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ApoucosquilômetrosaosuldeSoledad,orioSalinasdescebemjuntoaoflanco da colina e corre profundo e verde. Sua água é morna, pois desliza cintilando ao sol por sobre areias amarelas antes de alcançar o estreito lago natural. De um lado do rio,os flancosdouradosdacolinasobemsinuososatéas montanhas Gabilan,fortes e rochosas, mas do lado do vale a água acha-se orlada de árvores — salgueiros frescos e verdes a cada primavera, mostrando nas junções das folhas inferiores fragmentos rochosos das enchentes de inverno; sicômoros com troncos e ramos brancos,pintalgados,debruçam-setambémsobreaáguaimóvel. Na margem arenosa sob as árvores, a camada de folhas é tão profunda e quebradiça que um lagarto a faz estalar quando corre sobre ela. Ao anoitecer, os coelhos deixam as moitas e vêm sentar-se na areia e os baixios úmidos ficam cobertos com as pegadas noturnas dos guaxinins e dos cães de fazenda e com as marcasemformadecunhadoscervosquechegamparabebernoescuro.
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Por entre os salgueiros e sicômoros há um caminho duramente batido pelos meninos que descem das fazendas para nadar no lago e pelos vagabundos de estrada que à noite, cansados, acampam junto à água. Diante do galho baixo e horizontal de um sicômoro gigante vê-se um monte de cinzas produzido por inúmeras fogueiras; gasto e polido, o galho já serviu de assento para muitos homens. Ao anoitecer daquele dia quente, uma brisa começou a mover-se entre as folhas. A sombra escalavaascolinasemdireçãoaotopo,e os coelhossentavam-se quietos, como pequenas esculturas de pedra cinzenta nas margens arenosas. Vindo da rodovia estadual, um som de passos estalou nas folhas secas dos sicômoros. Rápidos, sem ruído, os coelhos se esconderam. Uma pomposa garça ergueu-se pesadamentenoar ebateuasasrioabaixo. Duranteum momento olugar tornou-se inanimado. Então, a seguir, dois homens surgiram no caminho e pararam na clareirajuntoaolagoverde. Caminhavam em fila indiana e, mesmo ali na clareira, permaneciam um atrás do outro. Ambos vestiam calças e casacos de brim com botões de cobre. Os dois usavam chapéu preto disforme e carregavam nos ombros cobertores bem enrolados. O primeiro homem era pequeno, moreno e ágil, com olhos inquietos e traços fortes, marcantes. Tudo nele era bem definido: mãos pequenas e vigorosas, braços delgados e nariz fino e ossudo. O homem à retaguarda era o seu oposto. Enorme, rosto inexpressivo, olhos grandes e mortiços e ombros largos, caídos. Caminhava pesadamente, arrastando um pouco os pés, como os ursos. Seus braços nãooscilavamdeformanatural,pendiamfrouxosaolongodotronco. O primeiro homem estacou na clareira, fazendo com que o outro quase esbarrasse nele. Tirou então o chapéu e enxugou a carneira com o dedo indicador, sacudindo o suor para longe. Seu enorme companheiro deixou cair os cobertores, atirou-se à superfície do lago verde com a boca para baixo e bebeu em grandes goles, resfolegando na água como um cavalo. O homem pequeno andou nervosamenteatéele.
— Lennie! — disse,ríspido. —Lennie,peloamordeDeus, nãobebetanto! O outro continuou a resfolegar no lago. O homem pequeno inclinou-se e sacudiu-opeloombro. — Lennie,vocêvaificardoentequenemnanoitepassada. Lennie mergulhou a cabeça na água, com chapéu e tudo, e sentou-se na margem.Aáguaescorreudochapéupelocasacoazulelhedesceupelascostas. — Tá ótima. Toma um pouco, George. Toma um bom gole. — Sorriu, com ar feliz. Georgedesvencilhou-sedamochila,deixando-acairsuavementenaareia. — Nãoseiseessaáguaéboa.Parecemeioespumosa. Lenniemergulhouamanoplanaáguaeagitouosdedos, provocando uma chuva de salpicos. Círculos concêntricos alargaram-se até o outroladodolagoevoltaram,enquantoeleobservavaomovimentodaágua. — Olha,George.Olhaoquequeeufiz. Georgeajoelhou-sejuntoaolagoebebeurápidosgolescomamãoemconcha. — O gosto tá bom — admitiu. — Mas não parece água corrente. Você nunca deve beber água parada, Lennie — disse, desanimado. — Vocêécapazdebeberatéáguadasarjetaquandotácomsede. Com o côncavo das mãos, jogou água no rosto, no pescoçoe na nuca, tornando a colocar o chapéu. Depois afastou-se da água, dobrou os joelhos e abraçou-os. Lennie, que o observava, imitou exatamente cada um de seus gestos; também se afastou da água, dobrou e abraçou os joelhos e olhou para o amigo, comparando. TalcomoGeorge,desceumaisochapéusobreosolhos. George contemplava a água com ar sombrio. O clarão do sol avermelhava a bordadeseusolhos. — A gente bem que podia ter ido direto pra fazenda — disse com raiva — se aquele motorista nojento soubesse o que tava falando. "Só uma esticadinha estrada abaixo", ele disse. "Só uma esticadinha." Seis quilômetros desgraçados, isso sim! Ele não queria era parar no portão da fazenda, o patife, era preguiçoso demais. Nem sei como chegou a parar em Soledad. Botou a gente pra fora do ônibus e disse: "É só uma esticadinha estrada abaixo". Aposto quefoimaisdeseisquilômetros.Numdiadesgraçadodequente. Lennieolhou-o,tímido. — George? — Oqueé? — Pra ondeéqueagentevai? O homem pequeno puxou a aba do chapéu e olhou para Lennie com o cenho franzido. — Então já esqueceu? Tenho que te dizer de novo? Puxa, você é um perfeito idiota! —Eu esqueci — disse Lennie suavemente. — Fiz tudo pra não esquecer, juro porDeus,George. —Tá bem, tá bem. Eu te digo de novo. Não tenho nada pra fazer. Posso até passar os meus dias te dizendo as coisas, depois você esquece e aí eu te digo tudo
denovo. —Eu fiz tudo, tudo mesmo— disse Lennie —, mas não adiantou nada. Mas eu lembrodoscoelhos,George. —Que se danem os coelhos. Você só lembra deles. Tá bem. Agora escuta... e dessa vez você tem que lembrar, pra não meter a gente em confusão. Lembra quandosentounaquelasarjetadaHowardStreeteficouolhandooquadro-negro? OrostodeLennieabriu-senumgrandesorriso. —Ora, George, claro que eu lembro daquilo... mas... o que que a gente fez depois?Lembroquealgumasgarotaschegaramevocêdisse... vocêdisse... —Que se dane o que eu disse. Lembra que a gente foi na casa de Murray e Readyeelesderampranóscartõesdetrabalhoepassagensdeônibus? —Ah, George, claro, agora eu lembro. — Enfiou rapidamente as mãos nos bolsos do casaco. —George... não estou com o meu. Eu acho que perdi.— Olhou paraochãocomdesespero. —Você não ficou com ele, <seu maluco. Eu fiquei com os dois. Acha que eu ia deixarocartãodetrabalhocomvocê? Lenniearreganhouosdentes,numsorrisodealívio. — Eu achei... achei que tinha botado ele no meu bolso. — Enfiou a mão no bolsodenovo. Georgeencarou-oastutamente. —Quequevocêtiroudobolso? —Eunãotenhonadanobolso —disseLennie,esperto. —Seiquenãotem.Tánasuamão.Quequevocêpegoueescondeu? —Eunãopegueinada,George.Verdade. —Medáissoaqui. LennieafastoudeGeorgeamãofechada. —Ésóumratinho,George. —Umrato?Umratovivo? —Hã-hã. Só um rato morto, George. Eu não matei ele, juro! Já tava morto. Encontreielemorto. —Medáaqui! —Ah,George,deixaeuficarcomele... —Medáaqui! A mão fechada de Lennie obedeceu, vagarosa. George pegou o rato e atirou-o porcimadaáguaparaasmoitasdooutrolado. —Maspraqueéquevocêquerumratomorto? —Ora,prairalisandoelecommeudedãoenquantoagentevaiandando. —Vocênão vaialisar rato nenhumenquanto tiver andando comigo.Lembra pra ondetamosindoagora? Lennie pareceu surpreso. Então, embaraçado, escondeu o rosto entre os joelhos. —Esquecidenovo.
—Cristo! — disse George, resignado. — Tá bem. Escuta, a gente vai trabalhar numafazenda,igualàqueagentedeixounonorte. —Nonorte? —AdeWeed. —Ah,sim.Eumelembro. —A fazenda pra onde a gente tá indo fica a uns quatrocentos metros adiante. Vamos entrar e procurar o patrão. Agora escuta bem; eu vou dar pra ele os cartões de trabalho, mas você não vai dizer uma palavra. Fica lá e não diz nada. Se ele descobrir o patife maluco que você é, a gente não vai conseguir o emprego, mas se eletevertrabalhandoantesdeteouvirfalar,aíagentetáfeito.Entendeu? —Claro,George.Claroqueentendi. —Tá bem.Quandoagenteforveropatrão,quequevocêvaifazer? —Eu... eu... — Lennie refletiu. Seu rosto ficou tenso. — Eu não vou abrir a boca.Vouficarquieto. —Isso,rapaz.Muitobem.Repeteduasou trêsvezespranãoesquecer. Lenniemurmurousuavementeparasimesmo: —Nãovouabriraboca...Nãovouabriraboca... Nãovouabriraboca. —Isso — disse George. — E também não vai fazer as coisas ruins que fez em Weed. —QuequeeufizemWeed?—perguntou Lennie,intrigado. —Ah, esqueceu aquilo também, é? Bem, não vou te lembrar, senão você pode fazertudodenovo. UmaluzdecompreensãosurgiunorostodeLennie. —Elesbotaramagentepra foradeWeed!— explodiuele,triunfante. —Botaram pra fora coisa nenhuma — disse George, com repulsa. — Nós fugimos.Tavamprocurandoagente,masnãoconseguirampegar. Lenniedeuumarisadaalegre. — Nãoesquecidisso,juro. George deitou-se na areia e cruzou as mãos sob a cabeça. Lennie fez o mesmo, erguendo-seumpoucoparaverseimitavaoamigocomperfeição. — Meu Deus, você é encrenca na certa — disse George.— Eu podia me dar tão bem se não tivesse você agarrado nasminhas calças! Podia viver bem e talvez atéarranjaruma garota. Durante um momento Lennie permaneceu quieto. Depois disse, cheio de esperança: —Vamostrabalharnumafazenda,George. —É.Éisso.Masvamosdormiraqui,porqueeutenhominhasrazões. O dia se extinguia agora rapidamente. Só os topos das montanhas Gabilan flamejavam à luz do sol que abandonara os vales. Uma cobra-d'água deslizou pelo lago, a cabeça erguida como um pequeno periscópio. Os juncos se agitaram de leve na corrente. A distância, para as bandas da estrada principal, um homem gritou qualquer coisa; outro respondeu. Os ramos do sicômoro farfalharam sob a brisa quelogocessou.
— George, por que que a gente não vai à fazenda pra jantar? Na fazenda eles dãojantar. Georgedeitou-sedelado. — Não vou te dar explicação. Eu gosto daqui. Amanhã a gente vai à fazenda pra trabalhar. Vi máquinas de debulhar pelo caminho. Isso quer dizer que a gente vai arrebentar as tripas carregando sacos de cereais. Esta noite eu só querome deitar aquieficarolhandoprocéu.Gostodisso. LenniesepôsdejoelhoseolhouparaGeorge. —Agentenãovaijantar? —Claro que vai,sevocêpegar uns gravetossecosdesalgueiro. Tem três latasde feijão na mochila. Prepara o fogo. Eu te dou um fósforo quando a lenha estiver pronta.Aíagenteesquentaofeijãoecome. —Gostodefeijãocommolhodetomate— disseLennie. —Só que não tem molho de tomate. Vai pegar a lenha. Enão fica zanzandopor aí.Vaiescurecerlogo. Lennie se ergueu pesadamente e sumiu no mato. George ficou onde estava, assobiando suavemente para si mesmo. Sons de água sendo espadanada rio abaixo, na direção que Lennie tomara, chegaram até George. Este parou de assobiar e escutou. — Pobreinfeliz — murmurouecontinuouaassobiar. No momento seguinte Lennie retornava, fazendo as moitas estalarem. Trazia umpequenogravetodesalgueironamão. George sentou-se. — Tá bem—dissebruscamente. —Medáesserato!Lennie exibiuumaelaboradapantomimadeinocência. —Querato,George?Nãotenhoratonenhum.Georgeestendeuamão. —Vamos.Medáisso.Vocênãomeengana,não.Lenniehesitou,deuumpasso paratráseolhouselvagementeparaasmoitas,comosepensasseemfugirparaa liberdade. —Vai me entregar o rato ou tenho que te dar um soco? — disse George friamente. —Entregaroquê,George? —Vocêsabemuitobem.Queroesserato. Lenniepôsamãonobolsocomrelutância.Suavoztremeuligeiramente. — Não sei por que eu não posso ficar com ele. Não tem dono. Eu não roubei ele.Acheieleestendidodoladodaestrada. A mão de George permanecia imperiosamente esticada. Devagar, como um cachorro que não quer devolver uma bola ao dono, Lennie se aproximou, recuou, afastou-sedenovo. George estalou os dedos asperamente. Ante aquele som, Lennie pôs o rato na mão dele. — Eunãoiafazernadaderuimcomele,George.Sóum carinho. George ergueu-se e atirou o rato o mais longe possível entre as moitas agora escuras.Depois,foiatéolagoelavouasmãos.
— Seu maluco idiota. Pensou que eu não ia ver os seus pés molhados de atravessar o rio quando foi pegar o rato? — Ao ouvir o choro lamuriento de Lennie, George se virou. — Choramingando feito um bebê! Cristo! Um cara desse tamanho! — Os lábios de Lennie tremeram e lágrimas rolaram de seus olhos. — Ah, Lennie! — George pôs a mão no ombro do amigo. — Eu não te tirei o rato pormaldade.Ele tavaficandopodre.Alémdomais,vocêquebrouobicho detanto fazer festa jiele. Arranja um rato que seja fresco e eu te deixo ficar com ele por um tempo. Lenniesentou-senochãoedeixoupenderacabeça,desanimado. —Não sei onde tem outro rato. Lembro que uma senhora costumava me dar eles,todosqueelaconseguiapegar.Maselanãotáaqui. —Uma senhora, é? — escarneceu George. — Você nem se lembra que senhora é essa. Pois era a sua tia Clara. E ela parou de te dar os ratos porque você matava todoseles. LennieergueutristementeosolhosparaGeorge. —Eram tão pequenos! — disse, como que se desculpando. — Eu fazia festa neles, os ratos mordiam meus dedos, eu então beliscava eles e logo depois tavam mortos... porque eram muitos pequenos. Eu queria era ter coelhos logo, George. Coelhonãoétãopequenocomorato. —Que se danem os coelhos! E você não é de confiança com nenhum rato vivo. AtiaClaratedeuumratodeborrachaevocênãoquisnadacomele. —Nãoerabompraalisar. O pôr-do-sol flamejante abandonou o topo das montanhas e o crepúsculo desceu sobre o vale, enquanto uma semi-obscuridade engolia os salgueiros e sicômoros. Uma grandecarpa surgiuàsuperfíciedolago,engoliuo areafundoude novo misteriosamente na água escura, produzindo círculos concêntricos. No alto, as folhas sussurraram mais uma vez e pequenos flocos de algodão soltaram-se dos salgueiros,pousandonasuperfíciedolago. — Você não vai buscar a lenha? — perguntou George. — Tem muita lenha bematrásdaquelesicômoro.Foi aenchentequetrouxe.Vaibuscarlogo. Lenniedesapareceuatrásdeumaárvoreesurgiucomumabraçadadegravetose folhas secas. Jogou-a no antigo monte de cinzas e voltou várias vezes para pegar mais. Era quase noite. As asas de uma pomba sibilaram sobre a água. George andou até a pilha seca e acendeu-a. A chama crepitou entre os gravetos, incendiando-os. George tirouda mochila três latasdefeijãoe colocou-asbem junto aofogo,massemqueesteastocasse. —Esse feijão dá pra quatro homens — disse George. Lennie observou-o por cimadofogo. —Gostodelecommolhodetomate— disse,paciente. — Não tem molho de tomate nenhum! — explodiu George.— Você só quer o que a gente não tem. Santo Deus, como eu podia viver bem sozinho! Podia ter um empregoe trabalhar sem nenhuma encrenca, nenhuma confusão. E no fim do mês pegava meus cinqüenta pacotes, ia até a cidade e comprava o que eu queria. Podia
ficar num puteiro a noite toda. Podia comer em qualquer lugar, num hotel ou qualquer outro lugar, e pedir tudo o que me desse na telha. E podia fazer isso todo santo mês. Comprava três litros de uísque ou ficava num salão jogando bilhar ou baralho. Lennie se ajoelhou, aterrorizado, observando o rosto enraivecido de George por cimadofogo. — Equequeeuganho?— continuouGeorge,furioso. — Ganho você! Que não consegue ficar num emprego e me faz perder tudo que é emprego que arranjo. E me faz ficar batendo pernas por toda parte, o tempo todo.Eissonãoé opior.Vocêsóarranjaconfusão.Fazcoisasruinseeutenhoque te salvar. — Quase gritava agora. — Seu filho da puta maluco! Você me mete em encrenca o tempo todo! — Assumiu o ar afetado de uma menina imitando outra. — "Eu só queria passar a mão no vestido daquela moça... Só queria alisar ele como se fosse um rato... " Que diabo, comoé que ela ia saber que você só queria alisar o vestido dela? Ela deu um pulo pra trás e você segurou o vestido dela como se fosse umrato.Elagritoueagentetevequeseescondernumavaladeirrigaçãoodiatodo enquanto os caras procuravam a gente; e aí a gente teve que escapulir no escuro e dar o fora da região. O tempo todo é isso. O tempo todo. Gostaria de te botar numajaulacomummilhãoderatospravocêsedivertir. Subitamente, a raiva o abandonou. Percebendo o rosto angustiado de Lennie porcimadofogo,Georgefitouaschamas,envergonhado. Estava bem escuro agora, o fogo iluminando apenas os troncos das árvores e os galhos recurvos acima das cabeças. Lennie engatinhou lenta e cautelosamente em torno da fogueira até chegar perto de George. Então se ajoelhou, sentando sobre os calcanhares. George virou as latas de feijão para que o outro lado se aquecesse também.FingianãoperceberaproximidadedeLennie. —George— disseLennie,suave.Nenhumaresposta.— George! —Quequevocêquer? —Eu tava só brincando. Não quero molho de tomate não. Eu não comia o molhodetomatenemquetivesseaquidomeulado. —Seagentetivesseomolho,vocêpodiacomer. —Mas não comia, George. Deixava todo pra você. Você podia cobrir seu feijão comelequeeunemtocava. Georgeaindafitavasombriamenteofogo. — Quando penso na boa vida que podia levar sem você, fico maluco. Nunca tenhopaz. Lenniecontinuavaajoelhado,contemplandoaescuridãoalémdorio. —George,querqueeuvouembora etedeixesozinho? —Epra queraio delugarvocêpodiair? —Algum lugar. Podia ir lá pras colinas. Algum lugar onde eu podia achar uma caverna. —Ah,é?Ecomoéqueiacomer?Vocênãotemcabeçanempraacharcomida. —Eu achava, George. Não preciso de comida boa com molho de tomate. Eu
deitava debaixodosole ninguém ia me fazer mal.E se achasse um rato, podia ficar comele.Ninguémiatirareledemim. Georgeolhou-orapidamente,inquisitivo. —Fuimau,nãoé? —Se não me quiser mais, eu posso ir pras colinas e achar uma caverna. Posso ir emboraaqualquerhora. —Não. Olha, eu tava só brincando, Lennie. Quero que você fica comigo. O negócio é que você sempre mata os ratos.— Fez uma pausa. —Vou te contar que que eu vou fazer, Lennie. Logo que eu achar um jeito, vou te dar um cachorrinho. Um cachorro você não pode matar, talvez. É melhor que um rato. E você pode fazerfestanelecommaisforça. Percebendosuavantagem,Lennieevitouaisca. —Se você não me quer é só dizer. Aí eu vou pras colinas ali adiante, bem lá em cima,evouviversozinho. Eninguémvaimeroubarratonenhum. —Quero que você fica comigo, Lennie. Puxa, alguém pode atirar em você pensando que é um coiote, se você ficar sozinho. Não, fica comigo. A tia Clara não iagostardeteverandandoporaísozinho,mesmoseelajámorreu. —Conta...comovocêjámecontouantes — disseLennie,matreiro. —Contaroquê? —Aquilodoscoelhos. —Vocênãovaimefazerdetrouxa. —Ah,George,conta.Porfavor,George.Comoantes. —Gostadisso,nãoé?Tábem,voutecontaredepoisvamoscomer. A voz de George tornou-se mais profunda. Pronunciava as palavras ritmadamente,comoseastivesserepetidoinúmerasvezesantes. — Os caras como a gente, que trabalham em fazendas, são os sujeitos mais solitários do mundo. Não têm família. Não pertencem a lugar nenhum. Chegam numa fazenda e trabalham até juntarem uns cobres; então vão pra cidade e gastam a gaita toda. Logo depois, a gente fica sabendo que tão sacudindo o rabo em outra fazenda.Elesnãopodemesperarnadadofuturo. Lennieexultava. — Éisso...é isso... Agoracontacomoécomagente. —Com a gentenão éassim — continuou George.— Nós temos futuro. Temos alguém pra conversar, alguém que se importa com a gente. Não temos que sentar num bar gastando a gaita só porque não tem outro lugar pra ir. Se outros caras vão emcana,podemapodrecernacadeia,porqueninguémligapra eles.Masnósnão. —Mas nós não! — interrompeu Lennie. — E por quê? Porque... porque eu tenho você pratomarcontademimevocêmetempratomarcontadevocê,é porisso. —Riu,encantado. — Agora continua,George! —Vocêsabetudodecor.Podeatécontarvocêmesmo. —Não,contavocê.Euesqueçoumascoisas.Contacomovaiser. —Tá bem. Um dia... vamos juntar uma gaita e ter uma casinha e um pedaço de terra,umavaca,unsporcose...
—E vamos viver no bem-bom!— gritou Lennie. — E ter coelhos. Continua, George! Conta o que a gente vai ter no jardim e fala dos coelhos nas gaiolas, da chuva no inverno e da estufa, e como a nata do leite vai ser tão gorda que a gente nem vai podercortar.Conta,George. —Porquevocêmesmonãofazisso?Jásabetudo. —Não... conta você. Se eu contar não é a mesma coisa. Continua, George. Contacomoeuvoucuidardoscoelhos. —Tá bem — disse George. — Vamos ter uma boa horta, uma coelheira e galinhas.E quandochovernoinvernoa gente vaidizer que sedane o trabalhoe vai acender um bom fogo, sentar perto dele e ouvir a chuva cair no telhado. Bolas! — Puxouseucanivete. — Nãotenhotempopra falarmais. Meteu a faca na tampa de uma lata de feijão, cortou-a e passou-a a Lennie. Depois abriu outra. Do bolso lateral tirou duas colheres, entregando uma delas ao amigo. Sentadospertodofogo,encherama bocadefeijão epuseram-se amastigar com força. Alguns feijões escorregaram pelos lados da boca de Lennie. George gesticuloucomacolher. — Quequevocêvaidizeramanhãquandoopatrãote fazerperguntas? Lennieparoudemastigareengoliu.Seurostoestavaconcentrado. —Eu... eu... nãovoudizernada. —Bom menino! É isso mesmo, Lennie! Parece que você tá melhorando. Quando a gente comprar o pedaço de terra eu vou mesmo deixar você cuidar dos coelhos.Principalmenteselembrartãobemdascoisasassim. Lenniesufocoudeorgulho. — Euconsigolembrar —disse. Georgegesticuloudenovocomacolher. —Escuta, Lennie. Quero que dê uma olhada por aí. Pode lembrar desse lugar, não pode? A fazenda é mais ou menos a uns quatrocentos metros daqui, subindo aquelecaminho.Ésóseguirorio,ouviu? —Ouvi.Euvoulembrar.Nãolembreiquenãotenhoquedizernada? —Claro. Olha, Lennie, se por acaso você se meter em confusão, como sempre faz,vemdiretopracáeseescondenomato. —Meescondonomato— repetiuLennievagarosamente. —Seescondenomatoatéeuchegarprateprocurar.Pode lembrarisso? —Possosim,George.Meescondonomatoatévocêchegarpra meprocurar. —Mas não se mete em nenhuma confusão, senão eu não te deixo tomar conta doscoelhos. — Atiroualatadefeijãovaziadentrodasmoitas. —Nãovoumemeteremconfusão,George.Nãovoudizerumapalavra. —Tá bem. Traz sua mochila pra perto do fogo. Vai ser bom dormir aqui. Olhandoocéu,asfolhas.Nãobotamaislenhanofogo.Vamosdeixarelemorrer. Fizeram as camas sobre a areia. A medida que o brilho do fogo diminuía, a esfera de luz tornava-se menor; os galhos recurvos desapareciam e apenas um tênuevislumbredenunciavaagoraolugardostroncos.
—George... tádormindo? —perguntouLennienaescuridão. —Não.Oqueé? —Vamosarranjarcoelhosdecoresdiferentes. —Claro que vamos —disse George, quase adormecido. — Coelhos vermelhos, azuiseverdes,Lennie.Milhõesdeles. —Peludos,George,comoeuvinumafeiradeSacramento. —Peludos,claro. —Porqueeutambémpossoirembora,George,evivernumacaverna. —Tambémpodeirproinferno— disseGeorge.— Agoracalaaboca. A luzvermelhadasbrasasseextinguiu. Noaltodacolinajuntoaorio, umcoiote uivou e um cão respondeu do outro lado da corrente. As folhas do sicômoro sussurraramnalevebrisadanoite.
2
A casa dos peões era um edifício comprido e retangular, com paredes internas caiadas. Seu piso não fora pintado, e três das paredes exibiam pequenas janelas quadradas;naquartaparede havia uma porta sólida com trinco de madeira. Junto às paredes viam-se oito catres, cinco deles cobertos com mantas, enquanto os outros mostravam o forro de aniagem. Acima de cada catre estava pregada uma caixa de maçãs vazia com a abertura para cima, formando uma prateleira para os objetos pessoais do ocupante da cama. Continham sabão, talco, navalhas e revistas de faroeste que os trabalhadores das fazendas adoram ler com ar de desdém, mas acreditando nelas secretamente. Havia também remédios, pequenos frascos, pentes e, penduradas nos pregos dos lados das caixas, algumas gravatas. Perto de uma parede instalava-se um aquecedor de ferro fundido, cuja chaminé subia pelo telhado. No meio do aposento via-se uma grande mesa quadrada coberta de cartas debaralhoerodeadaporcaixotesqueserviamdeassentoaosjogadores. Por volta das dez horas da manhã, o sol projetava uma faixa brilhante carregada de poeira através de uma das janelas laterais, raio de luz no qual as moscas entravamesaíamcomoestrelaserrantes. O trinco de madeira foi erguido. A porta se abriu, deixando passar um velho alto, de ombros encurvados, usando calças de brim azul e com uma grande vassouranamãoesquerda.AtrásdeleentraramGeorgeeLennie. — O patrão tava esperando vocês a noite passada — disse o velho. — Ficou uma fera quando viu que não tavam aqui pra trabalhar esta manhã. — Esticou o braço direito e de sua manga saiu um coto seccionado à altura do punho. — Podem ficar com aquelas duas camas ali — disse, indicando dois catres perto da estufa. George se aproximou do saco de palha forrado de ania-gem que era o colchão e jogou nele seus cobertores. Olhou a prateleira feita com a caixa de maçãs e retiroudelaumapequenalataamarela. —Quedrogaéessa? —Nãosei— disseovelho. —Aqui diz: "Mata positivamente piolhos, baratas e outros insetos". Que raio decamaéessaquevocêstãodandopragente?Não queremossaberdessaspragas. O velho peão moveu a vassoura, segurando-a entre o cotovelo e o lado do corpo,enquantoestendiaamãoparaalata.Estudoucuidadosamenteseurótulo. —Vou contar pra você — disse finalmente. — O último sujeito que dormiu nessa cama era um ferreiro. Sujeito muito simpático e limpo como ninguém. Costumavalavarasmãosatémesmo depoisdecomer. —Então como é que tinha piolhos? — Uma raiva lenta subia aos poucos em George. Lennie pôs a mochila no catre próximo e sentou-se. Observava o amigo comabocaaberta. —Vou te contar — disse o velho. — Esse ferreiro, um tal de Whitey, era o tipo do sujeito que espalhava esse negócio por aí mesmo sem qualquer inseto. Só por segurança, sabe? Vou te contar o que costumava fazer... Nas refeições ele
descascava as batatas cozidas e tirava cada pontozinho, até o mais pequeno, antes de comer. E se tivesse uma mancha vermelha num ovo, raspava ela também. Até que ele acabou indo embora por causa da comida. O sujeito era assim... limpo. Costumava se vestir nos domingos, mesmoquando não ia a lugarnenhum; botava atégravata,sópraficarporaqui. —Isso não me convence — disse George, cético. — Por que foi mesmo que elefoiembora? O velho pôs a lata amarela no bolso e esfregou as ásperas suíças brancas com osnósdosdedos. — Ora... ele... foi embora, pronto, do mesmo modo que qualquer sujeito vai. Disse que era a comida. Mas só queria mesmo era dar o fora. Não deu outra razão, só a comida. Uma noite disse: "Paguem o que me devem", como qualquer outro sujeito,efoiembora. George levantou o colchão e olhou embaixo dele. Inclinou-se, inspecionando cuidadosamente o saco de aniagem. Lennie se ergueu e fez o mesmo com o seu. Por fim George mostrou-se satisfeito. Desenrolando a mochila, colocou na prateleira sua navalha, uma barra de sabão, um pente, um vidro de pílulas, ungüento, a munhequeira de couro. Depois, fez cuidadosamente a cama com os cobertores. — Acho que o patrão vai chegar num minuto — disse o velho. — Ele ficou danado quando vocês não apareceram esta manhã. Veio direto pra cá, quando a gente tava tomando café, e perguntou: "Droga, onde estão os novos peões?"E fez tambémoencarregadodoestábulocomerfogo. Georgealisouumarugadacamacomumtapaesentou-se. —Fezoencarregadodoestábulocomerfogo? —Foi.Opeãoquetomacontadoestábuloéumcrioulo. —Ah,é? —É. Um cara simpático. Teve as costas aleijadas por um coice de cavalo. O patrão faz ele comer fogo quando tá furioso, mas ele não liga. Lê muito. Tem muitoslivroslánoquartodele. —Quetipodesujeitoéopatrão? —Um sujeito bastante decente. Às vezes fica furioso, mas é um cara bom. Vou lhe dizer, sabe o que ele fez no Natal? Trouxe uns quatro litros de uísque pra cá e disse:"Bebamatésefartar,rapazes.ONatalésóumavezporano". —Nãoacredito!Quatrolitros? —Sim, senhor. Puxa, como a gente se divertiu! Nessa noite deixaram até o crioulo entrar aqui. Um condutor de mulas chamado Smitty se atracou com ele. E se portou bastante bem. Os rapazes não deixaram ele usar os pés e aí o crioulo venceu. Smitty disse que, se tivesse podido usar os pés, matava o crioulo. Os rapazes responderam que o crioulo tinha as costas quebradas, por isso Smitty não podia usar os pés. — Fez uma pausa para saborear a lembrança. — Depois disso, os rapazes foram pra Soledad e fizeram o diabo. Eu não fui com eles. Não tenho maisforçaspraisso.
Lennie estava acabando de fazer a cama quando o trinco de madeira foi erguido de novo. A porta se abriu. Um ho-menzinho troncudo de jeans, camisa de flanela, colete preto desabotoado e casaco preto surgiu na soleira. Tinha os pole-gares enfiados no cinto, um em cada lado da fivela quadrada de aço. Usava um chapéu Stetson marrom e sujo e calçava botas de salto alto e esporas, para mostrar que não era peão. O velho olhou-o rápido e caminhou pesadamente até a porta, esfregando as suíçascomosnósdosdedos. — Os rapazes acabaram de chegar — disse. Passou pelopatrão se arrastando e saiu. O patrão entrou no aposento com os passos curtos e ligeiros de um homem de pernasgordas. — Escrevi para Murray e Ready que queria dois homens essa manhã. Vocês têmocartãodetrabalho? Georgetirouoscartõesdobolsoeentregou-osaopatrão.Esteosexaminou. — Não foi culpa de Murray ou Ready. Aqui diz que deviam estar no trabalho essamanhã. Georgebaixouosolhosparaospés. — O motorista do ônibus nos pregou uma peça — disse. — A gente teve que andar uns dezesseis quilômetros a pé. Disse que a gente tava perto e era mentira. Nãoconseguimosnenhumacarona. Opatrãosemicerrouosolhos. — Bem, tive que mandar as turmas com dois homens a menos. Não adianta irempraláagora,antesdojantar. Tirou do bolso a caderneta onde anotava as horas de trabalho e abriu-a onde um lápis separava suas páginas. George olhou para Lennie de maneira sugestiva, com o cenho franzido, e este balançou a cabeça afirmativamente, mostrando que entendera.Opatrãolambeuapontadolápis. —Seunome? —GeorgeMilton. —Eoseu? — OnomedeleéLennieSmall —disseGeorge. Osnomesforamanotadosnacaderneta. —Vejamos, hoje é dia 20, meio-dia do dia 20. — Fechou a caderneta. — Onde vocêsandaramtrabalhando? —LáprasbandasdeWeed— disseGeorge. —Vocêtambém?— perguntouopatrãoaLennie. —E,eletambém—disseGeorge. Opatrãofezumsinalbrincalhão nadireçãodorapaz. —Elenãoémuitodefalar,hem? —Não, mas pode ter certeza que é um trabalhador danado de bom — disse George. —Fortecomoumtouro. Lenniesorriuconsigomesmo.
— Fortecomoumtouro— repetiu. George fechou a cara para ele e Lennie baixou a cabeça, envergonhado por ter esquecido. — Olhaaqui,Small! — disseopatrãosubitamente. —Oquesabefazer? Empânico,Lennieolhoupara George,embuscadeajuda. — Ele pode fazer tudo o que o senhor mandar — disse George. —É um bom condutor de mulas. Pode carregar sacos de cereais, manejar um arado. Pode fazer qualquercoisa.Èsóosenhorexperimentar. Opatrãovoltou-separa George. — Então por que não deixa ele responder sozinho? O que tá tentando esconder? Georgeinterrompeu-oemvozbemalta. — Não estou dizendo que ele é muito esperto. Não é. Mas lhe digo que é um trabalhadordanadodebom.Ecapaz deerguerumfardodeduzentosquilos. O patrão guardou lentamente a caderneta no bolso. Enfiando os polegares no cinto,estreitouumdosolhos,quaseapontodefechá-lo. —Escuteaqui.Quetapeaçãoéessa? —Hã? —Pergunteiemquetátapeandoessecara.Tá roubandoopagamentodele? —Claroquenão.Porqueachaqueeutouenganandoele? —Ora, nunca vi um cara se preocupar tanto com outro. Só queria saber que interessevocêtemnisso. —Ele é... meu primo — disse George. — Prometi à velha de Lennie que tomaria conta dele. Levou um coice de cavalo na cabeça quando era criança. Mas ele tá bem. Só que ele não é muito inteligente. Mesmo assim, pode fazer qualquer coisaqueosenhormandar.Opatrãofezmeia-voltaparasair. —Bom, tá se vendo que ele não precisa de inteligência para carregar sacos de cevada. Mas não tenta me enganar, Milton. Tou de olho em você. Por que saiu de Weed? —Otrabalhoterminou— disseGeorgeprontamente. —Quetipodetrabalho? —Agentetava... tavacavandoumafossa. —Tá bem. Mas não tenta me passar a perna, porque não vai conseguir. Já vi caras espertos antes. Depois do jantar vão se juntar às turmas dos peões. Tão recolhendoacevada nadebulhadora.VocêsvãocomaturmadoSlim. —Slim? —É.Umcaraalto,grande.Vaivereleduranteojantar. Virou-se abruptamente e caminhou para a porta. Antes de sair, entretanto, voltou-se e olhou bem os dois homens. Quando o som de seus passos não pôde maisserouvido,Georgevirou-separaLennie. —Então vocênão ia dizer uma palavra,não é?Ia fechar essa matraca e deixara conversacomigo,nãoé?Droga,quasequeagenteperdeoemprego! Lennieolhoudesamparadamenteparaasprópriasmãos.
—Esqueci,George. —É, esqueceu. Você sempre esquece e eu tenho que te tirar da encrenca. — Sentou-se pesadamente no catre. — Agora ele tá de olho em nós. Agora a gente tem que tomar cuidado e não errar nada. Você tem que ficar com essa matraca bemfechada.— Ditoisso,tombounumsilênciosombrio. —George. —Oqueéagora? —Nãoleveinenhumcoicedecavalonacabeça,levei? —Seria bem bom que tivesse levado — disse George, maldoso. — Ia evitar muitaconfusãopragente. —Vocêdissequeeueraseuprimo,George. —Foi uma mentira. E estou bem contente que seja. Se a gente fosse parente, eu dava um tiro na cabeça. — De súbito parou de falar, foi até a porta da frente e espiouparafora.—Ei,quequevocêtáescutandoaí? O velho entrou lentamente na sala, uma vassoura na mão. Junto a seus calcanhares, um cão pastor de focinho cinzento e olhos cegos embaciados caminhava arrastadamente. O cão mancou até o outro lado do aposento e se deitou, grunhindo suavemente para si mesmo e lambendo o pêlo grisalho comido desarna.Ovelho peãoobservouoanimalacomodar-se. —Eu não tava escutando. Tava só parado na sombra um minuto, cocando meu cachorro.Acabeidevarreralavanderiaagoramesmo. —Você tava pondo o nariz onde não é chamado — disse George. — E eu não gostodegenteabelhuda. O velho olhou, sem graça, de George para Lennie, e depois para George de novo. —Acabei de chegar — disse. — Não ouvi nada que vocês tavam dizendo. Não me interessa o que vocês tavamdizendo. Quem trabalha numa fazenda nunca ouve nada,nemfazperguntas. —Claro que não — disse George, levemente abrandado. — E quem quer continuar no emprego não fica fazendo perguntas. Entra e senta um minuto — convidou, tranqüilizado pela defesa do homem. — É um cachorro danado de velho. —E. Tenho ele desde que era filhote. Puxa, era um bom cão pastor quando era maisnovo.— Encostou a vassoura na parede e esfregou ospêlosbrancos do rosto comosnósdosdedos.— Oqueachoudopatrão? —Umbomsujeito.Parecedireito. —Éumbomsujeito —concordouovelho.— Agentetemque saberlidarcom ele. Naquele instante, um rapaz entrou no alojamento. Magro, rosto crestado de sol, tinha olhos castanhos e cabelos muito crespos. Usava uma luva de trabalho na mão esquerdae,comoopatrão,calçavabotasdesaltoalto. —Viuomeuvelho?— perguntou. —Tava aqui faz um minuto, Curley — disse o velho. — Acho que foi pra
cozinha. —Vou ver se acho ele — disse Curley. Seu olhar percorreu os novatos e parou. Examinou George e depois Lennie com frieza. Seus braços dobraram-se gradualmente nos cotovelos enquanto fechava os punhos. O corpo enrijeceu, assumindo uma postura quase agachada, e seu olhar era cal-culador e belicoso ao mesmo tempo. Contorcendo-se sob tal olhar, Lennie moveu nervosamente os pés. Curleyseaproximoudelecompassoscautelosos. —Sãoosnovoshomensqueovelhotavaesperando? —Agenteacaboudechegar — disseGeorge. —Deixaograndalhãofalar.Lennieseencolheu,embaraçado. —E se ele não quiser falar? — disse George. Curley brandiu o corpo comoumchicote. —Santo Deus, ele tem que falar quando alguém se dirige a ele! Por que você tá semetendo? —Nósviajamosjuntos —disseGeorgefriamente. —Ah... entãoéassim.Georgeestavatensoeimóvel. —É.Éassim. LennieolhavaindefesoparaGeorge,embuscadeinstruções. — Evocênãovaideixarograndalhãofalar,nãoé? — Ele pode falar, se quiser dizer alguma coisa. — Fez um sinal com a cabeça paraLennie. — Agenteacaboudechegar — disseLennie,suave. Curleyfitou-ogelidamente. — Bom,dapróximavezquefalaremcomvocê,vêse responde. —Virou-seem direçãoàportaesaiu,oscotovelosaindaumtantodobrados. Georgeobservou-osaindoevirou-separaovelho. — Quebichomordeuele?Lennienãofeznada. O velho olhou cautelosamente para a porta, certificando-se de que ninguém estavaàescuta. —Éofilhodopatrão —disse,calmo.— Sabebrigarbem.Jáfezumbompapel entreascordasdeumringue.Éumpeso-leveesabebrigarbem. —Se sabe brigar bem é problema dele — disse George —, mas não tem que se metercomLennie,quenãofeznadapraele.Oquequeeletemcontra Lennie? Ovelhopareceurefletir. — Bom... vou lhe dizer uma coisa. Curley é como um monte de sujeitos pequenos. Detesta camaradas grandes. Ta o tempo todo provocando os grandes. Como se tivesse raiva de não ser um deles. Já viu caras assim, não viu? Sempre provocandobriga. —Claro — disse George. —Já vi um monte desses caras pequenos e durões. Mas é melhor esse Curley não criar caso com o Lennie. Lennie não é de briga, mas seessenojentosemetercomelevaisedarmal. —Bem,Curleyébrigão— disseovelhoceticamente. —Nunca achei isso direito. Se mete o braço num sujeito grande e lhe dá uma
surra, todo mundodizque Curley é um ossoduro. Se faz a mesmacoisa e leva uma surra, então todos dizem que o cara grande devia escolher alguém do seu tamanho pra brigar e todoscaem em cimadocara. Nunca achei issocerto.É comose Curley nãodessechancea ninguém. Georgeobservavaaporta. — Ele que se cuide com o Lennie — disse agourentamente. — Lennie não é um lutador, mas é bastante forte e rápido. E não conhece as regras. Aproximou-se da mesa quadrada. Sentou-se num dos caixotes, recolheu algumas cartas e pôs-se a embaralhá-las.Ovelhosentou-seemoutrocaixote. — Não diz pro Curley que eu te contei isso. Ele é capaz de me matar. Pra ele tantofaz.Nuncavaiemcanaporqueopaiéopatrão. George cortou as cartas e começou a virá-las, olhando cada uma e colocando-as numapilha. —Pra mim esse Curley não passa de um filho da puta. Não gosto desses caras pequenosemaus. —Achoqueeletápiorultimamente— disseovelho. —Secasoufazduassemanas.Amulhermoranacasadopatrão.Curleyparece maismetidoabestadesdequecasou. — Deveestarsemostrandopra mulherdele —grunhiu George. Ovelhoseanimoucomomexericoqueiacontar. —Reparoualuvaqueusanamãoesquerda? —Repareisim. —Tá cheiadevaselina. —Vaselina?Pra quê? — Bom,eulhedigo... Curleydissequeconservaamãomaciapramulherdele. Georgeestudouascartas,parecendoabsorto. — Coisasujapraseandar dizendoporaí. Agora ovelhoestavatranqüilo.Conseguiraarrancarumadeclaraçãodepreciativa deGeorge.Sentia-seseguro.Continuoucommaisconfiança: — EsperaatéveramulherdeCurley. George cortou as cartas de novo e iniciou lenta e delibe-radamente um jogo de paciência. — Bonita? —perguntoucasualmente. —É.Bonita,mas... Georgeestudavaascartas. —Masoquê? —Bom... andanamorando. —Casada há duas semanas e já tá namorando? Talvez seja por isso que o Curley tácomodiabonocorpo. —EuvielalançandoolharesproSlim.Sliméumar-rieirodeprimeiralinha.Um sujeito muito decente. Não precisa usar botas de salto alto pra trabalhar. Eu vi ela lançando olhares pra ele. Curley não viu. E vi também ela lançando olhares pro Carlson. Georgefingiudesinteresse.
— Parecequeacoisaédivertidaporaqui. Ovelhoergueu-sedocaixote. —Sabe o que eu acho? — George não respondeu. — Acho que Curley casou comuma... vagabunda. —Nãoéoprimeiro—disseGeorge. — Muitagentejáfezisso. O velho caminhou para a porta. O cão ergueu a cabeça, espiou e levantou-se penosamenteparasegui-lo. —Tenho que preparar as bacias prós homens se lavarem. As turmas vão chegar logo.Vocêsvãocarregarcevada? —Vamos. —NãovaicontarproCurleyoqueeudisse,vai? —Ora essa!Claroquenão. —Tá bem. Dá uma boa espiada nela, moço. Vai ver se é ou não uma vagabunda. Saiu, mergulhando no dia ensolarado. George dispôs as cartas pensativamente, virando-as de três em três. Pôs um quatro de paus sobre uma pilha de ases. O quadrado de sol projetava-se agora no chão, e as moscas dardejavam por ele como faíscas. De fora, o tilintar de arreios e o ranger de eixos muito carregados chegou atéacasa.Umgritoclaroveiodelonge: — Peãodoestábulo!Ei,peãodoestábulo!Ondeestáessecrioulodesgraçado? George olhou as cartas na mesa, juntou-as e encarou Lennie, que o observava, deitadonocatre. — Olha, Lennie. Nãotougostandodessenegócio.Tou com medo.Vocêvai ter problemas com esse Curley. Já vi tipos como esse antes. Ele andou te testando. Achaquete assustouevaitemeterobraçonaprimeira chance. Lennieolhoupara George,assustado. — Eunãoqueroencrenca —dissechorosamente. — Nãodeixaelemebater. GeorgefoiatéocatredeLennieesentou-se. —Detesto caras nojentos como ele — disse. — Já vi um monte assim. Como o velho falou, Curley não se arrisca. Sempre ganha. — Pensou durante um momento. — Se ele se meter contigo, Lennie, vamos parar na cadeia. Nem tem dúvida. Ele é o filho do patrão. Tenta ficar longe dele, tá bem, Lennie? Não fala nunca com ele. Seeleentraraqui,vaiprooutroladodoquarto,tábem? —Nãoqueroencrenca —lamentou-seLennie. —Nuncafiznadapra ele. —Isso não vai adiantar nada se Curley quiser bancar o lutador de boxe. Tratade ficarlongedele.Vai lembrardisso? —Claro,George.Nãovoudizerumapalavra. O rumor das turmas que se aproximavam era cada vez mais forte, o bater de grandes cascos no chão duro, o puxar dos freios e o tinido dos tirantes. As turmas gritavam umas para as outras. Sentado no beliche ao lado de Lennie, George franziuatestaenquantopensava. —Tá zangado? —perguntouLennietimidamente. —Não com você. Tou zangado com esse safado do Curley. Eu tava com a
esperança que a gente juntasse alguns cobres... quem sabe uns cem dólares. — Sua vozassumiuumtomdecisivo. —FicalongedoCurley,Lennie. —Vouficarsim,George.Nãovoudizerumapalavra. —Nãoaceitaaprovocaçãodele.Masseofilhodaputatebater,dáotroco. —Quetroco,George? —Deixa prá lá. Eu te digo quando. Detesto esse tipo de sujeito. Olha, Lennie, sevocêsemeteremqualquertipodeconfusão,vaiselembrardoqueeudisse? Lennie se ergueu sobre um cotovelo, os pensamentos lhe contorcendo o rosto. Depois,seuolharmoveu-setristementeatéGeorge. —Seeumemeteremconfusão,vocênãovaimedeixarcuidardoscoelhos. —Não foi isso que eu disse. Lembra ondedormimosna noite passada? Láperto dorio? —Ah,lembro!Claroquelembro!Euvoupraláemeescondonomato. —Isso, seescondeatéeu te procurar. Não deixa ninguém te ver. Seescondenas moitaspertodorio.Repeteisso. —Meescondonasmoitaspertodorio,bemlánasmoitaspertodorio. —Sevocêsemeteremconfusão. —Seeumemeteremconfusão. Ofreiodeumcarroguinchouláfora.Ouviu-seumgrito: —Peãodoestábulo!Ei,peãodoestábulo! —Repetedenovopra você,Lennie.Pra nãoesquecer—disseGeorge. Os dois homens ergueram os olhos, pois o retângulo de sol da porta fora escurecido. A moça ali em pé e que olhava para dentro tinha lábios cheios e vermelhos, olhos espaçados e cobertos com pesada maquiagem. Suas unhas eram vermelhas. Os cabelos pendiam em pequenos cachos enrolados que lembravam salsichas. Usava um vestido caseiro de algodão e chinelas vermelhas enfeitadas com pequenosramalhe-tesdepenasdeavestruztambémvermelhas. — EstouprocurandoCurley —disseela,numavozanasaladaquebradiça. Georgedesviouosolhosetornouaolhá-la. —Tavaaquifazpoucotempo,masfoiembora. —Ah! — Ela pôs as mãos atrás das costas e encostou-se à soleira da porta, o corpo projetado para a frente. — Vocês são os homens que acabaram de chegar, nãoé? — E. Os olhos de Lennie percorreram o corpo da mulher de cima a baixo. Embora não parecesse percebê-lo, a mulher ergueu um pouco a cabeça; depois, fitou as própriasunhas. —ÀsvezesCurleytáporaqui—explicou. —Agora nãotá —disseGeorgebruscamente. —Senãotá,émelhoreuolharemoutrolugar —disseelanumtombrincalhão. Lennieacontemplava,fascinado. — Se eu encontrar o Curley, conto que a senhora tá procurando ele — disse George.
Elasorriumaliciosamenteetorceuocorpo. —Ninguémpodesercensuradoporprocurar.Algunspassossoaramatrásdela. Amulhervirouacabeça. —Oi,Slim—disse. —Oi,beleza— disseavozdeSlimalémdaporta. —TavatentandoacharoCurley. — Entãonãotátentandoobastante.Euvieleindopra suacasa. Subitamenteelasemostrouapreensiva. — Atélogo,rapazes — gritouparadentro,saindoàs pressas. GeorgeencarouLennie. —Caramba,quevagabunda!EntãofoiissoqueCurleyescolheupraesposa. —Elaébonita — defendeu-aLennie. —É, mas tá escondendo isso. Curley vai ter muito que fazer. Mas ela é capaz de abandonaromaridoporvintedólares. Lennieaindafitavaolocalondeamulherestivera. —Puxa, como é bonita! — Sorriu de admiração. George baixou os olhos rapidamenteatéele,pegou-oporumaorelhaesacudiu-o. —Olha aqui, seu patife maluco — disse ferozmente. — Nem ousa olhar pra essa cadela. Pouco me importa o que ela faz ou diz. Já vi venenos desse tipo antes, maschavedecadeiapiordoqueessaeununcavi.Deixaelaempaz. Lennietentoulibertaraorelha. — Eunãofiznada,George. —Não, não fez. Mas quando ela tava parada ali na porta, mostrando as pernas, vocêtambémnãotavaolhandoprooutrolado. —Nãoquisfazermalaninguém,George.Juroquenão. —Bom, fica longe dela. Essa mulher é uma ratoeira, eu sei que é. Deixa o Curley levar o golpe. Ele mesmo mordeu a isca. Luva cheia de vaselina... — acrescentou, com repugnância. — Aposto que anda tomando ovos crus e pedindo fortificantesàsfarmáciaspelocorreio. Lennieexclamouderepente: —Nãogostodesselugar,George.Nãoéumbomlugar.Querosairdaqui. —Temos que ficar até juntarmos uns cobres.Não há jeito, Lennie.A gente dá o fora logo que puder. Não gosto desse lugar também. — Voltou à mesa e arrumou as cartas para uma nova paciência. —Não, também não gosto. Por dois pacoteseu caía fora daqui. Se a gente conseguisse alguns dólares podia ir para o rio American garimpar ouro. Quem sabe a gente fazia uns dois dólares por dia lá? Quem sabe a genteatéachavaumveio? Lenniecurvou-seansiosamenteparaele. —Vamos,George.Vamosdaroforadaqui.Estelugaréruim. —A gente tem que ficar — disse George, seco. — Agora cala a boca. Os homenstãochegando. Do banheiro próximo vinha o som de água corrente e o tinido das bacias. Georgeestudouascartas.
— Talvez a gente devesse se lavar — disse. — Mas não fizemos nada pra ficar sujos. Um homem alto apareceu à porta. Trazia um chapéu Stet-son amassado sob o braço enquanto penteava o cabelo preto, longo e úmido para trás.Como os outros, usava jeans e uma curta jaqueta de brim. Quando terminou de pentear o cabelo, entrou na sala, movendo-se com uma majestade digna de reis e mestres artífices. Era um arrieiro de primeira linha, o príncipe da fazenda, capaz de conduzir dez, dezesseis, até mesmo vinte mulas com uma única rédea presa nos animais dianteiros. Capaz de matar uma mosca na anca de uma mula com uma chicotada sem ferir a pele do animal. Havia em suas maneiras uma quietude e gravidade tão profundas que todos se calavam quando falava. Era tão grande sua autoridade que cada palavra pronunciada por ele era aceita como definitiva em qualquer assunto, fosse política ou amor. Era Slim, o arrieiro de primeira linha. Seu rosto fino e comprido não tinha idade. Poderia ter trinta e cinco ou cinqüenta anos. Ouvia mais do que lhe diziam, e seu lento falar tinha subtons de compreensão além do pensamento. Suas mãos longas e esbeltas eram tão delicadas ao agir como as de umadançarinadotemplo. Alisou seu chapéu amassado, fez-lhe um sulco na parte de cima e colocou-o na cabeça.Então,olhouamavelmenteosdoishomens. —Tá uma claridade danada lá fora — disse, suave. — Não consigo ver nada aqui.Sãoosnovospeões? —Acabamosdechegar— disseGeorge. —Vãocarregarcevada? —Foioqueopatrãodisse. Slim sentou-se num caixote diante da mesa, à frente de George. Estudou a paciênciaqueviadecabeçaparabaixo. —Espero que entrem na minha turma — disse. Sua voz era muito suave. — Tenho um par de idiotas nela que não distinguem um saco de cevada de um monte defeno.Játrabalharamcomcevada? —Já, claro — disse George. — Eu não posso me gabar, mas aquele grandalhão alipodecarregarmaisgrãossozinhoquedoishomensjuntos. Seguindo a conversa com os olhos se movendo de um para o outro homem, Lennie sorriu complacentemente ante o cumprimento. Slim olhou George com aprovação por suas palavras. Inclinou-se sobre a mesa e deu um piparote na ponta deumacartasolta. —Vocês viajam juntos? — Seu tom era amigável, convidando a confidencias semexigi-las. —E — disse George. — Mais ou menos tomamos conta um do outro. — Apontou Lennie com o polegar. — Ele não é lá muito inteligente. Mas é um trabalhador bom à beca. Um sujeito ótimo, só que não é muito inteligente. Conheçoelehámuitotempo. SlimolhouatravésdeGeorge,alémdele. —Não há muitos camaradas que viajam juntos — murmurou. — Não sei por
quê.Talveztodostenhammedounsdosoutrosnestemundodesgraçado. —Emuitomelhorviajarcomumcaraqueseconhece— disseGeorge. Um homem vigoroso e barrigudo entrou na casa dos peões. De sua cabeça aindapingavaaáguadobanho. —Oi,Slim—disse.EntãoparoueolhouparaGeorgeeLennie. —Essesrapazesacabaramdechegar— disseSlim,àguisadeapresentação. —Muitoprazer—disseohomem. —MeunomeéCarlson. —EumechamoGeorgeMiltoneesteaquiéLennieSmall. —Muito prazer — repetiu o homem. — Ele não é muito pequeno1. — Riu suavemente da brincadeira. — Não é pequeno de jeito nenhum. Queria te perguntar, Slim, como vai sua cadela? Notei que ela não foi com o carro essa manhã. —Deu cria ontem à noite— disse Slim. — Nove filhotes. Afoguei logo quatro deles.Elanãoiapoderalimentartantos. —Ficaramcinco,hem? —É,cinco.Fiqueicomosmaiores. —Quetipodecachorroachaquevãoser? —Não sei— disse Slim. — Acho que pastores. Os cachorros que andavam por aíquandoelatavanocioerampastoresnamaioria. —Sobraramcinco— continuouCarlson.— Vaificarcomtodos? —Nãosei.Tenhoqueficarcomelesporenquanto,praLuluamamentareles. —Olha aqui, Slim — disse Carlson reflexivamente. — Estive pensando. O cachorro do Candy tá tão velho que quase não pode andar. Além de tudo, fede. Cada vez que eleentranoalojamentodospeõessintoocheirodelepordoisou três dias. Por que não diz pro Candy dar um tiro no cachorro velho e lhe entrega um desses filhotes pra criar? Posso sentir o cheiro do cachorro dele a mais de um quilômetro. Não temdentes, tá quasecego, não podecomer. Candydá leitepra ele. Nãopodemastigarmaisnada. George fitava Slim atentamente. Súbito, um triângulo começou a tocar do lado de fora; a princípio devagar, depois cada vez mais forte até que a batida se tornou umsomúnico.Parouentãodeinopino,comocomeçara. — Lávamosdenovo — disseCarlson. Doladodeforavinhaorumordasvozesdoshomensquepassavam. Slimpôs-sedepélentamente,comdignidade. — É melhor vocês virem agora enquanto tem alguma coisa pra comer. Em dois minutoselesdevoramtudo. Carlson deu um passo para trás, deixando que Slim tomasse adianteira, e saíram aseguir. Lennie observava George, exultante. Este reuniu as cartas numa pilha bagunçada: —Tá certo —disse. —Euescutei,Lennie.Vouperguntarpraele. —Ummarromebranco —exclamouLennie,excitado. — Vamosjantar.Não seiseeletemummarromebranco.
Lennienãosemoveudocatre. —Perguntaaeleagora,George,praelenãomatarmaisnenhum. —Tá.Vamos,levanta. Lennie rolou para fora do catre e ficou de pé. Quando alcançavam a porta, Curleyirrompeu: —Viuumamoçaporaqui? —perguntou,zangado. —Fazumameiahora,acho —disseGeorgefriamente. —Quequeelatavafazendoaqui? Georgepermaneceuimóvel,observandoohomenzinhozangado. — Disse...dissequetavateprocurando —respondeu, insolente. Curley pareceu ver George pela primeira vez. Seus olhos dardejaram por ele, medindo-lheaaltura,aenvergadura,otroncobemmodelado. — Bom.Pra queladoelafoi? —perguntoufinalmente. — Nãosei — disseGeorge. —Nãoolhei. Curleyfechouacaraesaiuapressado. — Sabe, Lennie, tenho medo de eu mesmo arranjar confusão com esse palhaço — disse George.— Detesto o atrevimento dele. Puxa, vamos! Não vai sobrar nada pra gentecomer. Saíram. A luz do sol era uma linha fina sob a janela. Podia-se ouvir o tilintar de pratos a distância. Depois de um momento, o velho cão entrou claudicante pela porta aberta. Percorreu o lugar com seus olhos meio cegos, farejou e então deitouse, colocando a cabeça entre as patas. Curley tornou a irromper porta adentro e ficou ali, olhando o aposento. O cão ergueu a cabeça. Quando Curley arremessouse para fora, a cabeça de pêlos grisalhos do cachorro abaixou-se novamente, formandoumalinhajuntoaochão.
3
Emboraobrilhodocrepúsculoaindasemostrassepelasjanelasdoalojamento dospeões,aobscuridadeseinstalaradoladodedentro.Atravésdaportaaberta chegavamasbatidasabafadaseostinidosdeumjogodeferradura.Devezem quando,vozesseerguiamparaaplaudirouzombar. Slim e George entraram juntos no alojamento sombrio. Slim estendeu o braço por cima da mesa e acendeu a lâmpada elétrica com quebra-luz de lata. Instantaneamente, uma luz brilhante jorrou sobre a mesa, o cone de metal dirigindo a claridade para baixo, deixando os cantos do aposento no escuro. Slim sentou-senumcaixoteeGeorgeacomodou-sediantedele. —Não foi nada — disse Slim. — Eu ia ter que afogar a maioria deles, de qualquermodo.Nãoprecisameagradecer. —Não é importante pra você, mas pra ele é um Deus nos acuda — disse George. — Puxa, não sei como a gente vai fazer ele dormir aqui hoje. Vai querer dormir lá no celeiro com eles. Vai ser difícil pra gente não deixar ele pular na caixa juntocomosfilhotes. —Não foi nada — repetiu Slim. — Olha, você tava mesmo certo a respeito dele. Não é lá muito inteligente, mas nunca vi um trabalhador tão bom. Quase matou o cara que trabalhava com ele de tanto carregar cevada. Ninguém pode chegaraospésdele.SantoDeus,nuncaviumhomemtãoforte! —ÉsódizeraLennieoquefazereelefaz,desdequenão tenhaquepensar— disseGeorgecomorgulho. —Nãopodepensaremnadasozinho,mascumpreas ordensmuitobem. De fora chegou o tinido de uma ferradura batendo numa estaca de ferro, acompanhadodevozesanimadas. Slimrecuouumpouco,afastando-sedaluz. —É engraçado vocês dois andarem juntos. — As palavras eram um tranqüilo convitedeSlimàconfidencia. —Oquequehádeengraçadonisso?—perguntouGeorge,nadefensiva. —Ah, sei lá. Não é comum ver dois sujeitos viajando juntos. Eu não me lembro de ter visto. Sabecomo sãoas coisas,eles chegam,pegam uma cama, trabalham um mês e depois vão embora sozinhos. Não parecem dar um tostão por ninguém. É por isso que é engraçado um maluco como ele e um cara esperto como você viajaremjuntos. —Ele não é maluco — disse George.— É bastante imbecil, mas não é maluco. E eu também não sou tão esperto assim, ou não iria carregar cevada por cinqüenta pacotes e mais a comida. Se eu fosse esperto, ou pelo menos um pouco mais vivo, já teria um lugarzinho meu com minha própria plantação, em vez de fazer todo o trabalhoenãopôrasmãosemnadadoquenascedaterra. George silenciou. Queria falar. Slim, contudo, não o encorajou nem desencorajou;apenassentou-selá,quietoereceptivo.
—Não é tão engraçado a gente andar junto — disse George finalmente. — Nós dois nascemos em Auburn. Eu conhecia a tia dele. Ela ficou com Lennie quando ele ainda era um bebê e criou ele e tudo. Quando a tia morreu, Lennie veio comigo pra trabalhar.Depoisdealgumtempo,agenteseacostumouumcomooutro. —Hum. GeorgefitouSlimeviuseusolhoscalmos,comalgodedivino,postossobreele. — Engraçado —disse George.— Eucostumava medivertir muitoàs custasde Lennie. Fazia brincadeiras com ele, porque era muito idiota pra tomar conta de si mesmo. Mas era idiota até mesmo pra notar que eu fazia brincadeiras com ele. Eu me divertia. Me fazia sentir inteligente pra burro ficar perto dele. Puxa, fazia tudoo que eu mandava. Se eu mandasse ele pular de um penhasco, ele pulava. Depois de algum tempo, a coisa já não era tão engraçada. Ele nunca ficava zangado. Dei umas boas surras nele. E apesar de poder moer os meus ossos só com uma das mãos, ele nunca levantou um dedo contra mim. — A voz de George assumiu o tom baixo de confidencia. — Vou te dizer o que me fez parar com aquilo. Certo dia, um bando de caras tava perambulando pelo rio Sacramento. Eu tava me sentindo muito esperto. Virei para Lennie e disse: "Pula no rio". E ele pulou. Não sabia dar uma braçada. Quase se afogou antes que a gente pudesse pescar ele. E ficou tão agradecido porque eu tirei ele da água! Tinha esquecido totalmente que eu havia mandadoelepular.Bem,daíemdiantenuncamaisfiznadaparecido. — Ele é um bom sujeito — disse Slim. — Um cara nãoprecisa ter juízo pra ser um bom sujeito. Ás vezes acho até que é o contrário. Difícil é um cara realmente inteligenteserumbomsujeito. George reuniu as cartas dispersas e arrumou-as numa paciência. O som abafado das ferraduras chegava do lado de fora. A luz do entardecer ainda destacava o quadradodasjanelas. —Não tenho família — disse George. — Tenho visto os caras que andam sozinhospelas fazendas. Não é uma coisaboa. Não sedivertem.Com o tempo eles ficammaus.Querembrigarotempotodo. —E, ficam maus — concordou Slim. — Ficam assim porque não querem conversarcomninguém. —Claro que Lennie é uma chateação na maior parte do tempo —disse George. —Masagenteseacostumaaandarcomumcaraporaíenãopodeselivrardele. —Ele não é mau— disse Slim. — Posso ver que Lennie não é nem um pouco mau. —Claro que não é mau. Mas se mete em confusão o tempo todo porque é imbecil demais. Como a que aconteceu em Weed... — Parou no gesto de virar uma carta,olhandoalarmadoparaSlim.—Nãovaicontaraninguém,vai? —QuequeelefezemWeed? —perguntouSlimcalmamente. —Nãovaicontar?... Não,claroquenãovaicontar. —QuequeelefezemWeed?— repetiuSlim. —Bom, ele viu uma moça de vestido vermelho. Imbecil como é, quer tocar em tudooquegosta.Sópara sentircomoé.Pelo tato.Então,estendeuamãopra tocar
no vestido da moça, ela deu um grito e aí Lennie ficou todo confuso e continuou agarrando o vestido, porque era a única coisa que podia pensar em fazer. Bem, a moça continuou gritando. Eu tava só um pouquinho longe e escutei toda aquela gritaria. Então, saí correndo. Naquele instante, Lennie tava tão amedrontado que tudo o que sabia fazer era continuar segurando a moça. Dei-lhe uma bordoada na cabeça com uma estaca de cerca, pra ele largar ela. Tava tão apavorado que não conseguialargarovestidodela.Evocêsabequeeleéfortepraburro. Os olhos de Slim fixavam-se em George sem pestanejar. Fez um lento sinal de assentimentocomacabeça. — Eoquequeaconteceu? Georgecontinuouaarrumarcuidadosamenteojogode paciência. — Bom,a moçadeunopé efoi contarpra polícia que tinhasidoviolentada. Os camaradas de Weed se reuniram pra linchar Lennie. Então a gente se escondeu numa vala de irrigação e ficou debaixo d'água o dia inteiro. Só botava a cabeça de foraentreomatoquecrescedentrod'água.E,de noite,demosoforadali. Slimficouemsilêncioduranteummomento. —Elenãofeznenhummalàmoça,fez? — perguntoufinalmente. —De jeito nenhum. Só assustou ela. Eu também ficaria assustado se ele me agarrasse. Mas ele não fez mal nenhum a ela. Só queria tocar no vestido vermelho, domesmomodoquequerfazerfestanosfilhotesotempotodo. —Ele não é mau — disse Slim. — Posso dizer quando um cara é mau a um quilômetrodedistância. —Claroquenãoé.Efazqualquer coisaqueeudisserpra ele... Lennie entrou no alojamento. A jaqueta de brim azul estava atirada sobre os ombros,comoumacapa,eelecaminhavaencurvado. —Oi,Lennie— disseGeorge. —Quequetáachandodofilhoteagora? —Ele é marrom e branco, bem como eu queria— disse Lennie, arquejante. Foi direto para o próprio catre, deitou-se, virou o rosto para a parede e suspendeu os joelhos. Georgecolocouascartasnamesa,numgestodecidido. — Lennie — disseasperamente. Orapaztorceuopescoçoeolhoupor cimadoombro. —Ha?Oqueé,George? —Eutedissequenãopodiatrazerofilhotepracá. — Quefilhote,George?Nãotrouxenenhumfilhote. Georgefoirapidamenteatéele,agarrou-opeloombro evirou-o.EstendeuamãoepegouominúsculocãozinhoescondidoporLennie juntoàbarriga.Lenniesentou-se,rápido. —Medáele,George. —Você vai sair já daqui e levar o filhote de volta pra ninhada. Ele tem que dormir com a mãe. Quer matar ele? Nasceu na noite passada e você já quer tirar ele dacadela!Levaeledevolta,senãoeudigoaoSlimpranãotedarfilhotenenhum. Lennieestendeuasmãossuplicantes.
— Me dá ele, George. Eu levo de volta. Não quis fazer mal a ele. Juro, George. Sóqueriafazerfestanelemaisum pouco. Georgeentregou-lheofilhote. — Tá bem. Levalogoelepra láenãotiramais.Senão, acabamatandoobicho. Lenniesaiuquasecorrendo. Slimpermaneceraimóvel,osolhoscalmosseguindoLennieportaafora. —Caramba!—disse. —Eleéigualzinhoaumacriança,nãoé? —E, é. Igualzinho a uma criança. Ele não tem maldade, igual a uma criança. Só que ele é forte à beca. Aposto que ele não vem dormir aqui essa noite. Vai dormir bem junto daquela caixa no celeiro. Bom... não tem importância. Não vai fazer nadadeerradoali. Doladodeforajáestavaquaseescuro.Candy,ovelho varredor, entrou no alojamento e se dirigiu a um dos catres, seguido a custo por seucão. —Olá,Slim.Olá,George.Vocêsnãogostamdejogarferradura? —Nãogostodejogartodasasnoites—disseSlim. —Um de vocês tem uma gota de uísque? — continuou Candy. — Tou com dordebarriga. —Eu não — disse Slim. — Eu mesmo bebia se tivesse algum, com dor de barrigaounão. —Toucomumadordebarrigabraba —disseCandy. —Foram aqueles malditos nabos que me deram. Sabia que iam me fazer mal antesmesmodecomer. O corpulento Carlson surgiu do terreiro que escurecia. Andou até o outro extremodoalojamentoeacendeuosegundoquebra-luz. —Tá maisescuroqueoinfernoaquidentro —disse. —SantoDeus,comoaquelecriouloacertanasferraduras! —Eleémuitobom— disseSlim. —Bom à beca — disse Carlson. —Não dá a ninguém uma chance de ganhar... — Parou e cheirou o ar. Ainda cheirando, descobriu o velho cão. — Nossa Senhora, como esse cachorro fede! Tira ele daqui, Candy! Não conheço nada que cheirepiordoqueumcachorrovelho.Vocêtemquetirareledaqui. Candy rolou para a beira do catre. Estendendo a mão, alisou o velho cão e se desculpou. —Tenhoficadopertodeletantotempoquenemnotoquefede. —Bom, não posso agüentar ele aqui dentro — disse Carlson. — O fedor fica por aqui mesmo depois que ele vai embora. — Com suas passadas pesadas, andou atéocãoeolhou-o. —Não tem dentes e está todo duro de reumatismo. Ele não tá bom pra você, Candy.Nãotábomnempraelemesmo. Porquenãomataele,Candy? Ovelhoseretorceu,desconfortável. — Ora... que diabo! Ele é meu há tanto tempo! Tenho ele desde que era um filhote. Conduzia as ovelhas comele. Vocês não acreditam olhando pra ele, mas foi
omelhorcãopastorquejávinavida— dissecomorgulho. — Em Weed conheci um cara que cuidava das ovelhas com um airedale1 — disseGeorge. — Aprendeucomosou troscachorros. Carlsonnãoquismudardeassunto. — Olha aqui, Candy. Esse cachorro velho tá sofrendo o tempo todo. Se você levar ele lá pra fora e atirar nele bem na nuca — inclinou-se, apontando —, bem nesselugar,ele nemvaisentirnada. Candyolhouemtorno,infeliz. —Não — disse suavemente. — Não, não posso fazer isso. Tive ele durante muitotempo. —Mas ele vive sofrendo — insistiu Carlson. — E fede como o diabo. Escuta aqui.Eumatoelepravocê.Assim,nãoévocêquemapertaogatilho. Candy pôs as pernas para fora do catre. Cocou nervosamente os pêlos brancos dassuíças. —Tou tão acostumado com ele! — murmurou. — Tenho ele desde que era um filhote. —Mas não tá sendo bom pra eledeixando que viva — disse Carlson.— Olha,a cadela do Slim acaba de dar cria. Aposto que o Slim te dá um dos filhotes, não dá, Slim? Oarrieiroestudavaovelhocãocomseusolhoscalmos. — Claro — disse. — Posso te dar um filhote se você quiser. — Pareceu sentirse mais livre ao falar. — Carl está certo, Candy. Esse cachorro vive sofrendo. Eu gostariaque alguémmedesseumtiroseeuestivessevelhoealeijado. Candyolhouparaeleindefeso,poisasopiniõesdeSlimeramlei. —Talvezelesintador —sugeriu. —Nãomeimportodecuidardele. —Vou atirar de um modo que ele não vai sentir nada —disse Carlson. — Vou pôr o cano da arma bem aqui. — Apontou com o pé. — Bem atrás da cabeça. Nemvaiestremecer. Candy olhou de rosto para rosto em busca de ajuda. Do lado de fora, a escuridão era total. Um jovem trabalhador de ombros caídos entrou caminhando pesadamente como se carregasse ainda um saco invisível de cereal. Foi até o seu catre e pôs o chapéu na prateleira. Então, tirou dela uma revista ordinária e levou-a atéaluzsobreamesa. —Mostreiissoavocê,Slim?—perguntou. —Memostrouoquê? O rapaz abriu a revista na parte de trás, colocou-a sobre a mesa e apontou com odedo: —Lê bem aqui. — Slim curvou-se sobre a revista. — Vai em frente — disse o rapaz. —Lêalto. —"Caroeditor" —leuSlimlentamente.— "Leiosuarevistaháseisanoseacho que é a melhor que existe. Gosto das histórias escritas por Peter Rand. Acho ele um cara fantástico. Queremos mais histórias como a do Cavaleiro Negro. Eu não escrevo muitas cartas. Só pensei em lhe dizer que o dinheiro que gasto em sua
revistaéomaisbemgastodetodos." Slimergueuosolhosinterrogadoramente: —Pra quevocêpediupraeulerisso? —Continua —disseWhit. —Lêonomenofinal. —"Desejando o seu sucesso, William Tenner." — Ergueu de novo os olhos paraWhit. —Praquepediupraeulerisso? Whitfechouarevistacomarsignificativo. — NãoselembradeBillTenner?Quetrabalhavaaqui unstrêsmesesatrás? Slimrefletiu. —Umsujeitopequeno?Quetrabalhavanoarado? —É — exclamouWhit.— Éesse! —Achaqueéocara queescreveuessacarta? —Sei queé.Eu tavacom Billaqui umdia.Ele tavacom umadessas revistas que tinham acabado de chegar. Tava olhando pra uma delas e me disse: "Escrevi uma carta. Será que eles publicaram ela?" Mas não tava na revista. "Acho que tão guardandoelapra maistarde."Foiexatamenteoquefizeram.Táaqui. —Achoquetemrazão —disseSlim.— Táaquinarevista. Georgeestendeuamãoparaarevista. — Possodarumaolhada? Whit tornou a achar a página, mas não largou a revista. Apontou a carta com o indicador.Depois,foiatésuaprateleiraeguardoucuidadosamentearevista. — Eu só queria saber se Bill já leu isso — disse. — A gente trabalhava na plantaçãodeervilhas.Agentemanobravao arado.Billeraumcaralegalàbeca. Carlson recusava-se a ser arrastado para a conversa. Continuava a olhar o velho cãoenquantoCandyoobservava,poucoàvontade. —Se quiser, eu acabo com o sofrimento dele agora mesmo e fica tudo terminado — disse Carlson finalmente. — Ele não tem nada com que se divertir. Nãopodecomer,nãopodeenxergar,nãopodenemmesmoandarsemsofrer. —Vocênãotemarma —disseCandy,esperançoso. —Nãotenhoumaova.Tenhouma Luger.Elenãovaisentirnada. —Quemsabeamanhã? —disseCandy. — Vamosesperaratéamanhã. —Pra que esperar? — disse Carlson. Foi até seu catre, puxou a mala debaixo deleetirouumapistolaLuger. —Vamos acabar com isso. Não se pode dormir com o fedor dele aqui no ar. — Colocouapistolanobolsotraseirodascalças. Candyfitoulongamente Slim, tentandoobter arevogaçãodasentença.MasSlim nãoveioemseuauxílio. — Tá bem... podelevarele— murmurouCandyfinalmente,desesperançado. Não tornou a olhar para o cão. Deitou-se no catre, cruzou os braços sob a cabeçaefitouoteto. Carlson tirou do bolso uma fina correia de couro. Inclinou-se e atou-a no pescoçodocão.Todososhomens,excetoCandy,oobservavam. — Vamos, rapaz. Vamos,rapaz —disse suavemente. —Elenão vaisentir nada
— acrescentoupara Candy,emtomdedesculpa. Candynãosemoveunemrespondeucoisaalguma.Carlsonpuxouacorreia: —Vamos, rapaz. — O velho cão pôs-se lenta e rigidamente de pé, seguindo a correiaqueopuxavacom brandura. —Carlson— disseSlim. —Hem? —Vocêsabeoquefazer? —Oquê,Slim? —Levaumapá —disseSlimsucintamente. —Ah,tá.Podedeixar.— Conduziuocãopara anoiteescura. Georgefoiatéaportaefechou-a,correndootrincodemadeirasemfazerruído. Candyjaziarigidamentenacama,olhandooteto. — Uma das minhas mulas quebrou um casco — comentou Slim em voz alta. — Tenhoquebotarumpouco dealcatrãonele. Sua voz se extinguiu. O silêncio continuava lá fora, depois que os passos de Carlson haviam desaparecido na distância. O silêncio entrou na casa dos peões e ali seinstalou. —Aposto que Lennie tá lá no celeiro com o filhote — riu George. — Não vai querermaisvoltarpracáagora quetemumcachorro. —Candy,vocêpodeterqualquerfilhotequequiser —disseSlim. O velho não respondeu. O silêncio instalou-se na casa novamente, vindo da noite. —Alguémquerjogarumpouco?—perguntouGeorge. —Euquero— disseWhit. Sentaram-se à mesa, um diante do outro, sob a luz, mas George não embaralhou as cartas. Fez estalar nervosamente as bordas do baralho e o ruído rascante atraiu os olhares de todos. Então ele parou com o ruído. O silêncio recaiu sobre o alojamento. Passou-se um minuto, seguido do outro. Ainda imóvel, Candy fitava o teto. Slim pousou os olhos nele por um momento e depois olhou as próprias mãos. Segurou uma delas com a outra e manteve-a abaixada. Ouviu-se o som de algo sendo roído debaixo do chão; todos os homens olharam para baixo, agradecidos.SóCandycontinuavaafitaroteto. —Parece que temum rato lá embaixo — disse George. — A gente devia botar umaratoeiralá. —Droga, por que que ele tá demorando tanto? —exclamouWhit.—Querdar ascartasdeumavez?Senãoagente nãovaipoderjogarnada. George juntou bem as cartas e estudou suas lombadas. O silêncio ocupara a casanovamente. Ouviu-se um tiro a distância. Os homens olharam rapidamente para o velho deitado.Todasascabeçassevoltaramparaele. Por um instante Candy continuou a fitar o teto. Então, lentamente, rolou sobre simesmoe,derostoparaaparede,permaneceuimóvel. Georgeembaralhouruidosamenteascartas,distribuindo-as.Whitpegouassuas.
— Achoquevocêsvierampra trabalharmesmo — disse ele. — Quequequerdizerisso? —perguntouGeorge. Whitriu. — Bom, vocês chegaram numa sexta-feira. Têm dois dias de trabalho até o domingo. — Nãotouentendendo —disseGeorge. Whitriunovamente. — Ia entender se trabalhasse algum tempo nessas fazen das grandes. O sujeito que quer dar uma olhada no lugar chega sábado de tarde. Ele consegue o jantar e três refeições no domingo e pode dar o fora na segunda de manhã, sem levantar um dedo. Mas vocês chegaram pra trabalhar na sexta-feira aomeio-dia.Têmpelafrenteumdiaemeiodetrabalho,sejalácomofor. Georgeolhou-ocomfrieza. — Vamos ficar aqui por algum tempo — disse. — Eu e Lennie queremos juntarunscobres. A porta abriu-se silenciosamente e o peão do estábulo pôs a cabeça para dentro. Umanegra cabeçadescarnada,vincadapelador,deolhospacientes. — SeuSlim! SlimafastouosolhosdovelhoCandy. —Hã?Ah!Olá,Crooks.Qualéoproblema? —O senhor me disse pra esquentar o alcatrão pro casco da mula. Ele já tá quente. —Ah!Tábem,Crooks,jávouindo. —Eupossopassaroalcatrão,seosenhorquiser. —Não.Eumesmofaço.— Slimselevantou. —SeuSlim—disseCrooks. —Oqueé? —Aquele cara grandão novo tá fazendo uma bagunça com os cachorrinhos lá noceleiro. —Elenãovaifazermalnenhum.Eudeipraeleumdosfilhotes. —Só achei que era melhor contarpra você— disse Crooks.—Ele tá tirando os cachorrinhos de junto da ninhada e pegando neles. Isso não vai fazer bem prós filhotes. —Elenãovaifazermalpra eles —disseSlim.— Euvoucomvocê. Georgeergueuosolhos. — Se aquele patife maluco estiver fazendo muita bagunça, Slim, bota ele pra fora. Oarrieiroeopeãodoestábulodeixaramacasa.Georgedeuascartas.Whit pegou-aseexaminou-as. —Já viuagarotanova? —Quegarota?—perguntouGeorge. —Ora,anovamulherdoCurley. —Já,jávi.
—Nãoéumauva? — Nãorepareimuitobem — disseGeorge. Whitabaixouascartasnumgestodecidido. —Bom, fica por aí e de olhos abertos. Vai ver muita coisa. Porque ela não esconde nada. Nunca vi ninguém como ela. Tá sempre olhando pra todo mundo. Aposto que se engraça até com o crioulo do estábulo. Não sei que que ela tá querendo. —Tem tido algum problema desde que ela chegou aqui? — perguntou George casualmente. Era óbvio que Whit não estava interessado nas próprias cartas. Largou-as na mesa e George juntou-as, arrumando lentamente um jogo de paciência. Sete cartas, seisacimadelasecincoacimadasseis. — Entendo o que quer dizer — disse Whit. — Não, ainda não teve nada. Curley tá com o diabo no corpo, mas por enquanto é só isso. Sempre que os rapazes tão poraí elaaparece.Uma hora táprocurando por Curley, outra hora acha que tinha deixado alguma coisa por aí. Parece que não pode ficar longe de homem. Curleyandafurioso,masaindanão aconteceunada. —Ela vai fazer uma confusão tremenda — disse George. — Uma confusão medonha. É uma dinamite pronta pra explodir. Esse Curley se meteu numa boa. Uma fazenda com um bando de sujeitos não é lugar pra uma mulher, ainda mais comoela. —Já que pensa assim, você devia ir com a gente pra cidade amanhã de noite — disseWhit. —Porquê?Quequevaiterlá? —A mesma coisa de sempre. Vamos no bordel da velha Susy. Um lugar simpático pra burro. A velha Susy é uma bola... sempre fazendo piadas. Como faz todo sábado, quando a gente chega lá. Ela abre a porta e grita por cima do ombro: "Botem a roupa, garotas, o xerife chegou!" Nunca diz palavrão. Tem cinco mulhereslá. —Quantosepaga?—perguntouGeorge. —Dois e meio. A gente pode tomar um trago por dois cents. A velha tem boas cadeiras pra gente sentar, também. E se o cara não quiser fazer nada, pode ficar sentado,tomardoisoutrêstragosepassarodiainteirolá.ASusynemliga.Elanão ficaapressandoebotandopraforaseagentenãoquerfazernada. —Achoquevouládarumaolhada— disseGeorge. —Vai sim. Édivertido àbeca...Eladizpiadaso tempo todo.Sabe oque disseda última vez? "Já conheci gente que pensa que montou casa só porque botou um tapete no chão e um abajur de seda em cima do gramofone!" Ela sempre fala assim do puteiro da Clara. "Eu sei o que que os rapazes querem", diz. "Minhas garotas são limpas e não boto água no uísque. Se algum de vocês quiser dar uma olhada num abajur de seda e correr o risco de ser queimado, sabe onde ir." E ainda diz mais: "Conheço alguns rapazes que andam por aí de pernas bambas porque gostam deandarolhandoum abajurdeseda... "
—Claraéadonadooutrobordel,nãoé?—perguntouGeorge. —É — disse Whit. — Mas a gente não vai lá. Clara cobra três dólares por cabeça e trinta e cinco centspor copo. Além disso, não é brincalhona. Mas o puteiro daSusyélimpoetemboascadeiras.Elanãopermitebagunça,também. —Eu e Lennie estamos juntando uma gaita— disse George. — Eu podia ir lá e tomarumgole,masnãovoujogardoisemeiopelajanela. —Bem,umcara temquesedivertirdevezemquando—disseWhit. A porta se abriu e Lennie e Carlson entraram juntos. Lennie se arrastou até o catre e sentou-se, tentando não atrair a atenção. Carlson estendeu a mão sob a cama e puxou sua mala. Não olhou o velho Candy, ainda deitado imóvel e virado para a parede. Carlson pegou uma vareta e uma lata de óleo da mala, colocou-as sobre a cama; então tirou a pistola do bolso, puxou seu tambor e extraiu de um golpe o cartucho detonado. Depois começou a limpar o cano da arma com a vareta. Quando se ouviu o estalido do ejetor, Candy virou-se e olhou um momento paraapistolaantesdesevoltardenovoparaaparede. — Curleyesteveaqui? — perguntouCarlson,comdisplicência. — Não —disseWhit.— Quebichotámordendoele? Carlsonapertouoolhoecolocou-ojuntoaocanodaarma. — Tá procurandoapatroa.Vieleperambulandoporaí. — Ele passa a metade do tempo procurando ela, e ela passa a outra metade procurandoele— disseWhit,sarcástico. Curleyirrompeuprecipitadamentenoalojamento. —Algumdevocêsviuminhamulher?—perguntou. —Aquielanãoapareceu— disseWhit.Curleyolhouameaçadoramenteo aposento. —OndeestáoraiodoSlim? —Foi até o estábulo — disse George. — Ia botar um pouco de alcatrão num cascopartido. OsombrosdeCurleycaíramumpouco,maslogo seaprumaram. —Há quantotempoelefoi? —Cinco... dezminutos. Curleyarremessou-seportaaforaebateu-aatrásdesi.Whitselevantou. — Acho que vou gostar de ver isso —disse. — Curley tá louco por uma briga, senão não ia atrás do Slim. E Curley é bom, é danado de bom mesmo. Chegou à final do campeonato nacional. Ele tem recortes de jornal que falam nisso. — Pensou um pouco. — Mesmo assim, era melhor que ele deixasse o Slim em paz. NinguémsabeoqueSlimécapazdefazer. —EleachaqueSlimtácoma mulherdele,nãoé?—disseGeorge. —Parece. Mas é claro que não tá. Pelo menos é o que acho. Mas vou gostar de veraconfusão,sehouveralguma.Vamosatélá. —Vou ficar aqui mesmo — disse George. — Não quero me meter em coisa alguma.Lennieeeuqueremos juntarumagaita. Carlson terminou de limpar a arma e colocou-a na mala, empurrando-a para
baixodacama. — Achoquevoudarumasaídaeolharporaí — disse. O velho Candy continuava imóvel e, de seu catre, Lennie observava George cautelosamente. Depois que Whit e Carlson saíram e a porta se fechou atrás deles, George se virouparaoamigo. —Quequevocêtem?—disseGeorge. —Não fiz nada, George. Slim disse que é melhor não fazer tanta festa nos cachorros por enquanto. Disse que não é bom pra eles; por isso eu vim pra cá. Eu tenhomecomportadobem,George. —Era issoqueeuiatedizer. —Bom, eu não estava machucando nenhum. Só botei o meu no colo pra fazer festa. —ViuoSlimnoceleiro?—perguntouGeorge. —Vi,sim.Elemedissequeera melhornãoalisarmaisofilhote. —Viuamoça? —AmulherdoCurley? —É.Elatavanoceleiro? —Não.Nãovieladejeitonenhum. —NuncaviuoSlimconversandocomela? —Não,não.Elanãotavanoceleiro. —Tá bem— disse George. —Acho que os rapazes nãovão ver briga nenhuma. Seacontecerqualquerbriga,Lennie,ficaforadela. — Eu não quero briga nenhuma — disse Lennie. Levantou-se do catre e sentou-se à mesa, diante de George. Quase automaticamente, George embaralhou ascartasearrumou umapaciência.Agiacomlentidãodeliberada, pensativa. Lennie estendeu a mão para uma das cartas e estudou-a; depois virou-a de cabeçaparabaixoecontinuouaestudá-la. —Asduaspontassãoiguais— disse.— Porqueasduaspontassãoiguais? —Sei lá — disse George. — É assim que fabricam elas. O que o Slim tava fazendonoceleiro? —Slim? —É. Você viu ele no celeiro e ele te disse pra não fazer mais tanta festa no filhote. —Ah,é.Tavacomumalatadealcatrãoeumpincel.Nãoseipra quê. —Tem certeza que aquela pequena não entrou no celeiro? Do jeito que ela entrouaquihoje? — Não.Nãoentrou,não. Georgesuspirou. — Eu prefiro é um bom puteiro. O sujeito pode ir até lá, tomar um porre e expulsar do corpo tudo o que precisa sem qualquer confusão. E sabe quanto vai ter que pagar. Agora, mulheres como essa são uma chave de cadeia, prontas praacabar comocaradevez.
Lennie seguia suas palavras admirado, acompanhando-as com leve movimento doslábios. —Lembra do Andy Cushman, Lennie? — continuou George. — Aquele que tavanaescola? —Aquelequeamãecostumavafazerpastelprascrianças? —Esse mesmo. Você sempre lembra quando tem alguma coisa de comer no meio. — George olhou cuidadosamente o jogo de paciência. Pôs um ás separado das outras cartas e colocou sobre ele um dois, um três e um quatro. — Andy tá na prisãodeSanQuentinagora,porcausadeumavagabunda. Lennietamborilounamesacomosdedos. —George? —Hem? —Quanto tempo ainda vai levar pra gente ir pra aquele lugarzinho e viver no bem-bom... ecomoscoelhos? — Sei lá — disse George. — A gente tem que juntar uma boa gaita. Sei de um lugarzinho que a gente podia conseguir barato, mas de qualquer maneira não tão dandodegraça. O velho Candy se virou devagar, os olhos muito abertos. Observou George cuidadosamente. —Contasobreolugar,George —disse Lennie. —Bom, são três hectares— disse George.—Tem um moinhozinho, um galpão pequeno e um galinheiro. Tem cozinha, pomar, cerejas, maçãs, pêssegos, damascos, nozes e alguns morangos. Há um lugar pra alfafa e muita água pra irrigar ela. E tem tambémumchiqueiro... —Ecoelhos,George. —Não tem lugar pra coelhos agora, mas eu posso construir uma coelheira e vocêvaialimentarelescomalfafa. — Claroqueeuvou —disseLennie. — Voumesmo. AsmãosdeGeorgepararamdemoverascartas.Suavoz tornou-semaiscálida. — E a gente podia ter uns porcos. Eu podia fazer um fumeiro como o do meu avô, e quando a gente matasse um porco podia defumar o toucinho e o presunto, fazer lingüiças e tudo mais. E quando os salmões subissem o rio, a gente podia pegar uns cem e defumar eles. E guardar pro café da manhã. Não tem nada tão gostosocomosalmãodefumado.Quandoasfrutastivessemmadurasagentecomia elas... e tomates também, é fácil fazer conservas com eles. Todos os domingos a gentepodia matar uma galinhaou um coelho. Quemsabea gentepodiateraté uma vaca ou uma cabra, pra dar uma nata tão gorda que só cortando com faca outirandocomumacolher. Lennie contemplava-o com os olhos totalmente abertos. O velho Candy tambémobservavaGeorge. —Podíamosvivernobem-bom — murmurouLennie. —Claro — disse George. — Tudo quanto é tipo de legumes na horta. E se a gente quisesse um pouco de uísque, podia vender alguns ovos ou qualquer outra
coisa, ou leite. E viveria só lá. A gente ia pertencer ao lugar. Não ia ficar mais batendo pernas pelo país, sendo alimentado por um cozinheiro japa. Nada disso. A genteiaternossoprópriolugarenãoiadormiremalojamentonenhum. —Contasobreacasa,George—pediuLennie. —Tá. A gente ia ter uma casinha, com um quarto pra nós. E um bom fogão de ferro. No inverno a gente ia deixar o fogo aceso o tempo todo. Como a terra não é muito grande, a gente ia ter que trabalhar bastante. Talvez seis, sete horas por dia. Mas nada de carregar sacos de cevada onze horas por dia. E quando chegasse a colheita,puxa,agentetavalápracolher.Eiasaberoqueproduziaplantando. —Ecoelhos— disseLennieansiosamente. —Eeuiacuidardeles.Dizcomoeu iafazerisso,George. —Tá. Você ia até a plantação de alfafa com um saco, enchia ele, trazia de volta e botavaumpoucodealfafanacoelheira. —Eelesiamcomerecomer—disseLennie —comoelesfazem.Eujávi. —De seis em seis semanas mais ou menos — continuou George —, as coelhas dão cria e aí a gente ia ter um monte de coelhos pra comer e vender. E também ia criar alguns pombos pra voarem em volta do moinho, como eles faziam quando eu era menino. — Olhou absorto para a parede, por sobre a cabeça de Lennie. — E tudo isso vai ser nosso e ninguém vai poder nos botar pra fora. Se a gente não gostarde umcara, é só dizer: "Dá oforadaqui",e o cara vai ter que dar no pé. Ese um amigo aparecer, ora, vamos ter uma cama extra e dizer pra ele: "Por que não passa a noite aqui?" E ele vai passar, é claro. A gente vai ter um cachorro perdigueiro eumpardegatosmalhados,masvocêvaiterquetercuidadoprósgatosnão pegaremoscoelhinhos. Lenniearquejou. — Deixe só eles tentarem pegar os coelhos. Eu quebro o raio do pescoço deles. Eu... amassoelescomumpau. Acalmou-se, resmungando para si mesmo, ameaçando os futuros gatos que ousassemperturbarosfuturoscoelhos. George permaneceu imóvel, em êxtase com o próprio quadro que acabara de pintar. Quando Candy falou, George e Lennie deram um pulo, como se estivessem fazendoalgorepreensível. —Sabeondetemumlugarassim?Georgeficouimediatamenteem guarda. —Eseeusoubesse?Quequevocêtemcomisso? —Nãoprecisamedizerondeé.Podeserqualquerlugar. —Certo — disse George. — É isso mesmo. Você não podia encontrar ele nem emcemanos. —Quantoosdonosqueremporumlugarassim? — continuouCandy,animado. Georgeencarou-ocomsuspeição. —Bem, eu podia conseguir ele por seiscentos pacotes. Os velhos que são donos dele tão completamente quebrados, e a velha precisa fazer uma operação. Mas me
dizaqui...Oquequevocêtemcomisso?Vocênãotemnadaavercomagente. —Eu não sirvo pra muita coisa com uma mão só — disse Candy. — Perdi a mão direita aqui mesmo na fazenda. Por isso me deram esse serviço de varrer. E me deram duzentos e cinqüenta dólares porque eu perdi minha mão. E tenho mais cinqüenta que poupei lá no banco. Isso faz trezentos. E tenho mais cinqüenta no fim do mês. Vou lhe dizer... — Inclinou-se ansioso para a frente. — E se eu fosse com vocês? São trezentos e cinqüenta pacotes que eu botava no bolo. Não sirvo pra muita coisa, mas podia cozinhar, cuidar das galinhas e tomar conta da horta. Quetal? Georgesemicerrouosolhos. —Tenhoquepensar.Agentesempreimaginouessenegóciosozinhos. —Faço um testamentoedeixo minha partepra vocês seeu bater asbotas,já que eu não tenho parentes nem nada. Vocês têm algum dinheiro? Quem sabe a gente podiafazeronegóciologo. Georgecuspiunochãocomdesagrado. — Nós dois juntos temos dez pacotes. — Depois disse, refletidamente: — Olha, se eu e Lennie trabalharmos um mês sem gastar nada, vamos ganhar cem pacotes. A gente ia ter quatrocentos e cinqüenta ao todo. Aposto que com isso a gente pode segurar ela. Aí você e Lennie começam a trabalhar lá e eu consigo um empregoprapagaroresto.Evocêspodemvenderovosecoisasassim. Os três ficaram em silêncio, entreolhando-se surpresos. O sonho em que nunca haviam acreditado realmente estava se tornando realidade. Foi com reverência que Georgedisse: — Puxa!Apostoqueagentepodiasegurarosítio. —Seus olhosestavam cheiosdeassombro. —Aposto queagentepodia —murmurou. Candysentou-senabeiradadocatreecocounervosamenteseucotodepunho. — Faz quatro anos que perdi a mão — disse. — Não demora muito e eles me botam pra fora. Logo que eu não conseguir mais varrer os alojamentos, vão me botar na rua. Quem sabe se eu dando a vocês o meu dinheiro, vocês me deixam cuidar da horta, mesmo quando eu não servir mais pra isso? Eu lavo os pratos, cuido das galinhas, coisas assim. Mas vou estar na nossa casa, trabalhando na nossa propriedade. — Acrescentou lastimosamente: — Viram o que fizeram com o meu cachorro essa noite? Disseram que já não servia pra ele mesmo nem pra ninguém. Quando me expulsarem daqui eu bem queria que alguém me desse um tiro. Mas ninguém vai fazer isso. Eu não vou ter lugar nenhum pra ir nem vou conseguir nenhum emprego. Vou ter mais trinta dólares quando vocês tiverem prontos pra partir. Georgeselevantou. —Vamos comprar o lugar— disse. — Vamosconsertar aquele velho lugarzinho e a gente vai viver lá. — Sentou-se de novo. Todos se sentaram, imóveis e enfeitiçados com a beleza do plano, cada mente projetando-se no futuro em que a adorávelrealidadefosseconcretizada. —Já imaginaram se chegar um circo na cidade, ou tiver uma festa ou um jogo de bola,ouqualqueroutracoisa? —disseGeorge,divagando.
OvelhoCandybalançouafirmativamenteacabeça. —Não temos que perguntar a ninguém se a gente pode ir ou não — disse George. — É só resolver ir e lá vamos nós. Ordenhamos a vaca, damos milho às galinhasepartimospracidade. —E damos comida prós coelhos — interrompeu Len-nie. — Nunca que eu vou esquecerdedarcomidapraeles.Quandoéqueagentevaifazerisso,George? —Em um mês. Em um mês, nem mais nem menos. Sabem o que que eu vou fazer? Vou escreverprós velhosdonosdo lugar e dizer que a gentevai comprar ele. ECandyvaimandarcemdólaresdesinal. —Vousim— disseCandy. —Temumbomfogãonacasa? —Claro.Umótimofogãopracarvãooulenha. —Vou levar o meu cachorro — disse Lennie.— Aposto que ele vai gostarde lá, apostomesmo. Vozesseaproximavam,vindasdoladodefora. — Não falem disso pra ninguém — disse George rapidamente. — Só nós três vamos saber. Nós três e ninguém mais. Eles são capazes de pôr a gente pra fora só pra não juntarmos o dinheiro. Vamos continuar como se a gente fosse carregar sacos de cevada o resto da vida. Então um dia, de repente, pegamos o dinheiro e damosofora. LennieeCandyassentiramcomacabeça,rindodeliciados. —Nãocontapraninguém—disseLennieparasimesmo. —George—disseCandy. —Hã? —Eu devia ter matado o meu cachorro eu mesmo. Não devia deixar outra pessoafazerisso. A porta se abriu. Slim entrou, seguido de Curley, Carl-son e Whit. As mãos de Slim estavam negras de alcatrão, e seu rosto se mostrava fechado. Curley seguia-o muitodeperto. —Bom,eunãopergunteiaquilopormal— disseCurley. —Mas tá me perguntando vezes demais. Já tou ficando cheio disso. Se não conseguecuidardessamalditamulher,que que você quer queeu faça?Medeixa em paz. —Sótoulhedizendoquenãofizpormal—disseCurley. —Sópenseiquevocê podiatervistoela. —Por que não diz pra ela ficar no raio da casa, que é onde ela devia estar? — disse Carlson. — Você deixa ela bater pernas pelos alojamentos! Assim você vai ter problemasedepoisnãovaipoderfazernada. —Fica fora disso, a não ser que você queira ir lá pra fora — disse Curley, encarandoCarlson. Esteriu. — Você é um covarde — disse. — Quis assustar o Slim e não conseguiu nada. Ele é que te assustou.Vocêé covarde feito uma galinha.Pouco me importa se você éomelhor peso-levedaregião.Temetecomigoearrancoessacabeçaapontapés.
Candyjuntou-seaoataquecomalegria. — Luva cheia de vaselina — disse, com ar de nojo. Curley olhou-o com raiva, mas seus olhos passaram pelo velho e brilharam ao se deterem em Lennie. Este aindasorria,deliciadoanteaidéiadolugarqueeleeosamigoscomprariam. Curleyseaproximoudelecomoumcãodecaça. —Vocêtárindodequê?Lennie lançou-lheumolharvazio. —Hã? AraivadeCurleyexplodiu. — Vamos, seu ordinário de uma figa! Levanta. Nenhum filho da puta vai rir de mim!Voutemostrarquemécovarde. Lennie olhou para George, indefeso. Então levantou-se e tentou recuar. Curley já oscilava na ponta dos pés, numa atitude de boxeador. Golpeou Lennie com a esquerdaedepoisdesferiu-lheum soco nonarizcomadireita.Lenniedeu um grito deterror.Osanguejorrou-lhedonariz. — George! —gritou. —Dizpraelemedeixarempaz, George! Foi recuando até que Curley o acuou contra a parede, golpeando-o no rosto. Atemorizado demais para defender-se, Lennie mantinha as mãos imobilizadas ao longodocorpo. Georgeergueu-se,gritando: — Batenele,Lennie!Nãodeixaelefazerisso! Lenniecobriuorostocomasmanoplasegritou,aterro rizado: — Fazeleparar,George! Então,Curleydeu-lheumsoconoestômago,cortando-lhearespiração. Slimergueu-sedeumsalto. — Esseratonojento! —exclamou.— Deixaqueeupegoele! GeorgeestendeuasmãoseagarrouSlim. — Espera um minuto. — Pôs as mãos em concha em torno da boca e berrou: —Batenele,Lennie! Lennie tirou as mãos do rosto e olhou para George. Curley socou-lhe os olhos. OrostograndedeLennieestavacobertodesangue. Georgegritou denovo: — Eudisseprabaternele,Lennie! O punho de Curley girava no ar quando Lennie estendeu a mão para pegá-lo. No minuto seguinte, Curley saltava e coleava no ar como um peixe no anzol, o punhofechadoperdidonagrandemãodeLennie.Georgecorreu parapertodeles. — Largaele,Lennie!Larga! Mas Lennie olhava aterrorizado o homenzinho contor-cendo-se que segurava. O sangue lhe escorria do rosto grande, um de seus olhos estava cortado, fechado. George esbo-feteou-o várias vezes sem que Lennie soltasse o punho fechado de Curley. Este estava branco e encolhido agora, lutando fracamente para livrar-se. Continuavadepé,chorando,opunhoperdidonamanoplafechada. — Larga a mão dele, Lennie! Larga! — gritou George inúmeras vezes. — Slim, vemmeajudarenquantoessecaraaindatemmão.
Subitamente, Lennie soltou o punho de Curley. Encolheu-se acovardado contra aparede. — Vocêmedisseprafazerisso,George— disse,infeliz. Curley sentou-se no chão, olhando assombrado para a mão esmagada. Slim e Carlson curvaram-se sobre ele. O ar-rieiro empertigou-se e olhou Lennie com horror. —Vamos ter que levar ele no médico. Acho que todos os ossos da mão foram quebrados. —Eunãoqueria... —chorouLennie. — Eunãoqueriamachucarele. —Carlson, prepara a charrete das provisões. Vamos levar ele até Soledad e dar um jeito nisso. — Carlson disparou porta afora. Slim voltou-se para Lennie, que choramingava: — Não foi culpa sua — disse. — Esse porcaria tava procurando isso.Minhanossa!Elequaseficousemmão! Slim saiu correndo e voltou no momento seguinte com uma caneca de metal cheiadeágua.Levou-aaoslábiosdeCurley. — Slim, será que a gente vai ser posto pra fora? — perguntou George. — Precisamosdedinheiro.SeráqueovelhodoCurleyvainosbotarpra fora? Slimsorriuobliquamente.Entãoajoelhou-seaoladodeCurley. —Tá podendo conversar? — perguntou. O outro balançou a cabeça afirmativamente. — Então escuta. Eu acho que você prendeu a mão numa máquina.Senãofalarpra ninguém o queaconteceu,nóstambémnão falamos.Mas se tentar botar esses caras na rua, então vamos contar pra todo mundo e todos vão rirdevocê. —Nãovoucontarpraninguém—disseCurley,evitandoolharparaLennie. Osomdasrodasdacharretechegouatéeles.SlimajudouCurleyasepôrdepé. — Vamos.Carlsonvaitelevarnummédico. AjudouCurleyachegaratéoveículo.Osomdasrodas morreu na distância. Slim voltou imediatamente àcasados peões eencarou Lennie, aindaamedrontadoeencolhidojuntoàparede. — Deixaeuversuasmãos— disseSlim. Lennieesticou-as. — SantoDeus,nãoqueroquesezanguecomigonunca! — disseSlim. Georgeinterrompeu-o: — Lennie só tava com medo — explicou.— Não sabiao que fazer.Eu te disse hojequeninguémdeviabrigarcom ele.Não,achoqueeudisseissofoiproCandy. Candyconcordousolenemente. — Foi isso mesmo — disse. — Hoje mesmo de manhã, quando Curley quis engrossar pela primeira vez com o seu amigo, você me disse: "É melhor ele não brincarcomoLennie, senãovaisedarmal".Foiissomesmoquevocêmedisse. Georgevirou-separaLennie. — A culpa não foi sua. Não precisa mais ficar com medo. Você só fez o que eu mandei.Émelhorirnobanheiro elavarorosto.Vocêtácomumacara horrível. Lenniesorriucomabocamachucada. —Eunãoquerianenhumaconfusão — disse.Caminhouparaaporta,masantes
desairvirou-separa oamigo.— George? —Oqueé? —Euaindavoupodercuidardoscoelhos,George? —Claro.Vocênãofeznadadeerrado. —Eunãoqueriamachucarninguém,George. —Tá bem.Vainobanheiroelavaorosto.
4
O catre de Crooks, o peão negro, ficava no quarto dos arreios; um pequeno depósito junto à parede do celeiro. Num dos lados do aposento via-se uma janela quadrada composta de quatro vidros e, no outro, uma estreita porta de tábuas conduzia ao celeiro. A tarimba de Crooks era um caixote comprido e cheio de palha, sobre o qual se estendiam seus cobertores. De alguns pregos de madeira na parede junto à janela pendiam arreios quebrados, precisando de conserto. De outros, tiras de couro novo. Numa bancada sob a janela dispunham-se ferramentas para o trabalho no couro, facas curvas, agulhas, novelos de fio de linho e um pequeno rebi-tador. Pendurados nos pregos havia também pedaços de arreios, uma coleira rasgada que mostrava o enchimento de crina, uma peiteira partida e um conjunto de tirantes com o forro de couro também dilacerado. Crooks também tinha a caixa de maçãs pregada acima do catre; havia nela uma fileira de remédios, tanto para ele quanto para os cavalos. Na prateleira viam-se também latas de graxa para arreios e uma lata suja de alcatrão com o pincel destacando-se junto à borda. Pelo chão espalhavam-se inúmeros objetos pessoais. Por morar sozinho, Crooks podia deixar suas coisas desarrumadas; sendo peão do estábulo e aleijado, tinha um lugar maispermanenteque os outrosnafazenda. Assim,acumularamais objetosdo quelheseriapossívelcarregarnascostas. Possuíaváriosparesdesapatos,umpardebotasdeborracha,umgranderelógio despertador e uma espingarda de cano simples. E livros também: um surrado dicionário e um maltratado código civil da Califórnia do ano de 1905, além de revistas velhas e alguns livros sujos numa prateleira especial sobre o catre. Também sobre este, pendurado num prego na parede, via-se um par de grandes óculos com arodeouro. O quarto estava varrido e bastante limpo, pois Crooks era um homem altivo e orgulhoso. Mantinha distância dos outros e exigia o mesmo para si. Tinha o corpo curvado para a esquerda, devido a espinha aleijada, e os olhos tão profundamente encravados nas órbitas que davam a impressão de brilhar com intensidade. Seu rosto magro, cortado por profundas rugas escuras, tinha lábios finos e tensos pelo sofrimento,maispálidosqueorosto. Era noite de sábado. Pela porta aberta que levava ao celeiro vinha o som de cavalossemovendo,patassearrastando,dentes mastigando ofeno,alémdotilintar das correntes dos cabrestos. Um pequeno globo de luz elétrica iluminava mortiçamenteoquartodopeão. Sentado no catre, Crooks tinha as fraldas da camisa para fora das calças, nas costas. Com uma das mãos segurava um vidro de linimento e com a outra esfregava a espinha. De vez em quando colocava mais algumas gotas do remédio na palma cor-de-rosa e deslizava a mão sob a camisa para esfregar a espinha de novo.Entãoflexionavaosmúsculosdascostaseestremecia. Sem ruído, Lennie surgiu pela porta aberta e ficou ali, parado na soleira, olhando para dentro, os grandes ombros preenchendo quase totalmente a abertura.
Por um momento, Crooks não o viu; depois, erguendo os olhos, enrijeceu o corpo efechouacara paraorapaz.Suamãosaiudedentrodacamisa. Lenniesorriuindefeso,numatentativadecordialidade. — Você não tem nenhum direito de entrar aqui no meu quarto — disse Crooks asperamente. —Essequartoémeu. Ninguémtemnenhumdireitosobreele,sóeu. Lennieengoliuemsecoeseusorrisotornou-semaisamigável. — Não tou fazendo nada — disse. — Só vim olhar o meu cachorro. Aí, eu vi a sualuz — explicou. —Bom, eu tenho direito de ter uma lâmpada. Pode dar o fora do meu quarto. Ninguémmequerlánoalojamentoeeutambémnãoqueroninguémaqui. —Porquenãotequeremlá?—perguntouLennie. —Porque sou preto. Eles jogam cartas lá, mas eu não posso jogar porque sou preto. Eles ficam dizendo que cheiro mal. Pois vou te dizer, pra mim vocês todos fedem. Lennieagitouasmãos,desamparado. —Todomundofoipracidade— disse.— SlimeGeorgeetodooresto.George dissepra euficaraquienãomemeteremconfusão.Aíeuvisualuz. —Bom.Quequevocêquer? —Nada... sóviasualuz.Penseiqueeupodiaentrarumpoucoemesentar. Crooks olhou Lennie fixamente. Depois, estendeu a mão para trás, pegou os óculose,ajustando-osnasorelhas rosadas,tornouaolharfixamenteooutro. —De qualquer modo, não sei o que que você tá fazendo no celeiro — lamentou-se.— Você não é arrieiro. Não há nenhum motivo pra um carregador de sacosentrarnoceleiro.Vocênãoéarrieiro,nãotemnadaquevercomoscavalos. —Ocachorrinho— repetiuLennie. —Vimveromeucachorro. —Bom,entãovaiveroseucachorro.Nãoentranumlugarondenãotequerem. O sorriso desapareceu do rosto de Lennie. Avançou um passo para dentro do quarto,masdepoisselembroudoqueforaditoerecuounovamenteparaaporta. —Euolheielesumpouco.Slimdissequeeunãodevofazermuitafestaneles. —Ora, você fica tirando eles da palha o tempo todo. Não sei por que a cadela nãobotaelesemoutrolugar. —Ah, ela não se importa. Eladeixa eu ficar com eles. — Lennie tornara a entrar noquarto. Crooksfechouacara,masosorrisodesarmantedeLennieoderrotou. — Entra e senta um pouco — disse Crooks. — Já que não vai embora e me deixa em paz, entra e senta. — Seu tom era um pouco mais amigável.— Todos os rapazesforampra cidade,hem? — Todos menos o velho Candy. Ele fica lá sentado no alojamento, fazendo pontanolápis,fazendocontas. Crooksendireitouosóculos. —Contas?Quecontas?Lenniequasegritou: —Doscoelhos.
—Vocêémaluco—disseCrooks. — Doidovarrido.Dequecoelhotáfalando? —Os coelhos que a gente vai ter. Eu vou cuidar deles e dar alfafa e água pra eles,coisasassim. —E doido — disse Crooks. — Esse seu companheiro faz bem em querer te esconder. —Não é mentira — disse Lennie serenamente. — A gente vai ter essas coisas. Comprarumlugarzinhoevivernobem-bom. Crooksajeitou-semaisconfortavelmentenocatre. — Senta — convidou.— Sentaalinobarrildepregos. Lenniesentou-seencolhidonopequenobarril. — Você acha que é mentira, mas não é. Tudo que eu disse é verdade, pode perguntarproGeorge. Crookspousouoqueixoescuronapalmadamãorosada. —VocêviajacomoGeorge,nãoé? —Ésim.Eueelevamospra todapartejuntos. —Às vezes ele fala e você não sabe do que que ele tá falando, não é? — continuou Crooks. Inclinou-se para a frente, cravando em Lennie os olhos profundos. —Nãoéassim? —É... àsvezes. —Elefalaefalaevocênemsabedoquesetrata,hem? —É... àsvezes.Masnemsempre. Crookscurvou-separaafrente,sobreabordadocatre. — Não sou um preto do sul — disse. — Nasci aqui na Califórnia. Meu velho tinha uma criação de galinhas, uns três hectares. Os garotos brancos vinham brincar em nossa propriedade, às vezes eu brincava na deles e alguns eram bem simpáticos. Meu velho não gostava daquilo. Eu não soube, até muito mais tarde, porqueelenãogostava.Masagorasei. —Hesitoue,quandotornouafalar,suavozeramaissuave. —Nãotinhaoutrafamíliadepretosporali.Eagora não temoutropretonessa fazenda,esótemumafamíliaemSoledad.— Riu.— Quandoeufaloalguma coisa,ora,ésóumcrioulofalando. — Quanto tempo leva prós filhotes ficarem bastante grandes pra gente poder fazerfestaneles? — perguntouLennie. Crooksriunovamente. — Um cara pode falar o que quiser com você e ter certeza de que você não vai bater com a língua nos dentes. Mais umas duas semanas e os cachorros já tão crescidos. George sabe o que faz. Fala, fala, e você não entende nada. — Inclinouse para a frente, animado. — Quem tá falando é só um crioulo, um crioulo com as costas quebradas. Por isso não tem importância nenhuma, entende? Seja lá como for, você não vai se lembrar mesmo. Já vi isso muitas vezes... um cara falando com outro e não faz nenhuma diferença se o outro tá entendendo ou escutando. — Sua animação aumentara a ponto de ele golpear o joelho com a mão. — Georgepode lhe dizer qualquer besteira que não importa. É falar por falar. É só pela companhia.
Sóisso. —Fezumapausa. Suavoztornou-sesuaveepersuasiva. — E se o George não voltar mais? Se ele botar o pé na estrada e não voltar mais?Quequevocêvaifazer? AatençãodeLenniefoigradualmenteatraídapara oqueestavasendodito. —Oquê? —Eu disse: imagina que o George foi pra cidade essa noite e você nunca mais vai ter notícias dele. — Crooks antegozou aquela espécie de vitória particular. — Imaginasó —repetiu. —Ele não vai fazer isso — exclamou Lennie. — George nunca ia fazer uma coisa assim. Tou com George há muito tempo. Ele volta essa noite... — A dúvida, contudo,foiinsuportávelparaLennie.— Achaqueelevolta? OrostodeCrooksiluminou-sedeprazeranteatorturadooutro. — Ninguém pode dizer o que um cara vai fazer — observou calmamente. — Faz de conta que ele quis voltar e não pôde. Faz de conta que foi assassinado ou feridoenãopôde voltar. Lennielutouparaentender. —George não vai fazer nada disso — repetiu.— George é cuidadoso. Nâo vai seferir.Nãovaiseferirnuncaporqueécuidadoso. —Bom,masimaginasóseelenãovolta... quequevocêvaifazer? OrostodeLennieenrugou-sedeapreensão. — Nãosei.Masporquevocêtáfazendoisso? —gritou. — Nãoéverdade.Georgenãovaiseferir. Crooksfitou-ocomosolhosperfurantes. — Quer que eu digo o que ia acontecer? Iam te levar pro hospício e amarrar umacoleiranoseupescoço,comoum cachorro. Subitamente, os olhos de Lennie imobilizaram-se, furiosos. Ele se levantou e andouperigosamentenadireçãodeCrooks. — QuemquemachucouoGeorge? —perguntou. O negro viu o perigo que se aproximava. Recuou da borda do catre, saindo da frente. — Eu só tava imaginando — disse. — George não tá ferido. Ele tá bem. Ele vaivoltarlogo. Lennieagigantou-sediantedele. — Por que que você tá imaginando? Ninguém vai imaginar que George tá ferido. Crookstirouosóculoseesfregouosolhoscomosdedos. — Senta — disse. —Georgenãotáferido. Resmungando,Lennievoltouasentar-senobarrildepregos. —NinguémvaificarfalandoqueGeorgetáferido. —Acho que agora você entende — disse Crooks suavemente. — George é seu amigo. Você sabe que ele vai voltar. Mas imagina se você não tivesse ninguém. Imagina se não pudesse entrar no alojamento e jogar cartas porque é preto. Que
que acha disso? Imagina se tivesse que sentar aqui e ler livros. Livros não servem. Um sujeito precisa de companhia. O cara fica maluco se não tiver companhia — lamentou-se. — Não tem importância quem é o outro, se ele te faz companhia. Vou te dizer — gritou —, às vezeso sujeito se sente sozinhodemais. Ficaatédoente de tanto se sentirsó. —George vai voltar — Lennie se tranqüilizou, numa voz assustada. — Vai ver queeleatéjávoltou.Achomelhoreuirdarumaolhada. —Eu não tava querendo te assustar — disse Crooks. — Ele vai voltar. Eu tava falando sobre mim mesmo. O sujeito fica aqui sozinho, sentado, todas as noites, às vezeslendolivros,pensando,oucoisasassim.Asvezeseleficapensandoenãotem ninguém pra dizer pra ele se isso é assim ou assado. Às vezes ele pode ver alguma coisa, mas não sabe se está certo ou não. Não pode se virar pra outro cara e perguntar se ele tá vendo a coisa também. Como que a gente pode saber, se não tem ninguém pra perguntar? Tenho visto coisas aqui. E não tava bêbado. Não sei é se tava dormindo. Se eu tivesse um cara perto de mim, ele podia dizer se eu tava dormindoeentãotavatudobem.Maseunãosei. Crooksolhavapelajanelaagora. — George não vai embora e me deixar — disse Lennie tristemente. — Eu sei queelenãoiafazerisso. Opeãodoestábulocontinuou,numtomsonhador: — Me lembro quandoeu era garoto na granjado meuvelho.Tinha doisirmãos. Tavam quase sempre perto de mim, quase sempre. A gente costumava dormir no mesmo quarto, na mesma cama... todos os três. Tinha um morangal. Uma plantação de alfafa. A gente costumava soltar as galinhas na plantação de alfafa nos dias de sol. Meus irmãos sentavam na cerca e ficavam lá olhando pra elas... eram galinhasbrancas. Aospoucos,ointeressedeLennieconcentrou-senoqueooutrodizia. —Georgefalouqueagentevaiteralfafapróscoelhos. —Quecoelhos? —Vamostercoelhosemorangos. —Tá maluco. —Vamos,sim.PerguntaproGeorge. —Tá maluco.— Crooks falou com escárnio.— Tenho visto bandos de homens que chegam da estrada pra trabalhar nas fazendas com a trouxa nos ombros e o mesmo diabo de idéia na cabeça. Milhares. Chegam, vão embora e fazem a mesma coisa ali adiante. Cada um deles com a mesma idéia na cabeça, ter um pedaço de terra. E nunca nenhum desses desgraçados conseguiu coisa alguma. É como querer o céu. Todo mundo quer um pedaço de terra. Já li um monte de livros aqui. Ninguém consegueocéu nem um pedaço de terra. Tá só na cabeça deles.Tão todo otempofalandonisso,mastásónacabeçadeles. Fez uma pausa e olhou pela porta aberta, pois os cavalos se moviam inquietamente,fazendotilintarascorrentesdoscabrestos.Umcavalorelinchou.
— Acho que tem alguém lá fora — disse Crooks. — Talvez seja o Slim. Ele às vezes entra duas, três vezes por noite. Slim é um arrieiro de primeira. Cuida bem dosanimais. Pôs-sedolorosamentedepéecaminhouatéaporta. —Évocê,Slim?—gritou.AvozdeCandyrespondeu: —Slimfoipracidade.Mediga,vocêviuoLennie? —Aquelecara grandalhão? —É.Viueleporaí? — Tá aquimesmo —disseCrooks,lacônico.Voltoupara seucatreedeitou-se. Candy permaneceu na soleira da porta, cocando o toco do punho e olhando às cegaspara oquartoiluminado.Nãofeznenhumatentativadeentrar. — Voutedizer,Lennie.Tavapensandonaquelescoelhos. —Podeentrar,sequiser— disseCrooks,irritado.Candypareciaconstrangido. —Nãosei.Massevocêquerqueeuentre... — Entra. Todo mundo tá entrando, você pode entrar também. — Era difícil paraCrooksesconderoprazersob omantodaraiva. Candyentrou,masaindaembaraçado. —Você tem um lugarzinho confortável aqui — disse a Crooks. — Deve ser bomterumquartosópra você. —Claro— disse Crooks. — E um monte de estéreo debaixo da janela. É muito bommesmo. — Vocêtavafalandodoscoelhos — interrompeuLennie. Candyseencostouàparede,juntodacoleirarasgada,e cocouocotodopunho. — Já tou aqui na fazenda faz um tempão — disse. — E Crooks tá aqui faz um tempãotambém.Masessaéaprimeiravezqueeuentronessequarto. — Os rapazes não gostam muito de entrar no quarto de um preto — disse Crooks,sombrio. — Ninguémvemaqui,sóoSlim.Slimeopatrão. Candymudoudeassuntorapidamente. —Sliméomelhorarrieiroqueeujávi.Lennieseinclinouparao velho. —Oscoelhos— insistiu.Candysorriu.
—Já pensei no caso. A gente pode ganhar dinheiro com os coelhos se fizer a coisacerta. —Mas eu tenho que cuidar deles — interveio Lennie. — George disse que eu é quevoucuidardeles.Eleprometeu. Crooksinterrompeu-obrutalmente. — Vocês tão só se enganando. Vão falar o tempo todo nisso, mas não vão conseguir terra nenhuma. Candy, você vai ser um varredor aqui até te levarem num caixão. Puxa, eu já vi muitos sujeitos assim. O Lennie vai dar o fora e cair na estrada em duas, três semanas. Parece que todo mundo tem um pedaço de terra na cabeça.
Candyesfregouorosto,zangado. —Você pode ter certeza, como dois mais dois dá quatro, que a gente vai compraraterra.Georgejádisse.Agentejátemodinheiro. —Ah é? — disse Crooks. — E onde tá o George agora? Na cidade, lá no puteiro. E pra lá que o dinheiro de vocês tá indo. Meu Deus, já vi isso acontecer muitas vezes. Já vi caras demais com terra na cabeça. Só que não conseguem nunca pôramãonela. —Claro que todos querem isso — gritou Candy. — Todo mundo quer um pedacinhode terra,não muito. Algumacoisaque seja nossa. Umlugar ondea gente possa viver sem ser botado pra fora. Eu nunca tive nada assim. Já plantei pra quase todos os desgraçados deste estado, mas não eram safras minhas; e quando eu fazia a colheita, ela não era minha. Mas agora isso vai mudar, pode ter certeza. George não levou o dinheiropra cidade. Ele tá no banco. Eu, Lennie e George. A gente vai ter um lugarzinho pra nós. E um cachorro e coelhos e galinhas. E também milho verde e quem sabe até uma vaca ou uma cabra. — Parou, dominado pelo quadro quepintava. —Vocêdizquetemodinheiro?— perguntouCrooks. —Palavra. Temos quase todo ele. Só falta um pouquinho. Vamos ter ele todo nummês.EGeorgejáescolheuaterratambém. Crooksdobrouobraçoparatráseexplorouaespinhacomamão. —Nunca vi um cara conseguir isso — disse. — Já vi caras ficarem quase malucos por causa de terra, mas a cada vez o bordel ou o baralho tirava tudo deles. — Hesitou. — Se vocês... quiserem alguém pra trabalhar por nada... só por casa e comida... eu podia dar uma mão. Sou aleijado, mas posso trabalhar como um filho daputa,sequiser. —AlgumdevocêsviuCurley? Rapidamente as cabeças se viraram para a porta. Parada ali, a mulher de Curley olhava para dentro. O rosto muito pintado, os lábios um pouco entreabertos. Ela ofegavacomosetivessecorrido. — Curleynãoteveaqui —disseCandy,áspero. Ela continuou parada na soleira, sorrindo levemente para eles enquanto esfregava as unhas de uma mão com o pole-gar e o indicador da outra. Seus olhos iamdeumhomemaoutro. — Só ficaram os fracotes — disse afinal. — Acham que eu não sei pra onde foram?AtéoCurley.Seimuitobem praondeforam. Lennie a contemplava, fascinado. Candy e Crooks, entretanto, fechavam a cara, evitandoosolhosdamulher. —Sesabe,porquequetáperguntando? — disseCandy. Elaosencaroucomardivertido. —Engraçado — disse. — Se dou de cara com um homem e ele tá sozinho, me entendo muito bem com ele. Mas quando se juntam dois, já não querem falar comigo. Ficam logo emburrados. — Pôs as mãos nosquadris. — Vocês têm é medo uns dos outros, isso sim. Cada um tem medo do que o outro possa fazer contra
ele. —É melhor a senhora voltar logo pra casa — disse Crooks, depois de um momentodesilêncio.— Agentenãoquerconfusão. —Ora,queconfusãoeutoufazendo?Achaquenãogosto deconversarcom alguémdevezemquando?Achaquegostodeficarenfiadanaquelacasaotempo todo? Candy descansou o coto do punho no joelho e esfregou-o suavemente com a mão. — A senhora tem marido — disse, acusador. — Não de via estar por aí se metendocomoutrossujeitos,causando problemas. Amoçaseencolerizou. — Claro que tenho marido! Todos vocês já viram. Sujeito formidável, não é? Passa o tempo todo dizendo o que que vai fazer com os caras que detesta. E ele detesta todo mundo. Acham que vou ficar naquela casinhola ouvindo o Curley dizer que faz e acontece? "Agora meto neleuma canhota, depois um direto e o cara desaba. É só usar o velho um-dois e o cara despenca no chão." — Fez uma pausa. O ar zangado desapareceu de seu rosto, transformando-se em interesse: — Me digam... oquequehouvecomamãodo Curley? Houve um silêncio embaraçado. Candy deu uma olha-dela para Lennie. Depois tossiu. — Ora... eleprendeuamãonumamáquina.Rebentouela. Elaoobservouporum momentoedepoisriu. —Besteira! Acham que conseguem me tapear? Curley foi buscar lã e saiu tosquiado. Prendeu a mão numa máquina! Que besteira! Bom, ele não tem usado o velhoum-doisdesdequearrebentouamão.Quemfezisso? —Eleprendeuamãonamáquina—repetiuCandyobstinadamente. —Tá bem — disse ela com desprezo. — Tá bem, pode encobrir ele se quiser. Pouco me importo. Vocês acham que são formidáveis. Tão pensando que eu sou criança, é? Pois fiquem sabendo que eu podia estar no palco, fazendo shows. E um sujeito me disse que podia me pôr nos filmes... — Estava sem fôlego de indignação. — Noite de sábado. Todo mundo fora de casa, fazendo alguma coisa. Todo mundo! E eu aqui parada, conversando com um bando de peões ordinários... um crioulo, um doido e um velho piolhento. E até gostando, porque não sobrou maisninguém. Lennie a contemplava com a boca meio aberta. Crooks se refugiara na terrível dignidade protetora dos negros. No velho Candy, contudo, uma mudança se processou. Ergueu-se subitamente, atirando para trás o barril em que estava sentado. — Já chega — disse, zangado. — Ninguém quer a senhora aqui. A gente disse pra não vir. E vou lhe dizer, a senhora tem idéias muito erradas sobre a gente. Não tem nenhum miolo nessa cabeça oca pra ver que não somos peões ordinários. Se botar a gente na rua, não pensa que vamos atrás de outro emprego porcaria como esse. A senhora não sabe, mas a gente já tem a nossa própria terra pra ir, a nossa própria
casa. Não tem que ficar aqui. A gente tem casa, galinhas, pés de fruta e um lugar milhares de vezes mais bonito que esse. E tem amigos também, sabia? Bom, já houve tempo que a gente tinha medo de ser botado pra fora, mas agora não temmais. Conseguimos o nosso pedaço de terra e é bem nosso. E podemos ir pra lá. AmulherdeCurleydeuumarisada. — Besteira — disse. — Já vi muitos sujeitos como vocês. Se tivessem um poucodegaitatomavamlogoumporreeficavamavernavios.Euconheçovocês. O rosto de Candy tornava-se cada vez mais vermelho. Antes de a mulher terminardefalar,porém,elejásecontrolara.Agora dominavaasituação. — Eu devia saber... — disse suavemente. — Acho que é melhor a senhora ir cantar noutra freguesia. A gente não tem nada pra dizer pra senhora. A gente sabe o que conseguiu e nãose importa se os outros sabem ounão. Acho que é melhor ir dando o fora, porque o Curley não vai gostar de ver a mulher dele aqui no celeiro juntocomos"peõesordinários". Ela olhou de um para o outro, os três semblantes fechados contra ela. Olhou mais longamente para Lennie, fazendo com que este baixasse os olhos, embaraçado. — Ondefoiquevocêmachucouacaradessejeito? —perguntousubitamente. Lennieergueuumolharculpado. —Quem.Eu? —É,você. Lennie olhou para Candy em busca de ajuda; depois voltou a olhar para o própriocolo. — Eleprendeuamãonumamáquina — disse. AmulherdeCurleyriu. —Tá bem,Máquina.Falocontigomaistarde.Eugostodemáquinas. —Deixa esse sujeito em paz — interrompeu Candy. — Não se mete com ele. Vou falar pro George o que que a senhora disse. Ele não vai gostar de saber que tá semetendocomLennie. —QueméGeorge?— perguntouela.— Ohomenzinhoqueveiocomvocê? Lenniesorriu,feliz. —É esse mesmo — disse. — E esse mesmo. E ele vai me deixar cuidar dos coelhos. —Bom,seéissoquevocêquer,eumesmapossotearranjarunsdoiscoelhos. Crookslevantou-sedocatreeencarou-a. — Agora chega — disse friamente. — A senhora não temdireito nenhum de ir entrando aqui no quarto de um preto. Não tem direito de ficar zanzando por aqui, não tem mesmo. A senhora trata de sair. E trata de sair logo. Senão, vou pedir pro patrãonãodeixarmaisasenhora entraraquino celeiro. Elasevirouparaelecomdesprezo. — Escuta aqui, crioulo. Sabe o que eu posso te fazer se você não fechar essa matraca?
Crooksolhouparaela,indefeso;depoissentou-senocatreeseencolheu. Elaseaproximoudele. — Sabeoqueeupodiafazer? Crookspareceuficarmenor.Encolheu-seaindamaisjuntoàparede. —Sim,senhora. —Bom, então fica no seu lugar, crioulo. Eu podia mandar te enforcarem numa árvore,masétãofácilquenemtemgraça. Crooks reduzira-se a nada. Não havia mais nele personalidade ou ego, nada que despertassegostooudesgosto. — Sim,senhora — disse,numavozsemsom. Por um momento ela continuou de pé diante dele, como se esperasse que se movesse para poder fustigá-lo de novo. Mas Crooks permaneceu sentado e totalmente imóvel, os olhos desviados dela, escondendo dentro de si tudo o que poderiatorná-lovulnerável.Amulhervirou-seafinalparaosoutrosdoishomens. OvelhoCandyaobservava,estarrecido. —Se a senhora fizer isso, a gente vai contar — disse ele brandamente. — Vai contarquetáinventandocalúniascontra oCrooks. —Podem contar e vão pro inferno — gritou ela. — Ninguém ia acreditar em vocêsevocêsabemuitobemdisso.Ninguémianemescutar. Candymurchou. —Não... Ninguémiaescutar. —EuqueriaqueoGeorgetivesseaqui— choramingouLennie.—Queriaqueo Georgetivesseaqui. Candyseaproximoudele. — Não fica aflito, não — disse. — Acabei de ouvir os rapazes chegando. George deve estar lá no alojamento, aposto. — Voltou-se para a mulher de Curley. — É melhor ir pra casa — disse com suavidade. — Se a senhora for agora, a gente nãodizaoCurleyqueteveaqui. Elaoexaminoufriamente. —Nãoseiseelesvoltarammesmo.Nãoouvinada. —É melhor não se arriscar — disse ele. — Se a senhora não tem certeza, é melhorirlogo. ElasevoltouparaLennie. — Tou contente porque você arrebentou o Curley um pouquinho. Ele tava procurando.Eumesmatenhovontade dearrebentarele,àsvezes. Deslizou porta afora e desapareceu na escuridão. Enquanto passava pelo estábulo, as correntes dos cabrestos tilinta-ram. Ouviu-se o resfolegar de alguns cavaloseosomdepatascontraochão. Crooks pareceu sair lentamente das camadas de proteção que erguera em torno desi. —Vocêouviumesmoosrapazeschegarem?—perguntou. —Ouvi,sim. —Bom,eunãoouvinada.
—O portão bateu ainda agorinha — disse Candy. — Puxa, a mulher do Curley sabesemoversemfazerbarulho.Achoquedeveterumbocadodeprática. Crooksagoraevitavaoassunto. —É melhor vocês irem também — disse. — Não sei mais se quero vocês aqui. Umpretodeveteralgunsdireitos,mesmoquenãogostedeles. —Aquelacadelanãodeviaterfaladoo quefaloupra você —disseCandy. —Não foi nada — disse Crooks sombriamente. — Vocês entrando aqui e sentandomefizeramesquecer.Oqueeladisseéverdade. Os cavalos resfolegaram no estábulo novamente. As correntes tilintaram e uma vozchamou: —Lennie!Ei,Lennie.Tánoceleiro? —ÉGeorge— gritouLennie.Erespondeulogo: —Aqui,George!Touaqui! Num segundo a silhueta do amigo ocupou a soleira da porta. Ele olhou pelo quartodesaprovadoramente. — QuequetáfazendonoquartodoCrooks?Nãode viaestaraqui. Onegroconcordoucomacabeça. —Eudissepraeles,masquiseramentrarassimmesmo. —Ora,porquequenãobotouelesprafora? —Eunãomeimportei— disseCrooks. —Lennieéumbomsujeito. Candyseanimouderepente. — Ei, George! Andei pensando. Calculei que a gente pode até ganhar algum dinheirocomoscoelhos. Georgefechouacara. —Euachoqueteaviseipra nãofalardissopraninguém. —Mas a gente não falou pra ninguém —disse Candy, desconcertado. — Só pro Crooks. —Bom, tratemdedaro fora daqui —disse George. — Puxa vida, parece que eu nãopossodeixarvocêssozinhosumminuto. CandyeLenniepuseram-sedepéecaminharamparaaporta. — Candy! —chamouCrooks. —Hem? —Lembradoqueeufalei,quepodiatrabalharecoisaetal? —Lembro—disseCandy. —Pois pode esquecer — disse Crooks. — Eu não tava falando sério. Tava só brincando.Nãoiaquererirpraumlugarcomoaquele. — Tá bem.Seéissoquevocêquer... Boanoite. Ostrêshomenssaíramportaafora.Quandopassaram peloceleiro,oscavalosbufaramefizeramtilintarascorrentesdoscabrestos. Crooks sentou-se no catre e olhou a porta por um momento. Depois pegou o vidro de remédio. Puxando a fralda da camisa para fora, colocou um pouco de linimento na palma rosada e, curvando o braço para trás, pôs-se aesfregar as costas lentamente.
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Numa das extremidades do grande estábulo jazia um alto monte de feno; pendurada sobre ele, suspensa de uma rol-dana, via-se a forquilha mecânica de quatro pontas. O feno descia como uma encosta de montanha até o outro extremo do estábulo, havendo um local no chão que ainda não fora preenchido com a nova colheita. Nas partes laterais ficavam as manjedouras, podendo-se ver por entre suas barrasaslus-trosascabeçasdoscavalos. Era a tarde de domingo. Em descanso, os animais mastigavam as folhas de feno que ainda restavam a seu alcance; batiam também com os cascos no solo, mordendo a madeira das manjedouras e fazendo tilintar as correntes dos cabrestos. O sol da tarde penetrava pelas gretas das paredes, iluminando o feno com linhas brilhantes.Ouvia-seozumbidodemoscasnoar,osussurropreguiçosodatarde. De fora vinha o tinir das ferraduras caindo sobre a estaca de ferro e os gritos dos homens, jogando, encorajando, escarnecendo. No estábulo, entretanto, tudo estavaquieto,preguiçoso,tépidoesussurrante. Só Lennie se encontrava ali, sentado no feno, ao lado de um caixote sob uma manjedoura vazia numa das extremidades do celeiro. Sentado, contemplava o cachorrinho morto que jazia diante dele. Olhou-o durante muito tempo; depois, esticouamanoplaeacariciouoanimal,alisando-odacabeçaàcauda. — Por que você teve que morrer? — disse Lennie suave mente para o cachorrinho. — Você não é tão pequeno como um rato. Não te alisei com muita força. — Curvou a cabeça do cachorro para cima, fixou os olhos em seu focinho e disse para ele: — Agora pode ser que George não me deixe cuidar dos coelhos, se eledescobrirquevocêmorreu. Abriu um pequeno buraco na palha, pôs o cachorro ali e cobriu-o com feno, escondendo-o.Mascontinuouaolharomontequefizera. — Não é uma coisa tão ruim eu ter que me esconder no mato. Não. Não é, não — disse. —Contopro George queacheielemorto. Desenterrouocachorroeinspecionou-o.Depois,acariciou-odacabeçaàcauda. — Mas ele vai saber — continuou, tristonho. — George sempre sabe. Ele vai dizer: "Foi você quem fez. Não tenta me enganar". E vai falar: "Agora, só por causadisso,você nãovaimaistomarcontadoscoelhos!" Subitamenteseenraiveceu. — Desgraçado! — gritou. — Pra que que você foi morrer? Você não é tão pequeno como um rato. — Pegou o animal e atirou-o longe. Então, virou-se de costas. Sentando-se curvadosobreos joelhos, sussurrou: —Agoraeu nãovou mais cuidar dos coelhos. Agora ele não vai mais deixar. — Balançava-se para a frente e paratrásemseusofrimento. De fora vinha o tinido das ferraduras na estaca de ferro e, logo depois, um pequeno coro de gritos. Lennie se ergueu, trouxe o cachorrinho de volta, deitou-o nofenoesentou-se.Acariciounovamenteoanimal.
— Você não era bastante grande — disse. — Eles cansaram de me dizer isso. Mas eu não sabia que você podia morrer assim tão fácil. — Tomou nos dedos a orelha inerte do animal. — Vai ver que o George nem se importa. O pobrezinho dessefilhodaputanãoeranadaproGeorge. A mulher de Curley apareceu na extremidade da última baia. Ela surgiu tão silenciosamente que Lennie não a viu. Usava seu vistoso vestido de algodão e as chinelas com as penas vermelhas de avestruz. Tinha o rosto pintado, os cachos em forma de salsicha todos no lugar. Aproximou-se bastante dele antes que Lennie erguesseosolhoseavisse. Em pânico, o rapaz jogou feno com os dedos em cima do filhote morto. Depois,encarousombriamenteamulher. — Oqueéissoaí, garotão?— disseela. OsolhosdeLenniefixaram-na,ferozes. — George diz que eu não tenho nada que ver com a senhora... Não quer que euconversenemnada. Elariu. — Georgetedáordenssobretudo? Lenniebaixouosolhosparaofeno. —Ele diz que se eu falar com a senhora, ou coisa assim, eu não vou poder cuidardoscoelhos. —Eletem medo que Curleyfiquezangado —murmurou ela. —Bom, Curley tá com o braço na tipóia... e se ele bancar o valente você pode quebrar a outra mão dele.Vocêsnãomeenganamcomaquelahistóriadeprenderamãonumamáquina. Lennie,porém,nãosedeixoulevar. — Não,não.Nãovoufalarcomasenhoranemnada. Elaseajoelhounofenoaoladodele. —Escuta aqui — disse. — Todos os rapazes estão disputando um campeonato de ferradura. São só umas quatro horas. Nenhum deles vai largar o jogo. Por que é que eu não posso conversar com você? Nunca consigo conversar com ninguém. Eumesintotãosozinha!... —Olha,eunãopossoconversarcomasenhoranemcoisanenhuma. —Eu fico sozinha — disse. — Você pode conversar com as pessoas, mas eu só posso conversar com o Curley. Senão, ele fica furioso. O que acha de não conversarcomninguém? —Bom,eunãoposso —disseLennie. —Georgetemmedoqueeumemetaem confusão. Elamudoudeassunto. — Oqueéqueescondeuaí? TodaatristezadeLennievoltou. —É o meu cachorro — disse. — Só o meu cachorrinho. — Ele afastou o feno decimadoanimal. —Puxa,eletámorto! —exclamouela. —Era tão pequeno! — disse Lennie. — Eu só tava brincando com ele... e ele
parecia que ia me morder... aí eu fingi que ia esmagar ele e... e esmaguei mesmo. Entãoelemorreu. Elaoconsolou. —Não se aflija tanto. Era só um vira-lata. Pode conseguir outro fácil. O país inteirotácheiodevira-latas. —Não é só isso — explicou Lennie, infeliz. — É que o George não vai me deixarcuidardoscoelhos. —Porquequenãovai? —Bom,eledisse queseeu fizer mais alguma coisa ruim,elenão medeixacuidar doscoelhos. Elaseaproximoudeleetentouconsolá-lo: —Não fica aflito por conversar comigo. Escuta só como os rapazes gritam lá fora. Eles tão apostando quatro dólares nesse campeonato. Nenhum deles vai sair daliantesdeterminar. —Se o George ver que eu tou conversando com a senhora, ele me mata — disse Lenniecomprudência. — Eleme disseisso. Amulherseenfureceu. —Qual é o problema comigo? — gritou. — Não tenho o direito de conversar com ninguém? Que que pensam que eu sou, afinal? Você é um sujeito simpático. Não sei por que é que não posso conversar com você. Não tou te prejudicando em nada,tou? —Bom,Georgedizqueasenhoravaiarranjarconfusãopragente. —Ah, que besteira! Que mal eu te faço? Parece que ninguém se importa como eu vivo. Olha, eu não tou acostumada a viver assim. Bem que eu podia me tornar alguém. Talvez ainda possa — disse sombriamente. Então, suas palavras jorraram numa paixão de comunicabilidade, como se temesse que o ouvinte lhe fosse roubado. — Eu vivia lá em Salinas. Fui pra lá quando ainda era criança. Bem, então apareceu um show e eu conheci um dos atores. Ele disse que eu podia ir embora com o show, mas minha velha não deixou. Disse que eu tinha só quinze anos.Maso caradissequeeupodia.Seeutivesseido,nãoestariavivendoassim,podeapostar. Lennieacariciavaofilhotedecimaabaixo. — Agentevaiterumlugarzinho...ecoelhos—explicou. Elacontinuousuahistóriarapidamente,antesquefosseinterrompida. —Uma outra vez conheci um sujeito que trabalhava no cinema. Saí com ele e fomos pro Riverside Dance Palace. Ele dizia que ia me pôr nos filmes. Que eu era uma artista nata.Logoque voltasse praHollywoodele ia meescreversobre isso. — Olhou atentamente Lennie, tentando ver se estava conseguindo impressioná-lo.— Nunca recebi essa carta. Sempre pensei que a minha velha tivesse roubado ela. Bem, eu não ia ficar num lugar onde eu não podia ir pra parte nenhuma e onde te roubam as cartas. Perguntei a ela se tinha roubado a carta, mas ela disse que não. Por isso casei com Curley. Encontrei ele no Riverside Dance Palace na mesma noite.Táouvindo? —Eu?Tousim.
—Bem, nunca contei isso pra ninguém antes. Acho que eu não devia. Não gosto do Curley. Ele não é um bom sujeito. — E, porque fizera uma confidencia a Lennie, aproximou-se mais e sentou-se a seu lado. — Podia estar no cinema e ter roupas bonitas... todas as lindas roupas que usam lá. E podia me hospedar nesses grandes hotéis e ter gente sempre tirando retratos de mim. Quando tivesse préestréias eu podia ir a elas, e falar no rádio, e isso não ia me custar nada, porque eu tavanos filmes.E todasaquelas roupas lindas queeles usam!Porque esse cara disse queeuera umaartistanata. Olhou para Lennie e fez um grande gesto com a mão e o braço, mostrando que podia representar. Os dedos seguiram o pulso dobrado e o dedo mínimo se separoumuitodosdemais. Lennie suspirou profundamente. De fora chegava até eles o tinido de uma ferraduranometal,seguidoporumcorodeaclamações. — Alguémganhou — disseamulherdeCurley. Agora a luz estava se erguendo, à medida que o sol descia. Os raios luminosos escalavamaparedeecaíamsobreasmanjedouraseascabeçasdoscavalos. — Eu bem que podia levar esse filhote e jogar ele fora. Aí George não ia descobrir — disse Lennie. — E então eu ia poder cuidar dos coelhos sem problema. —Você não pensa em nada, só em coelhos? — disse a mulher de Curley, zangada. —A gente vai ter um lugarzinho pra nós — explicou Lennie pacientemente. — Vamos ter uma casa e uma horta e um lugar pra encher de alfafa e depois eu levo elapróscoelhos. — Porqueéquevocêgostatantodecoelho? Lennietevequepensarcuidadosamenteantesdechegar aumaconclusão.Aproximou-secomprudênciadamulheratéficarjuntodela. — Eu gosto de alisar coisas bonitas. Uma vez eu vi alguns deles numa feira, coelhos de pêlo comprido. E eram bonitos mesmo. As vezes faço festa também emratos,mas sóquandonãoconsigonadamelhor. AmulherdeCurleyafastou-seumpoucodele. —Achoquevocêédoido. —Nãosou,não— Lennieexplicoucomhonestidade. —Georgedizqueeunãosou.Gostodealisarcoisasbonitas commeusdedos, coisasmacias. Elapareceuumpoucomaistranqüila. — Bem, quem é que não gosta? Todo mundo gosta. Eu adoro passar a mão em veludoeseda.Vocêgostadeveludo? Lenniedeuumarisadinhadeprazer. — Ora, se gosto — exclamou, feliz. — Eu até tinha um pedaço. Uma senhora me deu ele, uma senhora que... era minha tia Clara. Ela me deu, um pedaço grandeassim... Bemqueeuqueriateresseveludoagora.— Franziuatesta. — Euperdiele.Nãovejoeleháumtempão. AmulherdeCurleyriu.
— Você é doido — disse. — Mas é um bom sujeito. Parece uma criança grande. Mas a gente pode compreender o que diz. Às vezes, quando me penteio, fico sentada acariciando o meu cabelo, só porque ele é tão macio. — Para mostrar como fazia, passou os dedos no alto da cabeça. — Algumas pessoas têm cabelos ásperos — disse complacentemente. — Como o Curley. O cabelo dele parece arame. O meu não, é macio e bonito. É claro que escovo ele à beca. Isso faz eleficar bonito. Aqui... passa a mão. — Pegou a mão de Len nieecolocou-anaprópriacabeça.— Passaamãonele.Sente evêcomoémacio. OsgrandesdedosdeLenniedesceramparaalisarocabelodela. —Nãofazbagunçanele— disseamulher. —Ah,ébom!—disseLennie,alisandocommaisforça. — Comoébom! — Escuta aqui, você tá me despenteando toda. — Então ela gritou, furiosa: — Pára com isso! Você tá fazendo uma bagunça! — Puxou a cabeça bruscamente para um lado, mas os dedos de Lennie se fecharam em seus cabelos, apertando-os. —Larga! — gritouela. —Larga! Lennie estava em pânico, o rosto contorcido. Então, ela gritou mais ainda e a outra mãodorapazfechou-sesobresuabocaenariz. — Por favor, não faz isso — pediu ele. — Não faz não, por favor. George vai ficarzangado. Ela lutou violentamente sob o domínio das duas mãos enormes. Seus pés se agitaram no feno e ela se torceu, tentando libertar-se; debaixo da mão de Lennie saiuumgritoabafado.Orapazcomeçouachorardepavor: — Ah, por favor, não faz isso — implorou. — Georgevai dizer que eu fiz uma coisa ruim. E não vai me deixar cuidar dos coelhos. — Moveu um pouco a mão: um grito rouco escapou da mulher. Então, Lennie ficou zangado. — Não faz isso — disse. — Eu pedi pra você não gritar. Vai me arranjar encrenca, do jeito que o Georgedisse. Nãofazisso. — Ela continuou lutando, os olhos arregalados de pavor. Ele a sacudiu então, zangado. — Não continua gritando — disse, sacudindo-a de novo; o corpo dela se moveu flacidamente, como o de um peixe. Por fim ela ficou imóvel; Lennie havia quebrado o seu pescoço. Ele baixou os olhos para a mulher e cuidadosamente removeu a mão de sua boca.Elajaziaimóvel. — Não quero te machucar — disse —, mas George vaificar furioso se ouvir os gritos. Quando a mulher não respondeu nem se moveu, Lennie se curvou atentamente sobre ela. Levantou-lhe o braço e deixou-o cair. Durante um momento pareceu aturdido.Depoissussurrou,amedrontado: — Fizumacoisaruim.Fizumacoisaruimdenovo. Meteu as grandes mãos no feno e cobriu parcialmente o corpo da mulher. De fora vinha o grito dos homens e o duplo tinido de ferraduras no metal. Pela primeira vez Lennie tomou consciênciadomundoexterior. Acocorou-seno fenoe escutou.
— Fiz uma coisa ruim de verdade — disse. — Eu não devia ter feito isso. George vai ficar furioso. E... ele disse... para me esconder no mato até ele chegar. Vai ficar furioso. No mato até ele chegar. Foi o que ele disse. — Retrocedeu e olhou para a mulher morta. O cachorro jazia perto dela. Lennie o pegou. — Vou jogar ele fora — disse. — A coisa já tá bem ruim assim. — Pôs o filhote debaixo do casaco e caminhou encolhido até a parede do celeiro, espiando pelas frestas o jogo de ferraduras. Depois, esgueirou-se até a extremidade da última manjedoura e desapareceu. Os raios de sol iam altos na parede agora e a luz tornava-se cada vez mais suave noestábulo.AmulherdeCurleyjaziadecostas,meioencobertapelofeno. Tudo estava muito tranqüilo no local, e a quietude da tarde invadira a fazenda. Mesmo o tinido das ferradurase as vozesdos homens que jogavam pareciam agora menos ruidosos. A obscuridade se instalava no estábulo antes de escurecer lá fora. Um pombo entrou voando pela porta adentro, fez um círculo e tornou a voar para fora. Uma cadela policial magra e comprida, de pesados úberes pendentes, contornou a última baia. A meio caminho do caixote onde estavam as crias, ela sentiu o cheiro da morte na mulher de Curley e seus pêlos eriçaram-se na espinha. Deu um gemido,rastejouamedrontadaatéocaixoteepulouentreoscachorrinhos. A mulher de Curley jazia meio encoberta pelo feno amarelo. E de seu rosto desaparecera a mesquinharia, os planos para o futuro, o descontentamento e a ânsia de ser ouvida. Ela estava muito bonita e simples, o rosto jovem e doce. Suas faces coradas pelo ruge e os lábios vermelhos faziam-na parecer viva, como se cochilasse. Os cachos, as minúsculas salsichas, espalhavam-se pelo feno sob a cabeçaeoslábiosestavamligeiramenteabertos. Como acontece às vezes, o instante se fixou, ficou suspenso no ar e assim permaneceu por muito mais que um momento. Os sons cessaram e o movimento seimobilizoupormuito,muitomaisqueummomento. Então, aos poucos, o tempo despertou novamente e prosseguiu com preguiça a sua marcha. Os cavalos bateram os cascos contra o solo no outro lado das manjedouras, fazendo tilintar as correntes dos cabrestos. Fora, as vozes masculinas tornaram-semaisaltasemaisclaras. DaextremidadedaúltimabaiaveioavozdovelhoCandy. — Lennie — chamou. — Ei, Lennie! Tá aí? Andei pensando em mais algumas coisas.Voutedizeroquea gentepodefazer,Lennie. OvelhoCandysurgiunaextremidadedaúltimaman-jedoura. — Lennie! — chamoudenovo.Entãoparou eseu corpo se enrijeceu. Esfregou o coto macio na áspera suíça branca que despontava. — Não sabia que a senhora tavaaqui — disseparaamulherdeCurley. Comoelanãorespondesse,eledeuumpassoàfrente. — Não devia dormir aqui — disse, desaprovador. Logo depois, estava ao lado dela: — Santo Deus! — Olhou em torno, indefeso, e esfregou a barba. Depois, ergueu-sedeum saltoesaiurapidamentedoestábulo. Agora,porém, olocalganhava vida. Os cavalos socavam osolo com os cascose bufavam; mastigavam as palhas de suas baias e faziam tilintar as correntes dos
cabrestos. No momento seguinte, Candy voltou, e dessa vez George o acompanhava. — Quequevocêquercomigo? — disseGeorge. CandyapontouparaamulherdeCurley.Georgeolhou-afixamente. — Que que ela tem? — perguntou. Aproximou-se da mulher e então repetiu a exclamação de Candy. — Santo Deus! — Ajoelhou-se ao lado dela e colocou a mão sobre o coração da mulher. Quando se levantou afinal, lenta e rigidamente, seu rosto mostrava-se duro e tenso como madeira, os olhos fixos. — Quemquefezisso? — disseCandy. Georgeolhou-o friamente. —Não tem nenhuma idéia? — perguntou. Candy permaneceu em silêncio. — Eudeviasaber —disse,desesperançado. —Achoquebemlánofundoeusabia. —O que que a gente vai fazer agora, George? — perguntou Candy. — O que queagentevaifazer? Georgedemoroumuitoaresponder. —Acho que... temos que contar.. . prós rapazes. Acho que a gente tem de pegar ele e prender. A gente não pode deixar ele ir embora. Puxa, o pobre-diabo ia morrer de fome. — Tentou tranqüilizar-se. — Talvez prendam Lennie e vão ser bonscomele. —A gente devia deixar ele ir embora — disse Candy, excitado. — Você não conheceesseCurley.Curleyvaiquererquelinchemele.Vaiquererelemorto. GeorgeobservavaoslábiosdeCandy. — É — disse finalmente. — É verdade, Curley vai que rer ele morto. E os outrosvãoquereromesmo. — Olhou novamenteparaamulher. Candydisseentão,comgrandemedonavoz: — A gente ainda pode ter aquele lugarzinho, não pode, George? A gente ainda podeirpra láeterumaboavida, nãoé,George?Nãoé? Antes que o rapaz respondesse, Candy baixou a cabeça e olhou para o feno. Ele conheciaaresposta. — Acho queeu sabiadesdeo início — disse Georgesuavemente. —Acho que eu sabia que a gente nunca ia conseguir. Ele gostava tanto de ouvir falar nisso que chegueia pensarquetalvezagentepudesse. —Então... tátudoacabado?— disseCandy,soturno. Georgenãorespondeu.Emvezdisso,afirmou: —Vou terminar meu mês, pegar meus cinqüenta pacotes e ficar a noite inteira num puteiro nojento. Ou ficar num salão de bilhar até todo mundo ir embora. Entãovolto,trabalhooutromêseganhomaiscinqüentapacotes. —Ele é um bom sujeito — disse Candy. — Nunca pensei que fosse fazer nada assim. GeorgeaindaolhavafixamenteparaamulherdeCurley. —Lennie não fez isso por maldade. Sempre fez coisas ruins, mas nunca por maldade. — Ergueu-se e olhou para Candy. — Agora escuta. Temos que contar prós rapazes. Eles vão querer pegar o Lennie, eu acho. Não tem outro jeito. Talvez
não machuquem ele. — Acrescentou asperamente: — Não vou deixar eles machucarem o Lennie. Agora escuta. Os rapazes podem pensar que eu tive alguma coisa a ver com isso. Vou entrar no alojamento. Daqui a um minuto você sai e conta pra eles o que viu. Aí eu venho também e faço como se não soubesse de nada.Assimelesnãovãopensarqueeutenhoalgumacoisacomisso,tá? —Tá bem,George—disseCandy. — Voufazerisso,sim. —Então tá. Me dá dois minutos e aí você sai correndo e conta o que acabou de achar.Touindoagora. Georgesevirouesaiurapidamentedoestábulo. O velho Candy observou-o partir. Depois tornou a olhar a mulher de Curley e gradualmenteseupesaresuaraivatransformaram-seempalavras. — Sua vagabunda desgraçada — disse com maldade. — Acabou conseguindo, não é? Acho que agoratá contente. Todo mundo sabia que você causava confusão. Não prestava. Agora mesmo é que você não presta pra nada, vagabunda nojenta. — Um soluço fez sua voz estremecer. — Eu podia ter cuidado da horta e lavado ospratosprós rapazes.— Fezumapausaedepois continuoucomo numa ladainha, repetindo as velhas palavras: — Se tivesse um circo ou um jogo de beisebol... a gente podia ir... era só dizer: "Que se dane o trabalho" e ir. Sem ter que pedir licença a ninguém. E a gente podia ter um porco e galinhas... e no inverno... o fogão...e a chuva caindo... e a gente sentado lá. —As lágrimas cegaram seus olhos. Então, ele se virou e saiu com passos fracos do estábulo, esfregando as suíças hirsutascomseucotodepunho. Fora, o ruído do jogo parou subitamente. As vozes se ergueram formulando perguntas, ouviu-se o som de pés que corriam e logo depois os homens irromperam no estábulo. Slim, Carlson, o jovem Whit e Curley, com Crooks mai$ atrás, mantendo-se longe da atenção dos outros. Candy seguia atrás deles e, à retaguarda de todos, vinha George. Pusera sua jaqueta de brim azul e a abotoara, puxando a aba do chapéu preto bem para baixo. Os homens contornaram correndo a última baia. Seus olhos descobriram a mulher de Curley na semiobscuridade;então,ficaramimóveis,olhando. Slim se aproximou, silencioso, e tomou-lhe o pulso. Um dedo fino tocou o rosto da mulher e a mão deslizou por baixo do pescoço levemente torcido; os dedos exploraram-lhe o pescoço. Quando se ergueu, os homens aproximaram-se maiseoencantosequebrou. Curleyvoltousubitamenteàvida. —Eu sei quem fez isso — gritou. — Aquele grandão filho da puta, tenho certeza.Euseiquefoiele.Ora... todoorestodopessoaltavajogandoferradura.— A fúria subia dentro dele. — Vou pegar aquele cara. Vou apanhar minha espingarda. Eu mesmo vou matar o filho da puta. Vou furar as tripas dele. Vamos, rapazes. —Correufuriosamenteparaforadoestábulo. —VoupegarminhaLuger— disseCarlsonetambémcorreupara fora. Slimvirou-secalmamentepara George. — Acho que Lennie fez a coisa mesmo — disse. — O pescoço dela tá quebrado.Lenniepodiafazerisso.
George não respondeu, mas balançou a cabeça lentamente, concordando. Seu chapéuestavatãoenterradonacabeçaquelhecobriaosolhos. — Vai ver que foi como naquela vez em Weed, que você contou — continuou Slim. Georgetornouaassentir.Slimsuspirou. — Bom, acho que a gente tem que pegar ele. Pra onde acha que ele pode ter ido? Georgeprecisoudealgumtempoparapoderfalar. — Acho que foi pro sul — disse. — A gente veio do norte, então eu penso que foiprosul. —Achoquetemosquepegarele —repetiuSlim. Georgeseaproximoudooutro. —A gente não podia pegar ele e trancar? Ele é doido, Slim. Não fez isso por maldade. Oarrieiroconcordou. —A gente podia. Se o Curley não fosse junto,a gentepodia.Mas oCurley quer dar um tiro nele. E já tava com raiva por causa da mão. E mesmo se pegarem o Lennie, amarrarem ele e trancarem numa jaula, isso vai adiantar? Não vai ser nada bom,George.Vocêsabe. —Eusei.Eusei.Carlsonvoltoucorrendo. —O patife roubou minha Luger. Não tá na minha mala. Curley o seguira, carregandoumaespingardana mãoboa. Pareciacontrolado,agora. —Muito bem, pessoal — disse. — O crioulo tem uma espingarda. Pega ela, Carlson. Quando enxergar o Lennie, não dá chance nenhuma pra ele. Arrebenta logoaquelastripas.Praelesecurvarlogo. —Nãotenhoarma—disseWhitexcitadamente. —Vai até Soledad e traz um polícia — disse Curley. — Chama o Al Wilts, o ajudante do xerife. Agora vamos. — Voltou-se para George, desconfiado. — E vocêtratadevircomagente. —Tá bem — disse George. — Eu vou. Mas escuta aqui, Curley. O pobre-diabo émaluco.Nãoatiranele.Elenãosabiaoquetavafazendo. —Nãoatira nele? —gritou Curley. — Elepegouaarma do Carlson.É claro que vamosatirarnele. —VaiverqueoCarlsonperdeuaarma— disseGeorgecomvozsumida. —Não, eu vi minha pistola esta manhã — disse Carlson. — Não. Ela foi roubada. Slimpermaneciadepé,olhandoparaamulher. — Curley — disse —,achoqueémelhorvocêficaraquicomela. OrostodeCurleyseavermelhou. — Eu vou também — disse. — Quero arrancar as tripas daquele grandão safado,mesmocomumadasmãos.Voumatarele. SlimsevirouparaCandy.
— Entãoficaaquicomela,Candy.Émelhoragenteir. Puseram-seacaminho.Georgeparouummomentoao ladodeCandyeambosdesceramosolhosparaamulhermorta,atéqueCurley chamou: — George! Você vai ficar grudado conosco, senão a gente vai pensar que teve alguma coisa a ver com isso. George se arrastou atrás deles, caminhando com lentidão. Depois que partiram, Candy acocorou-se no feno e observou o rosto da mulherdeCurley. —Pobre-diabo —dissesuavemente. O ruído dos homens se afastando tornou-se mais fraco. O estabulo escurecia aos poucos. Em suas baias, os cavalos moveram os cascos, fazendo tilintar as correntes dos cabrestos. O velho Candy deitou-se no feno e cobriu os olhos com o braço.
6
O profundo lago verde do rio Salinas estava imóvel naquele fim de tarde. O sol já abandonara o vale para escalar as encostas das montanhas Gabilan, com seus cumes agora rosados pela luz. Junto ao lago, entretanto, e por entre os sicômoros pintalgados,descera umaagradávelsombra. Uma cobra deslizou suavemente pela superfície da água, torcendo a cabeça de periscópio de um lado para o outro; nadou por toda a extensão do lago e chegou junto às pernas de uma garça imóvel, de pé nos baixios. Uma cabeça e um bico silenciosos projetaram-se rapidamente para baixo e colheram a cobra pela cabeça; o bicoengoliu-aenquantoacaudadoréptilsacudia-seconvulsivamente. Ouviu-se uma rajada de vento a distância e o ar se moveu pelas copas das árvores como uma onda. As folhas dos sicômoros viraram para cima seus dorsos prateados; as folhas secas, marrons, agitaram-se um pouco sobre o solo. E fileiras sucessivasdeminúsculasondasencresparamasuperfíciedolago. Tão rapidamente como chegara, o vento parou. A cia reira tornou a se imobilizar. A garça voltara a ficar imóvel nos baixios, esperando. Outra pequena cobra-d'água nadou pelo lago, virando a cabeça de periscópio de um lado para o outro. De repente, Lennie surgiu das moitas, movendo-se tão silenciosamente como um urso. A garça golpeou o ar com suas asas, ergueu-se sobre a água e voou rio abaixo.Apequenacobradeslizouporentreosjuncosdamargem. Quieto, Lennie se aproximou da borda do lago. Ajoelhou-se então e bebeu, mal tocando a água com os lábios. Quando um passarinho correu saltitando pelas folhas secas atrás dele, Lennie ergueu a cabeça e procurou o som com os olhos e ouvidosatéqueviuopássaro.Entãobaixouacabeçaebebeudenovo. Terminando, sentou-se na areia de costas para o lago, a fim de poder vigiar a trilha.Então,abraçouosjoelhosedescansouoqueixosobreeles. A luz continuava a subir a encosta da montanha, fugindo do vale, e à medida queofazia,oscumespareciamincendiar-secomumbrilhocrescente. — Eu não me esqueci, juro — murmurou Lennie. — Esconder no mato e esperar o George. — Abaixou o chapéu sobre os olhos. — George vai me fazer comer fogo. Ele vai dizer: "Por que é que eu não fico sozinho, sem ninguém pra me aborrecer?"— Virou a cabeçae olhou os cumesincendiadospelo sol. — Posso ir direto pra lá e achar uma caverna. E nunca mais comer molho de tomate — continuoutristemente. — Mas não meimporto. Se o George não me quiser... vou embora.Vouembora. Da mente de Lennie saiu então uma velhinha gorda. Usava óculos de lentes grossas, um enorme avental de cretone com bolsos e era toda engomada e limpa. Plantou-senafrente deleepôsas mãosnosquadris,franzindodesaprovadoramente atestaparaele. Quandofalou,ofezcomavozdeLennie: —Eu bem que te disse, eu bem que te disse. Falei um milhão de vezes pra
obedecer o George, porque ele é um ótimo rapaz e muito bom pra você. Mas você seimporta?Nemumpouco.Vivefazendocoisasruins. —Eu tentei, tia Clara, tentei sim — respondeu Lennie. — Tentei à beca. Mas nãopudeevitar. —Você nunca pensa no George — continuou ela com a voz de Lennie. — Ele vive fazendo coisas boas pra você. Quando arranja um pedaço de torta, te dá sempre a metade, ou mais da metade. E quando tem molho de tomate, puxa, ele te dátodoele. —Eu sei — disse Lennie, no auge da tristeza. — Eu tentei, tia Clara, sim, senhora.Tenteimesmo. Elaointerrompeu. —Ele podia se divertir o tempo todo, se não fosse você. Podia receber o salário e cair na farra com asmulheres,ou jogar dados ou bilhar a noite toda.Mas tem que tomarcontadevocê. —Eu sei, tia Clara — Lennie gemeu de tristeza. — Eu vou direto praquelas colinas,acharumacavernaeviverlá,pra nãocausarmaisproblemasproGeorge. —Isso é o que você diz — revidou ela, cortante. — Tá sempre dizendo isso, mas sabe muito bem, seu filho da puta, que não vai fazer nada disso. Vai grudar no Georgeefazerdavidadeleuminfernootempotodo. —Bem que eu posso ir embora — disse Lennie. — George não vai mais me deixarcuidardoscoelhos. Tia Clara desaparecera, e da mente de Lennie surgiu um coelho gigantesco. Este sentou-se na frente dele, agitou as orelhas e encolheu o focinho. Falou também comavozdeLennie. —Cuidar dos coelhos — disse com escárnio. — Você é um pobre coitado. Não presta nem pra lamber as botas de um coelho. Você ia esquecer eles e deixar que todosmorressemdefome.Éisso.OquequeGeorgeiapensar? —Eunãoiameesquecer —disseLennie,alto. —Não ia uma ova — disse o coelho. — Você não vale nem o espeto com que vão te assar no inferno. Só Deus sabe que George fez tudo o que podia pra te tirar da sarjeta, mas não adiantou. Se acha que George vai te deixar cuidar dos coelhos, tá mais maluco quedecostume. Ele não vai.Vai étedar umasurracomumpedaço depau,éissoquevaifazer. —Ele não vai fazer nada disso — respondeu Lennie, agressivo. — George não faz coisas assim. Conheço ele desde... esqueci quando... e ele nunca levantou a mão pra mimcomumpedaçodepau.Eleébompra mim.Nãovaisermauagora. —Bem, ele tá cansado de você — disse o coelho. — Vai te moer de pancada e depoisvaiemboraetedeixarsozinho. —Não vai, não — gritou Lennie freneticamente. — Não vai fazer nada disso. EuconheçoGeorge.Agenteviajajunto. Masocoelhorepetiasuavemente,vezessemconta: — Ele vai te deixar, seu patife maluco. Ele vai te deixar sozinho. Ele vai te deixar,seupatifemaluco.
Lennietapouosouvidoscomasmãos. — Não vai, eu sei que ele não vai! — gritou. — Ah, George... George... George! George saiu silenciosamente do mato e o coelho correu de novo para dentro da mentedeLennie. — Porquevocêtágritandoassim? — perguntouGeorge,calmo. Lenniesuspendeuopeitoeficoudejoelhos. — Vocênãovaimedeixar,vai,George?Euseiquenão vai. Georgeseaproximourigidamenteesentou-seaoladodeLennie. —Não. —George? —Queé? —Fizoutracoisaruim. —Nãofazdiferença— respondeuele,recaindonosilêncio. Só os cumes mais elevados recebiam agora a luz do sol. A sombra no vale tornara-se azul e macia. Da distância veio o som de homens gritando uns para os outros.Georgevirou acabeçaeouviuosgritos. —George?— disseLennie. —Queé? —Vocênãovaimefazercomerfogo? —Comerfogo? —E, como você sempre fez antes. Falando: "Se eu não tivesse você eu pegava meuscinqüentapacotes..." —Meu Deus, Lennie! Não lembra de nada que acontece, mas lembra de cada palavraqueeudigo. — Bom,vocêvaidizerisso? Georgeestremeceu. —Se eu andasse sozinho, podia viver muito bem —disse, com voz inexpressiva. — Podiaarranjarumtrabalhoenãotercomplicaçãonenhuma. —Parou. —Continua — disseLennie. — "Equandochegasseofimdomês..." — E quando chegasse ofim do mêseu podia pegar meus cinqüenta pacotese ir pra um... puteiro... —Paroudenovo. Lennieolhou-oansiosamente. —Continua,George.Nãovaimaismefazercomerfogo? —Não—respondeuo rapaz. —Bom, eu posso ir embora — disse Lennie. — Posso ir na direção daquelas colinaseacharumacaverna,sevocênãomequiser. Georgetornouaestremecer. —Não—disse. — Queroquevocêfiquecomigo. —Entãomefalaoquefalouantes— disseLennie,comastúcia. —Dizeroquê? —Dosoutrosrapazesenós.
—Sujeitoscomonós não têmfamília— disseGeorge. — Ganhamum poucode gaitaegastamtudo.Nãotêmninguémnomundoqueseimportecomeles...
—Masnãonós— gritouLennie,feliz.— Contasobrenós.Georgeficouquieto porummomento. —Masnãonós—disse. —Porque... —Porqueeutenhovocê... — E eu tenho você. A gente tem um ao outro, é isso, e um se importa com o outro— exclamouLennie,emtriunfo. A brisa da noite soprou na clareira, fazendo as folhas far-falharem e pequenas ondas encresparem o lago verde. Os gritos dos homens soaram de novo, dessa vez muitomaispertodoqueantes. Georgetirouochapéu. — Tiraochapéu,Lennie— disse,trêmulo.—Oar tabom. Lennie removeu obedientemente o chapéu, colocando-o nochão àsua frente. A sombra no vale estava mais azul, e a noite caía, veloz. O som de arbustos se quebrandochegouatéeles,trazidopelovento. — Contacomovaiser— disseLennie. George estava ouvindo os sons a distância. Por um momento, assumiu um tom metódico. — Olhaprorio,Lennie,queeuteconto.Assimvocê quasevaipodervertudo. Lennie virou a cabeça. Olhou para o lago e depois para cima, em direção às encostasdasmontanhasqueescureciam. — A gente vai ter um lugarzinho só nosso — começouGeorge. Pôs a mão no bolsoepuxou aLugerdeCarlson; soltouatravadesegurançadaarma;mão earma descansaram no solo, atrás das costas de Lennie. George olhou para a nuca do amigo, exatamente no lugar em que espinha e crâ nioseencontram. Umavozdehomemgritourioacima;outravozmasculinarespondeu. — Continua — disseLennie. George ergueu a arma e suas mãos tremeram. Deixou cair a mão novamente até osolo. —Continua — disse Lennie.— Como vai ser. A gente vai ter um lugarzinho só nosso. —Vai ter uma vaca — disse George. — E quem sabe um porco e galinhas... e vaitertambémumaplantaçãozinhadealfafaláadiante... —Próscoelhos—gritouLennie. —Próscoelhos—repetiuGeorge. —Eeuvoucuidardoscoelhos.
—Vocêvaicuidardoscoelhos.Lennie riudefelicidade. —Eagentevaivivernobem-bom.
—ÉOrapazvirouacabeça. — Não, Lennie. Olha na direção do rio, como se você quase tivesse vendo o lugar. Lennieobedeceu.Ooutrobaixouosolhosparaaarma.Passosesmagavamos arbustospróximosagora.Georgesevoltoueolhounadireçãodeles. —Continua,George.Quandoagentevaiterolugar? —Logo. —Euevocê. —Você... e eu. Todo mundo vai ser bom pra você. Não vai mais ter nenhum problema.Ninguémvaifazermalaninguémnemroubarunsdosoutros. —Penseiquevocêtavafuriosocomigo,George. — Não — disse ele. — Não, Lennie. Não tou furioso com você. Nunca fiquei nemnuncavouficar.Queroquesaiba disso. Asvozessoavammuitopróximasagora.Georgeergueuaarmaeescutou. —Vamosfazerissologo—pediuLennie.—Vamoscomprarolugaragora. —Vamos,agora mesmo.Eutenhoquefazerisso.Agentetemquefazer. George firmou a arma e aproximou o cano da nuca de Lennie. Sua mão tremeu violentamente, mas o rosto dele endureceu; a mão tornou a se firmar. Puxou o gatilho. O estampido subiu e foi rolando pelas encostas até morrer. Lennie se sacudiu todo e depois foi caindo lentamente para a frente, sobre a areia. Ali ficou deitado,imóvel. George estremeceu e olhou para a arma; então atirou-a longe, em direção à margem,pertodapilhadeantigascinzas. O mato pareceu se encher de gritos e do som de pés correndo. A voz de Slim gritou: — George!Ondetávocê,George? Mas o rapaz sentou-se rígido na margem do lago e olhou para a mão direita que acabara de atirar a arma fora. O grupo irrompeu na clareira, com Curley à frente. EntãoeleviuLenniedeitadonaareia. — Puxa, você pegou ele! — Aproximou-se, olhou para Lennie e depois de novopara George. —Bemnanuca— dissesuavemente. SlimveiodiretoatéGeorge esentou-seaoladodele,muitoperto. — Não se preocupa — disse Slim. — Às vezes um cara tem que fazer essas coisas. MasCarlsonestavadepédiantedeGeorge. —Comoéquevocêfez?— perguntou. —Sófiz— disseGeorge,cansado. —Eletavacomaminhaarma? —Tava.Tavacomasuaarma. —Evocêtirouapistoladele,pegouematouele? —É. Foi assim. — A voz de George era quase um sussurro. Olhava fixamente paraamãodireitaqueseguraraaarma. Slimpuxouorapazpelocotovelo.
—Vem,George.Euevocêvamosbeberalgumacoisa.Georgedeixou-se conduzirporele. —E,vamosbeber. —Você tinha que fazer isso — disse Slim. — Juro que tinha. Vem comigo. — Levou-oparaaentradadatrilhaesubiramemdireçãoàrodovia. CurleyeCarlsonosseguiramcomoolhar.EntãoCarlsonperguntou: — Oqueserá quetároendoessescaras?
John Steinbeck
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