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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RASTROS DO PASSADO / Hannah Howell
RASTROS DO PASSADO / Hannah Howell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

                             Escócia, 1509

Dois homens unidos por um vínculo mais forte que os laços fraternais, perseguidos por um terrível segredo, condenados a vagar nas sombras da noite, atormentados por uma fome insaciável, vítimas de uma maldição que somente um grande e verdadeiro amor, de uma mulher de sangue puro, poderá enfraquecer...

Bothan MacNachton herdou da mãe a agilidade de um felino, e do pai, a ferocidade de um lobo. Sua beleza máscula atrai e seduz naturalmente as mulheres. Porém Bothan procura uma mulher especial, com sangue puro e um coração apaixonado. Uma mulher que possa amá-lo e libertá-lo do terrível segredo que rege sua vida. Ao encontrar Kenna Brodie escondida na floresta, Bothan se encanta com sua beleza. Ameaçada de morte pelo tio, Kenna precisa de ajuda tanto quanto Bothan. Juntos, precisarão unir forças para enfrentar e combater o terrível mal que os persegue!

 

 

 

 

Escócia, 1509, Fins de primavera.

Chuva. Ele odiava a chuva. E chovia tanto na Escócia. Bothan MacNachton resmungou ao perceber que a água da chuva tinha encontrado um modo de penetrar em suas roupas e molhar as suas costas deixando-as ensopadas. Já estava acostumado com as tempestades que caiam regularmente naquela época do ano, mesmo assim preferia o tempo mais ameno. Não aquele de sol a pino, mas o meio úmido, meio seco. Ele podia responsabilizar sua querida mãe por essa implicância com a chuva. Todos sabem que gatos odeiam tomar banho. Não que sua mãe não fosse humana, mas não havia dúvidas de que o clã dos Callan tinha algumas peculiaridades que lembravam a dos gatos. Era por causa do sangue de sua mãe que Bothan tivera a chance de sair do mundo sombrio em que o pai dele era obrigado a ficar. Mesmo que essas suas escapadas fossem por curtos espaços de tempo, não eram apenas bem-vindas, mas vitais para ele e para outros de seu clã. Viu-se diante de uma descida íngreme. Desmontou, segurou firme seu cavalo e foi puxando Moonracer pelas rédeas, olhando por onde pisava. A chuva tinha deixado o caminho cheio de pedregulhos escorregadio e perigoso. Uma pisada errada e cavalo e cavaleiro podiam escorregar e quebrarem a perna. Sob tais condições, decidiu que seria melhor ir desmontado. Apesar de apreciar uma boa aventura, sir Bothan não gostava de enfrentar riscos inúteis. Era sensato, não um louco.

Embora ele e seu povo pouco saíssem de Cabrun, o refúgio dos MacNachton, Bothan sabia que naquele trecho da colina havia cavernas onde poderia encontrar abrigo até que a chuva passasse. Talvez fosse melhor pernoitar ali. Seria bobagem continuar se arriscando a pegar uma doença devido ao excesso de umidade.

Um cheiro estranho lhe chamou a atenção e o fez parar. Bothan respirou profunda e vagarosamente na esperança de descobrir se estava caminhando em direção a um perigo. Os MacNachton possuíam um extraordinário olfato.

Era um cheiro feminino, ele concluiu, e relaxou um pouco, apesar de que tinha crescido ao lado de mulheres que podiam ser mais perigosas que a maioria dos homens.

Aspirou mais uma vez e pressentiu que a mulher que se encontrava por perto não pertencia à raça dele. Não podia sentir qualquer traço do sangue de um MacNachton ou Callan. Retomando a descida, decidiu que assumiria o risco de ver-se diante de uma estranha. O cheiro de lenha queimada prometia uma fogueira para aquecê-lo, e a tentação era grande demais para que ele lhe desse as costas.

Com a mão junto à espada como sinal de alerta ao estranho e prontidão para a defesa, Bothan se aproximou da caverna. Uma égua negra como a noite estava amarrada à entrada. Ao entrar, não ficou surpreso em encontrar uma mulher sentada junto ao fogo. No entanto, a beleza da jovem o surpreendeu. Jamais se sentira atraído tão rapidamente por qualquer outra mulher. Seu coração disparou e sua respiração ficou repentinamente difícil. Ela, no entanto, não pareceu estar abalada com a chegada do desconhecido. Abriu um sorriso de boas-vindas como se o estivesse esperando, apesar de que Bothan sabia não ter feito ruído algum ao se aproximar da caverna.

Deu um passo para dentro da caverna e ficou parado por um instante como se esperasse que a água de sua roupa e o pêlo de Moonracer parasse de pingar. Ele e o animal estavam ensopados.

Observou a mulher, tentando compreender a razão de a jovem impressioná-lo daquela maneira. Já tinha dormido com mulheres mais bonitas antes, no entanto o rosto desta estranha o atraía quase como um feitiço. A beleza etérea era difícil de ser descrita. Ela tinha um rosto em forma de coração com olhos verdes enormes e uma boca carnuda. O nariz era pequeno e perfeito, a pele clara e o pescoço longo e elegante. No olhar, o tom verde se misturava com o tom avermelhado das brasas. Parecia pequenina e magra, apesar de que a manta que cobria o seu corpo lhe escondia as curvas femininas.

Quando ela ergueu um olhar que escondia uma pergunta, Bothan percebeu que estivera silencioso por um bom tempo. Cumprimentou-a, então.

— Seu criado, senhora. Sou sir Bothan, um viajante que apenas busca um refúgio da chuva.

Kenna Brodie entreabriu os lábios e sorriu enquanto lutava para não demonstrar surpresa alguma. Sabia a que clã aquele homem pertencia. Escutara muitos comentários sobre os MacNachton nos últimos anos, mas ninguém lhe dissera como eles eram tão bonitos. Sir Bothan era muito alto, quase magro demais, e bastante moreno. Havia um tom dourado em sua pele, bronzeado que era realçado pela fogueira. Em seu rosto havia linhas marcantes que lembravam às de um predador. Mesmo que estivesse com os olhos quase que cerrados por seus cílios longos e negros, Kenna notava os reflexos que lembravam por demais o colorido das chamas. Os lábios eram bem delineados. Ela sentiu um inesperado desejo de beijar e ser beijada por aquele homem que certamente era perigoso. Estremeceu confusa diante dessa atração inesperada. Sabia que Bothan podia matá-la em um segundo e que ele não dera o seu nome completo como se estivesse evitando revelar que pertencia ao clã dos temidos MacNachton.

— Estou feliz por contar com sua companhia, sir Bothan — ela murmurou em voz suave. — Venha e aqueça-se junto ao fogo. Sou lady Kenna Brodie de Bantulach.

— É um imenso prazer conhecê-la, milady. — Bothan levou seu cavalo para dentro da caverna para que o animal também se aquecesse. — Está muito longe de sua terra, lady Kenna. Bantulach fica ao norte daqui.

— A três dias ao norte e um dia a oeste, para sermos mais precisos. Uma viagem difícil seguindo por trilhas sempre ruins.

— E mesmo assim milady viaja sozinha? Ou seus acompanhantes foram vítimas de acidentes nesse caminho tão árduo?

— Sim, viajo sozinha, sir Bothan. Os poucos acompanhantes que poderia ter escolhido para seguirem viagem comigo ficaram em Bantulach. — Ela cortou um pedaço da carne que assava na fogueira e o estendeu para ele. — Coma, senhor — Kenna insistiu ao vê-lo hesitar. — Preparei tudo o que restava de meus suprimentos. Temi arriscar a minha saúde se tentasse carregar a carne por mais tempo.

Em silêncio, Bothan aceitou o alimento e o cheirou com precaução antes de dar uma mordida. Um veneno podia não matá-lo, mas seria capaz de fazê-lo desejar que isso acontecesse. Poderia também lhe provocar tal fraqueza que ele se tornaria uma vítima fácil de ser dominada. Sendo metade Callan, metade MacNachton, não tinha certeza absoluta de até que ponto ia sua vulnerabilidade a venenos, e felizmente até agora nunca surgira nenhum modo seguro de testar isso. Tinha conseguido identificar venenos pelo cheiro e gosto e naquele exato momento não sentia nem um nem outro naquele pedaço de carne assada.

Evidente que alguém podia ter descoberto um novo veneno dos mais fatais, mesmo assim continuou comendo, sem querer revelar qualquer medo. Estes eram tempos cada vez mais perigosos para o seu clã. Havia rumores de que o cerco contra eles estava se tornando cada vez mais fechado. Surgiam em número cada vez maior homens dispostos a caçá-los como se fossem animais e os grupos de inimigos pareciam tender a se unificarem nessa caçada impiedosa. Contudo ele não ouvira qualquer menção de mulheres fazendo parte desses grupos, mas isso não era de todo impossível. Melhor manter-se atento, ele decidiu.

— Por que está viajando sozinha, milady?

—Não foi por minha escolha. — Kenna lhe ofereceu uma maçã e ele aceitou a fruta. — Fui banida de Bantulach.

Bothan observou a jovem enquanto mordia a maçã. Era difícil pensar em qualquer crime que esta mulher delicada pudesse ter cometido a ponto de ser obrigada a deixar seu povo. O ar de inocência podia ser enganador, mas Bothan tinha certeza de que a moça não fingia. Agora que estavam bem próximos um do outro, no entanto, ele notou algo de estranho em seu olhar, algo que não notara antes e nem conseguia definir. Era possível que tivesse sido a superstição a causa de seu exílio forçado.

—E porque está viajando sozinho, sir Bothan?—ela perguntou inesperadamente.

— Não precisava de uma escolta para o que tinha a fazer, milady. Um homem não precisa de um exército quando decide encontrar uma esposa.

Kenna estranhou o sentimento que a invadiu ao ouvir a resposta do viajante. Por que deveria se importar se o homem estava pretendendo se casar? Em seus sonhos, Bothan tinha sido apenas uma sombra e um mistério, um homem com o coração de um lobo e uma alma ancestral negra. Ele não era um homem por quem uma mulher deveria se interessar. Quem sabe ela apenas sentira pena da pobre mulher que terminasse como esposa dele. Por um breve momento, considerou se teria qualquer chance de executar a missão que o tio lhe determinara. Sentiu-se imediatamente horrorizada consigo mesma por sequer ter pensado em matar este homem, ou qualquer homem, e depois mutilar o seu corpo. Foi tomada pela vergonha.

Seu tio tinha de ser louco para pedir que lhe levasse a mão, a cabeça e o coração de um MacNachton. Apesar de desconfiar das maldades que o tio deveria ser capaz de cometer, ela própria jamais faria algo assim tão horrível. Já ouvira falar que esses homens demônios se alimentavam das almas dos cristãos; entretanto, ela sabia também que jamais mataria alguém para recuperar das mãos gananciosas de seu tio aquilo que lhe fora tirado.

Desta forma, esta decisão a deixava precisamente sem nada. Incerta sobre o que fazer, Kenna suspirou pesadamente. Seus sonhos a haviam alertado de suas perdas, de seu futuro solitário, mas tentara ignorar esses avisos. Havia modos de interpretar esses sonhos, mas ela não tinha certeza se lhe ofereciam uma trilha fácil e um futuro promissor. De alguma forma seu destino estava atrelado ao deste homem. Sir Bothan MacNachton. Era por isso que os sonhos lhe haviam indicado esta caverna e este encontro. Ela apenas gostaria que os sonhos lhe tivessem revelado as razões para isso. Havia um poder neste homem que poderia ajudá-la, mas também destruí-la.

— O senhor encontrou uma noiva? Se for uma jovem de algum lugarejo perto de Bantulach, talvez eu saiba algo sobre ela.

— Não, não encontrei nenhuma noiva, milady — ele admitiu com relutância.

— Oh, quem sabe da próxima vez, senhor.

— Quem sabe. — Bothan bebeu água de uma garrafa coberta com forro de couro e então a ofereceu a Kenna, sentindo-se satisfeito porque a jovem não hesitou em aceitar e começar a beber.

— Tenho algumas exigências muito especiais — ele murmurou. Naturalmente, ela pensou. Todos os homens têm exigências especiais quando procuram uma esposa. No entanto, ninguém sequer pergunta se as mulheres também têm as suas. Elas simplesmente têm de aceitar o homem que lhe escolhem para marido. Essa era outra das grandes injustiças que as mulheres tinham de sofrer, Kenna pensou.

— Não havia nenhum homem para impedir que milady fosse banida de Bantulach? — Bothan perguntou e quase sorriu ao notar o olhar atravessado que ela lhe dirigiu como se estivesse irritada com a implicação de que não conseguiria se defender por si mesma. Ele suspeitava que parte dessa irritação devia-se ao fato de que viviam em um mundo governado por homens.

— Não, não havia ninguém — ela finalmente respondeu. Logo se corrigiu, porém. — Isso pode não ser a verdade. Havia quem quisesse falar por mim, mas não permiti que o fizesse. Isso colocaria ele e a sua família em perigo. Todos temem o homem que agora se diz chefe de nosso clã ou os boatos que espalhou sobre mim. Neste momento, não são poucos os que me temem por outras razões.

— E quem é esse homem que agora se proclama o mais poderoso?

— Meu tio.

— Entendo. E que boatos foram esses que ele espalhou sobre milady e que gerou todo esse medo do povo?

Kenna hesitou em responder a pergunta. Seu dom já lhe havia causado muitos problemas. Tinha aprendido desde muito nova que não era sábio falar sobre isso, mas isso era impossível de esconder daqueles que viviam muito perto de sua família. Os mais próximos haviam presenciado as capacidades especiais que ela tinha e muitos se deixaram abalar por suas superstições. Claro que tinha sido seu tio o responsável pelos boatos maldosos. Alimentara o povo de mentiras a ponto de ela mesma começar a temer seu dom.

Mas o homem que agora estava à sua frente também possuía seus próprios segredos, ela lembrou-se. Os sonhos haviam deixado isso muito claro. Este homem tinha segredos que tomavam os dela inocentes como os de uma criança. Kenna também estava intensamente curiosa sobre como Bothan reagiria ao saber do dom que ela possuía e sobre todas as acusações que seu tio fizera contra ela.

— Todos temem que eu seja uma bruxa, uma mulher do diabo e uma feiticeira — ela murmurou baixinho e se surpreendeu ao ver que a única reação de Bothan havia sido apenas arquear levemente uma de suas sobrancelhas.

— E milady é isso tudo?

— Não, mas tenho sonhos estranhos.

— A maioria de nós também os tem. — Ele abriu um leve sorriso. — Sonhos de predições, não são?

— De certa forma, apesar de que uma verdadeira vidente saberia como interpretá-los. Meus sonhos tendem a me deixar com mais perguntas do que com respostas.

Bothan voltou a sorrir.

— Isso acontece com todas as videntes, mas muitas delas são tão arrogantes que pensam conhecer todas as respostas. Pelo que sei sobre essas coisas, pouco do previsto acontece. Nunca as predições são precisas. Tenho um primo que tem sonhos desse tipo e freqüentemente define o seu dom como uma maldição porque somente partes dos sonhos se tornam realidade.

— E exatamente o que acontece com os meus sonhos. E em geral a verdade vem escondida em pequenos sinais facilmente interpretados erroneamente. — Kenna suspirou e sacudiu a cabeça. — É difícil escolher, especialmente quando só conto com avisos assustadores do que pode acontecer comigo e com os outros, caso eu venha a fazer escolhas erradas. Quase sempre termino cheia de dúvidas. Minha mãe sempre chamou de dom o que considero um verdadeiro tormento e maldição a maior parte do tempo. A única coisa que me agrada é que esses sonhos não são muito freqüentes. Bothan podia entender esse sentimento da jovem. Também ele preferia não ser assombrado por sonhos que traziam avisos, mas nenhuma pista de como evitar os problemas por haver tirado conclusões erradas. Não desejava mais esta maldição em sua vida. Podia sentir que o dom tornara Kenna uma pessoa solitária, como se não conseguisse fazer parte de seu próprio povo. Pelo menos era exatamente assim que ele próprio se sentia, por outras razões, naturalmente.

E a jovem era ainda mais solitária do que ele, porque afinal tinha sido banida de seu clã. E isso fazia com que ele sentisse uma certa simpatia por Kenna. Ele, pelo menos, podia contar com o povo de seu pai e o de sua mãe, não precisando esconder o que lhe acontecia.

Kenna subitamente pareceu estar irritada.

— Não precisa ter pena de mim, senhor — ela murmurou, tentando não ser tentada a aceitar o conforto que ele lhe oferecia.

— Não sinto pena, milady, apenas simpatia.

— Não sei se vejo diferença entre pena e simpatia. — Kenna sabia que aquele clima solidário que se formara entre os dois terminaria no exato momento em que ela lhe revelasse a verdade toda.

Bothan pareceu ignorar o protesto da jovem.

— Então seu tio usou o seu dom especial contra a senhorita, despertando o medo naqueles que a rodeavam e tirando tudo o que lhe pertencia. E isso o que aconteceu?

— Sim, o senhor se expressou bem. Meu clã não teve certeza se queria ser comandado por uma mulher e meu tio lhes aumentou as razões para quererem que fosse ele o novo chefe e senhor das terras. Havia testemunhas das últimas palavras pronunciadas por meu pai antes de morrer, aquelas que me faziam sua herdeira, mas essas pessoas logo se acovardaram diante de meu tio. Percebi que aqueles que me apoiassem poderiam correr risco de vida. Um homem morreu, e apesar de que pareceu ser vítima de um acidente, sua morte aconteceu logo após ele ter se pronunciado a meu favor.

Temo que meu tio tenha ordenado que o matasse. E por não querer colocar mais vidas em risco, assim decidi aceitar o exílio.

— Mas por que seu tio lhe permitiu continuar vivendo? — Bothan franziu a testa. —Não teria sido mais fácil para ele livrar-se definitivamente de milady?

— Mas não foi isso o que ele fez?

Bothan analisou a resposta de Kenna e tinha de concordar com e1a. Ela era uma jovem de físico frágil. Não importava que fosse inteligente, corajosa e vidente. Não conseguiria enfrentar qualquer homem que a atacasse. Tinha uma faca, mas isso era de pouca 'alia. O tio tinha certeza de que ela morreria na viagem e conseguia isso sem sujar as mãos de sangue. — Então ele a baniu de sua terra e de seu direito de herdeira. — Sim, mas disse ao meu povo que estava me enviando em ima jornada que provaria se eu tinha ou não capacidade de ser a futura chefe de nosso clã. — E o que ele determinou que milady fizesse nessa missão? — Voltar a Bantulach com a mão, cabeça e o coração de um MacNachton.

 

Kenna nem percebeu o homem se mover. Surpresa demais para falar, ficou absolutamente imóvel, fascinada diante da fúria naqueles irresistíveis olhos verdes salpicados de faíscas douradas e sentindo a pressão da ponta da adaga de sir Bothan MacNachton em seu pescoço. Mesmo que o medo lhe tolhesse os movimentos, por alguns breves momentos, o que sentiu foi uma forte atração por aquele homem irresistível. Belo, forte, másculo. Com traços de um poderoso felino, quem sabe. E dentes imaculadamente brancos, enormes, pontudos como os de uma fera. Ele tinha caninos como os de um lobo? Kenna arregalou os olhos. Estaria ela tomada por tal pavor que começara a imaginar o que não existia?

Procurou afastar o medo sabendo que este não era provocado pela lâmina, mas pela figura de sir Bothan. Não sentia repulsa por ele, mas uma atração extraordinária.

Como poderia ela pensar em matar um espécime tão magnífico? Seria sir Bothan humano ou fera?

Talvez tivesse errado na forma de lhe contar sobre a exigência de seu tio para que ela voltasse a fazer parte do clã. Poderia ter começado afirmando que sequer pensara em executar um crime tão bárbaro. Por que mataria simplesmente por matar? E o interessante é que sir Bothan a ameaçava com uma adaga, mas não a matara. Isso poderia significar que não tinha qualquer intenção de usar a arma e, quem sabe, escutaria o que ela tinha a dizer em sua defesa.

— Não tenho arma alguma — ela disse e sua voz soou firme como se não tivesse sequer uma ponta de medo.

Bothan sabia perfeitamente que Kenna não escondia qualquer arma, mesmo assim continuou pressionando de leve a lâmina contra o pescoço da jovem.

— Planeja me matar enquanto eu estiver dormindo, milady? — ele perguntou.

— Então o senhor é um MacNachton, não é?

— Penso que sabia deste fato desde o começo, milady. Afinal, não é uma vidente?

— Oh, sim. Soube a que clã pertencia desde o momento em que apareceu à entrada da caverna, meu senhor.

— Claro... Graças aos seus sonhos? Foi isso? Por acaso eu lhe apareci em suas visões?

— Sim, sonhei com sua vinda. Não tenho, porém, qualquer intenção de obedecer ao meu tio e executá-lo. Na verdade, mesmo que eu quisesse, duvido que, frágil como sou, conseguisse dominar um homem tão forte como o senhor.

— Se não pretendia fazer o que lhe garantiria voltar para Bantulach e clamar pelo que é seu por direito de herança, qual era a sua intenção?

Kenna suspirou profundamente.

—Apenas queria encontrar um lugar seguro para viver. E talvez passar o resto de minha vida patética tentando encontrar um modo de tirar o poder de meu tio sem grande derramamento de sangue.

Bothan olhou para as profundezas daquele olhar verde como esmeraldas, procurando se convencer de que ela dizia a verdade. Podia perceber o medo da jovem por estar sendo ameaçada por uma adaga que pressionava seu pescoço. No entanto, ele não via qualquer sinal de simulação. A voz de Kenna não estava trêmula, mas apenas pesada com resignação e tristeza.

Decidiu que ela dizia a verdade, mesmo assim hesitava em largar a adaga. Se seu julgamento fosse errado, isso poderia lhe custar a vida.

Bobagem, ele pensou. A pobre moça jamais teria qualquer chance de pegá-lo desprevenido.

Talvez Kenna Brodie soubesse os segredos dos MacNachton, ele lembrou a si mesmo procurando não abaixar a guarda depressa demais. Duvidava que a jovem soubesse tudo sobre ele, mesmo assim, levada pela superstição, ela poderia reagir de forma inesperada. E afinal ela só tinha a ganhar com sua morte ou a de qualquer membro de seu clã. Os MacNachton corriam risco, essa era a realidade desses tempos difíceis.

Olhou-a atentamente e não viu qualquer sinal de mentira. Uma certeza o dominou. Kenna jamais seria uma criminosa.

Afastou a faca e soltou a jovem.

— A senhorita só tem a perder não fazendo o que seu tio lhe ordenou — ele murmurou, ainda mantendo o olhar fixo no rosto da jovem para notar qualquer sinal de que ela mentia. — Nem mesmo vai se arriscar? Isso me surpreende. Quem sabe conseguiria uma vitória inesperada.

— Está enganado, sir Bothan. Eu perderia muito mais do que perdi se obedecesse ao meu tio. Não vou recuperar Bantulach derramando sangue de um homem inocente. Fazendo isso, estaria me assemelhando ao meu tio. Na verdade, acredito que ele tenha matado meu pai.

Bothan estava certo de que a mágoa que via surgir no olhar de Kenna era verdadeira. Assim como também acreditava nas suspeitas que a jovem tinha em relação à morte violenta do pai. Um homem que decide roubar a sobrinha e mandá-la para a morte seria bem capaz de cometer um crime para assumir o poder. Provavelmente matara o irmão. Mas algo o deixava curioso.

—Por que seu tio escolheu um membro do clã dos MacNachton para ser morto?

— Porque ele acredita que os membros de seu clã sejam demônios que se alimentam das almas dos cristãos, nada mais do que bestas disfarçadas de homens. Espalhou por nossa cidade histórias arrepiantes sobre o seu povo como massacres contra vilarejos indefesos.

Ela sabia mais do contavam esses rumores. Bothan podia ver isso nos belos olhos de Kenna.

— E o que mais ele disse sobre o meu povo?

— Contou histórias sobre demônios que atacaram vilas à noite, porque temem a luz do sol. E que se deliciaram com o sangue de virgens e recém-nascidos. E o que em geral se fala sobre aqueles que de alguma forma agem de maneiras diferentes, ou que deixam as pessoas comuns inquietas. Não penso que o senhor esteja surpreso com esses rumores a que me refiro.

— Não me contou nada de novo, milady. Mesmo assim, tenho certeza que não está me contando tudo o que sabe sobre o meu clã, fora o que seu tio andou falando.

— Apenas o que vi em meus sonhos — Kenna murmurou, incerta quanto à reação que poderia esperar de Bothan. A voz dele soava fria e aguda.

— E o que viu em seus sonhos, milady?

— Vi o senhor. Mais de uma vez. — A voz de Kenna soava agora como um murmúrio. — Vi que nos encontraríamos aqui nesta caverna.

— O que mais?

— Nada estava muito nítido... Apenas sombras e mistérios. O senhor me apareceu como um homem dono de um coração de lobo e uma alma sombria demais... Ah, e com uma fome avassaladora e segredos... Muitos segredos.

Bothan sentou-se lentamente sobre uma pedra nas proximidades da fogueira. Os sonhos da jovem haviam mostrado uma imagem perturbadora dele. E não podia argumentar contra essa imagem, porque Kenna saberia que ele estaria mentindo.

Sentiu curiosidade em descobrir de onde o tio da jovem havia tirado aqueles rumores. Seria ele um daqueles caçadores de que ouvira falar, aqueles que queriam dizimar os MacNachton?

Levantou-se, estendeu a mão para ajudá-la a se levantar também. Ficaram de pé, um ao lado do outro, sem se tocarem. Ela tinha uma baixa estatura e mal chegava ao peito dele. Havia pouca chance de uma mulher, assim frágil, poder fazer algum mal a ele, mesmo assim manteve-se alerta. Também acreditava que ela não tentaria matá-lo.

—Por que seu tio escolheu o meu clã como presa? Tais rumores não se referem apenas aos MacNachton, mas a muitas outras tribos.

— Creio que meu tio tinha certeza de que se eu atentasse contra alguém de seu clã, seria morta imediatamente. O objetivo dele era acabar comigo. Se não foi esse o motivo, qual outro poderia ser?

— De fato livrar-se da senhorita tornaria a vida de seu tio bem mais fácil, não há dúvida quanto a isso. Mesmo assim, não responde a minha pergunta sobre a razão que ele nos escolheu. Falava freqüentemente de nós?

Kenna olhou para o homem que possivelmente a considerava uma inimiga e isso a entristeceu. Tentou afastar esses sentimentos e procurou se lembrar de quando o tio começara a falar dos MacNachton. Imediatamente lhe veio à mente a imagem do tio falando com fascinação daqueles demônios que invadiam vilas indefesas para suprir sua necessidade de saciar a sede de sangue. Lembrou-se também que seu pai se desgostara com a obsessão do irmão com um clã que vivia tão distante de Bantulach e assim não representava ameaça alguma.

— Agora que estou pensando melhor, meu tio demonstrava um grande interesse em seu clã, sir Bothan. Isso não faz sentido, porque não creio que ele alguma vez tenha conhecido alguém de seu povo.

Bothan ignorou o rubor que cobria o rosto de Kenna enquanto ele apalpava o seu delicado corpo em busca de armas escondidas. Deixou-a junto ao fogo e foi examinar os pertences da jovem. Tudo o que ela carregava era um pequeno arco, flechas e uma adaga. Colocando tais armas de volta à sacola, lhe indicou que voltasse a se sentar, e ele próprio acomodou-se junto ao fogo.

— Por que seu pai não escolheu o irmão como seu herdeiro? — ele perguntou.

— Meu pai era um homem pacífico e não apreciava a forma de agir de meu tio. Creio que não confiava no irmão. Nunca comentou comigo sobre isso. E apesar de eu ser uma mulher, meu pai decidiu que Bantulach seria minha por direito de nascimento. Na verdade, ele queria que eu me casasse logo que possível e tivesse um homem forte ao meu lado. Meu tio tornou isso impossível. Penso que começou a espalhar histórias sobre o meu dom logo que papai adoeceu.

— E tudo saiu como seu tio queria, não é?

— Oh, sim, certamente saiu. — Ela dirigiu o olhar para a fogueira enquanto tentava afastar a onda de auto piedade que a invadiu.

Até bem pouco tempo Kenna não acreditaria que lhe pudesse acontecer algo tão chocante como a morte do pai e sua subseqüente expulsão de Bantulach. No entanto, aquele homem estranho lhe colocara uma adaga encostada em seu pescoço. Seus problemas anteriores pareciam agora insignificantes. Sir Bothan não estava convencido de que ela não tentaria algo contra ele e tencionasse mutilar o seu corpo. Não podia culpá-lo por pensar assim. As pessoas cometiam crimes por razões muito menos expressivas que as dela.

Agira de forma precipitada. Por que não ganhara a confiança do lorde antes de atrevidamente lhe falar sobre a ordem que recebera do tio? Se tivesse sido mais esperta, talvez convencesse sir Bothan a ajudá-la recuperar o que era dela por direito. E agora, o que poderia esperar desse homem com olhar de um lobo e a rapidez de um felino?

Tinha arruinado suas chances. Enquanto esperava pelo homem com quem sonhara, tudo lhe parecera indicar que ele seria um bom aliado. Chegara a considerar que seus sonhos a estavam aproximando desse estranho por essa razão.

Infelizmente, ao revelar a verdade tão bruscamente sem antes mostrar sua índole honesta e sensível, terminara por fazê-la perder a confiança desse homem, já por natureza, desconfiado. Provavelmente ele deixaria a caverna tão logo a chuva parasse e a abandonaria ao seu destino sombrio. Disso não tinha dúvidas. Era o que qualquer homem normal faria. Mais uma vez seus sonhos a levavam a tirar conclusões erradas. Desejou que seu dom lhe fosse favorável e não um tormento.

Bothan observava Kenna enquanto ela parecia perdida em pensamentos. Ou a jovem sabia disfarçar bem seus planos ou não tinha idéia como suas expressões eram reveladoras. Ele podia ler os pensamentos dela simplesmente observando cada expressão que aparecia no lindo rosto. Naquele exato momento parecia uma jovem infeliz, não porque não tivera chance de executar a missão que o tio lhe determinara. Ela deixara-se invadir pela certeza de um futuro sem perspectivas, avaliava as suas perdas. Era uma mulher frágil, sem bens. Bothan chegava a considerar como razoável que ela mudasse de idéia e decidisse arriscar-se a matar um MacNachton e assim poder voltar a Bantulach. Seria uma questão de sobrevivência. Isso exigia que ele redobrasse sua atenção.

Kenna não era a maior ameaça que ele enfrentava. O tio da jovem deveria estar particularmente interessado na morte de um MacNachton. Claro que enviá-la em uma missão absurda como aquela era uma clara demonstração de que queria se livrar da sobrinha. Afinal, sempre haveria o risco de que ela voltasse a Bantulach e reclamasse seus direitos. Fazê-la enfrentar alguém que os rumores chamavam de demônio a levariam à morte, naturalmente. Mesmo assim, o tio deveria estar querendo atingir seu clã, Bothan concluiu.

O único modo de descobrir a verdade seria encontrar-se com o homem. Era uma idéia ao mesmo tempo inteligente e completamente insana. Ir a Bantulach representava invadir as terras de um homem que fora capaz de matar o próprio irmão e enviado a sobrinha para a morte, usando os MacNachton como arma. Tal homem merecia morrer, Bothan decidiu.

A possibilidade de o tio de Kenna saber toda a verdade sobre os MacNachton e que isso o levara a desejar caçá-los, tornava a morte dele mais pessoal.

O problema era como convencer a jovem voltar para um lugar onde o seu próprio povo a banira e o tio queria vê-la morta. E, se a convencesse voltar para Bantulach, concordaria que viajassem juntos? Ele poderia lhe representar um perigo grande demais, e também despertaria em Kenna dúvidas da razão que levava um MacNachton querer acompanhar uma mulher que tinha sido enviada com a missão de acabar com ele. Mais do que isso: levar pedaços de seu corpo como troféus.

De repente Bothan lembrou-se de que o pai de Kenna lhe dissera para que se casasse com um homem forte que asseguraria a ela o direito de herdeira. Era comum uma filha seguir a orientação do pai, mas a verdade é que o marido terminava sendo o verdadeiro herdeiro, pois seria quem governaria todos os bens.

Subitamente a possibilidade de desposar Kenna lhe pareceu uma opção interessante. Afinal, ele andava em busca de uma esposa e era um homem forte, preenchendo assim os desejos do falecido pai da jovem.

O que ele faria como governante de Bantulach se Kenna o aceitasse como marido? Apesar de ainda não confiar totalmente nela, tudo indicava que esse encontro parecia obra do destino. O fato de Kenna estar voltando a Bantulach acompanhada do marido, um temido e odiado MacNachton, não deixava de ter um gostinho de vitória. Além de que o casamento colocaria Kenna em sua cama. Apesar de tudo, ele sentia uma forte atração sexual pela jovem. Talvez o toque de perigo tornasse essa atração ainda mais intensa.

— Então em Bantulach não há um homem com coragem suficiente para se casar com milady? — ele perguntou.

— Há alguns poucos, mas apenas um deles poderia me interessar. Poderia chamá-lo de amigo. Quanto aos outros... Bem, temo que estejam mais interessados em minha herança.

— E seu pai desejaria que se casasse com um homem forte que lhe garantiria mantê-la no poder?

— Oh, foi esse o desejo de meu moribundo pai. E suas palavras foram espalhadas rapidamente por Bantulach. Se não fosse pelos meus estranhos sonhos, meu tio não teria convencido a tantos de que eu era uma bruxa, e eu teria tido a chance de escolher entre os meus pretendentes.

Kenna soltou um profundo suspiro de lamentação.

— No entanto, talvez tenha sido melhor assim — ela prosseguiu. — Se um homem não consegue manter-se firme e teme uma mulher que chamam de bruxa, isto significa que não é um homem realmente forte, como o desejado por meu pai em seu leito de morte. Se um homem teme a própria mulher, como enfrentará qualquer ameaça que apareça? O senhor não concorda comigo?

— Mesmo um homem capaz de enfrentar um exército inimigo sem sentir tremor algum pode sentir medo de alguma coisa que ele não entende, algo que possa atingir à sua alma imortal — Bothan murmurou baixinho. —Alguma coisa que o diabo envia pode levar o mais corajoso dos homens a fugir como um covarde. Afinal, é mágica ou um truque do diabo que não pode ser derrotado por uma espada, não é?

Kenna apenas concordou, abrindo um leve sorriso.

— O senhor também gostaria de me ver somente a distância, sir Bothan?

— Eu, um MacNachton, um demônio talvez, ter medo de uma bruxa, especialmente uma bela como milady? Nunca, senhorita. Além do mais, apesar de que certamente acredito que existe o mal no mundo, não acredito em bruxas.

— Verdade? — Kenna sorriu novamente.

— Oh, sim. E sou um homem forte, treinado para ser um guerreiro.

— O senhor não parece mesmo acreditar em bruxas e de fato é bastante forte.

Bothan escondeu um sorriso. A jovem parecia adoravelmente confusa com o rumo da conversa.

— Então, nos casaremos e juntos voltaremos a Bantulach.

 

O quê? Um olhar espantado não era a resposta mais agradável para a única proposta de casamento que ele fizera na vida, Bothan pensou, e mesmo assim se esforçou para não rir.

— Eu disse que a desposarei e iremos juntos a Bantulach, senhorita. — Pressionar a ponta de uma adaga em meu pescoço é sua melhor idéia de arranjar uma noiva? O senhor acaba de me atacar. Nem sei como não me cortou o pescoço. — Seja justa, milady. Acabou de me dizer que tinha sido enviada para matar um MacNachton e levar partes do corpo ao seu tio. Acontece que sou um MacNachton. Bem, não de sangue puro, já que nasci filho de uma mulher do clã dos Callan. — Bothan franziu a testa, procurando se lembrar bem do episódio que acontecera havia pouco.—E eu não pressionei a adaga, apenas a ameacei com ela. Marquei o seu pescoço por acaso?

— Não chegou a tanto, milorde. Mesmo assim temi pela minha vida.

Kenna se esforçou para se acalmar. Sir Bothan tinha razão. Praticamente instigara aquele ataque com o uso das palavras erradas. Ele poderia tê-la matado no ato, e poucos protestariam contra tal reação. Ninguém também estranharia se a considerasse agora sua inimiga.

Mas era uma idéia maluca essa de casamento. Muitos poderiam chamá-lo de louco caso soubessem que ele pretendia se unir a uma mulher que lhe dissera ter sido enviada para levar sua mão, coração e cabeça para Bantulach como troféus. Mesmo que ela não fosse uma ameaça a este homem, Kenna suspeitava que o tio dela certamente o fosse. E sir Bothan devia estar consciente disso. O que tornava um casamento entre os dois e a volta para Bantulach uma total tolice, ou mais precisamente, uma loucura.

O triste, e de alguma forma alarmante, é que ao ouvir o pedido de casamento ela sentira um irresistível desejo de dizer sim. Em voz clara e alta. Ele era um homem extremamente bonito que qualquer mulher aceitaria em casamento com entusiasmo, mas também a havia ameaçado com a adaga, atacando-a sem que ela sequer pestanejasse. Certamente um homem normal não teria aquela rapidez de movimentos. Bastava olhar sir Bothan para saber que algo o diferenciava dos humanos. Alguma coisa nele fazia lembrar um felino, e isso, o tornava perigoso e até um pouco assustador. Mesmo assim, Kenna sentia-se atraída por ele. Desta forma, não era apenas a sanidade mental de sir Bothan que devia ser questionada.

— O senhor certamente encontrará uma noiva com facilidade, logo não pode ser esta a razão em desejar o nosso casamento. O fato de o meu tio querer que eu lhe entregue partes do corpo de um MacNachton como troféu deveria bastar para fazer o senhor desejar ir a qualquer lugar menos Bantulach.

—Penso que seu tio represente um perigo não apenas para mim, mas também para o meu clã. Isso me leva a desejar ir até as suas terras e descobrir a verdade.

— O que o senhor descobrirá é que meu tio Kelvyn deseja ver todos os MacNachton em pedaços, mortos, extintos da terra. As histórias sobre o seu clã tornam os boatos que ele espalhou sobre mim, meros contos para ajudar as crianças a pegarem no sono.

— Não pensei que seria recebido de braços abertos em Bantulach. Como disse, o homem é uma ameaça a todo o meu clã. Não posso ignorar este fato. E ele também a enviou nessa missão sangrenta. Sorte sua que tenha sido eu que milady tenha encontrado em seu caminho. Por que seu tio certamente desejaria que um MacNachton a matasse. Assim, ele se veria livre da senhorita e ao mesmo tempo nos lançaria a culpa por sua morte. — Bothan fez uma pausa para considerar o que havia dito. — Não, preciso me encontrar com seu tio para descobrir se nada há além do que mentiras e a esperança de se livrar de um problema ou se representa uma primeira tentativa de atacar o meu clã.

— Se for esse o desejo de meu tio, ele escolheu mal a arma. Quem sou eu para representar um perigo contra um MacNachton?

— Oh, não se diminua, milady. Uma mulher, por vezes, é a mais perigosa das armas.

Esse era um estranho elogio, mas Kenna sentiu-se subitamente satisfeita. Oh, também gostaria que ele a achasse bonita, porém se contentaria em ser vista como uma arma perigosa. Uma mulher pequena e magra como ela, jamais deveria ser vista como uma ameaça.

Afastou aquele pensamento sem sentido e começou a analisar 0 plano de sir Bothan. Percebeu que a primeira razão para não concordar com ele se referia à segurança dele. Quanto mais pensava sobre a escolha do tio de que um MacNachton fosse a vítima escolhida, mais se convencia de que Kelvyn Brodie temia e odiava esse clã, acreditando com certeza nos rumores que ouvira. A obsessão de Kelvyn contra os MacNachton vinha de longa data. Assim, ela concluía que além de o tio querer se apossar de tudo aquilo que pertencera ao irmão, bastando livrar-se da sobrinha, ele também planejava testar a força de um adversário que ele temia.

A cada minuto que passava Kenna se convencia mais de que o tio pensara em usar a morte dela pelas mãos de um MacNachton como um movimento contra o clã ou instigar os outros a atacar tão perigoso inimigo.

— O que significa esse seu estranho olhar?

— Que olhar? — Kenna procurou parecer confusa com a pergunta.

— Esse olhar de medo, aborrecimento e um toque de pavor. Um pouco surpresa pelo fato de Bothan conseguir ler seus pensamentos, Kenna decidiu ser completamente franca.

— Estava apenas imaginando o mal que poderia ter causado ao seu clã se eu tivesse sido morta pelo senhor. E pior que isso. Comecei a acreditar que meu tio tinha toda a intenção de usar minha morte contra os MacNachton.

— É assim que penso também.

— Mas por que ele quer destruir um clã que nenhum mal nos fez? O senhor por acaso conhece Kelvyn Brodie?

— Não, e tampouco ouvi falar algo sobre ele. Não acredito que alguém de meu clã o tenha prejudicado. Mas as lendas sobre a natureza estranha dos MacNachton datam de séculos. Sempre surgem fanáticos querendo nos dizimar.

— Oh, sir Bothan. Pode ser que estejamos enganados. Nem tenho provas de que meu tio seja o responsável pela morte de meu pai. Talvez simplesmente ele me considere uma bruxa e assim precisou me afastar da cidade. E quanto a mandar que eu matasse um MacNachton, quem sabe não tenha sido apenas uma brincadeira de mau gosto? Quem me imaginaria capaz de assassinar alguém? E ainda por cima, mutilar um cadáver? Nunca fui capaz nem de matar uma galinha e sou veementemente contra qualquer tipo de caça. Devo estar errada. Estou me deixando levar pelo rancor.

— Mas talvez esteja vendo as coisas como elas realmente são, mesmo que lhe fujam as razões para sir Kelvyn agir desta maneira com alguém do próprio sangue.

— Nada faz sentido a não ser que ele acredite de fato nos rumores contra o seu clã, sir Bothan. E que eu represente um perigo ao povo de Bantulach por minhas estranhezas.

— E eu espero saber as respostas para as dúvidas que nos perturbam. E isso só será possível se eu chegar a Bantulach como seu esposo. Sou um homem de ação. Não vou me contentar com suspeitas sem comprovação alguma.

Bothan tinha certeza de que muitos de seus amigos o considerariam um louco por estar propondo casamento a uma mulher que tinha sido enviada para lhe mutilar o corpo. No entanto, a idéia do casamento cada vez mais lhe parecia uma decisão acertada. Todos os seus instintos lhe diziam que tomasse aquela mulher como esposa.

Claro que a forte atração que sentia pela jovem estava pesando a favor da união. Imaginar aquele corpo tentador sob o seu, fez com que ele estremecesse. Procurou avaliar se não estava se deixando levar pelo desejo de possuir Kenna Brodie.

Na verdade, nunca se sentira tão cativado por uma mulher. Uma vez casados, ele satisfaria o forte desejo que agora o perturbava lauto. Além do mais, saíra em jornada em busca de uma esposa com um dote. Kenna era a real proprietária dos bens que haviam lido deixadas a ela pela morte do pai. Os bens tomados pelo tio, voltariam a ela e o clã MacNachton sairia beneficiado. E havia ainda uma outra vantagem nesse casamento. Seu clã teria outro lugar para ficar quando viajassem. Claro que Bantulach não seria um lugar totalmente seguro para os MacNachton, mas era melhor do que terem de se acomodar em cavernas como vinham fazendo.

— A senhorita não quer algum tempo para pensar em minha proposta de casamento?

— Ora, sir Bothan, não pensei que fosse uma proposta, mas um comunicado de que havida decidido me aceitar como esposa. Claro que levado pelo interesse em descobrir os planos de meu tio contra os MacNachton.

— Não acredita em seus encantos, milady?

— Quero lembrar ao senhor que não estamos flertando em um salão de baile. Nem pretendo seduzi-lo e creio que tampouco tenha a intenção de me fazer a corte.

— Não se esqueça que desci as montanhas com os planos de encontrar uma esposa. O destino me favoreceu e trouxe-me a esta caverna.

— E quer me fazer acreditai- que eu seja a mulher ideal que o senhor procura? Lembro-me que disse ter exigências especiais quanto a esposa que vier a escolher. Por acaso procurava uma bruxa, senhor?

Bothan caiu na risada. Kenna Brodie era espirituosa, além de bela. E tinha bens no momento confiscados pelo tio. Ora, ela certamente preenchia as suas exigências.

Precisava convencer Kenna a aceitá-lo como seu marido. No momento ela não parecia muito disposta a concordar com os planos dele, mas talvez fosse vencida pela persistência de um MacNachton. Não era de sua natureza desistir diante de obstáculos.

—As bruxas costumam não ser belas como a senhorita—disse Bothan galantemente. — E não se esqueça que não acredito na existência de bruxas, assim como tenho certeza de que não acredita que eu seja um demônio.

Desta vez Kenna não resistiu e também riu. Um momento depois, distraia-se encantada com o poder de sedução de Bothan.

Ele percebeu que Kenna também não lhe era indiferente. Seduzi-la seria uma possibilidade, e bem interessante por sinal, mas talvez fosse mais conveniente mostrar à jovem como ela também se beneficiaria com o casamento. Para começar, estaria atendendo ao pedido que o pai lhe fizera no leito de morte. Ela já tentara fazer isso, procurando encontrar um homem forte que a quisesse como esposa, mas o tio garantira que ela falhasse. Isso significava, no entanto, que aceitava o compromisso para garantir a herança, e agora ele podia lembrá-la disso. Desejo e ambição já haviam levado muitos ao altar. Mais tarde, depois que o problema com o tio fosse resolvido, ele encontraria um modo de tornar o casamento mais do que uma união apoiada em paixão e poder.

Enquanto vinha procurando por uma noiva, Bothan chegara à conclusão de que ansiava por um casamento que visasse mais do que ganhos. Desejava que houvesse um elo forte unindo ele à esposa, porque apenas assim poderia lhe revelar toda a verdade sobre ele e seu clã. A não ser que a esposa o amasse, isso não seria possível. Que mulher fora de seu clã aceitaria a natureza de um MacNachton?

Talvez não fosse capaz de fazer com que Kenna o amasse, mesmo assim havia uma vantagem em fazê-la sua esposa. Ela tinha problemas sérios na vida, alguns criados pelas superstições do povo. Era um elo que os ligava. Com o tempo ele encontraria outros.

— Por que acha que o casamento entre nós dois seja algo tão absurdo?

— Não conheço o senhor. Não posso me casar com um homem que conheço apenas umas poucas horas.

— Mas estava disposta a se casar com alguém de seu povo para se assegurar de que manteria sua herança. Por que se importar que esse homem lhe seja um estranho? Poucas mulheres chegam a conhecer o homem que lhes é escolhido como marido antes do casamento.

Um ponto que não podia ser contestado, Kenna pensou, mas jamais o admitiria em voz alta.

— Talvez, mas poucos desses maridos têm a fama de serem demônios que bebem o sangue de recém-nascidos e pobres...

Viúvas. Oh, sim, é isso o que dizem os rumores sobre o meu l 10, não é? Mas também suspeito que poucas esposas sejam consideradas bruxas...

Esse homem era hábil no uso das palavras e Kenna percebia seu talento.

— Vamos deixar as brincadeiras de lado, sir Bothan. A verdade é que nós dois temos segredos sombrios — ela reconheceu. — Não negarei que tenho os meus. Posso não entender os significados dos meus sonhos, mas as histórias que ouvi dizer sobre os MacNachton, o senhor nem tentou negá-las.

— Então acredita que eu seja um demônio, não é?

— É claro que não, mas penso que haja alguma coisa de diferente no senhor.

Kenna segurou a respiração esperando para ver como ele reagiria. Bothan, porém, não tentou negar nada, talvez aceitando o que ela dissera como verdadeiro. Quem sabe fosse melhor manter a boca fechada já que aquele homem tinha reações imprevisíveis.

—Tenho sonhos estranhos. O senhor me disse que isso também acontece com um primo seu — ela começou a dizer.

— Assim pode ter certeza de que não a condenarei por seus sonhos nem a considerarei uma bruxa. Ambos somos atormentados por rumores maldosos porque temos dons que terminam atemorizando os que não os têm. Não acha que isso nos liga?

— Talvez eu pense que não seja motivo suficiente para um casamento.

— Então vai deixar que seu tio leve a melhor nesse jogo mortal? Quer passar o resto de sua vida escondendo-se e desejando que ninguém descubra que é uma vidente?

Kenna sentiu-se lisonjeada em ouvir Bothan chamá-la de vidente, apesar de que tentara sempre esconder dos outros as suas visões. Decidiu se concentrar na parte crítica do comentário que ele fizera.

— Pretendo apenas manter-me viva — ela murmurou.

— Mas não permitirei que faça isso matando e mutilando um MacNachton.

— Se o senhor não tivesse reagido com tanta rapidez, certamente teria me escutado dizer que não tenho a menor intenção de executar a missão de que meu tio me encarregou. Não matarei alguém apenas para me manter viva. — Kenna suspirou. — Nós dois concordamos que essa missão foi um pretexto usado por meu tio apenas para se livrar de mim. Se eu fosse bem sucedida em matar um MacNachton, meu tio encontraria outro modo de me ver morta. Ele quer ser o governante de Bantulach e eu estou em seu caminho, assim como o senhor também estará se voltar comigo como meu marido.

— Oh, entendo. Recusa-se a se casar comigo porque teme pela minha segurança.

— De fato temo por sua vida, senhor. Mas minha recusa em me casar se deve ao fato de que acabamos de nos conhecer.

— Mas sabia que eu estava vindo.

— Oh, sim. Previ a sua chegada. Meus sonho:; foram muito precisos quanto a isso. Não havia, no entanto, nada que me indicasse que o senhor me pediria em casamento logo depois de pressionar uma adaga contra meu pescoço.

— Vou deixar que a senhora pense com calma em minha proposta.

— O que há para pensar? Eu Seguirei o meu caminho e o senhor o seu.

— Não. Seguiremos para Bantulach, casados ou não.

— Por que faríamos isso? Por que voltar a Bantulach? Isso seria uma loucura.

— Sir Kelvyn Brodie é uma ameaça para milady e para mim. Nada do que acaba de dizer me convence de que devo mudar minha decisão. Pode ser que seu tio tenha escolhido à toa um MacNachton por causa dos rumores. Contudo pode haver mais por detrás dessa escolha. E pretendo descobrir o que é. E milady precisa reclamar de volta o que lhe é de direito. E se ele matou o próprio irmão, e agora tentou matá-la, a senhorita quer que ele seja o governante de Bantulach? Para mim um homem capaz de cometer crimes tão bárbaros, será uma ameaça contra o povo. E a senhora também disse que ele deve ter matado um homem que pretendia defendê-la. Fico imaginando se ele não será leal apenas consigo mesmo.

Quando Kenna voltou-se para o fogo sem dar qualquer resposta, Bothan suspirou. Ela reconhecia que as observações dele traduziam a mais pura verdade. Não podia realmente culpá-la por tentar ignorar ou negar essa dura realidade. A traição em família sempre deixava cicatrizes na alma.

A pesar de lamentar pelo que ela tivera de passar, Bothan decidiu tomar uma decisão desagradável. Foi até a sela de seu cavalo e pegou uma corda. Teria de manter Kenna amarrada durante a noite. Não queria acordar na manhã seguinte e descobrir que ela se fora. Claro que poderia seguir suas pegadas e encontrá-la. Seu instinto lhe dizia que não deveriam perder tempo e seguirem logo para Bantulach.

Kenna demorou em perceber o que Bothan pretendia fazer. A corda já lhe prendia os punhos antes que ela protestasse. Encheu-se de indignação vendo-o amarrar a outra ponta da corda em seu tinto.

— Considera-me um animal que precisa ser amarrado? — ela protestou. — Quem sabe um cão raivoso?

— Quero apenas ter certeza de que não fugirá enquanto durmo. Milady está certa. Não nos conhecemos por tempo suficiente para que aceite o meu pedido de casamento. Eu lhe darei esta noite para pensar a respeito.

— Estranho o seu comportamento, senhor. Quer ter a mim como sua esposa e me trata dessa maneira? Devo acreditar que os MacNachton tratam assim as suas mulheres?

Bothan não se deu o trabalho de responder. Sabia que se arriscava a ser odiado pela jovem, mas não queria ser surpreendido por Kenna Brodie.

— Durma bem, milady. Quem sabe venha ter um daqueles seus sonhos e se veja casada comigo.

Kenna suspeitava que seria mais provável que ela passasse a noite sonhando com formas bem dolorosas de fazer Bothan MacNachton pagar por esta humilhação que impingia a ela.

Quem sabe fazê-lo em pedaços.

 

Bothan acordou bem cedo. Levantou-se tendo o cuidado de não despertar a jovem adormecida ao seu lado.

Desamarrou-lhe os punhos e os tornozelos, lamentando ter sido obrigado a tomar tal atitude na noite anterior. Mas Kenna Brodie era a mulher que ele queria como esposa e não podia se arriscar a perdê-la de vista.

Talvez ela nem tivesse tentado fugir durante a noite. Para onde iria? E tampouco parecia ser uma mulher incapaz de tomar decisões e arcar com o peso das conseqüências. Tinha certeza de que ela sequer tremeria se lhe fosse dizer não ao pedido de casamento que ele ousara fazer contrariando todo o bom senso.

Bem, agora era tarde para se arrepender por ter sido tão precavido. Espreguiçou-se e caminhou silenciosamente para fora da caverna.

A vegetação nos arredores era luxuriante. Arvores de grande porte se misturavam com arbustos, alguns cheios de flores que resistiam mesmo sob a força da tempestade que caíra no dia anterior e continuara pela noite inteira.

Pensou ouvir o ruído de água caindo, não a da chuva, mas talvez de alguma pequena cachoeira.

Se Kenna quisesse permanecer mais tempo naquela área, talvez pudessem se banhar nas águas de algum lago ou riacho.

A idéia de um banho lhe veio à mente. Não se afastaria da caverna, porém. Por que se arriscar a alguma surpresa desagradável?

Kenna continuava profundamente adormecida, assim ele não hesitou em despir-se ali mesmo e deixar que a chuva lhe refrescasse o corpo.

Com certeza já amanhecera.

Com relutância, Kenna abriu os olhos, aborrecida por não estar conseguindo voltar a dormir. Podia escutar a chuva ainda caindo fora da caverna. Já que não poderia deixar o abrigo, não via razão para estar acordada.

Estendeu os braços e ao perceber que não estava mais com as mãos amarradas, os últimos vestígios de sono sumiram.

Bothan cortara as cordas!

Olhou a sua volta em busca do homem, mas ele não estava à vista.

Sentiu um absurdo medo de que Bothan tivesse resolvido partir, desistindo do plano da noite anterior. Sentou-se imediatamente e ao ver Moonracer perto da entrada da caverna sentiu uma fraqueza invadir-lhe o corpo. O alívio a surpreendeu. O que era estranho. Afinal o homem amarrara os pulsos dela e a mantivera presa. Deveria querer que ele tivesse ido embora. Em vez disso, sentira-se dolorosamente solitária na chance de ter sido deixada para trás.

— Isso não faz sentido — ela resmungou. — Só conheço esse homem por umas poucas horas e os sonhos não contam. Como posso estar sentindo falta de um estranho?

O fato é que Bothan a perturbava e ela sentiria sua falta caso não o visse mais. Muita falta.

Balançando a cabeça como se assim pudesse afastar aqueles pensamentos tolos, vestiu um manto e caminhou até a entrada da caverna. Quando levantou o olhar do chão deparou com um espetáculo magnífico. Sir Bothan MacNachton estava de costas para ela. O brilho da claridade que anunciava a aproximação do fim da tempestade delineava o corpo do homem que mantinha os braços estendidos e a cabeça erguida para o céu. Banhava-se na chuva fina que ainda caía. E estava nu.

Respire, Kenna — ela comandou a si mesma silenciosamente. Fechou os olhos e bem devagar os abriu de novo. Não era uma visão. Ele ainda estava nu e seu corpo era maravilhoso. Ficou imóvel, incapaz de afastar o olhar, mesmo sabendo que deveria fazer isso.

Bothan tinha ombros largos, quadris estreitos e longas pernas musculosas. O cabelo negro e rebelde lhe caía nos ombros e brilhavam de forma especial graças às gotas de chuva. Kenna percebeu que apertava as mãos, lutando inconscientemente para não tocar naquela pele dourada.

Surpreendeu-se com as fortes sensações que tomavam conta de seu corpo. Era algo que ela desconhecera até aquele momento. Jamais se sentira excitada sexualmente, o sangue correndo agitado por suas veias, o calor lhe invadindo as partes mais íntimas. Por um segundo, imaginou o prazer de ser possuída por um homem tão belo e másculo.

Talvez a idéia de um casamento entre os dois não fosse um absurdo. Qualquer mulher aceitaria a proposta desse homem magnífico. Não importava em absoluto que fosse um MacNachton, talvez um demônio.

Kenna sorriu levemente. Aquele homem a tornara uma mulher diferente.

Ruborizou quando sentiu vontade de chamá-lo, para que se virasse e ela pudesse ver a parte da frente do corpo dele. A parte máscula.

E foi então que ouviu a voz de Bothan. Ele continuava de costas, mas notara não estar mais sozinho. Parecia escutar os menores ruídos.

— Milady, faria a gentileza de me entregar as roupas que deixei no chão da caverna?

— Como soube que eu estava aqui? — Kenna silenciosamente praguejou contra o rubor de seu rosto e contente por ele não estar vendo como a perturbava.

— Ouvi quando a senhorita se levantou. Poderia me passar as roupas? Deixei-as aí para que não se molhassem. Ou quem sabe devo me virar e pegá-las?

— Eu as pego para o senhor — Kenna ruborizou ainda mais porque desejou que ele se virasse e exibisse a parte da frente de seu corpo nu.

Irritou-se não só porque experimentava essa excitação inesperada por um estranho, como porque tinha certeza de que Bothan notara a atração que exercia sobre ela. Pegou as roupas, mas hesitou por um momento em entregá-las. Intensificou-se o desejo de que ele cumprisse a ameaça. Como isso era possível? Sempre tinha sido uma mulher recatada, desinteressada por assuntos de sexo.

Procurando afastar essas sensações eróticas e tão perturbadoras, caminhou até onde ele estava e mantendo o olhar abaixado atendeu ao pedido de Bothan. Distanciou o olhar, detendo-o nas paredes de pedra da caverna.

Depois de alguns instantes, ele falou:

— Pode levantar os olhos, milady.

Kenna viu-se diante de Bothan agora totalmente vestido. Não se enganara ao considerá-lo um homem extraordinariamente bonito. Com roupas ou sem elas. E sua beleza era daquelas que levavam as moças a agirem como tolas. Kenna tinha impressão que era exatamente assim que ela estava se comportando.

Voltou a ruborizar quando percebeu que ele a fitava com muito interesse. Virou-se e entrou resmungando na caverna, dizendo querer alguma privacidade. Estava satisfeita que a chuva estivesse parando. Logo que pudesse, partiria em busca de um outro abrigo, longe do homem que estava começando a fazê-la perder a cabeça.

Que bobagem. Separar-se de Bothan? Isso agora parecia fora de questão.

Bothan sorriu ciente de que Kenna sentia atração por ele. Conhecia bem as mulheres e o olhar da jovem lhe revelava interesse. Tinha absoluta certeza disso. O que ao mesmo tempo o surpreendia e o deixava satisfeito. Também sentia atração por aquela estranha mulher. Aqueles olhos verdes o cativavam, o corpo delicado e sem grandes curvas lhe parecia mais tentador do que o das mulheres sensuais que conhecera.

Subitamente um medo o invadiu. Quem sabe a caverna tivesse uma outra entrada. Kenna poderia simplesmente tentar escapar dali e recuperar o controle sobre seus atos. Sacudiu a cabeça diante do medo tolo. Afinal tanto o cavalo como os pertences da jovem estavam dentro da caverna. Ela não sairia dali sem ter de passar por ele.

Voltou-se então para o seu cavalo e conversou com o animal como era de costume.

— Ah, Moonracer, meu amigo e companheiro. Talvez eu tenha de me esforçar para ter essa mulher em meus braços. — Acariciou o animal e sorriu. — Estou mal acostumado. As mulheres sempre se entregaram a mim com muita facilidade, mas terei de lutar se quiser conquistar Kenna Brodie. Começo a pensar que valerá a pena o meu trabalho.

Moonracer olhou o dono com simpatia e voltou-se com interesse para a égua negra de Kenna.

— Ela se casará comigo. É do interesse dela essa nossa união. Do meu, também. E serei o senhor de Bantulach. Sei que é Kenna quem deve assumir esse direito, mas o povo aceitará com mais facilidade um homem como seu governante. E eu serei esse homem. Sim, Kenna e eu compartilharemos dessa honra.

Bothan tirou duas maçãs da sacola e deu uma a cada animal.

— Ela tem os cabelos da cor das amêndoas e os olhos são de um verde como os arbustos na primavera. E seu olhar vai mais longe do que o das outras mulheres. Sinto-me desejoso de contar com esse olhar pousado no meu, por anos e mais anos. E acariciar os cabelos que ela mantém presos, mas devem ser macios e longos.

Bothan acariciou o pescoço de Moonracer.

— Logo nos fixaremos em um só lugar, meu amigo. Talvez eu também tenha o dom da vidência, porque acredito que minha caçada ao inimigo e meu futuro acabarão em Bantulach. Só posso rezar para que esse fim me traga a felicidade ao lado dessa mulher especial.

Kenna encontrou uma fresta em uma das paredes da caverna onde caíam pingos da chuva. Lugar ideal para banhar-se sem ter de se despir diante do estranho. Arrepiou-se ao sentir a água fria cair em seu corpo parcialmente despido. Não era tão atrevida como Bothan e tinha vergonha de se despir e ficar nua sendo observada por um homem. Munida de um pano tentou limpar o corpo da melhor maneira que fosse possível estando ainda com muitas roupas.

Por um momento desejou não sentir tal acanhamento. No entanto crescera bastante isolada das demais crianças por causa de seu dom. Isso a tornara muito solitária. O que vinha sentindo por Bothan lhe era uma grande novidade, especialmente o desejo de se envolver sexualmente com ele.

Sentiu-se subitamente tomada pelo desânimo. Não tinha mais uma família, nem lar, nem um lugar onde pudesse procurar refúgio em tempos de necessidade.

Algumas lágrimas cobriram-lhe os olhos. Gostaria de ter a mãe ainda viva. Lembrava-se das longas conversas que tinham no passado. Mas a mãe morrera e ela não contava mais com a terna companhia.

— Oh, mamãe — ela murmurou baixinho. — O que devo fazer? Continuar o meu penoso caminho e tentar encontrar um lugar onde possa viver o resto de meus dias ou me casar com um homem que acabei de conhecer, um que tem os mais sombrios segredos? Uns dizem ser ele um demônio, uma criatura vinda do inferno para se alimentar das almas de jovens inocentes e de recém-nascidos?

Sacudiu a cabeça, soltando uma risada nervosa e continuou falando, como se comunicasse com a mãe.

— Esses boatos sobre mim e sobre sir Bothan não fazem qualquer sentido. Acusam-me de bruxarias, e não sou uma bruxa. Assim também ele não é um demônio. É um belo homem, diferente de alguma forma dos demais homens. Assim ele disfarça bem as diferenças, mas sinto não haver maldade alguma em seu coração.

Aos poucos a idéia de aceitar o pedido de casamento não parecia totalmente descartada.

— Oh, como eu gostaria que Florie estivesse aqui. Preciso tomar uma decisão muito importante, mamãe, e temo escolher a errada. Quero voltar para casa e será melhor sé eu assim o fizesse tendo um homem forte ao meu lado. Eu já havia decidido me casar com alguém de nosso clã, mas não esperava que surgisse um inesperado pretendente, um homem que conheci em uma caverna ao me esconder da chuva. Mas é justamente este homem que me aparece em sonhos. Deve haver alguma ligação entre nós. Devo considerar a possibilidade de me casar com ele?

Bothan era um belo homem e parecia gentil, isso quando não o irritassem. Precisava ser honesta e reconhecer a verdade. Vinha pensando no casamento entre os dois desde que ele fizera a proposta. Tinha se sentido tentada em aceitá-la quando o vira nu. O que ela fazia agora era tentar se iludir que não estava se deixando levar por pensamentos eróticos em relação ao estranho.

— Isso é uma vergonha — ela resmungou. — Uma mulher não pode resolver aceitar um pedido de casamento de um homem somente porque achou que ele tem um belo corpo quando nu. — Ruborizou mais uma vez diante desta realidade. Não podia negar que gostara de vê-lo sem roupas. Não somente gostaria de vê-lo nu, como de tocar naquele corpo bronzeado e perfeito. Tão másculo.

Voltou a chamar pela mãe.

— Esta não é razão suficiente para me casar com ele, não é mamãe? Uma mulher não pode se casar apenas levada pelo desejo já que o casamento é uma união para durar a vida inteira.

Uma estranha sensação pareceu envolvê-la, como se a mãe estivesse se comunicando com ela e lhe dizendo que devia pensar bem em suas escolhas e que voltasse a Bantulach e retomasse a sua herança.

Olhou assustada em volta. O que ouvira tinha sido uma voz de mulher e era muito parecida com a de sua falecida mãe.

Demorou em reconhecer que a voz soava em sua cabeça, mas não era fruto de sua imaginação. Ela chamara pela mãe e tinha sido atendida.

Oh, Deus! Ela agora escutava vozes, além de ter os sonhos estranhos!

— Agora falo com os espíritos — ela gemeu. — Não bastam os meus sonhos malucos.

Foi então que sentiu uma carícia em seu rosto. A mãe a beijava.

Inesperadamente sentiu medo e saiu em disparada em busca de Bothan. Era uma bobagem porque se era mesmo o espírito de sua mãe, de nada adiantaria fugir porque ele a seguiria por qualquer parte.

O que ela menos queria naquele momento era reconhecer que poderia ter um segundo dom.

Bothan surpreendeu-se quando viu Kenna surgir inesperadamente e com o olhar cheio de medo. Colocou imediatamente a mão sobre a espada, pronto a enfrentar algum inimigo que aparecesse à sua frente. A moça não era de se assustar à toa.

— O que aconteceu? O que a assustou?

Kenna pegou-o pelo braço e o arrastou para o lado da fresta onde estivera se banhando. Apontou para aquela direção, os olhos arregalados de medo.

— Está vendo alguém ali? Diga-me senhor, por favor.

— Não vejo nada. Também não escuto nenhum som diferente. Não há nada ali a não ser rochas e chuva. O que foi que viu?

— Nada—ela mentiu. — Não estou acostumada a ficar sozinha no meio do nada, é isso. — Quando percebeu o olhar descrente de Bothan, ela confessou. — Pensei ter ouvido a voz de minha mãe.

— Pensa que sua mãe veio a sua procura? Quer que eu saia e descubra se ela está nos arredores da caverna?

— Oh, não. Minha mãe morreu há quase dez anos. Não está mais viva.

— Então se assustou porque foi um espírito que falou com a senhorita. — Ele sorriu levemente. — Não deve ter medo. É evidente que possui o dom de falar com os mortos. Isso já não lhe ocorreu antes?

— Não é algo que provoque risos, sir Bothan. Estava falando com minha mãe como costumo fazer, só que desta vez ela me respondeu.

— Costuma falar com os mortos, então?

Ele deveria estar alarmado e não apenas curioso, Kenna pensou, sentindo vontade de lhe dar um soco.

— Não, apenas converso com minha mãe sobre os meus pensamentos e problemas, já que não tenho com quem conversar assuntos mais sérios. Só que desta vez, ouvi perfeitamente a resposta. Era a voz dela em minha mente, mas senti a sensação de que ela me beijava no rosto.

Bothan colocou as mãos nos ombros de Kenna. Ignorou o protesto e forçou-a a se sentar perto da fogueira. Lá, pegou o frasco de vinho e o estendeu a ela, sentando-se então ao seu lado.

Depois de uns poucos goles de vinho, Kenna começou a se sentir mais irritada do que com medo. Tinha tentado a maior parte de sua vida ou esconder o seu dom ou fazer com que as pessoas o aceitassem. Estaria ela amaldiçoada com outro dom que afugentaria mais ainda as pessoas, ou pior, que convencesse a todos que definitivamente ela era uma bruxa? As pessoas poderiam ver essa habilidade de conversar com os mortos melhor ou pior que as predições de seus sonhos? E o mais importante, se a mãe podia se comunicar com a filha além desta vida, por que só começara a fazê-lo agora e não antes?

— Mas por que agora? — Kenna resmungou. Porque está precisando de mim, minha filha.

— Mas também precisei da senhora antes — ela rebateu. Apenas me queria, minha criança.

— Não vejo bem a diferença de querer e precisar.

Kenna percebeu que estava mantendo uma conversa com a voz que lhe falava através da mente. Era uma espécie de sussurrar, mas ela respondia para a mãe em voz alta.

— O senhor não consegue ouvir a voz, não é? — ela perguntou a Bothan, certa de que ele desistiria da proposta de casamento para não se casar com uma maluca. Mesmo assim, o homem não parecia com medo ou repulsa a escutá-la falando aparentemente sozinha.

— Pensa que a considero louca e temerei que nossos filhos herdem sua loucura?

— Como consegue ler meus pensamentos?—Kenna perguntou enquanto ao mesmo tempo pensava que poderia ser interessante ter filhos desse homem. E surpresa, j á que ele continuava insistindo no casamento.

— Não acredito que seja louca e ainda pretendo convencê-la a se casar comigo.

Diga sim, minha filha, murmurou a voz. Diga sim.

Ignorando a mãe e lutando para acalmar as batidas de seu coração, Kenna também ignorou o desejo de que Bothan a beijasse com paixão.

—Por que continua mantendo a proposta, senhor? Já sou temida por meus sonhos. Se agora descobrirem que falo com os mortos, o medo de todos aumentará. Não sei se conseguirei esconder esta nova habilidade como fiz com a anterior. E correm rumores sobre o senhor, rumores assustadores. Nós dois juntos representaremos ao povo uma ameaça, um perigo grande demais. Vão nos queimar na fogueira. E essa não é uma possibilidade, mas uma certeza.

— Não acredito que isso venha a acontecer. E por que desejo me casar com a senhorita? Por muitas razões. Antes que nos conhecêssemos, eu comecei uma busca por uma esposa que pudesse trazer alguma terra à nossa união. A senhora trará Bantulach de volta pelo casamento. E tem razões mais fortes do que as outras mulheres de se casar com um homem forte que lhe recupere a herança roubada e a proteja de seu tio. Eu serei esse homem.

Bothan sorriu levemente.

— E há também uma atração entre nós dois. — Ele ignorou o rubor que cobriu o rosto de Kenna ao ouvir estas palavras. — Assim nos daremos bem.

— Mas, senhor...

— E há uma outra razão. Penso que seu tio faz parte de um grupo de homens que começou a se reunir para caçar o meu clã, assim ele é tanto meu inimigo como seu. Estaremos enfrentando juntos um inimigo comum. Outro elo que nos liga.

— Mesmo assim...

— Ambos sofremos com a superstição do povo, milady. Começo a acreditar que foi o destino que me trouxe a esta caverna. Saiba que serei um marido fiel. Por favor, diga que aceita ser minha esposa.

As razões para ela aceitar se casar com Bothan eram inúmeras. Nenhuma romântica, porém. Uma pena, ela pensou. No entanto, era ainda muito cedo para isso.

Diga sim, disse a voz, agora em tom de comando.

Kenna não hesitou em obedecer.

— Sim — ela murmurou. — Eu aceito o seu pedido de casamento, senhor.

Antes que compreendesse o que tinha feito, ela estava sendo beijada por Bothan. Seu último pensamento antes de se entregar à ardente carícia foi desejar que a mãe apenas falasse, mas não conseguisse ver o que estava acontecendo.

Não se iludiu, porém. A mãe se calara por discrição.

 

Bothan correu para fora da caverna e olhou para cima. A chuva havia parado e o céu começava lentamente a clarear. Podia, inclusive, perceber alguns pálidos raios de sol se infiltrando corajosamente por entre os galhos das árvores.

Não precisavam esperar por um tempo melhor. Partiriam imediatamente para Bantulach. É claro que ele escolheria o caminho que cruzava a vila onde seu primo James MacNachton era um sacerdote. Ele e Kenna poderiam se casar oficialmente sob as bênçãos da igreja. Como a jovem não tinha mais nem pai e nem mãe, não seria preciso um pedido oficial de casamento. Nem convites, nem festas, nem vestido de noiva. Bastaria uma cerimônia simples e esta seria celebrada por seu primo, assim não se encontrariam diante de qualquer obstáculo.

Voltou para dentro da caverna e começou a arrumar os seus pertences.

— Por que toda essa pressa, sir Bothan?

— Partiremos imediatamente. Arrume suas coisas.

— Iremos para Bantulach? Agora?

— Oh, sim. Mas passaremos antes em uma vila onde sei que há uma igreja. Nós casaremos então.

— Não vamos esperar para nos casarmos em minha cidade? — Kenna arregalou os olhos, tomada pela surpresa. Por outro lado, satisfeita. Bothan a queria de fato como sua esposa.

Bothan fez um gesto negativo com a cabeça.

— Deveremos entrar em Bantulach como marido e mulher. Somente assim seu tio não impedirá nossa união.

— Oh, não havia pensado nisso, senhor. Está claro que meu tio jamais permitiria que eu me casasse com um MacNachton. Bem, ele nunca pensou em permitir que eu me casasse, mesmo que o noivo fosse alguém de minha raça.

Kenna seguiu o noivo e logo se viu montada em sua égua negra. Bothan parecia majestoso em cima de Moonracer. Ela sorriu. Começava naquele momento uma nova fase de sua vida.

A Kenna Brodie, tímida e assustada, dera lugar a uma mulher feliz por ter um belo homem ao seu lado.

Casada, Kenna pensou olhando para o grosso anel que Bothan lhe colocara no dedo. Havia sido necessário amarrá-lo com muita fita para que ficasse preso e não viesse a cair já que o seu dedo era muito fino. Era uma jóia bonita, com estranhos emblemas em volta de uma pedra vermelha como fogo. Kenna levaria algum tempo para deixar de associar o tom da pedra com os rumores sangrentos sobre os MacNachton. Onde Bothan a teria encontrado? Por que escolhera exatamente aquela cor?

Sentia-se um pouco tonta tal a rapidez dos últimos acontecimentos desde o momento em que aceitara a proposta de casamento. Nem bem acabara de pronunciar o sim já se vira nos braços do noivo, sendo beijada com fúria e paixão, e praticamente arrastada para a trilha que os levaria a uma pequena vila, onde um padre os casaria. Decididamente gostaria de ter conversado com Bothan antes de deixarem a caverna. Precisavam fazer alguns planos e acertar algumas diferenças. Bothan apressara o casamento talvez para se prevenir de que ela repentinamente mudasse de idéia.

E esse Padre James, o religioso que realizara a cerimônia de casamento, era extraordinariamente parecido com Bothan, Kenna reparou, observando os dois homens entretidos em uma conversa intensa a certa distância. Tal semelhança se deveria a um parentesco, ela concluiu.

Sorriu ao imaginar o que o tio diria caso lhe dissesse que havia um MacNachton rezando missa e celebrando casamentos. Afinal, não eram todos demônios segundo os rumores?

De certa forma, se o padre fosse mesmo um MacNachton, isso significava que ela não cometera um erro ao se casar com Bothan. Bem, se sua própria mãe tinha sido a favor dessa união, não havia dúvidas de que dera o passo acertado.

Mesmo assim, olhando agora para os dois homens conversando, ela não conseguia deixar de se sentir um pouco inquieta com o que ocorreria nas próximas horas. Estava casada e certamente Bothan exigiria os seus direitos de marido. Claro que ela sentia-se atraída por ele, mas se ver subitamente na cama com um homem quase um estranho, não chegava a ser tranqüilizador.

Sua vida mudara muito desde a morte do pai. Não que este fosse um homem muito carinhoso e provavelmente deveria lamentar-se por não ter um filho homem. Mesmo assim, ela se sentia protegida estando junto à família.

Agora tinha um marido e um outro tipo de vida pela frente. Observou Bothan, segurando no braço o manto do qual nunca se separava.

Estranho. Bothan só colocava o manto de lado quando estava em um lugar fechado. Talvez se sentisse mal sob os raios do sol. O fato é que ela já tocara no manto. Era feito de fios grossos e devia não ser confortável usá-lo no calor. Seria mais um segredo do marido?

Quando coberto pelo manto, Bothan lhe lembrava uma ilustração que ela vira certa vez em um livro, a de um disfarce da Morte. Um pensamento fantasioso, naturalmente, mas que a levava mais uma vez a se perguntar se tomara a decisão certa em aceitá-lo como marido. Tarde demais para voltar atrás. Só se o casamento não fosse consumado, então poderia ser pedida a anulação. Kenna perguntou-se por que razão esta perfeita solução ao seu dilema fazia com que seu coração doesse tanto. Na verdade, a tentação de conhecer o marido intimamente a atraia demais.

— Sua esposa não está ruborizada, Bothan — James observou ao primo. — Tampouco está sorrindo. Tem certeza de que a jovem senhora deseja este casamento?

Bothan voltou-se para Kenna e sorriu levemente.

— Acontece que ela percebeu que perdeu o controle de sua vida e isso a desnorteia. Quanto a mim, tenho certeza de que quero este casamento. Mais a cada momento que passa.

— Mesmo sabendo que ela foi enviada em uma missão para matar um MacNachton?

— Minha certeza de que ela jamais será capaz de cometer um crime cresce continuamente. Ela me disse que apenas procurava um refúgio onde pudesse ficar em segurança. Tentaria encontrar um modo de fazer o tio mudar de idéia e aceitar sua volta a Bantulach. Se fosse eu a ser exilado de minha terra e despido de minhas posses, meus pensamentos estariam voltados para a vingança. Kenna Brodie não tem tais pensamentos.

— No entanto ela deixou o seu povo crédulo de que ela estava disposta a fazer o que o tio lhe determinara.

— Não creio que sequer tenha pensado em matar um MacNachton. Queria apenas ganhar tempo, distraindo o pensamento do tio do desejo dele de se livrar da sobrinha. Eu me manterei alerta, mas sei que ela não tentará nada contra mim. Kenna não é uma assassina.

James observou-a mais uma vez.

— Não acredito que ela represente um perigo a alguém de nosso clã. Seu olhar também não revela maldade. Mas primo, sua esposa conhece os seus segredos? Sabe que não é um homem comum?

— Eu ainda não lhe revelei nada, James, mas espero que o meu segredo não pese sobre o nosso casamento. De fato ela não é do nosso clã, mas também não é bem-vinda junto ao seu povo. Ela sonha e faz predições. — Subitamente Bothan sorriu. — E parece que a mãe de Kenna, que está morta há mais de dez anos, decidiu agora conversar com a filha.

— Ela consegue se comunicar com os mortos como o faz nosso primo Berawald? — James perguntou, a voz cheia de curiosidade.

— Pelo que sei, somente se comunica com a mãe. Kenna não está muito feliz em conversar com a falecida, apesar de que a amava muito. O fato é que não quer ter um novo dom, já que o anterior só lhe trouxe problemas. Ela sabe que tenho muitos segredos, mas não me pressionou a revelar quais são eles. Em seus sonhos ela me viu como um homem com o coração de um lobo e uma alma sombria.

— Tão perto da verdade — James murmurou. — Ela é uma verdadeira vidente.

— Não acredita ser uma, mas eu sim. Tudo o que ela me contou sobre o sonho em que eu lhe apareci pareceu-me fácil de interpretar. Mas o que importa agora é eu chegar a Bantulach e descobrir que perigo o tio dela representa para o nosso clã e para minha esposa.

— Acredita que esse homem seja um dos que querem caçar os MacNachton?

— Oh, sim, no que se refere aos caçadores, tenho certeza que o tio de Kenna seja um dos membros mais importantes do grupo. Ou até aquele que reuniu os caçadores com o propósito de nos eliminar da face da terra. Segundo relato de Kenna, há anos o tio se interessa em descobrir tudo sobre o nosso clã.

— E parece que o grupo de caçadores se torna cada vez mais numeroso.

— Não sei quantos são esses caçadores. Se forem apenas alguns malucos, não representarão um grande perigo a não ser se liderados por alguém muito determinado.

— E se o grupo for se organizando, maior ameaça será ao nosso povo, Bothan.

— Exatamente. Isso precisa ter um fim antes que se torne uma força poderosa demais para ser vencida. E terei uma satisfação a mais se pegar o tio de Kenna. Ele não só quer ficar com os bens da sobrinha como matá-la. Uma jovem indefesa.

— E ganhar uma linda mulher como esposa rica torna a sua vitória mais doce, não é, primo?

— Naturalmente. Seria um mentiroso se negasse isso. Mas não precisa se preocupar, James. Tudo dará certo no final.

— Rezo para que esteja certo, Bothan. Mas não acredita ser mais seguro ter algum MacNachton ao seu lado quando tiver de enfrentar esse homem? Quem sabe o seu irmão gêmeo.

— Não. Será melhor se o povo de Bantulach não se confrontar com mais de um MacNachton de cada vez. O tio de Kenna tem espalhado histórias aterradoras sobre o nosso clã e o povo está atemorizado. Eu lhes mostrarei que esse medo é uma bobagem. Mas se eu perceber que corro perigo, não hesitarei em pedir ajuda,

— James. — Bothan abraçou o primo. — Agora pretendo ir à estalagem mostrar à minha esposa que sou um bom homem e que posso fazê-la sorrir. — Mas não pretende fazê-la sua companheira na cama? — Sei que talvez seja muito cedo para isso. — Bothan abriu um sorriso. — Melhor seria dar a minha esposa mais tempo para me conhecer. Contudo, não sei se terei forças para resistir à tentação de consumar nosso casamento.

— Vá com calma, Bothan. Seja muito, muito cuidadoso. E não assuste a jovem.

— Serei um homem atento, primo. E cuide-se. Quero que batize todos os meus filhos. — Ele piscou para James, vestiu o seu manto e caminhou até Kenna que o esperava junto à porta da igreja.

— Padre James é um parente seu, não é? — ela perguntou quando o marido a tomou pela mão e saíram da igreja de pedra.

— James é um primo meu. Eu pretendia visitá-lo antes de voltar a Cambrun.

À medida que se aproximavam da pequena hospedaria onde Bothan havia deixado os cavalos e reservado acomodações, Kenna foi ficando cada vez mais nervosa. Não haviam tido chance alguma de conversarem sobre a viagem que fariam a Bantulach e especialmente não dissera ao marido de que desejaria deixar a consumação do casamento para quando se conhecessem melhor. No fundo, ela própria não tinha muita certeza se este era mesmo o seu desejo. Sentia uma forte atração física por Bothan e isso enfraquecia a sua decisão.

— Temos de conversar, sir Bothan — ela murmurou quando entraram na hospedaria, e então se surpreendeu quando ele parou e lhe deu um beijo rápido.

— Noto que não deveria tê-la deixado sozinha por tanto tempo — ele murmurou empurrando para trás o capuz de seu manto e revelando os cabelos revoltos. — Esteve pensando, não é? Conversar não fazia parte de meus planos de como passar a minha noite de núpcias — ele observou sorridente.

— É quanto a noite de núpcias... — ela começou a dizer, sentindo seu rosto enrubescer imediatamente.

Neste momento a dona da estalagem surgiu diante deles e Kenna calou-se.

— Oh, sra. Kerr, aí está a senhora — Bothan disse usando o dialeto galés. — O banho de minha esposa está preparado?

— Oh, sim, meu senhor, assim como o seu. A mulher enrubesceu e soltou um risinho quando Bothan beijou-lhe a mão. — O banho do senhor será na área da cozinha e eu levarei sua esposa até o quarto.

— Muita delicadeza de sua parte, minha boa senhora. Kenna sentiu vontade de revirar os olhos diante de todo esse flerte de Bothan com a velha senhora quando ele inesperadamente a tomou nos braços e a beijou. Quando ela conseguiu se recuperar, já se encontrava subindo uma escada estreita. Apenas quando se encontrava dentro do quarto é que Kenna percebeu que deixara sem resposta a uma pergunta da sra. Kerr.

— Oh, lamento, senhora — ela disse em galés —, mas temo não ter ouvido a sua pergunta. — Suspirou com resignação quando a sra. Kerr riu com gosto e lhe bateu no ombro com simpatia.

— Ele é um belo homem. Todos os MacNachton são capazes de agradar a qualquer mulher. Perguntei-lhe se precisa de minha ajuda no banho, senhora.

— Oh, não, mas lhe agradeço, sra. Kerr.

— Então voltarei à cozinha para ver se a comida que seu marido pediu já está pronta. E, minha querida, é uma mulher muito afortunada. — A velha suspirou pesadamente. — Conheço poucos MacNachton, mas cada um que vi era muito bonito.

— E não se preocupa com os rumores sobre o clã deles?

— Os que dizem que os MacNachton são demônios? — Quando Kenna concordou, a velha senhora riu novamente. — Não me assusto com eles. Afinal o primo deles é um padre, não é?

O que às vistas da mulher, absolvia o clã inteiro, Kenna pensou enquanto a sra. Kerr se retirava do quarto.

Ansiosa para entrar na tina antes que a água esfriasse, ela começou a tirar as roupas apressadamente. Um banho quente era um luxo nas atuais circunstâncias. Depois de entrar na água, suspirou de satisfação. Lavou os cabelos e então procurou se relaxar, encostando a cabeça na borda e imaginando quanto tempo aquele estado de paz duraria. Bothan também estaria desfrutando de um banho assim gostoso e de certo aproveitando o tempo para fazer os seus planos.

Imaginar o marido completamente nu fez com que voltassem aquelas sensações eróticas tão perturbadoras. Sentiu-se subitamente tão quente que era uma surpresa a água não estar fervendo. O modo como a dona da hospedaria falara sobre a beleza física de Bothan apenas confirmava que ele era um daqueles homens capazes de despertar grandes paixões.

Lembrou-se de Bothan colocando a adaga em seu pescoço. Disso a sra. Kerr não sabia, naturalmente.

E aquele era o homem que logo estaria ao lado dela na cama, esperando possuí-la. Kenna não conseguia decidir se tinha medo ou grande expectativa quanto a esse momento de intimidade. Qualquer mulher com sangue nas veias apreciaria ter Bothan em sua cama. Algumas mulheres sabiam o que fazer para agradar um homem durante essas intimidades. Kenna sentia-se em desvantagem, já que apenas tinha uma vaga noção do que acontecia entre um homem e uma mulher na cama. Vira animais se cruzando, mas esperava que o que ela e Bothan fariam fosse bem diferente.

Havia ficado sem mãe e ninguém a orientara nesses assuntos.

Saiu da tina irritada. O homem enumerara todas as razões que o levavam a pedi-la em casamento. Uma delas era ser seu marido. Enfim, ele só receberia benefícios com a união.

— Não vou permitir que ele desfrute de meu corpo — ela resmungou em voz alta.

Oh, sim, você vai.

Kenna olhou em volta confusa. Escutara novamente a voz da mãe.

Ele é seu marido agora, minha criança, e isso lhe dá esse direito.

— Ele é um estranho — Kenna protestou.

Não, não completamente, e sabe bem disso, filha. Os seus sonhos...

— Nunca me disseram que eu me casaria com ele.

Oh, sim, penso que revelaram isso. Quando um homem aparece para uma jovem em seus sonhos tão freqüentemente quanto ele lhe apareceu, isso significa um elo.

— Talvez significasse apenas que ele me ajudaria a derrotar o tio Kelvyn.

Que garota teimosa. Certamente puxou o seu pai.

— Acredito que tio Kelvyn tenha matado papai — ela murmurou.

Também penso assim.

Algo no tom de voz da mãe sugeriu a Kenna que ela estava certa.

O pensamento de Kenna foi invadido pela lembrança de seu pai, um homem severo, não muito afetuoso. Mesmo assim, ela o amara profundamente. E a morte dele a deixara à mercê da crueldade e ambição do tio. Seu povo poderia tê-la protegido, mas nada fizera.

Estremeceu com tal recordação.

— Papai está com a senhora, mamãe?

Sim, mas não aqui. Isto é algo que me cabe fazer, não a ele.

— O que pretende fazer?

Estou aqui para que trilhe o caminho certo, filha. Vim porque notei que estava cheia de dúvidas.

— Claro que estava e ainda estou. Este homem é um total estranho para mim. Como pode ter certeza de que posso confiar em sir Bothan? E Bantulach deveria ser minha, no entanto será ele quem se sentará na cadeira do governante.

Enterre esse ressentimento, minha filha, ou seu casamento será cheio de amarguras. E mesmo que seja injusto não assumir o poder de Bantulach, isso não mudará os costumes. E não se esqueça que seu marido lhe prometeu que compartilhariam o poder. Poucos homens fariam isso.

Esta era uma verdade, mas Kenna não sabia se Bothan cumpriria sua promessa. Poderia confiar em seu marido?

Pode confiar. Ele é um homem de palavra.

— A senhora lê meus pensamentos. Creio que meu marido também o faz.

Você os revela pela expressão de seu olhar, minha filha. Sir Bothan é um homem inteligente e interessado.

— Como a senhora me vê, mamãe?

De uma forma diferente e difícil de explicar. Oh, minha filha, tente ter fé.

— Oh, se eu pudesse ter mais algum tempo para conhecer melhor o homem...

Não, não há tempo a perder com esse jogo. Poucas mulheres podem dizer aos seus homens o que fazer. Mas o importante é que esse homem não está lhe mentindo.

— Não está? Mas ele mantém muitos segredos. Isso não significa mentir?

Sim, mas ele tem boas razões para não os revelar agora. Ele os fará no momento certo. Tudo o que precisa saber agora, minha filha, é que tem um homem para derrotar Kelvyn e seu tio precisa ser derrotado para o seu bem, para o de sir Bothan, de seu clã e do povo de Bantulach. Filha, entrem em Bantulach como marido e mulher, realmente unidos contra Kelvyn.

— E para isso tenho de estar na cama com ele? — Kenna não sabia se estava indignada ou resignada, ou as duas coisas. — Está dizendo que para o bem do povo de Bantulach, povo que voltou as costas para mim e acredita nos rumores sobre os MacNachton, devo dormir com um homem que acabei de conhecer?

Sim. Ora, filha, ele é um bom homem e a receberá em seus braços. Por que está tão hesitante?

— Não sei o que fazer. Nunca me envolvi com homem algum. Temo não satisfazer meu marido na cama tal a minha inexperiência.

Kenna sentiu o roçar dos lábios da mãe em seu rosto. Um gesto de muito carinho.

— Fique calma, querida. Um homem como ele que conheceu tantas mulheres saberá como guiá-la. Agora devo ir, porque seu marido está à porta do quarto.

Kenna levantou os olhos e viu Bothan. Seu nervosismo foi imediatamente substituído por inexplicáveis ciúmes. Ele deveria ter desfrutado de mil prazeres com muitas mulheres. Agora ela tinha de temer mais do que os segredos do marido, preocupar-se menos com a própria inexperiência na cama. Precisava aprender a ser mais uma das muitas mulheres de sir Bothan.

 

Ela estava conversando mais uma vez com a mãe, Bothan logo percebeu ao entrar no quarto e então fechar e trancar a porta. O olhar de Kenna não era muito animador. Ficou imaginando qual poderia ser o assunto da conversa que sua esposa tivera com a falecida. Devia ter sido um assunto difícil já que havia um brilho de raiva nos olhos dela.

— A água de seu banho não estava aquecida o suficiente para a sua satisfação? — ele perguntou, percebendo que a esposa fechara os punhos como se estivesse tensa demais.

— Foi um banho muito gostoso, senhor.—A jovem se esforçou para responder com civilidade.

— Oh, bem, então alguma coisa a aborreceu. Uma noiva não deveria receber o seu marido com um sorriso, talvez um rubor nas faces mostrando o seu acanhamento? A senhora parece inclinada a me quebrar o nariz — ele disse, enquanto colocava sua sacola, espada e manto perto da lareira.

Kenna respirou fundo, procurando se acalmar. Era uma bobagem sentir ciúme. E igualmente estranho. Mesmo que Bothan tivesse lhe aparecido em inúmeros sonhos, ela não o conhecia há mais de uns poucos dias para ser tomada por emoções fortes em relação a ele. Quem sabe estivesse simplesmente irritada porque Bothan seria o seu primeiro e único amante, enquanto que a lista de mulheres com quem o marido desfrutara de prazeres na cama devia ser bastante longa.

— O senhor não me deu tempo para falar sobre um assunto importante — ela falou finalmente.

— Sobre o que quer conversar? — Bothan aproximou-se de Kenna e notou que ela estremecera.

— Sobre o nosso casamento, senhor.

— A senhora disse sim, não foi? Não a forcei a nada.

— Não estou tentando afirmar que me casei contra a minha vontade. Gostaria, porém, que considerasse a possibilidade de não o consumar neste momento.

— Então é sobre isso que tem pensado o tempo inteiro, não é? — Ele a tomou nos braços, ignorando a apreensão da jovem. — Afaste tais pensamentos de sua cabeça. Cheguei a pensar nesse assunto, mas não consigo me manter indiferente à sua beleza. — Bothan tomou Kenna em seus braços e iniciou uma série de carícias. Seguiu o contorno do rosto da esposa com suaves beijos. — Estamos casados sob as bênçãos da igreja. A senhora deve compartilhar da cama com o seu homem. Talvez esteja com medo e compreendo os seus temores. Mas procurarei ser muito delicado. Não que lhe possa prometer que não sinta dor alguma. Não dormi ainda com uma virgem, mas...

— Escapou-lhe esta chance, senhor?

Bothan ignorou a interrupção e teve de se esforçar para não sorrir. Agora sabia o que a havia levado ao mau humor. Na conversa que tivera com a mãe, alguma coisa devia ter sido dita sobre a experiência que ele havia adquirido através do tempo no que se referia ao relacionamento com mulheres. Kenna estava com ciúme. Mesmo que esses ciúmes houvessem nascido de algo como orgulho ou irritação sobre os direitos dos homens, ainda assim era uma emoção bem-vinda.

— Mas... — ele continuou como se Kenna não o tivesse interrompido —, ouvi dizer que pode haver algum desconforto para as jovens senhoras nessa primeira experiência. Não precisa se preocupar com isso. Pretendo elevar a sua paixão às alturas de forma que a senhora não se perturbará com um pouco de dor.

Gentilmente os lábios dele começaram carícias na nuca de Kenna, exatamente naquele ponto mais sensível ao erotismo. Bothan se surpreendeu com a batida forte da veia principal do pescoço de Kenna e subitamente precisou se controlar para não se deixar levar pelo instinto pelo qual o clã dos MacNachton vinha sendo amaldiçoada por tantos anos. Nunca sentira tão forte desejo de sugar o pescoço de outra mulher como sentia agora tendo Kenna em seus braços. Por que ela? Isso o deixava intrigado. Por que sentia aquela atração tão forte por uma mulher tão frágil e que não usava qualquer recurso para excitá-lo? No entanto ela lhe despertava um sentimento diferente. Chegara a pensar em deixar que o casamento seguisse por uns tempos sem consumação. No entanto, isso lhe parecia impossível agora. Queria possuir Kenna da forma mais completa. Não a forçaria, porém. Teria o cuidado de levar a jovem esposa a se libertar dos medos, minuto a minuto, e desejar se entregar ao marido com paixão. Ela não podia se sentir como uma presa diante de um predador.

Bateram à porta naquele momento e Kenna libertou-se imediatamente dos braços do marido. Percebendo que usava apenas sua camisola, apesar de ser de tecido grosso, agarrou um manto e o vestiu enquanto Bothan caminhava para ver quem batia. O cheiro de comida ajudou Kenna a afastar de seu pensamento as palavras ardentes que Bothan lhe dissera há pouco. Sentou-se a uma pequena mesa perto do fogo, certa de que o marido tinha verdadeiramente experiência em lidar com mulheres.

Depois de agradecer a sra. Kerr pela comida e observar os dois filhos da estalajadeira carregarem para fora do quarto a tina do banho, Bothan sentou-se ao lado de Kenna à mesa. Sorriu ao servir vinho para os dois. Pelo olhar da esposa, percebeu que ela ainda lutava contra os ciúmes. Mesmo assim, procurava escondê-los.

— Ao nosso casamento — ele brindou, batendo de leve a sua taça na de Kenna. Ficou observando a esposa beber encantado com seus finos modos. Ela era uma dama.

Agora que não via um modo de escapar de seu destino, especialmente depois que a mãe dela e Bothan não lhe haviam deixado qualquer saída, Kenna resolveu não protestar mais. Saboreou o vinho. A bebida a ajudaria amenizar a tensão que tomava conta de seu corpo. E não podia negar que o olhar do marido despertava estranhos calores em pontos especiais de seu corpo. Não entendia como Bothan podia lhe lançar olhares que revelavam desejo já que ela tinha o corpo não só coberto pela grossa camisola como por seu manto. Sentiu uma inesperada vontade de despir-se, mas se controlou e procurou olhar para o prato que ele enchera de deliciosas iguarias.

O olhar do marido continuava intenso e ela pensou que deveria puxar alguma conversa para tornar o clima entre os dois menos tenso.

Notou que a sra. Keer também servira, além de carne de porco e de aves, um suculento bife praticamente cm.

— O senhor deve mandar este bife de volta à cozinha. Está claro que a cozinheira esqueceu de prepará-lo. Está cru demais e ainda sangrento.

Bothan sorriu levemente. A sra. Kerr estava acostumada a ter os MacNachton como hóspedes e sabia o quanto gostavam de uma carne vermelha. Depois de se expor demais ao sol, apesar de usar sempre o manto pesado que sua mãe lhe fizera, Bothan precisava recuperar todas as suas energias. A carne ajudaria e muito. Não tivera tempo para cuidar disso entretido que estivera em chegar logo à vila, encontrar o primo James e lhe pedir que celebrasse o casamento.

Teria logo que revelar alguns de seus segredos à esposa, mas certamente não na noite de núpcias.

— O bife foi feito assim a meu pedido. Serve para curar a fraqueza do sangue. Uma sábia mulher me recomendou que comesse bastante carne mal cozida para fortalecer o meu sangue. Problema dos MacNachton, naturalmente.

Havia dúvida no olhar de Kenna, mas ela apenas sorriu e voltou a atenção para o seu prato. Bothan respirou aliviado, porque não gostava de mentir. O que acabara de dizer a esposa estava bem perto da verdade, mas não explicava as razões da maldição que perseguia o seu clã.

Contaria tudo mais tarde, ele prometeu a si mesmo. Agora, porém, queria levar a esposa o mais rápido possível para a cama. Ela estava obviamente se sentindo acanhada e relutante. Felizmente, sentira as vibrações do corpo da jovem em todas as vezes que a tocara. Kenna havia correspondido, mesmo que de forma inocente, em todas as vezes que ele a beijara.

Seria certamente um desafio fazê-la despir toda aquela roupa pesada que usava agora para esconder o corpo. Mas adorava desafios. Ter a esposa nua diante de seus olhos era certamente o maior desafio que ele enfrentava há um bom tempo.

No momento em que ela parou de comer, Bothan pegou a bandeja e a levou para fora do quarto, colocando-a no chão. Voltou a trancar a porta. Ficou apenas com o vinho e as taças, já que mais tarde poderiam sentir sede. Aproximou-se da mesa e ajudou Kenna a levantar-se. Ficaram de pé, um ao lado do outro, se fitando. Os cabelos trançados da esposa, o olhar baixo e o modo como ela apertava as mãos deixavam-na com um ar de criança, pronta para escapar, caso ele fizesse o movimento errado.

Vagarosamente, Bothan começou a destrancar os longos cabelos. Eram macios como ele os imaginara. Visualizou-os sobre o corpo da esposa enquanto faziam amor e sentiu o corpo tremer em antecipação. Não podia agir com impaciência, porém, ao ensinar a esposa os prazeres que poderiam desfrutar na cama.

— E agora, querida, chegou a hora de descobrirmos os nossos corpos.

Kenna ruborizou imediatamente, mas não se opôs quando Bothan começou a levá-la para a cama.

— Nunca fiz isto antes—ela murmurou e sua voz soou trêmula.

— Sei que não, meu amor. — Bothan tirou as cobertas da cama, pegou então a esposa nos braços e a fez sentar-se sobre os lençóis.

— O que quero dizer é que não sei o que devo fazer. Bem, vi animais se cruzando, mas...

Bothan sorriu e beijou-lhe levemente os lábios.

— Fazer amor não é um ato animal. O relacionamento entre marido e mulher tem as bênçãos da igreja, como a senhora bem sabe. Não serei brutal e lhe ensinarei tudo. Primeiro temos de ficar nus.

Esta era uma das coisas que mais a preocupava, Kenna pensou. Começou, porém, a despir o manto e depois desamarrar a camisola. Quando nada mais lhe cobria o corpo, ela levantou os olhos e Bothan estava de pé, com as mãos na cintura, e uma expressão de desejo nos olhos. A parte de seu corpo que Kenna ainda não conhecia estava agora à vista, em toda a sua glória. Conforme ela olhava, o sexo do marido parecia crescer ainda mais. Kenna rapidamente afastou o olhar e surpreendeu-se em notar que havia rubor no rosto do marido.

— Isso não vai funcionar, sir Bothan — ela disse, tentando se cobrir com a camisola. — Sou uma mulher pequena. Penso que precisa de uma mulher maior. Muito, muito maior.

Percebendo que Kenna estava a ponto de lhe escapar, Bothan a agarrou e beijou com ardor. Queria afastar logo o medo que ela sentia em se machucar durante o ato sexual. Aos poucos sentiu que ela relaxava o corpo, seduzida pelo beijo e quando ele a mordiscou no lábio e introduziu a língua em sua delicada boca, Kenna gemeu baixinho, não mais de medo, e sim de prazer.

Subitamente, ela sentiu a necessidade de tocar no corpo do marido, desejo que vinha reprimindo já há algum tempo. Assim, deslizou as mãos pelas costas de Bothan e sentiu uma satisfação enorme quando percebeu que ele reagia e se deliciava com o toque de seus dedos.

Ela, uma mulher sem qualquer experiência nas artes do amor, fizera aquele belo homem gemer de prazer. Kenna sentiu-se vitoriosa.

Quando ele parou de beijá-la, Kenna demorou um momento para perceber que ele lhe tirara a camisola. Sentiu como se enrubescesse por inteiro. Podia contar nos dedos todas as vezes em que estivera nua diante de outra pessoa, e nessas poucas vezes quem estivera ao seu lado haviam sido mulheres. E agora o seu marido, um homem que ela pouco conhecia, se deliciava olhando para seus seios e as suas partes mais íntimas. No entanto, agradou-lhe ver que o olhar de Bothan estava cheio de desejo por ela. Isso afastou qualquer sensação de embaraço. Pela primeira vez em sua vida sentiu-se bela e desejada.

Era uma sensação inesperada, mas gostosa.

Bothan lutava contra o ímpeto de possuir imediatamente a esposa, sem mais preâmbulos. A visão daquele corpo macio o deixava quase louco. Sabia que seria errado assustar Kenna. Precisava levá-la a conhecer todos os prazeres que o ato do amor oferece a um casal. Assim, usou de toda a sua força e controlou-se.

Por alguns instantes distraiu-se com o esplendor daqueles cabelos longos e gloriosos, com os seios pequenos e arredondados, pelos convidativos mamilos rosa. Ela que antes não lhe parecera uma mulher bela, agora o encantava.

— Você é linda, Kenna — ele murmurou, com o olhar preso à penugem avermelhada que cobria as partes mais íntimas da esposa.

— Sou pequena — ela murmurou baixinho.

— Mas elegante e bela como alguns graciosos animais da floresta.

Kenna estava ainda saboreando o prazer em escutar os elogios, quando Bothan se inclinou e beijou um de seus seios. Sentiu-se chocada, mas não chegou a protestar porque já não importava mais o que ele fazia, contanto que não parasse.

O modo como o corpo de Kenna pareceu estar em chamas envaideceu Bothan. Procurou não se esquecer que ela era virgem, mas começava a ficar cada vez mais difícil se controlar já que os gemidos da esposa lhe revelam que estava pronta para ele.

Assim, não mais esperou e a penetrou. Kenna sentiu dor e soube imediatamente que não mais era uma virgem. Era agora verdadeiramente a esposa de Bothan. Este pensamento lhe restaurou o desejo que começava a se esvair e saboreou a volta do calor. Quando ele lhe abriu mais as pernas e começou movimentos em um ritmo crescente ela soube que aquele era o prazer máximo.

— A dor diminuiu? — ele perguntou.

— Oh, sim. — Bothan recomeçou os movimentos e Kenna sentiu que era por aquilo que o corpo dela clamava. Agarrou-se ao marido e acertou o ritmo participando por inteiro do ato sexual. Seu único desejo era que a porta estivesse de fato trancada e ninguém viesse interrompê-los.

Momentos mais tarde Bothan tomou consciência de que seu corpo estava sobre o da esposa. Virou-se para o lado. Nunca desfrutara de tão intensa paixão. Esta era a verdade.

Tinha certamente escolhido a mulher ideal, pensou.

Estremeceu ao pensar que a caminho da caverna conhecera algumas outras moças, algumas bem bonitas. E se houvesse escolhido uma delas como companheira? Teria perdido a chance de conhecer Kenna.

Mesmo inexperiente, mas ardente por natureza, a esposa o satisfizera como nenhuma outra mulher o fizera antes. Subitamente, sentiu-se perturbado e procurou ver se havia as marcas de seus dentes no pescoço de Kenna. Não havia. Ele se controlara e isso era um alívio. Sabia que mais dia menos dia teria de revelar a esposa um dos desejos dos MacNachton. Queria primeiro prepará-la, tentar que ela aceitasse a realidade dele.

Beijou a esposa nos lábios e ela entreabriu os olhos. Estavam de um tom verde mais intenso, como se o ato de amor os tivesse modificado.

— E então, não foi assim tão ruim, não é?

— Não, sir Bothan, foi tolerável. — De repente ela pensou que aquilo que representara tanto para ela, não deixaria de ser apenas mais uma experiência sexual do marido.

Bothan notou que o olhar de Kenna se escurecera e procurou tranqüilizá-la.

— Não, querida. Não foi a mesma coisa.

— Pode ler a minha mente?

— Não, mas sei ler tudo o que passa por seu olhar. Está pensando que por minha grande experiência com mulheres, este foi apenas mais um ato sexual. Mas foi diferente. Não peço desculpas pelo meu passado, porém. Eu era um homem solteiro, sem compromissos, e igual aos outros homens. Não dormi com jovens inocentes nem esposas de outros homens. E lhe asseguro que nenhuma das mulheres com quem estive deu-me tão grande prazer como você acaba de fazer. Isso eu lhe juro. E desde o momento em que fizemos nossos votos, todas as aventuras acabaram para mim. A sua vai ser a única cama onde procurarei prazer.

Mesmo que retribuísse o beijo e o sorriso, Bothan sentiu que ela ainda tinha certas dúvidas quanto ao juramento que agora lhe fazia.

Kenna procurou afastar as dúvidas por ora. Afinal, era a esposa de Bothan. Tal pensamento lhe aqueceu a alma e o corpo. Teria muitas noites de prazer e assim não seria apenas ele a se beneficiar com o casamento.

Quando o marido dormiu e começou a fazer estranhos ruídos, ela observou-o mais atentamente.

Bothan MacNachton ronronava como um gato.

 

O céu ainda estava claro, mas o sol logo se esconderia no horizonte e Kenna esperava ver o seu marido emergir da pequena caverna onde haviam passado grande parte do dia. Eles se conheciam há apenas quatro dias, estavam casados há três, mas Kenna não conseguia pensar em um momento sequer em que Bothan tivesse ficado sob a luz do sol, pelo menos não sem o seu pesado manto de que parecia gostar tanto. Ele sempre encontrava algum lugar escuro para se refugiar quando o sol estava a pino, e mesmo sendo agradável e prazeroso ouvi-lo dizer que sentia o apelo do sexo, o fato é que ela começava a acreditar ser uma desculpa para escapar da luz do sol.

Exatamente como os sonhos haviam sugerido, o marido era uma criatura das sombras. Kenna suspirou, cruzou os braços sobre o peito, e encostou-se à parede de pedra do abrigo. Quando saíra do estupor provocado pelo modo de amar de Bothan, ela sentira urgência de sair para o lado de fora, já que o refúgio nada mais era do que um lugar que mais lhe parecia uma tumba. Agora, no entanto, sentia falta daqueles braços fortes a abraçando. Ela era certamente uma mulher ridícula. Tinha de admitir que Bothan não fora o único a se beneficiar com o casamento, porque apesar de suas dúvidas e preocupações, ela sentia-se feliz sob vários aspectos.

No entanto, agora que se encontrava sozinha e não envolvida nos excitantes beijos que trocava com o marido, tentou encontrar respostas que explicassem algumas particularidades do marido. Para ser justa, precisava reconhecer que Bothan não era exatamente uma criatura da noite, porque ele parecia muito à vontade nas primeiras horas do dia e ao cair da tarde. Era somente quando o sol brilhava mais intensamente que ele parecia ansioso por encontrar algum lugar à sombra, e certamente conhecia todos os existentes no caminho para Bantulach. Alimentava-se de comida normal, apesar de que havia devorado com enorme apetite a carne meio crua que a sra. Kerr lhe preparara. Não sabia se devia acreditar na história sobre a fraqueza do sangue, apesar de que após comer a carne ele demonstrara incrível vigor na cama naquela noite.

Tente pensar em outra coisa que não seja fazer amor com seu marido, Kenna Brodie MacNachton, ela disse a si mesma com veemência. O que não era tarefa fácil. Descobrira-se uma mulher ardente e com grande apetite pelos prazeres que Bothan podia lhe oferecer. Sentia-se atraída por aquele corpo másculo, pelas carícias Ousadas, pelas artes amorosas das quais o marido era um mestre. Havia se tornado uma participante ativa na cama e não se envergonhava disso.

Talvez fosse essa a razão que a levava a não se deter muito nos estranhos hábitos do marido. Mas como esposa não podia ignorar tudo. O seu marido tinha caninos pontudos. Ele tomava cuidado para não os revelar enquanto falava e ria, a ponto de que ela chegou a pensar que tinha visto as presas. Então, em uma manhã, enquanto Bothan dormia profundamente e estava com a boca bem aperta, ela viu bem os seus dentes. Ele definitivamente tinha caninos pontudos. Apesar de ter escutado dizer que alguns homens lixavam os caninos de forma que suas aparências se tornassem mais ameaçadoras aos seus inimigos, ela não conseguia aceitar a idéia de que o marido recorresse a tal artifício. As outras razões que poderiam explicar caninos daquele formato eram exatamente as que ela não se sentia predisposta a considerar.

E mais uma coisa...

Seu marido, aquele homem forte, enorme e másculo, ronronava. Kenna sorriu, porque isso não era em nada assustador, mas continuava sendo estranho vindo de um ser humano. A primeira vez que escutara, tinha se convencido de que seria mais um som gerado pelo prazer do ato sexual. Mas escutara o som outras vezes e em circunstâncias diferentes, assim não podia mais negar que o som era de fato semelhante a um ronronar de gato.

Bothan ronronava como um enorme e lindo gato.

Gostando demais de gatos, Kenna começara a notar outras similaridades entre o marido e um felino. Movia-se como um, silenciosa e graciosamente. Inclusive se espreguiçava exatamente como um gato adora fazer. Bothan enxergava muito bem no escuro, o que lhe era muito útil já que gostava de ficar em lugares sombrios. Desconfiava que ele também tivesse a audição aguçada assim como o olfato. Lembrando-se de quando ele a atacara na primeira noite, recordava-se de ter notado uma expressão felina no olhar dele. Isso sem contar a rapidez que se movera da entrada da caverna ao lugar onde ela estava. Kenna sentia-se confusa porque em seus sonhos Bothan tinha o coração de um lobo. Quem sabe aquelas qualidades que ela observara no marido pertenciam a gatos e lobos.

Estava se preocupando demais com coisas mínimas, ela pensou. Passou a mão nas têmporas ao sentir uma pontada de dor de cabeça.

— Pobrezinha, sua cabeça dói?

Kenna saltou surpresa ao escutar a voz familiar junto ao seu ouvido. Mais uma vez Bothan surgia sem fazer ruído algum. Voltou-se para o marido e notou preocupação em seu belo rosto. Quando ele sorriu escondendo os caninos, ela decidiu trazer aquele assunto delicado à conversa.

— Não precisa ser tão cuidadoso quando sorri — ela disse. — Eu já os vi.

Bothan pareceu desconfortável, mas percebeu que Kenna não parecia nem surpresa nem assustada. Talvez tivesse chegado o momento de começar a contar a esposa alguns de seus segredos. Apesar de ter tomado tal decisão, exibiu um olhar confuso.

— Viu o quê?

— Os seus dentes. Ou melhor, presas. Você roncava e...

— Eu nunca ronco.

Ela ignorou a interrupção.

— O senhor estava com a boca bem aberta e lá estavam eles. Caninos pontiagudos como os de um lobo. Eu já os notara naquela vez em que me atacou, mas na ocasião me convenci de que me enganara. Não foi isso. Você os afinou para serem desse jeito?

— Não. Muitos de meu clã têm dentes desse formato. Não são assim tão estranhos. Apenas temos dentes pontudos.

— Sir Bothan, sou sua esposa, isto é verdade, e assim estou ao seu lado dia e noite. No entanto, duvido que apenas eu tenha notado que o senhor evita estar debaixo do sol, como prefere lugares sombrios, e só se mostra à vontade ao ar livre pelas manhãs bem cedinho ou ao anoitecer. Suspeito que outras pessoas tenham notado isso. Poderia me dar alguma explicação, para que eu a use em caso de me perguntarem sobre esse seu costume?

— Ah, está preocupada em dar explicações aos outros.

— Creio que sim.

—Bem, não chega a ser algo muito masculino, mas não consigo suportar a luz do sol quando ela está mais intensa. E meu clã não conseguiu vencer essa fraqueza, apesar de meus irmãos e eu sermos menos sensíveis que meu pai.

— A luz do sol lhe faz mal?

— Faz. Por que ainda está com esse olhar cheio de dúvidas? Eu lhe falei a verdade.

— Acredito que sim. Também penso que não me falou toda a verdade, mas isso não importa. O que disse já me basta. — Ela olhou em direção ao sol que começava a sumir no horizonte e então voltou o olhar para Bothan. — Partiremos logo, não é?

— Sim. Haverá uma lua cheia hoje à noite e isso nos dará a claridade necessária. Logo chegaremos a Bantulach.

Definitivamente o marido preferia a noite ao dia. Ela precisava ir se acostumando com seus hábitos.

— Se não tivermos qualquer problema, resta-nos apenas um dia e pouco de viagem — ela murmurou, sem querer voltar ao assunto das estranhezas de Bothan.

— E então nossa lua-de-mel chegará ao fim.

— Isso significa que se ocupará de outras atividades que o impeçam de me levar para a cama? — ela o provocou.

—Engana-se, querida. Chamo de nossa lua-de-mel este período em que você se inicia na arte do amor. Apesar de que devo reconhecer que tem me surpreendido.

— Devo crer que esteja decepcionado comigo, sir Bothan.

— Muito pelo contrário, minha doce amada. Tem me deslumbrado com o ardor que recebe as minhas carícias.

Kenna o olhou com suspeita ao vê-lo se aproximar e tomá-la nos braços. Havia aquele estranho tom dourado em seus olhos e isso lhe enfraqueceu os joelhos. O marido estava se mostrando como um homem muito apegado ao sexo.

— O que está pensando em fazer. Quero lembrá-lo que estamos fora do nosso refúgio e talvez viajantes nos observem neste momento. Quer que eu me ocupe reunindo os nossos pertences, já que partiremos em breve? — ela perguntou, incapaz de silenciar um murmúrio de prazer quando ele lhe beijou o pescoço.

—Deixe isso para depois.—Bothan levantou as saias da esposa e a descobriu sem os calções que habitualmente usava. Sorriu, agradavelmente surpreendido.

— Saí às pressas lá de dentro e não perdi tempo em vestir toda a minha roupa—ela justificou, um pouco embaraçada e ao mesmo tempo satisfeita quando Bothan começou a tocar em sua feminilidade. As carícias ousadas a deixaram louca de desejo.

— Oh, minha querida está pronta para mim — ele murmurou satisfeitíssimo.

Desta vez, Bothan não se deteve em carícias e penetrou a esposa saciando-se de imediato. Segurou firme a cintura de Kenna e a foi penetrando cada vez mais fundo. Kenna sabia que devia protestar por essa pressa, por esse ato sexual que estava acontecendo em lugar aberto e não sob as sombras de algum refúgio ou quarto de hospedaria. Mas sua reação foi outra e ela enlaçou as pernas nos quadris do marido correspondendo com ardor e o beijando de forma que não deixava dúvidas de que também queria fazer amor naquele minuto, fosse onde fosse.

Bothan sorriu observando as reações da esposa, em parte acanhada em estar com as saias levantadas, em parte querendo aquele ato sexual, mesmo selvagem. Ela, uma mulher inexperiente nas artes amorosas, descobria-se uma mulher fogosa e capaz de deixar um homem louco de paixão. Finalmente aceitava essa sua natureza apaixonada e provavelmente o mataria de prazer, ele pensou e riu.

— Como pode rir? Estamos a céu aberto. Nem acredito no que acabamos de fazer — ela resmungou quando seus corpos se separaram.

— Não houve como evitar. Senti o seu cheiro e este me excitou.

— Então melhor ir me banhar no riacho e assim tirar o cheiro. Caso contrário você poderá querer fazer amor mais vezes quando estivermos em viagem e assim assustarmos os cavalos — ela disse levemente irritada com essa capacidade de o marido sentir seu cheiro de mulher. Na verdade, Bothan era capaz de distinguir todos os cheiros e localizá-los com incrível rapidez e precisão.

Bothan riu quando a esposa entrou apressada no refúgio em busca de algumas coisas que usaria no banho e logo saiu. Quando ela começou a caminhar em direção ao riacho, Bothan se preparou para acompanhá-la.

— Já sou uma mulher bem crescida que prefere privacidade quando se banha.

— Mulher, nós acabamos de...

— Sei muito bem o que acabamos de fazer.

— E eu já a vi nua.

— Também sei disso, mas me ver nua enquanto estamos fazendo amor é diferente. Não fico pensando que estou sem roupas, então. Agora seria embaraçoso.

Bothan voltou a rir, mas cedeu à vontade da esposa.

— Estarei por perto, meu marido, assim não deixará de me ouvir se eu gritar pedindo ajuda.

— Melhor tomar um banho rápido — ele aconselhou.

— Considerando que a água deve estar muito fria, não tenho dúvidas de que o banho será muito breve.

Bothan a observou desaparecer por entre as árvores. Não conseguia deixar de pensar que era uma tolice deixar a esposa ir banhar-se sozinha, especialmente por estar quase anoitecendo. Mas ela queria privacidade e isso ele podia entender. Mesmo assim, sentiu uma necessidade de não perder Kenna de vista. Resolveu banhar-se também. Não iria ao mesmo ponto do riacho, mas um pouco adiante. Lá, poderia vê-la. Pegou tudo o que precisava e rumou para o riacho, procurando não ser visto pela esposa.

Kenna chegou ao riacho e encantou-se com a paisagem. Estava no meio de uma vegetação onde predominavam os tons verdes quebrados aqui e ali por florzinhas miúdas e coloridas. O som do canto dos pássaros e suas revoadas davam um toque de maior beleza ao cenário.

Ela lamentou ter passado tanto tempo enfiada em Bantulach sem sequer se interessar em fazer passeios que a aproximassem mais da natureza. O exílio forçado e agora a volta à sua terra graças a presença de Bothan a levavam a desfrutar de uma nova realidade.

O mundo já não lhe parecia tão sombrio.

Kenna aproximou-se do riacho. Colocou a mão na água e sentiu um arrepio. Estava fria demais e ela foi tentada a não tomar um banho completo, apenas lavar algumas partes de seu corpo. Suspirou e começou a se despir. Pensou melhor e decidiu manter algumas roupas. Faria depois uma troca de roupas. Não conseguia se imaginar nua banhando-se em lugar aberto. Sempre havia a possibilidade de passar algum viajante por ali e ela não queria ser pega de surpresa.

Respirou fundo, tomou coragem e afundou na água. Definitivamente o banho seria bem curto.

As saias longas atrapalhavam os seus movimentos, mas agora era bobagem despir-se. Esfregaria também os tecidos, mas antes lavaria as suas partes íntimas. Ao tocá-las, foi tomada pelo desejo de ser mais uma vez possuída pelo marido. Ali mesmo na água. Não sentia mais nenhum embaraço em participar dos jogos amorosos e fazer sexo com Bothan lhe revelara uma nova faceta de sua personalidade. Era uma mulher sensual.

O que chegava a perturbá-la era não ter mais o controle sobre o seu próprio corpo. Bastava Bothan roçar a mão em seu corpo, ou beijá-la ou até simplesmente lhe dirigir aquele olhar felino para que ela sentisse o corpo esquentar a ponto de desejar arrancar as roupas e arrastá-lo para a cama. Ela, uma mulher que antes não tinha sido tocada sexualmente por qualquer outro homem. E agora bastava um sorriso do marido para que fosse despertada uma paixão avassaladora e desenfreada.

Havia se tornado verdadeiramente a esposa de Bothan. Ele a possuía por inteiro, corpo e alma. O que a alegrava mais era ter descoberto que o marido também se surpreendera e estava fascinado pela mulher que escolhera como esposa.

Oh, se seu tio a visse agora. Talvez a julgasse já morta. No entanto, estava mais viva do que antes.

Deixara de ser uma garota e se tornara uma mulher.

Suspirou profundamente. Precisava admitir a razão que a levava desejar tanto que Bothan sentisse as mesmas sensações de prazer que ela. Apaixonara-se pelo homem. Havia ainda muitos segredos a serem revelados pelo marido, mas ela não mais se importava com o que eles podiam revelar. Não fariam diferença alguma ao que ela sentia por Bothan. Não desejava um casamento apenas apoiado em sexo. Queria muito mais.

O que poderia fazer para conseguir isso, ela se perguntava quando um ruído vindo do lado das árvores que rodeavam o riacho lhe chamou a atenção.

Escutou nitidamente a voz da mãe.

Fuja!

— Mamãe?

Fuja, minha filha! Fuja agora!

Sem perguntar o motivo, Kenna levantou um pouco as saias pesadas e se apressou em direção à margem. Aparentemente não havia ninguém por perto. O aviso da mãe, contudo, não podia ter acontecido à toa.

Estava pegando o resto das roupas, quando seis homens surgiram da mata. Riam enquanto se aproximavam. Kenna viu-se cercada por três lados, restando livre apenas o lado da água. Começou a tremer e sabia que não era devido às roupas molhadas.

Por que não permitira que o marido viesse se banhar com ela? Onde estaria Bothan naquele momento? Pensou em gritar por ele, mas hesitou. Talvez fosse melhor deixar tudo por conta da audição e olfato do marido. Era provável que ele sentisse o cheiro dos estranhos e escutasse os ruídos que faziam.

Os homens não pareciam estar com as melhores das intenções. Seus olhares, risos e comentários não davam espaço para expectativas animadoras. Eram bandidos e seu líder estava a poucos passos de onde ela se encontrava. O homem abriu a boca em uma risada maldosa e Kenna pôde ver que lhe restavam poucos dentes.

— Não é que foi mais fácil localizar a mulher mais depressa do que ele pensava? — o homem disse aos companheiros.

— Quem é que pensava que seria difícil me encontrar? — perguntou Kenna querendo ganhar algum tempo distraindo a atenção do homem. Talvez se mergulhasse e permanecesse no fundo do riacho, conseguisse despistar os bandidos. Só que não conseguiria ficar muito tempo sem respirar.

— Foi seu tio quem nos disse isso — o homem desdentado respondeu. — É Kenna Brodie ou estamos enganados? Seu tio a descreveu muito bem.

Kenna escutou a mãe deixar escapar uma blasfêmia. O tio queria se assegurar que a sobrinha não voltasse a Bantulach. Mesmo não sendo uma surpresa para ela ver confirmadas suas suspeitas, Kenna sentiu uma forte dor no coração. Os parentes deviam ser aquelas pessoas em quem se pode confiar e buscar refúgio nos momentos difíceis da vida. Kelvyn Brodie, porém, queria vê-la morta e assim ficar com tudo o que pertencia a ela.

— E por que motivo meu tio mandou me procurar? — Ela tentaria fazer o papel de tola.

— Ora, pensei que a senhora fosse mais esperta. Viemos acabar com sua vida a mando de seu tio.

— Oh, entendo. Ele quer que sejam os senhores a fazerem o serviço sujo.

— Exatamente, senhora. E nem pense em escapar. — Ele riu alto e os outros homens riram também. — Não gosto de matar mulheres, mas seu tio pagou caro pelo serviço.

—Muito bem. Mas por acaso o senhor pensou em meu marido. Tenho agora um homem para me defender.

— Oh, vimos o seu homem e ele não nos pareceu uma ameaça. E se quiser saber, dois de meus homens estão agora...

— Mortos. E eu lhe prometo que o mesmo vai acontecer com os senhores!

O assassino arregalou os olhos ao ver-se diante de Bothan que surgia sem fazer ruído algum. Ninguém notara a sua aproximação.

— Você está bem, querida? — ele perguntou, sem se voltar para o lado em que Kenna estava.

— Muito melhor agora, meu amor.

— Conseguiu tomar o seu banho antes de ser interrompida?

— Oh, sim.

— Ótimo. Então pode voltar ao nosso refúgio.

Antes que fizesse qualquer movimento, Kenna viu o marido agarrar o homem desdentado pela cabeça e torcê-la, quebrando-lhe o pescoço e deixando o corpo cair para um lado. Bothan ostentava um olhar de fera quando se abaixou e tirou a adaga da mão do morto e jogou-a longe.

Kenna não se moveu fascinada pela figura de Bothan, por sua agilidade e coragem.

Nunca o achara tão belo como nesse momento. Mas não sabia como ele esperava derrotar tantos homens armados estando com as mãos nuas.

— Sabe nadar, querida? — ele perguntou.

— Como um peixe — foi a resposta dela.

— Ótimo. Respire fundo, então.

 

Seu marido a afundou na água com uma das mãos enquanto com a outra enfrentava um dos homens que o atacava com uma faca. Kenna lutou para subir à superfície o mais rapidamente que pôde. Como ele ousava colocá-la de lado enquanto enfrentava um bando de assassinos? Ela tentaria ajudá-lo de alguma forma.

A primeira vista, estava claro que o marido não precisava da ajuda de ninguém. No pouco tempo em que ela estivera submersa, ele já havia matado mais dois dos homens. Os três que restavam pareciam indecisos se enfrentavam o inimigo que mais parecia uma fera do que humano ou então fugirem covardemente. Mas seria uma vergonha se fugissem de um homem desarmado. Kenna podia ver que o marido dizia algumas palavras talvez os instigando a enfrentarem-no.

Subitamente três homens pularam sobre Bothan, e Kenna gritou em desespero quando viu o marido sumir debaixo dos assassinos. Nadou furiosamente para a margem sem ter idéia do que poderia fazer, mas desesperada para ajudar Bothan. Quando conseguiu colocar um dos pés em terra firme, parou abismada com o que via. Os três homens começavam a se erguer.

Um estranho som escapou da boca de Bothan. Era forte e lembrava o urro de um felino enquanto lutando. O homem que estava apoiado no braço direito de Bothan subitamente saiu voando pelo ar. Kenna viu o corpo se chocar contra uma árvore e ouviu nitidamente o barulho de ossos se quebrando. O modo como o bandido caiu no chão e não se moveu era sinal de que ele, também, estava morto. Ela voltou o olhar para Bothan e notou que agora os dois atacantes remanescentes pareciam aterrorizados e ela não podia culpá-los.

Havia um homem pendurado nas costas de Bothan e este usou seu braço direito para agarrar o inimigo e atirá-lo para o lado.

Kenna arregalou os olhos. Bothan estava magnífico parecendo uma fera fazendo em pedaços aqueles que ousavam atacá-lo.

— Quem é o senhor? — perguntou o terceiro homem quando soltou o braço esquerdo de Bothan e deu alguns passos para trás.

Uma boa pergunta, Kenna pensou.

— O seu executor — Bothan respondeu. — Mas vou lhe dizer o meu sobrenome. Sou um MacNachton.

O homem ficou branco como se tivesse perdido todo o sangue do corpo.

Ele se moveu rapidamente e Kenna não percebeu o que o marido estava fazendo até que ouviu mais uma vez o barulho de um pescoço sendo quebrado. Tudo tinha sido feito com fria precisão a ponto que ela sentiu-se dividida entre admiração e repulsa. Praticamente durante toda aquela batalha, Bothan não tinha usado uma arma e, no entanto, havia matado cinco homens. Ela lembrou-se subitamente que ele mencionara outros dois homens que haviam sido enviados pelo chefe do grupo para dominá-lo. Não tinha como duvidar que esses dois também estavam mortos.

Então sem um sinal de aviso, o homem que Bothan atirara de lado lhe enterrou a adaga no peito. Kenna berrou, certa de que o marido tinha sido ferido mortalmente. Viu, porém, os dois homens se agarrarem e o bandido soltar um urro de dor. Kenna sentiu que ia desmaiar vendo que o bandido estava com a cabeça inclinada. Percebeu então que Bothan mordera o homem no pescoço, usando seus caninos pontudos. Demorou a soltá-lo, e quando o fez, Kenna sentiu o estômago revirar. O homem contratado por seu tio estava agora morto com a garganta totalmente aberta.

Bothan caiu lentamente de joelhos e abaixou a cabeça. Kenna podia perceber que ele estava com dificuldade de respirar. Sentiu-se dividida entre o desejo de correr ao seu encontro e ao mesmo tempo fugir o mais depressa possível dali. E por que não saia sangue da garganta do morto? Ela realmente não queria saber a resposta para essa pergunta. Vá até ele, criança.

— Mamãe — ela murmurou, — não viu o que ele acabou de fazer?

Sim, ele salvou a sua vida. Agora, vá até ele. Não acabou há pouco de descobrir que está apaixonada por seu marido?

Sim, de fato. O problema é que Bothan não era apenas um homem um pouco diferente. Ele acabara de matar oito homens com as mãos nuas. Quebrara o pescoço de vários de seus atacantes e, por fim, abrira a garganta do último deles com os dentes. E rugia como um gato selvagem enfurecido. Ninguém apenas diferente sobreviveria se atacado por oito homens armados.

Subitamente se conscientizando que Bothan podia estar mortalmente ferido, ela correu para o lado dele. Ajoelhou-se e viu sangue em sua camisa. Assustada procurou por ferimentos e encontrou vários cortes, mas nenhum sangrava.

— Está ferido, meu marido? — ela perguntou, sem ousar tocar nos ferimentos. Pareciam estranhos demais.

Quando Bothan levantou a cabeça, Kenna teve uma nova surpresa. Ele tinha sangue na boca, o que talvez significasse que estivesse morrendo. No entanto, parecia corado e forte, cheio de vigor. E em sua expressão havia a sombra de algo que não podia ser humano. Quem era afinal esse homem por quem ela se apaixonara?

Bothan identificou o medo nos olhos de Kenna, e se amaldiçoou por deixá-la ver do que ele era capaz. O instinto de sobrevivência falara mais forte e ele sugara o sangue da garganta do último homem, restaurando assim suas forças. Sentira-se enfraquecer e talvez se não agisse com rapidez os ferimentos podiam lhe ser fatais. Não tinha certeza se Kenna assistira a tudo isso, mas suspeitava que a forma selvagem com que ele lutara e matara os seus atacantes tinha sido o suficiente para assustá-la e de ser tomada por mais suspeitas em relação a ele.

— Estou bem — disse, satisfeito que Kenna não afastasse o rosto quando ele a acariciou de leve. — Eles a machucaram?

— Não. — Kenna suspirou profundamente.—Meu tio mandou esses homens para me matarem.

— Suspeitei que sir Kelvyn faria exatamente isso. Deveria ter pressentido que o ataque seria nas proximidades de Bantulach, mas me distrai com nossas brincadeiras amorosas. Isso podia ter lhe custado a vida. — Percebeu que a esposa tremia. — Você está molhada e pode adoecer. Cubra-se com esta capa, reúna os seus pertences e volte ao refúgio. Lá, vista roupas secas e se aqueça junto ao fogo.

— Devo ir sozinha?

— Eu logo estarei com você. Vou lavar este sangue primeiro e ver o que há na bagagem desses homens. Não precisa temer perigo algum.

Kenna obedeceu ao marido, reuniu as suas coisas e apressou-se a voltar ao refúgio. Sabia que não restara bandido vivo por ali.

Bothan a observou até que ela desapareceu de sua vista. Aproximou-se dos corpos e começou a examinar o que levavam. Estava preocupado. Podia ter salvado a vida de Kenna, mas isso podia lhe ter custado caro. Pego em uma luta mortal, ele usara de tudo aquilo que o tornava mais animal do que humano. Algo o consolava, porém. Kenna correra para ele, angustiada por pensar que estivesse ferido. Isso depois de ter presenciado as mortes. Precisava que Kenna o conhecesse da forma que ele era e, mesmo assim, o aceitasse. Isso era o que mais queria da vida.

Está pensando demais, minha filha.

Arrumando as suas coisas, Kenna não se surpreendeu em ouvir a voz da mãe. Por alguma razão, ela estava determinada em convencer a filha a ficar com Bothan. Havia incentivado o casamento e agora queria garantir que este não fosse desfeito.

— Mamãe, começo a desconfiar que ele não seja humano.

Ele é humano, querida filha, apenas um tipo diferente de humano. Você também não é diferente das outras mulheres?

— Sou, mas não quebro pescoço de ninguém nem dilacera gargantas com meus dentes. E onde foi o sangue de suas feridas? Não, não me responda isso. Não quero saber a resposta.

Ele não é um demônio, querida. Você acha que eu estaria aqui insistindo para que fique com ele se sir Bothan fosse um demônio ?

— Não creio que faria isso, mamãe. — Kenna ajeitou o laço do vestido e começou a trançar o cabelo ainda molhado. — Não precisa insistir porque ainda estou aqui, não é? E não abandonarei o meu marido. Apenas preciso de tempo para entender suas estranhezas e a senhora não pode me culpar por isso. O que ele fez hoje foi além do meu entendimento. E claro que sinto um pouco de medo, mas também sei que ele nada fará contra mim. Posso ver agora que ele poderia ter me matado no dia em que nos conhecemos, no entanto foi compreensivo. Também sei que as mortes de hoje foram para me salvar. Nenhum dos homens contratados por tio Kelvyn hesitaria um instante em me cortar a cabeça. Apenas preciso de algum tempo para entender e aceitar as diferenças de Bothan.

Ele lhe explicará tudo muito em breve, minha criança.

— Quando?

Não houve resposta, e Kenna praguejou baixinho. Um momento mais tarde Bothan chegava. Pela primeira vez em dias ela se sentiu pouco à vontade ao lado do marido. No olhar dele a expressão que não deixava dúvidas. Ele sabia do desconforto da esposa, entendia a razão do medo, mesmo assim estava magoado.

Kenna sentiu um aperto no coração. Amava Bothan, mas o marido continuava sendo um estranho para ela, um estranho bastante assustador.

— Seu tio foi tolo a ponto de dar por escrito a ordem para matá-la. Nem sei por que ele fez isso, já que duvido que aqueles homens soubessem ler. — Bothan estendeu a Kenna um documento e também algumas bolsas cheias de moedas de ouro. — Aqui está o pagamento que ele fez aos assassinos. É algo que lhe pertence.

Kenna perdeu-se em pensamento. Jamais seria capaz de ordenar a morte de alguém. Mesmo que assumisse o poder em Bantulach, não teria coragem de mandar executar o tio, apesar de tudo o que ele fizera contra ela. Mas seria justo deixar a morte de seu pai sem qualquer punição?

Bothan pareceu ler seus pensamentos.

— Se seu tio não for morto, ele sempre representará um perigo contra você.

— Meu tio merece ser enforcado — ela murmurou. — Apenas não sei se sou capaz de dar essa ordem.

— Cuidarei de tudo para você, se assim o desejar.

— Isso certamente resolveria o problema.

Bothan observou a expressão nos olhos de Kenna. Ele acreditava que seria melhor se o homem fosse morto, mas entendia a hesitação da esposa. Se ela escolhesse mandar o tio para o exílio, talvez se sentisse melhor. Neste caso, ele precisaria ficar atento para evitar que Kelvyn Brodie tentasse recuperar o poder. O homem era capaz de tudo.

O que interessava a Bothan naquele momento era que seu relacionamento com a esposa voltasse ao que era antes. Já se sentia aliviado ao ver que ela conversava com ele, como se nada tivesse acontecido.

— Quem sabe prefira banir o seu tio de Bantulach—ele sugeriu para agradá-la.

— Bani-lo poderia ser uma boa solução.

— Mas se ele quiser voltar à força, não deixarei que faça nada contra você. Neste caso eu o matarei.

Kenna fez um gesto com a cabeça como se aceitasse essa atitude.

— Entendo. Nós não podemos deixar que minha fraqueza nos prejudique, Bothan.

Nós, ela tinha dito, e Bothan sentiu-se relaxar um pouco. A esposa não o excluíra de sua vida. Começou a reunir os pertences e levá-los até os cavalos. A viagem poderia não ser de todo agradável, mas Kenna assistira à batalha e não tentara escapar. Havia ficado ao lado dele e isso definitivamente significava uma esperança de que tudo se acomodaria aos poucos.

O fato de precisar tanto da aceitação de Kenna, chegava a ser um pouco desconcertante. Eram casados e estavam ligados pela vida toda pelos votos pronunciados diante de Deus, votos testemunhados pelo primo James. Estavam unidos pelo espírito e carne. Ela era sua companheira. Porém, aquela necessidade que ele sentia em marcá-la se tornava cada vez mais forte sempre que a tinha em seus braços. Entretanto, ela teria de aceitá-lo primeiro.

Finalmente tudo estava pronto para a partida.

Quando Kenna se reuniu a ele, Bothan ajudou-a montar e manteve as mãos na cintura da esposa um pouco mais do que o necessário. Ocorreu-lhe que ela poderia estar carregando um filho dele. Os MacNachton não eram muito férteis, mas os Callan, a família de sua mãe, tinham muitos filhos. Ele tinha muitas das características felinas peculiares aos Callan, assim havia uma forte possibilidade de que também fosse igualmente fértil.

Quando montou em Moonracer, decidiu que contaria logo todos os seus segredos para Kenna. Ela precisava saber o que esperar em cada criança que gerassem juntos. Ele se permitiria um mês, talvez dois, para ganhar a confiança que tanto desejava. Depois simplesmente lhe contaria toda a verdade e rezaria para que tivesse ganhado o coração da esposa a ponto de não ser abandonado.

— Lá está Bantulach — Kenna exclamou, apontando para uma fortaleza de pedra.

Eles haviam cavalgado a noite inteira e agora a lua começava a desaparecer no céu a medida que os raios de sol se tornavam mais fortes. Ela ansiava por um banho e uma cama macia. Isso depois de saborear uma alimentação bem farta, claro, já que seu estômago reclamava. Kenna nem se lembrava quando tinha sido sua última refeição decente.

Observando Bothan, podia notar que ele estava bastante tenso conduzindo o cavalo em direção aos portões de entrada. Estava se preparando para o confronto com o tio dela. Kenna percebeu que tinha deixado de pensar como seria o encontro entre eles, porque sua mente estivera ocupada em encontrar explicações para as estranhezas do marido. O que afinal, sir Bothan MacNachton ainda não lhe revelara? Não queria ser ela a puxar o assunto, porque poderia magoar Bothan. Talvez pudesse conversar sobre suas preocupações com alguém. Mas não poderia ser com sua amiga Florie, uma jovem incapaz de manter segredos. Florie certamente espalharia em um segundo todas as confidencias, mesmo as de sua melhor amiga.

À medida que entravam pelos portões de Bantulach, Kenna tomou consciência que o povo a olhava com interesse. Algumas pessoas pareciam satisfeitas em vê-la de volta. Talvez as coisas transcorressem um pouco diferente agora.

— Aquele é o seu tio? — Bothan perguntou emparelhando o cavalo ao lado da égua que ela montava.

Kenna olhou para o homem alto e magro que vinha na direção deles.

— Sim, aquele é o meu tio Kelvyn.

— Pensei que devia ser ele, porque no momento em que nos viu pareceu entrar em choque. Ele parece muito aborrecido em vê-la, querida.

— E ficará ainda mais aborrecido nos próximos minutos.

— Não confio nesse homem.

— Nem eu, Bothan. Nem eu.

— Expulsá-lo da cidade talvez não seja o suficiente.

— Depois de pensar sobre o assunto, cheguei a mesma conclusão, mas pelo menos tenho de tentar.

— Então, se quer assim...

—- Saudações, Kenna — disse Kelvyn Brodie ao chegar junto à sobrinha. — Não esperava vê-la tão depressa. Então conseguiu realizar sua missão?

— De certa forma, meu tio. Analisei o assunto com cuidado em minha jornada, e decidi que voltar com apenas partes do corpo de um homem era tolice. Afinal, não foi meu pai quem me recomendou que me casasse com um homem forte e corajoso? — Kenna viu as veias do pescoço do tio se repuxarem de nervoso. — Então, em vez de uma mão, a cabeça e o coração de um MacNachton, eu decidi trazer para casa um MacNachton inteiro e vivo. — Ela ignorou o resmungo de Bothan contra esse tipo de humor. — Permita-me lhe apresentar sir Bothan MacNachton, meu marido.

O olhar do tio fez com que Kenna considerasse que valera a pena a exaustiva jornada de uma noite inteira.

 

Kenna aspirou o perfume das lindas flores, os sininhos azuis, no buquê que Bothan lhe estendia. Além de um homem corajoso e destemido, o marido começava a dar sinais de ser romântico. Ele a vinha surpreendendo com pequenos agrados nos últimos dias. Isso sem contar que lhe fazia todas as vontades.

— Onde encontrou as minhas flores preferidas? E como soube que eu adorava os sininhos azuis?

— Sua amiga Florie contou-me sobre as suas preferências, querida esposa. Também me revelou quais são seus pratos preferidos, especialmente os doces. Encarreguei Agnes de lhe preparar um diferente a cada dia.

— Assim me deixará mimada demais, sir Bothan. Está por acaso com segundas intenções, meu senhor? — Kenna piscou atrevidamente para o marido.

— Sempre estou disposto a passeios pelo quarto, cara esposa. Kenna riu quando o marido gentilmente lhe beijou a mão. De repente, algo a perturbou.

— Tem certeza de que devíamos ter banido tio Kelvyn tão depressa de Bantulach? — Kenna perguntou, sorrindo para o marido que saboreava uma fruta à sua frente.

— Você parecia convencida de que isso seria mais sábio do que mandar que o executassem. Por acaso mudou de idéia?

Bothan falava com tanta simplicidade em mandar matar um homem que Kenna se perturbou. Depois pensou melhor e concluiu que era ela quem não estava pensando com clareza. Suspeitava que o tio matara o irmão para se apossar de Bantulach. Não tinha provas concretas do crime, contudo tivera nas mãos o contrato que Kelvyn assinara determinando que assassinos a procurassem na floresta e a executassem sem piedade. Disso tinha prova. E ainda não podia se esquecer que o tio representava um grande perigo para o clã MacNachton, daí a preocupação e cautela de Bothan.

Após chegar a cidade, deixara por conta do marido se encarregar do afastamento do tio do poder e de providenciar que ele fosse expulso definitivamente de Bantulach. A ordem tinha sido clara: Sir Kelvyn jamais poderia voltar àquele lugar.

Enquanto Bothan se encarregava desta parte desagradável, Kenna resolvera descansar da exaustiva viagem. Dormira por dois dias inteiros e ainda se sentia cansada. Começou então a desconfiar ser algum problema de saúde. Estaria doente?

Distraída demorou a responder a pergunta do marido.

— Não mudei de idéia e nunca fui assim tão indecisa. Pensei não estar convencida do que deveria fazer para punir o meu tio porque me sentia exausta com o esforço de nossa viagem até aqui. Agora, mesmo tendo descansado, continuo sem saber se tomei a decisão certa.

— Oh, com certeza esteve dormindo profundamente desde que chegamos — ele comentou.

Kenna percebeu que o marido estava sendo um pouco irônico, talvez pelo fato de ela ter usado a cama nos últimos dois dias, apenas para dormir. Tinha certeza, porém, que ele sabia não se tratar de um disfarce para evitá-lo. Provavelmente não se satisfazia em dormir ao lado de uma mulher sem partir para os jogos amorosos. Ela própria sentia falta disso. E não se censurava por sentir desejo pelo marido. O que ainda a intranqüilizava era não saber toda a verdade sobre Bothan.

Aos poucos o choque provocado pela cena que presenciara no riacho, começava a esvanecer. Sabia que o marido jamais levantaria um dedo contra ela. As perguntas fervilhavam em sua mente e ela precisava de respostas. De certa forma, também as temia. Tinha certeza de que Bothan não havia mentido ao lhe dar algumas vagas explicações sobre alguns de seus atos. Faltava muito a ser revelado, porém. Talvez o marido precisasse de mais algum tempo , para fazer tais confidencias.

Contudo, algo continuava a atormentá-la. Em seu sonho Bothan aparecia com os lábios cheios de sangue. Não era exatamente o que ela tinha visto no riacho. Na visão, o sangue era dela, não o de um bandido. Estaria interpretando o sonho de forma errada, ou em algum momento o marido a morderia a ponto de lhe tirar sangue?

Kenna suspirou. Não podia se esquecer dos caninos afiados do marido.

— Está preocupada novamente, querida? Parece perdida em seus pensamentos. Acredita que devíamos deixar seu tio permanecer junto a nós depois do que lhe fez?

— Claro que não, Bothan. Um homem capaz de matar o próprio irmão e querer a morte da sobrinha não merece viver. Talvez eu devesse tê-lo escutado, meu marido, quando pensou em mandar executar tio Kelvyn. Acredita que ele ainda seja capaz de querer a minha morte?

— Creio que sim. No entanto, não se preocupe com nada. Estou atento e a protegerei de qualquer perigo.

— Sei disso. E lamento que tenha me entregado ao sono nestes últimos dias e o deixado com toda a responsabilidade de lidar com o povo de Bantulach, especialmente depois que meu tio lhes envenenou a mente com histórias sangrentas sobre os MacNachton.

— Não se preocupe com isso. Mas é bom que saiba que não me deparei com nenhuma reação de desagrado, mesmo porque a maioria das pessoas tem me evitado.

— Oh, Deus. Elas provavelmente estão nos testando. Ninguém o recebeu bem, meu marido?

— Uns poucos. Simon, a sua amiga Florie, e Ellar, o encarregado dos estábulos. Provavelmente ele concluiu ser impossível alguém possuir um cavalo como Moonracer e ainda assim ser um demônio. — Bothan sorriu. — Ah, sim. O ferreiro, a cozinheira e Freja, a irmã do guardador de porcos.

— E quanto a Ian, o guardador de porcos?

— Ele ainda não se convenceu de que pode confiar em mim.

— Na verdade, conheço Ian e ele é um homem que demora a se decidir sobre as coisas. Nasceu indeciso. Mas já é um começo, apesar de que as pessoas que mencionou são meus amigos. O povo em geral ouviu e acreditou nos boatos que meu tio espalhou. Também tentarão me evitar temendo que eu seja uma bruxa. Você certamente ainda é visto como um demônio. Precisamos convencê-los do contrário, mas para tanto, devemos ter paciência.

Bothan pegou a mão de Kenna e beijou-a delicadamente. Sentiu que ela estremecia e notou que não era de medo e sim prazer. Isso o animou. Naquela mesma noite se certificaria se a paixão entre os dois estava como antes do episódio do riacho. Precisava ter certeza de que a esposa não começara a sentir repulsa por ele devido a seus segredos.

Sentiu-se excitado ao simples pensamento de possuir Kenna. Se não fosse impróprio, ele a levaria imediatamente para a cama naquele exato momento. Forçou a mente a se ocupar apenas com os planos imediatos da esposa. Ela parecia decidida a fazer um passeio e entrar em contato com o seu povo.

— Não senti que seu povo faça alguma objeção ao direito que você tem de governá-los. Assim, aja com naturalidade, minha esposa. Na verdade, senti certo alívio nas pessoas por saberem que seu tio não está mais no comando de Bantulach.

— Isso é ótimo. — Kenna sorriu satisfeita. — Veremos para que lado o vento sopra e não forçaremos ninguém a gostar de nós de imediato. Bem, sairei agora e veremos como o povo me tratará.

— Deseja que eu a acompanhe, senhora?—Bothan desconfiava de que esta não era uma boa idéia, mas faria a vontade da esposa.

Kenna beijou a mão dele carinhosamente aumentando as expectativas de Bothan quanto aos prazeres daquela noite.

— Gostaria de tê-lo ao meu lado, meu marido, mas desta vez creio que será melhor eu estar sozinha. Assim, as pessoas se sentirão mais à vontade para expressarem os sentimentos em relação a você. Depois, está um dia bem claro e cheio de sol. Farei um passeio como os fazia antes. Ninguém em Bantulach será capaz de segurar a língua se eu me mostrar disposta a ouvi-los.

— Concordo com você, querida. Apenas se lembre de que é a herdeira de seu pai e juntos somos os governantes de Bantulach. Escute o que o povo tem a dizer, mas deixe claro que agora será você a tomar as decisões.

Kenna terminou de comer uma maçã e despediu-se de Bothan com um abraço. Mais uma vez sentiu dificuldade em resistir ao desejo de colocar os braços em torno do marido e entregar-se aos prazeres da carne. Mas era necessário estar no meio do povo e descobrir uma forma de tirar-lhes da mente a impressão de que os MacNachton eram criaturas temidas. O problema era saber se eles seriam convencidos disso por uma mulher que pensavam ser uma bruxa.

O beijo de Kenna e suas palavras suaves e românticas, quase levaram Bothan a desistir de esperar a noite para fazerem amor. Contudo, tinha de esperar e deixar que ela conversasse com as pessoas. Rezava para que ela estivesse assim tão amorosa quando o sol desaparecesse no horizonte.

Pena que faltassem ainda muitas horas para isso acontecer.

— Kenna!

Perdida em seus pensamentos, Kenna se surpreendeu com o chamado. Sorriu ao ver que era Florie correndo em sua direção. Abriu os braços e acolheu a amiga com entusiasmo.

— Temi que estivesse doente — Florie foi dizendo enquanto observava Kenna com atenção. — Está me parecendo bem, minha amiga.

— E de fato estou. Claro que ainda cansada da longa jornada.

— Deve ter sido difícil ter de deixar este lugar e perambular sem rumo, mas acabou voltando acompanhada de um homem muito bonito.—Florie riu e Kenna a acompanhou nessa demonstração de alegria. — Seu marido não é de fato um demônio, ou é?

—Claro que não, Florie. E que o demônio tem um primo padre?

— Ele tem um primo padre? — Florie perguntou surpresa. — Existem padres no clã MacNachton?

— Oh, sim. Foi esse primo quem nos casou.

— Seus filhos serão muito belos, Kenna.

— E quero que todos tenham os olhos dourados do pai. — Kenna percebeu que desejava verdadeiramente que seus filhos fossem assim. — Mas, deixemos os filhos para mais tarde. Estou fazendo um passeio e conversando com as pessoas para convencê-las de que não devem temer Bothan.

— Temo que não seja fácil. Seu tio envenenou a mente do povo com calúnias sobre os MacNachton que decididamente assustaram a todos, Kenna; É estranho, mas o fato de sir Bothan ser tão belo, apenas aumentou o medo que eles já sentiam antes de conhecer pessoalmente um MacNachton.

— O diabo nos enviaria um belo homem, ou mulher, para nos tentar?

— Oh, sim. Não havia pensado nisso, mas faz sentido. Ainda assim, não entendo do que reclamam tanto. Ninguém gostava de seu tio e muitos acreditam que tenha sido ele quem matou seu pai, Kenna.

— Também eu suspeito disso, mas não tenho prova de que ele seja o responsável pela morte de meu pai. Mas tenho prova de que meu tio mandou me matar. Contratou assassinos e eu estaria agora morta se Bothan não me tivesse salvado.

— Simon contou-me sobre esse atentado, Kenna. Seu marido mostrou a ele e a algumas outras pessoas um contrato que seu tio fez encomendando a sua morte. Tudo isso para ficar com as terras de Bantulach. — Florie abanou a cabeça em sinal de censura. — Matar a própria sobrinha apenas para se apossar de um lugar onde poderia viver livremente, isso é pura maldade.

— Nada é bom o suficiente para tio Kelvyn. Sua ambição não teve limites.

— E acredita que ele vai desistir?

—Não creio. Eu determinei que fosse expulso da cidade porque não conseguia me imaginar ordenando a morte de alguém. Mas certamente ele tentará usar de seus assassinos para retomar algo a que não tem direito. Rezo para que se isso acontecer, Bothan esteja ao meu lado e me proteja mais uma vez.

Kenna sentou-se diante de um espelho que o pai lhe havia dado de presente em seu décimo sexto aniversário. Penteou os cabelos ainda úmidos. Havia relaxado bastante em um banho morno e mesmo os acontecimentos do dia podiam agora ser vistos com otimismo. Ela e Bothan tinham poucos aliados, mas ninguém parecia disposto a se revoltar contra eles. A maioria não sabia de que lado pender, se acreditavam nos boatos de seu tio ou em suas palavras.

Quando Bothan entrou no quarto, ela lutou para não ruborizar. Ele certamente esperava que ela ainda estivesse acordada, esperando para ser amada. Era um desejo compartilhado, e Kenna suspeitava que se sentia acanhada naquele momento justamente pela ousadia dos próprios pensamentos.

Bothan aproximou-se e tirou a escova das mãos da esposa. Começou lentamente a pentear-lhe os cabelos, ao mesmo tempo em que deslizava os dedos em sua nuca. Ele não tinha pressa. Durante o jantar, inclusive, conversara com Simon e Florie mostrando-se comunicativo e discutindo com os dois sobre o medo que Kelvyn havia provocado no povo em relação aos MacNachton. Chegara a pedir aos dois ajuda para convencer a todos de que apenas haviam se deixado envolver por mentiras.

Agora, na intimidade do quarto, o brilho dos seus olhos dourados se intensificava. Ele inclinou-se e beijou Kenna no pescoço. O mero toque dos lábios provocou imediatos arrepios no corpo da jovem esposa. Ela queria mais do que beijos, esta era a realidade. E quando Bothan começou a desfazer o laço da camisola, Kenna sentiu que a timidez desaparecia e dava lugar a um desejo irrefreável. Queria tocar no corpo do marido como ele fazia agora com o dela.

— Sou um homem faminto de desejo hoje à noite, minha linda esposa — ele murmurou e sua voz soou cheia de paixão. — Faz muito tempo desde a última vez que a tive em meus braços desfrutando os prazeres da cama.

— Foram apenas poucos dias — ela retrucou, embora satisfeita de ver que o marido sentira a sua falta.

— Pois me pareceram anos.

Ela suspirou de prazer e fechou os olhos quando Bothan lhe tirou a camisola e mais uma vez se viu nua diante de um homem apaixonado. Nem sequer ruborizou de acanhamento ao perceber o olhar de admiração que Bothan lhe dirigia. Sentir-se desejada era algo novo e agora imprescindível para sua nova existência como esposa.

— Eu pretendia amá-la bem devagar, fazer com que ficasse meio louca de paixão — ele murmurou —, mas não consigo esperar nem mais um segundo. Dormir ao seu lado sem tocá-la foi uma tortura e uma prova de meu controle. Felizmente não preciso mais esperar.

— Quem pediu que se controlasse, meu marido?

Este era um convite tão claro e impossível de ser recusado. Bothan imediatamente penetrou a esposa, percebendo que ela arqueava o corpo para lhe facilitar a entrada. Em minutos, ambos se saciavam plenamente.

Bothan voltou-se saboreando o enorme prazer que sentia em ter o corpo de Kenna junto ao dele. Tinha feito tantos planos para aquela noite e terminara agindo como um rapazinho em suas primeiras experiências sexuais. Para seu consolo, ela também estava tão ansiosa pelo ato em si quanto ele. A noite não saíra como o planejado, contudo não havia motivo algum para reclamar.

— Isto não foi exatamente o que eu tinha em minha mente — ele confessou sem olhar para Kenna, porém percebendo que ela estava atenta.

— Quer dizer que não tive tempo de revirar os meus olhos em delírio e pedir que me saciasse imediatamente? Isso realmente importa?

— Não, mas agir como um louco não é a melhor forma de fazer amor, minha linda.

— Não tenho do que reclamar, Bothan.

Ele sorriu, absurdamente envaidecido com a observação de Kenna.

— Bem, logo que eu recuperar minhas forças, tentarei novamente.

— Isso me parece muito promissor — ela murmurou com voz sonolenta. — Acorde-me quando decidir que está pronto para me mostrar suas habilidades.

— Na verdade, tenho planos de lhe demonstrar algumas novas habilidades, tentar coisas que ainda não experimentamos.

— Coisas aceitas pela igreja?

Bothan riu gostosamente.

— Se não forem, pedirei para o meu primo a nossa absolvição.

—Mais uma vantagem em termos um padre na família. Imagino que quando o povo souber da existência de Padre James, começarão a nos ver com melhores olhos. Concluirão que um demônio jamais teria um religioso como primo.

Bothan voltou a sorrir e observou a esposa. Ela parecia exausta novamente. Considerando que tinha passado os dois últimos dias repousando, isso definitivamente não deveria estar acontecendo.

Subitamente lhe voltou a suspeita de que ela poderia estar cansada por um outro motivo. Não apenas a longa viagem a deixara exausta, nem mesmo o ato sexual. Quem sabe Kenna estivesse esperando um filho?

Procurou avaliar essa possibilidade com frieza. Por parte de pai, sua família era infértil, mas por lado da mãe, não. Os MacNachton lutavam para conseguir procriar, já os Callan tinham um número alto de recém-nascidos. Por vezes, estes nasciam em par. Por tudo o que sabia, Kenna era uma mulher cujo corpo parecia pronto a ser fertilizado. Ele se manteria atento a observá-la.

Finalmente permitiu-se fechar os olhos e adormecer. Se Kenna dormira o suficiente para dois nos últimos dias, ele quase não se permitira descansar. O perigo podia estar rondando aquele lugar, já que Kelvyn não se conformaria tão facilmente em perder o poder e a riqueza. Naquele momento, porém, ele jogaria com a sorte e daria chance ao seu corpo de relaxar. Depois disso, talvez ainda acordasse para uma nova seção de prazer na cama.

 

Kenna acordou se sentindo tão quente que arregalou os olhos e tentou ver se a cama não estava pegando fogo. Então compreendeu que estava sendo beijada. Entre as pernas. Chocada mesmo que o desejo continuasse a correr ardente por seu corpo, ela ousou olhar naquela direção. Bothan havia afastado suas pernas e a beijava na parte do corpo para a qual ela não tinha um nome decente.

— Bothan! — ela gemeu.

— Calma, minha doce esposa — ele disse, gentilmente impedindo-a de fechar as pernas. — Você vai gostar disto.

Gostar não era a palavra exata para o que ela sentia. Aquele momento de consciência durou pouco porque logo sucumbiu ao desejo. Toda a modéstia e acanhamento desapareceram à medida que ele usava a língua para acariciar as partes mais femininas. Bothan fazia amor com a boca. Quando Kenna sentiu que o clímax a atingia, chamou o nome do marido repetidas vezes exigindo que ele não parasse e ela se visse privada daquele prazer indescritível.

Momentos depois, novamente consciente, ela começou a se sentir embaraçada. Pensou que sempre soubera que Bothan era diferente, mas jamais ele fizera nada que chegasse às margens da perversão. No entanto, aquela intimidade de há pouco beirava a isso. Abriu os olhos e se viu diante do marido sorrindo.

— Tinha certeza de que gostaria disso — ele disse beijando-lhe a ponta do nariz.

— Verdade, não é? E devo crer que todas as mulheres que desfrutaram consigo desse prazer também gostaram.

— Esta é a primeira vez que ouso ir tão longe com uma mulher. Nunca antes permiti que meus encontros chegassem a tal intimidade. Foram comentários de meus amigos que me garantiram que a mulher sente muito prazer com essas carícias.

— Ouviu tal comentário de seus amigos? Quer me dizer que nunca usou tal prática com mulher alguma.

—Nunca me senti inclinado a ter intimidade com mulheres que conheceram outros homens. Elas carregam o cheiro desses outros encontros.

— Cheiros? Quer dizer que elas não tomam banho?

— Tomam. Sempre exigi que se banhassem antes das relações sexuais. Mas sou muito sensível a cheiros.

Kenna reconheceu que essa era outra das peculiaridades do marido. Voltou o pensamento para o que ele dissera. A intenção de Bothan havia sido lhe dar o maior dos prazeres, mesmo que ele não o sentisse com igual intensidade.

Subitamente, desejou fazer o mesmo. Inclinou-se sobre o corpo do marido e começou a tocar-lhe a pele levemente, usando os lábios.

— O que está fazendo? — Bothan perguntou, procurando manter a voz calma.

— Use sua imaginação, meu marido.

— Estou imaginando o que pretende, querida, mas não tenho certeza se o que estou pensando é correto.

Tendo atingido o seu objetivo, Kenna usou a língua sobre o membro de Bothan e o ouviu gemer alto.

— Quer que eu pare? — ela perguntou com atrevimento.

— Oh, não.

Que esposa faria algo assim, Bothan se perguntou? Oh, como os dois se completavam. O egoísmo desaparecera e ambos queriam que o companheiro desfrutasse do maior prazer que o ato sexual oferece. Nada era proibido, nada era pecaminoso.

— Suba em cima de mim, Kenna — ele disse em uma voz rouca. — Agora, minha linda. Agora.

Levou um momento para Kenna entender o que ele pedia.

Amando o marido daquele maneira tinha se mostrado tão incrível como nos outros modos de fazer amor. Talvez um modo completasse o outro, ela pensou. E sem hesitar subiu em cima dele, tremendo de prazer quando ele a penetrou. Bothan a segurou pelos quadris e lhe mostrou como se movimentar. Logo pedia maior rapidez e ambos chegaram mais uma vez ao clímax do prazer.

Bothan abriu os olhos e observou a mulher inclinada sobre o seu peito. Sorriu satisfeito. Haviam sido feitos um para o outro. E o melhor de tudo é que Kenna aceitara a sua natureza sensual e se permitia a todas as liberdades. Liberava esse lado apaixonado de si mesma.

Uma batida na porta interrompeu-lhe os pensamentos eróticos.

— Quem é? — ele perguntou.

Sabia que nenhum criado entraria no quarto porque ele sempre se assegurava de trancar a porta.

— Sou Simon, senhor. Alguém avistou sir Kelvyn nas redondezas. Achei melhor alertá-lo.

Bothan pulou imediatamente da cama, vestiu-se e calçou as botas antes de abrir a porta. Os pensamentos agora se voltavam todos à chance de capturar o tio de Kenna. Ela ainda estava se vestindo quando ele pegou a sua espada e a beijou rapidamente, saindo imediatamente do quarto.

Kenna suspirou vendo o marido se afastar. Pediu à criada de quarto que lhe preparasse um banho quente e começou a escolher o que vestiria. Havia sido uma forma abrupta de começar o dia, mas desejou que Bothan fosse bem sucedido, apesar de não acreditar que o tio fosse tão fácil de ser pego. Só esperava que Bothan não se ferisse nessa empreitada.

Kenna sentiu um frio na espinha ao ler as cartas que estavam à sua frente. Depois da primeira refeição, ela havia entrado no quarto que pertencera ao seu pai e depois ao seu tio. Vasculhara aqui e ali em busca de algum lugar onde o tio pudesse ter escondido algum ouro ou algo de valor. Seria bom se encontrasse algum, já que Bantulach não era uma cidade rica e precisaria da ajuda de seus governantes para enfrentar tempos difíceis, caso estes viessem. Em vez de ouro, encontrou as cartas.

Eram dirigidas ao tio. Kenna hesitara em ler uma correspondência que não lhe pertencia. Chegou a pensar em queimá-las na lareira.

A curiosidade, porém, a tinha pressionado a dar apenas uma olhadinha em uma das cartas. Afinal, estavam abertas. Prometera a si mesma que apenas passaria os olhos rapidamente pelo texto.

E assim o fizera. Escolhera uma carta a esmo, mas algo despertara sua atenção. O nome dos MacNachton surgia em vários trechos. Com o coração em disparada, começou a ler a carta por inteiro. Em instantes sentira-se tomada pela indignação.

Notou que algumas datavam de três anos antes. Assim, tinha ordenado as cartas pelas datas e começado a leitura. Nem bem havia lido as primeiras sentenças, já se sentia com dor de estômago. A primeira carta se referia aos MacNachton e comentava os rumores sobre o clã. Pelo visto, o tio se encarregara de espalhar os boatos com a certeza de que a superstição do povo faria o resto do serviço.

Kenna serviu-se de um copo de vinho e continuou a leitura. Começou a anotar alguns nomes envolvidos na caçada aos MacNachton e que seguiam a orientação de sir Kelvyn.

Ao chegar à última carta, Kenna estava gelada de medo com o que poderia acontecer ao marido. Bothan já havia comentado com ela sobre esse grupo de caçadores, mas Kenna jamais supusera que haviam sido reunidos e instigados por seu tio. Havia relatos nas cartas de barbaridades cometidas contra os MacNachton.

Quando finalmente Bothan voltou de sua busca, bastou a Kenna ver a expressão do marido para saber que o tio não tinha sido encontrado.

— O que está fazendo? — ele perguntou notando as cartas empilhadas sobre a mesa.

— Estas são cartas de meu tio. Datam de três anos atrás e quem as escreveu foram os caçadores de seu clã, Bothan.

O marido a fitou por um momento sem tocar nas cartas.

— Onde as encontrou?

— Em um pequeno baú escondido no quarto que foi de meu pai e que tio Kelvyn passou a ocupar. Pensei em procurar por objetos de valor e dei com as cartas. Você precisa ler todas, Bothan. E não contam nada de bom.

Ele se sentou diante da mesa e começou a ler a primeira carta que Kenna lhe entregou. Logo notou que o marido interrompia a leitura.

— São tão ruins como temi — ele murmurou. — Não, não. São piores.

— Eles estão bem organizados — Kenna observou.

—- E não estão planejando matar os MacNachton em batalha honrada ou ataque direto. Pretendem ir nos pegando um a um, quando estivermos sozinhos.

Kenna suspirou sentindo-se abalada.

— O que leu não é nada se comparado com o conteúdo das outras cartas. Seu clã perdeu algum membro recentemente?

— No ano passado minha prima Egidia foi morta.

Kenna revirou as cartas, olhou suas anotações, e estendeu ao marido um dos envelopes. Não se surpreendeu em ver que a raiva foi surgindo no belo rosto do marido. A prima de Bothan tinha sofrido demais antes de morrer. Os homens a haviam estuprado repetidamente, acreditando que se tornariam mais fortes depois de cruzarem com ela.

— Este homem será o primeiro a morrer — Bothan disse e sua voz soou assustadoramente calma.

Esta promessa definitivamente seria cumprida, Kenna pensou, mas percebeu que não sentia pena alguma do homem que tinha sido capaz de atacar uma pobre mulher.

— Será você quem se encarregará desta morte? — ela perguntou, subitamente temerosa de que Bothan pudesse perder essa luta.

— Não, esta honra caberá ao irmão de Egidia. Agora entendo porque encontramos o corpo dela com tanta facilidade. Eles queriam que víssemos do que eram capazes. No entanto, os sinais da brutalidade não estavam assim tão visíveis e não conseguimos descobrir como ela morreu. Só sabíamos que não tinha sido uma morte natural. — Bothan fechou os olhos por um momento. — Há menção de outras mortes?

— De duas. Melhor ler carta a carta, Bothan. Pode encontrar algum dado que não me pareceu relevante e não o anotei.

Ele se levantou e puxou Kenna para os seus braços.

— Obrigado — ele disse.

— Pelo quê? Foi por acaso que encontrei as cartas.

— Obrigado por mostrá-las a mim.

— Por que eu não faria isso? Esses homens querem matar todos os de seu clã, sem que nenhum MacNachton lhes tenha feito mal.

— Pensei que sentiria repulsa pelo meu clã pelo que comentam nessas cartas.

—Está sugerindo que eu devia estar de acordo com as intenções desses vingadores? —- Kenna perguntou indignada, afastando-se do marido.

Ela a puxou mais para perto, beijando-a com carinho.

— Peço-lhe perdão, minha querida. De fato não deveria jamais ter me passado pela mente tal pensamento absurdo. Você jamais tomaria o lado desses vingadores. Apenas perdi o controle e me vi cheio de ódio ao ler a carta.

Sentindo que Kenna o desculpava, ele suspirou e descansou seu queixo sobre a cabeça da esposa.

— Só de pensar que existe um grupo de homens com intenção de matar todos os MacNachton fico maluco. Não penso que aprove os crimes desses fanáticos, minha doce esposa. Devo, pois, levá-la para a cama e me desculpar com maior vigor.

— Penso que seria melhor ler todas as cartas e alertar o seu povo dessa ameaça.

— Se eu me sentar e fizer o que me sugere, ficarei irado, provavelmente por várias horas. Não poderei tocá-la estando nesse estado. Fazer amor com minha doce esposa me deixará mais calmo e então serei capaz de pensar novamente.

— E quando lera as cartas?

— Tão logo faça amor com você.

— E daremos uma cochilada mais tarde?

— Oh, sim. Depois de meu desejo ser saciado, meu corpo repousar e eu estiver com o estômago cheio, creio que estarei pronto não só para ler as cartas como encontrar a melhor forma de avisar o meu clã.

Kenna começou a subir as escadas rumo ao quarto do casal.

— É difícil entender um ódio com tal intensidade e sem razão — ela murmurou.

— Esse ódio nasce do medo, meu amor. Sou diferente, assim, sou temido. Meu povo em geral é diferente, e sempre foi temido. A superstição alimenta esse medo e, é triste reconhecer. James costuma comentar que há membros da igreja que são tomados pelo medo gerado pela superstição. Temem o diabo e a salvação da santidade de suas almas.

— Isso é triste, meu marido.

Bothan aproximou-se da cama e, por um momento, seu pensamento se distanciou. Lembrou-se de que após saber da morte da prima, ele viajara em busca de uma esposa. E a esposa que ele escolhera não era de seu povo, mas daquele que os perseguia.

Envergonhou-se desse pensamento. Kenna não o enganava. Nenhuma mulher que correspondia como ela no ato do amor, sentiria repulsa por ele. Claro que ela ainda estranhava algumas de suas diferenças, mas isso não a impedia de se entregar a ele com total paixão.

— Está com um olhar que não me agrada — Kenna murmurou, estranhando o comportamento de Bothan. — Mudou de idéia e prefere ler primeiro as cartas?

Por um instante ele se sentiu tentado a lhe perguntar pelo conteúdo das cartas que ainda não lera. Mudou, porém, de idéia.

— Estava apenas pensando qual de nós dois se despirá mais depressa.

— Pervertido! — ela disse suavemente. E estava rindo quando Bothan tirou as roupas e a ajudou a tirar as dela.

Agora só haveria lugar para os prazeres. A vingança ficaria para depois.

 

Havia alguma coisa errada acontecendo. Bothan podia sentir isso ao entrar nos estábulos. Kelvyn Brodie continuava a espalhar intrigas através de gente de sua confiança que estava dentro da cidade, gerando descontentamento e medo em Bantulach.

Bothan sabia que o melhor teria sido executar o homem e não apenas bani-lo. Sir Kelvyn tinha sido capaz de mandar matar a sobrinha e ainda ordenar tortura e morte de membros do clã dos MacNachton, mesmo assim Kenna sentira-se melhor não retribuindo ao tio com a mesma moeda. Agora, Bothan pressentia que atender ao desejo da esposa podia lhe custar caro. Só o fato de o homem ousar aparecer nos arredores da cidade em plena luz do dia, deixava claro que ele não sentia medo de ser pego. Devia ter muitos aliados para garantir sua segurança.

Bothan estava desapontado quanto ao comportamento do povo. Ele, que sempre havia procurado evitar a luz do sol, andava pela cidade, mesmo com o sol a pino, para mostrar a todos que os boatos sobre ele e seu clã eram infundados. E isso de nada servira. Pior. Bothan notara certa fraqueza em seu corpo e sentia dificuldade em restaurar suas energias. Ainda não revelara a Kenna a sua necessidade de tomar sangue, temeroso de que ela se assustasse.

Cismara que a esposa continuava um pouco desconfiada quanto as suas peculiaridades. Já se passara uma quinzena desde o episódio no riacho e Kenna havia recomeçado a participar ardentemente nos prazeres da cama. Mesmo assim, Bothan sentia que o melhor que tinha a fazer era revelar toda a sua verdade de uma vez. Não ao povo, que terminaria se assustando ainda mais. Kenna, porém, parecia preparada para revelações mais pesadas.

Talvez estivesse enganado em pensar que ela ainda se sentia chocada por tê-lo visto lutar como uma fera e matar sem usar arma alguma. Não tinha sido ela a lhe mostrar as cartas do tio? Aos poucos aceitava as diferenças do marido. Apenas desejaria saber quais outras diferenças ela ainda desconhecia.

Começou a alimentar Moonracer com as maçãs que trouxera da cozinha e estranhou a ausência do cavalariço. Ellar havia se tornado um forte aliado de Bothan. Não era costume seu deixar os cavalos sozinhos por muito tempo.

Preocupado, Bothan começou a olhar em todas as baias e finalmente encontrou Ellar caído no chão, com as mãos amarradas. Ansioso para ver se o homem estava vivo, Bothan inclinou-se. Foi quando sentiu uma pancada forte na nuca. Neste momento, tudo a sua frente escureceu.

— Depressa, pessoal, ele está acordando.

Bothan ouviu o som daquela voz e abriu os olhos. Ficou um pouco surpreso por ter desmaiado, porque usualmente um MacNachton resistia a fortes pancadas sem se abalar. Na verdade, desde que chegara a Bantulach ou ele passava o tempo com a esposa na cama ou passeava sob a luz do sol sem as habituais precauções. Os punhos lhe doíam e ele voltou os olhos para as mãos. Estavam atadas.

Ora, isso não devia ser um problema para alguém como ele, assim forçou as amarras e mais uma vez se surpreendeu. Não tinha forças suficientes para desfazer os nós.

Olhando em volta, viu homens conversando por perto. Não lhe haviam atado apenas as mãos, mas também os pés. E ele estava exposto ao sol do meio dia. Reconheceu gente da cidade no meio de seus agressores. Combinavam em voz alta o que deveriam fazer para derrotar o demônio. Perceberam o olhar de Bothan e suas expressões de medo sugeriam que acreditavam que ele se transformaria em uma horrível besta e devoraria a todos.

Bothan desejou ter essa capacidade. Pelo menos todos ali morreriam de susto ou correriam apavorados.

Um homem bem magro e com cabelos vermelhos aproximou-se de onde Bothan estava e atirou algo sobre o peito dele. Bothan procurou descobrir do que se tratava. Era uma cruz.

Claro, ele pensou. Para vencer o diabo nada melhor que a força de uma cruz. Era com isso que os homens estavam contando.

— Nada parece estar acontecendo com ele, George — disse um homem magro e com cabelos vermelhos que Bothan se lembrava chamar-se Ian.

Georgie, um homenzarrão barrigudo, deu um passo à frente e esvaziou um frasco com um líquido no rosto de Bothan.

— A água benta deve funcionar mais do que a cruz — ele exclamou.

— Mas a cruz pertence à minha mãe e foi benzida pelo próprio papa! — retrucou Ian.

— Desde quando sua mãe esteve com o papa?

— Ela comprou a cruz de um viajante que esteve na Itália. Antes que a discussão se acalorasse, Bothan raspou a garganta e sentiu certo prazer ao notar que os homens o olharam apavorados.

— O que pretendem fazer agora que nem a cruz nem a água benta surtiram o efeito que os senhores esperavam? — ele perguntou, procurando se armar de um sorriso de deboche. No fundo começava a ficar preocupado com a perda de suas energias.

— Podemos lhe arrancar o coração — grunhiu Georgie. Bothan sentiu um frio no estômago.

—Não podemos fazer isso, Georgie,—Ian retrucou —, porque poderia ser um crime. E se o homem não for demônio algum e sir Kelvyn estiver enganado? Teríamos matado um homem inocente e que é nosso governante. Iríamos para a forca bem depressa.

— Então o deixaremos sob o sol — Georgie sugeriu. — Demônios não suportam o calor.

Bothan riu, apesar de sua situação não ser das melhores.

— Isso me surpreende, senhores. Considerando que os demônios vivem no inferno, que como a igreja nos revela, trata-se de um lugar bem quente, não vai ser o sol que vai acabar comigo se eu for um demônio, não é verdade?

Os homens trocaram olhares assustados entre si. Bothan testou as amarras novamente e elas lhe pareceram ainda mais fortes do que antes. Ele estava definitivamente enfraquecendo. Pensou que poderia gritar pela esposa, mas a última coisa que desejava era expô-la ao perigo. Decidiu continuar conversando um pouco mais com os homens e fazê-los desistir de seus planos.

Kenna estranhou quando entrou nos aposentos preferidos por Bothan e não o encontrou em lugar algum. Procurou se convencer de que ele deveria ter saído e não havia motivo para se preocupar. Mesmo assim, algo lhe sugeria que acontecera alguma coisa ruim com seu marido.

Ao entrar no grande salão deu com o garotinho Jamie, o filho de uma criada.

— Viu meu marido, Jamie? — ela perguntou.

— Não senhora — ele exclamou, mas seu olhar de medo surpreendeu Kenna.

Segurou o garoto pelo braço, decidida a descobrir o que ele estava escondendo.

— Onde está sir Bothan, Jamie?

— Ele foi ao estábulo. — O garoto aproveitou a distração de Kenna e escapou.

Como não havia nada de errado o marido ir ao estábulo, ela se perguntou por qual razão Jamie aparentava tanto nervosismo. Assim, com passos rápidos caminhou até o estábulo. Lá entrando, não encontrou ninguém. Ao sair, ouviu vozes exaltadas e notou um grupo de homens conversando e olhando para alguma coisa no chão. Aproximou-se e viu o que era. Eles haviam amarrado Bothan e o colocado sob a luz do sol.

O primeiro impulso de Kenna foi correr até onde estava o marido e libertá-lo, tirando-o imediatamente da claridade. Procurou se controlar, porém. Aqueles homens acreditavam que o sol mataria Bothan porque ele era um demônio. Se ela corresse em pânico, certamente só alimentaria ainda mais essas crenças. Respirou fundo e aproximou-se dos homens. Notou que o marido tinha um ferimento na cabeça e parecia bastante pálido. Enfrentou, pois, os homens.

— Posso lhes perguntar o que os senhores estão fazendo? — Ela tentou esconder a sua apreensão.

— Estamos salvando a alma de seu marido, senhora — disse Ian.

— Assando o meu marido como se ele fosse uma caça qualquer?

— Estamos provando que sir Bothan é um demônio. — Desta vez foi Georgie quem se atreveu a falar.

— E o sol matará um demônio? Pensei que demônios estivessem acostumados com o calor.

—- Foi exatamente o que seu marido falou — murmurou Ian e os outros homens concordaram.

— Como ousam fazer isso para o seu senhor e meu marido? Já pensaram nas conseqüências de seus atos se ele morrer? Matar o próprio senhor de Bantulach é crime punido com morte. Sabiam disso, não é?

— Mas seu tio...

— Seria muito sábio se me dessem uma faca para que eu corte as suas amarras e o liberte.

— Mas, senhora... — começou Georgie.

— Agora! Se não o fizerem, farei com que sejam punidos severamente.

Bothan estava boquiaberto com o tom de comando que havia na voz da esposa e mais surpreso em ver os homens a obedecerem imediatamente. Todos os cinco homens estenderam a ela as suas adagas. Ela aceitou a de Ian, ajoelhou-se e cortou as amarras.

— Alguém deixou Ellar amarrado — Bothan informou Kenna. Ela voltou-se sem hesitar para os homens.

— Sugiro que saiam daqui e libertem imediatamente o pobre Ellar.

Todos os cinco homens se dirigiram aos estábulos. Kenna cortou a última das amarras pensando que agora não mais hesitaria em mandar matar o tio. Ele era um perigo grande demais para ser deixado livre.

— Preciso que me ajude levantar, Kenna — Bothan disse em uma voz fraca.

Alarmada com o fato de o marido precisar de sua ajuda, Kenna se apressou a sustentar o peso de Bothan enquanto ele se erguia. Para que ninguém notasse essa fraqueza, ela enlaçou o marido pela cintura dando-lhe o apoio necessário e assim evitando que viesse a cair. Neste momento, viram os cinco homens sair correndo do estábulo perseguidos por Ellar, este nitidamente furioso e segurando um ancinho.

— Se nos mostrarmos amorosos, ninguém estranhará que estejamos de braços dados — Bothan disse.

— Meu tio instigou esses homens, não é?

— Oh, sim. Primeiro uma cruz foi colocada sobre minha pele e então jogaram água benta em meu rosto. Georgie sugeriu que arrancassem o meu coração, mas Ian pensou que isso poderia ser um crime punido com a forca.

— Eu deveria mandar chicoteá-los — Kenna murmurou, horrorizada com o que poderia ter acontecido com seu marido.

— Pensarei em um tipo de castigo mais apropriado. — Bothan suspirou aliviado quando entraram na casa, mas sabia que isso não significava que estivesse fora de perigo.

— Espero que Ellar os marque com o seu ancinho. — Kenna continuava furiosa. Notou algumas criadas por perto e beijou Bothan no pescoço. Ainda abraçados, subiram as escadas rumo ao quarto. Lá dentro, ela trancou a porta e correu ajudá-lo a se deitar sobre a cama.

— Bothan, querido. Sente-se mal?

— Oh, sim. Eu preciso de... — Ele se sentiu acanhado em dizer que a única forma de recuperar as energias seria bebendo sangue. Hesitou em revelar esta verdade para a esposa.

— Precisa de carne crua... vou providenciar imediatamente um bife bem sangrento — Kenna completou.

Bothan arregalou os olhos e observou a esposa sair às pressas do quarto. Bem, o que ele precisava era de sangue, mas só o fato de a esposa aceitar que ele precisava de carne crua, já era um progresso.

Fechou os olhos sentindo-se perigosamente fraco. Mesmo que recuperasse parte de suas forças com a carne, pelo estado em que estava, talvez não fosse o suficiente para colocá-lo em forma novamente.

Kenna praguejou ao ver que Agnes estava na cozinha. Não ia ser fácil arranjar o que Bothan precisava sem despertar a atenção da cozinheira. Se esta viesse a saber da fraqueza de Bothan, a cozinheira poderia espalhar mais um boato sobre os MacNachton. E isso era a última coisa de que precisavam naquele momento.

Sorriu para a velha senhora e começou a procurar o que precisava. Quando finalmente viu uma vasilha com sangue de galinha, procurou encontrar a explicação ideal para dar a Agnes.

— O que vai fazer com isso, senhora? Pretendia preparar uma galinha ao molho para o jantar desta noite.

— Oh, que pena, Agnes. Vou precisar deste caldo porque meu marido sofre de fraqueza no sangue. Este é um segredo que não pode ser espalhado.

— Naturalmente, senhora. Mas ele vai tomar o sangue do jeito que está? O que provocou a perda de sangue de seu marido?

— Ele tomou sol em excesso, Agnes. Agora está muito doente. Pensei em fazê-lo tomar este caldo mesmo que ele proteste.

— Oh, menina, deixe comigo. Vou colocar algumas ervas e uma dose de vinho para que o líquido não lhe cause enjôo.

Agnes imediatamente arranjou os temperos necessários e sem demora Kenna subiu ao quarto com a tigela nas mãos.

— Sir Bothan? — ela chamou o marido ao entrar no quarto. Ele abriu os olhos com certo esforço o que sugeria que estivesse aquém dos limites de suas forças.

— Trouxe a carne? — ele perguntou quando estranhou ao ver Kenna lhe estender uma tigela.

— Não. Trouxe-lhe isto. Pode segurar sozinho ou precisa de minha ajuda?

Bothan segurou a tigela e surpreso viu que estava cheia de sangue. Olhou para a esposa em busca de uma resposta à sua pergunta silenciosa.

— Errei em imaginar que precisasse disso, meu marido? Li em uma das cartas algo sobre as necessidades dos MacNachton. Achei que seria melhor que carne crua. Enganei-me?

— Não, não se enganou. Só que não sei se devo fazer isso diante de você.

— O que acontecerá se você não tomar o sangue?

— É provável que eu morra. Tomei sol em demasia e estou me sentindo cada vez mais enfraquecido.

— Então tome logo o que eu lhe trouxe. Não deve ser muito pior que as poções que as curandeiras costumam nos fazer engolir.

Bothan bebeu o sangue e recostou-se nos travesseiros. Em momentos, recuperava suas energias. Quando Kenna sentou-se ao lado dele na cama, ele a abraçou e beijou com carinho. Agora a esposa conhecia mais um de seus segredos, e ficara ao seu lado.

— Por que colocou as ervas e o vinho? — ele perguntou.

— Agnes achou que o gosto ficaria melhor.

— Agnes sabe que eu precisava tomar sangue? Nossa cozinheira sabe de um dos meus segredos?

— Oh, sim. E é nossa aliada e manterá este segredo. Conheço Agnes desde criança e aposto que poderemos ficar tranqüilos. Mas agora precisamos falar sobre um assunto muito sério.

— Qual assunto?

— Precisamos encontrar meu tio e acabar com ele definitivamente. Desta vez não fraquejarei. Ele não desistiu de Bantulach e não hesitará em nos matar.

 

Kenna sorriu satisfeita por estar no campo de suas flores preferidas, os sininhos azuis. Costumava passear com sua mãe por entre as flores quando era pequena e isso lhe trazia boas lembranças. Também era uma forma um tanto irresponsável de passar a manhã, já que havia tantas coisas a organizar para melhorar as condições de vida de Bantulach. Mas, certamente, um dia de folga não faria assim tanta diferença. Passara por situações tão difíceis nos últimos tempos que passear um pouco enquanto o calor ainda não estava forte demais terminava sendo uma bênção.

Deixara Bothan escrevendo cartas para os seus parentes alertando-os do perigo que Kelvyn representava. Deixara-o sozinho para que ele pudesse se concentrar nessa tarefa que não era de todo muito agradável. Bothan mencionava nas cartas o que ocorrera com sua prima e o assunto ainda o magoava demais.

Kenna sentiu a pele se aquecer à luz do sol e lamentou que o marido não pudesse desfrutar desse prazer. Infelizmente, Bothan tinha de ficar a maior parte do tempo em lugares sombrios. Isso sem contar que precisava se alimentar de carne crua e tomar sangue o que parecia a ela algo igualmente terrível.

Surpreendeu-se ao perceber que essas estranhezas não pareciam nem enojá-la nem lhe provocar qualquer repulsa. Desde o episódio cm que aqueles cinco homens haviam amarrado Bothan e o deixado sob o sol, ela começara a aceitar com naturalidade que o marido era diferente dos outros, apenas isso.

Picara bastante claro que ele jamais maltrataria os inocentes e somente os supersticiosos poderiam acreditar que ele fosse capaz de devorar recém-nascidos. Kenna observara Bothan brincando com crianças do povoado e notara o extremo carinho que tinha por elas. De certa forma ele precisava da proteção que ela podia lhe oferecer, aceitando suas diferenças e o ajudando a se relacionar com aqueles que não pertenciam ao seu clã.

Aos poucos, ela sentia que o número de pessoas que pareciam não temer Bothan estava aumentando. Alguns até o procuravam para conversar. Havia, porém, pessoas como Anna, a mulher que tinha sido amante de Kelvyn, que continuava espalhando mentiras sobre o novo senhor de Bantulach. Kenna sabia que precisava punir a mulher de alguma forma. Talvez expulsá-la da cidade fosse uma atitude correta. Entretanto, ela hesitava temendo aumentar a animosidade do povo contra o marido.

Ouviu um balido e voltou o olhar para o lado onde a floresta se tornava mais fechada. Identificou um carneirinho que possivelmente se extraviara do rebanho. Imediatamente seguiu nessa direção para resgatai- o filhote.

Encontrou o animal inexplicavelmente preso por uma corda amarrada em uma árvore. Quem fizera aquilo, ela se perguntou. Quando estendeu a mão para desamarrar o nó, sentiu uma forte dor na nuca e caiu desmaiada no chão.

— Oh, aqui está o senhor, lorde Bothan — Florie exclamou abrindo um sorriso. — Pode me dizer onde minha amiga Kenna se encontra?

Bothan levantou os olhos da carta que escrevia e cumprimentou Florie com simpatia. Ela era uma boa amiga para Kenna. Também sentiu certo alívio por poder interromper a carta onde relatava fatos que o entristeciam demais.

— Não sei dizer onde minha esposa está. Haviam combinado algum encontro?

— Oh, sim. — Florie enrubesceu. — Ela ficou de me ajudar com o meu vestido de casamento. Vou me casar na semana que vem e minha roupa ainda precisa de ajustes. Kenna é habilidosa nas artes da agulha. Ela ficou de ir à minha casa antes do almoço e não apareceu por lá.

Bothan sentiu um arrepio de medo e isso o fez esquecer imediatamente das cartas. Podia não ser nada, mas não era do costume de Kenna faltar aos seus compromissos.

— Perguntou a Agnes se ela sabe onde minha esposa está?

— Perguntei, mas Agnes também não a viu. Sabe que foi passear pelo campo, ansiosa em ver margaridas. Eu mesma dei uma chegada até lá, mas nem sinal de Kenna.

— Verificou se ela não está repousando no quarto?

— Também passei por lá, sir Bothan. — Florie agora demonstrava apreensão no olhar. — Acha que pode ter acontecido alguma coisa com Kenna? Perguntei a várias pessoas e ninguém sabe o seu paradeiro. Minha esperança era que o senhor soubesse.

Bothan procurou não demonstrar seu nervosismo, mas naquele momento os piores pensamentos lhe passaram pela cabeça. Só de ouvir Florie dizer que ninguém vira Kenna durante toda a manhã o deixava alarmado.

— Melhor procurarmos por ela, não é?

Na verdade, seu desejo era sair correndo e examinar cômodo a cômodo da casa e todas as demais dependências.

— Estou começando a não gostar dessa ausência de Kenna — Florie resmungou.

— Isso é de fato preocupante — Bothan concordou. Kelvyn a fez prisioneira.

Bothan olhou para Florie.

— Falou alguma coisa, Florie?

— Não, meu senhor. Vou falar com Jamie. Quem sabe ele sabe onde Kenna se encontra — disse ela, dirigindo-se ao garoto que colocava lenha na lareira.

Kelvyn a fez prisioneira.

A voz estava em sua cabeça e era definitivamente voz de mulher. Bothan reconheceu que a esposa tinha razão quando lamentava ter seu dom de falar com a mãe morta. Era muito estranho, de fato. E certamente era a mãe de Kenna quem se comunicava com ele, diante da gravidade da situação. A voz dissera claramente que Kelvyn aprisionara Kenna.

— Mamãe? — ele murmurou baixinho.

Sim, sou a mãe de Kenna. Kelvyn está com Kenna. Pegou minha filha quando ela passeava no campo. E golpeou a pobrezinha na cabeça.

— Eu devia ter acabado com ele no dia em que cheguei a Bantulach.

Oh, sim, deveria ter feito isso. Mas agora tem de salvar minha filha. E para isso vai ter de revelar alguns de seus segredos às pessoas em que confia. Temo que o senhor não consiga salvar Kenna sozinho. Kelvyn conhece suas fraquezas e certamente pretende usá-las.

— Mas em quem posso confiar? Kenna e eu passamos o mês inteiro tentando convencer o povo de que sou um homem comum, como todos os demais. Não tivemos grande sucesso.

Mas há aqueles que mudaram de idéia e deixaram de ser influenciados por Kelvyn. Pode confiar naqueles que pressentir serem seus amigos.

— Com quem o senhor está falando? — Florie perguntou estranhando ouvir Bothan falar sozinho.

— Converso comigo mesmo — ele mentiu. — Jamie sabe de alguma coisa?

— Não, ele tampouco viu Kenna esta manhã.

— Meu senhor!

Bothan voltou-se na direção da voz que o chamava. Era Ian, um dos homens que o tinha amarrado tempos atrás. Obviamente ele se sentia culpado por ter participado do grupo que judiara de seu senhor. Agora ele lhe estendia um papel.

— Um garoto mandou que eu lhe entregasse isso, lorde Bothan.

— E quem era o garoto? — Bothan perguntou enquanto lia o que estava escrito no bilhete e sentia o sangue esfriar em suas veias.

— O garoto era um dos Monroe. Ele só me enfiou o papel na mão e saiu correndo. Nem consegui falar com ele.

— Preciso que reúna Simon, Ellar, Fergie, Mungo e Alban. E os traga até aqui.

— Aconteceu alguma coisa de ruim, senhor?

— Sim, sir Kelvyn fez de minha esposa sua prisioneira e esta carta traz as suas exigências.

Ian saiu às pressas convocar os homens.

O senhor pode confiar nesses homens. Em Ian também.

— Mas ele foi um dos que participou daquele atentado contra mim. Acredita que eu seja um demônio e ajudou a me amarrarem e me deixarem debaixo do sol.

Mas ele mudou de idéia e já não considera o senhor um demônio. E lembre-se de que ele foi contra a idéia de Georgie de lhe arrancar o coração. Faça o que achar melhor, mas eu realmente acredito que possa confiar em Ian.

Bothan ficou pensativo por poucos instantes. A mãe de Kenna era um espírito e devia agora saber mais sobre as pessoas do que qualquer pessoa viva. E o que ele precisava fazer em sua tentativa de resgatar Kenna requeria mais pessoas. Kelvyn conhecia sua fraqueza de não poder se expor ao sol, assim determinara um encontro em campo aberto. O percurso até o local marcado deveria exigir também uma jornada sob o sol que agora estava com sua potência máxima. Isso lhe tiraria as energias e, caso não contasse com ajuda, Kenna não teria chance alguma de se salvar.

— Kenna ainda está viva? — ele perguntou ao espírito. Oh, sim. Por enquanto. Mas seja rápido.

Aquelas palavras o perturbaram tanto que ele começou a andar pela sala, tomado pelo desespero. Não podia sair antes de conversar com os homens que convocara. Não tinha qualquer esperança que Kelvyn pretendesse deixar que ele, um MacNachton, e Kenna, a verdadeira herdeira de Bantulach, ficassem vivos. Já era praticamente um milagre que não houvesse ainda executado a sobrinha.

Bothan não tinha muitas ilusões em sair desta vivo, mas se pelo menos os homens resgatassem Kenna já ficaria feliz. Não fosse à exposição de seu corpo ao sol, ele, sozinho, faria Kelvyn e seus comparsas em pedaços.

Quando os homens que mandara chamar entraram na sala, Bothan teve de conter o desejo de ir com eles procurar Kenna e resgatá-la. E então matar Kelvyn sem piedade. No entanto, devia escolher o mais sensato. Mandaria os homens em busca da esposa enquanto ele ia sozinho ao encontro do inimigo.

Olhou para os homens que aguardavam as suas ordens. Ian ficara junto à porta sem ousar entrar na sala. Resolveu confiar na mãe de Kenna.

— Entre, Ian, e se reúna a nós. E feche a porta, por favor.

— Ian nos disse que sir Kelvyn aprisionou Kenna — Simon foi dizendo e seu semblante mostrava a raiva que sentia. — Qual é o seu plano para salvá-la, lorde Bothan?

— Meu plano é me encontrar com sir Kelvyn conforme ele ordenou. Deverei me apresentar a ele desarmado e em campo aberto, em menos de uma hora.

— E o que nós devemos fazer para ajudar?

— Devem encontrar Kenna.

— Sir Kelvyn a levará ao encontro que terá com o senhor?

— Pode ser, mas penso que não. Sir Kelvyn quer que eu fique em campo aberto, bem debaixo do sol. Ele não colocará Kenna diante de mim antes que eu perca as minhas forças.

— O senhor perderá as forças? Como?

Bothan rezou para que a mãe de Kenna não estivesse enganada quanto àqueles homens. Não lhe restava outra alternativa a não ser contar a verdade a eles.

— O sol me tira as energias como vocês já supunham. — Ele olhou para Ian. — Quase que os senhores me derrotaram naquele dia. Trata-se de uma fraqueza no sangue que judia os nascidos em meu clã. Mas isso não importa agora. E eu lhes contei isso porque confio nos senhores. Sei que não espalharão boatos sobre esta minha fraqueza.

Os homens, inclusive Ian, fizeram sinal de que manteriam essa revelação em segredo, e Bothan sentiu-se aliviado.

— Isto é algo que os inimigos de meu clã têm usado para nos destruir. Sir Kelvyn quer se livrar de mim e de Kenna para retomar o poder da cidade.

— Sir Kelvyn tem insistido em apresentar os MacNachton como demônios—Simon observou e os outros homens concordaram com ele. — Deveremos encontrar algum modo de proteger o senhor do sol?

— Não, os senhores devem tentar apenas encontrar Kenna — Bothan respondeu. — Eu distrairei sir Kelvyn. Não creio que ele a tenha levado para um lugar muito distante do marcado para o nosso encontro. Ele desejará ter Kenna por perto no caso de querer me provocar. Ou a ela.

— Anna não está em casa—Ian disse e ruborizou quando todos olharam para ele.—Pensei que isso poderia ser importante. Afinal, ela era a amante de sir Kelvyn e ela nunca costuma sair de casa.

— Se isso é verdade, então essa mulher deve estar agora com Kenna. Preciso que a encontrem o mais depressa possível. Sinto que ela ainda está viva.

— Mas um de nós não deveria proteger o senhor? — Fergie perguntou preocupado com o que poderia acontecer a Bothan.

— Não. A carta deixou claro que se eu for com mais alguém, Kenna será morta imediatamente. Ele me quer sozinho sob o sol e não quer ser surpreendido por ninguém. Provavelmente seus homens estarão me vigiando desde o momento em que eu sair da cidade. Se eu vier a saber que os senhores salvaram minha esposa e ainda me restarem energias, eu matarei o homem sem qualquer piedade. No entanto, não podemos perder tempo. Cada minuto que passa pode significar a ruína de nossos planos. Acreditam que possam encontrar Kenna sem chamar a atenção de sir Kelvyn?

— Certamente podemos — Simon disse com segurança. — Quando encontrarmos Kenna nós a levaremos a um lugar onde o senhor poderá vê-la. Mas diga-me, senhor, onde será o encontro? — Lendo o nome do lugar, Simon mordeu os lábios em sinal de preocupação. — Sei onde é e o percurso será de dez a quinze minutos até lá. Devemos sair imediatamente. Mas o senhor agüentará se expor por todo esse tempo?

Bothan fez sinal que sim.

— Usarei o meu manto e ele me ajudará. É bem grosso. Irei enfraquecendo aos poucos, no entanto. Sir Kelvyn estará em vantagem contra mim e assim o quanto antes os senhores encontrarem Kenna, maiores serão as minhas chances de ainda estar forte para enfrentá-lo.

— Mas como fará isso se estará desarmado? — Fergie perguntou.

— Se não perder todas as minhas energias não precisarei de uma arma para acabar com o homem. Só precisarei de minhas mãos.

Os homens trocaram olhares que revelavam estarem pensando que afinal nem tudo o que os rumores diziam sobre os MacNachton era mentira. Mas ninguém expressou qualquer comentário e Bothan suspirou aliviado. Não se importava agora que soubessem que ele era um homem diferente desde que o ajudassem nesse momento de necessidade.

Quando os homens saíram, Bothan sentou-se à mesa e olhou para as cartas de Kelvyn. O inimigo conhecia as fraquezas de seu clã. Restava-lhe apenas a ajuda da mãe de Kenna e a dos poucos homens que encarregara de resgatar a esposa. Isso tinha de lhe bastar.

— Meu senhor?

Bothan levantou os olhos e viu-se diante de Agnes, a cozinheira.

— O que foi, Agnes? — Ele levantou-se e vestiu o seu manto.

— Vim avisar o senhor de que seu cavalo está selado e também para lhe entregar algo que poderá ajudá-lo em sua viagem.—Agnes estendeu a Bothan uma sacola onde estavam algumas garrafas.

— Obrigado, Agnes, apesar de que não precisarei de vinho.

— Não enchi as garrafas de vinho, senhor.

Bothan olhou surpreso para a mulher, começando a se encher de esperanças. As garrafas continham a mistura de sangue, vinho e ervas.

— Obrigado, Agnes — ele murmurou emocionado. A mulher sabia de seu segredo e não hesitava em ajudá-lo.

— O senhor é um bom homem, sir Bothan. Mate o bastardo, meu senhor, e traga a minha menina de volta para casa.

— É o que pretendo fazer, Agnes. Pensei que a notícia de seu rapto não tinha se espalhado.

— O jovem Fergie contou tudo para mim. E pareceu-me ouvir uma voz pedindo que eu colaborasse de alguma forma.

Deve ter sido a voz da mãe de Kenna, Bothan pensou. Abençoado espírito.

— E estou contente que tenha permitido Ian ajudá-lo, lorde Bothan. Ele é meu sobrinho. O rapaz nasceu depois que sir Kelvyn estuprou a minha irmã quando ela tinha apenas doze anos de idade. A pobrezinha morreu no parto. Lamentei quando Kenna decidiu exilar o canalha e não puni-lo com a morte, que é o que ele merece. Mas o senhor o matará agora, não é? Vingará a morte de minha irmã?

— Oh, sim, Agnes. Eu o matarei. Não tenha dúvidas disso.

Bothan terminou de tomar a segunda garrafa que Agnes lhe preparara assim que chegou ao lugar marcado para o encontro. O caldo preparado com sangue e ervas tinha sido útil e Bothan se encontrava com todas as suas energias. Avistou Kelvyn que estava parado logo adiante tendo dois homens ao seu lado.

—Bem-vindo, sir Bothan — Kelvyn disse com ironia. — Queira fazer a gentileza de desmontar e despir o seu manto.

Enquanto fazia o que o homem lhe ordenara sem protestar, Bothan olhou em volta com discrição. Parecia que Kelvyn estava apenas acompanhado daqueles dois homens. As chances de ele e Kenna sobreviverem aumentava consideravelmente. Andou até o meio da clareira e sorriu para seus inimigos. Notou que os dois homens pareciam cheios de medo. Deviam acreditar que um MacNachton fosse um demônio difícil de ser vencido.

— Onde está minha esposa, sir Kelvyn? — Bothan perguntou em voz firme. Precisava ganhar tempo e esperar que nesse minuto seus homens já houvessem localizado Kenna.

— Você terá chance de vê-la muito em breve, sir Bothan MacNachton.

— Prefiro vê-la imediatamente.

— Não está em posição de fazer exigências. Logo estará morrendo, mas eu lhe darei a chance de ver sua esposa antes disso. Está preparado para seguir o destino que mandei dar a parentes seus?

Bothan estava para fazer uma observação bem agressiva quando sentiu o perfume do corpo de Kenna. Olhou em volta, mas não a viu. Não devia estar longe, porém.

Ela está aqui.

— Sei disso — Bothan respondeu ao espírito. — Posso sentir o perfume dela.

— Com quem está falando? — perguntou Kelvyn subitamente alarmado.

Diga a ele que Meggie está aqui para vê-lo ir para o inferno.

— Estou falando com Meggie. Ela mandou lhe dizer que veio observá-lo ir para o inferno e eu pretendo dar a ela esse presente.

Kelvin empalideceu e Bothan sentiu um enorme prazer em ver o inimigo ser tomado pelo pânico.

 

O sorriso de Anna fez com que Kenna sentisse vontade de lhe esmurrar o rosto. Conteve-se devido a sua situação precária demais. Irritar Anna poderia ser perigoso naquele exato momento. Fatal, inclusive. Quando ela voltou do desmaio provocado pelo golpe que recebera na cabeça, encontrava-se com os pulsos e os tornozelos amarrados. Antes que tivesse tempo para resistir, um dos capangas do tio lhe colocara um laço de corda no pescoço e pendurara em uma árvore, tendo os pés sobre uma pedra. Bastaria um movimento em falso e ela seria enforcada. O olhar do tio era de vitória.

— Vai ter coragem de matar alguém de seu sangue? — ela perguntou olhando para Kelvyn sem mostrar medo algum. Sentiu que odiava aquele homem capaz de cometer tantos crimes bárbaros. Era um monstro que precisava ser destruído.

— Já fiz isso antes.

— Foi o que pensei. Suspeitava da morte estranha de meu pai. E a de um de meus pretendentes. Matou os dois, não é?

— Garota esperta — ele zombou.

— Meu marido o matará pelo que está fazendo comigo. E pelo que mandou fazer com sua prima Egidia e com outros de seus parentes. Duvida disso, tio? Ou perdeu o medo dos MacNachton? Não acredita mais nos boatos que vem espalhando há anos?

— Seu marido vai se encontrar comigo muito em breve, mas tudo o que ele poderá fazer é assistir ao enforcamento da esposa.

Por que acha que ainda não a enforquei? Quero ter o prazer de ver um MacNachton sofrendo e desejando a própria morte.

— Não conseguirá vencer Bothan — ela desafiou o tio.

— Pois está enganada. Nem precisarei sujar minhas mãos para derrotar o seu marido. O sol se encarregará disso. Um fim certo para um demônio.

— O meu marido, tio Kelvyn — Kenna ergueu o queixo em sinal de orgulho —, é um homem como o senhor nunca será. — Kenna sentiu uma ponta de medo quando o tio deu um passo para frente como se estivesse disposto a acabar de vez com a sobrinha que ousava desafiá-lo. Bastava ele chutar a pedra onde ela apoiava os pés.

— Seu marido não é nada a não ser uma besta nascida do diabo com sua amante. Não entende que ele representa uma ameaça para a raça humana?

— Meu marido é apenas uma ameaça contra o senhor, um homem que não sente culpa alguma em matar o próprio irmão e roubar tudo o que pertencia a mim.

— Oh, sobrinha, sou o homem que vai assistir a sua morte.

— Veremos, tio. Posso lhe garantir que Bothan é imbatível. Eu o vi dar fim aos oito homens que o senhor enviou para me matar. Sem arma alguma nas mãos. Pensa que estou mentindo?

— Estou prevenido e sei como derrotá-lo, sobrinha.

Kenna praguejou observando o tio beijar Anna e se afastar acompanhado de dois homens. Bothan estava em grande perigo já que seria exposto ao sol e perderia suas forças. Talvez não houvesse qualquer esperança nem para ela nem para o marido. Isso não era justo. Um homem com a perversidade do tio não poderia ganhar aquela batalha.

— Por que está envolvida nisso, Anna?

— Por que? — Anna jogou,os cabelos para trás em sinal de desdém. — Vou ser a senhora de Bantulach. Poderia ter sido a esposa de seu pai, mas ele preferiu se casar com Meggie. Bem, o irmão dele não foi assim tão cego e me viu como a mulher perfeita para ser a esposa perfeita.

— Então acredita que sir Kelvyn vai fazê-la sua esposa? Se tivesse essa intenção, já a teria feito há mais tempo.

— Seu pai não o deixou se casar comigo.

Era mentira, mas Kenna achou melhor não discutir com Anna. Não tinha dúvidas de que ela seria capaz de apressar o enforcamento planejado.

Bothan chegou.

Apesar de ser estranhamente confortante ouvir a voz da mãe, Kenna desejou que esta tivesse o poder de cortar suas amarras. E que tivesse trazido notícias melhores. O sol estava forte e isso decretaria o fim de Bothan. Não conseguia pensar em um modo como ele poderia derrotar Kelvyn.

Ele conta com ajuda e logo chegarão aqui os homens que acabarão com essa vadia.

Obviamente os espíritos podem por vezes não medirem bem as palavras, Kenna pensou, animada com a perspectiva de que o marido houvesse planejado melhor a forma de enfrentar Kelvyn. E quanto antes os homens chegassem, melhor seria. Bothan ficaria exposto ao sol por menos tempo.

Um pequeno cachorro apareceu subitamente e correu em direção a Anna. Como era o animal de estimação dela, isso não chegava a ser uma surpresa. A mulher empalideceu ao se ver diante dos seis homens que surgiam a sua frente e a rodeavam.

— Sabíamos que seu cachorro a encontraria — Ian disse acariciando as orelhas do animal. — Não se preocupe que cuidarei de seu cão quando a dona dele tiver ido para o inferno.

Anna mordeu os lábios, seus olhos faiscaram de ódio e ela chutou a pedra que mantinha Kenna a salvo. Se ela ia morrer, levaria consigo a mulher que lhe destruía os sonhos de poder.

Kenna se viu pendurada na árvore, lutando para não morrer enforcada. Entrou em desespero, certa de que este seria o seu fim. Oh, Deus, ela nem chegaria saber se Bothan escaparia com vida dos perigos que devia estar enfrentando naquele momento.

Mungo agiu com rapidez e segurou-a pelas pernas enquanto Fergie cortava a corda presa a árvore.

Já em segurança, pisando em terra firme, Kenna não sentiu pena de Anna. A mulher estava esparramada no chão com uma faca enfiada nas costas. Um dos homens usara sua adaga.

— Onde está o meu marido? — ela perguntou quando Simon cortava as amarras de seus punhos e tornozelos.

—Encontrando-se com seu tio. Nós fomos mandados aqui para salvar a senhora. Ele nos disse que não poderia agir contra o seu tio até que tivesse certeza de que a resgatássemos.

— Então é melhor fazer com que sir Bothan saiba que vocês me libertaram.

— Oh, sim, antes que ele fique muito tempo exposto ao sol — Simon exclamou.

Kenna olhou para os homens não escondendo sua surpresa. Eles sabiam da fraqueza de seu marido e mesmo assim estavam ali, ajudando a salvá-la e torcendo para que Bothan vencesse Kelvyn. Talvez ela e Bothan tivessem mais chances de convencer o povo de Bantulach de que o clã dos MacNachton não lhes representava perigo algum.

— Sabem o local do encontro? Onde está sir Bothan?

— Atrás daquelas árvores. — Mungo apontou para o lado de uma clareira. — Há dois homens acompanhando sir Kelvyn e os três estão armados. Lorde Bothan não leva nenhuma espada ou adaga.

— Não levou nada escondido?

— Não. Foram ordens de seu tio. Caso contrário, a senhora seria executada imediatamente.

— Claro, meu tio não quer lutar pelo que roubou de mim. Mas três homens, mesmo armados, não representam problemas para sir Bothan se ele não estiver muito fraco.

—Tem certeza de que ele não é um demônio? — Ian perguntou um pouco ressabiado.

— Não, Ian, ele não é. Apenas nasceu um pouco diferente. Seu clã é muito antigo e viveu até agora em lugares isolados. Apenas desenvolveram grande força nos braços e mãos e assim podem dispensar as armas.

Kenna e os homens caminharam silenciosamente até onde Bothan deveria estar. Por fim o avistaram diante de Kelvyn e seus dois capangas. E Bothan não parecia estar atemorizado.

— O único demônio que estou vendo — Kenna disse —, é aquele que foi capaz de matar o próprio irmão e mandou assassinarem sua sobrinha.

— Tem razão, senhora—Simon murmurou. — Lorde Bothan! — ele chamou bem alto. — Nós encontramos e libertamos lady Kenna.

Bothan olhou na direção de onde vinha voz e notou os homens de Bantulach ao lado de sua esposa. Acenou para eles estranhando que Ian segurava um pequeno cachorro branco e então encarou Kelvyn e seus homens. Mesmo que os três olhassem em volta em busca de um jeito de escapar, Simon e seus amigos começaram a lhes fechar qualquer saída.

— Vamos dar um fim a tudo isso agora — Bothan exclamou. Os dois homens de Kelvyn atacaram Bothan empunhando suas espadas. A luta, porém, foi curta. Bothan agarrou um dos homens e o atirou longe com incrível fúria. Ouviu-se o som de seus ossos quebrando. O segundo inimigo teve uma morte igualmente rápida.

— Hora de morrer, Kelvyn — Bothan disse com muita frieza. Kelvyn, pálido de medo, olhou em volta, pensando em fugir.

— De onde veio a sua força? — ele gritou. — Devia estar fraco debaixo desse sol!

— Oh, pensou em assistir a um espetáculo? Talvez ver-me transformar em uma criatura em chamas? Li as cartas de seus compatriotas e soube de como acreditam nessas superstições absurdas. Oh, sim. O sol enfraquece os MacNachton, mas leva um bom tempo para nos enfraquecer, especialmente se nos protegermos com mantos pesados, como este que minha mãe me fez. E se tomarmos sangue. E eu o tomei em quantidade suficiente para manter-me um verdadeiro MacNachton.

Bothan riu ao ver o terror nos olhos do inimigo.

— E agora pretendo cumprir a promessa que fiz. Meggie quer que eu o mande para o inferno, possivelmente pelo assassinato de seu marido, e Agnes, a cozinheira, quer que eu a vingue pela brutalidade que cometeu contra a irmã dela.

Kelvyn berrou de raiva e enfrentou Bothan com sua espada. Bothan apenas desviou o corpo da lâmina e deixou que o inimigo pensasse ter alguma chance de vitória. Deixou, inclusive, que lhe enfiasse a espada no corpo. Por fim, cansou-se. Agarrou Kelvyn pelo braço.

Ouviu-se o berro do homem agora em desvantagem.

— Mas eu cravei minha espada em seu corpo! Onde está o sangue? Como pode estar vivo?

— Assim o fez, mas nenhum mal me causará. Minhas feridas já se fecharam.

Bothan girou Kelvyn no ar por alguns segundos, atirando-o então contra uma árvore.

— Seu tio está morto, senhora. Quebrou o pescoço — Simon disse cutucando com o pé o corpo esmagado pelo impacto. — Não lamento essa morte. Esse homem tentou usar a fraqueza de seu marido para matá-lo. Isso sem contar a morte de nosso antigo senhor e as tentativas de acabar também com a senhora. A justiça foi feita.

Subitamente, Simon abriu um enorme sorriso que mostrava todos os seus dentes. Kenna mal acreditou no que via. Simon tinha caninos pontudos.

— Meu Deus! O senhor é um MacNachton?

— Em parte. Sou descendente por parte de pai.

— E por que não nos contou isso?

— Primeiro eu queria ver se sir Bothan era um homem bom. E certamente ele é.

Um segundo depois, Kenna estava nos braços do marido e rodeada do grupo de homens que a haviam salvado.

— Precisamos voltar para Bantulach — Bothan disse. — Lá recuperarei minhas energias.

— Isso pode ajudá-lo, senhor. — Simon estendeu a Bothan a última das garrafinhas com o líquido preparado por Agnes.

Bothan abraçou Simon e deixou que Mungo o ajudasse a subir em Moonracer. Mesmo o sangue que acabara de beber não tinha lhe restaurado todas as forças. Gostaria de levar Kenna com ele, mas sabia que podia contar com Simon para lhe garantir total proteção. Afinal, Simon era descendente dos MacNachton.

Kenna tomou o caminho de volta pensando que a morte do tio havia sido inevitável. Um homem como aquele não poderia ser deixado sem o justo castigo.

Passou a mão de leve sobre o ventre. Sabia que esperava um filho.

A criança nasceria também como uma criatura estranha diante do povo de Bantulach? Herdaria da mãe o dom da vidência e do pai as forças e as fraquezas?

Pensaria bem antes de contar ao marido a grande novidade.

 

Naquela manhã, Kenna acordou antes do marido. Levantou-se silenciosamente. Precisava ficar algum tempo sozinha com seus pensamentos. Não que estivesse ressentida com Bothan. Muito ao contrário. Precisava, porém, pensar no bebê que esperava.

Vestiu-se com rapidez e saiu do quarto sem fazer ruído. A casa ainda estava em silêncio e nem mesmo se notava a presença de criados iniciando as tarefas do dia.

Kenna buscou refúgio em um aposento onde da janela poderia assistir ao nascer do sol iluminando o campo de suas flores preferidas, os sininhos azuis.

O espetáculo magnífico que sempre a encantava teve início. Logo ela já distinguia o contorno das árvores e o azulado das flores.

Suspirou profundamente.

Esperava um filho desde, quem sabe, a noite de núpcias. Talvez após os momentos de paixão que haviam acontecido ao ar livre antes do episódio violento transcorrido no riacho. Ou em qualquer das tantas outras noites em que desfrutara dos prazeres que Bothan a fizera conhecer e desejar.

Esperar um filho a deixava sentir-se diferente. Especial.

Reconhecia vaidosamente ser a mulher especial por quem o marido quisera escolher como esposa.

O que a inquietava, porém, era pensar em como seria a criança. Não temia que viesse a nascer parecida com o pai em todas as estranhezas. Bothan não era um demônio, nem fera. Apenas um homem ardente, apaixonado, dotado de uma fantástica força física.

Ela ainda não conhecia todos os segredos dele, mas nada de mal poderia vir daquele homem.

Ela o amava e acima de tudo o admirava.

Então, por que razão estava inquieta?

Temia que o filho tivesse o coração de um lobo e a agilidade de um gato? Temia que precisasse se esconder do sol e beber sangue para restaurar as forças? Ou que tivesse sonhos estranhos e pudesse falar com os mortos?

Kenna suspirou mais uma vez.

Sim, tinha de aceitar que o marido era um homem especial. Que ela era uma mulher especial. E que, assim, seus filhos também o seriam.

Sorriu finalmente e desejou que o sol não tivesse se levantado para que pudesse voltar a cama e quem sabe acordar o marido para fazerem amor mais uma vez.

Bothan havia se recuperado rapidamente depois do confronto final com Kelvyn e seus homens. Bastara uma boa noite de sono. O problema é que ele temia que a esposa estivesse mais uma vez abalada por tê-lo visto matar os três homens com as mãos nuas. Ela já presenciara o episódio do riacho e se chocara naquela ocasião. Mas como poderia ele ter vencido o inimigo de seu clã sem deixar de usar os seus recursos selvagens? Já era tempo de contar a Kenna todos os seus segredos.

Ao acordar naquela manhã, não encontrara Kenna dormindo ao seu lado. Ela já se levantara e isso o deixou apreensivo. Vestiu-se rapidamente e seguiu em busca da esposa.

Encontrou-a, pensativa, junto a uma janela do solar e olhando o campo de flores. Tinha um pequeno cão em seu colo. Quando ela notou a sua presença, voltou-se e lhe sorriu. Não era particularmente um sorriso caloroso.

— Parece que restaurou suas forças, Bothan.

Ele aproximou-se e tirou com delicadeza o cãozinho de seu colo, apesar dos protestos do pequeno animal.

— Temos agora um cão? — ele perguntou.

— De certa forma nós o herdamos. Pertenceu a Anna e agora que ela está morta... Ian o trouxe consigo, mas me encantei com ele.

— Então ele será nosso amigo, apesar de que tenho mais afinidades com gatos.

— Notei isso, sir Bothan. Também poderemos criar alguns felinos. Na verdade, amo todos os animais, mas de todos prefiro os gatos. No entanto não podemos deixar este cãozinho sem um lar, não concorda comigo?

— Naturalmente, querida esposa. Nos rodearemos de um cão e muitos gatos.

Ele acariciou de leve o rosto de Kenna. Chegara a hora exata de revelar os segredos que lhe pesavam tanto.

— Precisamos conversar, minha gentil esposa.

— Aconteceu alguma coisa errada?

— Não, mas o que tenho a lhe contar talvez não seja de todo agradável. Você me viu duas vezes em combate e foi quando exibi a pior parte dos MacNachton, nossas habilidades mais assustadoras. Penso que você precisa saber exatamente como é o homem com quem se casou.

Kenna sentiu um frio na espinha. Ela estivera exatamente pensando no filho que esperava e se preparando para aceitá-lo do jeito que ele nascesse. Sabia, porém, que ela e Bothan deviam se conhecer totalmente. Não deveria haver qualquer segredo entre eles agora que se tornariam pais.

— Não é nada de muito grave — ele acrescentou notando o olhar apreensivo da esposa. — Quero lhe falar sobre o clã dos MacNachton.

— Não ousei pedir que me confidenciasse os seus segredos, meu marido, Apesar de que gostaria de conhecê-los.

—Meu clã data de um tempo muito distante.—Bothan respirou fundo antes de continuar com sua história.—Perdemos, inclusive, a contagem dos séculos. Temo que no princípio, meu povo via os humanos mais como caça. Eram incrivelmente selvagens e nos vilarejos nos arredores de onde habitavam os demais clãs, costumavam chamá-los de Visitantes da Noite. E de fato tinham razões para temê-los. Mas isso foi mudando através do tempo. Foram desenvolvendo sua parte mais humana. Atualmente, não somos mais como nossos ancestrais, apesar de que nos ficou a fama de feras. Mantivemos algumas identidades com os lobos, daí você ter-me visto assim em seus sonhos.

— De lato vi você como um nobre cavaleiro, mas com um coração de lobo e uma alma sombria.

Bothan acariciou a mão da esposa. O destino cruzara os seus caminhos e ele não deixaria que nada perturbasse a felicidade que haviam conquistado após tantas mortes e violência.

— Depois que a conheci, minha alma está cheia de luz, Kenna. Mas como lhe contava, nosso povo foi adquirindo hábitos que se identificavam com os de seus vizinhos. É claro que tentaram adaptar suas diferenças aos novos tempos. Um líder de nosso clã decidiu que deveríamos cruzar com os povos que não eram como o nosso, isso para garantir a nossa sobrevivência.

Bothan observou a esposa, querendo sentir como ela reagia às revelações. Então prosseguiu com sua história.

— Havia uma espécie de dois mundos, os de Sangue Puro e os Outros. Nem todos de meu clã pareciam dispostos a misturarem o sangue, temendo que nos tornássemos mais fracos. Assim, aconteceu de alguns ficarem isolados em Cabrun enquanto outros saíam em busca de parceiros de outra raça. Não havia outra escapatória já que os Outros eram em número muito maior. Começou então a ficar difícil esconder algumas de nossas diferenças.

— Quais diferenças? Os caninos pontudos e a fraqueza sob a luz do sol?

— Essas e algumas outras mais. — Bothan suspirou. —- Somos muito fortes, mas quando enfraquecemos precisamos de sangue. Nossos dentes têm esse formato em ponta para nos facilitar obter esse sangue. E também temos uma vida muito longa.

— Por quanto tempo vocês vivem?

— Não sabemos exatamente, mas os de Sangue Puro vivem muito mais que os Outros. Eu não sou de Sangue Puro. Meu pai era um MacNachton, mas minha mãe pertencia ao clã Callan. Esse povo descende dos celtas, e sua história conta com um relato de que, no passado, as mulheres podiam se transformar em enormes gatos.

— É por isso que você ronrona.

— Não faço isso, Kenna — Bothan negou, apesar de notar um sorriso nos lábios da esposa.

— Faz sim, mas conte-me o resto da história.

Bothan relaxou aliviado com a aparente calma de Kenna. Ela não parecia chocada. Ao contrário. Tudo indicava que estava aceitando bem todos aqueles segredos que ele lhe vinha escondendo.

—Não há muito mais a contar. Somos fortes, vivemos bastante, não podemos tomar sol, precisamos de sangue, temos caninos pontudos. Creio que isso é tudo.

— E quanto aos ferimentos que se curam sem remédios?

— Oh, sim. Temos essa capacidade de auto-regeneração dos tecidos do corpo.

— Especialmente quando ingerem sangue.

— Exatamente.

— Estou feliz que tenha me contado os seus segredos, Bothan. E gosto de saber que o clã dos MacNachton não corre perigo de pessoas como meu tio e seu bando de malucos.

— Oh, sim. Todos devem ter ouvido o que aconteceu com seu tio. Espero que pensem duas vezes antes de tentarem encurralar alguém de meu clã. E há mais uma coisa que você precisa saber. Os MacNachton raramente têm filhos. É por isso que muitos se casam com os Outros. Estamos morrendo como clã. Como sou de dois mundos, minhas chances de procriar aumentam. Mesmo assim não sei se poderei lhe dar um filho, minha esposa. Bem, posso ter herdado características dos Callan que são extremamente férteis. Oh, por que está sorrindo?

— Porque é preciso que você agradeça seu lado felino e mande um presente para sua mãe. Você herdou a fertilidade dos Callan.

Por um breve momento, Bothan não se moveu. Mal respirou. Por fim, levantou-se e ajoelhou-se diante de Kenna, tocando de leve em seu ventre.

— Está com criança? — A voz dele soou rouca e emocionada.

— Sim. Suspeitava já há algum tempo, mas esperei para ter certeza.

— E foi por isso que a encontrei hoje pensativa? Teme que nosso filho se transforme em um misto de humano e fera?

— Sir Bothan, por que me faz tal pergunta? Desejo apenas que a criança seja exatamente como o pai. Que herde as suas forças, fraquezas e beleza. Porque você é um homem belo, mas principalmente é um homem bom. Um misto de humano, de lobo, de gato. Só espero que nosso filho não tenha a capacidade de herdar o meu dom de sonhar e falar com os mortos.

— Então nosso líder que nos mandou escolher companheiros de outras raças estava certo?

— Estou feliz que seu pai tenha escolhido uma mulher do clã mais fértil. Isso nos garantirá uma família muito numerosa.

— E meu primo James batizará todos os nossos filhos, querida esposa. Então está feliz?

— Oh, sim. Amo o meu marido e serei mãe em breve.

— Você me ama, Kenna? Jura?

— Sim, Bothan. Apaixonei-me no momento em que entrou naquela caverna.

— Também senti que seria a mulher de minha vida naquele momento.

Os olhos de Kenna se encheram de lágrimas. Sentia-se completamente feliz.

Bothan acariciou-lhe os cabelos sabendo que faltava uma coisa a mais para revelar a esposa.

— Há algo que preciso dizer, mas não sei se terei coragem.

— O quê? Teme me ver chocada?

— Oh, não brinque. Talvez não goste de meu último segredo. Herdei dos MacNachton a necessidade de marcar a mulher que amo.

— Marcar-me? Como?

Ele tocou no pescoço de Kenna.

— Aqui. Uma mordida.

Por um breve momento, Kenna hesitou e sentiu uma ponta de medo. Então o pensamento de ser marcada causou-lhe certa excitação. Por que não permitir que o marido seguisse a tradição de seu povo? Ela lhe pertencia. Isso era justo.

— Tenho o coração de um lobo, como você bem viu em seus sonhos. E como tal lhe serei fiel por toda a vida. Só terei você como minha mulher.

— Então apenas uma mordida. Apenas uma vez?

— Sim, uma mordida. Mas isso acontecerá durante o êxtase do ato de amor. Eu lhe darei o meu sêmen e em troca beberei um pouco de seu sangue.

— Uma troca — ela murmurou. — E quando faremos isso?

— Na verdade, estou ansioso para que aconteça. Por que não agora? Se estiver disposta.

— Estou, meu senhor. Ansiosa, inclusive.

Subiram rapidamente as escadas que davam ao quarto. Em minutos estavam nus e trocando carícias cada vez mais ousadas.

—Tem certeza de que me permitirá marcá-la?—ele perguntou interrompendo um beijo.

Kenna sorriu para o marido. Pertenciam um ao outro, teriam filhos, viveriam juntos até o último de seus dias. Por que não a marca?

— Por que parou o beijo? Estou ansiosa para alcançar o êxtase e poder lhe pertencer da forma mais completa.

Bothan retomou as carícias que eram retribuídas com tal intensidade pela esposa que ele chegou a se surpreender mais uma vez.

Kenna sentiu-se sem inibições e vibrou com os beijos do marido, inclusive aqueles em seus seios e em suas partes mais íntimas. Retribuiu em tudo as ousadias e quando chegavam perto do clímax, ela se preparou para ser marcada para sempre pelo marido. Sentiu a leve mordida, ouviu seu próprio gemido não de dor, mas de um surpreendente prazer.

Bothan foi recuperando os sentidos e afrouxou o corpo sobre o de Kenna. Nunca tinha sentido um prazer tão intenso como o de há pouco enquanto marcava sua companheira. O ato de amor tinha sido intenso, mas rápido. Levantou a cabeça e viu que Kenna parecia inconsciente. Nunca tinha ouvido dizer que marcar poderia ferir seriamente uma mulher.

— Kenna, querida? Sente-se mal?

Ela abriu os olhos lentamente e sorriu para o marido.

— O que foi, meu querido?

— Pensei que a tivesse ferido...

— Oh, não. — Ela tocou no pescoço. — Foi uma experiência muito estranha, Bothan. Doeu muito pouco, um segundo talvez. Depois, tudo foi prazer.

— Eu lhe dei muito prazer?

— Oh, sim, meu marido convencido. Mas diga-me, a marca está visível?

— Está vermelha. — Bothan beijou a esposa exatamente no ponto da marca. — Como a justificaremos para as pessoas?

— Diremos que foi a corda que machucou o meu pescoço.

— Uma explicação bastante convincente. Pelo que me contou, ficou pendurada por um segundo e quase morreu. Não quero me lembrar disso agora, onde só há lugar para a felicidade.

— Acredita que nosso filho herdará o meu dom de vidência? E também falará com os mortos? — ela perguntou.

Já não lamentava mais o seu dom. Seus sonhos lhe haviam anunciado a presença de Bothan em sua vida. Lembrou-se de que em um deles havia sangue em sua boca. Sangue que pertencia a ela. Oh, Deus. Ela era verdadeiramente uma vidente.

— Oh, todos os nossos filhos terão esse dom. E outros mais. Já lhe contei que sua mãe se comunicou comigo?

— Minha mãe? — Kenna olhou surpresa para o marido. — Ela também voltou a conversar comigo. Disse-me que ouvirei outros espíritos, também. Há mortos querendo se comunicar comigo.

— E o que pensa disso? Não gostei de ouvir vozes em minha cabeça, mas cada um tem de se resignar com suas estranhezas. E como tem o dom da profecia, diga-me se seremos felizes para sempre.

— Nós e nossos filhos. — Kenna sorriu. — Desejo que nosso primeiro tenha os olhos da cor dos seus, meu marido.

— E eu aqui desejando que a criança se parecesse em tudo com minha bela esposa.

— Oh, tudo está tão perfeito. O povo de Bantulach aos poucos nos aceitará. Seremos bons governantes e dividiremos com todos a nossa felicidade.

— Conto com isso. E escolherei Simon como meu homem de confiança. E desejo que nosso filho não sofra por suas diferenças e aprecie a todas elas. Não poderemos ser mais felizes do que neste minuto, meu amor.

— Meu belo marido. Penso que somos pessoas com muita sorte.

E naquele momento, Bothan decidiu repetir o ato do amor. Sem mordida desta vez, que a marca já fora feita. Mas restavam tantos outros motivos para chegarem ao máximo do prazer.

Sorriu para a esposa quando ela intuiu o seu desejo e lhe abriu os braços, pronta para o amor.

 

 

                                                                  Hannah Howell

 

 

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