Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
RASTROS DO VERÃO
Um homem debaixo de uma árvore, sentado num banco de pedra, a cabeça pendida olhando os pés descalços. De repente ele olha para o fim da planície e sente como se um colapso, e acorda.
Foi quando abri os olhos, e o motorista do ônibus batia no meu braço, pedia que eu acordasse porque tínhamos chegado. E chegamos na hora, três da tarde, ele completou. Notei que no ônibus só havia eu e o motorista. Fazia muito calor. O motorista afastou‑se, e antes de descer virou‑se para mim e disse que tínhamos chegado em Porto Alegre. Eu respondi que sim, eu sei – e olhei pela janela e vi alguns passageiros aguardando a bagagem que iria ser retirada do porão do ônibus. Lembrei que era Terça‑Feira Gorda.
Então calcei os sapatos e me levantei. E antes de olhar compulsivamente sobre o bagageiro me acorreu a lembrança de que eu não tinha nada comigo. Que era só descer do ônibus e ir.
Fui saindo do ônibus lentamente, me espreguiçando, lançando furtivas olhadelas em volta. Entre o povo que transitava pela rodoviária havia alguns fantasiados, poucos, bem menos do que se poderia esperar de uma Terça-Feira de Carnaval.
Vi uns postais numa banca, parei para olhá‑los. O de Gramado coberta por uma fina camada de neve. Um outro mostrando dois pinheiros solitários. Outro, cavalos despidos na campanha.
Passei por um rádio que tocava uma marchinha. Parei, e vi que o rádio estava nas mãos de um homem sentado num banco, vestido de gaúcho. Ao lado dele uma criança de pés descalços muito sujos pedia colo.
Olhei em volta, senti que precisava mijar. Ao entrar no banheiro, havia uma fileira interminável de homens diante do mictório. Fiquei esperando que surgisse alguma vaga para mim. Um dos homens virou a cabeça, me olhou, fechou a braguilha e saiu.
Entrei na vaga sem nenhuma determinação, pressentindo o incômodo de mijar assim tão espremido. Se me esquecesse de onde eu estava e me imaginasse mijando num campo aberto, conseguiria? E se eu ficasse com a atenção toda posta na inscrição obscena na parede à minha frente?
Mas não havia jeito. Então fechei a braguilha e me dirigi para uma das pias. Olhei a minha imagem no espelho: eu andava me tratando mal. Não que eu já estampasse uma profusão de rugas, nem bem chegado aos quarenta. Não, o meu rosto ainda apresentava certa solidez. Era quem sabe a falta de um sinal qualquer que ainda pudesse insinuar a alguém uma promessa. Foi tudo tão rápido, murmurei.
Ao meu lado um homem lavava as mãos. Abri a torneira como se precisasse imitar o homem. As mãos debaixo da torneira. Eu estava muito suado, e passei as mãos molhadas pela testa, pescoço, ombros, peito. Secando as mãos no papel tive um impulso de olharem volta à procura de um relógio. Aí me veio um suspiro, como se eu dissesse: para quê?
Eu já tinha saído do banheiro, e via um telefone público. Olhei para os meus pés andando e de súbito eu já estava na calçada.
Era uma avenida muito larga – que eu não reconheci. Por sobre a avenida atravessava uma passarela.
Fui subindo a rampa em caracol de acesso à passarela. Lá de cima, olhei à direita e vi o rio, ao fundo a ilha. Depois, olhei à esquerda e vi uma das torres da igreja da Conceição. A outra estava coberta por um edifício.
Quando eu descia a rampa de caracol da outra ponta uma cigana, que subia, se aproximou e perguntou em castelhano se eu queria que ela lesse a minha sorte. Falei que eu não tinha muito tempo, mas antes de terminar a frase notei que a minha mão estava aberta e que a cigana a tomava em suas mãos.
Não ouvi o que ela falava. Eu apenas sentia na minha mão um latejar incontrolável, como se a força que estava concentrada neste pedaço do meu corpo fosse a ponto de arrebentar e se imolar. Como se a cigana aparecesse apenas para cumprir o rito daquela imolação.
Dei a soma que ela pedia, e continuei a andar.
Peguei uma avenida que levava ao centro. Li a placa de ferro pregada na parede: avenida Júlio de Castilhos. Essa avenida está igual, pensei. Havia um profundo silêncio. Eu não via pedestres nem carros. Aproveitei a primeira rua lateral para mijar. Numa ponta da rua via‑se o porto, na outra, casas de pequeno comércio, todas fechadas, com exceção de uma com seus vestidos de verão esvoaçando brandamente pendurados na marquise. Senti uma brisa, espichei um pouco a mijada. Só no ponto onde eu estava ficou sombrio. Olhei para o céu e vi que sobre mim pairava uma nuvem espessa. O resto em volta, azul.
Eu continuava a caminhar, passava por um cinema com um título de filme pornográfico. Desde quando esse cinema aqui?, comentei baixinho.
Passos depois eu via o velho Mercado que beira a praça Quinze. Pela praça Quinze eu caminhava sobre restos de frutas, sentia consistências variadas sob os pés, esmagava uvas de dias atrás. Ninguém passava. Poucos ônibus descansavam em seus terminais.
Me sentei num banco. Não me lembrava de um verão como aquele em Porto Alegre. Uma folha de jornal voou e veio dar nos meus pés. Súbito, armava‑se um temporal.
Vou ficar na chuva, eu disse – aquelas coisas que costumava dizer quando estava muito só. Alguém sentado ao meu lado disse que faria o mesmo. Olhei para o lado e vi que era um garoto que deveria andar nos dezessete, no máximo nos dezoito anos. Ele vestia uma camiseta e uma bermuda. Sim, a chuva, eu respondi. E aproveitei para perguntar como ele estava indo de Carnaval. Ele respondeu que desde sábado andava por aí e ainda não tinha visto nada.
De repente me veio a idéia de que aquele garoto ficaria bem numa fantasia de centurião romano. Sorri, ele sorriu também.
Depois o garoto começou a olhar insistentemente para o Chalé da praça Quinze. Como se observasse não haver ninguém em suas mesas. Ou quem sabe se imaginasse bebendo o chope que ele não poderia pagar. Essa idéia veio acompanhada de um impulso de ver aquele garoto precisando de alguma forma de mim. Mesmo que ele trouxesse algumas notas num canto da bermuda, mesmo assim ele tomaria o chope sem ter de pegarem dinheiro. E percebi nesse impulso um sinal de que só assim eu começaria a me sentir de fato em Porto Alegre.
Suspirei silencioso e disse uma coisa que parecia estar entalada na aninha garganta havia muito tempo: tirar o dinheiro do meu bolso e pagar um chope para esse menino, eis o que precisa ser feito. O garoto me ouviu, e disse que pelo meu modo de falar eu não vivia aqui. Senti que eu tinha me ruborizado, e para desfazer o ridículo dei bem de mansinho um soco no braço dele. O outro braço dobrei na altura do meu estômago, em sinal de defesa. Era uma dessas imagens antigas que eu nunca soubera imitar.
O garoto levantou‑se, tinha gostado da idéia do chope no Chalé. Levantei‑me também. Percebi que a praça Quinze naquele ponto era escura, com árvores de copa cerrada. E mais escura estava pela proximidade do temporal. Andávamos para o Chalé em meio a uma forte ventania, e me irrompeu a imagem de um coração pulsando num ambiente cavernoso e insondável, e pensei que aquele garoto ali tinha isso dentro dele.
Mal entramos no Chalé começou a desabar a chuva. Um garçom veio apressado e fechou a porta atrás de nós. Nos sentamos junto à mesa ao lado de uma vidraça opaca pela água que caía.
É o nosso banho de chuva, falei. Ao falar senti que poderia ter ficado calado. O garoto bebia o chope prometido.
Lá de fora veio um estrondo que fez vozes gritarem. Daquela mesa não se via nada, apenas a chuva.
Pouco a pouco a chuva ia passando, e da vidraça já se podia ver o contorno do Mercado. Em segundos os contornos lá fora já estavam completamente nítidos. E havia uma claridade que prenunciava o reaparecimento do sol. Uma verdadeira chuva de verão, eu disse, e agora tive a sensação de que o dia estava a meu favor. Me afastei da mesa e tive o instinto de olhar os meus pés. Eles estavam dentro de uns sapatos avermelhados de terra. Era com eles que eu tinha vindo até aqui. Olhei para o garoto e disse que eu já tinha caminhado muito, que tinha sido sempre assim: quando chegava numa cidade, conhecida ou não, o meu primeiro impulso era o de caminhar sem outra direção que não a do meu faro, e que o meu faro me levava geralmente a uma tal intimidade com o cenário que no dia seguinte eu já tinha vontade de partir. É como com as mulheres, eu disse quase murmurando. Olhei para o garoto e vi que ele estava a ponto de chorar. Passei a mão sobre os meus próprios olhos, e parei de falar.
O meu pai era um viajante, o garoto disse e eu me senti aliviado. Abandonou a minha mãe quando eu ainda era muito pequeno. Mandou uma carta do Rio e nunca mais mandou notícias. Não tenho na memória nenhuma imagem do meu pai. Rejeitava as fotografias dele que a minha mãe costumava mostrar, simplesmente fingia que olhava mas olhava mesmo era uma outra imagem – alguma coisa como um corpo de homem sem face, o mesmo que um fantasma. Se alguém me perguntar o que eu sinto por esse homem, confesso que pra mim tanto faz que ele exista ou não. Morto, vivo, ou simplesmente uma invenção da minha mãe, nunca mudou como não vai mudar nunca o meu destino.
Baixei os olhos, olhei meu copo: um resto de chope sem sombra de espuma. Quando voltei a olhar o garoto ele estava com o braço erguido chamando pelo garçom. Vieram mais dois chopes. O garçom abriu a vidraça ao nosso lado. Perguntei o que ele faria se o seu pai aparecesse. Ele olhou pela janela em direção ao Mercado, e disse que qualquer um poderia aparecer e declarar ser seu pai que ele não teria como acreditar ou não – a única imagem que tinha dele era a de um homem sem face. Novamente baixei os olhos. E virei o braço como quem consulta o relógio no pulso. Mas o meu pulso estava nu. Então cocei a região do pulso, e me senti covarde.
O sol tinha voltado. A tarde novamente azul, eu disse. Mais uma vez me bateu a sensação da miséria das palavras. Aí eu disse que apesar de tudo as palavras existiam, e que tinham sido feitas para se preencher o tempo. Senão, como duas pessoas conseguiriam se manter frente a frente sem estarem ocupadas com outra coisa? O garoto olhava para a toalha branca, como se pousasse os olhos em alguma coisa que não lhe exigisse nada além de olhar. Quando olhei para o ponto onde ele parecia estar olhando tive a impressão de ouvir dentro de mim um grito inacessível, como se submerso numa camada imemorial. A impressão foi tão breve que nem tive tempo de impedir o gesto de levar a minha mão sobre a toalha branca. Eu disse que me tinha nascido esta pequena nódoa castanha na mão. Tão cedo?, o garoto perguntou.
Do lado de fora da janela apareceu um homem negro. Mostrou uma caixa com alguns frascos de perfume. Disse que eram de fabricação caseira. O trabalho da filha que vivia metida com essências, vidrinhos, os olhos vermelhos de tanto misturar as cores com os aromas. Ele pegou um frasco com um líquido azulado e contou que era uma água‑de‑colônia para homem, tinha muita saída. Enquanto ele tirava a rolha do vidro para que cheirássemos, eu disse que poderia deixar o vidro fechado, sim, eu ia levar... O homem mostrou‑se contente com a venda, abriu a boca de poucos dentes e falou que eu não ia me arrepender. Enquanto falava, aproximava o frasco das minhas narinas porque ele não tinha condições de ouvir o meu pedido de não abrir o frasco, se ele não desse uma amostra do aroma antes que eu lhe pagasse tudo seria em vão, mesmo que ele saísse dali com o dinheiro no bolso e fosse tomar uma cerveja – se eu não estivesse aspirando o odor concentrado de alguma coisa como jasmins tardios ele teria saído dali com a sensação de não ter vendido nada. Aspirei profundamente o conteúdo do frasco, e enquanto ele passava o perfume para as narinas do garoto, considerei comigo que em todo canto havia súplica.
Mas quando o homem retirava o perfume das narinas do garoto, assim, sem que eu pudesse perceber, o frasco caiu da mão dele e se quebrou sobre a toalha branca. Ficou uma mancha azulada que caía muito bem com a luz da tarde.
Botei a mão no bolso, perguntei quanto era, abri a carteira, e coloquei as notas sobre a mancha espalhada na toalha. O homem negro pegou as notas e disse que ia beber uma cerveja.
Eu olhava novamente o garoto e me sentia agora descansado, como se eu não tivesse passado a noite na viagem, sem praticamente dormir. Um ônibus saía do terminal da praça Quinze, e o garoto disse que logo atrás do ônibus havia uma mulher com uma pequena criança no colo tentando fazer sinal para o motorista. Mas o motorista não a viu. Olhei, e vi a mulher com o ar desconsolado. Tudo se esvaía, pensei. Como se nada fosse perdurar até a manhã seguinte. E senti uma fulminante sensação de alívio – o que me fez agradecer enfático demais ao garçom que trazia mais dois chopes. Respirei, e tudo o que eu ainda pudesse viver seria extremamente reparador.
Olhei para o garoto e perguntei se não queria andar um pouco por aí. Notei no seu olhar uma aflição: me olhou franzindo rapidamente os olhos como se tivesse ocorrido uma fisgada em alguma parte do seu corpo, e disse sem muita convicção, tudo bem. Depois olhou mecanicamente em volta, e sua expressão encontrou então um tom resignado. Como se no primeiro momento ele tivesse preferido adiar a partida do Chalé, mas, agora, não visse nenhum motivo sólido para ficar.
Tamborilei na mesa um ritmo de samba, e havia uma encenação nesse gesto, eu sei, mas depois de muito tempo era a tal vontade de ser necessário para alguém. De fazer com que aquele garoto, pelo menos nas horas que passasse comigo, fosse capaz de esquecer, e que a sua memória ficasse parada naquela toalha branca e que ele me permitisse conduzir o resto por algumas horas... Repentinamente as minhas mãos escorregaram da mesa como tontas e caíram pelas margens laterais da cadeira. Sacudi os braços como se estivesse relaxando.
Quando eu pagava a conta o garoto inclinou‑se e cheirou a toalha. Olhei as notas abertas na minha mão e senti vontade de ter muito dinheiro para gastar: alugar um barco e sair pelo Guaíba, ir ao encontro dos magnatas das drogas, comprar as mais prometedoras, ou simplesmente jogar dinheiro fora. O garoto levantou‑se e disse, vamos?
Meti a língua pelos buracos do que me restava de dentes – embora o meu único indício frontal fosse a falta de um canino – e disse que só o dinheiro me poderia salvar. O garoto me puxando de leve o braço para que eu me levantasse disse que eu às vezes falava muito baixo. Falei que ele se esquecesse do que eu tinha dito, que ele poderia ter certeza de que eu não o desapontaria como caminhante. Me levantei e vi que o garoto era um pouco mais alto do que eu.
Enquanto caminhávamos pela praça Quinze o garoto parou e disse que estava indo embora amanhã para o Rio. Curso para a marinha mercante, e depois sairia pelos mares para todos os portos do mundo. Quando o garoto disse isso não olhei bem para ele, olhei um porto congelado digamos lá do mar do Norte, e nesse porto eu via um marinheiro encolhido de frio. Afastei‑me dois passos e olhei aquele guri, imaginei ele puxando uma corda no convés.
Notei a camiseta fininha que o garoto vestia e disse que de agora em diante ele passaria a vestir tecidos bem mais resistentes. O garoto continuou a caminhar, agora mais resoluto, me obrigando a acelerar, como se tivesse me mostrado um futuro bem mais interessante do que se tinha vivido até aqui.
Caminhando pela Borges segurei o braço dele, e de imediato senti que eu estava cometendo quase uma agressão porque peguei no braço dele forte demais – como se um sinal de violência para que retardasse seus passos e acompanhasse os meus. Quando soltei a mão disse que eu deveria estar cansado. A noite inteira num ônibus, sem conseguir pregar o olho. E tinha chegado apenas umas duas horas atrás.
O garoto falou que eu estava chegando e ele partindo. E sorriu. Aí eu voltei a imaginar ele puxando a corda no convés – só que agora havia um vento contrário, se não uma tempestade. Eu disse que pensando bem eu não estava tão cansado assim..., que depois de horas sentado eu precisava mesmo era de mexer com as pernas. E prosseguimos…
Quando vi estávamos parados em pleno asfalto da Borges. Por aqui não passa mais trânsito, avaliei. Uma mulher vendia flores no lugar por onde tinha passado o trânsito mais movimentado da cidade. Ao me aproximar das flores tropecei e caí. Olhei para cima e vi o garoto inclinado perguntando se estava tudo bem. O garoto parecia mais forte que eu. Se ele pegasse no meu braço para me ajudar, faria isso com a maior precisão. Pressionei meu pulso contra o asfalto como querendo testar a minha força, mas na hora de pressionar meu pulso contra o asfalto eu não pensei em nada e me lancei de um ímpeto para cima, e novamente o garoto estava ali, frente a frente, um pouco mais alto que eu. Ele não tinha aquele ar meio galhofeiro com que as pessoas costumam olhar quem leva um tombo sem conseqüências. Apenas me olhava com uma atenção redobrada, e desconfiei que havia nele uma frase latejando atrás dos lábios, e o que quer que essa frase dissesse ela seria de agora em diante do mar.
Olhei em volta e vi uma criança recém dando seus primeiros passos andar em minha direção, vinha sem destreza com os braços estendidos, quase no limite do que ela dispunha de equilíbrio, ansiosa por sobraçar as minhas pernas. Ao chegarem mim passei a mão por seus cabelos louros – e olhei para a frente, e vi o garoto. Ele agora estava com a boca levemente aberta, vazia.
A criança tinha os cabelos molhados de suor. E a mão de alguém afastou‑a de mim. Acho que foi o dia mais quente deste verão, o garoto disse. E disse também que fôssemos até o porto, o cais, tinha um navio chamado Rex, não tinha certeza se panamenho ou mexicano, queria ver se descobria hoje o que o navio estava carregando. Voltamos a andar, a caminho do porto, entrando pela Sete de Setembro. O garoto começava a contar que uma noite teve um sonho onde encontrava o seu pai no porto de uma cidade que ele não sabia o nome, uma cidade com certeza árabe, com mercadores, ruelas escuras, mulheres de véu na boca. Foi nesse porto que ele encontrou o pai depois de muito tempo. O pai era mais velho mas ainda forte, e estava de mão dada com uma menina de uns dois anos. Quando a menina levantou o rosto em direção ao garoto, ele acordou. Não se importava que o sonho tivesse se acabado ali, o que tinha ficado na sua cabeça não era o encontro com o pai e o olhar interrompido da menina para ele, o que ele queria era ter visto o sonho até o fim, não por curiosidade de ver o desfecho do encontro com o pai e aquela menina que ele não conhecia, porque no final, se o sonho fosse desses que valessem a pena, no final seria ele no porto, entrando no navio, partindo outra vez sem se ocupar muito com as coisas da terra.
Na frente do prédio do Correio dois meninos negros jogavam uma pelada com um pedaço do couro de uma bola. Que coisa, pensei, olhando a posta de couro nada redonda que os meninos chutavam com muita risada.
O calor parecia agora na sua culminância, e eu tive a sensação de que alguma coisa precisava mudar. O garoto talvez tivesse chegado prematuramente a uma solução: iria para o mar – na terra, sempre em trânsito. E eu, alguma vez tinha aderido às coisas da terra?
Senti um calafrio, como se uma nuvem tivesse passado por dentro do meu corpo, gelada e instantânea. Eu andara esses anos todos por aí, e que história pessoal eu poderia contar? Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura? E sair pelo mar, pensei, para mim é tarde demais. Os meus músculos estavam combalidos, e o pior: eu me esquecera de exercitá‑los. E a faina de um navio era mexer com cordas, mastros, máquinas escaldantes..., era você o tempo todo a conviver com toneladas, obrigado a vencer terríveis tempestades. Olhei o braço do garoto e imaginei o músculo que ele iria criar. Raciocinei se não era o caso de deixar aquele garoto seguir sozinho, ali, antes de atravessarmos a avenida à beira do cais eu deveria lhe dizer que eu tinha vindo a Porto Alegre para resolver uma questão muito urgente e que eu não poderia me atrasar. Ele talvez me olhasse sem entender que alguém pudesse resolver alguma questão muito urgente numa Terça‑Feira de Carnaval. É isso aí, falei: eu posso estarem Porto Alegre para me apresentar à polícia, ou quem sabe fugindo dela, eu posso estar aqui para fechar um negócio para hoje, ou recomeçar um amor da vida inteira, essas histórias e muitas outras são plausíveis numa Terça‑Feira Gorda porque a pausa é só aparente: a mão conspiradora continua a conspirar, assinam‑se planos, selam‑se afinidades eternas. O garoto respondeu que quando ele vier a Porto Alegre no futuro não terá uma única questão urgente a resolver. Por aqui estão todas resolvidas, ele completou.
Antes de passarmos o portão do cais havia uma casinha de sentinela com dois guardas lá dentro comendo pêssego. Uma mulher muito pálida saía do cais com um belo decote, e eu imaginei aquela pele alvíssima sob a força de todo aquele sol. Ouvi o rumorejar quem sabe de alguma ave aquática, e observei que entre as pedras do calçamento do cais, aqui e ali, havia pequenos tufos secos de relva. Não vi nenhum navio, só o rio como um enorme corpo doente e escuro. Ouvi o garoto dizer que no porto do Rio de janeiro, numa tarde de forte calor, um marinheiro grego enlouqueceu e tentou incendiar o navio.
Vi o brilho fosco da água, e ao mesmo tempo me dei conta de que eu tinha abandonado tudo. Pessoa por pessoa. Os objetos eu não os tinha trazido, salvo um dinheiro que me daria por alguns dias. Se quisesse, pensei, eu poderia gastar esse dinheiro todinho nas próximas horas. Pagaria mais chopes para nós dois, pratos de primeira, uma nova rodada de chope, sem parar, até chegar amanhã e o garoto me dizer que precisava pegar as suas coisas, já era hora de partir para o Rio. E eu então me apoiaria na parede amarelada das docas, pronto para ficar, exatamente ali, e talvez ali eu fosse lentamente saindo de mim, deixando o meu corpo naquela fadiga cada vez mais rasa, daquela força abatida se esvaindo eu sairia com o vagar do navio – eu próprio me transportando para fora de mim.
Não, eu não queria morrer, eu disse distraído para o garoto que reclamava da falta do navio Rex. Como ele parecesse absorto na falta do seu navio continuei a falar, num tom apenas suficiente para que eu mesmo pudesse me ouvir: dizia que eu não queria morrer, queria um espaço imenso por onde eu pudesse andar, onde o tempo ocorresse pela ação dos meus pés, o meu corpo existindo para percorrer, onde eu parasse também e na manhã radiosa prosseguisse, onde a vida fosse sempre um novo lugar. Pois é, disse o garoto que me escutava sim: dizia um marinheiro português que quanto mais paisagens mais convites para se ficar. Quando o garoto falou eu senti dentro do meu corpo um líquido fininho se expandir como uma fonte brotando da terra. Ele suava por todos os poros. O sol me atordoava os olhos, e eu via a sua pele úmida entre o rosa e o alaranjado.
Perguntei onde estava o seu navio Rex. Ele respondeu que até dias atrás estava aqui – e apontou para o rio, bem à nossa frente, onde boiava uma lata vazia. Depois olhei o rio mais ao longe, depois o céu que me queimava os olhos, e como se cansado de olhar parei o olhos nos olhos do garoto, e contei que desde criança eu tive uma coisa assim, de querer fechar os olhos e quando os abrisse estar num outro ambiente, quem sabe uma outra cidade, quem sabe até um outro mundo que eu não tivesse nem imagens para conceber. O garoto disse que por isso ele ia passar a vida viajando, porque a cada porto ia abrir os olhos novamente.
Mas que tal se a gente fosse um pouquinho lá pra sombra?, perguntei. O garoto passou a mão nos cabelos suados, e falou que era isso o que ele estava querendo ouvir.
A sombra mais densa veio só na praça da Alfândega. Sentamos num banco debaixo de um jacarandá. A minha camisa estava colada ao peito de suor. Eu disse que só agora estava descobrindo que eu gostava do verão. Acho que ao me queixar do calor faço o papel de uma mulher que negaceia a sedução para provocá‑la mais e prolongá‑la.
Foi então que decidi tirar a camisa, e perguntei se ele não ia fazer o mesmo. Ele tirou a camiseta, e ele tinha uma medalha de são Jorge no peito. Era dourada, e mostrava um detalhe especial: em vez de matar o dragão, são Jorge fincava sua lança num sol resplandecente. Olhando bem de perto notava‑se que esse gesto tornava o santo transfigurado, como se o rosto em chamas, e sua boca era feita de minúsculas continhas vermelhas. É tão dourada, eu disse soltando a medalha. É de ouro, ele respondeu.
Não podíamos ter ficado num lugar melhor, falei. Quando o lugar é assim, me pacifica um pouco a necessidade de estar em outro lugar. Aqui não, aqui estou bem...
Eu olhava a praça da Alfândega, e ela estava com poucos freqüentadores, todos sentados, de pé só um menino engraxate que olhava parado em todas as direções, como se procurasse não um freguês mas algum colega...
Eu disse que me agoniava a sensação de ter sempre alguma coisa a fazer, algum problema para resolver, alguma situação que precise de mim para seguir seu curso...
Para mim o melhor seria que pudéssemos ficar debaixo desse jacarandá, e que você ir embora amanhã para a marinha mercante, ou eu o que vim fazerem Porto Alegre, tudo o mais estivesse do lado de fora daqui e se possível nos esquecesse.
E me dei conta de que eu agora falava como um verdadeiro canastrão, as pupilas viradas mais do que a cabeça para a câmera – no caso o garoto.
Mas não parei de falar. Senti que fosse qual fosse o meu jeito eu deveria manter as coisas andando mesmo debaixo daquele jacarandá. Que não adiantava vir para debaixo da árvore, que mesmo ali era preciso preencher o tempo com palavras, que do contrário o garoto me abandonaria – e se ele me abandonasse talvez na manhã seguinte eu ainda continuasse ali, e quem passasse talvez já não desse por mim.
E por que não falar?, eu disse numa veemência como se necessária para me fazer acreditar. O garoto teve um pequeno sobressalto: deu um passo em minha direção e redobrou o olhar.
É..., concluí. E me veio um gesto que eu não soube deter: peguei a medalha de são Jorge no peito do garoto, mas apenas esbocei o movimento de arrancá‑la.
O garoto disse que no tempo da rainha Vitória um marinheiro inglês roubou a medalha de um outro, depois de muito desterro pela África veio dar no Brasil na esperança de encontrar ouro.
Ouro..., murmurei. E fiz um gesto com as duas mãos como se estivesse dimensionando um volume, e perguntei quanto tempo se poderia viver com uma barra de ouro assim. Só roubando para saber, o garoto respondeu sorrindo.
Aí eu dei, de mansinho, um soco no peito dele, e perguntei me sentindo completamente ridículo, mas perguntei: vamos formar uma quadrilha? Quando disse isso não me senti apenas ridículo, senti que eu tinha perdido a capacidade de entrar numa história com alguém.
Foi quando eu disse alguma coisa quase balbuciada, que eu mesmo nem ouvi. A minha boca salivava muito. Eu me virei para o lado, e cuspi. O garoto levou a mão em concha para trás da orelha e disse, o quê? Nada garoto, respondi. Eu quero apenas passar as próximas horas numa boa, o resto é tudo o que eu quero esquecer.
Ele respondeu que é por essas e outras que ia viver agora de porto em porto, sem se deter muito no que ele queria esquecer. Olhei o garoto e o invejei loucamente: tudo o que ele viesse a viver seria maior do que tinha vivido até aqui. Um garoto de futuro, pensei.
Eu passaria as próximas horas lhe proporcionando uma noite típica de taberna. Após beber cada chope de um fôlego jogaríamos os copos no chão, e depois eu pagaria por todos os estragos. Ele falou que continuássemos a andar.
Pegamos à direita, fomos pela parte menos central da rua da Praia, por onde a rua vai se tornando uma zona silenciosa que acaba no rio. Na primeira esquina havia uma mulher em prantos, falando com um guarda. Atrasamos os passos, eu espionando pelo canto dos olhos a curiosidade do garoto – ele parecia pronto a participar do que fosse. Com o lenço no nariz a mulher contava que o seu filho tinha desaparecido no sábado de Carnaval. O guarda fazia anotações num pedaço de papel. Saiu com amigos, a mulher contava, e não voltou mais. No outro lado da rua um menino de uns cinco anos fazia xixi contra o poste.
Porto Alegre é famosa por seus crepúsculos, eu disse pegando no braço do garoto. Ele falou que o sol caía lá – e apontou para o extremo da rua, lá onde o rio começava. Embora faltasse ainda para o crepúsculo, ele deu a impressão de continuar a andar bastante motivado pela minha lembrança.
E pensando nisso desatei a rir. Um riso incontrolável. O garoto caminhava do meu lado com jeito paciente, de quem vai deixar que o outro sacie o riso para só depois perguntar. O seu jeito paciente me fazia despejar mais risadas – sem que eu parasse de caminhar, sempre em frente às vezes aos tropeços.
Parei de rir e caminhar ao mesmo tempo. Vi a meu lado uma igreja com placa de anglicana. O garoto estava à minha frente com o peito nu, e eu descobria que ele tinha um ar indecifrável. Talvez o que ele tivesse falado até aqui fosse apenas para me satisfazer. Talvez ele fosse um louco, um criminoso, um garoto absolutamente normal.
Eu tinha diante de mim aquele garoto de peito nu com a mão apoiada no muro da igreja anglicana. Eu ia me aproximando dele sentindo que me faltavam as lembranças. O meu passado em Porto Alegre era mais uma abstração. Estou de mãos vazias e vou usá‑las hoje porque não sei o que foi feito delas ontem. Peguei uma folha da árvore que se derramava sobre o muro da igreja. E disse que não havia mais motivo de riso, já tinha passado...
Depois me senti muito leve, como se estivesse compreendendo que aquele garoto tinha aparecido para me levar. Não importava até onde ou quando. Não importava que na manhã seguinte ele me aparecesse com seus pertences em volta, pronto para partir, e eu tivesse que ficar como todos os que ficam: ansiando sem recursos por ser aquele que parte.
Voltamos a caminhar, e eu pensei satisfeito nos dias longos do verão em Porto Alegre, ainda mais que dessa vez era horário de verão. O sol ainda brilhava muito forte, e como eu estava sem camisa fantasiei: talvez até a noite eu já esteja bronzeado, pelo menos o suficiente para não parecer transparente ao lado da pele azeitonada do garoto. Engraçado que, mesmo com todas as desvantagens naturais que eu pudesse ter, eu sentia que me queria bem. Não tinha dúvidas de que nenhum sol conseguiria me devolver sei lá, o sal da pele que o garoto deveria ter, mas o me querer bem, não sei, vinha da certeza de que a vida realmente é rápida e que eu não tinha mais nada a perder.
O garoto chutou um pequeno frasco que estava no meio da calçada. O vidro estilhaçou contra o poste. Depois ele parou e disse que a gente dobrasse e subisse aquela rua, ele morava logo ali na rua Riachuelo e queria passar em casa para tomar um banho, que se eu quisesse fizesse o mesmo, ele morava num quarto alugado no apartamento de uma mulher que vivia com o filho, um guri pequeno, estavam viajando.
O prédio onde o garoto morava era estreito, de três andares, amarelo. Ficava atrás da igreja das Dores, e como ele morava no andar mais alto as torres da igreja pareciam muito próximas. Do quarto do garoto eu via uma palmeira contra as torres, e do lado esquerdo da palmeira, lá embaixo, o porto.
Em cima da cama havia uma mala aberta, levando gibis de Flash Gordon, uma bússola, poucas roupas, sabonete, uma toalha de banho. Quando eu olhava a toalha de banho azul a mão do garoto tocou nela, e ele disse que a gente usava essa toalha mesmo, não tinha outra. Depois pegou o sabonete, tirou‑o do papel, e disse que também o sabonete, não tinha outro. E passou a toalha e o sabonete para as minhas mãos, e disse que eu podia ir.
Eu estava tomando um chuveiro frio e cantarolando um fado muito antigo que fala de colheitas, quando da porta do banheiro o garoto falou que ia sentir falta da janela do seu quarto. Aí ele entrou no banheiro e começou a mijar. Eu disse que havia quase três dias não tomava banho. Abri a cortina de plástico transparente e saí do chuveiro. Comecei a me secar. O garoto tirava a roupa e a jogava sobre as minhas, no chão. Enquanto ele tomava banho eu começava a me vestir e ia contando alto quantos nomes de portos eu lembrava. Não surgiram muitos, e falei que às vezes eu pensava dedicar o resto da minha vida ao estudo da geografia. Para mim poucos prazeres se igualavam ao de abrir um mapa e de estudá‑lo com empenho quase religioso: abrir pontes, irrigar, destruir exércitos e intrigas – tudo isso poderia no futuro representar para mim quase a salvação.
Senti o calor e desisti de vestir o resto da roupa. Fiquei de sunga, me sentei na borda da banheira e resolvi falar de mim. Os pingos do chuveiro batiam na cortina de plástico, e eu contei que tudo o que eu tinha a dizer a meu respeito pertencia ao passado. De onde começa o presente?, o garoto perguntou. Digamos que do momento em que saí do ônibus, poucas horas atrás, respondi. Trata‑se de um recém‑nascido, o garoto disse rindo. Digamos que eu ainda nem abri os olhos, respondi. E ficamos um tempo rindo.
Quando o garoto abriu a cortina de plástico ele ainda ria. Peguei do chão a toalha úmida e a entreguei para ele. Enquanto se secava, ele contou que tinha rido pouco na infância, a mãe dava sempre a impressão de ser viúva de um herói de guerra e não de um homem que a tinha abandonado. Rimos de novo, e o garoto disse que também ia dar um tempo só de sunga, parecia que o calor tinha aumentado.
Pegamos nossas roupas e voltamos para o quarto. O garoto ligou o rádio. O locutor fazia um acalorado comentário do desfile da Mangueira na madrugada de segunda. Contava que ele tinha chegado hoje ao meio‑dia do Rio e que fora as duas noites ao sambódromo, vira a verde‑rosa passar, e não tinha dúvidas de que a escola sairia vitoriosa.
Depois tocou uma longa faixa do Police. E o garoto dançava olhando pela janela. Eu me sentei no chão, com as costas apoiadas contra a cama. E pensei que um quarto assim era tudo o que eu precisava.
Quando terminou a longa faixa do Police o locutor voltou a comentar acalorado o desfile da Mangueira. O garoto estava agora sentado no peitoril da janela, brincando com a bússola. Lá fora passava uma nuvem enorme e muito branca. A nuvem era fartamente iluminada, e eu fiquei olhando o céu.
O garoto continuava sentado no peitoril da janela, agora folheando um Flash Gordon. O locutor disse que ia tocar o samba‑enredo deste ano da Mangueira. Comentei que o samba‑enredo da Mangueira deste ano de fato era muito bonito.
O garoto abriu braços e mãos – o Flash Gordon caiu no chão –, e disse afogueado que estar ali, assim, sabendo que a partir de amanhã a sua vida seria outra, isso era uma coisa que ele não sabia explicar. Eu me levantei e comecei a dar alguns passos e cantar o samba‑enredo da Mangueira junto com o rádio. No meio da música a voz do locutor irrompeu com a informação de que ainda essa semana essa voz negra do morro estará cantando no Waldorf Astoria, o velho Jamelão senhores. Parei de cantar e dançar.
Aí eu vi na parede um retrato do garoto a carvão. E depois olhei o garoto sentado na luz da janela, e notei que a nuvem já tinha passado.
O locutor estava dizendo que ele agora ia olhar um pouco para trás, um flash‑back para a moçada que andava pelos trinta e muitos, ele atacava agora de Pink Floyd. O garoto disse que era o Henrique Prata, o mais famoso comunicador do rádio gaúcho. Henrique Prata era apaixonado por Pink Floyd. Entre as duas e as sete da tarde, horário em que ele falava, havia sempre duas, três faixas do Pink Floyd. E sempre uma faixa do Pink Floyd era a última música a ser tocada. Quando se ouve Pink Floyd no fim da tarde já se sabe que são quase sete horas e que a musiquinha da Hora do Brasil vai pintar logo depois. Mas hoje não tem Hora do Brasil, é Carnaval, o garoto lembrou.
Tudo aquilo que o garoto contava despertava nos meus ouvidos um estranho interesse. Eu seguia cada detalhe, cada pausa, como se ele estivesse me contando a única maneira de eu sair dali com vida. A história de Henrique Prata era como que uma parte integrante daquilo que eu precisava saber. Os rapazes do Pink Floyd cantando aquela música estavam absolutamente certos, pois pareciam peregrinos conclamando à travessia. Eu disse que se tivéssemos um carro poderíamos atravessar a ponte até Guaíba. O garoto fez um jeito qualquer com o corpo como se fosse cair de costas da janela. Eu me inclinei para acudir, mas ele estava só brincando – num átimo já estava novamente com as mãos bem sólidas sobre o parapeito. Ele riu do meu susto, e eu tentei rir. Mas eu não conseguia rir, eu estava mesmo era admirado que tudo aquilo estivesse acontecendo.
Aí o garoto ficou de pé, e me abraçou. Com o queixo apoiado no seu ombro, eu vi uma nuvem rosada, e pensei que se avizinhava o crepúsculo.
Aí ele se afastou, e disse que eu parecia o homem de uma história. Aquele velho marinheiro muito solitário que decidiu viver numa caverna, que comia plantas e dormia em pedras, que tinha uma esperança inabalável na vida depois da morte.
Onde você leu essa história?, perguntei. Eu não li, foi um professor de náutica quê me contou, o garoto respondeu. E ele sobreviveu?, perguntei. Dizem que com muitas saudades do mar, o garoto respondeu.
Estava tocando Dire Straits, e o garoto disse que a primeira grana que pintasse ele ia comprar um headphone. Notei que a nuvem rosada já tinha passado, e agora havia pequenos flocos amarelos.
Virei a cabeça e olhei para dentro do quarto, e vi que começava a escurecer. O garoto estava aumentando o som. Fui à janela. Quando vi o pôr‑do-sol me deu uma antiga sensação de não saber onde estava. Olhei para trás e vi o garoto dançando Dire Straits. Já havia um início de penumbra pelo quarto.
Me veio então uma certa dormência na perna esquerda. E eu fiz o que sempre fazia em ocasiões assim: fiz uma careta e resmunguei como se reclamasse de alguém responsável por todas as dores. Eu mesmo me achava patético nesses momentos, ao mesmo tempo eu mantinha um poder de autocrítica e dizia, você e essa velha mania de falar com miseráveis forças superiores.
Curioso que eu só resmungava com o aparecimento da dor física. Quando pintava a chamada dor moral, eu costumava olhar para o céu na intenção de não pensar.
O garoto observou que eu estava mexendo os lábios. Ele foi diminuir o som, e ainda com a mão no botão do rádio perguntou o que eu havia dito. Respondi que mais uma vez eu estava me envolvendo com miseráveis forças superiores, e que isso me dava um profundo mau humor. O garoto disse que eu sentasse um pouco na cama, que eu parecia nervoso.
Eu me sentei na cama. Perguntei se ele não tinha leite em casa. O garoto foi à cozinha, ouvi ele abrir a geladeira. Gritou de lá que tinha leite sim. Desliguei o rádio, saí do quarto e entrei na cozinha – que ficava na frente do quarto. Entre o quarto e a cozinha parei um pouco para olhar o que eu podia ver do resto do apartamento. Eu via logo depois a sala, depois um corredor com três portas. Uma porta deveria ser a do banheiro, duas de outros quartos.
Na cozinha me sentei numa cadeira, com os braços sobre a mesa. Na minha frente um cartaz da Festa da Uva em Caxias do Sul – uma loura sobraçando cachos. Peguei o copo de leite. O garoto bebia o seu de pé.
Enquanto bebíamos o leite em silêncio, ouvimos um ruído de chave na porta do apartamento. O garoto disse que a dona do apartamento estava voltando antes do que ela tinha dito. Ela tinha me dito que voltava quarta de manhã.
A criança veio correndo para a cozinha. Quando viu o garoto começou a dar leves mordidas na mão dele.
Depois veio a mãe. Que apareceu na porta da cozinha e acendeu a luz. Estava escuro, ela disse. A criança continuava a mordiscar a mão do garoto. Ele parecia não se importar. Olhou para a mulher e disse que eu era o seu pai. Foi aí que a mulher pareceu notar que estávamos de sunga. Olhou para a pia e disse sim, o pai, que bom...
Só então ela avançou da porta da cozinha. E abriu o forno do fogão. O garoto dizia à criança que depois ele ficava com a mão toda cheia de marca. A mulher fechou o forno e pediu que o filho sossegasse. Depois ela sentou numa cadeira junto à mesa, à minha frente, e reparei que era alourada e bonita. Me lembrei da mulher muito branca e com um belo decote que saía do cais àquela tarde.
Depois olhei para o cartaz da Festa da Uva e vi a moça sobraçando cachos. A criança agora puxava a mão do garoto para que ele fosse brincar de vídeo game. O garoto se deixou arrastar com um sorriso.
É..., ele viaja amanhã, eu disse. A mulher viu alguns farelos de pão sobre a toalha e começou a catá‑los. Enquanto ela fazia isso, sem olhar para mim, falou que o filho dela ia sentir muita falta do meu. Contou que desde sua separação do marido ficara muito só com a criança.
Então ficamos na cozinha a conversar por muito tempo. Quando calávamos ouvíamos o som do vídeo game e as gargalhadas dos dois.
Não tenho parentes em Porto Alegre, e enquanto fui casada não consegui fazer amigos, ela disse. Ela tinha uma das mãos cheia de farelos de pão.
Levantou‑se e foi jogar os farelos no lixo. Depois voltou a se sentar, e assim ficamos por algumas horas.
Quando nos demos conta não havia mais o som do vídeo game nem as risadas dos dois. Ela se levantou, e sem perceber fui atrás. Ela entrou no quarto da criança. No quarto havia muitos brinquedos espalhados pelo chão. Entre os brinquedos, a criança e o garoto dormiam. A mulher pegou com certo esforço a criança nos braços e a colocou na cama. A criança já estava também de sunguinha e suava muito.
Eu me inclinei sobre o garoto, dei uma olhada em seu sono, soprei uma mecha de cabelo suado que ele tinha na testa, e peguei de leve no seu braço, disse que ele fosse para a cama, se quisesse poderia ir se apoiando no meu ombro.
O garoto levantou‑se devagarinho sem abrir os olhos, e realmente foi para a sua cama se apoiando no meu ombro.
Ao sair do quarto do garoto vi que a mulher entrava no banheiro. Fiquei algum tempo parado na porta da cozinha, ouvindo o som do chuveiro. Resolvi entrar na cozinha e beber um copo d'água. Dentro da geladeira tinha uma lata de cerveja americana. Do banheiro agora não vinha ruído algum. Balancei a luminária acesa que ficava sobre a mesa. Enfiei a mão pela sunga e peguei o meu pau. A loura sobraçando cachos de uva me olhava.
Passei pela porta do quarto dela para ir ao banheiro, e a vi nua estendendo um lençol sobre a cama.
Não deu para mijar porque eu estava bastante excitado. Mesmo assim puxei a descarga. Ao passar pelo espelho, me olhei. Quando parei na porta do quarto dela estava escuro. Mas eu via perfeitamente a sua sombra deitada na cama. Até os quadris, o lençol – que eu retirei.
A sua pele arrepiou‑se, e numa eletricidade a minha mão também. Senti que eu podia ir. E entrei dentro dela.
Abri os olhos, e vi que eu estava deitado sobre um couro de boi. À minha frente a janela aberta mostrava uma manhã clara e muito quente. Quando olhei o céu sem nuvens, estonteantemente azul, me veio a antiga sensação de não saber onde eu estava. Custei a retirar os olhos do céu, como se eu quisesse retardar um pouco a consciência do espaço.
De repente os meus olhos se despregaram do céu e viram o retrato do garoto a carvão. Eu estava de sunga e tinha dormido sobre o couro de boi. Debaixo da cabeça uma almofada. Olhei então para o garoto dormindo na cama a meu lado. Na sua sunga havia uma mancha quase seca, na aparência exata de uma polução noturna. Quando vi a mancha lembrei que o garoto estava embarcando aquele dia. Sentei, e murmurei olhando pela janela: a que horas ele embarca? Olhei em volta, mas não vi um relógio. Senti como se ali tudo precisasse de mim. Fiquei me perguntando se ele não embarcaria de manhã, se já não era para estar acordado ou talvez até viajando.
Me ajoelhei ao lado da cama e passei a mão pelos cabelos do garoto. Ao abrir os olhos ele disse é hoje, não é? Eu disse sim, é hoje, mas a que horas você vai? Ele respondeu bocejando, às dez da noite.
Depois ele me pediu para ligar o rádio. Mas que eu visse antes se estavam todos acordados. Se estivessem dormindo, que eu antes de ligar o rádio fechasse a porta do quarto.
Ao sair do quarto do garoto vi que na cozinha não havia ninguém. Fui no quarto da criança, e fui no quarto da mulher. Procurei no banheiro. Ao passar de novo pela sala, sentei uns segundos na poltrona.
Voltei para o quarto do garoto e liguei o rádio. Me sentei no chão. Uma locutora falava da carreira atribulada de Elza Soares. Depois Elza cantou um blues. Quando terminou o blues me levantei, e disse que se tivesse leite ainda tomaríamos um copo. Quando voltei com os dois copos de leite a locutora falava da morte do caçula de Elza Soares. E Elza entrou com um samba. O garoto sentou‑se, e bebeu o leite um pouco afoito, como se estivesse precisando se alimentar. Eu disse que tinha mais... Então fui à cozinha, lavei o copo onde eu tinha bebido, e derramei mais leite no copo dele, o finzinho. Bebe, não tem mais, eu disse passando o copo de leite para o garoto. Ele bebia, e escorria leite pelos cantos dos lábios.
O garoto terminou e me devolveu o copo. Abriu um pouco a boca, e seus lábios ainda estavam lambuzados de leite, e seus olhos pareciam olhar para alguma coisa que não estava no quarto. Quem sabe para a linha entre o mar e o céu – que a partir de hoje lhe seria tão familiar quanto as linhas da mão.
Ajoelhado ao lado da cama preferi não falar. Fiquei aguardando que ele dissesse alguma coisa enquanto o indicador da minha mão direita rodava por dentro do copo.
Ouvi um murmúrio vindo do garoto, percebi que ele falava. Ele dizia que pensava que hoje o dia começaria mais agitado. E continuou, agora mais incisivo: se eu continuar assim o dia inteiro, alguém vai ter de tomar as providências por mim. E rimos os dois, muito.
Então o garoto disse que ia tomar banho, se vestir, que precisava fazer ainda algumas coisas antes da viagem. Ou não, ele completou. E deitou‑se outra vez. Fiquei pensando o que eu poderia fazer, e me lembrei de mencionar: ela e a criança saíram...
O garoto falou que eu ouvisse que música incrível do Legião Urbana. E saltou da cama, e abriu a mala que estava no chão. Pegou a bússola mas não a fitou. Indicou com a outra mão o rádio: a locutora anunciava que agora vinha Grace Jones, pra arrebentar. Lá pelas tantas Grace Jones dizia umas palavras em francês. Essa música cairia bem no porto de Barcelona, o garoto disse. E pegou da mala ele disse que um postal do porto de Barcelona, e me mostrou. A fotografia não me pareceu a de um postal. Era um marinheiro com uma pequena arca no ombro, atrás uns ferros vermelhos como de um guindaste. Porto de Barcelona?, perguntei. De Barcelona, o garoto respondeu. Quase nos pés do marinheiro sorridente havia um pequeno queimado de cigarro. Passei o dedo sobre a mancha castanha, e concluí que tinha sido um descuido visto a tempo, não chegara a danificar em nada o liso do papel.
Eu disse que me animava um pouco o fato de ainda existirem histórias por se fazer. Quem tirou esta foto?, perguntei, e ainda mais: que trajeto a fez cair nas minhas mãos? Ouvimos um barulho de louça se quebrando. O garoto foi à cozinha, demorou um pouco, e voltou dizendo que não era nada. A locutora anunciava que agora vinha a Elis. Sentei na cama com a fotografia na mão. Olhei‑a de novo, e sem perceber virei a fotografia de costas. Havia só um selo cor de vinho e o nome e o endereço do garoto numa letra infantil. Depois notei que a foto tinha sido emitida de Atenas. Larguei a fotografia sobre a cama. Notei que o garoto tinha saído do quarto. Aí escutei ele mijando no banheiro.
Me ocorreu que era Quarta‑Feira de Cinzas. E que eu estava em Porto Alegre. O garoto voltou, sentou‑se na cama, passou as pernas por cima da minha cabeça e deitou‑se de novo. Cruzou as mãos na nuca e disse que podia compreender tudo o que eu dizia. Na rua uma voz de homem berrou. Berrou uma segunda vez praguejando claramente contra alguém que o tinha trapaceado. A vida poderia ser seguida através dos ruídos, falei batendo de leve no braço do garoto. Nesse momento ouvi a minha barriga roncar. E fui tomado pela sensação de ter dito uma perfeita idiotice.
Isso me dava agora um profundo mal‑estar, o que me obrigou a fechar os olhos e apoiar a mão na cama. Desejava que quando eu abrisse os olhos o mundo já não comportasse engodos como aquele que eu tinha havia pouco pronunciado. Estranho é que nesses intervalos, quando eu não sabia como prosseguir, o garoto ficava em completo silêncio. O mal‑estar que eu sentia, ali, beirava à vertigem. Com os olhos fechados me molestava profundamente que as coisas continuassem existindo. O fato de eu não poder abrir os olhos e constatar alguma mudança me feria mortalmente. A única coisa aqui que me poderia salvar, pensei, era eu abrir os olhos e constatar que o garoto já não estava mais na cama, que ele já tinha partido para o Rio. Ele agora por Copacabana, olhando um navio na linha do horizonte e se sentindo cada vez mais próximo do mar – essa era uma idéia que me acalmaria por uns tempos.
Quando abri os olhos o rosto do garoto estava a dois palmos do meu. Senti o hálito forte de quem amanhece e ainda não escovou os dentes. Ele falou que estava examinando a cicatriz que eu tinha bem próxima do olho.
Por pouco não pegou na retina, ele disse. Então voltou a deitar, e olhou para a janela. A locutora dizia que tínhamos ouvido os Garotos da Rua.
Me levantei e fui ao banheiro mijar. Quando peguei o meu pau vi que nele havia manchas secas de sangue. Imediatamente me veio uma ereção. E uma sensação de quando o pau penetra. Soltei o meu pau e o vi todo em riste, como se quisesse sair de mim e alcançar algum alvo distante.
Olhei‑o como se ele não fosse meu. Um corpo cheio de fúria, enquanto eu passava os dias moroso para qualquer investida. Olhei para trás e me vi no espelho. Quando voltei a olhar para o meu pau vi que ele estava mirrando novamente, com um jeito um pouco humilhado.
Resolvi sentar na privada. Puxei a sunga até os tornozelos. Vi um Flash Gordon no chão. Ao pegar a revista senti que era muito velha, mais um pouco se esfarinhava nas mãos. Havia um quadrinho que mostrava um homem e uma mulher num avião, cada um de um lado do corredor. No ângulo que se via, todas as outras poltronas estavam vagas, dando um ar de que não tinha mais nenhum passageiro. O homem olhava um jornal com ar interessado e tinha a aparência de quem se dirigia a uma missão muito especial. A mulher, confortavelmente recostada, olhava para a janela do avião. Pelo preto vazado da janela via‑se que era noite.
E você, qual das duas maneiras de estar dentro de um avião você escolheria?, me perguntei. Aquela que não me obrigasse a ficar olhando os jornais com ar interessado, respondi. E me senti irrecuperavelmente ridículo por sentir coisas como essas.
Ouvi o barulho das minhas fezes caindo na água da privada. Pensei que a vida era a passagem desses pequenos equívocos. Uma sucessão de equívocos. Uma sucessão de equívocos acima de qualquer controle.
Ao fazer menção de me levantar, percebi que eu estava um pouco tonto. Então apoiei a mão na tampa do vaso, e me levantei. A cada situação assim eu envelheço um pouco mais, concluí. Peguei um pedaço de papel, me limpei, e ao pressionar o pedal do cesto não quis olhar. Me olhei no espelho, disse baixinho que pensar o que se pensava e falar o que se falava era alguma coisa de infamante. Aí cravei o canino que me restava no lábio. E vi o fio de sangue brotar.
Quando passei pelo quarto da mulher notei que ela não tinha arrumado a cama. Lençóis revoltos, um pedaço do colchão descoberto. Entrei no quarto dela, pé ante pé, a sensação de estar cometendo uma violação. Deitei na cama. No lençol também havia algumas manchas de sangue. Sobre a penteadeira um porta‑retrato com a foto da criança. A criança estava vestida de marinheiro, empunhava uma casquinha com sorvete cheio de cores, na parte superior da foto a cara de um urso atrás das grades.
O garoto apareceu na porta. A minha primeira reação foi esconder as manchas de sangue do lençol. Fiz uma trouxa com o lençol e o coloquei debaixo da cabeça. Ele entrou no quarto me perguntando se eu estava cansado. Tenho trabalhado muito, preciso de um cochilo, respondi. O garoto fechou a veneziana. Me senti contrariado, eu não gostava de ficar no escuro durante o dia. Mas me sentia indolente demais para dizer não ao garoto que fechava a veneziana. Então pedi que ele me deixasse descansar – na voz, um esboço de impaciência.
Quando o garoto saiu do quarto comecei a rolar pela cama, sentindo o agradável do contato com os lençóis. Fiquei assim por alguns minutos, até que chamei o garoto e falei que ele fechasse a porta e desligasse o rádio. O garoto apareceu na porta, disse que ia fechar a porta e desligar o rádio, e perguntou se eu não sabia onde ela e o guri tinham ido. Como pressenti que viria mais impaciência na minha voz, emiti apenas um muxoxo, e encenei que eu tinha caído num sono súbito e voraz.
Assim irritado eu não conseguiria dormir. E eu não estava com a menor vontade de dormir. Mas agora eu teria de adormecer, se não quisesse o garoto com seus cuidados inúteis comigo e me perguntando do paradeiro da mulher e da criança.
Continuo sem canto para ficar, eu disse num resmungo e abracei o meu corpo. Nesse instante procurei fechar os olhos para ver se não me descia um sono. E levei um susto e abri os olhos ao me dar conta de que assim tão repentino o meu afeto pelo garoto se deteriorava. De repente o garoto me parecia que tinha diminuído de tamanho, que tinha ficado mais branco, que ele estava apenas acordando de um sonho onde seria no futuro um marinheiro. É nesse futuro que ele vai me aprisionar, gemi. Quero fugir, murmurei.
E resolvi tentar um velho truque meu para adormecer: imaginava o colchão flutuando sobre densas ondulações de alto‑mar... Com essa imagem na mente eu era envolvido por uma temperatura propícia para coisas como o sono. Estar entre o mar e o sol me provocava toda aquela agradável sensação térmica, e nela eu ia sussurrando que só adormecendo eu teria a garantia de não ser interrompido.
Sonhei que eu estava no Rio, recém‑chegado de Porto Alegre, e que eu entrava no meu primeiro dia de trabalho numa fábrica. Era um dia muito quente de março, a fábrica ficava em Olaria e tinha fileiras infindáveis de operários e operárias mexendo em máquinas oleosas e escuras. O teto da fábrica me parecia muito baixo, aumentava a opressão do calor.
Mas o sonho começa eu marcando o ponto de entrada, e quando me viro vejo uma mulher entrando com um lenço na cabeça amarrado na nuca. Nos olhamos... A mulher está na fila do relógio de ponto e continuamos nos olhando.
E ela é a dona da cama onde sonho.
Somos bem mais jovens. Me pergunto se eu ali poderia desconfiar que anos mais tarde, em Porto Alegre, estaríamos juntos numa noite de Terça-Feira Gorda. O interessante é que tudo isso se passa na Zona Norte do Rio, debaixo de um calor africano, mas a imagem dessa mulher é como se fosse cinema italiano – talvez o lenço na cabeça amarrado na nuca lhe dê os ares de uma operária em Turim, talvez um pouco Claudia Cardinale no início da carreira, o certo é que a cena é assim, de um colorido pesado e dramático.
Eu me aproximo dela e combinamos que hoje em vez de almoçar daremos um passeio pelas redondezas.
Estou encostado no muro da estação e o trem da Central passa do outro lado do muro e trepida o nosso abraço. Ela como eu está no Rio faz pouco, também chegada de Porto Alegre, e me conta que anda triste assim porque há dias teve um aborto de um filho desejado. Pergunto se não é possível que esse filho seja meu. Ela baixa as pálpebras, responde: digamos que foi o vento...
Então ouvimos a sirene da fábrica. E voltamos.
Quando acordei, senti que estava úmido na sunga. Eu tinha gozado, e o quarto estava escuro como breu. Em que malhas fui cair, pensei. Daqui a pouco o garoto entra pelo quarto e a criança atrás, e vão querer me rodear, montar em mim, rolar comigo, e eu pensando apenas que preciso de um banho, que estou todo esporreado. Botei a mão na minha umidade, como se a quisesse proteger.
Agora o escuro me parecia menor, as frestas da veneziana deixavam adivinhar o dia claro. A minha sunga estava úmida, e se eu conseguisse chorar era o que eu faria. Olhei a porta fechada e me perguntei se eu não estava em minha casa, na minha própria cama. Quem sabe se tudo aquilo que eu tinha vivido até ali não se tratava de sonho? Eu abriria a porta e tomaria o café olhando a manhã. Em minha própria casa. Quem sabe eu ouviria os Beatles, e tudo seguisse dali.
Me admirei com o silêncio. Sim, era Quarta‑Feira de Cinzas, na rua muitas coisas continuavam fechadas. Aí me virei, e tive a sensação nítida de estar caminhando sozinho por um vale, havia uma luz de outono, e lá no fim do imenso relvado, ao pé do morro, havia um girassol pendido. Olhei a grama selvagem e vi um sapo. A papada do sapo não parava de pulsar. Aqui existiam poucas coisas. O sapo me olhava, e eu me perguntei onde estava a diferença entre a minha percepção e a dele. Quero olhar, murmurei, como se o meu cérebro fosse igual ao deste sapo. Eu estava descalço, a terra úmida.
Eu hoje gostaria de ter um canto meu, exclamei olhando para o sapo. Depois pensei em alguma paixão que me sufocasse a garganta, que me deixasse à beira da fatalidade. Depois vi uma fonte correndo mansa entre as pernas de uma mulher. E me ajoelhei para bebê-la. Depois não vi mais nada. e escutei passos no corredor do apartamento.
Se o garoto abrisse aquela porta, agora, eu talvez já não agüentasse a existência dele. Me perguntei por que mais uma vez tudo tinha dado nisso. Mais uma vez eu era tomado por um sentimento que nenhum plano humano poderia suprir. O que eu tinha a viver ultrapassava qualquer possibilidade que viesse de mim ou de qualquer outra pessoa. E mais uma vez eu tinha me metido numa situação humilhante. Daqui a pouco eu poderia estar jantando com a mulher e a criança, comentando a partida do garoto e o mar que o espera – três viúvos de uma esfarrapada ilusão.
Isso me desgostava tanto, ali, deitado naquele quarto penumbroso, que peguei na minha sunga e consegui rasgá‑la de cima a baixo. Ao rasgar saiu de mim um grito como o de um guerreiro no instante em que desfere o golpe mortal. O garoto abriu a porta. Eu estava ofegante sobre a cama. O que me restava da sunga, em volta da minha coxa esquerda. E um fato que eu nunca saberei de onde surgiu: quando o garoto abriu a porta eu estava com o pau completamente duro. O garoto acendeu a luz e eu fiquei às claras – com o pau duro cheio de nódoas secas de sangue.
Quando ouviu o meu grito o garoto tomava banho, e correu ao quarto nu, todo molhado. Pedi que apagasse a luz, mas ele não me ouvia, caminhava em minha direção, e quando chegou à beira da cama inclinou‑se e perguntou se eu estava bem. Respondi que eu andara sonhando, e agora teria de resolver o que eu estava fazendo em Porto Alegre.
O garoto sentou‑se na cama, e me masturbou.
Foi tudo tão rápido que eu só vi quando ele limpava as mãos no lençol. Pedi que abrisse a veneziana. E antes de voltar para o banho ligasse o rádio. Quando o rádio começou a tocar – alguma coisa que tinha pinta de rock argentino – olhei pela janela aberta o dia claro, e pensei que tudo ia recomeçar. Levantei da cama e fui até a janela. O dia era o mesmo, o céu continuava limpo. Tudo recomeçar, pensei, deve ser de alguma forma o melhor. E me virei para trás, e vi a cama desfeita. Pensei que eu poderia estar dando adeus àquele charco de lençóis. E fui para o banheiro como eu estava, nu.
Não vi sinais do garoto no banheiro. Sentei no vaso, passei a mão pela barba. Fui até o espelho, falei comigo que eu não deveria ir com a barba por fazer. Como não tinha fechado a porta do banheiro, eu ouvia muito bem a locutora comentando passagens da vida de Janis Joplin. Depois me virei e vi no chão o Flash Gordon. Voltei a me sentar no vaso e peguei a revista. Abri na última página e tentei ler os quadrinhos do fim para a frente. O último quadrinho mostrava um homem louro e fardado recebendo uma condecoração. Acima do ombro direito do homem via‑se o rosto de uma mulher discretamente emocionado. Em primeiro plano, de costas para o leitor, um homem que parecia ter cabelos grisalhos colocava uma medalha no peito do cara fardado. Ao pé do quadrinho o texto dizia que para surpresa de Flash ele é logo levado para a Casa Branca, onde o presidente lhe concede a medalha de honra. Janis Joplin gania seu "Summertime".
Fiquei curioso com o motivo que teria levado o presidente a conceder a medalha de honra para Flash. Virei a página, e este quadrinho aqui mostrava Flash Gordon pilotando um avião e falando ao rádio. Ao mesmo tempo Flash lança um olhar que pode ser o de Alan Ladd em seus momentos mais elevados. Flash fala para o almirante Krogof: Renda‑se com sua frota e evite maior destruição e perda de vidas! No quadrinho posterior aparecia um navio de guerra visto muito de cima. Em primeiro plano alguém de costas descendo de pára‑quedas, e os homens no convés do navio de guerra estavam todos parados e olhando para cima. O texto dizia que Krogof se rende com sua frota, enquanto os aviões sobrevoavam o cruzador para impedir qualquer traição. Flash desce de pára‑quedas ao convés da nau capitânia...
No quadrinho seguinte já é Flash Gordon no convés do navio inimigo. Diante dele, o almirante Krogof segurando a espada em gesto ritualístico, significando com certeza o momento solene em que o vencido entrega as armas. Sobrevoando os dois, aviões das forças vencedoras. As feições do almirante Krogof são extraordinariamente duras, quase pedra. Ele usa uma capa sem mangas – um manto espesso a se derramar dos ombros. Flash Gordon usa uma jaqueta volumosa com gola de pele. O texto dizia que Flash se revela um vencedor generoso: Conserve a espada, almirante Krogof. O senhor lutou valentemente e, no entanto, se mostrou disposto a dar um fim ao derramamento de sangue. Pode agora libertar o major Danver? De repente cansei da leitura, e joguei a revista com fúria contra a parede. Esse rasgo de histeria me relaxou, comecei a me sentir melhor.
Fui até o quarto do garoto. Ele estava de pé, enrolado numa toalha de banho preta. No rádio tocava Marina. Perguntei se me emprestava o barbeador. Ele tirou da mala uma navalha meio aberta, o pincel de barba, o creme.
Quando abri a navalha na frente do espelho e a passei pela espuma da barba, notei na minha cara metade branca que eu realmente começava a me sentir melhor. Era só me decidir por esses pequenos afazeres – como o de fazer a barba – com a maior convicção. Os pequenos afazeres não eram propriamente o melhor, mas poderiam representar um valioso intervalo entre uma investida e outra.
Eu escanhoava a minha garganta me aproximando do gogó, levantava o queixo, com a outra mão repuxava a pele do pescoço. O ato de fazer a barba era tão extremamente viril que não pude deixar de pensar na presença de uma mulher ali na porta do banheiro, me olhando. No rádio tocava Fagner. Lã fora as árvores morriam, retesadas contra o céu de chumbo. Qualquer outra imagem me poderia irromper – mas ali, naquele momento, tudo o que ocorresse além da porta do banheiro me era indiferente. Aí me cortei, um pequeno talho quase no gogó. E não sei por que, me veio uma saudade imensa de bobagens que eu nem saberia contar.
Passei a mão pelo meu rosto já todo escanhoado. Olhei para a porta do banheiro, vi na parede do corredor uma fotografia de um homem que eu não sabia quem era. Do quarto do garoto vinha B. B. King.
Entrei na banheira, fechei a cortina de plástico, abri o chuveiro. Esses pequenos afazeres me pareciam cada vez mais preciosos, mas mesmo assim, durante a trajetória deles, antes de completá‑los, uma felpa qualquer ainda me tentava acusando‑os de insuportavelmente repetitivos.
Mas a água estava fria, e isso me reavivava. Cantava um pouco de tudo, mas quando a canção chegava no trecho que eu mais gostava eu a cortava e iniciava outra. Existem poucas coisas para ser usufruídas, meditei. Não vamos gastar tudo de uma vez...
Parei de cantarolar, e pela primeira vez avaliei de fato o quanto a música significava para mim. Que o meu fim fosse trágico, ou modorrento, ou cômico, mas que não me faltasse a voz para cantar até a véspera.
A água caía sobre o meu corpo mas eu não fazia nada com ela, apenas deixava que caísse. Eu devia estar debaixo do chuveiro havia bons minutos e ainda não tinha lavado nada. Era antigo isso em mim: ter a noção de que eu precisava fazer alguma coisa sem saber exatamente o quê. O meu costume era ficar no meio do caminho, entretido com algum detalhe que acabava mudando o meu rumo. Hoje já perdi as esperanças de recuperar a memória do que eu tinha que fazer lá no princípio.
Comecei a me lavar pelo pau, que já não tinha as nódoas secas de sangue. Eu ainda sentia nas mãos a gosma quente das duas ejaculações. Essa idéia ia produzindo mais uma ereção, naturalmente. Tirei as mãos do meu pau, para ver se ele continuava sozinho. Ele ia ficando cada vez mais duro, ali, sozinho – e a sua soberania me dava um profundo orgulho.
Eu estava ensaboando os cabelos quando pensei ouvir a voz de uma criança. Pensei que a mulher e o filho tinham voltado. Soltei o sabonete. Fiquei um tempo debaixo do chuveiro me enxaguando. Enquanto me secava ouvi de novo – mas não era a voz de uma criança, era uma espécie de gemido, e esse gemido vinha de uma mulher.
Me enrolei numa toalha de banho amarela que estava pendurada a um passo, e fui ver o que estava acontecendo. Quando passei pela sala vi que a criança estava sentada no chão, olhando o percurso de um trenzinho elétrico
por trilhos que ocupavam boa parte da superfície do chão. Quando passei a criança tossiu grosso como se estivesse com bronquite.
A porta do quarto do garoto estava entreaberta, e pela fresta eu via uma penumbra de janela recostada. Empurrei discretamente a porta e a minha toalha de banho caiu. Na penumbra vi claramente o garoto sentado na cama, fumando um baseado, fechando os olhos e prendendo a respiração para que a fumaça fosse o mais longe possível dentro dele. O garoto estava nu, e entre as suas pernas eu via uma mulher nua de joelhos e inclinada, mexendo a cabeça para cima e para baixo, com a boca no sexo dele. Como a mulher estava ajoelhada e curvada, e de costas para a porta, dela eu pouco via além da bunda. O rádio deveria estar em outra estação. Tocava Bach. Olhei mais uma vez a bunda da mulher, considerei que eu ainda não tinha reparado que era tão carnuda, quase volumosa. Por aqui acontecem coisas que eu não tinha imaginado, quase murmurei. Nenhum dos dois me viu.
Me enrolei novamente na toalha, e quando passei de volta pela sala vi que o trenzinho continuava a andar. Mas agora a criança não estava na sala. A porta do apartamento aberta. Havia uma bermuda do garoto em cima do sofá. Como a minha roupa estava no quarto dele, resolvi vestir a bermuda.
Fui pelo resto do apartamento à procura da criança. Não a encontrei. Quando ia sair para a rua à sua procura me dei conta de que a criança não precisava de mim. Mesmo assim resolvi sair e tomar um café nas redondezas. Deixei a porta do apartamento aberta.
Quando voltei a porta do apartamento continuava aberta. Entrei e fechei a porta. O trenzinho elétrico estava parado. Fui de peça em peça – nem sinal de alguém. Deixei para ver por último no quarto do garoto. Agora o quarto tinha a porta e a janela bem abertas. Dentro do quarto estava o garoto sozinho enrolado na toalha de banho preta. Dançava, contou que era uma faixa do último disco dos Rolling Stones, que tinham falado no rádio que nem havia ainda nas lojas. Me deu a informação e parou de dançar.
A mala continuava no chão e aberta. O garoto inclinou‑se sobre a mala e pegou a bússola. Sentou‑se na cama com a bússola nas mãos como se fosse brincar. Entrei no quarto e peguei a minha roupa que estava jogada no chão ao pé da cama.
Despi a bermuda e comecei a me vestir. Quando puxei o fecho da calça, lembrei que eu tinha deixado a minha sunga rasgada no quarto da mulher. Que lá fique, pensei. O garoto perguntou se eu estava saindo. Reparei que ele tinha o rosto esbranquiçado de talco, que tinha feito a barba. Começava a tocar Led Zeppelin. Me perguntei se dava tempo para o garoto ter feito a barba enquanto eu tomava o meu café na rua. E eu mesmo me respondi que talvez, que ele era quase imberbe.
Ao terminar de me vestir me olhei num espelho que havia ao lado da janela. Pelo espelho percebi que o garoto me seguia com os olhos. Eu me virei e disse que ia embora. Aí tirei do bolso da camisa um papel dobrado que abri. Contei que era uma carta dirigida a mim, e comecei a ler:
Prezado senhor: Quem lhe escreve é o sr. Tedesco, amigo de velhice do seu pai. Portanto o senhor não me conhece, já que não vê seu pai há alguns anos.
Mas, seja qual for a razão do afastamento entre os senhores, tenho o dever de lhe comunicar que o seu pai passa muito mal e está internado na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Não é preciso correr, mas acho que se o seu pai visse o filho, isso faria muito bem aos dois.
Descobri o seu endereço porque durante as visitas ao velho no hospital eu sempre notava um pedaço de papel amarfanhado querendo sair do bolso do seu pijama. Ao fim de uma dessas visitas o seu pai adormeceu, e eu aproveitei para pegar esse papel, ver o que ele continha, ajudar. Era o nome completo e o endereço do senhor. E fiz o que deveria ser feito.
O senhor deverá se indagar desde quando o seu pai teria em mãos este endereço e quem lhe remeteu. Pouco importa.
Não transcrevo o endereço do seu pai ou o meu, porque a ambos o senhor poderá encontrar na Santa Casa de Porto Alegre – creio que por algum tempo ainda. Saudações, sr. Tedesco.
Não há assinatura de próprio punho, comentei. E dobrei a carta e a devolvi ao bolso da camisa.
O garoto largou a bússola sobre a cama, e veio para bem perto de mim. De pé, um pouco mais alto que eu, e disse: se eu pudesse fazer alguma coisa... Aí a sua toalha de banho preta caiu da cintura e ele ficou nu. Respondi que não sabia se ainda havia alguma coisa que eu mesmo pudesse fazer.
Estou indo, falei. Se a gente não se encontrar mais, o que é provável porque temos muito pouco tempo até a tua viagem, espero que um dia você venha rever os mares do sul, talvez a caminho do Novo Reino da Antártida.
para onde quem sabe você leve em seu navio uma enorme carga de faisões de Bagdá.
A expressão do garoto parecia a ponto de não acreditar. Estava ali bem perto, a medalha de são Jorge ofegante no peito, todo concentrado em mim como se eu fosse alguém à beira de acabar.
Sua mão direita pousou no meu ombro, e ele falou que gostava de me conhecer. Levei minha mão até a sua nuca, e a apertei como se faz num gato. Senti que ele respirou mais fundo.
Repeti que estava indo. No rádio tocava Gal.
Enquanto eu descia as escadas do prédio a mulher e a criança vinham subindo. A criança subia uns cinco degraus à frente da mãe, e ao passar por mim não me notou. Quando chegou na porta do apartamento começou a bater com as duas mãos e muito ímpeto. Eu fiquei olhando a criança bater na porta com toda aquela decisão. De certo modo a invejei.
O garoto abriu a porta enrolado na toalha preta e imediatamente os dois entraram numa luta onde valia tudo, os golpes mais baixos, mas era mais uma representação do que uma luta pois quase nem se tocavam. De repente os dois se desabalaram numa carreira pelo apartamento adentro e desapareceram. Eles que tanto gargalhavam juntos, estavam agora lá dentro no mais profundo silêncio.
A mulher, parada no degrau logo abaixo de mim, me olhava. Eu a olhei, indeciso entre a surpresa e a aceitação: ela estava usando na cabeça o lenço preso na nuca, como no meu sonho.
Ela disse que achava que já tinha me visto, não sabia onde. Perguntei de onde ela era. Aqui do Sul, ela respondeu. Afetei um sorriso, e falei que era possível...
Ela perguntou se eu estava indo. Eu disse que sim, que precisava ver o meu pai no hospital. É grave?, ela perguntou. Agora eu vou saber, respondi.
Nos demos as mãos, e nesse momento, como se brincasse de prenda, ela passou duas chaves para a minha mão. Eu tenho outras, ela falou.
Indo para a Santa Casa, ainda na Riachuelo, vi uma criança que me fez parar. Era uma menininha de uns dois anos, e com todo aquele calor tinha se metido dentro de um paletó de linho – de modelo tão antigo que deveria ter pertencido no mínimo a seu avô. Era branco o paletó, arrastava no chão, e a criança estava parada na porta de uma pequena venda.
Mas o que me fez parar não foi a criança dentro do paletó, foi que ela olhava uma nuvem enorme e muito branca, toda claridade – tão parecida com a nuvem que eu vira ontem que tive de raciocinar se o dia não era ainda o mesmo. Apontei para o alto, os olhos da criança arregalados. E segui andando.
O resto do caminho fiz com tal euforia que quando dei por mim já estava a ponto de entrar na Santa Casa.
Muitas pessoas entravam e saíam pela porta do hospital. Algumas com aquele ar tristonho de quem visita o seu enfermo. Mas eu continuava a me achar bem‑disposto, a me sentir como que na iminência de consumar uma missão.
Eu entrava na Santa Casa, em meio a pessoas que passavam, e vi um velho de bengala que saía. Em outra situação aquele velho talvez não me chamasse o olhar, mas ali a sua presença como que me tomou. Voltei a cabeça para continuar seguindo o seu andar pouco seguro mas incrívelmente silencioso. Dei alguns passos de volta à rua, o velho parou. Eu parei também.
O velho estava na calçada, e ele então se virou para a fachada da Santa Casa, ergueu a bengala, e a apontou trêmula em direção a uma janela.
Depois continuou andando pela rua, e eu resolvi que as coisas não deveriam ficar assim e fui atrás, em passos lentos.
Na primeira esquina o velho parou e começou a olhar para os lados. Engoli em seco e chamei: senhor Tedesco! O velho virou‑se com dificuldade e perguntou: como? Então eu disse que às vezes acreditava em Deus. Como?, o velho insistiu. E eu fiz uma careta, a mais convencional, aquela que se inspira na cara do macaco: dobrei a língua entre os dentes e o lábio superior, peguei nas minhas orelhas e as tornei de abano. E depois disse que estava verde, que ele podia atravessar.
Enquanto o velho atravessava a rua gritei que não havia qualquer desavença entre nós dois.
O sinal voltou ao vermelho. E eu parei de gritar. Lá na frente o velho com sua bengala, sem se voltar uma única vez, vagaroso, ia. Até que entrou na primeira transversal e sumiu.
Fiquei um pouco sem saber o que fazer, ali parado na esquina. Raras pessoas andavam, alguns carros. Passei a mão por baixo da calça como querendo arrumar a camisa. Havia alguma eternidade no outro lado da rua, alguma coisa que eu ainda não podia entender. Agora eu não podia atravessar e prosseguir, eu tinha que voltar e ver o meu pai doente no hospital. O sol atacava, eu estava ensopado de suor. Chutei uma tampinha que fez plim na sarjeta, e recuei em direção à Santa Casa.
Assim que entrei já havia uma mulher de branco na minha frente, me perguntando aonde eu queria ir. Falei o nome do meu pai. O seu dedo começou a escorregar por uma lista com muitos nomes. Outra lista. E mais outra. Nada. Não havia ninguém internado com esse nome. Então eu falei no senhor Tedesco, mostrei a carta. Ela disse sim, uma carta. E olhou para um relógio branco na parede. O senhor Tedesco, repeti. Ela disse que infelizmente não conhecia o senhor Tedesco. Pedi para ver uma enfermaria de homens, quem sabe... Ela olhou para um corredor à esquerda, como se visse alguém. E apontou para o lado oposto ao corredor, disse que eu subisse aquela escada, que lá em cima tinha enfermarias.
Enquanto subia a escada, olhei por uma basculante e vi dois homens colocando um caixão numa kombi. Pelo corredor do primeiro andar circulavam muitas pessoas. Vi um banco à minha frente e me sentei. Olhava as pessoas que não paravam um instante no mesmo lugar. Uma mulher negra vinha chorando.
Senti um toque no meu ombro. Olhei para cima. E era o garoto. Ele estava com uma outra camiseta e outra bermuda. Ele disse que não queria embarcar para o Rio sem saber como estava o meu pai. O nome dele não consta, ainda não sei se ele está aqui, falei.
Naquele momento me deu a impressão de que o garoto estava me escondendo alguma coisa. Que ele talvez não fosse embora para o Rio. Que havia um plano escondido entre ele e a mulher com quem morava, e que esse plano era para ser detonado dentro das próximas horas.
E essa idéia não me chocou. Se fosse para ser, era aquele o momento. Os sinais me diziam que eu tinha caído numa emboscada. Que não havia pai nenhum ali na Santa Casa. E que o senhor Tedesco deveria estar rindo sozinho. Talvez o garoto e a mulher entrassem na história para darem a mim algum desfecho necessário.
Olhei para o garoto e pedi que ele me acompanhasse à enfermaria. Contei que eu ainda tentaria encontrar o meu pai. E que ele talvez pudesse me ajudar a procurar. Descrevo o meu pai para você, e você vai comigo, falei. O garoto disse que achava uma boa idéia, e perguntou: vocês dois se parecem? Pensei um instante..., mas não me alonguei muito na pausa. Precisava mostrar ao garoto alguma convicção.
Então eu disse que o meu pai tinha essa mesma linha de nariz aqui. E passei o dedo na linha do meu nariz. Depois falei da boca do meu pai, dos olhos. Os cabelos eu disse que não sabia se tinham embranquecido muito. Falei de um sinal na mão esquerda, de uma mancha azulada no pé direito. De sardas pelas costas, de uma velha verruga no peito. O garoto disse que estava bem, que podíamos entrar. Mas antes me lembrei ainda de um detalhe, uma cicatriz roçando o olho esquerdo. Como tu, o garoto falou.
Fizemos várias viagens por mais de uma enfermaria masculina. Mencionamos que havia poucos velhos. O mais comum eram homens de trinta, quarenta anos, magros e amarelados. Eu agora estava novamente sentado num banco do corredor do hospital, enquanto o garoto falava com uma freira perto da escada. Ao meu lado uma mulher olhava um crucifixo na parede e tomava café num copinho de plástico.
Eu me senti um pouco tonto, e pensei que eu precisava comer alguma coisa. O garoto voltou e disse que na Santa Casa já não havia meios de encontrar o meu pai. Balancei duas, três vezes a cabeça, para cima e para baixo, concordando.
O garoto perguntou para onde eu ia. Cocei o queixo, como se me dando tempo para pensarem algum lugar. Quando eu ia dizer que precisava fazer um lanche, o garoto falou que ainda tinha que resolver algumas coisas antes da viagem, que ele tinha que ir. Então eu disse que precisava comer, que ele também deveria estar com fome, por que não me acompanhava, rápido? Ao terminar de dizer senti como se o garoto estivesse esperando exatamente pelas palavras que eu disse. O plano foi perfeitamente traçado, pensei.
E essa conclusão não me abateu. O meu pressentimento era o de que eu tiraria algum proveito de qualquer que fosse o plano. E esse proveito só viria se eu não ficasse a reboque do garoto e da mulher e soubesse precipitar os acontecimentos.
Subitamente me levantei do banco, disse que ele viesse, e desci a escada quase numa corrida. Quando alcancei o saguão olhei para trás e vi que o garoto ainda descia os primeiros degraus. Percebi que eu também não conseguia sentir nenhuma pressa. Virei a cabeça para o lado, vi a mulher que me tinha dado a informação de que o meu pai não constava das listas de internação. Me aproximei dela, e perguntei onde era a cardiologia, eu queria uma consulta. Ela respondeu que a parte de consultas era com outra pessoa, mas que sabia que já tinha se encerrado o horário de inscrições. E se for caso de urgência, eu disse baixinho com a voz trêmula. Ela não me ouviu.
Notei que o garoto se aproximava. Massageei disfarçadamente o meu peito, como se pudesse em vez disso estar assoviando. O garoto perguntou o que eu queria comer. Diga você, respondi. Pedi que ele lembrasse de um lugar sem muito movimento. O garoto disse que eu estava branco, que eu tinha ficado muito pálido, que eu talvez precisasse mesmo comer. Eu disse que às vezes sentia como se a morte passasse muito perto de mim. Então vamos comer, o garoto disse.
Era um pequeno restaurante na Andrade Neves. Eu estava sentado de frente para a porta. Na porta um garçom olhava a rua. A cabeça do garçom não parava um só instante: olhava para os lados, para cima, inspecionava os sapatos. A minha atenção foi para a parede lateral de um velho prédio no outro lado da rua. Na parede havia a pintura descascada de um anúncio muito antigo. O anúncio mostrava um homem e uma mulher finamente trajados. Os dois olhavam em direção à rua, cada um com seu copo na mão. O conteúdo dos copos já tinha o cinza‑escuro da parede. Acima dos dois restava a palavra conhaque em letras que pareciam ter sido amarelas. No ombro esquerdo da mulher havia um tijolo aparecendo.
Pedimos dois pratos de verão e uma cerveja. Vinha salada, melão, presunto. O garoto perguntou onde eu tinha deixado a minha bagagem. Senti que me subiu um sangue e que o meu rosto já estava fervendo. O garoto exclamou que com a comida eu tinha ficado corado. E comecei a rir, mais uma vez eu ria desenfreadamente na frente do garoto. Mais uma vez ele me deixou rir. E terminou de comer.
Imaginei se passado o meu ataque de rubor eu ficasse branco novamente, o garoto não iria entender. Ele pediu café, eu também. A poucos metros um ventilador fazia um ruído como se estivesse a ponto de explodir. O garçom trouxe o café, pedi que trouxesse a conta. O garoto bebeu o café de uma tragada, e me olhou. O garçom voltou e me deu a nota num pratinho. Abri a carteira, uma moeda caiu no chão. Rapidamente o garoto abaixou‑se por baixo da mesa. Senti a mão dele batendo na minha perna. Levantei a toalha e ele me passou a moeda. O garçom estava curvado, olhando para baixo da mesa. Dei um pequeno puxão na manga dele, e apontei para o pratinho com o dinheiro. Eu disse que não precisava troco. Ele retirou as xícaras, passou um pano na toalha. Eu e o garoto nos levantamos ao mesmo tempo.
Na frente do cinema Vitória o garoto parou, e disse que tinha que passar na casa de um amigo, que ia pegar um táxi. Atrás do garoto havia um cartaz com Meryl Streep e Robert de Niro. O garoto pegou no meu braço, falou que a gente se encontrava um dia. Falei que eu poderia ficar com ele até mais tarde. Ele perguntou as horas a um passante. Depois levantou o braço para um táxi que estava parado ali na esquina.
O táxi passava pelo bairro da Auxiliadora. Entrou à direita, numa rua chamada Maryland. Parou na frente de um pequeno edifício todo escurecido pelo tempo. Notei que havia uma rachadura entre o térreo e o primeiro andar. Dei o dinheiro ao motorista. Disse que não precisava troco. O motorista virou a cabeça, me olhou, agradeceu.
Subindo as escadas do prédio o garoto me falou que estava indo na casa de um amigo que tinha uma enorme tatuagem de uma âncora no braço. O garoto falou que no Rio faria também uma tatuagem no braço, talvez de uma caravela. Aí ele parou na frente de uma porta e bateu nela com o punho fechado. Disse que o amigo se assustava com o som das campainhas, que ele até brincava que só instalaria campainha no apartamento se conseguisse uma que fosse um trecho de uma música do Pink Floyd. O meu amigo já chegou aos quarenta, o garoto falou.
Uma garota de uns treze anos abriu a porta. Tinha uma expressão bastante alheia. O garoto perguntou se o pai dela estava. Ela respondeu que estava. Depois o garoto perguntou o que ela tinha feito nas férias. A minha gata morreu de parto, a garota respondeu. Tentou criar os gatinhos, mas nenhum sobreviveu. O corredor de entrada do apartamento era apertado, e a garota recuou para que pudéssemos passar. O garoto aproximou‑se dela e lhe deu um rápido beijo nos lábios. A garota entrou na cozinha, que dava para o corredor.
Quando entramos na sala o garoto disse que eu sentasse um pouco, ele não ia demorar. Sentei, e ele entrou pelo corredor que levava aos quartos. Escutei ele abrir uma porta, e assim que a fechou comecei a ouvir um barulho como se ele e o amigo estivessem se espancando.
A garota apareceu na sala, e disse que foi sempre assim, os dois eram colegas de caratê. Quando se encontravam a primeira coisa que faziam era um aplicar golpes de caratê no outro.
De repente o barulho dos golpes de caratê cessou. E sobreveio um profundo silêncio, como se naquele apartamento só estivéssemos eu e a garota. Ela ligou a televisão. Passava um desenho onde um gato aventureiro armava peripécias para fazer com que um pobre amiguinho humano conseguisse casar com a princesa. Vi que a garota sorria quando no final acontece a festa das bodas no palácio. O desenho terminava com o gato piscando o olho.
A garota levantou‑se e mudou de canal. Um repórter perguntava a um padre paramentado qual o significado da cerimônia das cinzas dentro da liturgia católica. A garota virou o botão. Dona Zica dizia emocionada que neste ano a Mangueira tinha saído pobre na avenida, mas que pela garra de sua gente a escola se Deus quiser seria a campeã. Depois dona Zica beijava o estandarte da Mangueira. A garota continuou a virar o botão. Agora um cachorro e um gato comiam do mesmo prato. A garota distanciou‑se um pouco e ficou olhando interessada. A imagem seguinte mostrava uma vaca amamentando um cavalinho. Uma voz falava sobre as infinitas possibilidades da natureza. A garota voltou a se sentar. Agora aparecia um cientista observando através de lentes. Depois mostrava o que ele estava a observar: o movimento vagaroso de umas coisinhas pretas cheias de pontinhos arroxeados. O que foi que eles disseram?, perguntei à garota. Que tudo isso tem vida própria, ela respondeu. E o programa terminou. E apareceu uma sandália de plástico vermelha caminhando sozinha pela rua. De repente a sandália criava asas e voava. Olhei para os pés da garota. Estavam descalços. Achei seus pés pequenos, e lhe perguntei a idade. Ela respondeu que faria catorze em maio. Perguntei se ela era de Touro ou Gêmeos. Ela contou que tinha nascido na primeira manhã de Gêmeos.
Depois a garota parou de falar. E não parecia disposta a continuar conversando. Olhava um homem que falava do campeonato estadual. Olhei a expressão alheia da garota, e achei que os seus olhos parados no vídeo não viam o homem que falava sobre o campeonato estadual, mas estavam ali como pretexto para poderem contemplar qualquer outro lugar sem que a minha presença interferisse.
Depois olhei minhas pernas cruzadas. Indaguei se essa postura não era mais uma maneira que eu arrumava de me enrijecer. Descruzei as pernas. Pensei que o tempo transcorria muito devagar, e que havia poucas coisas realmente acontecendo dentro dele.
Pouco me importava se o garoto saísse do ninho do amigo só amanhã de manhã. Ou que o amigo não passasse de um fantasma de estimação do garoto. Eu estava ali, entre a televisão e a garota, e me veio a certeza de que onde eu estivesse seria a mesma coisa.
Peguei no bolso da camisa a carta do senhor Tedesco e a minha caneta, e nas costas do papel comecei a rabiscar uma outra carta do senhor Tedesco para mim. Nessa carta o senhor Tedesco dizia coisas para me tranqüilizar.
No meio da carta a garota levantou‑se e mudou de canal. Deixou num desenho que mostrava uma orquestra de bichos na floresta. Depois voltou a sentar.
Eu olhei para ela. Os minutos passavam, exasperadamente contínuos, e eu estava agora com o encargo de permanecer ali naquela sala, com aquela garota. Pensei se um dia eu contasse aquele momento para alguém, se eu chegasse até esse dia, eu não teria nada que contar. Eu olhava para aquela garota mas eu não sabia como prosseguir. Eu pensava demais, e sentia o meu pensamento pantanoso, como se lentamente me tragasse.
Antes que eu me acabe dentro do meu pensamento, pensei, e mais uma vez eu estava interminavelmente pensando: antes que eu me acabe dentro do meu pensamento, eu ainda teria ali, naquele apartamento da Auxiliadora, uma boa chance: era me levantar e reagir, ir até o corpo da garota e abraçá‑lo como se eu estivesse sofrendo de um irrecusável assomo. Era só assim que eu, naquele momento, poderia sair do meu pensamento e descansar de mim.
Agora, ali, eu não tinha mais nada a fazer, se quisesse enfim repousar. Lembrei do plano que deveria estar sendo urdido pelo garoto e a mulher, e acreditei que o garoto não sairia do quarto do amigo enquanto eu não fizesse alguma coisa já traçada.
Aí me levantei da poltrona, andei em direção à garota, e puxei‑a pelos braços bruscamente para mim. Eu agora enlaçava o seu corpo, mas mesma de pé as suas pernas continuavam meio dobradas, sem que os pés apoiassem por inteiro no chão. Pensei numa boneca de pano sem poder firmar as pernas.
Então, permanecendo abraçado à garota, eu me sentei no sofá. Fui ajeitando o corpo dela ao lado do meu, de frente para mim. Ela estava sentada sobre as pernas, e eu a abraçava sem dizer uma única palavra.
De repente a garota começou a passar a mão no meu peito. Eu abri a camisa. E ela encostou a boca no meu mamilo esquerdo.
O desenho da orquestra dos bichos tinha terminado, agora havia um clipe mostrando monstros num lugar rochoso e escuro, e eu fechei os olhos.
Aquela sensação estranha de ter a garota sugando o meu mamilo me deixou numa espécie de inebriamento quase letargia, algo assim como perder os sentidos para recobrá‑los. As vozes que vinham da televisão ligada não eram enfadonhas porque me chegavam como um simples som, uma rajada de vento quem sabe.
Eu estava no limiar de um sono, mas não de um sono banal. Começava a acreditar num sono de onde eu sairia realmente renovado. Eu não sabia mais pensar, estava dentro de uma tela muito maior que eu, e a mim só cabia adormecer para provar o mais completo abandono aquela tela. Talvez, quando acordasse, as flores teriam germinado em volta, e estaríamos povoando uma outra realidade. Talvez eu já estivesse longe de mim.
Agora ainda não, eu ainda estava em mim e agora descia com a garota por estreitas veredas entre pedras volumosas. Lá embaixo estava o rio, e já conseguíamos divisar a margem com o pequeno barco. Eu tinha ferido o braço, logo abaixo do cotovelo, e agora estávamos parados, a garota molhando o dedo na língua e passando no meu ferimento. Eu tinha manchado a camisa de sangue, e aquela nódoa vermelha não me incomodava.
Quando sentamos no barco, um em frente ao outro, as nuvens escuras esconderam definitivamente o sol e tudo ficou em preto e branco. Olhei para o céu, depois para a garota, e ela disse que não tínhamos tempo de temer nada.
Eu comecei a remar, no princípio com certo esforço, mas quanto mais o barco se afastava da margem mais os meus movimentos adquiriam a medida natural.
Já tínhamos uma larga distância da margem, lá no fundo Porto Alegre cada vez mais longe – uma chaminé muito alta exalando uma fumaça ainda mais escura do que as nuvens. Em volta do barco alguns peixes mortos boiavam. Esticando o braço, a garota enfiava uma varinha de arbusto na boca aberta de um peixe. Eu continuava a remar sem muito esforço, e a garota agora se enrolava num cobertor.
Quando acordei vi que anoitecia. Na televisão o apresentador falava da seca que assolava o Rio Grande. Eu estava sentado, a garota dormia com a cabeça sobre as minhas pernas. Levantei‑me com cuidado, a cabeça da garota entre as mãos. Deitei a cabeça dela sobre uma almofada, e fui desligar a televisão. O apartamento estava escuro. E a voz da garota despertando perguntou se tinha alguém. Respondi que era eu, e que eu já ia acender a luz. Fui até a janela, e vi o alaranjado do crepúsculo agonizando entre dois prédios. Aí toquei sem querer numa cúpula de abajur. Me inclinei e acendi a luz.
A garota esfregava os olhos. Olhei para o lado e me vi num espelho. Os três botões superiores da minha camisa estavam abertos. Ao fazer menção de abotoar desisti. Eu estava suado, e os cabelos da garota também estavam úmidos de suor. Ela tinha a pela branca e umas poucas sardas debaixo dos olhos verdes. Ela agora estava sentada, e me olhava com o mesmo olhar que antes via televisão. Ela então se levantou, e eu perguntei se achava que os dois ainda continuavam no quarto. Ela virou‑se e entrou no corredor que levava aos quartos – e eu fui atrás.
O quarto estava escuro. E quando ela acendeu a luz, vimos que não havia ninguém. Entramos no quarto como se entrar no quarto fosse a próxima etapa a ser seguida.
Tinha uma cama baixa com uma colcha roxa toda amarfanhada. Do lado uma estante com alguns discos, alguns livros, troféus. Na cabeceira da cama – e foi a primeira coisa que eu vi – uma foto bem ampliada de um homem alourado de uns quarenta anos com uma camiseta sem mangas, musculoso e com a âncora tatuada no braço esquerdo. Ele olhava de lado, e tinha uns cabelos muito longos presos num rabo‑de‑cavalo. Eu perguntei: é ele? A garota respondeu que era. Foi por pouco tempo da marinha mercante, ela disse.
Agora andávamos pelo quarto, eu e ela, olhávamos, tocávamos cada coisa como se descontrolados num pequeno museu. Ali uma bagana no cinzeiro, aqui uma foto com dedicatória de um soldado americano na selva do Vietnã. E aqui a capa solta de um disco de Jimi Hendrix. A garota disse que o som estava ligado, e levou o braço da vitrola sobre um disco que já estava no prato. Era Jimi Hendrix. Pedi que ela desligasse o som, eu queria saber onde tinham se metido os dois. A garota desligou a vitrola, respondeu que era sempre assim, na certa estavam bebendo uma cerveja por aí. Mas perguntei se o garoto não deveria estar voando para o Rio daqui a pouco. Ela respondeu que pouco sabia do garoto, mal o cumprimentava.
E continuamos a nos movimentar. Tantas coisas que olhávamos e tocávamos – como se procurássemos. No meio da movimentação a garota achou sobre os discos um maço aberto de cigarro americano. Tirou um cigarro e me passou o maço. Antes de acender o seu cigarro me ofereceu fogo num isqueiro de madrepérola. Me perguntei se não era a primeira vez que a garota entrava naquele quarto. Depois ela pegou a bagana que estava no cinzeiro e acendeu‑a no cigarro. Depois, fazendo uma careta para trancar a respiração e a baforada, jogou o toquinho quase invisível da bagana nos meus pés. E disse que não tinha mais.
Depois ela saiu do quarto e eu me vi num espelho ao lado da porta. Era um espelho que pegava o corpo inteiro. Aí a garota voltou sobraçando um vestido preto. Despiu‑se e o vestiu na frente do espelho. A dois passos de mim, de modo que no espelho sobre a cabeça da garota aparecia o meu rosto perplexo. O vestido de alças era acinturado até as cadeiras, e a partir dali nasciam babados vaporosos até acima dos joelhos. A garota não tinha ainda o corpo bem‑formado. Ela me perguntou: que tal estou? Falei que acentuasse bem a cor dos lábios. Ainda não cheguei nos lábios, ela respondeu.
A garota saiu de novo do quarto e voltou logo com uma bolsinha de cosméticos e um par de sapatos. Os sapatos eram pretos, de longos saltos. Calçou‑os, e depois começou a se pintar rente ao espelho.
Quando se sentiu pronta me perguntou mais uma vez como ela estava. Me aproximei e comecei a fazer uma trança em seus cabelos longos e alourados. Aprendi a fazer tranças ainda guri, nos cabelos de uma prima, confessei. Quando terminei a trança olhei a garota no espelho e a minha voz sem querer pronunciou: você? A garota disse sim, sou eu. E tirou da bolsinha de cosméticos uma drágea vermelha e a engoliu em seco.
Então abracei‑a por trás, e disse que não se preocupasse comigo, que ela estava linda. Nesse instante faltou luz. Pela escuridão da janela, também as ruas estavam apagadas. No quarto só se via um móbile de material fosforescente que não parava de se mexer. Ali, cheirando os cabelos da menina entre os meus braços me baixou novamente a sensação de um sono irreal. Era como se eu abraçasse a garota novamente envolta num cobertor, novamente fazia muito frio. Ela se afastou, e disse que arrastássemos o barco até a areia. Enquanto puxávamos o barco por uma corda vi que estava tudo escurecendo e o rio estava mais escuro do que nunca. Umas nuvens baixas passavam transparentes entre nós e a lua esbranquiçada. Vi que eu também estava enrolado num cobertor e que eu tremia. Nos viramos juntos de costas para o rio, e a alguns passos havia a ruína de um farol, e mais adiante o contorno de uma sepultura. Caminhei em direção à sepultura para ver se eu descobria um nome, alguém que já tivesse pisado aqui.
A cruz de madeira estava torta para o lado, e ali, na lápide escura e carcomida, de inscrição eu só conseguia ver o algarismo 1. Olhei à procura da garota, e ela estava ao pé da ruína do farol, agachada fazendo xixi.
Aí a luz voltou. E estávamos novamente na frente do espelho, ambos no mesmo ar de espanto – o que me fez abraçá-la mais forte, como se a protegesse do frio. No espelho havia a garota agora ainda mais branca e o batom púrpura – e atrás do seu corpo miúdo um homem a protegendo com os braços em volta dela.
Então eu disse que não ia esperar mais ninguém, eu ia embora. Ela disse que estava indo também, que saíssemos juntos.
Quando bateu a porta do apartamento ela falou que não adiantava eu procurar por luz nos corredores do prédio, fazia muito tempo não havia luz nos corredores, de dia tinha as basculantes, mas de noite era naquela escuridão.
Contou que aquele edifício estava condenado a desabar e que ali só moravam ela e o pai, os outros apartamentos estavam todos vazios. Antes que o edifício caia sozinho ou seja demolido moramos aqui.
Estávamos na calçada, e acabava de pintar mais um blecaute naquele ponto da cidade. Hoje é o dia, murmurei. Mas foi só eu murmurar a vaga irritação para me subir pelas entranhas e me tomar inteiro um ódio que eu não soube detectar de onde vinha. Eu via a garota à beira da calçada e eu não teria forças que me pudessem controlar. Avancei contra ela sentindo brotar dentro de mim uma lâmina assassina e comecei a sacudi‑la pelos ombros, desesperadamente. A faca que eu atingia agora em vários golpes pelo peito dela era só uma mancha porque fazia muito escuro, e os nossos cobertores tinham caído e tremíamos de dor na noite gelada – e vi que eu estava também todo ensangüentado e que uma faca entrava na minha barriga, e que eu também ia morrer. Aí a luz da rua voltou, e nos abraçamos, ainda trêmulos.
Abri a porta do táxi, recuei, e a deixei entrar como uma dama. A garota disse para o motorista que ela ia para o Bonfim. Sim, Bonfim, eu repeti.
No trajeto a garota encolheu‑se e deitou‑se de lado com a cabeça sobre as minhas pernas. Eu ia alisando os seus cabelos e lhe contando uma história. Era a história de uma fuga. Havia várias pessoas numa planície fugindo de alguma coisa como uma guerra, uma catástrofe, um horror qualquer. Havia um velho que não podia mais andar. Ele disse que não queria nenhuma alma bondosa arrastando‑o por distâncias que ninguém ainda poderia calcular. A tragédia não espera, ela tem pressa. Vinga‑se dos lerdos e abatidos. Me deixem aqui que eu já vivi a minha vida.
Horas depois o velho assoviava contemplando a vasta planície evacuada.
Abri uma nota, passei‑a para o motorista, disse que não precisava troco. Estávamos na Osvaldo Aranha, e havia muitos bares e pessoas por ali. Falei que me surpreendia ver tanto movimento na noite de uma Quarta‑Feira de Cinzas. A garota respondeu que quem vinha aqui ignorava o calendário.
Perguntei se ela não gostaria de comer alguma coisa. Ela respondeu que sim, e entramos numa lanchonete com um balcão muito longo e vários bancos altos e almofadados. Cada um pediu seu bife com fritas. Pedi também uma cerveja.
A garota suspendeu a primeira garfada pouco antes de colocá‑la na boca, virou a cabeça para mim, e assim com o garfo no ar perguntou para onde eu ia.
– Vamos comer, menina – eu respondi.
E comemos alguns minutos em silêncio.
– Você não vai me perguntar de onde eu vim? – eu perguntei abrupto, como se tivesse me fisgado alguma dúvida.
– De onde você veio? – a garota perguntou.
– O que é bom é que entre antes e depois a gente coma – eu respondi repuxando o lábio superior.
E me senti um homem normal, por ainda ter a capacidade de dizer qualquer coisa que um adulto poderia dizer a alguém da idade dela.
Perguntei quanto era, paguei e me levantei. A garota veio atrás de mim, não me questionando pela minha pressa. Na calçada olhei para os meus sapatos avermelhados de terra, e vi mais uma vez que lhes queria bem.
Na porta de um bar uma turma só de garotos, alguns vestidos de punks. Quando os percebi eles já estavam rindo, acenando e chamando a garota. Chamavam ela de baby. Ó baby, ó baby, eles repetiam.
Quando a garota os alcançou, eles fizeram uma roda em volta dela, e aquela roda humana que escondia a garota começou a se moverem direção a uma porta nos fundos do bar.
Fiz sinal a um táxi que passava. Durante o trajeto procurei não pensar. Olhava pela janela do carro uma sucessão de imagens, só isso. Uma vitrine apagando suas luzes, um homem encostado num poste olhando para as unhas, a cada quarteirão as ruas mais desertas. Tentei olhar cada coisa como se antes eu nunca tivesse visto figuras. Como se eu viesse de um mundo todo informe, sem contornos fixos.
O táxi parou num sinal. Uma mancha preta corria rente à parede e entrou num buraco escavado sob um muro. Era a primeira vez que eu via, mas cada imagem tinha alguma coisa que me fisgava no peito, qualquer coisa que ainda não era dor mas quase. O táxi voltou a andar. Parou pouco depois, bem em frente ao endereço que eu tinha dado. Botei a cabeça para fora do carro e reli o número do prédio: 623.
– É aqui mesmo – o motorista falou.
– É aqui mesmo? – eu disse enfiando a cabeça para dentro do carro.
– O senhor não pediu rua Riachuelo, 623? – o motorista perguntou.
Eu fiz que sim com a cabeça.
– É aqui mesmo – o motorista repetiu.
Abri a carteira, estava tudo muito escuro dentro dela. O motorista falou que quando tivesse tempo precisava consertar a luz do carro. Eu disse que não tinha importância. E tirei uma nota, olhei‑a, e a entreguei ao motorista dizendo que não precisava troco. O motorista olhou o dinheiro contra a luz da rua, virou‑se e olhou para mim, não disse nada.
Saí do carro, bati a porta atrás de mim. O táxi arrancou como se tivesse pressa. Olhei o prédio para onde eu ia agora. E amanhã?, pensei. Não me ocorreu qualquer resposta. Talvez a partir daquela noite eu já não tivesse por que me preocupar. Se o meu pai estava vivo ou não, a quem poderia verdadeiramente preocupar se não a ele próprio? E senti como que um grande amor pelo abandono de cada um. E o garoto, por que me preocupar se ele tinha embarcado para o Rio ou não? Ninguém dependia das preocupações de ninguém para que o destino continuasse em marcha.
E eu me sentia bem, como se tivesse tudo por fazer. Nas imediações tocava "True love" com Bing Crosby. Tive um sorriso quase envenenado por algum rancor antigo. Mas assoviei um pedaço da música, e depois disse baixinho: vamos em frente.
Experimentei uma das chaves na porta do edifício. Com um leve impulso a porta se abriu. Liguei a luz do corredor e fui subindo as escadas. Quando abri a porta do apartamento a minha mão suava.
O apartamento estava escuro, havia só uma luz que vinha do quarto da mulher. Mais uma noite, pensei.
Eu tinha chegado à porta do quarto, e ela estava deitada na cama enrolada numa toalha de banho branca. Umas das mãos caía para fora da cama e segurava um Flash Gordon. A luz vinha de um abajur rosa sobre a penteadeira.
Eu me excitava na porta. A minha calça era justa e incômoda, o meu pau duro querendo sair. Entrei no quarto, mas não fui direto até a cama. Parei no meio do caminho e tirei a calça, a camisa, os sapatos. Vi que o meu corpo estava branco, e pensei que amanhã onde eu então estivesse procuraria tomar sol.
Depois me joguei na cama como se fosse mergulhar. E não vi mais nada.
João Gilberto Noll
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