na bolsa. — Você se incomoda se eu...?
Ele abanou a cabeça.
— Não sabia que você fumava.
— Só depois das refeições. No máximo cinco por dia — disse ela, torcendo a boca de modo engraçado. — A controladora dos maníacos controladores, essa sou eu.
A expressão o atingiu como um soco. A única vez que usara a expressão estava falando sobre um assassino compulsivo que tinha praticamente lhe roubado a vida. Ouvi-la sair dos lábios dela era desconcertante e estranho.
— Parece que você viu um fantasma — comentou ela, tragando com um ar de prazer sensorial.
— Só uma lembrança desgarrada — explicou ele. — Há várias ressonâncias muito bizarras perambulando dentro da minha cabeça.
— Aposto que sim. Uma coisa que sempre fiquei imaginando é como você sabe quando está certo em relação à criação de um perfil.
Ela tragou profundamente e soltou uma pálida fumaça filtrada pelas narinas com uma expressão de interesse no rosto.
Ele lançou um olhar avaliativo. Era naquele momento ou nunca.
— Da mesma maneira que qualquer um de nós elabora qualquer coisa sobre as pessoas. Uma mistura de conhecimento e experiência. Além disso, deve saber fazer a pergunta certa.
— Como, por exemplo?
O interesse era tão genuíno que ele quase se sentiu culpado pelo que estava prestes a fazer com a agradável noite que estavam tendo.
— O Jacko não se importa que a Betsy esteja apaixonada por você?
O rosto dela congelou e as pupilas dilataram num reflexo de pânico. Depois de um longo momento, engoliu em seco e conseguiu dar uma risada falsa.
— Se você está tentando me pegar desprevenida, te garanto que foi bem-sucedido.
Foi uma das melhores recuperações que já tinha visto, mas Tony não tinha imaginado a confissão nos olhos dela.
— Não sou nenhum perigo pra você — disse ele, com suavidade. — Confidencialidade é a minha segunda natureza. Mas também não sou trouxa. Você e o Jacko, aquilo é mais falso do que nota de três libras. Betsy chegou primeiro. Ah, e rolaram alguns boatos. Mas você e Jacko tinham o namoro mais público desde Charles e Diana. Isso matou a fofoca.
— Por que está tocando nesse assunto? — perguntou ela.
— Nós dois estamos aqui por curiosidade. Respondi a todas as perguntas que fez. Você pode devolver a gentileza, ou não. — O seu sorriso, assim ele esperava, era caloroso.
— Meu Deus — disse ela, admirada. — Você é ousado.
— Como acha que me tornei o melhor?
Micky o olhava de maneira especulativa, gesticulando para o garçom, que estava se aproximando com o cardápio de sobremesa.
— Traga outra garrafa de Zinfandel pra nós — pediu, reconsiderando a proposta. Ela se inclinou para a frente e falou suavemente: — O que você quer perguntar?
— Qual a vantagem disso pro Jacko? Com certeza ele não é gay, é?
Micky abanou a cabeça enfaticamente.
— A Jillie terminou com o Jacko depois do acidente porque não queria ficar com um homem que não fosse perfeito. Ele jurou que nunca mais entraria em outro relacionamento sexual no qual suas emoções estivessem envolvidas. Ele precisava de um despiste pra manter as mulheres longe dele, eu precisava de um homem atrás de quem pudesse esconder a Betsy.
— Benefício mútuo.
— Isso mesmo, benefício mútuo. E, pra ser justa com o Jacko, ele nunca rompeu o trato. Não sei o que faz com a vida sexual dele, mas suspeito que envolva garotas de programa bem caras. Francamente, não me preocupo, contanto que não me deixe constrangida.
Micky apagou o cigarro e o encarou com o olhar que normalmente dirigia para a câmera.
— Fico impressionado como alguém pago para ser curioso sobre outras pessoas tenha tão pouca curiosidade em relação ao próprio marido.
O sorriso dela foi irônico.
— Se tem uma coisa que 11 anos de casamento me ensinaram é que ninguém consegue conhecer aquele homem. Não que ache que ele minta — considerou ela —, só que revela muito pouco da verdade. Pessoas diferentes conseguem captar pedacinhos da verdade de Jacko, mas não acho que alguém consiga toda ela.
— O que quer dizer?
Tony pegou a garrafa de vinho deixada ali com discrição, encheu a taça de Micky e colocou mais um pouco na sua, que estava praticamente cheia.
— Vejo o Jacko se comportando em público como o marido perfeito e solícito, mas sei que é encenação. Quando estamos só nós três, ele é tão distante que é difícil acreditar que moramos todos debaixo do mesmo teto pelos últimos 12 anos. Quando está trabalhando, age como as pessoas esperam que uma celebridade da TV se comporte; um perfeccionista um pouco exagerado que grita com a equipe e o assistente pessoal quando as coisas não são feitas com perfeição. Mas, com o público, ele é o Senhor Charme. Só que, quando o negócio é levantar dinheiro, ele é um obstinado homem de negócios. Você sabe que pra cada libra que ele consegue pra caridade, ele ganha duas?
Tony fez que não e disse:
— Suponho que ele argumenta que está gerando fundos pra caridade que eles não conseguiriam de outra maneira.
— E por que deveria trabalhar de graça? Certo. Eu, quando faço eventos de caridade, sequer cobro reembolso das despesas. Mas aí tem o outro lado, o trabalho voluntário que ele faz com os doentes terminais e as pessoas com ferimentos graves depois de acidentes. Ele passa horas ao lado da cama deles, escutando, conversando, e ninguém sabe o que acontece entre eles. Uma vez um jornalista tentou esconder um gravador pra revelar “o coração secreto de Jacko Vance”. Só que o Jacko descobriu e destruiu o gravador. Literalmente deixou o aparelho em pedaços. Acharam que ele ia fazer a mesma coisa com o jornalista, mas o cara teve o bom senso de dar no pé.
— Um homem que gosta de privacidade — resumiu Tony.
— Ah, isso o Jacko tem, e muita. Tem uma casa em Northumberland, bem no meio do nada. Eu a vi uma vez nesses anos todos e só porque eu e Bets estávamos indo de carro pra Escócia e decidimos dar uma passadinha lá. Tive praticamente que o forçar a fazer uma xícara de chá pra gente. Nunca me senti tão pouco bem-vinda na minha vida inteira — Micky sorriu indulgentemente. — É, pode-se dizer que ele gosta de privacidade. Isso não me incomoda. Melhor isso do que ficar me rodeando o tempo todo.
— Ele não deve ter ficado muito feliz com a polícia xeretando, então — disse Tony. — Estou falando do que aconteceu depois da visita da Shaz Bowman.
— Você tem razão. Na verdade, eu que liguei pra polícia, sabe. Da maneira como a Betsy e o Jacko reagiram, você acharia que dedurei os dois por terem cometido um assassinato. Foi um pesadelo tentar fazer aqueles dois verem que não podíamos ignorar o fato de que aquela pobre mulher tinha estado lá em casa não muito tempo antes de ser assassinada.
— Por sorte, pelo menos um de vocês tem senso de dever. — comentou Tony, seco.
— É mesmo. Além disso, pelo menos mais uma pessoa sabia que ela estava indo para lá; aquela policial com quem o Jacko conversou. Não tinha chance daquilo ser um segredo nosso.
— Me sinto tão culpado pela Shaz — disse Tony, virando e ficando de lado. — Eu sabia que ela estava aflita por causa de teoria que tinha elaborado, mas não achava que agiria sem conversar antes comigo.
— Está falando que também não sabia no que ela estava trabalhando? — disse Micky, incrédula. — Os policiais que foram lá em casa não pareciam ter muita ideia disso, mas achei que você soubesse com certeza.
Tony deu de ombros.
— Na verdade, não. Sei que ela acreditava que um serial killer estava afligindo meninas adolescentes e que ele também poderia ser um desses sujeitos que perseguem celebridades. Mas não sei detalhes. Era pra ser só um exercício de treinamento, não era pra valer.
Micky sentiu um calafrio e esvaziou a taça.
— Dá pra gente mudar de assunto? É ruim pra digestão, falar sobre isso.
Dessa vez, ele não tentaria persuadi-la. A aposta tinha dado um retorno significativo. E ele não era ganancioso.
— Ok. Me conta como foi que você conseguiu fazer o Ministro da Agricultura admitir o envolvimento dele com aquela empresa de biotecnologia?
Carol olhou para os três rostos amotinados à sua frente.
— Sei que ninguém gosta de trabalhar com vigilância policial. Mas é assim que vamos pegar o nosso homem. Pelo menos os intervalos entre as ações dele são bem curtos, então há chances de que a gente se dê bem nos próximos dias. Olha só, é assim que vou querer trabalhar. Vamos fazer isso por nossa conta. Tenho consciência de que assim o trabalho fica mais difícil, mas vocês sabem como é nosso orçamento. Conversei com o pessoal da delegacia e eles concordaram em nos ceder alguns homens para cobrirmos o turno do dia. Toda noite, às dez, dois de vocês assumirão a vigilância. Vão trabalhar duas noites e folgar uma. Vão usar o companheiro como apoio caso alguma coisa aconteça. Começamos hoje. Os primeiros vigilantes já estão na rua. Alguma pergunta?
— E se sacarem que a gente está fazendo vigilância? — perguntou Lee.
— A gente nunca deixa que saquem que estamos fazendo vigilância — afirmou Carol. — Mas, se o impensável acontecer, vocês saem, ligam pro seu parceiro e trocam de alvo no primeiro momento oportuno. Reconheço que esta operação é difícil com uma mão de obra tão reduzida, mas tenho total confiança de que vocês dão conta do recado. Não me desapontem, por favor.
— Senhora. — chamou Di.
— Sim.
— Se a nossa mão de obra está tão reduzida assim, por que, entre os dois suspeitos que temos, a gente não foca no mais provável?
Era uma pergunta constrangedora e inteligente. Era a questão que Carol debatera com Nelson durante o café da manhã. Ela havia afastado sua mente de um medo crescente que a levava à beira da obsessão.
— Boa pergunta — elogiou ela. — Eu mesma fiz essa consideração. Depois pensei: e se priorizarmos o suspeito errado e só descobrirmos isso depois de outro incêndio fatal? Então decidi que, provavelmente, é melhor em termos de policiamento público optar por vigiarmos de perto os dois.
Di concordou com um gesto de cabeça e disse:
— Está bem. Só estava pensando nas possibilidades.
— Certo. Decidam os turnos entre vocês, vão embora e voltem às dez. Me mantenham informada. Estou a um telefonema de distância. Não me deixem no escuro.
— Quando você diz só um telefonema de distância, senhora... — perguntou Tommy arrastando sugestivamente as palavras.
— Quero estar lá quando fizerem uma prisão.
— Ah, bom, era isso mesmo que achava que você estava querendo dizer.
Seu dissimulado desapontamento tinha a intenção de irritá-la, ela sabia. Determinada a não mostrar que tinha sido bem-sucedido, Carol sorriu com doçura.
— Acredite em mim, Tommy, você deveria estar agradecido por isso. Agora saiam daqui e me deixem trabalhar.
Estava com a mão no telefone antes mesmo de ter terminado de falar. Digitou o primeiro número de uma lista em frente a si, batendo na mesa com um lápis enquanto a nata da polícia de Seaford saia marchando com todo o brio de uma lesma sob efeito de Valium.
— Fechem a porta depois de saírem, por favor — ordenou ela. — Alô. Diretoria de comunicação da polícia? Aqui é a detetive inspetora-chefe Carol Jordan, de East Yorkshire. Preciso falar com alguém sobre pessoas desaparecidas... Enviei uma solicitação sobre meninas adolescentes...
Tony entrou com o carro na via secundária imaginando se gostaria mais de dirigir se tivesse um daqueles carros bacanas que via em propagandas cintilantes, em vez do seu velho e detonado. Por alguma razão, duvidava disso. Mas não era nisso que devia estar pensando enquanto o seu limpador de para-brisa esbofeteava a chuva oblíqua de Yorkshire e revelava a imagem distante de Bradford. No trevo, seguiu as instruções que lhe foram dadas e, por fim, estacionou em frente a uma casa cuja limpeza obsessiva só era comparável à precisão militar do seu único canteiro de flores. Até mesmo as cortinas pareciam ter sido abertas de maneira que a mesma quantidade de tecido ficasse à mostra dos dois lados da janela.
A campainha era um desagradável e insistente zumbido. A porta foi aberta e revelou um sujeito que ele vira em todos os eventos de Jacko Vance a que tinha ido. Tony persuadira aquele homem e mais dois outros entusiastas com câmeras a darem seus nomes e endereços com o pretexto de que estava fazendo um estudo sobre o fenômeno da fama visto pelos olhos dos fãs, e não dos famosos. Era uma bobagem sem sentido, mas fez com que se sentissem importantes o bastante para cooperarem.
Philip Hawsley foi o primeiro pela simples razão de que morava mais perto. Ao segui-lo até uma sala de arrumação sobrenatural que cheirava a cera de móveis e odorizador e parecia a réplica de um museu da vida da classe média-baixa em 1962, Tony identificou todos os sinais do obsessivo-compulsivo. Hawsley, que poderia ter qualquer idade entre 30 e 50 anos, constantemente passava os dedos sobre os botões do seu cardigã bege para verificar se estavam todos no lugar e conferia as unhas pelo menos uma vez por minuto para se certificar de que não tinham ficado sujas desde a última vez que as olhara. Seu cabelo, que estava ficando grisalho, tinha um corte militar bem curto e os sapatos estavam tão engraxados que refletiam como um espelho. Convidou Tony para se sentar, apontando para a poltrona que queria que este ocupasse; sem lhe oferecer nada para beber, sentou-se exatamente em frente ao psicólogo, com os tornozelos e joelhos pressionados com firmeza uns aos outros.
— Uma coleção e tanto — elogiou Tony, olhando ao redor da sala.
Uma parede inteira estava repleta de fitas de vídeo, todas etiquetadas com data e nome de um programa. Mesmo de onde estava sentado, conseguia ver que a vasta maioria era de Vance Visita. Um móvel de compensado na parede continha uma série de álbuns e pastas de recortes. Havia meia dúzia de pastas de recortes em uma prateleira acima do móvel. O orgulho do lugar era uma fotografia colorida grande e emoldurada pendurada na parede acima da lareira a gás. Nela Hawsley e Jacko Vance davam um aperto de mão.
— Um pequeno tributo, mas só pra mim — comentou Hawsley com uma voz bem afeminada. Tony conseguia imaginar, com total nitidez, como ele devia ter sido importunado na adolescência. — A gente tem a mesma idade. Até o dia é igual. Sinto que nossos destinos estão inextricavelmente ligados. Somos como dois lados da mesma moeda. Jacko é o rosto público e eu, o privado.
— Deve ter levado anos pra reunir todo esse material — comentou Tony.
— Eu me dedico a manter o arquivo — explicou Hawsley com vaidade. — Gosto de pensar que tenho uma visão da vida do Jacko melhor do que a dele mesmo. Quando você fica muito ocupado vivendo, não tem tempo de sentar e refletir a vida como eu faço. Sua bravura, seu poder de se comunicar com as pessoas comuns e de inspirá-las, sua ternura, sua compaixão. Ele é o homem do nosso tempo. É um dos pequenos paradoxos da vida o fato de ter perdido uma parte do corpo para ganhar tamanha importância.
— Concordo plenamente — disse Tony, recorrendo de forma natural a técnicas conversacionais que anos trabalhando com os mentalmente doentes deram ao seu repertório.
— Ele é uma inspiração, o Jacko.
Ele encostou e deixou Hawsley despejar sua adulação, fingindo ficar fascinado quando o que sentia era repugnância em relação ao assassino que se disfarçava tão bem que os inocentes e doentes caiam direitinho no seu fingimento. Por fim, depois que Hawsley relaxara o bastante a ponto de sair da ponta da cadeira e se aproximar de algo que poderia ser considerado conforto, Tony disse:
— Eu adoraria ver os seus álbuns de fotos.
As datas cruciais estavam cravadas na sua memória.
— Para os propósitos do nosso estudo, estamos verificando momentos precisos na carreira das pessoas — disse Tony enquanto Hawsley abria o armário e começava a tirar álbuns. Toda vez que Tony mencionava um mês e um ano, Hawsley escolhia um volume em particular e o colocava na mesinha de centro, abrindo-o nas páginas específicas. Jacko Vance era nitidamente um homem atarefado, fazia entre cinco e vinte aparições por mês, a maioria relacionada à arrecadação de fundos para a caridade, frequentemente para o hospital em Newcastle onde fazia trabalho voluntário.
A memória de Hawsley para detalhes relacionados ao seu ídolo era fenomenal, o que trazia vantagens e desvantagens a Tony. Uma vantagem era que lhe dava bastante tempo para analisar as imagens diante de si; a desvantagem era que a voz sussurrante dele chegava perto de colocar Tony em um transe hipnótico. Não demorou muito, entretanto, para que Tony vibrasse de empolgação, fazendo-o recuperar totalmente a atenção. Ali, apenas dois dias antes da primeira menina adolescente que fazia parte do grupo de Shaz Bowman desaparecer para sempre, estava Jacko Vance inaugurando uma casa de repouso em Swindon. Na segunda das quatro fotografias de Hawsley tiradas no evento, Tony viu o rosto que memorizara bem ao lado da resplandecente cabeça de Jacko Vance. Debra Cressey. Quatorze anos quando desapareceu. Dois dias antes olhava adoravelmente para Jacko Vance enquanto ele lhe dava um autógrafo; ela parecia uma menina no paraíso.
Duas horas depois, Tony identificou, ao lado de Vance, outra menina desaparecida, dessa vez ele aparentemente estava conversando com ela. A terceira que encontrou estava se esticava na pontinha dos pés para roubar um beijo do sorridente Vance, mas a cabeça dela estava um pouco virada em relação à câmera, fazendo com que fosse difícil ter certeza. A única coisa que ele tinha que fazer era fazer com que Hawsley lhe emprestasse as fotos.
— Posso pegar algumas dessas fotos emprestadas? — perguntou ele.
Hawsley negou com um vigoroso movimento de cabeça e um semblante profundamente chocado.
— É claro que não — respondeu. — É vital que a integridade do arquivo seja mantida. E se alguém me visitar e estiverem faltando itens no inventário? Não, dr. Hill, infelizmente isso está completamente fora de questão.
— E os negativos? Ainda os tem?
Claramente ofendido, Hawsley respondeu:
— É claro que tenho. Está achando que minha operação é bagunçada assim?
Ele levantou e abriu um armário no móvel da parede. Havia caixas de negativos empilhadas nas prateleiras, todas meticulosamente etiquetadas, assim como os vídeos. Tony estremeceu por dentro, imaginando a meticulosa lista de todos os negativos na caixa. Estava mais para o obsessivo do que para o acumulador banal.
— Bom, pode me emprestar os negativos pra eu fazer cópia? — pediu ele, determinado a manter a pontada de exasperação longe da sua voz.
— Não posso deixar que eles saiam da minha posse — teimou Hawsley. — São significativos.
Foram necessários mais 15 minutos para conseguirem chegar a um acordo. Ele levou Philip Hawsley e seus preciosos negativos até a uma loja onde Tony pagou uma soma extorsiva para imprimir as fotografias relevantes enquanto esperavam. Depois levou o homem de volta pra casa para que pudesse guardar os negativos no lugar deles antes que seus companheiros notassem que haviam saído de lá.
Dirigindo pela rodovia em direção ao próximo nome da lista, permitiu-se um breve momento de triunfo.
— Vamos te pegar Jack Bacana — disse ele. — Nós vamos te pegar.
Tudo o que Simon McNeill sabia de Tottenham era que eles tinham um time de futebol na segunda divisão e que mataram um policial durante um motim nos anos 1980 quando ainda estava na faculdade. Ele não esperava que os nativos fossem amigáveis, então não se surpreendeu ao ser recebido no tribunal eleitoral sem muito entusiasmo. Quando explicou o que queria, o bicho-pau de terno atrás do balcão revirou os olhos, suspirou e disse com má vontade:
— Vai ter que fazer isso aí por sua conta. Não tenho gente pra isso, ainda mais sem terem avisado nada. — Ele mostrou a Simon onde ficavam os arquivos empoeirados. Levou dez segundos pra explicar como funcionava o sistema de arquivamento e o deixou lá.
Os resultados da sua busca não eram encorajadores. A rua em que Jacko Vance crescera consistia em mais ou menos quarenta casas nos anos 1960. Em 1975, vinte e duas das casas desapareceram, supostamente substituídas por um condomínio de apartamentos chamado Shirley Williams House. Nas dezoito casas remanescentes o registro de eleitores mudava constantemente, poucas pessoas pareciam ficar ali mais do que alguns anos, particularmente durante o sombrio período do imposto comunitário em meados dos anos 1980. Apenas um nome era constante. Simon apertou a ponte do nariz para amenizar a dor de cabeça que começava a sentir. Esperava que Tony Hill estivesse certo e que tudo aquilo os aproximasse de pegar o assassino de Shaz. A imagem do rosto dela emergiu dolorosamente em frente a Simon, os surpreendentes olhos azuis brilhando sob o sorriso. Era quase insuportável para ele. Não é hora de ficar remoendo, disse a si mesmo, enquanto vestia a jaqueta de couro e saía em busca de Harold Adams.
O número nove na Jimson Street era uma casa pequenina de sujos tijolos amarelos. O pequeno jardim retangular que a separava da rua estava repleto de latas de cerveja, pacotes de batata frita e embalagens de comida delivery. Um esquelético gato preto levantou o olhar malévolo quando Simon abriu o portão, então saltou para a liberdade com um osso de galinha na boca. A rua fedia a podridão. A carcaça ressecada que abriu a porta depois do chacoalhar de ferrolhos e da abertura de trancas parecia já ser um velho quando Jacko Vance era criança. Simon sentiu um aperto no coração.
— Sr. Adams? — perguntou, sem muita esperança de receber uma resposta inteligível.
O velhinho ergueu a cabeça num esforço para derrotar a postura envergada e encarar os olhos de Simon.
— Você faz parte daquele conselho? Já falei praquela mulher que não quero nenhum assistente pra me ajudar e não preciso de nenhum programa social que me entregue comida. — Sua voz parecia uma dobradiça com uma desesperada necessidade de óleo.
— Sou da polícia.
— Não vi nada — disse Adam rapidamente, movendo-se para fechar a porta.
— Não, espera aí. Não é nada disso. Quero falar sobre alguém que morou aqui há muitos anos atrás: Jacko Vance. Quero conversar sobre ele.
Adams ficou em silêncio.
— Você é jornalista, não é? Está tentando dar um golpe num velho. Vou ligar pra polícia.
— Eu sou a polícia — afirmou Simon, balançando seu distintivo em frente àqueles desbotados olhos cinza — Veja.
— Tá bom, tá bom, não sou cego. Você e seus parceiros vivem falando pra gente tomar cuidado. Por que quer conversar sobre Jacko Vance? Ele já não mora aqui há... deixa ver, deve ter uns 17, 18 anos.
— Será que posso entrar pra gente trocar uma ideia? — perguntou Simon, com certa esperança de que Adams o faria ir embora com uma pulga atrás da orelha.
— Tudo bem, pode entrar.
Adams abriu mais a porta e se afastou para deixar Simon entrar. Sentiu um vestígio do cheiro de urina respingada e biscoito velho antes de se virar na direção da sala. Para sua surpresa, o lugar estava impecável. Não havia uma poeirinha na tela da TV, nenhuma mancha nos protetores de braço de pontas rendadas nas poltronas, nenhuma sujeira no vidro das molduras das fotografias alinhadas no console da lareira. Harold Adams estava certo; não precisava de assistente social para ajudar na limpeza. Simon esperou o senhor se ajeitar na poltrona antes de enfim se sentar.
— Sou o último que sobrou — disse Adams com orgulho. — Quando viemos pra cá em 1947, era como uma grande família, esta rua. Todo mundo sabia o que os outros faziam e, igualzinho a uma família, sempre tinha briga. Agora ninguém conhece ninguém, mas continuam brigando do mesmo jeito.
Quando o homem abriu o sorriso, Simon pensou que aquele rosto parecia o crânio de um pássaro predador cujos olhos de alguma maneira conseguiram sobreviver.
— Aposto que sim. Você conhecia bem a família do Jacko Vance, então?
Adams deu uma risadinha dissimulada.
— Não era bem uma família, na minha opinião. O pai dele se dizia engenheiro, mas, de acordo com o que eu via, apenas era a desculpa perfeita pra ele dar aquela desaparecida de uma hora pra outra e ficar fora semanas a fio. Olha, eu não ficaria surpreso se me dissessem que ele era montado na grana. Sempre era o mais bem vestido da rua, se é que me entende. Só não gastava um centavo a mais do que o necessário com a casa, a esposa e o menino.
— Como era a esposa?
— Tinha a cabeça fora do lugar. Não tinha tempo praquele rapaz, nem mesmo quando ele era um bebê. Ela enfiava o Jacko no carrinho e deixava o menino em frente de casa por horas. Às vezes, até se esquecia de levar o garoto pra dentro quando começava a chover e a minha Joan ou outras mulheres daqui tinham que ir até lá e bater na porta pra avisar. Joan costumava falar que, de vez em quando, ela ainda estava de camisola na hora do jantar.
— Ela bebia, então?
— Nunca ouvi falar isso, não. Só não gostava do menino. Tinha vergonha dele, creio eu. Depois que ele cresceu, a mãe o deixava largado, fazendo o que quisesse. Aí, quando iam lá reclamar, ela caia matando. Não sei o que acontecia atrás das portas fechadas, mas, às vezes, a gente escutava o menino aos prantos. Nunca fazia coisa boa, compreende?
— O que quer dizer?
— Era um sujeitinho maldoso, aquele Jacko Vance. Não estou nem aí quando falam que é um herói e um atleta, a maldade nele era gigantesca. Ah, sabia ser todo charme quando achava que isso podia fazer o danado se dar bem. Tinha todas as esposas da rua na palma da mãozinha dele. Elas sempre davam uns presentinhos, deixavam o menino assistir TV na casa delas quando a mãe o trancava do lado de fora.
Adams estava gostando do próprio relato. Simon suspeitava que, ultimamente, não era sempre que sua malícia ficava com as rédeas assim tão soltas. Estava determinado a aproveitar ao máximo.
— Mas você sabia qual era a dele de verdade, não é?
Adams deu mais uma risadinha dissimulada.
— Sabia tudo o que acontecia nesta rua. Uma vez peguei aquele vagabundo daquele Vance atrás do estacionamento na Boulmer Street. Estava segurando um gato pelo cangote porque assim o animal não conseguia fugir. Mergulhava o rabo dele num pote de gasolina quando apareci da esquina e tinha uma caixa de fósforos no chão, ao lado dele. — O silêncio momentâneo foi eloquente. — Fiz com que deixasse o gato ir embora, depois dei um chute na bunda dele que pegou o moleque de jeito. Mas não acho que fiz o menino parar com aquilo. Os gatos sempre sumiam por aqui. As pessoas comentavam isso. Eu tinha a minha própria opinião.
— Como você mesmo disse, um sujeitinho maldoso.
Aquilo parecia bom demais pra ser verdade. Simon passara muito tempo se preparando para a seleção em Leeds para não reconhecer as marcas de psicopatia no histórico de alguém. Todos os manuais falavam de tortura de animais. E aquele homem ali tinha visto isso em primeira mão. Não teria conseguido achar uma fonte melhor se tivesse procurado durante semanas.
— Ele gostava de fazer bullying e coisa e tal. Sempre sacaneava as crianças menores, desafiando os meninos a fazerem coisas perigosas, levando todos a se machucassem; mas ele mesmo nunca encostava um dedo nos garotos. Era como se ele armasse o esquema pra que a coisa toda acontecesse e depois se afastava pra ficar observando. Eu e Joan agradecíamos por nossos dois filhos já serem crescidos e terem ido embora nessa época. E, quando os netos começaram a vir pra cá, Vance já tinha descoberto que conseguia jogar aquela porcaria daquele dardo mais longe do que qualquer outra pessoa. E, se quer saber, achamos que ele já tinha ido tarde.
— É difícil achar gente disposta a falar mal daquele sujeito — disse Simon com calma. — Ele salvou algumas vidas, não dá pra argumentar contra isso. Faz muito trabalho de caridade. E dedica parte do tempo pra trabalhar com doentes terminais.
O velho contorceu o rosto num sorriso de escárnio.
— Já falei que ele gosta de observar. Provavelmente fica todo entusiasmado por saber que eles vão morrer em breve e ele vai continuar pavoneando por se achar o tal na televisão. Estou te falando, filho, o Jacko Vance é um sujeitinho bem maldoso. Mas, então, por que vocês estão atrás dele?
Simon sorriu.
— Em momento algum falei que estava atrás dele.
— Então por que cê quer ficar falando sobre ele?
Simon deu uma piscada e disse:
— Ora, o senhor tem que entender que não posso revelar os detalhes de uma investigação policial. Suas informações foram extremamente proveitosas, muito mesmo. Se fosse você, ficaria de olho na TV nos próximos dias. Com um pouquinho de sorte, vai descobrir exatamente por que vim aqui.
Ele ficou de pé.
— E agora é melhor seguir o meu caminho. O meu chefe vai ficar muito interessado no que você me contou, sr. Adams.
— Esperei anos pra falar isso, filho. Anos, eu esperei.
Barbara Fenwick fora morta seis dias depois do seu aniversário de 15 anos. Se tivesse vivido, teria por volta de 27 anos. Seu corpo mutilado e estrangulado fora encontrado em uma cabana para pessoas que faziam caminhada pelos campos fora da cidade. Existiam sinais de que ela fora estuprada, apesar de não haver esperma nem dentro nem fora do corpo. O que tornava o caso incomum era a natureza dos ferimentos. Enquanto a maioria dos assassinos psicopatas desfiguravam os órgãos sexuais das vítimas, aquele ali esmagara o braço direito da menina e o transformara em uma pasta sangrenta ao despedaçar ossos e rasgar músculos até que fosse difícil saber a que lugar pertencia cada fragmento. Ainda mais interessante era o fato do patologista ter insistido que os ferimentos foram provocados pela aplicação de aumento progressivo de pressão, e não por um único e terrível impacto.
Isso não fizera o menor sentido para os investigadores.
As pessoas que encontraram o corpo de Barbara foram inocentadas, pois estiveram acampadas e caminhando durante os seis dias anteriores. Os pais dela, que ficaram atormentados depois do desaparecimento, também não se tornaram suspeitos. A menina ficara viva e estava bem por mais dois dias depois da denúncia do desaparecimento. Além disso, o padrasto e a mãe se viram acompanhados por pelo menos um policial desde então. Os pais afirmavam o tempo todo que ela era feliz em casa, que nunca teria fugido e que devia ter sido sequestrada. A polícia fora cética, chamando a atenção para o fato de que as melhores roupas de Barbara desapareceram e que ela mentira sobre aonde ia depois da aula no dia fatídico. Além disso, a menina tinha matado aula, e não pela primeira vez.
Isso também não fizera o menor sentido para os investigadores.
Barbara Fenwick não fora uma adolescente desvairada e problemática. Nem conhecida da polícia; seus amigos negavam que ela bebesse mais do que uma dose ocasional de sidra e ninguém achava que ela tivesse tido experiência com drogas ou sexo. Seu último namorado, que a dispensara uma semana antes para sair com outra pessoa, disse que nunca chegaram aos finalmentes e que, apesar dela ser muito sexy, provavelmente, assim como ele, ainda era virgem. A garota estava indo muito bem na escola e aspirava estudar para ser enfermeira de berçário. Foi vista pela última vez em um ponto de ônibus para Manchester, na manhã do desaparecimento. Ela dissera ao vizinho que estava indo ao dentista, pois tinha uma consulta para ver os sisos. A mãe dela disse que Barbara não tinha o menor sinal dos sisos, fato confirmado pelo patologista.
Isso não fizera o menor sentido para os investigadores.
Não havia nada no comportamento dela que indicasse que a menina estava prestes a sair dos trilhos. Tinha saído com um grupo de amigas para uma boate no sábado à noite antes do desaparecimento. Jacko Vance era a celebridade presente e estava dando autógrafos para arrecadar fundos para a caridade. Os amigos disseram que ela se divertiu muito naquela noite.
Nada daquilo fizera o menor sentido para os investigadores.
Mas fazia todo o sentido para Leon Jackson.
Capítulo 21
O bloco de pedra fora tão bem instalado que sequer fazia o rangido sinistro de filme de terror. Quando uma pequena corrente elétrica exercia pressão em um ponto especifico e preciso, ele girava 180 graus silenciosa e facilmente em um eixo e revelava a escada para a pequena cripta que ninguém jamais suspeitaria existir debaixo daquela capela reformada. Jacko Vance acendeu o interruptor, inundando a cripta com uma inóspita e fluorescente luz, depois desceu.
A primeira coisa que notou foi o cheiro, que o golpeou antes dele ter descido o bastante para ver a criatura que uma vez fora Donna Doyle. Era putrefação de carne pulverizada misturada ao cheiro rançoso de pele febril imunda e o fedor acre da privada química. Sentiu seu estômago revirar, mas disse a si mesmo que o fedor era pior na ala do hospital para doentes terminais, onde a gangrena devorava os corpos de pessoas que tinham amputado mais partes do corpo que o bom senso permitia extirpar. Era mentira, mas servia para enrijecer seus nervos.
Na parte de baixo da escada, olhou para a patética criatura se pressionando contra a fria parede de pedra como se tivesse a esperança de conseguir empurrá-la a ponto de atravessá-la e fugir.
— Meu Deus, você está nojenta — desdenhou ele, referindo-se ao cabelo emaranhado, às feridas imundas e à sujeira que acumulara ao esbarrar nas coisas no escuro.
Ele deixara ali caixas de cereal matinal e ela tinha água na torneira. Não havia desculpa para estar naquele estado; poderia ter feito um esforço para se limpar, em vez de ficar deitada no colchão sobre a própria sujeira, ele pensou. O grilhão preso às pernas dava-lhe liberdade de movimento suficiente para isso, e a dor no braço não tinha sido tanta a ponto de fazer com que parasse de comer, a julgar pelos pacotes abertos caídos ao redor dela. Jacko estava satisfeito por ela ter optado pelo colchão coberto com plástico, pois assim podia, com uma simples mangueirada, eliminar a asquerosa presença quando tivesse terminado com ela.
— Olha só pra você — desdenhou novamente, atravessando arrogantemente a sala em direção a ela, desabotoando a jaqueta e a jogando em uma cadeira que estava fora do alcance da menina. — Por que eu ia querer alguma coisa com um lixo igual a você?
O barulho lamurioso que vinha dos lábios feridos de Donna era sem nexo. Com a mão que não estava machucada, agarrou o cobertor numa pungente tentativa de cobrir sua nudez. Com um passo rápido, Jacko se agigantou na direção dela e lhe arrancou a coberta áspera de lã. Com seu braço protético, esmurrou o rosto dela, que caiu de costas no colchão, lágrimas escorrendo e se misturando ao sangue e catarro que saiam do nariz.
Vance deu um passo atrás e escarrou nela. Friamente, despiu-se, dobrou com cuidado suas roupas e as organizou na cadeira. Estava ardendo e duro, pronto para o que tinha ido fazer ali. Teve que esperar mais do que de costume, mais do que queria, por causa daquela puta inconveniente da Bowman. Depois da descoberta do corpo dela, ele não se atrevera a chegar perto daquele lugar até que tivesse conseguido dispensar a polícia. Tomou muito cuidado para não chamar a atenção. E, mesmo que Tony Hill pensasse que ele podia ser culpado de alguma coisa, não havia provas nem ninguém para vigiá-lo. Sentia-se seguro para voltar e experimentar mais uma dose daquilo que fazia a vida valer a pena, a doce cota de vingança, o sabor do sofrimento.
Caiu de joelhos no colchão, abriu as pernas da adolescente à força, saboreando os protestos dela, as inúteis tentativas de impedi-lo, os tristes gritos de repúdio. Quando a penetrou, deixou todo o seu peso recair sobre o braço machucado da menina.
Donna Doyle finalmente emitiu um som coerente. O grito que ecoou pela macabra cripta era, inequivocamente:
— Não!
Capítulo 22
Carol abriu a porta com um puxão e praticamente arrastou Tony para dentro do chalé.
— Já estávamos começando a imaginar que você tinha se perdido — disse ela, caminhando com passos firmes na frente dele para a mesa de jantar onde, ao lado de fatias de pão de oliva e uma variedade de queijos, havia uma garrafa térmica de boca larga cheia de sopa.
— Acidente na rodovia — disse ele, jogando uma pasta na mesa e afundando na cadeira. Parecia desorientado e preocupado.
Carol serviu duas canecas de sopa e passou uma a Tony.
— Preciso conversar com você antes que os outros cheguem. Tony, isto aqui não é mais um exercício acadêmico. Acho que ele pegou outra dias antes de matar a Shaz.
Repentinamente ela tinha toda a atenção dele. O que quer que estivesse na cabeça de Tony quando passou pela porta foi jogado de lado e seus olhos azuis-escuro queimavam na direção dos dela.
— Provas? — reivindicou ele.
— Tive um palpite, então emiti uma solicitação sobre pessoas desaparecidas pro país todo. Recebi uma ligação hoje à tarde de Derbyshire. Donna Doyle. Quatorze anos. De Glossop. Uns oito quilômetros depois do final da rodovia M67. — Carol entregou a ele uma cópia do fax que o Departamento de Investigação Criminal local lhe enviara. — A mãe fez esse cartaz porque a polícia não estava muito preocupada. É o padrão habitual, olha só. Saiu de casa pra ir pra escola de manhã, deu uma desculpa pra justificar que chegaria tarde em casa. As melhores roupas desapareceram. Fuga premeditada, o caso não foi fechado, mas está sendo discretamente ignorado. Falei com a policial que conversou com a mãe antes deles perderem interesse. Não instiguei a policial; voluntariamente ela disse que, duas noites antes de ela desaparecer, Donna fora com colegas a um evento de caridade no qual Jacko era convidado de honra.
— Merda — soltou Tony. — Carol, dependendo do que ele faz com elas, essa menina ainda pode estar viva.
— Não quero nem pensar nisso.
— É possível. Isso se ele fica com elas antes de matá-las. E sabemos que muitos serial killers agem assim por causa da carga de poder que isso lhes dá. Existe a possibilidade dele não ter arriscado chegar perto dela depois que matou a Shaz. Jesus, temos que achar um jeito de encontrar esse matadouro. E rápido.
Eles se olharam com o semblante constrito de quem toma consciência de que outra vida pode estar dependendo da maneira como trabalham.
— Ele tem um chalé em Northumberland — informou Tony.
— Não vai fazer isso na própria casa — objetou Carol.
— Provavelmente não, mas apostaria que o matadouro dele fica a pouco tempo de carro de lá. O que nossa equipe tem pra nós? — perguntou ele com um tom sinistro.
Carol olhou para o relógio.
— Não sei. Chegam aqui a qualquer momento. Vão se encontrar em Leeds e vir juntos. Todos já entraram em contato e parece que a gente desenterrou muita coisa valiosa.
— Bom.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, ambos escutaram o som de um motor se esforçando para vencer a subida até o chalé.
— Pelo barulho, aí vem a cavalaria.
Carol abriu a porta e o trio marchou para dentro, todos aparentavam estar extraordinariamente satisfeitos consigo mesmos. Eles se amontoaram nas cadeiras ao redor da mesa, tirando jaquetas e casacos e os jogaram no chão, ansiosos para começar. Tony passou a mão pelo cabelo e disse:
— Achamos que ele pegou uma menina logo antes de matar a Shaz. Ela pode estar viva ainda.
Não sentiu prazer algum em observar o brilho dos olhos deles morrer e o rubor de satisfação desaparecer para dar lugar à palidez aflita da ansiedade.
— Carol?
Carol repetiu a informação que passara a Tony, enquanto ele foi à cozinha se servir de café, cujo cheiro havia sentido.
Quando retornou, disse:
— Não vamos ter tempo de nos dar ao luxo de traçar um perfil detalhado e fazer um brainstorming de todos os seus itens. Vamos ter que fazer das tripas coração o mais rápido possível pra conseguir provas e realizar o que pudermos pra salvar outra vida. Então, vamos ver o que cada um conseguiu. Kay, por que não começa?
Sucintamente, Kay relatou suas conversas com os pais desolados.
— O ponto crucial é que todos eles contam a mesma história. Não há nenhuma discrepância significativa nem com o que contaram originalmente à polícia, nem com a versão de cada um sobre os fatos. Consegui pegar a foto de uma das meninas com Jacko Vance e identifiquei que todas elas foram a eventos perto de onde moravam poucos dias antes de desaparecerem. Não consegui nenhuma conexão mais robusta que essa. Sinto muito.
— Não tem que se desculpar de nada — disse Tony. — Fez um ótimo trabalho. Não deve ter sido fácil conseguir tudo isso com essas pessoas que ainda estão sofrendo por suas filhas estarem na lista de desaparecidos. A foto também é útil, porque podemos fazer a ligação de maneira muito específica. Bom trabalho, Kay. Simon?
— Graças à Carol, localizei a noiva que dispensou Jacko depois do acidente. Se vocês se lembram, a Shaz apresentou a teoria de que foi aquele evento emocional, juntamente com o choque do acidente, que o fizeram extrapolar o limite e começar a matar. Bom, pelo que ouvi, ele pode mesmo ter chegado a esse extremo.
“De acordo com Jillie Woodrow, não havia nada de normal nos hábitos de Jacko entre quatro paredes. Bem no início da sua vida sexual, ele precisava ficar no controle. Ela tinha que ser passiva e mostrar adoração. Ele odiava que ela o tocasse e, ocasionalmente, chegava a estapeá-la por ter encostado as mãos nele. Jacko começou a ficar interessado em pornografia sadomasô e queria que Jillie realizasse fantasias de revistas, livros e da imaginação dele. Ela não se importava de ser amarrada, nem ligava muito pras palmadas e chicotadas, mas, quando ele começou a usar cera de vela quente, pregadores nos mamilos e vibradores descomunais, impôs um limite.”
Simon olhou para as breves anotações que fizera, assegurando-se de que não deixaria de reportar nada que fosse crucial.
— Ela acha que, em algum momento depois que a carreira de atleta dele decolou e que passou a ganhar uma boa grana, ele começou a procurar prostitutas. Nenhuma pobre, baixa renda ou de rua. Pelo que Vance deixou escapar, Jillie acha que usava algumas garotas de programa caras, mulheres que ou aceitavam fazer as coisas mais extremas que ele queria ou indicavam meninas que não se importavam que ele desse uma esculhambada. Viciadas, esse tipo de coisa. De acordo com Jillie, ela estava desesperada para acabar com aquilo, mas tinha muito medo de como ele reagiria. Fora do quarto, era o parceiro perfeito. Solícito, gentil, generoso, mas possessivo ao extremo. E aí, depois do acidente, agarrou a chance com as duas mãos. Concluiu que, se contasse a ele quando estivesse no hospital, Jacko não seria capaz de reagir. E ficaria lá tempo suficiente pra se acalmar e esquecê-la.
Simon levantou os olhos e se surpreendeu com o quanto Tony estava sério.
— Todos nós sabemos o que aconteceu depois, não sabemos? — disse Tony. — Micky Morgan. O casamento por conveniência.
Os rostos ao redor da mesa foram da incompreensão ao choque e espanto à medida que os provia com as informações que ouvira primeiro de Chris Devine e depois da própria Micky.
— Ou seja, estamos vendo aqui um comportamento que é uma aberração fascinante — disse ele. — Ainda que não tenhamos nada muito sólido a ponto de fazer um oficial superior querer colocá-lo na lista de prisões, pelo menos já sabemos, não sabemos?
Eles não precisaram falar nada. A resposta estava nos seus olhos.
— E tem mais — falou Simon, revelando a história de Harold Adams.
— Cara, quanto mais a gente descobre, mais impressionado fico com o fato do Jack Bacana ainda estar perambulando pelas ruas — suspirou Leon, acendendo seu terceiro cigarro desde que chegara. — Esperem só até escutarem a parada que desenterrei.
Ele repassou a escassa informação que obtivera com Jimmy Linden em questão de minutos e continuou:
— Depois ele me falou desse jornalista, Mike McGowan. O que esse cara escreveu sobre esporte é mais do que todos nós juntos sabemos. Ele tem arquivos que a Biblioteca Nacional mataria pra conseguir. Vou contar pra vocês uma parada, levei metade da noite pra olhar tudo o que o camarada tinha sobre o Jack Bacana. Aí encontrei isto aqui.
Com um floreio, Leon apresentou uma pasta com cinco cópias de um artigo. Era do Manchester Evening News e falava sobre a morte de Barbara Fenwick. Um parágrafo estava destacado com marca-texto amarelo. “Barbara Fenwick não era festeira, de acordo com seus amigos. Sua última noite de sábado foi típica. Ela fazia parte de um grupo que foi a uma discoteca onde o herói do esporte Jacko Vance fazia um evento para arrecadar fundos para a caridade.”
— Isso foi apenas quatorze semanas depois do acidente — destacou Leon.
— Ele não perdeu tempo, hein? Caiu matando nos eventos de caridade — disse Simon.
— Bom, nunca tivemos dúvida da determinação dele — comentou Tony. — Então, existe alguma prova de que Vance realmente se encontrou com essa menina?
— O ponto alto da noite dela foi pegar um autógrafo dele — disse Leon entregando cópias do resumo que preparara com base no depósito de provas da polícia. — Não me deixaram tirar cópias dos arquivos, então tive que fazer isso. Na minha opinião, ela foi a primeira vítima dele — afirmou, confiante.
— E, na minha opinião, você está certo — concordou Tony. — Nossa, isto é bom Leon, muito bom mesmo. Ele melhorou depois disto. Meu Deus, aquele pessoal que estava fazendo caminhada deve ter praticamente trombado com ele. Olha, falaram que viram o que parecia uma Land Rover ir embora pela trilha logo que chegaram ao cume. Jack Bacana levou um susto. Se deu conta de que precisava de um matadouro adequado, um lugar onde não seria incomodado. A propósito, achamos que esse lugar deve ser em Northumberland. Perto do chalé dele, mas não temos maiores informações... — Ele esfregou as mãos no rosto. — Só que é um caso de 12 anos. Cadê as evidências?
Leon ficou ligeiramente abatido.
— Não sabem. Levaram todas as paradas não resolvidas pra um lugar novo há uns cinco anos, e todas as evidências forenses do caso ou foram perdidas ou arquivadas incorretamente. Não que tivessem muita coisa, de acordo com o resumo. Nenhuma digital, nenhum fluido corporal. Algumas marcas de pneu, mas nada com utilidade depois de todo esse tempo.
— Os investigadores. É com eles que nós precisamos falar. Mas, antes de discutirmos os próximos passos, é melhor contar a vocês o que descobri. É bem pouco em relação às grandes descobertas que vocês fizeram, mas nos dá uma quantidade útil de prova circunstancial.
Tony abriu sua pasta e esparramou uma série de fotografias.
— Fiz a ronda dos zelotes. Tenho que dizer a vocês que foi muito parecido com o meu antigo trabalho no hospício de segurança máxima. Pra não correr o risco de confundir vocês com jargões profissionais, vou apenas dizer que todos eles têm um parafuso a menos. Entretanto, depois de tolerar histórias sobre as variadas obsessões por Jacko Vance, o que temos é uma seleção de fotografias de Jacko tiradas nos eventos em que sabemos que as nossas supostas vítimas estavam presentes. Quatro das fotos o colocam ao lado ou perto de uma das meninas desaparecidas. Em outras cinco ou seis, é possível que a menina na foto seja uma das nossas, mas é impossível ter certeza sem uma análise a partir de um aperfeiçoamento feito por computador.
Ele se inclinou e começou a cortar um pedaço de pão.
— Com o levantamento da Kay, são cinco. Temos muitas coincidências — disse Carol.
— Não creio que seja o suficiente pra começar uma investigação oficial — comentou Tony, desesperançado. Começou a fatiar um pedaço de queijo.
Carol fez uma careta e disse:
— O problema é que não tem conexão nenhuma com a minha área. Se alguma dessas meninas tivesse desaparecido de East Yorkshire, eu ia me esforçar pra fazer alguma coisa, mas não achamos nenhuma lá. Mesmo assim, não sei como poderíamos começar uma investigação. Tudo o que a gente tem é muito circunstancial; não chega nem perto de ser suficiente pra trazermos o sujeito pra ser interrogado, muito menos pra conseguir um mandado de busca.
— Então você não acredita que a gente possa convencer a polícia de West Yorkshire a dar mais uma conferida no Vance, mesmo com tudo isto aqui? — perguntou Kay.
Simon bufou.
— Está brincando? Com o que eles pensam de mim? Toda vez que via um carro de polícia na estrada começava a suar. Tudo o que a gente descobrir está corrompido porque estão convencidos de que sou o assassino e que vocês estão me protegendo. Não acho que vão acreditar numa palavra do que a gente disser.
— Argumento aceito — concordou Kay.
— A gente precisa é de uma testemunha que tenha visto o Jacko saindo com a Shaz depois de ela supostamente ter ido embora da casa dele. O ideal é alguém que tenha visto os dois em Leeds — sugeriu Leon.
— O ideal é um bispo da Igreja Anglicana — disse Carol, com cinismo. — Não se esqueçam, tem que ser alguém que vai colocar sua palavra contra a do campeão do povo.
A mão que estava cortando o queijo escapuliu e Tony cortou a ponta do dedo indicador. Deu um pulo e ficou de pé, com sangue pingando da ferida.
— Merda, porra, puta que pariu — explodiu ele. Enfiou o dedo na boca e chupou.
Carol pegou o guardanapo de papel enrolado na garrafa térmica para limpar os pingos, enrolou-o no dedo dele e apertou com força.
— Estabanado — disse ela, instantaneamente.
— Culpa sua — acusou ele, acalmando-se depois de ter sentado novamente.
— Culpa minha?
— Isso que você falou. Sobre a testemunha incontestável.
— E?
— A câmera não mente, certo?
— Depende se ela é digital ou não — ironizou Carol.
— Não dificulta. Estou falando de câmeras que já são usadas pra condenar criminosos.
— O quê?
— Câmeras de rodovia, Carol. Câmeras de rodovia.
Leon soltou o ar pela boca em sinal de escárnio.
— Não vai falar que você caiu nessa?
— O quê? — indagou Tony intrigado.
— Grandes mitos do nosso tempo número 47. Câmeras de rodovia pegam vilões. Não. — Leon reclinou na cadeira, o cinismo insolente no nível máximo.
— O que quer dizer? Já vi esses programas na TV, com vídeos policiais de perseguições de carro e aquelas multas de excesso de velocidade com a foto das câmeras da rodovia — inquiriu Tony, indignado.
Carol suspirou.
— As câmeras funcionam perfeitamente. Mas só em algumas situações. É aí que o Leon está querendo chegar. Elas só capturam veículos trafegando com excesso de velocidade. Não vão fotografar muita coisa que esteja abaixo de 140. E os vídeos só são ligados se estiver acontecendo algum incidente ou problema de tráfego. O resto do tempo simplesmente ficam desligados. E, mesmo quando estão funcionando, você precisa de um software de melhora de imagem de primeiríssima qualidade pra conseguir qualquer coisa neles que seja convincente.
— Seu irmão não conhece ninguém? — perguntou Simon. — Achei que ele fosse um garotinho prodígio no computador.
— É, deve conhecer, mas não temos nada pra mostrar ainda, e não é provável que a gente tenha — objetou Carol.
— Mas achei que, quando o IRA explodiu o centro da cidade de Manchester, a polícia rastreou a rota da van das pessoas que colocaram a bomba usando essas câmeras — insistiu Tony.
Kay abanou a cabeça.
— Acharam que seria possível recorrer às fotos daqueles que cometeram excesso de velocidade, mas não havia detalhes suficientes... — A voz dela foi abaixando, e o rosto, se erguendo.
— O que foi? — perguntou Carol.
— Vídeos de câmeras de segurança particulares — disse ela quase sussurrando. — Lembra? A Polícia da Grande Manchester fez um apelo para que todos os postos de gasolina e estabelecimentos comerciais com câmeras de segurança nas possíveis rotas mandassem suas gravações. Não vamos encontrar o Vance nem a Shaz nas câmeras de vigilância da rodovia, mas vamos conseguir localizar os dois onde quer que tenham parado pra abastecer. Shaz deve ter abastecido antes de sair de Leeds. Foi até Londres, mas não conseguiria voltar com um tanque só. É bem provável que ela tenha usado alguma parada de beira de estrada, em vez de sair da rodovia só pra pôr gasolina.
— Vocês conseguem acesso a essas fitas?
Carol deu um suspiro e opinou:
— Não é o acesso que vai ser problema. A maioria das empresas gosta de cooperar. Geralmente nem perguntam o que a gente está querendo com aquilo. A análise de todas as horas de vídeo tremido é que vai ser difícil. Estou ficando com enxaqueca só de pensar.
Tony pigarreou.
— Na verdade, Carol, eu ia sugerir que você fosse comigo conversar com os policiais que investigaram o assassinato de Barbara Fenwick. — Ele deu um sorriso apologético para os outros três.
Simon e Kay ficaram um pouco desapontados, mas Leon parecia revoltado. — Sinto muito, mas, pra isso funcionar, precisamos de um policial de patente alta. E em pequena escala. Não podemos deixar esses caras irritados. Temos que evitar dar a impressão de que eles fizeram um péssimo trabalho e que somos a tropa de elite que está chegando pra arrumar a bagunça. Eu e a Carol temos que ir. O que quero que vocês façam é dividir a rodovia e verificar as câmeras de todas as paradas de beira de estrada.
Nesse momento, os três se sentiram profundamente chateados.
— Eu mesmo faria isso se pudesse — disse Tony com simpatia. — Mas é um trabalho pra quem possui distintivo.
Resmungos inarticulados ressoaram ao redor da mesa.
— A gente sabe — disse Simon de forma cáustica.
— E a Donna Doyle pode estar viva ainda — lembrou Carol.
O trio de detetives se entreolhou com olhos sombrios e sérios. Leon balançou a cabeça vagarosamente e comentou:
— E mesmo que não esteja, a próxima está.
Uma das primeiras lições que Tony Hill aprendera como criador de perfis foi que a preparação nunca era um desperdício. Era difícil para ele e Carol se manterem entusiasmados em meios às pilhas empoeiradas de um depósito de documentos da polícia, mas os dois sabiam o quanto era importante ficar alerta enquanto vasculhavam os arquivos. A labuta de estudar atenciosamente toda e qualquer informação era tão vital para se desenhar uma imagem precisa de um assassino quanto o instinto que algumas pessoas pareciam possuir naturalmente para esse trabalho. O trabalho lento e solitário não era a essência de um bom criador de perfis, mas a vaidade excessiva também não. Estava contente por ter se enganado em relação a Leon. A abordagem superficial que ele empreendera no exercício de treinamento tinha confirmado todos os preconceitos de Tony sobre seu exibicionismo. Porém ou ele aprendera com a humilhação de ter sido exposto em frente ao restante da equipe, ou estava entre aqueles poucos que podiam realmente fazer aquilo. De um jeito ou de outro, Tony pensou, quando ele e Carol chegaram a uma conclusão idêntica à dele um dia depois, assim que terminaram de escarafunchar o material, que o trabalho de Leon não podia ser criticado.
Depois de algumas horas, recostaram-se em seus assentos quase simultaneamente.
— Parece que o Leon não deixou escapar nada — comentou Tony.
— Parece mesmo. Mas, se vamos conversar com o sujeito que conduziu o caso, precisamos conferir para termos certeza disso.
— Agradeço muito a sua ajuda, Carol — disse em voz baixa, ajeitando a pilha de papéis para deixá-la bem organizada. — Você não precisava arriscar a seu pescoço.
Um dos cantos da boca dela retorceu, o que podia ser um sorriso ou um vestígio de dor.
— Precisava, sim, você sabe disso. — Foi tudo o que disse. O que Carol não falou era que ambos sabiam que ela nunca seria capaz de dar as costas para uma necessidade dele, pessoal ou profissional. E que também sabia que o sentimento era recíproco, desde que ambos se mantivessem dentro dos limites para se manterem inteiros.
— Tem certeza de que pode passar esse tempo longe da sua investigação sobre os incêndios criminosos? — perguntou ele, entendendo o que ficou não dito.
Ela empilhou papéis em uma caixa.
— Se alguma coisa for acontecer, vai ser à noite. Pode ser esse o preço que vai ter que pagar por dormir no meu quarto de hóspedes.
— Será mesmo que vou ter condição de arcar com essa dívida? — ironizou Tony. Ele a seguiu de volta até o balcão, onde devolveram os arquivos a um policial fardado que parecia estar chegando aos 30 anos, mas não com muita rapidez.
Carol deu o seu melhor sorriso.
— O policial responsável por esta investigação, o detetive superintendente Scott? Imagino que ele esteja aposentado.
— Há uns dez anos — informou o homem, suspendendo as caixas pesadas e seguindo para as distantes prateleiras de onde elas haviam saído.
— Suponho que você não saiba onde podemos encontrá-lo — gritou Carol para as costas em retirada.
A voz dele flutuou de volta, abafada pelas caixas:
— Ele mora na Buxton Way. Num lugar chamado Countess Sterndale. Só tem três casas.
Foram necessários alguns minutos para obter informações sobre como chegar a Countess Sterndale, que não estava no mapa, e mais 35 para ir de carro até lá.
— Ele não estava mentindo, então — comentou Tony ao final da estrada de pista única que terminava em um cercadinho de árvores em volta de um círculo de grama. A surrada mansão estilo Queen Anne ficava de frente para eles e à esquerda havia dois chalés compridos e baixos, com pesados telhados de ardósia e grossas paredes de calcário.
— Qual delas na sua opinião?
Carol deu de ombros.
— Não a maior, a não ser que ele gostasse de levar um por fora. Uni duni tê... — Ela apontou para o chalé à direita.
Enquanto atravessavam a grama, Tony sugeriu:
— Você assume a liderança. Ele vai se abrir com mais facilidade com uma policial do que com um feiticeiro.
— Mesmo eu sendo mulher? — ironizou Carol.
— Boa observação. Dança conforme a música.
Ele abriu um portão bem pintado, que se moveu silenciosamente. A entrada era de tijolinhos em ziguezague e não havia grama nos espaços entre eles. Tony levantou a aldrava preta de ferro e a deixou cair. O som ecoou atrás da porta. Enquanto desvanecia, passos pesados se aproximaram e a porta foi aberta, revelando um homem largo com o cabelo grisalho escuro penteado de lado com brilhantina e bigode escovinha. Parecia um ídolo de cinema dos anos 1940 que já tinha pendurado as chuteiras, Carol pensou, prendendo o riso.
— Desculpa por incomodar o senhor, mas estamos procurando o ex-superintendente Scott — informou ela.
— Eu sou Gordon Scott. E vocês são...?
Era nesse momento que as coisas ficavam difíceis.
— Detetive inspetora-chefe Carol Jordan, senhor. Polícia de East Yorkshire. E este é o dr. Tony Hill, da Força-Tarefa Nacional de Criação de Perfis.
Para a surpresa dela, o rosto de Scott se iluminou de prazer.
— Tem a ver com a Barbara Fenwick? — perguntou ele, avidamente.
Espantada, ela olhou desamparada para Tony.
— O que te faz pensar isso? — perguntou o psicólogo.
Uma gargalhada retumbou em seu peito e ele disse:
— Posso estar fora do jogo há dez anos, mas quando três pessoas em dois dias aparecem pra ver os arquivos do único assassinato que não solucionei, alguém me dá uma ligada. Entrem, entrem.
Ele os conduziu até uma confortável sala, abaixando-se para evitar bater a cabeça na soleira da porta. Parecia que a sala era bem utilizada, havia revistas e livros em pilhas desordenadas ao lado as poltronas que ficavam de frente uma para a outra perto da lareira de vigas. Scott gesticulou para que se sentassem.
— Vamos tomar alguma coisa? Minha mulher saiu pra fazer compras em Buxton, mas posso muito bem fazer um chá. Ou uma cerveja?
— Uma cerveja cairia muito bem — disse Tony relutante em esperar Scott fazer o chá.
Carol concordou com um gesto de cabeça e momentos depois ele voltou com três latas.
Scott arredou um gato ruivo grande e sentou com seu corpo largo no peitoril da janela, reduzindo em pelo menos a metade a luz da sala. Abriu a cerveja, mas, antes de beber, disparou a falar.
— Fiquei feliz demais quando soube que vocês estavam dando uma olhada no assassinato de Barbara Fenwick. Fui atormentado por esse caso durante uns bons anos. Ele me deixava acordado de noite. Nunca vou esquecer o olhar no rosto da mãe quando cheguei com a notícia de que a gente tinha encontrado o corpo. Ele ainda me assombra. Sempre achei que a resposta estava lá em algum lugar, a gente só não tinha o que era preciso pra chegar até ela. Aí, quando recebi a ligação e soube que era a força-tarefa de criação de perfis... é, tenho que admitir, minhas esperanças voltaram. O que levou vocês até a Barbara?
Tony decidiu tirar vantagem do entusiasmo de Scott e ser franco com ele.
— De certa maneira, esta é uma investigação heterodoxa — começou. — Você deve ter lido sobre o assassinato de um membro do meu esquadrão.
Scott confirmou que sabia movimentando tristemente a grande cabeça.
— Soube sim. Meus sentimentos.
— O que você não leu é que ela estava trabalhando numa teoria de que existe um serial killer de garotas adolescentes à solta e que ele vem agindo há muito tempo. Isso começou como um exercício de sala de aula. Mas Shaz não parou por aí. Minha equipe e eu achamos que ela foi morta por causa disso. Infelizmente, a polícia de West Yorkshire não concorda. A maior razão pra isso é a pessoa que Shaz enquadrou.
Ele olhou para Carol, pronto para receber o que aparentaria ser um respaldo oficial.
— Há uma quantidade significativa de evidências circunstanciais que apontam para Jacko Vance — revelou ela, com seriedade.
As sobrancelhas de Scott deram um salto.
— O cara da TV?
Ele deu um suave assobio, levou a mão automaticamente até o gato e começou a lhe acariciar ritmicamente a cabeça.
— Não fico surpreso que não queiram saber disso. Mas qual a conexão disso com Barbara Fenwick?
Carol resumiu de que maneira a pesquisa de Leon acabou gerando o clipping de jornais que os levaram aos arquivos do caso de Gordon Scott. Quando terminou, Tony disse:
— O que desejamos é saber se existe alguma coisa que nunca foi parar no papel. Por já ter trabalhado com a Carol, sei como as coisas funcionam num departamento de homicídio. Você tem um palpite do nada, alguns pressentimentos que nunca confidencia a ninguém a não ser ao seu parceiro, coisas que nunca coloca num memorando. Queremos saber o que instintivamente estavam pensando os policiais que trabalharam diretamente no caso.
Scott deu um longo gole de cerveja.
— É claro que querem. E com toda razão. O problema é que não tenho nada para contar. Algumas vezes, farejamos o rastro errado quando interrogamos alguns tarados, mas era com outras coisas que eles estavam sempre enrolados. Pra ser honesto, o instinto da nossa equipe foi uma frustração só. A gente simplesmente não conseguia achar o vagabundo. Parecia que ele tinha surgido do nada e desaparecido do mesmo jeito. Acabamos convencidos de que foi alguém de fora da nossa área que trombou com a menina quando ela estava matando aula. E isso meio que se encaixa na sua ideia, mão é mesmo?
— Em linhas gerais, sim, com exceção de que achamos que ele preparou tudo com muito mais cuidado — disse Tony. — Bom, valia a pena ter dado uma conferida.
— Senhor, parece que não tinha muita prova forense, não é mesmo? — instigou Carol.
— É. E isso dificultou um pouco pra gente. Verdade seja dita, eu não tinha experiência com um criminoso sexual que tomava tanto cuidado pra não deixar rastro. A maioria age com a cabeça quente, no calor do momento e deixa todo tipo de rastro. Vai embora pra casa coberto de barro e sangue. Mas, nesse casso, não tinha quase nada com o que trabalhar. A única coisa diferente, de acordo com a patologista, era o braço esmagado. Ela não arriscou colocar isto no relatório, mas estava convencida de que o braço da menina tinha sido esmagado em um torno.
Pensar nessa tortura executada com tanto sangue frio produziu um arrepio de ecos indesejáveis no estômago de Tony, que disse apenas:
— Ah.
Scott bateu na testa com a palma da mão.
— É claro! Vance perdeu o braço, não perdeu? Estava indo pras Olimpíadas e perdeu o braço. Faz total sentido, por que a gente não pensou numa coisa dessas na época? Meu Deus, como sou idiota!
— Não havia a menor razão pra você pensar nisso — disse Tony, desejando soar convincente e se perguntando quantas vidas poderiam ter sido salvas se eles tivessem chamado um psicólogo naquela época, tantos anos antes.
— A patologista ainda está trabalhando? — perguntou Carol, como sempre, indo direto no ponto.
— Agora é professora num hospital-escola de Londres. Tenho o cartão dela em algum lugar — disse Scott, levantando-se e saindo da sala com passos pesados. — Meu Deus, por que não refleti mais sobre o braço?
— Não é culpa dele, Tony — disse Carol.
— Eu sei. Às vezes me pergunto quantas pessoas mais vão morrer antes de todo mundo reconhecer que os psicólogos não são só médicos feiticeiros — reclamou ele. — Escuta só, Carol, pra ganharmos tempo e sermos mais velozes, acho que devemos pedir à Chris Devine pra procurar essa patologista. Ela está desesperada para ajudar e tem a experiência necessária pra saber que tipo de coisas buscar. O que me diz?
— Acho que é uma boa ideia. Pra te falar a verdade, estava com receio de falar pra você que não ia poder ir pra Londres agora. Preciso estar por perto à noite pro caso do incendiário decidir aprontar.
Ele sorriu e disse:
— Eu lembro.
Era provavelmente a primeira vez em sua carreira de criador de perfis que algo fora do caso que o estava obcecando o afetava. Este era o problema de trabalhar com Carol Jordan. Ela o afetava de uma maneira que nenhuma outra pessoa havia conseguido. Quando não a via, conseguia convenientemente esquecer aquilo. Trabalhando tão perto assim, era impossível ignorar. Deu um sorriso grave para Carol.
— Estou com muito medo de chatear o John Brandon pra deixar você estragar a chance de pegar o incendiário pelo colarinho — mentiu ele.
— Eu sei.
Ela detectou a mentira, mas não deixou que isso ficasse visível. Não era a hora nem o lugar para aquele tipo de verdades.
Kay perdeu a conta. Não conseguia lembrar se aquele era o sétimo ou o oitavo conjunto de vídeos que estava inspecionando. Por ter tirado o menor palitinho quando fizeram a divisão dos lugares, ela ficou com a M1, saiu de Leeds antes do amanhecer e foi até Londres. Depois deu meia volta no carro e refez a viagem, estacionando em todas as paradas de beira de estrada a que chegava. Já era o finalzinho da tarde e ela estava sentada em mais um escritório caindo aos pedaços, fedendo a suor azedo e fumaça, assistindo a imagens tremidas que dançavam à sua frente. Estava inundada de café ruim e sua boca continuava viscosa e com o gosto da gordura do café da manhã que tomara há muito tempo no Scratchwood. Sentia os olhos arranhando e cansados, e desejava estar em qualquer outro lugar.
Pelo menos tinham encurtado o período a ser analisado. Chegara à conclusão de que o mais cedo que Shaz e Vance poderiam ter chegado à primeira parada no sentido norte da rodovia era às onze da manhã, o mais tarde, sete da noite. Adiantar o horário em cada uma das paradas de beira de estrada não era difícil.
O tempo de gravação nas fitas era bem menor que o tempo real, já que, em vez de gravar continuamente, as câmeras capturavam somente certo número de imagens por segundo. Mesmo assim, Kay passou horas analisando as gravações, passando para a frente até ver um Golf preto ou um dos carros registrados no nome de Jacko Vance: um Mercedes conversível prata e uma Land Rover. O Golf era comum o bastante para que ela desse pausas frequentes, os outros carros apareciam com menos frequência.
Ela achava que estava mais rápida agora do que quando começara. Seus olhos estavam sintonizados com o que estava procurando, embora temesse estar começando a esmorecer, o que podia fazê-la perder alguma coisa crucial. Esforçando-se para se concentrar, Kay acelerou a fita até que o familiar formato de carrinho de bebê preto do Golf apareceu. Fez a fita voltar a rodar na velocidade normal, depois, quase imediatamente, percebeu que o motorista era um homem de cabelo grisalho que olhava para fora por debaixo de um boné de beisebol. Como não parecia com ninguém que queria encontrar, o dedo dela se moveu em direção ao botão de passar para a frente. Então, de repente, quando notou que havia algo estranho naquele homem, deu uma guinada para o botão de pausar.
Mas a primeira coisa que a fez analisar mais de perto não tinha nada a ver com a pessoa que desceu do carro pelo lado do motorista e foi até a bomba de gasolina. O que Kay identificou foi bem diferente. Apesar do carro estar parado num ângulo esquisito em relação às bombas, ela conseguiu discernir as duas últimas letras da placa. Eram idênticas aos dígitos finais do registro de Shaz.
— Puta merda — disse ela, quase sussurrando.
Rebobinou a fita e assistiu novamente. Desta vez, identificou o que no motorista lhe saltara aos olhos. Era um canhoto muito esquisito, chegando ao ponto de quase não usar o braço esquerdo. Exatamente como Jacko inevitavelmente faria se estivesse usando um equipamento que não tivesse sido desenvolvido especialmente para a deficiência dele.
Kay analisou a fita mais algumas vezes. Não era fácil discernir as características do homem, mas podia apostar que Carol Jordan conhecia alguém que pudesse ajudá-los a superar esse obstáculo. Antes do final da noite, teriam reunido tanta coisa sobre Jacko Vance que nem um time de caríssimos advogados de defesa seria capaz de limpar a barra dele. Tudo por Shaz. Aquele era o melhor tributo que Kay poderia fazer para a mulher que estava se tornando uma amiga.
Pegou o celular e ligou para Carol:
— Carol? É a Kay. Acho que tenho uma coisa aqui que o seu irmão gostaria de dar uma olhada...
Não que Chris Devine tivesse objeções em relação a patologistas terem um dia de folga. O que a deixava majestosamente puta era que aquela patologista em particular passava o período de folga dela sentada sob uma chuva torrencial no meio do nada esperando o vislumbre de uma porcaria de um passarinho idiota que supostamente deveria estar na Noruega, mas conseguiu a proeza de se perder. Não tem nada de inteligente em ficar perdido, murmurou Chris ao sentir mais chuva escorrer pelo pescoço e entrar pela gola. Merda de Essex, pensou amargamente.
Abrigou-se das rajadas de vento que vinham do leste para conseguir dar outra olhada no mapa tosco que o protetor de pássaros desenhara. Ela não devia estar longe. Por que essas porcarias desses esconderijos tinham que ser tão imperceptíveis? Por que não podiam ser parecidos com a casa da avó dela? Ela tinha muito mais passarinhos no quintal de casa do que tinha visto a tarde inteira naquela porra daquele brejo. Era óbvio que os passarinhos eram sensíveis pra cacete para saírem num dia como aquele, rosnou ao enfiar o mapa de volta no bolso e sair dando a volta pela beirada do matagal.
Ela quase não viu o esconderijo de tão bem camuflado. Chris abriu a porta de madeira e se esforçou para tirar o mau humor do rosto.
— Desculpa pela intromissão — disse ela para as três pessoas amontoadas lá dentro, agradecida por sua cabeça estar enfim protegida do vento. — Alguém aí é a professora Stewart?
Ela desejava estar no lugar certo; era impossível identificar sequer o gênero dentro daquelas jaquetas impermeáveis, cachecóis de lã e gorros.
Alguém levantou a mão coberta com uma luva.
— Sou Liz Stewart — disse uma das figuras. — O que está acontecendo?
Chris suspirou aliviada.
— Detetive sargento Devine, Polícia Metropolitana. Gostaria de trocar uma palavrinha com você.
A mulher abanou a cabeça.
— Não estou de plantão — negou ela, com seu sotaque escocês ficando mais evidente devido à indignação.
— Eu compreendo. Mas é muito urgente.
Discretamente, Chris abriu mais a porta para que o vento pudesse dar uma chicoteada dentro da raquítica estrutura.
— Pelo amor de Deus, Liz, vai lá ver o que a mulher está querendo — reclamou uma irritada voz masculina que saiu debaixo de um dos outros gorros. — Não vamos conseguir ver nada que vale a pena se vocês ficarem aí gritando igual a duas peixeiras.
Com má vontade, a professora passou apertada por entre os outros dois e seguiu Chris até o lado de fora.
— Tem um abrigo ali debaixo das árvores — disse ao passar trombando na detetive e lutar com a vegetação rasteira até que ambas ficaram fora do alcance do mau tempo. Na clareira, Chris pôde ver que ela era uma quarentona arrumada de olhos âmbar claros como os de uma águia.
— Então, o que você está querendo? — exigiu ela.
— Você trabalhou em um caso há doze anos. O assassinato não solucionado de uma adolescente em Manchester, Barbara Fenwick. Você se lembra disso?
— A menina do braço esmagado?
— Isso mesmo. O caso reapareceu conectado a outra investigação. A gente acha que está atrás de um serial killer, e é possível que Barbara Fenwick seja a única das vítimas cujo corpo foi encontrado. O que torna a sua autópsia muito importante.
— E vai continuar sendo na segunda-feira de manhã — disse a professora, nervosa.
— Realmente, mas a menina que a gente acha que está em poder dele pode não resistir até lá — retrucou Chris.
— Ah. Então é melhor você desembuchar de uma vez, sargento.
— O superintendente Scott, que está aposentado, disse aos meus colegas que você achava, mas não colocou no relatório, que parecia que o braço tinha sido esmagado deliberadamente em algum tipo de torno, e não que tinha sido quebrado acidentalmente. É isso mesmo?
— Era a minha opinião, mas era só especulação. Não era o tipo de extravagância que colocaria em um relatório formal de autópsia, a não ser que tivesse elementos consideravelmente mais significativos nos quais basear a minha crença — explicou ela.
— Mas, se fosse pressionada, falaria isso?
— Se me perguntassem de forma direta se isso era possível, sim, teria que concordar.
— Existe mais alguma coisa que você não escreveu porque era “extravagante”? — perguntou Chris.
— Não que eu lembre.
— Não colocou isso no relatório formal, mas fez algum tipo de anotação a esse respeito?
— Ah, fiz, sim — respondeu a professora, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. — Assim, se o caso se tornasse importante mais tarde, a acusação podia usar aquilo prontamente.
Chris fechou os olhos momentaneamente e fez uma pequena oração.
— E você ainda tem as anotações?
— É claro. Na verdade, tenho uma coisa ainda melhor do que isso.
O café da Hartshead Moor, na rodovia M62, não era a melhor pedida para um sábado à noite, o que fazia com que o lugar fosse perfeito para os propósitos deles. A equipe investigativa ad hoc tinha se avolumado com a presença de Chris Devine, que se encaixou tão bem que parecia sempre ter feito parte dela. Parecia que ela e Carol já estavam se tornando irmãs de sangue, tanto devido à experiência no serviço policial quanto pelo fato de serem, na equipe, o que mais se aproximava de oficiais de patentes superiores.
O grupo colonizara um canto distante, onde não havia a possibilidade de alguém escutá-los ou perturbá-los, já que era exatamente no limite da área para fumantes. Leon, desolado por ter voltado de mãos vazias, estava se animando ao ver os resultados de Kay. Mas o rosto de Simon mostrava sinais da inevitável tensão a qual está submetido um homem cujo nome aparece na lista de procurados do mesmíssimo grupo que lhe tinha dado a sensação de pertencimento a uma comunidade. Tony se perguntava quanto tempo o jovem conseguiria aguentar aquilo sem que seu juízo escapulisse de forma perigosa.
Carol se intrometeu nos pensamentos dele.
— Esquematizei pra Kay encontrar com um amigo do meu irmão que consegue melhorar essas imagens e eliminar a margem de dúvida até o osso.
— Não vai comigo? — perguntou Kay, soando um pouco preocupada.
— A Carol tem compromissos em East Yorkshire hoje à noite — avisou Tony. — Algum problema, Kay?
Ela parecia constrangida.
— Não é exatamente um problema. É que... bom, não conheço esse camarada, e ele está fazendo isso de favor, certo?
— Isso mesmo — respondeu Carol. — O Michael disse que ele está devendo um favor a ele.
— É que... bom, se eu quiser dar uma forçada a mais, sabe? Se achar que ele não está se esforçando pra dar o máximo porque não quer ser incomodado ou porque vai custar muito, na verdade não vou poder pressionar o cara do mesmo jeito que a Carol.
— Uma boa observação — afirmou Chris da mesa na área de fumantes que ocupava com Leon. — Nem foi ela quem pediu o favor. E é sábado à noite. Até mesmo os nerds fissurados em computador devem ter coisa melhor pra fazer do que ajudar alguém que sequer se dá ao trabalho de aparecer. É o que vai ficar parecendo. Acho que a Carol devia estar lá.
Carol mexeu seu café gosmento.
— Tem razão. Não posso colocar defeito na sua lógica. Mas não tenho como me ausentar da minha área hoje à noite.
Ela olhou para o relógio e fez cálculos rápidos.
— Não, Carol — disse Tony desesperançoso, ciente de que estava desperdiçando saliva.
— Se a gente sair agora... podemos chegar lá às nove... consigo chegar a Seaford lá pela uma, no máximo. E não acontece nada antes disso... — Tendo tomado a sua decisão, Carol pegou o casaco e a bolsa. — Está certo. Anda, Kay, vamos nessa.
Quando estava indo em direção à porta com Kay pelejando para alcançá-la, Carol se virou.
— Chris... boa caçada.
— Então, o que a gente faz agora? — perguntou Leon com agressividade, acendendo um cigarro na guimba do que estava acabando de fumar. — Sinto que perdi um dia inteiro me fodendo com aquelas câmeras da rodovia. Quero fazer alguma coisa que vale a pena, saca?
Tony estava feliz por Chris Devine ter se juntado a eles; ele sentia que precisaria contar com a experiência dela agora que começavam a ficar desgastados.
— Ninguém estava perdendo tempo, Leon. Progredimos muito hoje — disse ele calmamente. — Precisamos refletir sobre isso. A informação que a Chris conseguiu com a patologista é um grande passo à frente. Mas, sozinha, não é tão valiosa. O perfil parece correto. Tudo que ficamos sabendo sobre ele faz a gente riscar mais um item na lista. Mas ainda estamos no reino das suposições.
— Mesmo com uma vítima com um braço direito esmagado? — perguntou Simon incrédulo. — Qual é, algum argumento tem que ser decisivo. Do que mais a gente precisa, pelo amor de Deus?
— Com o tipo de advogados que o Jack Bacana vai poder pagar, ririam de nós no tribunal; só fizemos suposições até agora — explicou Tony. — Desculpa, mas é assim que a coisa funciona.
— O braço esmagado é uma parada boa — disse Chris. — Só que não tem muita utilidade num caso isolado. Precisamos mesmo é de alguma coisa pra fazer comparação. Só que até agora não temos mais nenhum corpo, né?
Os outros confirmaram com gestos de cabeça.
— Vocês acreditam que ele pegou mais uma menina logo antes da Shaz confrontar o cara? Então existe a chance de ele ter começado e ainda não ter terminado. Ou seja, a gente acha a menina, mostra a conexão com ele e pega o sujeito. Algum problema nisso?
— Não, só que não sabemos onde ele coloca as meninas antes de matá-las — disse Tony.
— Claro que não. Ou sabemos?
Se eles fossem cachorros, suas orelhas teriam levantado.
— Prossiga — encorajou Tony.
— A melhor coisa em ser lésbica na minha idade é que, quando eu estava entrando em cena, todo mundo que tinha emprego estava no armário. Agora, todas as mulheres com quem eu costumava tomar umas são chefes em tudo quanto é lugar. E uma delas, por acaso, é sócia da agência que cuida da publicidade do Jacko Vance.
Ela tirou um chumaço de papel de fax de dentro da jaqueta.
— A agenda do Jacko nas últimas seis semanas. Agora, a não ser que ele seja o Super-Homem ou que a mulher dele esteja envolvida nisso, só tem uma área do país em que existe a possibilidade dele estar mantendo essa menina.
Ela se recostou e esperou para ver a ficha deles cair depois do que tinha dito.
Tony passou a mão pelo cabelo.
— Sei que ele tem um chalé lá, mas é uma área enorme. Como podemos delimitar o espaço?
— Ele pode estar usando esse chalé aí — sugeriu Leon.
— É — intrometeu-se Simon entusiasmado. — Vamos até lá dar uma olhada nesse esconderijo.
— Não sei, não — comentou Chris. — Ele tem sido muito cuidadoso em relação a todo o resto. Não acredito que faria um negócio tão arriscado.
— Cadê o risco? — perguntou Tony. — Ele leva as meninas pra lá sob o véu da escuridão, e nunca mais alguém as vê ou ouve falar delas. Não existe rastro algum dos corpos. Mas o Jack Bacana faz trabalho voluntário em hospitais em Newcastle. Eles devem ter um incinerador. Ele vive pagando por aí de riquinho que se dá bem com o povão. Acho que vira e mexe ele aparece na sala das caldeiras pra jogar conversa fora com os rapazes. E, se ele ajuda o pessoal a carregar o incinerador de vez em quando, bom, quem vai notar um saco extra cheio de partes de corpos?
Um silêncio arrepiante recaiu sobre o grupo. Tony coçou a barba rala do queixo.
— Eu devia ter chegado a essa conclusão antes. Ele é maníaco por controle. O único matadouro em que consegue confiar é aquele sobre o qual ele tem controle total.
— Então vamos nessa — disse Simon, empurrando sua caneca e esticando o braço para pegar a jaqueta.
— Não — disse Tony, com firmeza. — Não é hora de dar uma de super herói. Precisamos fazer um planejamento cuidadoso aqui. A gente não pode sair atacando com um monte de gente e esperar que o que encontrarmos justifique a ação. Os advogados dele nos moeriam. Precisamos de uma estratégia.
— É fácil pra você falar isso, cara — disse Leon. — Não é você que os policiais estão querendo prender. Você pode dormir na sua caminha à noite. O Simon precisa que esse negócio seja resolvido.
— Tá bom, tá bom — interferiu Chris delicadamente. — Não faz mal nenhum passar um pente fino no local com fotos da Donna Doyle. Levando em consideração este cronograma, ela deve ter ido pra lá por conta própria. Aposto que ele fala para elas irem de trem ou de ônibus. Temos que fazer uma blitz na rodoviária e nas estações, falar com o pessoal que trabalha e mora por lá. Se existir uma estação pequena perto do esconderijo do Bacana, alguém deve ter visto a menina sair do trem.
Simon levantou seus olhos escuros e flamejantes.
— E o que a gente está esperando?
— Não faz sentido começar antes de amanhecer — alegou Chris. — O lugar fica a duas horas e meia daqui de carro.
— A gente não está fazendo nada melhor aqui, está? Vamos agora, aí a gente fica num hotel barato e cai matando de manhã bem cedo. Tá nessa, Leon?
Leon apagou o cigarro.
— Se eu não tiver que ir no seu carro. Que carro você tem, Chris?
— Você não gostaria da minha música... Vamos com todos os carros. Tudo bem, Tony?
— Tudo bem. Contanto que fiquem bem longe da casa dele. Promete isso, Chris?
— Prometo, Tony.
— Isso serve pra vocês dois. Tenham em mente que, tecnicamente, a Chris tem uma patente superior à de vocês.
Leon deixou transparecer sua raiva e concordou com um gesto de cabeça relutante. Simon, também, consentiu:
— Ok. Eu não devia mesmo tomar decisões.
— O que você está planejando, Tony? — perguntou Chris.
— Vou pra casa traçar um perfil completo com base no que sabemos. Não posso culpar vocês por quererem acelerar pela A1, mas, se a Carol e a Kay trouxerem o material, minha proposta é irmos a West Yorkshire bem cedo e persuadir o pessoal de lá a oficializar isso. Ou seja, não façam nada além de falar com o pessoal de lá até a gente conversar. Combinado?
Chris concordou, sombriamente.
— Confia em mim, Tony. Gostava demais da Shaz pra correr o risco de foder esta porra toda.
Se estava tentando bancar a maluca entusiasmadíssima aos olhos dos dois policiais homens, foi bem-sucedida. Até mesmo Leon tinha parado de sacodir a perna freneticamente.
— Não me esqueci disso — falou Tony. — Nem do quanto ela queria pegar Jack Bacana.
— Eu sei — falou Chris. — Aquela maluca amaria isto aqui.
Houve uma época em que ela sabia quase tudo o que existia sobre computadores, Carol pensou saudosamente. Lá por volta de 1989, ela sacava CP M e DOS quase tanto quanto o irmão. Mas entrar para a polícia consumiu toda a sua vida. Enquanto enfrentava com afinco a Lei da Evidência Criminal e Policial, Michael estudava tudo sobre software e hardware, áreas que se desenvolviam diariamente. Agora ela era a caolha no reino da visão perfeita. Sabia o suficiente para fazer umas contas e uns textos, recuperar uns arquivos do limbo e dar um jeito em programas de inicialização para que uma máquina relutante pudesse ser persuadida a se comunicar com quem a estava usando. Mas, depois de dez minutos com seu irmão e o amigo dele, Donny, soube que hoje em dia os conhecimentos dela eram o equivalente na culinária a esquentar água para fazer chá. Pelo olhar no rosto de Kay, ela era ainda pior. Ainda bem que Carol tinha ido. Pelo menos tinha conhecimento suficiente para saber quando os garotos estavam descambando para um mundo só deles e a autoridade para trazê-los de volta para o trabalho que tinham em mãos.
Os dois homens sentados em frente à tela de computador do tamanho de uma TV de pub murmuravam um com o outro incompreensivelmente sobre drivers de vídeo, barramento local e memória de acesso rápido. Carol sabia o que as palavras significavam, mas não conseguia conectá-las a nada do que faziam com o teclado e o mouse. Donny, Michael lhe dissera, era o melhor no norte do país quando o assunto era melhorar, no computador, a qualidade de fotografias ou de imagens de vídeo. E ele por acaso trabalhava no mesmo prédio em que ficava o conjunto de escritórios da empresa de software de Michael. Apesar das convicções de Chris, era tão desprovido de uma vida que ficou empolgado por ter sido arrastado para longe do Arquivo X e do seu jantar de micro-ondas para exibir seus brinquedinhos.
Carol e Kay olhavam para a tela por cima dos seus ombros. Donny já tinha feito tudo o que podia com a placa do carro, confirmou as duas últimas letras e conseguiu uma imagem da terceira que permitia que fizessem uma boa suposição. Já tinha mexido e remexido em algumas imagens de corpo inteiro do homem e, por fim, declarou-se satisfeito com uma delas antes de imprimir algumas cópias coloridas para que as duas mulheres pudessem analisá-las minuciosamente. Quanto mais Carol olhava, mais convencida ficava de que, debaixo do boné de beisebol da Nike e por trás dos óculos aviador, Jacko Vance a espreitava.
— O que acha, Kay?
— Não acho que eu identificaria se o visse na rua, mas se você sabe quem está procurando, dá pra falar que é ele.
Naquele momento, sem que ninguém lhe pedisse, Donny trabalhava em uma imagem do busto do homem que abastecera o Golf no horário do almoço no sábado em que Shaz Bowman morrera. Foi difícil encontrar uma boa imagem com a qual trabalhar porque a aba do boné sombreava o rosto a maior parte do tempo em que ele não estava inclinado sobre o tanque de combustível. Foi somente passando para a frente quadro a quadro que Donny finalmente conseguiu uma imagem em que o homem de boné olhava rapidamente para a bomba para ver quanta gasolina tinha colocado. Ficar olhando Donny melhorar meticulosamente a qualidade da imagem era agonizante. Carol não conseguia tirar os olhos do relógio, pois não saía da sua cabeça a certeza de que deveria estar em outro lugar e que, se alguma coisa acontecesse em Seaford, ela estaria na maior merda. Os minutos rastejavam enquanto o poderoso processador fazia uma procura na gigantesca memória do computador pela melhor alternativa de pixels na tela. Embora estivesse fazendo mais cálculos por segundo do que o cérebro humano podia compreender confortavelmente, parecia a Carol que o computador demorava uma eternidade. Por fim, Donny se afastou da tela e colocou o seu próprio boné de beisebol de volta na cabeça.
— É o melhor que você vai conseguir — disse ele. — Engraçado, ele me parece familiar. Deveria?
— Pode imprimir seis cópias pra mim? — pediu Carol. Ela se sentiu mal por ignorar a pergunta amistosa dele, mas não era a hora nem o lugar para contar a Donny que, com exceção das bochechas, que eram inegavelmente gordinhas demais, o rosto que ele recriara era da personalidade da TV preferida da nação.
Michael sacou mais rápido ainda, ou estava mais familiarizado com a mídia.
— Ele parece com o Jacko Vance, é por isso que você está fazendo confusão, Donny — comentou inocentemente.
— Isso mesmo, aquele escroto — disse Donny, girando na cadeira e piscando para as mulheres. — Puta merda, que pena que não é ele que vocês vão prender. Estariam fazendo um favor pro mundo ao tirar aquele bosta da televisão. Desculpa por não conseguir uma imagem melhor da cabeça, mas não tinha muito com o que trabalhar. Onde vocês disseram que conseguiram a fita?
— Numa parada de beira de estrada na rodovia M1. Na Watford Gap — respondeu Kay.
— Ah é. Pena que vocês não estão procurando o cara em Leeds.
— Leeds? Por que Leeds?
— Porque é lá que fica a empresa de desenvolvimento de circuito interno de televisão top de linha. A Seesee Vision. São os caras do ramo. Acham que a liberdade civil é bacana, mas que não passa de um item numa loja de departamento refinada de Londres — disse ele, rindo da piada ruim que ele mesmo contou. — Filhos da puta de duas caras, é isso que são. Impossível escapar deles. Aquele monólito grande de vidro fumê no gramado logo depois do final da rodovia. Se quer alguém saindo da M1 para entrar em Leeds eles têm a pessoa gravada.
— O que quer dizer com entrar em Leeds?
Os dedos de Carol tremiam de vontade de agarrar Donny pela camisa para fazer com que fosse direto ao ponto.
Donny revirou os olhos como se estivesse cansado de lidar com gente mentalmente atrasada.
— Certo. Aula de história. Reino Unido do século XIX. Uma merreca de encanamentos de água, de fornecedores de gás, de empresas de transporte ferroviário. Gradualmente, todos eles se ligam para fazer o serviço público nacional. Estão me acompanhando?
— E eu aqui pensando que os nerds não sabiam nada da era vitoriana além do Charles Babbage — comentou Carol, mal humorada. — Tá bom, Donny, a gente estudou a Revolução Industrial na escola. Dá pra ir direto pro circuito interno de televisão?
— Ok, ok, fica fria. O circuito interno de televisão é meio parecido com o que as empresas de utilidade pública eram naquela época. Mas em breve não vai ser mais. Logo, logo vamos ter um monte desses sistemas no centro das cidades conectados com sistemas de segurança privados e câmeras de rodovia e vamos ter uma rede nacional de circuito interno de televisão. Esses sistemas vão estar tão bem sincronizados que vão conseguir reconhecer você e a sua caranga e, se você não deveria estar em um lugar, os filhos de uma égua dos guardinhas de segurança vão tirar você de lá. Como se você fosse um ladrãozinho de loja condenado e a Marks and Sparks não quisesse você perambulado pela praça de alimentação deles ou um pervertido conhecido que o pessoal da lavanderia não quer ali cobiçando as calcinhas. — Ele fez um gesto como se estivesse cortando a garganta.
— Tá, mas o que isso tudo tem a ver com a rodovia M1?
— O pessoal da Seesee Vision são os mestres do universo quando o assunto é tecnologia de ponta. Eles testam todo o equipamento novo deles no trânsito da M1. As paradas são tão bem desenvolvidas que conseguem te dar uma foto em alta definição foda do motorista e do passageiro de qualquer carro, imagina o que não fazem com um negócio simples tipo placa de carro — Donny abanou a cabeça pensando consigo mesmo. — Já trabalhei lá, mas não gostei. Chamo aquilo de cidade das gaivotas.
— Cidade das gaivotas? — perguntou Carol sem entusiasmo.
— Os chefes vão pra lá, aprontam a maior gritaria, pegam tudo o que vale a pena, cagam na cabeça de todo mundo e vão embora de novo. Não é a minha onda, não.
— Acha que eles cooperariam comigo?
— Eles mijariam na calça de felicidade. Estão desesperados pra causar uma boa impressão na sua galera. Quando essa rede nacional finalmente começar a funcionar, vão querer estar no banco do motorista. A empresa favorita.
Carol olhou seu relógio. Já passava das dez. Já devia estar voltando para Seaford. Tinha que estar lá para o caso da sua equipe ter que entrar em ação. Além disso, ninguém com autoridade estaria na Seesee Vision àquela hora da noite.
Donny percebeu o olhar de Carol e leu sua mente.
— Vai ter alguém lá a esta hora da noite, se é nisso que está pensando. Dá uma ligada lá. Não tem nada a perder.
Donna Doyle tinha, pensou Carol, percebendo o olhar suplicante de Kay. Além disso, Leeds ficava na metade do caminho entre Manchester e Seaford. Sua equipe era crescidinha. Não seria a primeira vez que teriam que pensar por conta própria.
Primeiro as vítimas. Era sempre por aí que se devia começar. O problema ali era convencer alguém sobre a existência de alguma vítima. É claro que existia a possibilidade de estarem errados, refletiu Tony. Queriam tanto que Shaz estivesse certa, precisavam tão desesperadamente servir de meio para parar a pessoa que a matara, que podiam estar se enganando em relação ao valor do material que descobriram. Era quase concebível que a prova circunstancial contra Jacko Vance fosse somente isso, nada mais.
Mas a loucura reside aí. A loucura e a possibilidade do pobre Simon ser preso assim que atravessar a soleira da própria cidade.
— As vítimas — disse Tony.
Olhou para a tela do computador e começou a digitar.
TESE SOBRE UM CRIMINOSO SERIAL
A primeira vítima conhecida desse suposto grupo é Barbara Fenwick, cujo assassinato ocorreu há doze anos para detalhes do crime ver resumo em anexo, produzido pelo detetive Leon Jackson . Podemos afirmar com algum grau de certeza que foi o primeiro assassinato efetuado por esse criminoso, já que não há registro prévio de tal assinatura comportamental — a destruição do antebraço direito. Trata-se, obviamente, de uma assinatura deste tipo, pois não há a necessidade de infligir um ferimento desta natureza para se cometer estupro e assassinato. É extrínseco e ritualístico e, portanto, seguro presumir que tem significado particular para o criminoso. Dada a natureza cerimonial da ação, é provável que ele tenha usado o mesmo instrumento para causar tais ferimentos em todos os assassinatos; sendo assim, espera-se que outras vítimas apresentem desfigurações semelhantes.
Há pelo menos mais uma indicação de que esse foi o primeiro homicídio. O assassino escolheu o que considerou ser um lugar suficientemente isolado e seguro para executar seu crime sem ser perturbado e quase foi pego no ato. Isso deve tê-lo amedrontado consideravelmente, fazendo com que tomasse medidas imediatas para proteger seus futuros matadouros. Foi bem-sucedido na empreitada, conclusão baseada no fato de que nenhum corpo das suas vítimas subsequentes foi descoberto.
Na falta destes, que outras razões podem ser levadas em consideração para acreditar na existência de um serial killer?
Tony parou e recorreu à lista de características comuns que Shaz apresentara à equipe de criadores de perfil, algo que parecia ter acontecido havia muitíssimo tempo. O mínimo que ele podia fazer era garantir que o trabalho dela não fosse desperdiçado. Com algumas mudanças e acréscimos, digitou a lista e depois continuou:
Embora seja esperado que duas ou três características comuns sejam encontradas em qualquer tipo de agrupamento, o número e a congruência que identificamos aqui é de um nível altíssimo para serem considerados coincidências. De importância particular é o grau de similaridade física entre as vítimas: elas poderiam ser irmãs.
Talvez o mais significativo seja o fato de também poderem ser irmãs de uma mulher chamada Jillie Woodrow quando ela era quinze ou dezesseis nos mais nova, quando se tornou a primeira amante conhecida de Jacko Vance, nosso principal suspeito. Não é coincidência, na minha opinião, que Vance foi privado de uma brilhante carreira no atletismo quando perdeu a parte inferior do seu braço direito em um acidente que o esmagou a ponto de não haver esperança de restauração.
Ademais, o assassinato de Barbara Fenwick aconteceu meras quatorze semanas após o acidente de Jacko Vance. Boa parte desse tempo ele passou no hospital, recuperando-se dos seus ferimentos. Subsequentemente, foi submetido a sistemática psicoterapia. Foi durante a hospitalização que Jillie Woodrow terminou aquilo que havia se tornado um cada vez mais opressivo e indesejável relacionamento ver notas em anexo do interrogatório de JW conduzido pelo detetive Simon McNeill . O estresse originado por esses dois eventos em conjunto seria suficiente para desencadear um homicídio sexual em alguém predisposto a obter suas respostas sociopatas com comportamento violento. Vance nunca mais aliviou seus impulsos sexuais de modo normal desde então. Seu casamento extremamente público é uma impostura: a esposa é lésbica e a “assistente pessoal” dela é, na verdade, sua amante desde antes do casamento. Vance e sua esposa nunca tiveram intercurso sexual, e ela admite que ele usa “garotas de programas caras” para se satisfazer sexualmente. Não há indício algum de que ela tenha qualquer suspeita das atividades homicidas do marido.
Quando a infância de Vance é contraposta aos critérios que a experiência demostrou serem características comuns entre sociopatas que agem por meio do homicídio, um impressionante grau de semelhança se torna óbvio. Temos relatos de testemunhas que comprovam o relacionamento difícil com uma mãe que o rejeitava e um pai ausente, que o suspeito era desesperado para impressionar, além do bullying com crianças mais jovens, crueldade com animais e sadismo. Ainda se evidenciam o controle sobre o comportamento sexual e a evidência de poderosas e perversas fantasias sexuais. Sua destreza no esporte pode ser identificada como uma gigantesca supercompensação para a inutilidade que sentia em todas as demais áreas da vida, e a perda dessa destreza, como um golpe devastador em sua autoestima extremamente frágil.
Nessas circunstâncias, as vítimas escolhidas obviamente seriam do gênero feminino. Ele veria a mãe e subsequentemente a noiva como as responsáveis por emasculá-lo. Mas Vance é inteligente demais para dar vazão à sua raiva nos alvos óbvios. Por isso, opta por uma série de substitutas: meninas que guardam uma forte semelhança com Jillie Woodrow na idade em que ele a seduziu pela primeira vez.
É preciso ter em mente que serial killers capturados, em sua maior parte, possuem inteligência acima da média; em alguns casos, muito acima. Não devemos, portanto, ficar surpresos por muitos deles estarem livres e longe de suspeitas; apenas usam sua inteligência superior de maneira mais efetiva. Jacko Vance é, na minha opinião, um exemplo desse princípio em ação.
Ele se reclinou na cadeira. Isso bastava no que se refere às informações relacionadas à psicologia. Tony teria que redigir uma tabela correspondente de precondições, o que não levaria muito tempo. Acrescida da evidência material que tinha esperança que Carol e Kay conseguiriam naquela noite, acreditava que possuíam o suficiente para garantir que, dentro de doze horas, West Yorkshire começaria a levar Jacko Vance mais a sério.
O detetive sargento Tommy Taylor reconhecia um amontoado de bosta quando via um. Vigiar um bombeiro que trabalha meio período era o maior amontoado que ele via em muito tempo. Passara a anoite anterior observando Raymond Watson, o que, na verdade, queria dizer observar a casa de Raymond Watson. Não que tivesse muitos detalhes arquitetônicos para manter sua cabeça ativa. Era uma casa ordinária, sem espaço lateral entre os vizinhos, com um jardim em um quadradinho minúsculo, ostentando uma cansada roseira que o vento noroeste retorceu, dando-lhe uma forma que escultores modernos fariam o impossível para atingir. A pintura descascava e um verniz deteriorado cobria a porta da frente.
Watson chegara em casa às onze horas da noite anterior, depois de uma corrida com os cachorros. Como não tinha compromisso nesta noite, chegou logo depois das sete, de acordo com os policiais auxiliares que, à paisana, ficaram de olho. Desde então, nada. A não ser que colocar as garrafas de leite para fora pudesse ser considerado um grande evento.
As luzes foram apagadas dez minutos depois disso. Uma hora depois, não havia o menor sinal de vida em lugar algum. As ruas secundárias de Seaford não eram famosas pela animação que tinham depois da meia-noite. A única coisa que faria com que Raymond Watson despertasse do seu sono naquele momento era um incêndio, Taylor concluiu. Resmungou e se mexeu no banco do carro, coçou o saco e cheirou os dedos. Extremamente entediado, apertou o botão do seu rádio pessoal e chamou Di Earnshaw.
— Alguma coisa acontecendo aí?
— Negativo. — Foi a resposta que chegou.
— Se te avisarem que estão chamando os nossos rapazes por causa de algum incêndio, me dá uma chamada no rádio, ok?
— Por quê? Vai sair do carro pra fazer uma busca a pé?
Ela parecia ansiosa. Provavelmente tão entediada quanto ele, entusiasmou-se com a ideia de acontecer alguma ação, mesmo que em segunda mão.
— Negativo — respondeu Taylor. — Preciso esticar as pernas. Essas merdas dessas latas de sardinha não foram feitas pra gente como eu. Como disse, acontecendo alguma coisa, dá um grito aqui. Câmbio e desligo.
Virou a chave na ignição. O motor engasgou antes de ligar, fazendo uma barulheira extravagante na quieta rua lateral. Fodam-se as ideias piradas da Carol Jordan. A menos de dois quilômetros dali havia um clube que funcionava na calada até mais tarde, servindo principalmente marinheiros de navios estrangeiros. Havia uma cerveja lá com o nome Tommy Taylor nela, a não ser que estivesse muito enganado. Era hora de checar se tal possibilidade existia.
Carol e Kay seguiam o segurança por corredores branquíssimos. Ele abriu uma porta e deu um passo atrás, gesticulando para que entrassem em uma sala grande e tenuamente iluminada. Monitores de computador ocupavam quase todas as superfícies horizontais. Uma jovem mulher de calça jeans e camisa polo, com o cabelo descolorido e cortado rente à cabeça, olhou para trás, identificou a chegada dos novos visitantes e se virou novamente para a tela na qual estava profundamente compenetrada. Dedos cutucaram teclas e a imagem no monitor mudou. Carol capturou um movimento em sua visão periférica e virou a cabeça. Um homem alto, vestido com um terno que berrava dinheiro, estava empoleirado na beirada de um dos lados de uma mesa de computador. Ela percebeu o movimento que ele fez ao descruzar os braços e abaixar as mãos, preparando-se para cumprimentá-las.
Deu um passo na direção delas, tirando uma persistente mecha de cabelo castanho dos olhos. Caso quisesse se passar por criança, Carol pensou, só não conseguiria porque estava uma geração atrasado.
— Detetive inspetora-chefe Carol Jordan — disse ele, nitidamente saboreando a ressonância grave da própria voz — E detetive Hallam. Bem-vindas ao futuro.
Meu Deus, me ajuda, Carol pensou.
— Você deve ser Philip Jarvis — cumprimentou ela, forçando um sorriso. — Estou impressionada e agradecida por estar disposto a me ajudar a esta hora da noite.
— O tempo não espera por homem nenhum — disse ele, orgulhoso como se a frase tivesse sido cunhada por ele. — Nem por mulher, pra dizer a verdade. Reconhecemos a importância do seu trabalho e, como vocês, operamos 24 horas por dia. Estamos, no final das contas, no mesmo negócio, atuamos na prevenção do crime e, quando falhamos, temos que pegar os responsáveis.
— Hmm — murmurou Carol evasivamente. Era óbvio que aquele discurso fora preparado de antemão e não tinha nenhuma intenção de provocar uma resposta.
Jarvis sorriu benevolentemente, revelando um tipo de clareamento dentário mais comum em Nova York do que em Yorkshire.
— Esta é a sala de observação — revelou com um movimento de braço sem se deixar intimidar pela obviedade da sua declaração. Ela é alimentada pela nossa biblioteca totalmente automatizada ou pelo material ao vivo oriundo das muitas câmeras que estão em teste lá nas estradas. O operador escolhe a fonte e seleciona as imagens que quer ver.
Ele levou Carol e Kay mais para a frente, até estarem de pé atrás da mulher. De perto, Carol viu que a pele dela era mais velha do que o rosto, pálida ao ponto de parecer doente pela falta de luz natural e pela do monitor.
— Esta é Gina — anunciou Jarvis, como se ela pertencesse à realeza. — Quando me disseram a data e o horário em que estavam interessadas e qual eram os dados das placas dos veículos sobre o qual queriam informações, coloquei-a para trabalhar nisso imediatamente.
— Como disse, fico muito agradecida por isso. Teve alguma sorte?
— Isto aqui não envolve sorte, inspetora-chefe — alegou Jarvis, com uma arrogância despreocupada. — Não com o sistema de vanguarda como o nosso. Gina?
Gina desviou os olhos da tela e deu um impulso com os pés, girando para ficar de frente para eles e pegando uma folha de papel sobre a mesa.
— Duas horas e 17 minutos da tarde em questão. A voz dela era grave e eficiente. — O Golf preto saiu da rodovia M1 em direção ao centro da cidade. Depois, às 23h32, o Mercedes prata conversível fez exatamente a mesma coisa. Conseguimos providenciar fitas e fotografias dos vídeos com data e hora dos dois eventos.
— É possível identificar os motoristas dos dois veículos? — perguntou Kay falhando na tentativa de disfarçar o entusiasmo na voz.
Gina suspendeu a sobrancelha e a encarou com interesse.
— Obviamente, as imagens do período diurno impõem menos problemas nesse aspecto — intrometeu-se Jarvis. — Mas, atualmente, estamos usando uma mídia experimental top de linha para as filmagens noturnas e, com nossa tecnologia computacional avançada, seria possível providenciar imagens supreendentemente boas.
— Se soubessem quem é que estão procurando, seriam capazes de reconhecer a pessoa. Se estão planejando fazer um “alguém conhece este homem” no programa de criminosos na TV, podem ter um probleminha ou outro — detalhou Gina.
— Vocês disseram que esse sistema é experimental. Como acham que eles se sairiam como prova em um tribunal? — perguntou Carol.
— As imagens dos carros seriam cem por cento aceitas. Quanto às dos motoristas, mais ou menos uns 75 por cento — apostou Gina.
— Espera aí, Gina, não vamos ser tão pessimistas. Vai depender, como acontece com toda evidência, de como ela é apresentada ao júri — protestou Jarvis. — Ficaria feliz em testemunhar e afirmar que apostaria a minha reputação na confiabilidade do sistema.
— E você testemunharia como um especialista qualificado, não é mesmo, senhor? — perguntou Carol. Ela não estava o colocando contra a parede, mas o tempo era escasso e precisava saber o quanto aquele território era firme.
— Eu, não, mas alguns dos meus colegas são.
— Tipo eu — disse Gina. — Olha só, sra. Jordan, por que não dá uma olhada no que a gente tem e vê se não é o suficiente pra te ajudar a conseguir a evidência corroborativa pra que, assim, não dependa do que o júri acha da nossa tecnologia?
Quando saiu de lá meia hora depois, Kay carregava um pacote de fitas de vídeo e imagens impressas a laser que ambas as mulheres, no fundo, sabiam que encurralariam Jacko Vance. Se Donna Doyle ainda estivesse viva, eram a sua última e melhor esperança. Carol mal podia esperar para contar a Tony. Olhou o relógio ao voltar para a o carro. Meia-noite e meia. Sabia que ele ia querer ver o que ela tinha, mas Carol precisava voltar para Seaford. E Kay podia levar o material para ele. Ficou de pé ao lado do carro, indecisa.
Mas que inferno, que se dane, pensou. Queria muito conversar com Tony sobre a evidência. Ele só teria uma chance com McCormick e Wharton e ela precisava se certificar de que ele prepararia uma justificativa que dialogasse diretamente com a ideia que um policial tinha de prova.
Afinal de contas, caso precisassem dela, ela estava com seu celular.
A detetive Di Earnshaw empurrou com força o encosto do banco do carro, jogando a pélvis para a frente numa tentativa em vão de relaxar as costas doloridas e encontrar uma boa posição no carro sem identificação do Departamento de Investigação Criminal. Gostaria de estar usando o seu pequeno Citroën, cujo acento parecia estar moldado aos seus contornos. Era óbvio que quem projetara o Vauxhall usado pela polícia tinha uma porcaria de um quadril bem mais estreito e pernas bem mais longas do que ela jamais poderia sonhar em ter.
Pelo menos o desconforto a mantinha acordada. Havia uma espécie de orgulho vingativo na determinação de Di em se manter no serviço. Estava tão convencida quanto Tommy Taylor de que as vigilâncias eram total perda de tempo e dinheiro, mas acreditava haver meios mais sutis e efetivos de demonstrar isso aos superiores do que dar o cano no serviço. Conhecia bem o sargento com quem trabalhava para ter uma ideia muita acertada de como ele estava passando as horas aborrecidas que faziam a noite se arrastar implacavelmente em direção ao amanhecer. Se Carol Jordan descobrisse, ele seria rebaixado tão rápido que nem saberia o que o tinha atingido. O Departamento de Investigação Criminal era uma fábrica de fofocas e, mais cedo ou mais tarde, ela saberia. Se não fosse durante aquele serviço ali, provavelmente seria em outro que realmente tivesse algum propósito.
Di nem sonhava em fazer algo tão óbvio para corroer a autoridade de Jordan. Mais pena do que raiva, essa seria a sua linha. Os sorrisos de piedade pelas costas de Jordan, as apunhaladas por trás, “eu não deveria falar isto, mas...”, em toda oportunidade que tivesse. Faria parecer com que todo vacilo emanasse das ordens de Jordan e, todos os sucessos, das iniciativas da tropa. Quase nada era tão destrutivo quanto a corrosão constante. Ela sabia. Experimentara isso nos seus anos de East Yorkshire Police.
Bocejou. Nada aconteceria. Alan Brinkley estava aconchegado na cama com a esposa dentro do seu caixote pretensiosamente moderno naquele bairro residencial chamado de executivo que tinha projetos exagerados para sua localização. Di não se importava que a limpeza e a manutenção ali fossem mais fáceis, preferia a sua casinha de pescador lá nas docas, mesmo que o local agora fosse um centro histórico que mais servia como armadilha para turistas. Adorava as ruas de paralelepípedos e o sal no ar, a sensação de que gerações de mulheres de Yorkshire ficaram à soleira daquelas portas, esquadrinhando o horizonte à procura dos seus homens. Devia ser mesmo muito sortuda, pensou, num momento de autodepreciação.
Conferiu seu relógio com o do painel do carro. Nos dez minutos que se passaram desde a última vez que fizera isso, os dois conseguiram manter os cinco segundos de descompasso entre eles. Bocejando, ligou seu radinho portátil. Tinha a esperança de que o programa que chamava de prosa proletária tivesse terminado e o DJ estivesse tocando músicas decentes. Assim que Gloria Gaynor revelou estridentemente que, enquanto soubesse amar, sabia que continuaria viva, uma luz suave apareceu abruptamente atrás dos quatro painéis de vidro fosco da claraboia que imitava o estilo gregoriano na porta da frente da casa de Brinkley. Di agarrou o volante com força e se ajeitou apressadamente. Era aquilo mesmo? Ou seria a insônia empurrando alguém para uma xícara de chá?
Tão repentinamente quanto tinha surgido, a luz desapareceu. Di desmoronou no encosto do banco dando um suspiro, então, por debaixo do portão da garagem, um fio fino de luminosidade se esticou pelo chão. Alarmada, esmurrou o botão de desligar do rádio e abaixou o vidro do carro, deixando o ar frio da noite inundar suas vias respiratórias e avivar seus sentidos. Sim, ali estava ele. O inconfundível ronco do motor de um carro.
Depois de um tempo, a porta da garagem levantou estremecendo e um veículo saiu lentamente. Era o carro de Brinkley, sem dúvida. Ou melhor, era o carro cujo financiamento Brinkley pagara apenas três prestações e que seria tomado dele assim que o responsável pela reintegração de posse descobrisse como pegá-lo sem ter efetivamente que invadir a garagem do bombeiro. Enquanto observava, Brinkley saiu do carro, caminhou de volta e esticou o braço para dentro da garagem, presumivelmente para apertar o botão que fechava o portão.
— Caramba — disse Di Earnshaw, fechando a janela. Apertou o botão de gravar do seu microcassete e falou com entusiasmo: — Alan Brinkley está saindo de casa agora, de carro, a uma e vinte e sete da manhã.
Largando o gravador no banco ao lado, pegou o rádio pessoal que supostamente deveria mantê-la em contato direto com Tommy Taylor.
— Aqui é Tango Charlie. Tango Alpha, está na escuta? Câmbio.
Ligou o carro, tomando cuidado para evitar o reflexo de acender o farol. Brinkley acabara de descer a entrada da garagem e ia em direção ao retorno no final da rua fechada, dando seta para a direita. Di tirou lentamente o pé da embreagem, manteve o farol apagado e o seguiu pela sinuosa rua que atravessava o bairro residencial e levava à avenida principal.
Apertou novamente o botão do rádio e repetiu a mensagem para o sargento:
— Tango Charlie para Tango Alpha. Sujeito em trânsito, na escuta? Câmbio.
Na avenida principal, Brinkley virou à esquerda. Ela contou até cinco, depois ligou o farol e virou também. Ele seguia para o centro da cidade, que ficava a cinco quilômetros de distância. Mantinha a velocidade constante, um pouquinho acima do limite. Não tão cuidadoso a ponto de ser parado por suspeita de excesso de cautela na direção por dirigir embriagado, não tão rápido a ponto de chamar a atenção de um policial por alta velocidade.
— Tango Charlie para Tango Alpha.
Xingou silenciosamente o seu chefe errante. Precisava de apoio e ele não estava lá. Pensou em entrar em contato com a central, mas eles simplesmente enviariam uma tropa de viaturas que espantaria todos os incendiários do Reino Unido.
— Que merda — reclamou ela, quando Brinkley saiu da avenida principal e entrou nas ruas mal iluminadas de um pequeno parque industrial. Parecia mesmo que aquilo era verdade. Apagando novamente o farol, seguiu-o cuidadosamente. Quando os muros altos dos estabelecimentos se fecharam ao redor dela, decidiu solicitar reforço na delegacia. Aumentou o volume do rádio do carro e pegou o microfone.
— Delta Three para central, câmbio.
Escutou um chiado e nada mais. Sentiu um aperto no coração quando percebeu que estava em alguns dos poucos locais salpicados no centro da cidade em que não havia sinal de rádio. Devia estar em um buraco negro no que se referia a todas as chances de conseguir reforço. Não havia nada mais a fazer. Estava por conta própria.
Capítulo 23
Donna Doyle já não sentia mais dor. Nadava em um morno caldo de delírio, revisitando memórias por lentes distorcias. Seu pai ainda estava vivo, vivo e a jogando para cima no parque onde árvores acenavam para ela. Os galhos se transformavam em braços e Donna se encontrava brincando no centro de uma roda de amigos. Tudo era maior do que o habitual porque ela tinha apenas 6 anos e as coisas sempre ficavam maiores quando se é pequeno. Cores sangravam umas nas outras e era a semana do tradicional festival de Well Dressing, a festa flutuava e derretia sobre as ruas como jujubas deixadas sob o sol.
E lá estava ela, no coração do desfile, em um tablado de uma caminhonete coberta com flores de papel-crepom que inchavam e ficavam do tamanho de rosas de cem pétalas em seu desarranjo febril. Era a Princesa das Rosas, radiante nas camadas de anáguas volumosas, a glória da ocasião neutralizando o desconforto do tecido que lhe dava coceira naquela quente tarde de verão e da tiara de plástico que cortava a macia carne atrás das suas orelhas. Através do deslocamento enevoado entre sonho e realidade, Donna se perguntava porque o sol queimava com um fervor tão tropical que a fazia suar e em seguida estremecer.
Fora da sua consciência, a inchada e descolorida carne que pendia inutilmente ao lado dela continuava a se decompor, enviando mais veneno para dentro seu corpo, continuamente alternando o equilíbrio entre envenenamento e sobrevivência. O fedor podre e a carne estragada eram apenas os sinais externos de uma putrefação mais secreta.
O corpo sôfrego não via a hora da morte começar seu trabalho de decomposição.
Capítulo 24
Ao sair do carro para fechar o portão da garagem, Alan Brinkley notara sua respiração virar vapor no ar da noite. Era um frio intenso, tudo bem. O inverno estava maltratando. Por sorte, escolhera um destino que não envolvia uma caminhada longa. A última coisa de que precisava era de dedos dormentes e desastrados por causa do frio na hora de executar seu trabalho. Não havia nada como um belo fogo para esquentar até os ossos de um homem, pensara, com um sorriso irônico ao pisar no acelerador para encorajar o aquecedor a cumprir a promessa de calor escarlate.
Seu alvo era uma fábrica de tinta num canto remoto de um pequeno parque industrial no limite da cidade. Dessa vez, não precisava estacionar em um lugar e caminhar, pois o estabelecimento ao lado do seu alvo era uma oficina. Sempre havia meia dúzia de carros estacionados do lado de fora em variados estágios de pintura ou lanternagem, levados para lá depois de terem sofrido um acidente. Ninguém notaria um carro a mais. Não que houvesse alguém para notar. Soube, por acaso, que o segurança contratado para fazer a ronda na propriedade nunca estava lá entre as duas e três e meia. Brinkley o observara com frequência suficiente para saber que era vítima de chefes gananciosos: muitas as instalações a proteger e pouco pessoal para ficar adequadamente de olho nelas.
Virou, entrou no estreito vão entre depósitos altos que levava à propriedade e se moveu cautelosa e lentamente pela via que dava acesso à oficina. Desligou o carro e o farol, conferindo mais uma vez se nenhum dos itens do seu kit escorregaram do seu bolso. Estavam todos ali: o barbante, o isqueiro de metal cheirando a gasolina, um maço com 17 cigarros, a caixa de fósforos das corridas de cachorros, a edição noturna do jornal do dia anterior, seu canivete suíço de sete lâminas e um lenço amarrotado manchado de óleo. Abaixou-se e pegou a pequena e poderosa lanterna no porta-luvas. Depois de respirar fundo três vezes de olhos fechados, estava pronto.
Brinkley saiu do carro e olhou rapidamente ao redor. Sua atenção varreu os carros ao redor da oficina. Viu a ponta de um Vauxhall parado na sombra de um depósito bem na esquina da via que dava acesso à oficina, mas não deu importância a ele. Já que não houve barulho de motor ou luminosidade de faróis para alertá-lo, não se deu conta de que não passara por ele momentos antes. Certo de que não havia nada mais se movendo no cenário, cortou caminho pelo asfalto até a fábrica de tinta. Meu Deus, isto aqui vai ser um espetáculo infernal, pensou ele, com satisfação. Podia apostar que, depois que começasse, levaria mais um ou dois prédios com ele. Mais poucas conflagrações tipo esta e Jim Pendlebury teria que falar “foda-se o orçamento” e voltar a colocá-lo para trabalhar em tempo integral. Não seria o suficiente para pagar nem os juros dos débitos que ele e Maureen acumularam como pulgas em um gato, mas manteria os credores acuados enquanto pudesse pensar numa maneira de tirar o pescoço deles da forca de uma vez por todas.
Brinkley abanou a cabeça para afastar aquele monte de preocupação e pavor que o engolfava sempre que permitia que sua montanha de dívidas lançasse sombra sobre ele. Não podia fazer aquilo a não ser que estivesse com a mente concentrada e, toda vez que pensava na quantia de devia, tinha uma vertigem e não era capaz de imaginar que algum dia conseguiria resolver seus problemas e continuar inteiro. Repetia constantemente para si que o que estava fazendo era o único jeito de sobreviver. O indigente que morrera tinha desistido dessa batalha muito antes de Brinkley entrar em cena. Ele seria diferente. Sobreviveria. Então precisava naquele momento reprimir as distrações e se concentrar em atingir o resultado certo sem ser pego.
Ser pego anularia todo o propósito. Nunca conseguiria pagar as dívidas e Maureen jamais o perdoaria.
Ao enfiar a mão entre a caçamba de lixo industrializado e a parede da fábrica, os dedos de Brinkley se aproximaram da sacola que colocara ali mais cedo. Dessa vez, a janela do escritório era a melhor opção para entrar. O fato de que era totalmente visível aos olhos de quem passava pela via de acesso a pé ou de carro não o preocupava. Nenhuma das empresas tinha turno da noite, o segurança demoraria uma hora para aparecer ali e a fábrica de tinta era a última construção antes de uma cerca de segurança de dois metros que delimitava o final da via. Ninguém usaria aquele lugar como atalho.
Levou menos de cinco minutos para entrar e apenas outros sete para que suas mãos experientes montassem o detonador padrão. A fumaça do cigarro ascendia ondeando o mais cheiroso aroma ao seu redor. Sua doçura se mesclava aos cheiros dos produtos químicos das tintas que impregnavam o ar da fábrica. A tinta se ergueria como um pilar de fogo no deserto, pensou com satisfação enquanto recuava no corredor escuro sem tirar os olhos do detonador em lenta combustão.
Apalpava atrás de si em busca da porta aberta do escritório por onde entrara. Em vez de um espaço vazio, seus dedos tocaram um tecido quente. Alarmado, girou quase paralisado e o brilho de uma lanterna atingiu seus olhos como se uma taça de vinho tivesse sido arremessada contra eles. Cego, piscava desesperadamente para tentar se livrar da luz. Lutou para passar pela porta, mas, desorientado, trombava de lado na parede. A luz se moveu e ele escutou o barulho da porta sendo fechada.
— Você já era — disse uma voz de mulher. — Alan Brinkley, você está preso por suspeita de incêndio criminoso.
— Não! — rugiu ele como um animal encurralado e se jogou em direção à luz.
Eles colidiram e desmoronaram no chão num emaranhado de pernas e mobiliário de escritório. A mulher embaixo dele lutava e se retorcia como um gatinho furioso, mas ele era mais pesado e mais forte, a parte superior do corpo desenvolvida devido aos anos de treinamento no corpo de bombeiros.
Ela tentou acertá-lo com a lanterna, mas Brinkley se defendeu facilmente do golpe com o ombro, fazendo com que ela rolasse pelo chão, parando encostada em um arquivo, de onde, balançando de leve, arremessava uma luz mareada sobre a luta. Com isso, ele conseguia ver o rosto dela com a boca aberta contorcida numa carranca de determinação ao tentar se soltar. Se ele conseguia vê-la, ela também podia enxergá-lo, foi o que a mente em pânico de Brinkley berrou.
Ser pego derrotaria todo o propósito. Nunca conseguiria pagar as dívidas e Maureen jamais o perdoaria.
Ele colocou o joelho sobre o abdômen dela e se apoiou nele para lhe arrancar o ar dos pulmões. Empurrou o antebraço contra a garganta dela, prendendo-a no chão. Quando Di colocou a língua para fora numa desesperada luta por ar, ele agarrou o cabelo dela com a mão livre e puxou com força a cabeça contra seu antebraço. Mais sentiu do que ouviu algo estalar. De repente, ela amoleceu. A briga terminara.
Brinkley saiu de cima dela, enroscando-se no chão em posição fetal. Um choro subiu-lhe a garganta. O que tinha feito? Sabia muito bem qual era a resposta, mas precisava repetir a pergunta continuamente dentro da cabeça. Rolou e ficou de joelhos, a cabeça pendendo como um cachorro desgraçado. Não podia deixá-la ali. Eles a encontrariam muito em breve. Tinha que colocá-la em outro lugar.
Um gemido se arrastou para fora de seus lábios. Esforçou-se para encostar na carne que, em sua imaginação, já estava morta e fria. De qualquer maneira, colocou o corpo da mulher nos ombros com o levantamento tradicional dos bombeiros. Levantou com dificuldade e cambaleou pela porta, voltando em direção ao centro do incêndio. Passou direto pelo detonador, que já emanava um cheiro desagradável, e foi até onde caixas de tinta sobre estrados esperavam para seguirem para os caminhões. O fogo seria intenso ali, deixando pouco para o pessoal da perícia forense analisar. Certamente não sobraria nada que a conectasse a ele. Largou o corpo de membros bambos no chão.
Esfregando lágrimas dos olhos, Brinkley se virou, saiu correndo e foi envolvido pelo acolhedor frio da noite. Como chegara àquilo? Como algumas extravagâncias e um gostinho da vida boa podiam tê-lo levado até aquela situação? Queria cair no chão e uivar como um lobo, mas tinha que ficar de pé, pegar o carro e responder ao seu pager quando fosse convocado pelo corpo de bombeiros. Tinha que superar aquilo. Não para o seu bem, mas para o de Maureen.
Ser pego derrotaria todo o propósito. Nunca conseguiria pagar as dívidas e Maureen jamais o perdoaria.
— Você não deveria estar em Seaford? — perguntou ele.
— Estou com o meu telefone. Só demoro meia hora a mais pela rodovia do que quando saio lá do meu chalé. Temos que ver o que conseguimos e o que vamos fazer agora.
— Melhor entrar, então.
Carol precisou de mais tempo para ler o relatório de Tony do que ele para analisar as fotografias e assistir aos vídeos que ela levara; ele não se importava com isso. Continuava a rever a fita e a embaralhar as fotografias com a data impressa, um sorriso apertado nos lábios, fogo nos olhos. Finalmente, Carol chegou ao final. O olhar de cumplicidade que compartilhavam dizia a ambos que estavam certos e que agora conseguiriam demonstrar um caso que não podia mais ser ignorado.
— Bom trabalho, doutor — elogiou Carol.
— Bom trabalho detetive inspetora-chefe — ecoou ele.
— “A vingança é minha, dizei o criador de perfis.”
Ele abaixou a cabeça em agradecimento.
— Gostaria de ter dado mais atenção na primeira vez que a Shaz levantou a suspeita. Quem sabe não teríamos chegado a este resultado sem ter pagado um preço tão alto. — Carol impulsivamente esticou o braço e cobriu a mão de Tony com a sua.
— Isso é ridículo, Tony. Ninguém teria instaurado uma investigação com base no que ela apresentou no exercício de treinamento.
— Não foi exatamente isso o que quis dizer. — Ele passou os dedos pelo cabelo. — Quis dizer que supostamente sou um psicólogo. Deveria ter percebido que ela não deixaria pra lá. Deveria ter discutido aquilo com ela, feito com que sentisse que não estava sendo desacreditada. Devia ter encontrado maneiras de explorar mais a questão sem colocá-la em risco.
— Pode dizer que é culpa da Chris Devine também — disse Carol energicamente. — Ela sabia que Shaz ia conversar com o Jacko e deixou a garota ir sozinha.
— E por que você acha que a Chris está dedicando seu valioso período de folga vasculhando Northumberland com Leon e Simon? Não é pelo senso de dever. É pelo senso de culpa.
— Você não pode assumir a responsabilidade por todos eles. Shaz era uma policial. Deveria ter levado em consideração o risco; não havia a necessidade de ela fazer o que fez, então, mesmo que você tivesse tentado impedi-la, ela provavelmente não teria te dado atenção. Deixa pra lá. Tony.
Ele ergueu o pescoço e viu compaixão nos olhos de Carol. Concordou com um gesto de lamentação.
— Agora, se quisermos evitar acusações de que estávamos tão descontrolados quanto Shaz, precisamos fazer com que isto se torne oficial.
Carol afastou sua mão da dele.
— Fico feliz por você ter dito isso, estou começando a me sentir muito tensa por descobrir evidências concretas como esta sem ter nenhuma relação formal com a investigação e nenhuma cadeia de custódia sobre as provas a não ser “estava na minha bolsa, chefe”. Fico pensando no advogado de defesa fazendo picadinho de mim no tribunal. “Então, detetive inspetora-chefe Jordan, espera que o júri acredite nesta jornada solitária por justiça, que somente você, em oposição à totalidade da força de West Yorkshire, conseguiria conduzir? A senhora por acaso se deparou com uma porção de provas que liga o meu cliente ao assassinato da detetive Bowman, uma mulher com quem ele se encontrou por apenas uma hora? E o que o seu irmão faz mesmo, sra. Jordan? Mago dos computadores, seria essa uma boa descrição? O tipo de garoto genial que consegue fazer uma imagem digital dizer qualquer coisa que queira que ela diga?” Temos que mostrar isso pra West Yorkshire pra que eles possam construir o caso de maneira apropriada.
— Eu sei. Chega um momento no qual você tem que parar de bancar o Cavaleiro Solitário e é nesse ponto que estamos agora. Temos que te dar cobertura também. De manhã, vou direto ao departamento de homicídios. O que acha?
— Não que eu queira lavar as minhas mãos em relação a este caso, Tony — lamentou ela. — Só que a gente vai perder se não fizer isso.
Ele sentiu uma onda de ternura em relação a ela.
— Não teria realizado nada disso sozinho. Quando Jacko Vance encarar o júri, vai ser graças a você ter se juntado a nós.
Antes que pudesse responder, seu telefone tocou, rachando a proximidade entre eles como um machado na madeira.
— Puta merda — xingou ela, pegando seu telefone e apertando o botão. — Inspetora Jordan.
A voz familiar de Jim Pendlebury desceu pela linha telefônica.
— Parece que temos mais um, Carol. Fábrica de tinta. Subiu como uma tocha.
— Estou chegando aí o mais rápido possível, Jim. Me passa a localização?
Sem que Carol lhe pedisse, Tony arrastou papel e caneta para ela, que rabiscou o endereço.
— Obrigada.
Ela desligou e fechou os olhos momentaneamente. Depois acessou a agenda e entrou em contato com o departamento de comunicação.
— É a inspetora Jordan. Alguma notícia do sargento Taylor e da detetive Earnshaw?
— Negativo, senhora — respondeu a voz anônima. — A ordem é manter silêncio no rádio a não ser que precisem relatar algo específico da vigilância deles.
— Por favor, veja se consegue localizá-los e diga para me encontrarem na fábrica de tinta no Parque Industrial Holt. Obrigada. Boa noite.
Ela olhou pra Tony, perplexa, e disse:
— Parece que estávamos errados.
— O incendiário?
— Atacou de novo. Só que nem Tommy Taylor nem Di Earnshaw informaram nada pelo rádio, ou seja, parece que não foi nenhum dos nossos suspeitos — ela abanou a cabeça. — De volta à estaca zero, eu acho.
— Boa sorte — disse Tony enquanto ela vestia o casaco.
— Você é que vai precisar de sorte pra convencer o Wharton e o McCormick — devolveu ela enquanto Tony a seguia pelo corredor. À porta, virou-se e colocou a mão impulsivamente no braço dele. — Não fica se martirizando por causa da Shaz — aconselhou ela e em seguida lhe deu um beijo na bochecha. — Se concentra em pegar o Jack Bacana.
Depois foi embora, sem deixar nada para trás além do fragmento do seu perfume no ar da noite.
Acima do borrão de sódio e neon, havia uma noite clara e estrelada. Da sua torre no topo da casa em Holland Park, Jacko Vance observava a noite londrina e imaginava as estrelas de Northumberland. Havia uma ponta solta, o único fio que poderia desembaraçar o caso e deixá-lo despojado do seu disfarce protetor. Era hora de Donna Doyle morrer.
Há muito tempo ele não tinha que chegar ao ponto de matar uma delas. Não era do assassinato que gostava. Era do processo. A desintegração de um ser humano por meio da degradação pela dor e infecção. Uma delas fora rebelde. Recusara-se a beber, comer e a usar a privada química. Desafiara Vance e não durara muito. Cometera o erro de desconsiderar o potencial infeccioso do mijo e da bosta espalhados pelo chão. A única coisa na qual pensava era em se manter repulsiva o bastante para que ele não encostasse nela, o que também fora um erro.
Entretanto, tinha que se livrar sem demora desta Jillie específica. A existência dela o preocupava, era uma coceira constante, como uma picada de pulga debaixo do cinto. Mas porque a polícia andava farejando informações sobre a morte de Shaz Bowman, não queria agir de maneira inconveniente. Uma ida rápida a Northumberland não prevista em sua agenda poderia levantar suspeitas. A rápida visita que fizera não fora demorada o bastante para lidar com a puta apropriadamente. Além disso, o envolvimento de Tony Hill devia ser levado em consideração. Aquele homem tinha alguma coisa ou estava apenas tentando desconcertá-lo para que fizesse exatamente a única coisa que o exporia?
De maneira ou de outra, ela tinha que desaparecer. A possibilidade de ainda estar viva colocava-o em perigo mortal. Devia tê-la descartado na noite em que matara Shaz, mas tivera medo de que seus movimentos pudessem passar por um minucioso exame para se sentir confortável com essa opção. Além do mais, estava exausto demais para ter certeza de que faria um bom trabalho.
Teria que confiar na invisibilidade do seu esconderijo, sepultado abaixo dos blocos de pedra. As únicas pessoas que sabiam da existência da velha cripta eram os dois pedreiros que contratara para instalar a abertura que se abria num movimento perfeito. Doze anos antes, as pessoas ainda acreditavam em ameaça nuclear. Sua conversa de querer criar um abrigo contra bomba fora vista como uma mera excentricidade entre os moradores locais. E já fora, ele tinha certeza, esquecida há muito tempo.
Mesmo assim, ela tinha que desaparecer. Não nessa noite. Filmaria de manhã bem cedo e precisava do sono que sua apreensão lhe permitisse. Dali a um ou dois dias, todavia, poderia dar uma escapulida durante a noite e se encontrar com a menina.
Tinha que tirar o maior proveito possível. Demoraria um pouquinho antes que pudesse se entregar ao prazer novamente. Uma ideia centelhou em sua cabeça. Para que fosse possível se sentir seguro outra vez, talvez Tony Hill devesse aprender uma lição mais pessoal do que a de Shaz Bowman. Jacko Vance fixou os olhos na cidade e indagou: será que há uma mulher na vida de Tony Hill? Ele se lembraria de perguntar à esposa se Hill dissera alguma coisa sobre uma companheira durante o jantar.
Não tivera dificuldade alguma para matar Shaz Bowman. Repetir aquilo com a mulher de Tony só poderia ser ainda mais fácil.
Com as mãos bem enfiadas no casaco, a gola virada para cima contra o vento severo do estuário, Carol Jordan encarava petrificada a ruína ainda esfumaçada da fábrica de tinta. Sua vigília já tinha três horas, mas ainda não estava preparada para ir embora. Os bombeiros, com seus inconfundíveis capacetes amarelos manchados de resíduos gordurosos, movimentavam-se para dentro e para fora das bordas do prédio. Em algum lugar dentro daquela carcaça que não parava de ranger, tentavam penetrar até o centro do incêndio. Carol começava a aceitar que não precisava da prova visual para saber por que Di Earnshaw não respondera às mensagens de rádio da central pedindo que fosse ao local do incêndio.
Di Earnshaw já estava lá.
Carol escutou um carro parar atrás de si, mas não virou a cabeça. Depois de um roçar nas fitas que cercavam a cena do crime, Lee Whitbread entrou no campo de visão dela, oferecendo um copo de café de restaurante fast-food.
— Achei que você ia querer um — disse ele.
Ela assentiu e pegou o café sem dar uma palavra.
— Então, nenhuma novidade? — perguntou ele com sua expressão, normalmente ansiosa, carregada de apreensão.
— Nada — respondeu ela.
Carol tirou a tampa de plástico e levantou o copo até os lábios. O café estava forte e quente, surpreendentemente bom.
— Também não tem nada na delegacia — informou Lee, colocando a mão ao redor da boca para acender um cigarro. — Dei uma passada na casa dela, só pra dar uma conferida, tipo, quem sabe acabou o trampo e foi pra casa, mas nem sinal. As cortinas do quarto continuam fechadas, então ela só pode estar usando protetor auricular, né?
Como todo policial, seu pessimismo ocupacional era sempre temperado de esperança quando um colega parecia prestes a desencadear um funeral policial. Carol não conseguia compartilhar sequer a frágil esperança do protetor auricular. E, se ela sabia que Di Earnshaw não entraria para a lista de desaparecidos, Lee tinha certeza absoluta que seu companheiro sargento estava fora de ação para sempre.
— Você viu o detetive sargento Taylor? — perguntou ela.
Lee escondeu sua expressão atrás da mão enquanto fumava furiosamente.
— Ele afirma que a Di não entrou em contato hora nenhuma. Voltou pra delegacia pra ver se surge alguma coisa por lá.
— Espero que ele invente alguma coisa mais imaginativa que isso — comentou Carol, em tom sombrio.
Três figuras emergiram da escura estrutura da fábrica e tiraram o respirador da boca. Um deles se afastou dos outros dois e caminhou na direção deles. A alguns metros dela, Jim Pendlebury parou e tirou seu capacete.
— Sinto muitíssimo, Carol.
A cabeça de Carol se inclinou para trás, depois caiu cansada para a frente.
— Não há dúvida, presumo eu.
— Sempre existe o espaço pra dúvida até que façam o serviço completo. Análise de laboratório. Mas já concluímos que é do sexo feminino e, do lado do corpo, tem um negócio derretido que parece um rádio. — A compaixão suavizava sua voz.
Ela levantou o olhar para a expressão misericordiosa de Pendlebury. Jim sabia o que era perder pessoas pelas quais ele era nominalmente responsável. Jordan gostaria que ele pudesse lhe contar quanto tempo demoraria para conseguir se olhar no espelho novamente.
— Posso vê-la?
Ele negou com um gesto de cabeça e justificou:
— Ainda está muito quente lá dentro.
Carol soltou um curto e ríspido suspiro.
— Estarei na minha sala se alguém quiser falar comigo.
Ela jogou o copo de café fora, virou, abaixou-se para passar por baixo das fitas e apressou-se cegamente em direção ao seu carro. Atrás dela, o café fez uma poça no asfalto. Lee Whitbread jogou seu cigarro nela e ficou escutando de maneira deprimente o seu chiado antes de morrer. Levantou a cabeça e olhou para Jim Pendlebury.
— Eu também. A gente agora tem um filho da puta de um assassino pra pegar.
Colin Wharton juntou a pilha de fotografias tiradas do vídeo, depois se inclinou para ejetar a fita do videocassete no local de treinamento que a equipe de Tony abandonara, o que parecia ter acontecido há muitíssimo tempo. Evitando os olhos de Tony, disse:
— Não prova nada. Ok, alguém voltou de Londres dirigindo o carro da Shaz Bowman. Pode ser qualquer um atrás daquele disfarce. Não dá pra ver quase nada da cara do sujeito, e essas melhorias feitas em computador... eu não confio nelas, e o júri é pior ainda. Na hora em que a merda dos advogados de defesa concluírem, vão achar que qualquer coisa vinda de computador foi adulterada pra parecer com o que a gente quer.
— E o braço? Não dá pra adulterar aquilo. Jacko Vance tem uma prótese no braço direito. O homem que abastece o carro não usa o braço direito de jeito nenhum. Isso é muito perceptível — pressionou Tony.
Wharton deu de ombros.
— Tem um monte de explicações possíveis pra isso. O homem em questão pode ser canhoto. Ele pode ter machucado o braço em uma briga para dominar a Bowman. Pode até ser que soubesse desse negócio do Jacko Vance que estava encucando a Shaz e decidiu tirar proveito disso. Qualquer mané sabe das câmeras hoje em dia, dr. Tony. O Vance trabalha no ramo; realmente acha que ele não pensaria nelas?
Tony passou a mão pelo cabelo, agarrando as pontas como se esforçando-se para não perder a calma.
— Você tem aí o Vance saindo da rodovia pra entrar em Leeds no próprio carro no momento crucial. Com certeza isso é coincidência demais.
Wharton abanou a cabeça.
— Não acho, não. O sujeito tem um chalé em Northumberland. Faz todo aquele trabalho voluntário lá. Ok, a rodovia A1 pode ser o caminho mais curto, mas a M1 é uma estrada mais rápida, e é bem fácil pegar a A1 ao norte da cidade. Ele pode ter decidido que queria comer um peixe com batata no Bryan na beira da estrada — acrescentou ele, numa pálida tentativa de deixar a clima mais leve.
Tony cruzou os braços como se isso fosse segurar sua triste raiva dentro de si.
— Por que você não leva isto a sério? — perguntou ele.
— Se o Simon McNeill não estivesse foragido, provavelmente a gente não presumiria que tudo o que produziu está corrompido — respondeu Wharton, furioso.
— Simon não tem nada a ver com isto. Ele não assassinou a Shaz Bowman. Jacko Vance, sim. Ele é um assassino de sangue frio. Tudo o que sei sobre psicologia me diz que ele matou Shaz Bowman porque ela ameaçou cara a cara desmoronar o teatro dele. Você viu o perfil psicológico que preparei. O que mais temos que fazer para persuadir vocês a, pelo menos, considerar o sujeito?
A porta atrás dele foi aberta. O detetive superintendente-chefe Dougal McCormick enfiou seu volumoso torso dentro da sala. Seu rosto estava vermelho como o de um homem que bebera demais no almoço, a carnuda bochecha brilhava de suor. Sua voz aguda baixou meia oitava com o álcool.
— Achei que estivesse barrado de vir aqui a não ser que a gente te chamasse — disse ele, apontando o dedo para Tony.
— Trouxe as evidências para abrir o caso contra o assassino da Shaz Bowman — informou Tony, dessa vez com a voz cansada. — Só que o sr. Wharton não parece capaz de captar o quanto elas são significativas.
McCormick carregou seus ombros para dentro da sala.
— É isso mesmo? O que você tem pra falar sobre isso, Colin?
— Tem uma filmagem muito interessante de um posto de gasolina de beira de estrada que foi melhorada por computador e que mostra outra pessoa dirigindo o carro da Shaz Bowman na tarde em que ela foi morta.
Silenciosamente, ele espalhou as imagens para que McCormick as verificasse. O superintendente-chefe apertou os olhos escuros e as estudou atenciosamente.
— É o Jacko Vance — insistiu Tony. — Ele levou o carro dela pra Leeds, depois foi pra Londres de novo antes de voltar de carro pro norte, provavelmente com a Shaz no porta-malas.
— Jacko Vance não interessa — afirmou McCormick, desdenhosamente. — A gente tem uma testemunha.
— Uma testemunha?
— É, ué, uma testemunha.
— Uma testemunha de que exatamente?
— Um vizinho viu seu garoto de olho azul, o Simon McNeill, dando a volta pelos fundos do apartamento da Sharon Bowman na noite em que ela foi assassinada e não viu o cara sair de novo pela frente. Tem uma equipe desmantelando a casa dele agora mesmo, enquanto a gente está conversando aqui. Já estávamos procurando por ele, mas agora vamos fazer um anúncio público. Você deve saber onde ele está, hein, dr. Hill?
— Foram vocês que dispensaram o meu esquadrão. Como vou saber onde o Simon está? — disse Tony, disfarçando, com uma voz fria, a frustração em ebulição que sentia por dentro.
— Bom, não interessa. Vamos conseguir pôr a mão nele mais cedo ou mais tarde. Não tenho dúvida de que os meus homens acabarão conseguindo coisa melhor pra mostrar pra um tribunal do que alguns vídeos que o irmão da sua namorada emperiquitou.
Vendo a expressão espantada de Tony, gesticulou a cabeça de modo sombrio e continuou:
— É isso mesmo, a gente sabe tudo sobre você e a detetive inspetora-chefe Jordan. Acha mesmo que a gente não conversa um com o outro neste trabalho?
— Você vive me falando que quer provas, não suposições — disse Tony, mantendo seu autocontrole com pura força de vontade. — A propósito, a detetive inspetora-chefe não é e nunca foi minha namorada. E a minha alegação de que o Vance é o assassino não está baseada unicamente no vídeo. Não estou querendo ensinar padre a rezar missa, mas pelo menos olhe o relatório que redigi. Há evidências sólidas nele.
McCormick pegou a pasta na mesa e a folheou.
— Um perfil psicológico não é o que eu chamaria de evidência. Rumor, insinuação, gente aflita protegendo o próprio pescoço. É nisso que você está se baseando aqui.
— A própria esposa diz que nunca dormiu com ele. Não vai me dizer que esse é considerado um comportamento normal aqui em West Yorkshire?
— Ela pode ter todo tipo de razões pra mentir pra você — desdenhou McCormick, largando o relatório que deslizou suavemente sobre a mesa.
— Ele se encontrou com Barbara Fenwick dois dias antes dela ser sequestrada e assassinada. Está lá, no arquivo de assassinato da Polícia da Grande Manchester. Um dos primeiros eventos de caridade dele depois do acidente que destruiu seu sonho. Temos fotografias dele em eventos posteriores com outras meninas que desapareceram e sobre as quais nunca mais se teve notícia. — A voz de Tony já estava desanimada. Não conseguira estabelecer um entrosamento que permitisse que os dois policiais voltassem atrás e levassem em consideração o que ele tinha a dizer. Pior que isso, parecia que tinha alienado McCormick a tal ponto que, se ele dissesse “preto”, McCormick retaliaria, “branco”.
— Um homem como ele encontra centenas de mocinhas por semana e nada acontece com elas — argumentou McCormick afundando na cadeira. — Olha só, dr. Hill, sei que é difícil pra você, por ser um psicólogo do alto escalão do Ministério do Interior, aceitar que seus olhos estejam vendados. Mas olha o seu homem, o McNeill. Estava apaixonado pela moça e parece que ela não sentia a mesma coisa por ele. A única coisa que temos é a palavra dele sobre os dois terem, supostamente, marcado tomar alguma coisa antes de se encontrarem com os outros dois pra sair. Ele foi visto dando a volta por trás da casa mais ou menos no horário em que ela pode ter morrido. Achamos as digitais dele no vidro da porta-balcão. E agora ele faz essa cena toda de desaparecimento. Você tem que admitir, é muito mais persuasivo do que uma pilha de evidência circunstancial contra um homem que é herói nacional. O que o senhor está tentando fazer, dr. Hill, é compreensível. Provavelmente estaria fazendo a mesma coisa se fosse um dos meus policiais que estivesse na mira. Mas, encare, você cometeu um erro. Escolheu uma maçã podre.
Tony levantou.
— Sinto muito que não conseguimos entrar num acordo em relação a isto. E sinto particularmente porque acho que o Jacko Vance está fazendo mais uma adolescente prisioneira, e ela pode estar viva ainda. Cavalheiros, o pior cego é aquele que não quer ver. Sinceramente espero que a sua cegueira não custe a vida de Donna Doyle. Agora, se me dão licença, tenho trabalho a fazer.
Wharton e McCormick não fizeram nenhuma tentativa para impedir que fosse embora. Assim que chegou à porta, Wharton alertou:
— É melhor pro McNeill que ele não fique esperando para ser preso.
— Eu discordo — retrucou Tony.
No estacionamento do lado de fora, inclinou-se sobre a porta do carro com a cabeça nos braços cruzados. Que inferno, o que mais a gente pode fazer? O único oficial superior que acreditava nas suas frágeis evidências era Carol, e ela não tinha autoridade alguma na Polícia de West Yorkshire; isso estava muito claro. A prova de que ainda precisavam era a que vinha das reconstituições na TV e de um apelo feito pela imprensa nacional; não de fontes disponíveis a um psicólogo desacreditado, uma dupla de policiais de extremos opostos do país agindo por conta própria e uma miscelânea de detetives trainees.
Meios convencionais não funcionaram. Era hora de jogar fora o manual de regras. Já agira assim antes, e isso salvara sua vida. Dessa vez, podia salvar a de outra pessoa.
Carol estava na porta da sala de operações com os punhos na cintura, olhando para dentro da sala. As notícias chegaram antes dela e os dois únicos detetives no local estavam nitidamente abatidos. Um deles digitava algumas anotações e o outro trabalhava desoladamente em uma papelada. Nenhum deles movimentou mais do que os olhos, numa rápida checada de lado para verificar quem havia chegado.
— Onde ele está? — exigiu Carol.
Os dois detetives se entreolharam, com mútua compreensão e tomada de decisões passando entre eles. O que estava ao teclado falou, mantendo os olhos no trabalho:
— O detetive sargento Taylor, senhora?
— Quem mais? Cadê ele? Sei que esteve aqui mais cedo, mas quero saber onde está agora.
— Saiu logo depois que a notícia sobre a Di chegou — informou o outro homem.
— E foi para...?
Carol não se movimentou um centímetro. Não tinha condições de fazer isso. Não pelo bem da sua própria autoridade, mas de seu respeito próprio. A responsabilidade era toda dela, e não tinha a menor vontade de fugir disso. Mas precisava entender como sua operação tinha dado errado de maneira tão desastrosa. Somente um homem seria capaz de contar a ela, e estava determinada a encontrá-lo.
— Anda — pressionou ela. — Pra onde?
Os dois detetives trocaram um olhar novamente. Dessa vez a resignação era o componente-chave.
— Clube Harbourmaster — informou o digitador.
— Clube? Ele está num boteco a esta hora da manhã? — perguntou, furiosa.
— Não é só um bar, senhora. É um clube. A princípio para militares de navios mercantes. Dá pra ir lá só pra comer alguma coisa ou ler os jornais e tomar um café.
Carol se virou pra para sair, mas o digitador continuou com uma voz aflita:
— A senhora não pode ir lá.
O olhar que ela lhe lançou teria feito estupradores confessarem.
— É só pra homem — gaguejou o jovem detetive. — Não vão deixar a senhora entrar.
— Jesus Cristo! — explodiu Carol. — Deus nos perdoe por transgredir os costumes locais. Tudo bem, Beckham, pare o que está fazendo e vá ao Clube Harbourmaster. Quero você e o sargento Taylor aqui em meia hora ou vou tomar o seu distintivo do mesmo jeito que vou tomar o dele. Fui clara?
Depois de fechar o arquivo, Beckham levantou num pulo, passou raspando por ela e se desculpou ao sair apressado.
— Estarei na minha sala — rosnou para o detetive restante. Tentou bater a porta depois de entrar, mas as dobradiças estavam firmes demais.
Carol desmoronou na cadeira sem sequer tirar o casaco. Foi oprimida por um remorso desolador que a imobilizou. Encarava com os olhos vazios a parede dos fundos onde Di Earnshaw ficara para receber as instruções, lembrando-se do olhar de peixe morto, do terno que lhe caía mal e do rosto de narizinho arrebitado. Nunca teriam sido amigas, Carol sabia por instinto, e isso, de certa maneira, piorava ainda mais o que acontecera. Aliada à culpa pela morte de Di Earnshaw durante a operação malfeita que colocara em prática, Carol carregava a culpa de saber que não gostara muito da mulher e que, se tivesse sido coagida à força a escolher a vítima de seu comando, Di não teria sido a última da lista.
Repassou o histórico do caso se perguntando o que poderia e deveria ter feito diferente. Qual foi a decisão que matou Di Earnshaw? Independentemente da abordagem, voltava à mesma coisa todas as vezes. Não se dedicara com muito afinco à investigação e não fiscalizara da maneira como deveria os policiais subordinados a ela que, por sua vez, não estavam preocupados em desacreditá-la com seu policiamento desleixado. Estava ocupada demais brincando de cavaleiro de armadura dourada com Tony Hill. Não era a primeira vez que deixava a reação emocional em relação a ele interferir no seu juízo. Dessa vez, as consequências foram fatais.
O barulho do seu telefone atravessou sua autoflagelação e ela o atendeu no meio do segundo toque. Nem mesmo uma gigantesca onda de culpa conseguiria reprimir seus instintos ao ponto de ignorar um telefone tocando em sua mesa.
— Detetive inspetora-chefe Jordan — atendeu, a voz embargada.
— Chefe, é o Lee. — A voz dele parecia mais radiante do que tinha o direito de estar. Por mais negativa que fosse a personalidade de Di Earnshaw, ela tinha o direito a um pouco mais de tristeza por parte de seus colegas imediatos.
— O que você tem? — perguntou Carol bruscamente, girando na cadeira para olhar pela janela o cais exposto ao vento.
— Achei o carro dela. Escondido ao lado de um dos outros depósitos, bem fora de vista. Chefe, ela tinha um gravadorzinho, ele estava no banco do passageiro, aí eu pedi a um dos policiais de trânsito pra dar um jeito de eu entrar no carro. Está tudo lá, nome, hora, rota, destino, o local. Tem mais do que o suficiente lá pra enquadrar o Brinkley!
— Bom trabalho — elogiou, de maneira aborrecida. Melhor que nada, mas ainda não o suficiente pra amenizar sua culpa. Por alguma razão, ela sabia que, quando dissesse a Tony que, apesar de tudo, ele estava certo, o psicólogo também não consideraria uma troca aceitável. — Traz o material pra cá, Lee.
Girou para colocar o fone no gancho e encontrou John Brandon à porta. Demonstrando cansaço, começou a levantar, mas ele gesticulou para que permanecesse sentada, dobrando seus longos membros ao se sentar numa das desconfortáveis cadeiras para visitas.
— Mau negócio — disse ele.
— A culpa é toda minha — disse Carol. — Deixei a coisa correr à rédea solta. Meus policiais ficaram por conta própria em uma operação que todos achavam que era perda de tempo. Não a estavam levando a sério e, agora, Di Earnshaw está morta. Eu devia ter ficado no encalço deles.
— Fico surpreso por ela ter ido sem reforço — disse Brandon. As palavras por si só já eram uma censura, mesmo que não houvesse reprovação em seu rosto.
— Não era a intenção — respondeu Carol sem rodeios.
— Para o bem de nós dois, espero que possa comprovar isso.
Não era uma ameaça, Carol percebeu, vendo o calor do pesar nos olhos dele. Ela estava com os olhos fixos na madeira cheia de marcas do tampo de sua mesa.
— Por alguma razão, não tenho como me esforçar muito para isso agora, senhor.
A voz de Brandon ficou mais dura:
— Bom, sugiro que dê um jeito, inspetora-chefe. Di Earnshaw não tem o luxo de sentir pena de si mesma. A única coisa que podemos fazer por ela agora é tirar o assassino das ruas. Pra quando posso esperar uma prisão?
Pesarosa, Carol levantou a cabeça repentinamente e encarou Brandon.
— Assim que o detetive Whitbread chegar aqui com a prova, senhor.
— Bom — disse Brandon e levantou. — Assim que tiver uma ideia mais clara do que aconteceu lá ontem à noite, voltamos a nos falar. — O fantasma de um sorriso atravessou seus olhos. — A culpa não é sua, Carol. Você não tem como estar de serviço 24 horas por dia.
Carol encarou a porta depois que ele foi embora e se perguntou quantos anos John Brandon levara para aprender a deixar pra lá. Depois, ponderando o que sabia daquele homem, questionou-se se algum dia aprendera ou se simplesmente descobrira como disfarçar melhor.
Leon olhava ao redor, confuso.
— Eu achava que Newcastle era o último lugar no planeta onde os animaizinhos recebessem todo o amor do mundo.
— Algum problema com pubs vegetarianos? — perguntou Chris Devine delicadamente.
Simon sorriu:
— Ele só finge que gosta de carne mal passada.
Deu um golinho de cerveja para experimentá-la e comentou:
— Não tem nada de errado com a bebida. Como descobriu este lugar?
— Não pergunta se não quiser ficar constrangido, querido. É melhor você simplesmente confiar na sua superior, especialmente quando ela é uma mulher. Então, como estamos nos saindo? — perguntou Chris. — Não cheguei a lugar nenhum mostrando a foto dela lá na estação. Ninguém na lanchonete, nem na bilheteria, nem na banca de revista se lembra de ter visto a menina.
— Na rodoviária foi a mesma coisa. Nadica de nada. Com exceção de um dos motoristas que falou: não foi essa a menina que desapareceu em Sunderland alguns anos atrás?
Eles contemplaram a ironia melancolicamente.
— Consegui uma pista — disse Leon. — Conversei com um dos cobradores de trem e ele me falou de um café a que vão todos os maquinistas e cobradores pra comer sanduíche de bacon e beber alguma coisa nos intervalos. Sentei lá com os caras e mostrei as fotos. Um deles afirmou que com certeza viu a menina no trem pra Carlisle. Ele lembra porque ela perguntou pra ele duas vezes que horas o trem chegava a Five Walls Halt e se eles estavam dentro do horário.
— Quando foi isso? — perguntou Chris, oferecendo-lhe um cigarro encorajador.
— Ele não tinha certeza. Mas lembrou que foi na semana retrasada.
Leon não precisava lembrá-los que o período se encaixava perfeitamente no desaparecimento de Donna Doyle.
— Onde é Five Walls Halt? — perguntou Simon.
— No meio do nada, deste lado de Hexham — Chris informou a ele. — Perto da Muralha de Adriano. E, ao que tudo indica, de mais outras quatro. Também não me perguntem como é que eu sei, tá?
— Então, o que Five Walls Halt tem pra ela querer descer lá?
Leon olhou para Chris. Ela deu de ombros.
— Só estou supondo, mas diria que deve ser perto da casa que o Jacko Vance tem no interior. A que, não preciso falar pra vocês, não devemos nem chegar perto.
— Só que a gente pode ir a Five Walls Halt — sugeriu Leon.
— Não, até a gente terminar esta cerveja, não podemos — protestou Simon.
— Deixa essa cerveja aí — instruiu Chris. — Com certeza ela não foi a única a descer do trem lá. Se a gente vai bater em algumas portas, é melhor não estar fedendo a cervejaria. — Ela se levantou. — Vamos descobrir as belezas da região campestre de Northumberland. Trouxeram suas galochas?
Leon e Simon trocaram um olhar de pânico.
— Obrigado, Chris — murmurou Leon com sarcasmo enquanto eles a seguiam em direção à chuva fina.
Alan Brinkley ficou debaixo do chuveiro, uma cascata de água quase escaldante. O homem que tomava as decisões tinha finalmente decretado que os bombeiros que lutaram contra o fogo feroz na fábrica de tinta podiam se retirar, ir embora e ser substituídos por uma equipe menor que apagaria os pontos restantes e manteria seus olhos descansados abertos para qualquer coisa significativa em meio aos destroços. Ninguém que tinha poder queria correr risco depois que o corpo fora encontrado.
Ao pensar no corpo, um tremor convulsionou Brinkley da cabeça aos pés. Apesar do calor fumegante, seus dentes batiam involuntariamente. Não pensaria no corpo. Normal, tinha que permanecer normal. Mas o que era normal? Como ele geralmente se comportava quando havia um incêndio fatal? O que falava para a Maureen? Quantas cervejas bebia na noite posterior? O que seus companheiros viam em seu rosto?
Debruçou-se nos azulejos do box, lágrimas escorriam invisíveis dos seus olhos. Obrigado, meu Deus, pela privacidade do novo quartel de bombeiros, que não era como o antigo banheiro coletivo que tinham quando ele aprendera seu ofício. Ali no banho, ninguém conseguia vê-lo chorar.
Não conseguia tirar o cheiro das narinas nem o gosto da boca. Sabia que era imaginação; os produtos químicos na fábrica de tinta encobriam qualquer vestígio de carne incinerada. Mas era totalmente real. Sequer sabia o nome da policial, mas sabia qual era o cheiro e o gosto dela.
Abriu a boca num grito silencioso e esmurrou com o lado dos punhos a parede maciça, sem emitir som. Atrás dele, as argolas da cortina do box trepidaram ruidosamente ao serem puxadas. Ele se virou, pressionando as costas contra a parede do cubículo. Vira aquele homem e aquela mulher antes, dentro das faixas que delimitavam a cena do crime em incêndios. Ele via os lábios da mulher se moverem, ouvia a voz, mas não conseguia processar o que ela estava falando.
Não importava. Repentinamente soube que aquele era o único alívio. Deslizou pela parede até ficar em posição fetal. Encontrou sua voz e começou a chorar como uma criança mimada.
Chris Devine estava a apenas alguns quilômetros de Newcastle quando seu telefone tocou.
— Sou eu, Tony. Algum êxito?
Ela o informou sobre o limitado sucesso da manhã, em troca ele contou sobre o fracasso em convencer Wharton e McCormick a levá-lo a sério.
— É um pesadelo — disse ele. — Não temos como ficar perdendo tempo indefinidamente com isto. Se Donna Doyle ainda estiver viva, cada hora conta. Chris, só temos uma coisa a fazer: eu o confronto com as provas que temos e esperamos que ele entre em pânico e confesse ou tome uma atitude incriminadora.
— Foi isso que matou a Shaz — disse Chris. Mencionar o nome dela trouxe de volta a tristeza como se fosse um golpe físico. Se ela fosse capaz de ignorar a radiante presença que Shaz exercera em sua vida e a escuridão da sua ausência, conseguiria atravessar aquilo usando um oportuno simulacro da normal e animada Chris Devine. Mas toda vez que mencionavam o nome de Shaz, ela perdia o fôlego. Tinha a impressão de que não era a única que sofria uma reação; isso explicava por que raramente se falava dela de maneira direta.
— Não estava planejando ir sozinho. Preciso de apoio.
— E a Carol?
Houve um longo silêncio.
— A Carol perdeu uma policial ontem à noite.
— Puta merda. O incendiário?
— O incendiário. Ela está se martirizando porque acha que o envolvimento dela nisto aqui a fez agir de maneira displicente em relação ao próprio serviço. Ela, na realidade, está errada, mas não tem como se afastar das suas responsabilidades em Seaford hoje.
— Parece que ela tem mais merda no prato agora do que qualquer pessoa deveria comer. É, esquece a Carol.
— Vou precisar de você lá, Chris. Consegue sair e ir pra Londres? Agora?
Não precisou hesitar nem um momento. Quanto o assunto era pegar o homem que brutalizou o belo rosto de Shaz Bowman antes de destruir sua alma, não havia muita coisa que Chris se recusasse a fazer.
— Sem problema. Vou sinalizar pros rapazes e contar pra eles.
— Fala que a Kay está a caminho também. Ela estava me esperando quando voltei do centro de operações em Leeds hoje de manhã. Vou ligar pra ela e pedir pra ir pra estação Five Walls Halt. Pode encontrar o Simon e o Leon lá.
— Graças a Deus vamos ter pelo menos uma pessoa aqui com um pouquinho mais de bom senso — comentou ironicamente. — Ela pode segurar a onda do Duro de Matar um e dois.
— Estão querendo bancar os fodões, não estão?
— Não tem nada que adorariam mais do que meter a bicuda na cabeça do Jacko Vance. Se não conseguirem isso, vão se contentar com a porta da casa dele.
Ela viu um lugar onde podia estacionar na via de trânsito rápido e sinalizou que pararia, checando no retrovisor se Simon e Leon a estavam seguindo.
— Estava pensando em reservar esse prazer para mim.
Chris deu uma gargalhada maldosa e disse:
— Entra na fila, querido. Te ligo quando chegar à rodovia M25.
Os policiais na cantina irromperam aplausos desordenados quando Carol e Whitbread entraram. Carol agradeceu com um distante movimento de cabeça, Lee fez o melhor que pode com seu sorriso pálido. Dois cafés, dois donuts, por conta dela, depois foram embora e seguiram em direção à sala do Departamento de Investigação Criminal. Ainda faltava pelo menos uma hora para o advogado de Alan Brinkley chegar e, até então, ele estava inacessível.
No meio da escada, ela se virou e bloqueou a passagem de Lee.
— Onde ele estava?
Ele fez uma cara evasiva e resmungou:
— Não sei. Devia estar em um lugar onde o rádio não pegava.
— Porra nenhuma — retorquiu Carol. — Anda, Lee. Não é hora de falsa lealdade. A Di Earnshaw provavelmente ainda estaria viva se o Taylor estivesse feito a parte dele. Então, onde ele estava? Pulando a cerca?
Lee coçou a sobrancelha.
— Nas noites em que fizemos a vigilância juntos, ele ficava até a meia-noite. Depois avisava e falava que estava indo tomar uma no Corcoran.
— Se ele tivesse feito isso com a Di, por que ela estaria gritando por apoio pelo rádio? — questionou Carol. Lee fez uma careta, sua boca contorceu desajeitadamente.
— Ele não contaria pra Di. Ela não é um cara, sabe?
Carol fechou os olhos momentaneamente.
— Está me falando que eu perdi um dos meus policiais por causa de um machismo chauvinista tradicional de Yorkshire? — perguntou, incrédula.
Lee baixou os olhos e analisou o degrau em que estava.
— Ninguém achava que um negócio assim ia acontecer.
Carol deu meia volta e marchou escada acima, deixando que Lee seguisse seu rastro. Dessa vez, depois que ela abriu a porta da sala de operações com um empurrão de ombro, Tommy Taylor deu um pulo e ficou de pé:
— Chefe — começou ele.
— Inspetora-chefe pra você. Minha sala. Agora.
Ela esperou que ele fosse na frente.
— Sabe de uma coisa, Taylor? Tenho vergonha de trabalhar no mesmo esquadrão que você.
Os outros detetives na sala de repente desenvolveram uma completa fascinação por suas tarefas rotineiras.
Carol fechou a porta atrás de si com um chute.
— Não se dê ao trabalho de sentar — informou ela, movendo-se para trás da mesa e jogando-se cadeira. Para aquela conversa, ela não precisava de ferramentas artificiais como ficar de pé enquanto seu subordinado ficava sentado. — A detetive Earnshaw está incinerada em um necrotério porque você estava enchendo a cara quando devia estar trabalhando.
— Eu não... — começou ele.
Carol simplesmente levantou a voz e continuou:
— Haverá uma investigação oficial em que você vai poder falar a quantidade de merda que quiser sobre lugares onde o rádio não pegava. Quando isso acontecer, vou ter depoimentos de todos os bêbados do Corcoran. Vou te enterrar, Taylor. Até que esteja oficialmente expulso desta força, está suspenso. Agora sai da sala de operações do meu esquadrão e fica longe dos meus policiais.
— Nunca imaginei que ela estivesse em risco — disse ele, pateticamente.
— Ganhamos os nossos salários exatamente porque estamos sempre em risco — explodiu Carol. — Agora some da minha frente e reza pra não ser reintegrado porque não vai existir um policial em East Yorkshire pra mijar em você se estiver pegando fogo.
Taylor recuou, fechando a porta cuidadosamente ao sair.
— Está se sentindo melhor agora? — perguntou Carol a si mesma sob suspiros. — Logo você, a mulher que dizia que nunca jogaria a culpa nos outros.
Enfiou a cabeça nas mãos. Sabia que nenhuma investigação colocaria muita culpa em seus ombros. Isso não a fazia parar de sentir que o sangue de Di Earnshaw manchava suas mãos assim como as de Taylor. E, uma vez que a identificação fosse oficial, ela seria a responsável por dar a notícia aos pais de Di.
Pelo menos não teria mais que se preocupar com Jacko Vance e Donna Doyle. Isso, graças a Deus, era problema de outra pessoa agora.
Quando Chris Devine comentou algo sobre bater em algumas portas, Simon e Leon imaginaram uma pequena vila toda arrumadinha com duas ou três ruas. Nenhum deles considerara a área atendida por uma estação a meio caminho entre Carlisle e Hexham. Além do aglomerado desordenado de casas que constituíam a própria Five Walls Halt, havia fazendas, sítios, grupos afastados de casas agrícolas agora colonizadas por pessoas que moravam ali e iam de carro para a cidade trabalhar, casas de campo e espasmódicos conjuntos habitacionais que pareciam rasgos improváveis nos cantos distantes de vales estreitos. Eles acabaram em um estabelecimento de informações turísticas comprando mapas do Instituto Cartográfico Britânico.
Assim que Kay chegou, dividiram a área entre si e combinaram de se encontrarem novamente na estação no final da tarde. Era uma tarefa ingrata, mas Kay obtinha mais sucesso nela do que os outros. As pessoas sempre falavam mais com uma mulher à sua porta do que com um homem. Ao final da tarde, conseguira duas pessoas que possivelmente tinham visto Donna Doyle. Ambas diziam ter sido durante a sua habitual volta pra casa de trem à noite, mas nenhuma tinha certeza do dia.
Também tinha descoberto a localização do esconderijo de Jacko Vance. Uma das portas em que batera pertencia à pessoa que reparou o telhado de ardósia preta da antiga capela apenas cinco anos antes. A maneira oblíqua com que ela entrou no assunto e as perguntas que pareciam querer saber de fofocas sobre Jacko Vance fizeram com que não suspeitassem de nada. Eles apenas comentariam no pub naquela noite que as mulheres policiais eram iguais a qualquer outra, pois eram presas fáceis demais para um nome famoso, um sorriso bacana e uma conta bancária gorda.
Quando os três se reencontraram, ela adicionara mais algumas coisinhas ao seu estoque de conhecimento. Vance comprara o lugar 12 anos antes, possivelmente cinco ou seis meses depois do acidente. Não era muito mais do que quatro paredes e um telhado, e ele gastara um bocado de grana para reformá-la. Quando se casara com Micky, o pessoal da região esperara que eles a usassem como casa de fim de semana, mas, em vez disso, ele a usava mais como refúgio; uma base útil para o trabalho voluntário que fazia no hospital de Newcastle. Ninguém sabia por que Jacko escolhera a área. Ele não tinha nenhuma conexão com o lugar de acordo com o que as pessoas sabiam.
Leon e Simon ficaram entusiasmados com a informação. Tinham pouco a oferecer, a não ser que algumas pessoas se lembravam vagamente de terem visto Donna. Uma afirmava que ela tinha entrado em um carro no estacionamento da estação, mas a testemunha não conseguia se lembrar do dia, da hora ou da marca do carro.
— Testemunhas às vezes são o mesmo que nada — disse Leon. — Não vamos chegar a lugar nenhum com essa merda. Vamos ver a casa do Vance.
— O Tony disse pra gente ficar longe de lá — protestou Simon.
— Não sei se é uma boa ideia — concordou Kay.
— O que pode acontecer de ruim? Escuta só, se ele pegou a menina aqui e levou pro cafofo dele, é provável que alguém o tenha visto. A gente não pode simplesmente voltar pra Leeds, agora que sabemos de tudo isso.
— A gente devia ligar pro Tony antes — teimou Simon.
Leon jogou os olhos pro céu e cedeu, depois de suspirar:
— Tá bom.
Fez uma grande encenação para pegar o telefone e digitar o número. Nenhum dos outros pensou em conferir se era o de Tony. Com o som de chamada ininterrupto, Leon disse triunfantemente:
— Ele não está atendendo, tá bom? Então, o que pode acontecer de ruim em irmos lá dar uma olhada? Porra, aquela menina pode estar viva ainda, e a gente fica aqui discutindo se fica com a bunda grudada na cadeira até o Natal? Qual é, a gente tem que fazer alguma coisa!
Kay e Simon trocaram um olhar. Nenhum dos dois queria desobedecer as ordens de Tony. Porém, igualmente, estavam infectados demais pela glória da perseguição para aguardarem sentados sem fazer nada, enquanto a vida de uma jovem estava em jogo.
— Tá bom — concordou Kay. — Mas só vamos dar uma olhada. Combinado?
— Combinado — respondeu Leon, entusiasmado.
— Assim espero — disse Simon com uma voz cansada. — Assim espero mesmo.
Chris Devine deu um golinho em um espresso duplo e um trago profundo em outro cigarro numa tentativa de se desvencilhar do cansaço. Na hora do chá no domingo, o restaurante Shepherd Bush estava tão animado quanto uma casa funerária.
— Me explica tudo de novo — ordenou a Tony.
— Eu vou até a casa. De acordo com a agenda dele que você conseguiu com o seu contato, Vance deve estar atuando como mestre de cerimônia em um evento de moda para levantar fundos para a caridade em Kensington hoje à tarde, então ele não vai estar em Northumberland.
— Tem certeza que a gente não devia dar uma chegada lá na casa dele antes? — interrompeu Chris. — Se a Donna Doyle ainda estiver viva...
— E se ela não estiver lá? Não temos como ficar vasculhando o lugar sem que as pessoas notem e liguem direto pro Vance. Aí a gente já era. No momento, ele não tem certeza de que há alguém na cola dele. A única coisa que sabe é que fiquei metendo o bedelho por aí. É a única vantagem que temos. Temos que partir para o confronto direto.
— E se a mulher dele estiver lá? Ele não vai correr o risco dela escutar qualquer coisa que você tenha a dizer sobre a Shaz.
— Se Micky e a Betsy estiverem lá, ele vai fazer de tudo pra me tirar de perto delas antes que eu consiga falar uma palavra. De certa maneira, é mais seguro pra mim se elas estiverem, porque aumentam as probabilidades de eu sair inteiro.
— Suponho que sim. É melhor me levar com você, então — disse ela, soltando uma nuvem de fumaça.
— Vou falar pro Jacko que venho trabalhando sem a polícia e que descobri importantes evidências em vídeo relacionadas à morte de Shaz Bowman e que acredito que ele possa nos ajudar. Vai me deixar entrar porque estarei sozinho e ele vai concluir que pode me descartar da mesma maneira que se livrou da Shaz se entender que estou mesmo fazendo uma investigação por conta própria. Vou mostrar a ele os vídeos e as fotos e acusá-lo. Você vai estar no seu carro com um receptor de rádio e um gravador, capturando tudo o que for transmitido pelo microfone desta elegante canetinha que comprei na Tottenham Court Road vindo pra cá.
Tony balançou a caneta em frente ao nariz de Chris.
— Não é sério que você acha que ele vai confessar, é?
Tony abanou cabeça.
— Acho que, se ele estiver sozinho, vai tentar me matar. E é aí que você entra como se fosse a cavalaria saltando prédios altos com um único e poderoso pulo.
Suas palavras eram leves, mas o tom, sombrio. Entreolharam-se desoladamente.
— Então vamos agir — disse Chris. — Vamos descer a marreta nesse desgraçado.
Foram necessários menos de dez minutos para descobrirem que era impossível vasculhar a capela convertida de Jacko Vance sem ficar tão evidente quanto uma raposa num rebanho de ovelha.
— Que bosta — xingou Leon.
— Não acho que ele escolheu um lugar igual a este por acaso — opinou Simon, virando a cabeça e observando a desolada encosta de frente para o esconderijo. Em ambos os lados do círculo de cascalho em frente à construção alta e estreita, havia rebanhos de ovelhas acuados por cercas de arame. Mesmo com o adensamento do anoitecer, era óbvio que não havia nem seres humanos, nem habitações à vista.
— Engraçado — cismou Kay. — Normalmente as celebridades gostam de um pouquinho de privacidade. Portões, muros, cercas altas. Mas deve dar pra ver este lugar a quilômetros de distância se você caminhar pelo campo.
— Uma faca de dois gumes, cara — disse Leon. — As pessoas podem te ver, mas você também enxerga tudo quando alguém se aproxima. Olha a estrada. Nem a porra dos romanos ficavam de bobeira aqui, ficavam? Qualquer picto que viesse pra cá procurando encrenca era visto assim que apontava no horizonte.
— Ele gosta do tipo de privacidade em que não se pode ser espionado — comentou Simon. — Na minha opinião, isso quer dizer que ele tem muito mais pra esconder do que alguma celebridade novata por aí.
— E, na minha opinião, a gente tem que dar uma conferida no que é isso — disse Leon.
Olharam uns para os outros por um longo momento. Kay abanou a cabeça. Simon disse:
— Sem chance de me juntar a vocês pra ir lá chutar a porta do Jacko Vance e entrar à força.
— Quem falou alguma coisa sobre chutar a porta e entrar à força, Simon? — questionou Leon. — Kay, você conversou com o cara que colocou o telhado nesse lugar. Ele falou alguma coisa sobre gente aqui da área que trabalha pra ele? Jardineiro, faxineiro, cozinheiro? Qualquer coisa do tipo?
— Ah, falou, sim, falou que ele tem um faxineiro num local onde esconde vítimas de assassinato — disse Simon, com desprezo.
— Esse cara adora fingir que está blefando — disse Leon. — Adora ficar de sacanagem com os policiais vacilões. Nada o agradaria mais do que uma senhorinha lustrando uma parede secreta onde, por trás dela, ele tem uma menina acorrentada. O que o cara falou, Kay?
— Não falou nada. Mas, se alguém sabe alguma coisa sobre isso, provavelmente são os vizinhos mais próximos.
— Então, quem aqui é melhor pra imitar o sotaque do norte? — perguntou Leon apontando diretamente para Simon.
— Não é uma boa ideia — protestou ele.
Dez minutos depois ele estava batendo na porta da primeira moradia que encontraram. Uma casa de fazenda grande e quadrada que ficava de frente para o campo na direção da Muralha de Adriano, a menos de dois quilômetros de distância. Ele trocou o pé de apoio.
— Se acalma — disse Kay. — É só mostrar o distintivo bem rapidão. Eles não vão examinar a credencial com atenção.
— Vamos acabar com a nossa carreira com isto aqui — murmurou Simon através dos dentes travados.
— Prefiro correr esse risco do que deixar o assassino da Shaz solto. — A cara fechada de Kay se transformou em um sorriso radiante quando a porta se abriu, deixando à vista um homem moreno, baixo e carrancudo. Não era difícil imaginar seus antepassados pictos transformando a vida dos romanos em um tormento.
— Olá? O que é?
Eles abriram seus distintivos e os fecharam em uníssono. O homem pareceu momentaneamente confuso, depois retomou seu olhar zangado.
— Detetive McNeill, da Polícia de Northumbria — Simon começou a tagarelar. — Recebemos uma denúncia de invasores na casa do sr. Vance aqui na rua. Não conseguimos entrar na propriedade e queríamos saber se você conhece alguém por aqui que tenha a chave.
— O homem lá não te atendeu? — perguntou ele com um sotaque que Kay achou quase incompreensível.
— Atendeu, não — respondeu Simon, infligindo o sotaque de Newcastle. — Não conseguimos falar com ele, hoje é domingo, sabe como é?
— Cês querem a Doreen Elliott. Volta na estrada, passa pela casa do Vance, curva na primeira pra esquerda e a casa dela fica logo ali depois duma descida assim. Ela que fica de olho no lugar pra ele.
A porta começou a fechar.
— Brigado — agradeceu Simon com a voz baixa.
— De nada — disse o homem, fechando a porta com firmeza na cara deles.
Meia hora depois, eles estavam com a chave da pied-à-terre. Infelizmente para eles, também estavam com a sra. Doreen Elliot no banco do passageiro do carro de Kay, determinada a garantir que a preciosa propriedade de Jacko Vance não fosse danificada pelas mãos estabanadas da polícia. Só restava a Kay desejar, para o bem da mulher, que eles não encontrassem o que ela temia atrás da pesada porta de madeira da frente da casa.
O portão foi aberto à menção de seu nome, Tony entrou caminhando e a cada passo imergia mais na persona que escolhera para o encontro. Queria que Vance achasse que ele estava indeciso e que era capaz de ser passado para trás. Assumiria o controle demonstrando ser o mais fraco dos dois. Era uma estratégia arriscada, mas era a que tinha confiança em conseguir conduzir.
Vance abrira a porta envolto em sorrisos, cumprimentando-o pelo nome. Só restava a Tony ser varrido para dentro, ostentando um olhar levemente confuso.
— Desculpa, você se desencontrou da Micky — disse Vance. — Ela está passando o fim de semana com uns amigos no interior. Mas não queria deixar de conhecê-lo cara a cara — continuou enquanto conduzia Tony para dentro. — É claro que o vi no programa da minha esposa outro dia, mas tenho notado que está em todos os meus eventos ultimamente. Devia ter ido até mim e se apresentado, poderíamos ter batido um papo antes, não precisava ter se despencado até Londres.
Ele era o modelo de charme e suavidade, suas palavras fluíam calmas e pacificadoras.
— Na verdade, não foi a Micky que vim ver. Queria falar com você sobre Shaz Bowman — disse Tony, tentando parecer cerimonioso e embaraçado.
Um momentâneo olhar de perplexidade, então Vance disse:
— Ah é, a detetive que foi morta de maneira tão trágica. Certo. Tinha em mente que era alguma coisa completamente diferente que você queria... Então está mesmo trabalhando com a polícia nesse caso?
— Como você se lembra da entrevista que dei à sua esposa, eu era o responsável pela unidade a que Shaz estava vinculada. Então, naturalmente, assumi um papel na investigação — respondeu Tony. Esconder-se atrás de formalidade faria Vance sentir que ele estava desconfortável.
As sobrancelhas de Vance levantaram, o bailado dos seus olhos azuis provocadores da mesma maneira que na TV.
— Ouvi dizer que você teve que trocar de lado nesta investigação — comentou suavemente. — Que estava respondendo, não fazendo as perguntas.
As informações internas de Vance, por mais que fossem incompletas, podiam ser usadas em benefício próprio, Tony concluiu. De certa maneira, elas, na verdade, ajudavam na estratégia que delineara com Chris.
— Você tem boas fontes — disse ele, tentando transparecer má vontade em sua voz. — Mas posso te garantir que, apesar de estar trabalhando sem a polícia, as evidências que descobri chegarão às mãos deles no momento oportuno.
Isso plantava a ideia de que estava trabalhando sozinho.
— E o que tudo isso tem a ver comigo?
Vance se apoiou à vontade no corrimão da escada que se erguia em curva.
— Tenho algumas filmagens sobre as quais imagino que você poderá lançar uma luz — disse Tony dando tapinhas no bolso do casaco.
Pela primeira vez desde que se cumprimentaram, Vance parecia ligeiramente desconcertado. Seu rosto se iluminou momentaneamente e o sorriso do menino de ouro estava de volta.
— Então sugiro que venha comigo lá pra cima. Tenho uma sala no último andar que uso pra fazer exibições para audiências pequenas e selecionadas.
Ele deu um passo de lado e movimentando graciosamente o braço verdadeiro indicou que Tony deveria subir na frente dele.
Tony subiu a escada. Disse a si mesmo que não importava em que cômodo estivessem; Chris conseguiria escutá-lo, e se as coisas ficassem perigosas, ela teria tempo suficiente para providenciar um resgate. Assim esperava.
Parou assim que subiu o último degrau, mas Vance silenciosamente direcionou-o para o próximo lance de escadas.
— Primeira porta à direita — orientou ele assim que chegaram ao topo, uma área assombrosamente clara, iluminada por uma claraboia em forma de pirâmide com quatro lados.
A sala em que Tony entrou era comprida e estreita. A maior parte da parede mais distante era ocupada por um telão. À esquerda, parafusado ao chão, ficava um móvel alto com rodinhas e, sobre ele, um videocassete e um projetor de filme. Atrás, prateleiras posicionadas ao redor de uma mesa de edição estavam abarrotadas de fitas de vídeo e latas de filme. Um conjunto de poltronas de tiras de couro pareciam confortavelmente acopladas em estruturas de madeira e completavam o mobiliário.
A janela era o que deveria ter causado um aperto no coração de Tony. Apesar de ser transparente, era nítido que algum tipo de revestimento fora aplicado. Se tivesse prestado atenção no ambiente da mesma maneira que prestava ao ocupante, notaria que ali havia uma precaução similar à encontrada em prédios governamentais, onde o que era discutido não podia se tornar de conhecimento geral. O revestimento fazia com que as janelas fossem impenetráveis a sinais de rádio, o que prevenia escuta clandestina. Isso, somado ao isolamento acústico que cobria as paredes, garantia que a sala fosse, para todos os efeitos e propósitos, selada ao mundo exterior. Ele poderia gritar o quanto quisesse. Chris Devine já não mais o escutava.
Chris encarava a mansão em Holland Park se perguntando o que fazer. As vozes de Tony e Vance chegavam em alto e bom tom e, de repente, nada. A última coisa que escutara Vance dizer fora: “Primeira porta à direita.” Não era informação suficiente sequer para saber em que cômodo estavam, já que ela não tinha a menor ideia sobre para qual lado a escada virava.
Primeiro, a sargento achou que houvesse algo errado com o equipamento — um fio solto, uma bateria solta. Segundos terríveis passaram velozes enquanto Chris conferia rapidamente o que podia ser. Mas as bobinas de fita ainda estavam rodando, embora não houvesse nada sendo capturado pelo receptor. Pressionou a testa tentado descobrir o que estava acontecendo. Com certeza, não houve som de briga, nenhuma indicação de que o transmissor tivesse sido descoberto. Tony podia até mesmo tê-lo desligado. Se, por exemplo, estivesse num tipo de ambiente em que o feedback eletrônico pudesse trai-lo. Vance comentara sobre uma sala especial para exibição, um lugar que podia muito bem abrigar esse tipo sensível de equipamento eletrônico.
Estremecia e se odiava por isso. Podia estar acontecendo qualquer coisa com Tony. Ele estava em uma casa junto com um assassino, um homem que ele tinha muita certeza que tentaria assassiná-lo.
Chris poderia, supunha, ligar para o celular dele. Combinaram que ela só usaria o telefone como último recurso. Bom, não havia mais nada que pudesse tentar face ao silêncio do rádio. Acessou o número dele na agenda e pressionou “chamar”. Momentos de nada seguidos do familiar barulhinho que precede a enfurecedora e calma voz feminina entoando: “Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita a cobrança após o sinal.”
— Merda, merda, merda — sibilou. Não lhe restava mais nada. Havia a possibilidade de ela detonar o plano de Tony, mas era melhor isso do que continuar nessa indecisão que podia custar a vida dele. Chris saiu apressada do carro e correu pela rua na direção da mansão de Vance.
Inconsciente do perigo no qual tinha se metido, Tony se virou para ficar de frente para Vance.
— Espaço bacana — comentou ele.
Vance não podia deixar de se envaidecer.
— O melhor que o dinheiro pode comprar. Então, no que você quer que eu dê uma olhada?
Tony lhe entregou a fita e observou Vance enfiá-la no aparelho, notando que ali, em seu habitat, sua deficiência era quase imperceptível. Um júri acharia difícil acreditar que ele podia ser tão desajeitado quanto aparentava ao encher o tanque de Shaz Bowman com gasolina. Tony memorizou isso para sugerir uma remodelação da apresentação do evento quando fosse levado ao tribunal.
— Sente-se aí — disse Vance.
Tony sentou em uma cadeira de onde podia ter uma visão periférica de Vance. Quando a fita começou a rodar, Jacko usou o controle remoto para escurecer um pouco o ambiente. Tony se preparou para o próximo estágio da sua confrontação. A primeira parte mostrava a sequência, cuja imagem não tinha sido melhorada, de Vance disfarçado no posto de gasolina da rodovia. Mal tendo atingido trinta segundos de filme, ele emitiu um som baixo no fundo da garganta, quase um rosnado. À medida que o filme passava, o barulho aumentava tanto de volume quanto de tom. Tony percebeu que o sujeito estava rindo.
— Estão querendo dizer que aquele ali sou eu? — finalmente conseguiu perguntar em meio à gargalhada, virando-se para Tony com um sorriso largo.
— É você. Você e eu sabemos disso. E, em breve, o restante do mundo vai saber também — Tony esperava que tivesse usado o tom certo, algo entre ameaça e lamentação. Enquanto Vance acreditasse que continuava no controle, havia a chance de cometer um erro.
Os olhos de Jacko saltaram de Tony para a tela. Em câmara lenta, estava sendo reproduzido o vídeo melhorado. Para qualquer um que sabia quem estavam procurando, era difícil resistir à semelhança entre o homem no vídeo e aquele sentado com o controle remoto.
— Minha nossa senhora — disse ele, sardonicamente. — Acha mesmo que alguém vai sustentar um caso com algo que foi tão obviamente adulterado quanto isso?
— Não é só isso — disse Tony delicadamente. — Continue assistindo. Gosto da parte que mostra você voltando a Leeds pra finalizar o serviço.
Ignorando-o, Vance apertou o botão de stop. Tirou a fita do videocassete e a arremessou de volta para Tony, tudo com uma mão e muita destreza.
— Meus movimentos não são daquele jeito — negou desdenhosamente. — Teria vergonha de mim mesmo se tivesse me adaptado tão mal à minha deficiência.
— Era um carro desconhecido e uma situação estranha.
— Vai ter que fazer melhor do que isso.
Tony jogou uma cópia do seu relatório para Vance, que esticou a mão esquerda num reflexo treinado e o pegou. Jacko abriu na primeira página e leu. Por um momento, a pele ao redor da sua boca e dos seus olhos se contraiu. Tony sentia que a força de vontade era tudo o que o impedia de reagir de maneira mais enérgica.
— Está tudo aí — disse Tony. — Uma seleção das suas vítimas. Fotografias de você com elas. A assombrosa semelhança delas com Jillie. A mutilação de Barbara Fenwick. Está tudo ligado a você.
Vance levantou seu belo rosto e abanou a cabeça compassivamente.
— Você não tem a menor chance — desdenhou ele. — Lixo circunstancial. Um monte de fotografias adulteradas que foram tiradas de mim durante um ano? A única coisa surpreendente em termos estatísticos é que a maior parte delas não acabou assassinada. Está perdendo o seu tempo, dr. Hill. Do mesmo jeito que a detetive Bowman.
— Pode falar o que quiser, mas não vai conseguir sair desta, Vance — afirmou Tony. — Isto vai muito além da mera coincidência. Nenhum júri no mundo vai cair nessa.
— Nenhum júri no mundo deixaria de conter meia dúzia de fãs meus. Se é dito a eles que isto é uma perseguição, vão acreditar em mim. Se eu escutar mais uma palavra sobre isso, não vou simplesmente mandar meus advogados atrás de você, também vou à imprensa e conto sobre esse triste sujeitinho que trabalha pro Ministério do Interior e é obcecado pela minha mulher. Ele é desorientado, é claro, igualzinho a todos os tristes sujeitinhos que se apaixonam por uma imagem na tela da TV. Acha que só porque saíram pra jantar ela cairia nos braços dele se eu estivesse fora de cena. Por isso está tentando forjar o meu envolvimento com um monte de assassinatos em série inexistentes. Vamos ver quem vai ficar parecendo um idiota no final, dr. Hill.
Prendendo a pasta debaixo da parte superior do braço direito, Vance a rasgou.
— Você matou Shaz Bowman — acusou Tony. — Matou um monte de meninas, e também matou Shaz Bowman. Não vai se safar dessa. Pode rasgar o meu relatório quantas vezes quiser, mas vamos pegar você.
— Acho que não. Se houvesse alguma prova nesta pasta, haveria uma equipe de policiais do alto escalão aqui. Isto é fantasia, dr. Hill. Você precisa de ajuda.
Antes que Tony pudesse responder, uma luz verde começou a piscar na parede perto da porta. Vance se aproximou dela com passos largos e pegou um interfone.
— Quem é?
Ele ficou escutando por um momento.
— Não há necessidade de você entrar, detetive. O dr. Hill já está de saída.
Ele desligou e lançou um olhar calculado para Tony.
— Bom, dr. Hill. Você está de saída? Ou vou ter que chamar os policiais que vão lidar de maneira bem mais racional com a questão envolvendo Shaz Bowman do que a sargento Chris Devine?
Tony ficou de pé.
— Não vou desistir — informou ele.
Vance deu uma gargalhada estridente.
— E os meus amigos no Ministério do Interior achavam que você tinha uma carreira muito promissora. Aceite o meu conselho, dr. Hill. Tire umas férias. Esqueça a Bowman. Vá viver sua vida. É obvio que tem trabalhado demais.
Mas seus olhos não estavam rindo. Apesar da sua experiência em apresentar uma fachada para o mundo, nem mesmo Jacko conseguia impedir que a apreensão escapulisse da sua expressão afável.
Tony resistiu ao impulso de mostrar o júbilo que sentia e começou a descer a escada com o ar de um homem inundado pela derrota. Conseguira exatamente o que almejava. Não era exatamente o mesmo objetivo que revelara a Chris Devine, já que não tinha certeza se conseguiria levá-lo a cabo. Bem satisfeito, Tony atravessou lenta e penosamente a sala e saiu pela porta da frente da casa de Jacko Vance.
A capela fora construída para uma pequena, porém apaixonada congregação. Era simples, mas genuinamente bela em suas proporções, Kay pensou quando estava na porta. A conversão em residência fora feita com bom gosto, conservando a sensação de leveza. Vance escolhera móveis com linhas simples e sóbrias, a única ornamentação era uma série de tapetes gabbeh espalhados sobre os blocos de pedra do chão. O cômodo único tinha uma cozinha planejada, uma pequena área para jantar e um espaço com alguns sofás distribuídos ao redor de uma mesa de ardósia grande e baixa. Bem no fundo, uma plataforma suspensa servia de quarto. Debaixo dela havia algo que parecia uma bancada de trabalho equipada com ferramentas. Kay sentiu seu estômago contorcer de entusiasmo ao ver Simon e Leon explorando o cômodo, procurando ostensivamente sinais de um invasor fictício.
Ao lado dela, Doreen Elliott se mantinha determinada e inabalável, uma mulher socada, rude e obelisca, com seus cinquenta anos e um rosto tão impassível quanto as gigantescas pedras da própria Muralha de Adriano.
— Quem você falou que denunciou o invasor? — inquiriu ela, protegendo zelosamente seus direitos como guardiã dos direitos à privacidade de Jacko Vance.
— Não sei exatamente — disse Kay. — Acho que a ligação foi feita anonimamente. Alguém passando por aqui de carro viu uma luz oscilante, como uma tocha.
— A noite deve estar bem tranquila pra vocês três virem aqui por causa de uma coisa assim. — O tom áspero indicava que a polícia local geralmente falhava em atender ao padrão exigente dela.
— A gente estava na área — inventou Kay. — Era mais fácil pedir a nós do que mandar outros policiais. Além disso — acrescentou ela com um sorriso confidente —, quando envolve alguém como o Jacko Vance, a gente acaba se dedicando um pouquinho mais.
— Hmm. O que eles acham que estão procurando, aqueles dois?
Ela olhou para onde Simon, levantando tapetes com a ponta do pé, espreitava embaixo, analisando o chão. Leon abria armários e gavetas da cozinha metodicamente à procura de, ela sabia, qualquer indício de que Donna Doyle pudesse ter estado ali.
— Só estão olhando se não está faltando alguma coisa óbvia e se não tem lugar nenhum pra alguém se esconder — comentou ela.
Simon desistira dos tapetes e ia para a bancada de trabalho. Kay viu as costas dele se enrijecerem quando chegou perto. Ele reduziu os passos a ponto de praticamente estar arrastando os pés e virou a cabeça para analisar melhor o que quer que tenha chamado sua atenção. Ele se virou para os colegas e Kay viu o brilho da descoberta nos olhos dele.
— Parece que o sr. Vance está bem envolvido com marcenaria — comentou Simon gesticulando com a cabeça para Leon.
— Ele faz brinquedos de madeira pros guris no hospital — explicou a sra. Elliot, orgulhosa como se ele fosse o seu próprio filho. — Acha que o que faz por eles nunca é o suficiente. Deviam dar uma medalha pra ele pelas horas que dedica a pessoas à beira da morte. Vocês não têm como medir o conforto que ele dá pro povo.
Leon se juntara a Simon na bancada de trabalho.
— Um kitzinho da pesada aqui — comentou ele. — Cara, estes cinzéis são afiados igual lâmina. — O rosto dele estava sombrio e sinistro. — E você tem que dar uma olhada neste torno, Kay. Nunca vi nada igual.
— Ele precisa disso pra segurar a madeira — informou a sra. Elliott com firmeza. — Com o braço dele do jeito que é, não daria conta sem isso. Ele chama isso aí de par de mãos extra.
Tony percorreu todo o caminho até a saída praticamente arrastando os pés e com a cabeça baixa, o som da batida da porta ainda ressoava em seus ouvidos. Levantou os olhos e capturou a expressão ansiosa de Chris. Piscando com força para ela, manteve sua abatida linguagem corporal até estar na rua do lado de fora do portão eletrônico, escondido da casa pela cerca viva alta.
— Mas que merda aconteceu lá dentro? — indagou Chris.
— Como assim? Eu estava começando a entrar no ritmo quando você se intrometeu — protestou Tony.
— Você ficou fora do ar. Não sabia que merda estava acontecendo.
— Como assim fiquei fora do ar?
— O sinal morreu. Ele falou “primeira à direita”, depois silêncio total. Só me restou pensar que ele tinha te apagado.
Tony fechou a cara, tentando descobrir o que acontecera.
— Deve ter mandado selar aquele cômodo eletronicamente — opinou por fim. — É claro. A única coisa que ele ia querer era alguém xeretando sem que ele soubesse. Isso nunca passou pela minha cabeça.
Chris protegeu o cigarro com a mão para acendê-lo.
— Jesus — explodiu ela suavemente, soltando uma longa baforada de fumaça. — Nunca mais me assusta desse jeito. Então, o que aconteceu? Não me fala que ele confessou e nós não gravamos.
Tony abanou a cabeça, atravessando com ela para o outro lado da rua onde deixara seu carro, totalmente à vista da casa Vance. Ele olhou para trás e ficou contente de ver seu alvo de pé em frente a uma janela no andar mais alto olhando para eles.
— Entra no meu carro por enquanto, vou explicar — orientou Tony.
Ligou o carro e deu a volta na esquina.
— Ele desprezou totalmente as evidências — disse Tony fazendo outra curva para chegar ao local onde Chris estacionara, a uns duzentos metros do portão de Vance, fora da linha de visão da casa. — Deixou claro que acha que não temos nada contra ele e que, se não sairmos da cola dele, vai vir atrás de mim.
— Ameaçou te matar?
— Não, ameaçou ir aos jornais e me fazer de idiota.
— Você tá me parecendo bem animado pra alguém que acabou de estragar o grande confronto — comentou Chris. — Achei que era pra ele ou confessar e desembuchar tudo, ou então tentar te apagar.
Tony deu de ombros.
— Eu não esperava que ele confessasse. E, se ele fosse me matar, não acho que teria feito isso ali, naquele momento. Ele pode ter convencido o Wharton e o McCormick de que não havia nada de sinistro na Shaz ter visitado o sujeito antes de morrer, mas acho que até eles prestariam atenção se eu fosse morto logo depois de ter ido à casa do Vance. Não, o que queria era perturbar o Jacko a ponto dele começar a se perguntar se realmente escondeu bem os próprios rastros.
— O que tem de bom nisso? — Ela abriu um pouquinho a janela para bater a cinza.
— Com um pouco de sorte, vai fazer com que ele saia como um ratinho à corda, direto para o matadouro. Precisa garantir que não há nada que possa incriminá-lo caso eu consiga o improvável: persuadir a polícia a conseguir um mandado de busca.
— E acha que ele vai agora?
— Estou contando com isso. De acordo com a agenda dele, Jacko não tem nenhum compromisso antes de uma reunião amanhã às três. Depois disso, a semana começa terrível. Ele tem que fazer isso agora.
Chris deu um suspiro e reclamou:
— A M1 de novo não.
— Tá preparada?
— Tô preparada — afirmou com uma voz cansada. — Qual o plano?
— Vou agora. Ele me viu sair de carro com você, então deve estar achando que a barra está limpa. Vou seguir pra Northumberland e você fica na cola quando ele aparecer. Manteremos contato por telefone.
— Pelo menos está escuro — disse ela. — Espero que ele não perceba o mesmo farol pelo retrovisor.
Ela abriu a porta e saiu, depois se inclinou para falar:
— Não acredito que estou fazendo isto. Vim lá da porcaria de Northumberland até Londres só pra dar meia volta e voltar pra lá de novo. A gente deve ser demente.
— Não. Somos determinados.
Ele era mesmo, com certeza, pensou Chris enquanto voltava para o seu carro e via Tony fazendo o retorno e seguindo pelo caminho de onde tinha vindo. Meu Deus, pensou. Já eram sete horas. Cinco, seis horas até Northumberland. Ela desejava que não houvesse muita ação na outra ponta da viagem porque estaria morta de cansaço.
Ela sintonizou o rádio em uma estação que tocava clássicos antigos e se acomodou para cantar junto com os anos 1960. Não teve muito tempo para harmonizar antes que os portões da casa de Vance se abrissem e a comprida frente de sua Mercedes aparecesse.
— Bonitão maldito — disse ela, girando a chave na ignição e começando a andar para mantê-lo à vista.
Holland Park Avenue, depois pegou a A40. Enquanto passavam por Acton e Ealing, abateu-se sobre Chris uma vaga sensação de inquietação. Aquele não era o caminho mais bacana para Northumberland. Era um despropósito. Ela não conseguia acreditar que ele pegaria o sentido oeste até a orbital M25 só pra dar a volta até a M1 no sentido norte. Ficou próxima o bastante para que não o perdesse nos semáforos, sempre mantendo um único carro entre eles. Era uma perseguição difícil, mas pelo menos a iluminação da rua ajudava. Finalmente, as placas para a M25 apareceram e Chris se preparou para pegar a saída para a rodovia, ainda que Vance não tivesse dado sinal de que faria isso. Provavelmente trocaria de pista no último minuto, ela pensou, se achasse que estava sendo seguido.
Mas ele não trocou e foi ela que teve que fazer um movimento de último minuto, enfiando o pé no acelerador para manter contato com as lanternas traseiras de Jacko. Conseguiu fazer isso apenas porque ele dirigia um pouco acima do mínimo permitido, como um homem que não queria de maneira alguma ser parado por excesso de velocidade. Pegou o telefone e apertou a tecla de rediscagem para ligar para Tony.
— Tony? É a Chris. Escuta, estou na M40, no sentido oeste, na cola do Jack Bacana. Não sei pra onde ele está indo, mas não é pra Northumberland.
A descoberta do torno injetou uma nova urgência na busca. Muito consciente do quanto aquilo poderia ser bizarro para Doreen Elliott, Kay tentava desesperadamente distraí-la com conversa.
— Fizeram um ótimo trabalho na reforma deste lugar — disse ela com entusiasmo.
Foi exatamente a coisa certa a se dizer. A sra. Elliott se virou para a cozinha e passou a mão pela lisura da madeira maciça.
— Nosso Derek quem fez a cozinha. Ele não queria economia nenhuma, sabe como é? Tudo do bom e do melhor, só coisa de primeira.
Ela apontou pra porta dos armários.
— Máquina de lavar e secar, lavadora de louça, geladeira, freezer, tudo embutido.
— Pensei que ele traria mais a mulher dele aqui — tentou Kay.
Foi exatamente a coisa errada a se dizer. A sra. Elliott fechou a cara e comentou:
— É, ele falou pra gente que usariam essa casa nos finais de semana. Mas, no final, ela nunca veio. Ele falou que ela era urbana demais, que não gostava do interior, sabe? É só olhar pra ela naquele programa de TV pra ver que ela não ficaria à vontade com o pessoal como a gente. Não é que nem o sr. Vance.
— O quê? Ela nunca veio aqui? — Kay tentou mostrar que aquilo era novidade para ela. Dedicava metade de sua atenção a Simon e Leon, mas continuava reparando nas reações da sra. Elliott. — Só estamos tentando descobrir quem mais podia ter a chave. Por questões de segurança — adicionou ela, apressadamente enquanto o rosto da velha senhora se tornava mais liso.
— Nunca senti nem o cheiro dela aqui — depois sorriu maliciosamente. — O que não quer dizer que o lugar nunca teve a mãozinha de uma mulher. Bom, um homem tem direito a suas compensações se a mulher dele não compartilha os seus interesses.
— Você viu o Vance aqui com outras mulheres, então? — disse Kay, almejando informalidade.
— Não cheguei a ver, não, mas venho aqui uma vez a cada quinze dias pra dar uma limpada e, algumas vezes, esvaziei a lava-louça. As taças tinham marcas de batom. Elas nem sempre saem na máquina, sabe? Não é difícil ligar uma coisa com a outra, acho que ele tem uma namorada. Mas sabe que pode contar com a gente, porque ficamos de boca fechada.
Só porque ninguém jamais perguntou nada pra você, Kay pensou cinicamente. — Como você diz, se a mulher dele não vem a um lugar igual a este...
— É um palácio — afirmou a sra. Elliot, sem dúvida fazendo uma comparação com a cozinha escura da própria casa. — Vou te falar um negócio: aposto que é a única casa em Northumberland com um abrigo nuclear.
As palavras caíram na conversa como uma bomba.
— Um abrigo nuclear? — perguntou Kay, soando vaga.
Leon e Simon paralisaram como cachorros prontos para atacar.
— Bem debaixo dos pés da gente — informou a sra. Elliot. Ela havia confundido a reação espantada de Kay com dúvida. — Não estou inventando isso, queridinha.
Chris mal terminara de falar com Tony quando viu a seta à frente dela indicar que Vance entraria na próxima saída. Chris o seguiu, deixando seu movimento para o último momento possível. Eles viraram para o norte e depois, a alguns quilômetros da rodovia, Vance deu seta para a esquerda. No entroncamento, Chris diminuiu a velocidade e viu algo que a fez suar como um torcedor de futebol.
Ela apagou o farol e avançou cautelosamente pela estrada estreita apenas com os faroletes. Depois de uma curva, lá estava o destino de Jacko Vance.
O campo de aviação estava totalmente iluminado. Parada em uma faixa de asfalto, Chris viu uma dúzia de aviões em frente a quatro hangares. Viu os faróis dianteiros de Vance percorrerem um caminho delimitado por cones através da escuridão ao redor do perímetro e depois serem engolidos pela luminosidade mais forte quando ele avançou por trás de um avião. Um homem pulou da cabine e acenou. Vance saiu do carro, caminhou até o avião e cumprimentou o piloto com um tapinha no ombro.
— Caralho — xingou Chris.
Pela segunda vez num período de uma hora, ela não tinha a menor ideia do que fazer. Vance podia ter fretado o avião para levá-lo a Northumberland sem que houvesse a menor possibilidade de segui-lo. Ou para levá-lo para fora do país. Um rápido voo atravessando o Canal até as fronteiras abertas da Europa e ele podia estar em qualquer lugar na manhã do dia seguinte. Ela deveria optar por uma intervenção dramática ou deixá-lo decolar?
Era uma aposta, e uma aposta que ela não queria ter a responsabilidade de pagar. Seus olhos analisaram o campo de aviação e pararam na pequena torre de controle que se projetava além do último hangar. Viu o homem e o piloto desaparecerem ao embarcar. Segundos depois, as hélices gaguejaram até se firmarem.
— Foda-se — disse Chris e engatou a marcha. Acelerou paralelamente à cerca ao redor do aeroporto e chegou à torre de controle na mesma hora em que o pequeno avião taxiava para a pista de decolagem.
Entrou correndo, assustando o homem que estava sentado à uma mesa ao lado de um computador. Chris meteu seu distintivo na cara dele.
— Aquele avião na pista de decolagem. Ele tem plano de voo?
— Tem, tem, tem, sim — gaguejou o sujeito. — Está indo pra Newcastle. Tem algum problema? Posso pedir pra ele abortar a decolagem se tiver algum problema. Estamos sempre prontos pra ajudar a polícia...
— Não tem problema nenhum — respondeu Chris com a cara fechada. — Simplesmente esquece que algum dia você me viu, tá bom? Nenhuma mensagenzinha informando que alguém estava interessado nele, ok?
— Não, quer dizer, tá bom, como você quiser, policial. Nenhuma mensagem. — E, só pra ter certeza — disse Chris, puxando uma cadeira e lhe lançando o olhar que arrancava confissões de sujeitos da pesada —, vou ficar aqui.
Ela sacou o telefone e ligou para Tony.
— Sargento Devine — começou ela. — O sujeito está a bordo de um avião particular, destino Newcastle. Vai ter que lidar com isso daqui em diante. Sugiro que organize um comitê de recepção com as tropas em terra nesse destino final. Ok?
Abismado, Tony observava as luzes à sua frente na rodovia e disse:
— Puta merda, um avião? Imagino que você não está podendo falar irrestritamente.
— Correto. Vou ficar aqui pra garantir que o sujeito não seja avisado pela torre de controle.
— Pergunta pra ele quanto tempo vão demorar pra chegar a Newcastle.
Houve uma conversa abafada, depois Chris voltou a falar pelo telefone:
— Estão usando um Aztec, que deve fazer o percurso em mais ou menos duas horas e meia, talvez três.
— Vou fazer o que posso. E, Chris... obrigado.
Desligou o telefone e continuou dirigindo no piloto automático. Algo em torno de duas horas e meia, três, então? Depois teria que dar um jeito de ir pra Five Walls Halt, de táxi ou alugando um carro, o que não seria fácil às dez da noite de domingo. Ainda assim, Tony concluiu que Chris estava certa. Não havia a menor possibilidade dele chegar ao refúgio de Vance antes dele.
— E é o motivo dele ter feito isso, é claro — falou ele em voz alta.
Vance não era idiota. Tinha consciência de que Tony sabia de sua outra casa e que iria para lá uma vez que tivesse agitado as coisas. O que Vance não sabia era que Tony já tinha três policiais do departamento de criação de perfis em Northumberland. Pelo menos, presumia que eles continuavam fazendo a investigação por lá, já que não recebera nenhuma informação contrária. Pra dizer a verdade, não tinha ouvido falar nada desde o meio da tarde, quando conversara com Simon, que lhe dissera que estavam batendo de porta em porta numa tentativa de identificar qualquer pessoa que tivesse visto Donna Doyle.
O que, entretanto, não era suficiente. Três policiais inexperientes do Departamento de Investigações Criminais, nenhum deles da força local, nenhum deles com qualquer experiência em comandar. Ficariam indecisos, não saberiam quando, nem se deveriam, desafiar Vance. Não saberiam quando protelar e quando tomar uma atitude. Precisavam de mais do que qualquer um deles tinha para oferecer. Só havia uma pessoa que podia chegar lá a tempo e orientar Leon, Simon e Kay.
Ela atendeu no segundo toque:
— Detive inspetora-chefe Carol.
— Carol. Sou eu. Como você está?
— Não estou bem. Pra ser honesta, fico agradecida pelo contato humano. Tenho me sentido uma leprosa. Sou uma pária pra infantaria porque acham que sou parcialmente responsável pela morte de Di Earnshaw. Não posso falar com John Brandon porque vai ter uma investigação e ele não pode ser visto como influência. Estou proibida de participar do interrogatório do Alan Brinkley porque posso comprometer o processo por questões pessoais. E confesso pra você que dar a notícia aos pais dela me fez sentir que o método de lidar com as más notícias dos gregos antigos era um alívio para o mensageiro.
— Eu sinto muito. Você deve estar desejando agora que eu não tivesse arrastado você pra esse negócio do Vance — disse ele.
— Não estou, não — respondeu, com firmeza. — Alguém tem que parar o Vance, e ninguém mais teria te escutado. Não te culpo pelo que aconteceu em Seaford. Aquilo foi responsabilidade minha. Não deveria ter tentado fazer a vigilância policial com o orçamento tão apertado. Sabia que você estava certo e devia ter passado essa convicção pra frente, ter exigido uma quantidade suficiente de pessoas para fazer o serviço direito, em vez de resolver trabalhar com uma equipe tão reduzida. Se eu tivesse feito isso, Di Earnshaw ainda estaria viva.
— Você não pode ter certeza disso — protestou Tony. — Podia ter acontecido qualquer coisa. O parceiro dela podia ter saído pra mijar bem no momento crucial, eles podiam ter se separado pra cercar o prédio. Se alguém tem que ser culpado, esse alguém é o sargento. Não só eles tinham que tomar conta um do outro, como ele também era o chefe imediato dela. Era dever dele fornecer proteção a Di, e ele fracassou.
— E o meu dever de fornecer proteção?
Tony abanou a cabeça.
— Ah, Carol, pega leve consigo mesma.
— Não consigo. Mas chega disso. Onde você está? E o que está acontecendo com o Vance?
— Estou na rodovia M1. O dia está sendo bem complicado.
Enquanto ele acelerava pela pista rápida alheio a qualquer outra coisa que não fosse o trânsito e a mulher na outra ponta da linha, deixou Carol informada do que estava acontecendo.
— Então agora ele está em algum lugar entre Londres e Newcastle? — perguntou Carol.
— Isso mesmo.
— Você não vai conseguir chegar lá a tempo, vai?
— Não.
— Mas eu consigo?
— Possivelmente. Provavelmente, se você usar a sirene. Não posso pedir isso a você, mas...
— Não tem nada pra eu fazer aqui. Não estou de serviço, e ninguém vai ligar pra leprosa do Departamento de Investigação Criminal hoje à noite. Estarei bem melhor fazendo isso do que sentada aqui sentindo pena de mim mesma. Passa aí o endereço. Te ligo quando chegar perto de Newcastle. — A voz dela estava mais potente e firme do que no início da ligação. Mesmo que ele quisesse argumentar, sabia que seria inútil. Aquela era a mulher que conhecia, e ela não fugiria de um desafio.
— Obrigado. — Foi somente o que disse.
— Estamos perdendo tempo conversando. — A ligação caiu abruptamente.
O custo da habilidade de Tony era a empatia que levava para situações como essa. Entendia precisamente aquilo pelo que Carol estava passando. Pouquíssimas pessoas experimentaram um sentimento justificável de responsabilidade pela morte de outro ser humano. Tudo aquilo de que Carol tinha certeza repentinamente foi deslocado para um terreno instável e apenas quem já tivesse passado por uma experiência similar conseguiria ajudá-la a voltar para a terra firme. E ele a entendia e se preocupava com ela a ponto de tentar fazer isso. Suspeitava que seu telefonema tinha, por um feliz acaso, sido o primeiro passo nessa direção. Com a esperança de estar certo, observava o túnel de luzes vermelhas que se estreitava à sua frente e seguiu dirigindo em direção ao norte.
No local exato em que ficava a entrada para o abrigo do porão, a sra. Elliott falou de maneira muito mais vaga:
— É em algum lugar debaixo desses blocos. Ele chamou uns rapazes de Newcastle pra fazer a instalação e deu um jeito que ninguém conseguisse ver.
Os três policiais olharam frustrados para os blocos de pedra de um metro quadrado de que era feito o chão. Então Simon questionou:
— Se não dá pra ver, como é que se consegue chegar lá?
— O nosso Derek falou que instalaram um motor eletrônico — revelou a sra. Elliott.
— Bom, se tem um motor, tem que ter um interruptor — murmurou Leon. — Si, começa pela direita. Kay, pela esquerda. Vou lá em cima naquela plataforma que serve de quarto.
Os dois homens se afastaram e começaram a apertar interruptores, mas a sra. Elliott impediu que Kay se movesse a segurando pela manga e questionou:
— Pra que vocês precisam achar o abrigo? Acho que falaram que podia ter um invasor aqui. Ele não vai estar lá embaixo.
Kay desenterrou seu sorriso mais reconfortante e justificou:
— Quando estamos lidando com uma celebridade tipo o sr. Vance, temos que tomar um cuidado especial. Um invasor nesta casa pode ser muito mais sério do que um simples assaltante. Se tiver alguém perseguindo o sr. Vance, por exemplo, pode estar escondido esperando por ele. Por isso a gente tem que levar isto aqui muitíssimo a sério.
Ela colocou a mão sobre a da sra. Elliott e sugeriu:
— Por que a gente não espera lá fora?
— Pra quê?
— Se tiver alguém lá embaixo, pode ser muito perigoso. — O sorriso que Kay deu se mostrou forçado. Se Donna Doyle estivesse presa no porão, descobri-la seria uma revelação que daria, até mesmo na forte Doreen Elliott, pesadelos para o resto da vida, Kay sabia disso. — É nosso dever cuidar dos cidadãos. Como acha que meu chefe reagiria se eu deixasse a senhora ser feita refém de um maluco com uma faca?
A sra. Elliott se deixou levar até a pequenina varanda na entrada dando apenas uma única olhada para Simon e Leon, que se moviam pelo cômodo ligando e desligando interruptores.
— Acham que é um perseguidor, então? — perguntou ela com ansiedade. — Aqui nesta região?
— Não necessariamente é alguém daqui — respondeu Kay. — Essas pessoas são obsessivas. Seguem as celebridades por semanas, meses, aprendem cada detalhe da vida e da rotina delas. Tem visto algum estranho à toa por aqui?
— Bom, tem os turistas e o pessoal que faz caminhada, mas a maioria só vem aqui por causa da muralha. Eles não ficam à toa.
Antes que Kay pudesse falar mais, seu telefone tocou.
— A senhora me dá licença? Só um minutinho — disse ela, voltando para dentro para atender a ligação. — Alô.
— Kay. É o Tony. Onde você está?
Que merda, pensou ela. Por que eu? Por que ele não ligou pro Leon?
— É... a gente está dentro da Casa do Vance em Northumberland — respondeu ela.
Simon olhou para Kay, mas ela acenou para que ele continuasse a busca.
— O quê? — exclamou Tony, indignado.
— Sei que você pediu pra gente esperar, mas não parávamos de pensar na Donna Doyle...
— Vocês invadiram?
— Não. Temos todo o direito de estar aqui. Uma mulher daqui tem a chave. Falamos pra ela que recebemos um denúncia de invasor e ela deixou a gente entrar.
— É melhor vocês saírem o mais rápido possível.
— Tony, ela pode estar aqui. Este lugar tem um porão vedado. O Vance falou pros pedreiros que queria um abrigo nuclear.
— Um abrigo nuclear? — Sua incredulidade era palpável.
— Foi há doze anos. As pessoas ainda acreditavam que a Rússia sapecaria uma bomba nuclear na gente — lembrou-lhe Kay, melancolicamente. — A questão é que ela pode estar lá embaixo e nós não conseguiríamos escutar mesmo se estivéssemos bem do lado dela. Queremos achar a porta.
— Não. Vocês precisam sair daí. Ele está a caminho, fretou um avião, Kay. Provavelmente está indo aí pra se certificar de que não deixou nenhuma ponta solta. Precisamos pegar o Vance no ato. Temos que vigiar o lugar e ver o Jacko chegar a uma cena intocada.
Enquanto ele falava, Kay olhava espantada o chão se mover a apenas alguns metros dela. Silenciosamente, um único bloco se inclinou e abriu depois que Simon apertou um interruptor. Quando o ar fétido escapou, Kay começou a vomitar. Recuperando-se, ela disse:
— Tarde demais pra isso. Achamos a porta.
Simon já estava à abertura no chão, observando os degraus de pedra. Tateando, suas mãos encontraram um interruptor e inundaram a área de luz. Um longo momento se passou, depois ele se virou para Kay, com o rosto branco como cera.
— Se for o Tony, é melhor falar pra ele que achamos a Donna Doyle também.
Ele tamborilava os dedos gentilmente no apoio de braço, o único movimento em um corpo imóvel como o de um leão se preparando para o ataque. Sequer se firmava durante os solavancos das áreas de turbulência pelas quais passava ocasionalmente o pequeno avião bimotor; deixava o seu corpo acompanhar o movimento. Houve uma época em que ele costumava morder as unhas da mão direita quando ficava nervoso. A perda do braço fora uma cura extrema para um mau hábito, gostava de falar ironicamente em público. Agora cultivava a imobilidade, pois entendia que tiques nervosos não faziam com que as coisas acontecessem mais rápido ou de maneira mais fácil. Além disso, a imobilidade era muito mais perturbadora para todas as outras pessoas.
O tom do motor mudou quando o piloto se preparou para pousar. Jacko espiou pela janela e ficou observando as luzes dos bairros residenciais através da chuva fina. Deixara Tony Hill pra trás. Não havia a menor possibilidade dele ter alcançado a aeronave. E ele não tinha apoio algum, Jacko sabia devido à discreta investigação que fizera, fato confirmado por Micky e pelo próprio Tony.
As rodas atingiram o chão e o fizeram sacudir preso ao cinto de segurança. Uma virada leve, uma correção, e estavam na direção dos hangares do aeroclube, taxiando suavemente. Mal tinham parado quando Jacko abriu a porta. Pulou no asfalto e olhou ao redor, os olhos procurando pelo formato familiar da sua Land Rover. Sam Foxwell e seu irmão sempre ficavam satisfeitos com as vinte pratas que ele lhes pagava quando precisava que a Land Rover fosse levada até o aeroporto e, ao conversar com eles pelo telefone, prometeram que a levariam até ele.
Ao não conseguir vê-la, Jacko estremeceu de pânico. Eles não podiam desapontá-lo, não justamente naquela noite. O piloto interrompeu seus pensamentos ao apontar para a lateral do hangar profundamente escuro.
— Se está procurando a sua Land Rover, acho que está enfiada ali do lado; notei quando estava taxiando.
— Valeu.
Jacko enfiou a mão no bolso e tirou uma nota de vinte libras do seu prendedor de dinheiro.
— Toma uma cerveja por minha conta. A gente se vê, Keith.
Enquanto trovejava pelas estradas estreitas de Northumberland, a rota mais rápida para o lugar que considerava sua verdadeira casa, revisava o que tinha que fazer nas poucas horas antes de Tony Hill chegar. Primeiro, verificar se a puta ainda estava viva e, se estivesse, providenciar para que não continuasse assim. Depois, dar um jeito nela com a motosserra, ensacá-la e colocá-la na Land Rover. Limpar o porão com a mangueira de alta pressão e ir para o hospital. Teria tempo? Ou deveria simplesmente desativar o motor que acionava o mecanismo para abrir a porta? Afinal de contas, Hill não tinha como saber do abrigo no porão e a polícia local não providenciaria uma busca com base na palavra dele, não quando isso ofenderia um honrado pagador de impostos local como Jacko Vance. E não havia nenhuma garantia de que Tony Hill sequer apareceria.
Talvez devesse se contentar com garantir que estivesse morta e deixar a limpeza para depois. Haveria certo prazer em entreter Tony Hill a apenas alguns metros da sua mais recente vítima. Sua boca se retorceu num rosnado hediondo. Donna Doyle teria que ser sua última por um tempo. Que maldito. Tony Hill não devia ficar se preocupando com as vagabundas que ele apagara. E Jacko tinha planos para Tony Hill. Um dia, quando tudo voltasse a ficar tranquilo e o psicólogo tivesse se resignando ao fato de que falhara, esse plano entraria em ação e ele desejaria nunca ter metido o nariz nos negócios de outra pessoa.
Faróis fatiavam a escuridão densa da paisagem rural e peitavam a montanha que descia para o seu santuário. Onde não deveria haver nada além de escuridão, luz se derramava pela grama cortada e pelo cascalho cinza da entrada da garagem. Jacko meteu o pé no freio e a Land Rover derrapou ruidosamente até parar. Mas que porra é essa?
Enquanto ficou sentado ali, com a cabeça a mil e a adrenalina pulsando, faróis altos de um carro se aproximaram lentamente por trás dele e pararam atravessados na estrada estreita para que não houvesse a possibilidade de dar ré. Vagarosamente, Vance tirou o pé do freio e deixou a Land Rover descer o morro em direção à sua casa. Balançando atrás dele, os faróis o escoltavam. Quando se aproximou, viu um segundo carro estacionado diagonalmente bem na entrada, bloqueando o caminho.
Vance seguiu em direção à sua propriedade, o frio do medo apertando seu estômago e tomando conta da sua mente. Completamente indignado, o dono da casa parou, pulou do veículo, e confrontou o homem negro parado à porta.
— Que merda é essa? — indagou ele.
— Infelizmente tenho que pedir que espere do lado de fora, senhor — informou Leon, respeitosamente.
— Como assim? Esta casa é minha. Houve algum assalto ou coisa assim? O que está acontecendo? E quem é você, porra?
— Detetive Leon Jackson, da Polícia Metropolitana — respondeu ele, mostrando seu distintivo para que fosse inspecionado.
Vance acionou seu charme.
— Está bem longe de casa.
— Estou participando de uma investigação, senhor. É impressionante aonde uma linha de investigação pode nos levar nestes dias de comunicação eletrônica e sistemas eficientes de vigilância. — A voz de Leon era impassível, mas seus olhos não se desgrudavam de Vance.
— Olha só, você sabe quem sou, é óbvio. Sabe que esta casa é minha. Pode pelo menos me contar que merda está acontecendo?
O barulho de uma buzina fez Vance se virar para ver o carro que o tinha seguido parar bem do lado de fora do portão, bloqueando a estrada no sentido oposto. Estava completamente cercado. Droga, esperava que a puta estivesse morta. Outro jovem saiu do carro e caminhou pelo cascalho.
— Você também é da Polícia Metropolitana? — perguntou Vance, forçando-se para manter o profissionalismo no modo cativante.
— Não — disse Simon. — De Strathclyde.
— Strathclyde? — Vance ficou momentaneamente confuso. Tinha pegado alguém de Londres alguns anos atrás, mas nunca trouxe ninguém da Escócia. Odiava o sotaque. Fazia com que se lembrasse de Jimmy Linden e tudo que significava para ele. Ou seja, se havia um policial da Escócia ali, não deviam estar procurando as meninas. Ficaria tudo bem, disse a si mesmo. Ele se safaria.
— Isso mesmo, senhor. O detetive Jackson e eu temos trabalhado em aspectos diferentes do mesmo caso. Estávamos na área e um motorista de passagem denunciou um invasor aqui. Achamos melhor dar uma olhada.
— Isso é louvável, policiais. Será que posso ir lá dentro pra ver se não está faltando nada e se tem alguma coisa quebrada?
Ele tentou passar de lado por Leon, mas o policial foi mais rápido que ele ao estender o braço e bloquear Vance. Abanou a cabeça.
— Sinto muito, senhor. É uma cena de crime, você sabe. Precisamos garantir que nada interfira nela.
— Cena de crime? Afinal de contas o que foi que aconteceu?
Preocupado, tente parecer preocupado, advertiu a si mesmo: esta casa é sua, você é um homem inocente e você quer saber o que aconteceu com a sua propriedade.
— Creio que há uma suspeita de morte — informou Simon, com frieza.
Jacko deu um passo atrás tentando fazer com que parecesse um movimento involuntário, cobrindo o rosto com as mãos para garantir que nenhum sinal do alívio que o inundou ficasse visível à polícia. Estava morta, aleluia. Uma mulher morta não podia testemunhar. Forrou seu rosto com uma expressão de ansiedade preocupada e olhou para cima.
— Mas isso é terrível. Uma morte? Aqui? Mas quem... Como? Esta casa é minha. Ninguém vem aqui além de mim. Como pode ter alguém morto aqui?
— É o que estamos tentando descobrir — disse Leon.
— Mas quem é? Um assaltante? O quê?
— Não achamos que seja um assaltante — disse Simon, tenteando manter o controle sobre a raiva que sentia cara a cara com o homem que matara Shaz e que tentava fingir que não tinha nada a ver com a massa em putrefação no seu porão.
— Mas... a única pessoa que tem a chave é a sra. Doreen Elliott, do Dene Cottage. Não é... Não é ela?
— Não, senhor. A senhora Elliott está com uma saúde ótima. Foi a senhora Elliott quem nos deixou entrar na propriedade e permitiu a busca. Um dos nossos colegas a levou pra casa.
Algo na maneira como o policial negro o encarou enquanto dizia isso fez um tremor de medo envolver os nervos de Vance. A mensagem que passava em alto e bom som por entre as palavras pronunciadas era a advertência implícita que sua primeira linha de defesa se esmigalhara. Não entraram ali de forma ilegal.
— Graças a Deus. Então quem é?
— Não podemos especular neste momento, senhor.
— Mas vocês com certeza conseguem me falar se é um homem ou uma mulher, não conseguem?
Simon franziu os lábios. Não conseguia segurar mais.
— Como se você não soubesse — disse ele, sua voz carregada com um desprezo nervoso. — Acha que a gente não saca o que está rolando?
Ele se virou, as mãos se fechando em punhos.
— Do que ele está falando? — indagou Vance, acionando o modo espectador inocente irritado que percebe que está prestes a ser arrastado para dentro do problema de outra pessoa.
Leon deu de ombros e acendeu um cigarro.
— Você me diz — disse ele, negligentemente. — Que bom — disse ele, olhando por sobre o ombro de Vance. — Parece que a cavalaria chegou.
A mulher que saía do carro e se aproximou por trás de Simon não pareceu muito com a cavalaria para Vance. Não podia ter mais de trinta anos. Mesmo enfiada em um casaco grande demais, era nitidamente magra e bonita, tinha o cabelo louro curto, cheio e despenteado.
— Boa noite, cavalheiros — cumprimentou com firmeza. — Sr. Vance, sou a detetive inspetora-chefe Jordan. Pode me dar licença um momento para que eu me reúna com os meus colegas. Leon, pode fazer companhia ao sr. Vance um minutinho? Quero dar uma olhada lá dentro. Simon, uma palavrinha, por favor?
Antes que tivesse a chance de dizer qualquer coisa, ela arrastou Simon para dentro, abrindo pouquíssimo a porta para que Vance não tivesse como ver lá dentro.
— Não estou entendendo o que está acontecendo — disse Vance. — Não deveria haver o pessoal que trabalha em cenas de crime aqui? E policiais uniformizados?
Novamente, Leon deu de ombros.
— Não é muito parecida com a televisão, a vida.
Continuou fumando até o filtro depois jogou o cigarro no degrau da varanda e pisou nele.
— Você se importa? — disse Vance apontando. — Isto aqui é a minha casa. A entrada dela. Não é porque alguém foi morto aí dentro que a polícia também pode vandalizar o lugar.
Leon levantou uma sobrancelha.
— Francamente, senhor, acho que essa é a menor das suas preocupações agora.
— Isto é ultrajante — reclamou Vance.
— Particularmente acho suspeita de morte ultraje suficiente pra uma noite.
A porta foi aberta alguns centímetros e Simon e Carol reapareceram. A mulher parecia sombria, o homem, levemente nauseado, Vance pensou. Bom, ela não precisava morrer bonita, a puta.
— Inspetora-chefe, quando alguém vai me contar o que está acontecendo aqui?
Ele estava tão ocupado a olhando que nem percebeu que os dois homens, num movimento flanqueado, posicionaram-se um de cada lado dele. Carol encarou-o com olhos tão frios e azuis quanto os dele:
— Jacko Vance, você está preso por suspeita de assassinato. Não precisa falar nada, mas devo avisá-lo que sua defesa pode ficar prejudicada caso não se manifeste sobre algo que lhe for perguntado e ao qual queira recorrer mais tarde no tribunal. Qualquer coisa que disser pode ser considerada prova.
A descrença inflamou seu rosto quando Simon e Leon se aproximaram ainda mais dele. Antes de se dar conta de que aquela mulher o estava prendendo e aqueles idiotas colocavam as mãos nele, uma algema de aço foi presa com força em seu pulso esquerdo. Voltou a si enquanto tentavam levá-lo à força de volta para a Land Rover e, preso pelas mãos, começou a convulsionar numa desesperada tentativa de se libertar por pura superioridade de força. Mas estava desequilibrado, e seus pés escorregaram no cascalho.
— Não deixem cair — gritou Carol e, de alguma maneira, Leon deu um jeito de entrar debaixo de Vance antes dele bater no chão.
Simon segurou nervoso na outra ponta das algemas, puxando com força o braço de Vance para trás, fazendo-o guinchar.
— Faz essa graça pra mim, seu bosta — berrou Simon. — Me dá um motivo pra eu dar a você um gostinho do que você deu à Shaz.
Ele puxou Vance pelo braço, forçando-o a ficar de pé. Leon se levantou com dificuldade e empurrou Vance pelo peito.
— Sabe o que me deixaria realmente feliz? Você tentar sair vazado. Isso me faria delirar pra caralho, porque aí teria uma desculpa pra arrancar bosta desse seu corpo de merda. Vai lá, tenta fazer isso. Anda, tenta.
Vance tropeçou para trás, não somente para aliviar a dor no braço, mas para escapar do veneno na voz de Leon. Trombou na Land Rover. Simon puxou com força o braço dele para baixo. E prendeu a outra ponta da algema no quebra-mato. Respirou fundo, depois cuspiu na cara de Vance. Quando se virou para Carol, tinha lágrimas nos olhos.
— Ele não vai a lugar nenhum tão cedo — grasnou ele.
— Você vai se arrepender desta noite — disse Vance, numa voz baixa e ameaçadora.
Carol deu um passo à frente e colocou a mão no braço de Simon.
— Fez bem, Simon. Agora, a não ser que alguém tenha uma ideia melhor, acho que já é hora de chamar a polícia.
Havia algo genérico sobre as delegacias de polícia, pensou Tony. As cantinas nunca serviam salada, as áreas de espera sempre tinham ranço de cigarro, mesmo que fumar tivesse sido proibido há anos, e a decoração nunca variava. Dando uma olhada na sala de interrogatório na polícia da delegacia de Hexham às três da manhã, deu-se conta de que podia estar em qualquer lugar entre Penzance e Perth. Sobre aquele pensamento sombrio, a porta foi aberta e Carol entrou com duas canecas de café.
— Forte, preto e feito em algum momento da semana passada — comentou ela, deixando-se cair na cadeira do lado oposto ao dele.
— O que está acontecendo?
Ela bufou e disse:
— Ele continua gritando que a prisão foi injusta, que é ilegal. Acabei de dar as minhas explicações.
Ele misturou o café e compreendeu os sinais de tensão ao redor dos olhos dela.
— Que foram?
— Na área investigada, os rapazes receberam uma denúncia de que poderia haver um invasor. Acharam que seria mais rápido se eles mesmos fossem dar uma conferida, afinal, são adeptos da cooperação entre forças, e então encontraram uma pessoa que tinha a chave, ficou satisfeita em deixá-los entrar e deu permissão para fazerem a busca — relatou Carol, inclinando-se para trás e olhando para o teto sem prestar atenção no que via. — Preocupados com a possibilidade de um possível perseguidor escondido ali, abriram o porão onde acharam o cadáver de uma jovem branca do sexo feminino que batia com a descrição de Donna Doyle, que sabiam que estava na lista de pessoas desaparecidas. Como o sr. Vance é a única pessoa de que se tem conhecimento a frequentar a casa, era óbvio que ele devia ser considerado suspeito em relação ao que obviamente é uma morte suspeita. Conclui que havia o risco dele se tornar um fugitivo, pois estava na cena com um veículo capaz de sair da estrada e evitar perseguição. Apesar da minha autoridade não se estender à área da Polícia de Northumbria, tenho autonomia para efetuar a prisão de um cidadão. Manter o sr. Vance detido, o que causou a ele o mínimo desconforto, pareceu uma alternativa melhor do que deixá-lo à solta, pois qualquer movimento em direção ao veículo dele poderia ter levado a uma reação desmedida por parte dos policiais com quem eu estava trabalhando. Algemá-lo à Land Rover foi, de fato, para a proteção dele mesmo.
Quando terminou o relato, estavam ambos com um grande sorriso no rosto.
— Enfim, os rapazes daqui me fizeram o favor de prendê-lo novamente quando chegaram lá.
— E quanto a acusá-lo?
Carol ficou desanimada.
— Estão esperando o relato do Vance chegar. Estão ficando com muito medo. Viram o seu dossiê e interrogaram Kay, Simon e Leon, mas continuam cautelosos. Não acabou, Tony. Ainda temos um longo caminho pela frente. A mulher gorda ainda nem chegou.
— Eu queria mesmo é que eles não tivessem aberto aquele porão. Que tivessem ficado vigiando o lugar e testemunhassem o Vance abrindo o porão e descendo lá com o corpo de Donna Doyle.
Carol suspirou.
— Ela não estava morta há muito tempo, você sabia?
— Não.
— O médico da polícia calcula menos de 24 horas.
Ficaram sentados em silêncio, pensando no que poderiam ter feito melhor ou mais rápido, se mais ou menos ortodoxia teria dado a eles uma resposta mais imediata. Carol quebrou o silêncio desconfortável.
— Se a gente não conseguir prender o Vance, acho que não vou querer mais ser policial.
— Está se sentindo assim por causa do que aconteceu com a Di Earnshaw — sugeriu Tony, pousando sua mão no braço dela.
— Me sinto assim porque o Vance é uma arma letal e, se não conseguimos neutralizar gente igual a ele, não passamos de guardas de trânsito glorificados — disse ela, com amargura.
— E se conseguirmos?
Ela deu de ombros antes de dizer:
— Aí talvez a gente consiga se redimir por aqueles que perdemos.
Ficaram sentados em silêncio bebendo café. Depois Tony passou a mão pelo cabelo e perguntou:
— O patologista deles é bom?
— Não tenho nem ideia. Por quê?
Antes que pudesse responder, a porta foi aberta e deixou visível o rosto preocupado de Phil Marshall, o superintendente no comando da divisão.
— Dr. Hill? Podemos dar uma palavrinha?
— Entra, fique à vontade — murmurou Carol.
Marshall fechou a porta depois de entrar.
— Vance quer conversar com você. Sozinho. Ele não tem problema com a conversa ser gravada, mas quer que sejam só vocês dois.
— E o relato dele? — perguntou Carol.
— Falou que quer só o dr. Hill e ele. O que me diz, doutor? Conversa com ele?
— Não temos nada a perder, temos?
Marshall retrucou:
— Do meu ponto de vista, a gente tem muito a perder, na verdade. Francamente, quero provas pra poder acusar o Vance ou então quero o cara fora daqui amanhã mesmo. Não vou procurar nenhum magistrado pra perguntar se posso manter Jacko Vance trancafiado com base no que vocês me deram até agora.
Tony pegou seu caderninho, arrancou uma folha e rabiscou um nome e um número. Passou-o para Carol.
— É quem precisamos que venha pra cá. Pode explicar tudo a eles enquanto estou lá com o Jack Bacana?
Carol leu o que ele escrevera e seus olhos foram iluminados pela compreensão. — É claro. — Ela esticou a o braço e apertou a mão dele. — Boa sorte.
Tony agradeceu com um gesto de cabeça e seguiu Marshall pelo corredor.
— A gente vai gravar, é claro — informou Marshall. — Temos que levar isso na maior limpeza possível. Ele já está falando em processar a detetive inspetora-chefe Jordan.
Marshall parou em frente a uma sala de interrogatório e abriu a porta. Gesticulou com a cabeça para um policial fardado no canto e o homem foi embora.
Tony entrou na sala e encarou seu adversário. Não podia acreditar que ainda não havia nenhuma deformação naquele exterior arrogante, nenhuma rachadura naquela fachada charmosa.
— Dr. Hill — disse Vance, nenhum tremor na voz profissionalmente suave. — Gostaria de dizer que é uma prazer, mas seria uma mentira muito grande para que qualquer um engolisse. Um pouco parecido com as suas acusações insanas.
— O dr. Hill concordou em conversar com você — interrompeu Marshall. — Vamos gravar a conversa. Vou deixar vocês sozinhos agora.
Ele saiu da sala e Vance gesticulou para que Tony se sentasse. O psicólogo negou com um gesto de cabeça e se apoiou na parede com os braços cruzados.
— Você me quer pra quê? — perguntou Tony. — Confessar?
— Se eu quisesse confessar teria pedido um padre. Queria te ver. Ficar cara a cara com você pra falar que, assim que eu sair daqui, vou processar você e a detetive Carol Jordan por calúnia.
Tony riu.
— Vai em frente. Nenhum de nós dois tem uma fração da sua renda anual. Você é que vai acabar desembolsando uma fortuna com custos judiciais. Eu? Eu saborearia a oportunidade de te pegar como testemunha sob juramento.
— Isso é uma coisa que nunca vai conseguir — disse Vance, recostando-se na cadeira. Seus olhos eram frios, seu sorriso, reptiliano. — Essas acusações forjadas não se sustentarão quando forem analisadas calma e friamente. O que você tem? Esse seu dossiê com fotos manipuladas e coincidências circunstanciais. “Aqui está o Jacko Vance na M1 em Leeds na noite em que a Shaz Bowman morreu.” É claro, a minha segunda casa é em Northumberland e aquele é o melhor caminho pra chegar lá. — Sua sonora voz pingava sarcasmo.
— E o que me diz de “Aqui está o Jacko Vance com um cadáver no porão”? Ou “Aqui está uma foto do Jacko Vance com a menina morta no porão dele quando ainda estava viva e sorridente”? — perguntou Tony, mantendo a voz equilibrada e branda. Queria deixar que Vance se exaltasse, que fosse ele quem esticasse a coleira do autocontrole.
A resposta de Vance foi um sorriso debochado.
— Foram os seus policiais que providenciaram a resposta para isso — disse ele. — Eles que levantaram a possibilidade de um perseguidor, o que não é muito improvável. Perseguidores ficam obcecados por seus alvos. Não acho muito difícil imaginar um me seguindo até Northumberland. Todo mundo lá na região sabe que a Doreen tem um molho de chaves lá de casa e, como a maioria do pessoal, nunca tranca a porta se vai só dar um pulo na casa ao lado pra tomar um chá ou ir a um canteiro desenterrar umas batatas. Brincadeira de criança pegar as chaves e fazer cópia delas.
Confortável com a trama, seu sorriso alargou e sua linguagem corporal ficou mais relaxada.
— Também é de conhecimento geral que tenho um abrigo nuclear construído na cripta da capela. Um pouco constrangedor nestes dias de paz, mas consigo viver com isso — continuou Vance, inclinando-se para a frente, a prótese apoiada na mesa e o outro braço pendurado por trás do encosto da cadeira. — E não vamos nos esquecer da vendeta muito conhecida com a minha ex-noiva que, como você muito bem destacou, guarda uma forte semelhança com essas pobres meninas desaparecidas. Quero dizer, não achariam que me faziam um favor aniquilando a imagem dela se estivesse obcecado por mim? — Seu largo sorriso era absolutamente triunfal. — E você está, não está dr. Hill? Ou melhor, como terei grande prazer em explicar para a imprensa mundial, está obcecado pela minha mulher, creio eu. A morte trágica da Shaz Bowman te deu a oportunidade de entrar à força nas nossas vidas e, quando a querida e doce Micky concordou em jantar contigo, você criou a ideia de que, sem mim, ela cairia nos seus braços. Seu triste delírio nos trouxe até este ponto. — Confiante, abanou a cabeça compassivamente.
Tony levantou a cabeça e encarou um par de olhos que podia ter vindo de Marte tamanha a humanidade que continham.
— Você matou a Shaz Bowman. Você matou a Donna Doyle.
— Você nunca vai provar isso. Tendo em vista que é uma invenção completa, você nunca vai conseguir provar — disse Vance com um ar de indiferença. Depois, levantou um braço e cobriu primeiro os olhos, depois a boca e, finalmente, acariciou o ouvido. Para um observador distraído, era meramente o gesto de uma pessoa cansada. Tony entendeu instantaneamente que era uma provocação. Desencostou da parede e deu dois longos passos para o outro lado da sala. Apoiando-se sobre os punhos, enfiou o rosto no espaço pessoal de Vance. Contra sua vontade, o astro da TV esticou o pescoço e levou a cabeça para trás como uma tartaruga se recolhendo para dentro do casco.
— Talvez você esteja certo — disse Tony. — É inteiramente possível que não o enquadremos pela Shaz Bowman ou pela Donna Doyle. Mas vou te falar uma coisa, Jacko. Nem sempre você foi tão bom assim. Vamos te pegar por causa da Barbara Fenwick.
— Não tenho ideia do que você está falando — desdenhou Vance.
Tony se ergueu e, lentamente, começou a passear tão vagarosamente ao redor daquele espaço confinado que parecia estar no parque da região.
— Doze anos atrás, quando você matou Barbara Fenwick, havia muitas coisas que a ciência forense não conseguia fazer. As marcas de ferramentas, por exemplo. Bem rudimentares naquela época. Só que, hoje em dia, eles têm microscópios eletrônicos de varredura e de transmissão. Não me pergunta como funcionam, mas conseguem comparar uma ferida com um instrumento e dizer se os dois são compatíveis. Nos próximos dias, vão comparar os ossos do braço ferido de Donna Doyle com o torno na sua casa. — Ele olhou para o seu relógio. — Se tudo estiver correndo bem, a patologista deve estar a caminho agora mesmo. A professora Elizabeth Stewart. Não sei se já ouviu falar, mas ela tem uma reputação maravilhosa na antropologia forense bem como em patologia. Se existe alguém que consegue encontrar a compatibilidade entre o seu torno e os ferimentos de Donna, esse alguém é a Liz Stewart. Agora, acho que isso não te compromete se levarmos em consideração a fantasia que você está tecendo aqui.
Ele se virou lentamente para encarar Vance.
— Mas comprometeria se o torno usado fosse compatível com as lesões ósseas de Barbara Fenwick, não comprometeria? Com frequência, serial killers usam a mesma arma em todos os seus assassinatos. É difícil imaginar um perseguidor que te segue numa onda de assassinatos durante 12 anos sem nunca ter dado um passo em falso, você não acha?
Dessa vez, ele viu um lampejo de incerteza na máscara de confiança de Vance.
— Mas que lixo isso. Só pro bem da argumentação, mesmo que você conseguisse uma autorização de exumação, nenhum promotor vai abrir um caso que tem como base uma marca num osso que está enterrado há doze anos.
— Concordo plenamente — disse Tony. — Mas, olha só, a patologista que fez a autópsia da Barbara Fenwick nunca tinha visto lesões como aquelas. Elas a intrigaram. E ela é professora universitária. Professora Elizabeth Stewart, na verdade. Ela solicitou autorização ao Ministério do Interior para conservar o braço de Barbara Fenwick para usá-lo como ferramenta de ensino. Para exemplificar o efeito no osso e na carne da contusão muscular causada por compressão. Mais engraçado é que ela achou uma leve imperfeição na ponta inferior do instrumento que infligiu as lesões. Uma projeção de metal pequenininha que fez uma marca no osso tão singular quanto uma impressão digital. — Deixou as palavras pairarem no ar. Os olhos de Vance não se desgrudaram do rosto dele nem um momento sequer. — Quando a professora Stewart se mudou pra Londres, não levou o braço. Durante os últimos doze anos, o braço de Barbara Fenwick foi perfeitamente preservado no departamento de anatomia da Universidade de Manchester.
Tony deu um sorriso gentil.
— Uma prova física irrefutável ligando você a uma arma usada numa vítima de assassinato. E, de repente, o circunstancial começa a ficar bem diferente, não acha?
Ele caminhou até a porta e a abriu.
— A propósito... não gosto nem um pouquinho da sua mulher. Nunca fui tão incompetente a ponto de ter que me esconder atrás de uma lésbica.
No corredor, Tony sinalizou para o policial fardado à porta para que voltasse para a sala de interrogação. Então, exausto pelo esforço de confrontar Vance, apoiou-se na parede, agachou, colocou os cotovelos nos joelhos e as mãos sobre o rosto.
Ainda estava ali dez minutos mais tarde quando Carol Jordan saiu da sala de observação de onde ela e Marshall assistiram ao confronto entre o caçador e o assassino. Agachou em frente a ele e lhe segurou a cabeça com as duas mãos. Ele olhou para o rosto dela.
— O que você acha? — perguntou, com ansiedade.
— Você convenceu o Phil Marshall — respondeu Carol. — Ele conversou com a professora Stewart. Ela não ficou muito entusiasmada ao ser acordada no meio da noite, mas depois que Marshall explicou o que estava rolando, ficou muito empolgada. Tem um trem de Londres pra cá que chega aqui às nove. Ela vem nele, com os famosos slides com a lesão. O Marshall já providenciou alguém pra ir à Universidade de Manchester pra buscar o braço da Barbara Fenwick logo de manhãzinha. Se forem compatíveis, vão acusar Vance.
Tony fechou os olhos.
— Só espero que ele esteja usando o mesmo torno.
— Ah, acho que você vai acabar vendo que está, sim — comunicou Carol, com entusiasmo. — A gente estava assistindo. Não dava pra você ver de onde estava, mas, quando você mandou o esquema da professora Stewart e o braço preservado, a perna direita dele começou a saltitar. Não conseguia controlar. Ainda está com o mesmo torno. Aposto minha vida nisso.
Tony sentiu um sorriso franzir os cantos da sua boca.
— Acho que a mulher gorda acabou de pousar.
Ele colocou os braços ao redor de Carol e levantou, trazendo-a consigo. Manteve-a à distância de um braço e lhe abriu um largo sorriso.
— Você fez um excelente trabalho lá. Tenho muito orgulho de estar na sua equipe. — O rosto dela estava solene, os olhos, sérios.
Tony baixou os braços e respirou fundo.
— Carol, eu estava fugindo de você há muito tempo — confessou ele.
— Acho que sei por quê. — Ela olhou para baixo, relutante em encontrar os olhos dele agora que finalmente estavam tendo essa conversa.
— Ahn?
Os músculos ao longo do maxilar de Carol tensionaram, em seguida ela levantou os olhos para ele.
— Eu não tinha sangue nas mãos. Por isso não conseguia entender como você se sentia. A morte de Di Earnshaw mudou isso. E o fato de que nenhum de nós dois conseguiu salvar a Donna...
Tony concordou com um gesto desolado de cabeça e disse:
— Não é algo confortável pra se ter em comum.
Carol visualizava com frequência um momento como esse entre eles. Achara que sabia o que queria que acontecesse. Mas, naquele momento, percebeu-se desconcertada por descobrir que suas reações eram muito diferentes do que imaginara. Colocou a mão no antebraço dele e disse:
— Compartilhar é mais fácil para amigos do que para os amantes, Tony.
Ele a contemplou por um longo momento, franzindo as sobrancelhas. Pensou nos corpos que Jacko Vance tinha incinerado no hospital em que dedicava seu tempo aos moribundos. Pensou na perda do que Shaz Bowman poderia ter alcançado. Pensou em todas as outras mortes que ainda estavam dispostas à frente dos dois. E pensou em redenção, não pelo trabalho, mas pela amizade. Seu rosto se iluminou e ele sorriu.
— Quer saber? Acho que você tem razão.
Epílogo
O assassinato era como mágica, ele pensou. A velocidade da sua mão sempre ludibriara o olho e continuaria a ser assim. Achavam que tinham-no aprisionado, costurado dentro de um saco e aprisionado na corrente da culpa. Achavam que estavam o enfiando num tanque das provas no qual conseguiriam afogá-lo. Mas ele era Houdini. Escaparia para a liberdade quando menos esperassem.
Jacko Vance deitou na estreita cama da cela de cadeia, o braço real dobrado atrás da cabeça. Observava o teto, lembrando de como tinha se sentido no hospital, o único outro lugar de onde não pôde arredar o pé. Houve momentos de desespero e raiva impotente e ele sabia que isso provavelmente o afligiria novamente antes que conseguisse sair daquele lugar e de outros como ele. Mas, quando esteve no hospital, sabia que estaria livre de lá um dia e focou toda a sua poderosa inteligência em moldar esse momento.
Era verdade que tivera a ajuda de Micky naquela época. Ele se perguntou se ainda poderia contar com ela. Acreditava que, enquanto pudesse manter dúvidas convincentes, ela ficaria ao lado dele. Assim que a impressão fosse a de que ele estava naufragando, ela o abandonaria. Já que não tinha a menor intenção de deixar isso acontecer, achava que poderia contar com ela.
As provas eram frágeis, mas não podia negar que Tony Hill foi impressionante na maneira como lidou com elas. Seria difícil desacreditá-lo no tribunal, mesmo que Vance fosse bem-sucedido em, com antecedência, plantar histórias na imprensa acusando o psicólogo de ser obcecado por Micky. E havia um risco nisso. Hill tinha, de alguma maneira, descoberto que Micky era lésbica. Se ele lançasse isso em resposta a uma acusação contra si, seria um estrago muito grande tanto para a credibilidade de Micky quanto para a imagem dele como homem que não precisava de nenhuma mulher a não ser sua adorável esposa.
Não, se aquilo virasse uma batalha judicial, mesmo com um júri de viciados em televisão, Vance estaria em risco. Tinha que garantir que aquilo não passaria de uma audiência preliminar. Tinha que destruir as provas contra si, para demonstrar que não havia caso a ser julgado.
A maior ameaça vinha da patologista e da leitura que faria das marcas da ferramenta. Se conseguisse desacreditar isso, só restariam detalhes circunstanciais. Juntos, tinham peso, mas individualmente podiam ser minados. O torno era uma prova sólida demais para que pudesse fazer o mesmo.
O primeiro passo era lançar dúvida sobre se o braço na universidade realmente pertencia a Barbara Fenwick. Em um departamento de patologia de universidade, ele não tinha como ficar tão seguro quanto na sala de provas da polícia. Qualquer pessoa podia ter tido acesso a ele ao longo dos anos. Podia até mesmo ter sido substituído por outro braço deliberadamente esmagado em seu torno por, digamos, um policial determinado a enquadrá-lo. Estudantes podiam tê-lo trocado numa brincadeira macabra. Isso mesmo, um pouquinho de trabalho ali poderia fazer algumas fissuras na confiabilidade do braço preservado.
O segundo passo era provar que o torno não pertencia a ele quando Barbara Fenwick morrera. Deitou no colchão duro e atormentou seu cérebro para encontrar uma resposta.
— Phyllis — murmurou ele por fim, com um sorriso ardiloso rastejando ao longo do rosto. — Phyllis Gates.
Ela tivera câncer terminal. Começara no seio esquerdo, depois se espalhou pelo sistema linfático e finalmente, de forma agonizante, para a coluna. Ele passara várias noites à beira da cama dela, às vezes conversando, outras simplesmente segurando a mão dela em silêncio. Adorava a sensação de poder que o trabalho com os praticamente mortos lhe dava. Eles iriam embora e ele continuaria ali, no topo do mundo. Phyllis Gates já tinha partido há muito tempo, mas seu irmão gêmeo, Terry, estava vivo e bem. Provavelmente ainda levava em frente o seu mercadinho.
Ele vendia ferramentas. Novas e de segunda-mão. Terry creditava a Vance a única felicidade que a irmã tivera nas últimas semanas de vida. Ele andaria sobre carvão em brasa por Vance. Acharia que dizer ao júri que tinha vendido o torno a Vance apenas uns dois anos antes era o mínimo que poderia fazer para saldar sua dívida...
Vance se sentou com elegância, endireitando-se e abriu os braços como um herói que aceita a adulação da multidão. Tinha dado um jeito. Era praticamente um homem livre. O assassinato era mesmo como mágica. E, em breve, o próprio Tony Hill saberia disso. Vance mal podia esperar.
Val McDermid
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