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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RAVEN / V. C. Andrews
RAVEN / V. C. Andrews

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

Vivendo com a mãe bêbada em um apartamento, uma jovem de 12 anos não se cansa de sonhar com um verdadeiro lar. Em Raven, quarto volume da Série Órfãs, V.C. Andrews nos deleita com mais uma narrativa sensível e humana.Após a prisão da mãe, a menina passa a viver na casa dos tios, em companhia dos primos. Lá, sujeita aos cuidados da meiga tia Clara, ela passa a sentir uma esperança em seu coração, não obstante o comportamento arredio e inoportuno do tio, que não a deseja por perto.Atrás da aparente normalidade da família que a acolheu, há alguns segredos nada agradáveis prontos a vir à tona. A jovem Raven desconhece a dolorosa humilhação que virá a sofrer na casa que vive. Desgostosa, ela estará disposta, mais do que nunca, a voltar a viver com a mãe.

 

 

 

— Nunca pedi para nascer.

Foi o que declarei para minha mãe quando ela se queixou de todos os problemas que eu lhe causara desde o dia em que nascera. Minha mãe acabara de receber um telefonema da escola. O inspetor de freqüência dos alunos ameaçara levá-la ao tribunal se eu deixasse de ir à escola mais uma vez. Eu detestava a escola. Era uma colmeia de idiotas zumbindo em torno desta ou daquela abelha-rainha, ameaçando me picar se eu tentasse me infiltrar em seus pequenos e preciosos círculos sociais. E, de qualquer forma, minhas turmas eram enormes, a maioria dos professores nem tomava conhecimento da minha existência. Se não fosse pelos novos cartões automáticos de freqüência, ninguém jamais ficaria sabendo que eu não ia à escola.

Mamãe fechou a porta da geladeira com o pé descalço. Bateu com tanta força a garrafa de cerveja no balcão que quase a quebrou. Pegou o abridor para tirar a tampa e me fitou, com os olhos injetados. O telefonema do inspetor arrancara-a de um sono profundo. Ela levou a garrafa aos lábios e bebeu, os músculos no pescoço fino pulsando com o esforço de descer pela garganta tanta cerveja quanto possível em um só gole. Percebi que ela tinha um cotovelo esfolado e uma equimose no antebraço direito.

Estávamos em pleno verão, um desses períodos de calor intenso fora da estação. Era o dia 21 de outubro, o outono bem adiantado, mas o termômetro marcava mais de 32°C. Os cabelos de mamãe, tão pretos quanto os meus, caíam sobre suas faces. Sua franja era comprida demais e irregular. Ela espichou o lábio inferior para cima e soprou os cabelos sobre os olhos. Já fora uma mulher muito bonita, com olhos que faiscavam como pérolas negras. Tinha uma pele morena, malares salientes e feições perfeitas. As mulheres injetavam silicone nos lábios para terem o formato e o volume que mamãe possuía naturalmente. Eu me sentia lisonjeada quando as pessoas me comparavam com ela naquele tempo. Meu sonho era ser tão bonita quanto minha mãe.

Agora, porém, eu fingia que nem tinha qualquer parentesco com ela. Havia ocasiões em que fingia até que não estava ali.

— Como posso ganhar a vida e ainda por cima sustentar uma menina de doze anos? Deviam estar me oferecendo medalhas, em vez de me ameaçarem.

A maneira que mamãe encontrara para ganhar a vida era trabalhar como garçonete num bar ordinário chamado Charlie Boy’s, em Newburgh, estado de Nova York. Havia noites em que não voltava para casa antes das quatro da madrugada, muito depois do bar ter fechado. Se não estava de porre, vinha alta de alguma outra coisa. Cambaleava por nosso apartamento de apenas um quarto, esbarrando nos móveis, derrubando coisas.

Eu dormia num sofá-cama na sala. Por isso, geralmente acordava e ouvia a barulheira. Mas sempre fingia que continuava dormindo. Detestava falar com mamãe quando ela se encontrava naquele estado. As vezes podia farejá-la antes de ouvi-la. Era como se ela tivesse encharcado as roupas de uísque e cerveja.

Mamãe parecia muito mais velha do que os seus trinta e um anos. Tinha olheiras permanentes, rugas que pareciam ter sido traçadas com um lápis escuro nos cantos dos olhos. A pele cremosa era agora amarelada e sem lustro, os cabelos outrora sedosos mais pareciam um esfregão feito com fios de piano. Tinham mechas grisalhas prematuras que sempre me davam a impressão de sujos e sebosos.

Ela fumava e bebia. Parecia não se importar com o homem com quem saía, desde que ele estivesse disposto a pagar pelo que ela queria. Parei de registrar seus nomes. Os rostos começavam a se fundir em um só, com olhos vermelhos me espiando num vago interesse. De um modo geral, eu era uma surpresa para eles.

”Nunca me disse que tinha uma filha”, comentava a maioria.

Mamãe dava de ombros e respondia:

”Não falei? Pois tenho. Por acaso isso o incomoda? É um problema para você?”

Alguns não diziam nada; alguns diziam não, ou sacudiam a cabeça e riam.

”Acho que o problema é seu”, declarou um homem.

Foi o suficiente para lançar mamãe numa longa tirada sobre meu pai.

Quase nunca falávamos sobre ele. Mamãe se limitava a dizer que era um lindo latino,- mas uma decepção em matéria de assumir suas responsabilidades.

— Como a maioria dos homens — advertiu ela.

Ela me fez acreditar que as promessas de meu verdadeiro pai eram como o arco-íris: maravilhosas enquanto persistiam no ar, mas logo esmaecendo até se tornarem apenas vagas lembranças. E nunca havia um pote com ouro no final do arco-íris! Ele nunca voltaria e nunca nos mandaria coisa alguma.

Desde que eu podia me lembrar, vivíamos naquele pequeno apartamento, num prédio que dava a impressão de que poderia ser derrubado por um vento mais forte. As paredes nos corredores eram rachadas e esburacadas, como se alguma criatura enlouquecida tivesse tentado escavar uma saída. As paredes externas eram cobertas de grafites, as calçadas tão arrebentadas que em muitos pontos havia apenas terra onde antes existia cimento. O pequeno gramado entre o prédio e a rua se degradara há muitos anos. O que restava de relva era de um verde claro e doentio, com tanto lixo espalhado que não dava para passar um cortador de grama.

As pias em nosso apartamento sempre nos criavam problemas, as torneiras pingando, os ralos entupidos. Eu não podia nem contar quantas vezes a latrina já transbordara. O ralo da banheira era cercado de ferrugem, o chuveiro pingava, e a água quente em geral acabava antes que eu terminasse de lavar os cabelos. Sei que havia muitos camundongos, porque vivia encontrando os excrementos em gavetas, debaixo das cômodas e mesas. Às vezes podia ouvi-los correndo de um lado para o outro. Poucas vezes cheguei a avistar um, antes que corresse para se esconder embaixo de algum móvel. Pusemos ratoeiras e pegamos alguns, mas para cada um que morria surgiam dez para tomar o seu lugar.

Mamãe sempre prometia sair de lá. Um novo apartamento era sempre uma perspectiva iminente, assim que ela ganhasse mais cem dólares necessários para o depósito. Mas eu sabia que se ela ganhasse algum dinheiro extra, gastaria em uísque, cerveja ou maconha. Um de seus namorados introduziu-a na cocaína. Ela a consumia de vez em quando, mas em geral não tinha dinheiro suficiente para comprar.

Tínhamos um aparelho de televisão que perdia a imagem com freqüência. Às vezes eu conseguia recuperá-la, batendo com força nos lados. Mamãe recebia de vez em quando um cheque do serviço de assistência social. Jamais entendi por que isso acontecia ou deixava de acontecer. Ela criticava o sistema e queixava-se quando não havia um cheque. Se era eu quem o recebia, tratava de descontá-lo, comprava boas comidas e algumas roupas para mim. Se não era, mamãe escondia e me dava algum dinheiro em conta-gotas. Tinha de me arrumar com isso.

Sabia que outros da minha idade roubavam o que não podiam comprar, mas não era o meu caso. Havia uma garota em meu prédio, Lila Thomas, que incursionava pelos shoppings nos fins de semana, junto com algumas garotas do outro lado da cidade. Já fora surpreendida furtando numa loja, mas parecia não ter medo de ser apanhada de novo. Zombava de mim durante todo o tempo porque eu não a acompanhava. Chamava-me de ”defensora da honra dos escoteiros”, e dizia a todo mundo que eu acabaria vendendo biscoitos para viver.

Não me importava de não ter uma amiga íntima. Na maior parte do tempo, sentia-me feliz por ficar sozinha, lendo uma revista ou assistindo a uma novela, sempre que conseguia pôr a televisão para funcionar. Tentava não pensar em mamãe dormindo até tarde, talvez com um novo homem no quarto. Podia olhar através das pessoas, fingir que nem estavam ali.

— É melhor você ir à escola amanhã, Raven. Não preciso de agentes do governo vindo aqui me bisbilhotar. — Ela afastou os cabelos do rosto. — Está me ouvindo?

— Estou.

Mamãe bebeu mais um pouco de cerveja. Eram apenas nove e quinze da manhã. Eu detestava o gosto de cerveja em qualquer ocasião, mas só em pensar bebê-la tão cedo me deixava de estômago embrulhado. Ela compreendeu de repente que dia era e que eu deveria estar na escola. Arregalou os olhos.

— Por que ficou em casa hoje?

— Tive dor na barriga. Estou ficando menstruada. Foi o que a enfermeira me disse na escola, quando senti cólicas e deixei a sala.

— Seja bem-vinda ao inferno. Vai compreender em breve por que os pais agradecem por terem um menino. Os homens têm uma vida muito mais fácil. É melhor você tomar cuidado agora.

Mamãe fez a advertência me apontando o gargalo da garrafa.

— O que está querendo dizer com isso?

— O que estou querendo dizer com isso? — arremedou ela. — Se você ficar menstruada, pode engravidar, Raven, e eu não vou cuidar do bebê, de jeito nenhum.

— Não vou engravidar, mamãe. Ela soltou uma risada.

— Foi o que eu disse... e veja o que aconteceu.

— Por que então me teve? — indaguei, irritada.

Já me cansara de ouvir que era um fardo. Não era. Ao contrário, era eu quem mantinha o apartamento habitável, limpava tudo depois de seus ataques de embriaguez, lavava a louça, as roupas, limpava o chão do banheiro. Era eu quem comprava comida e cozinhava na maior parte das vezes. Havia ocasiões em que ela trazia comida do restaurante, quando se lembrava, mas em geral estava fria e gordurosa quando chegava no apartamento.

— Por que eu tive você? Por que eu tive você?

Mamãe parecia atordoada, como se a pergunta fosse muito difícil de responder. Mas seu rosto logo se animou com a raiva.

— Vou explicar. Porque seu pai, um latino machista, prometeu que nos daria um lar. Tinha certeza de que seria um menino. Como poderia não ter um menino? Não o Mister Macho. E quando você nasceu...

— O que aconteceu?

Persuadi-la a me contar qualquer coisa sobre meu pai, ou como era sua vida naquele tempo, era tão difícil quanto descobrir os maiores segredos do governo.

— Ele fugiu. Assim que viu você, fez uma careta horrível e disse: ”É uma menina? Então não pode ser minha.” E fugiu. Não tive notícias dele desde então. — Mamãe ficou pensativa por um momento, depois tornou a me fitar nos olhos. — Que isso sirva como uma lição para você sobre os homens.

”Que lição?”, perguntei-me. Como ela achava que eu me sentia ao descobrir que meu pai não suportara me ver, que meu nascimento o afugentara? Como achava que eu me sentia ao ouvir todos os dias que nunca eu pedira para nascer? Às vezes ela me chamava de sua punição. Eu era a maneira que Deus escolhera para castigá-la; mas o que considerava como seu pecado? Não beber, consumir drogas ou ser uma vagabunda... nada disso. Seu pecado era confiar num homem. Ela estava certa? Era assim que todos os homens se comportavam? A maioria das amigas de mamãe concordava com ela sobre os homens. Muitas das minhas amigas, criadas em lares não muito melhores do que o meu, tinham idéias similares, ensinadas por suas próprias mães.

Eu me sentia mais sozinha do que nunca. Ficar mais velha, desenvolver-me como uma mulher, parecendo ter mais idade do que tinha, tudo isso não me fazia sentir mais independente e mais forte. Afinal, lembrava-me de que não podia contar com mais ninguém a não ser eu mesma. Tinha muitas dúvidas. Não eram poucas as coisas que me perturbavam, coisas que uma garota gostaria de perguntar à sua mãe. Mas eu tinha medo de perguntar à minha. E, de qualquer maneira, achava que na maior parte do tempo ela não era capaz de pensar com lucidez suficiente para respondê-las.

— Você tem o que precisa? — perguntou ela, largando a garrafa de cerveja vazia na lata do lixo.

— Como assim?

— Alguma coisa para usar como proteção. A tal enfermeira da escola não disse do que você precisava?

— Disse, mamãe. E tenho o que preciso. Só que eu não tinha.

Pois o que eu precisava mesmo era de uma mãe de verdade e um pai de verdade, para começar... mas isso era uma coisa que eu só veria na televisão.

— Não quero ser avisada de que você não foi à escola, Raven. Se isso acontecer, vou falar com o seu tio Reuben.

Ela costumava usar seu irmão como uma ameaça. Sabia que eu jamais gostara dele, que nunca me sentira bem em sua presença. Tinha a impressão de que seus próprios filhos não gostavam dele; e sabia que tia Clara sentia medo dele. Dava para perceber em seus olhos.

Mamãe foi para o quarto e voltou a dormir. Sentei junto da janela e olhei para a rua. Nosso apartamento era no terceiro andar. Não tinha elevador, apenas uma escada que parecia prestes a desabar, especialmente quando as crianças desciam correndo, ou quando o sr. Winecoup subia. Era o homem que morava no andar de cima. Pesava no mínimo cento e trinta quilos. O teto tremia quando ele andava de um lado para o outro em seu apartamento.

Olhei além da rua, para as montanhas a distância.

Pensei no que haveria no outro lado. Sonhava em fugir para encontrar um lugar em que o sol sempre brilhava, onde as casas eram limpas e tinham um cheiro agradável, onde os pais riam e amavam seus filhos, onde havia pais que se importavam e mães mais dedicadas.

”Você está pensando em viver na Disneylândia”, disse-me uma voz. ”Pare de sonhar.”

Levantei-me e iniciei meu dia de solidão, procurando alguma coisa para comer, assistindo à televisão, esperando mamãe acordar para podermos conversar sobre o jantar, antes de sua saída para o trabalho. Quando estava descansada e sóbria, ela podia sentar diante do espelho para maquiar-se. Ajeitava o rosto e os cabelos para proporcionar aos outros a ilusão de que era saudável e ainda atraente. Enquanto se maquiava, mamãe discorria sobre sua vida e o que poderia ter sido, se não tivesse se apaixonado pelo primeiro homem bonito que conhecera e acreditado em suas mentiras.

Eu tentava interrogá-la sobre sua juventude, mas ela detestava responder a perguntas sobre a família. Os pais praticamente a repudiaram. Saíra de casa quando tinha dezoito anos, mas não realizara nenhum de seus sonhos. A coisa mais importante e mais emocionante em sua vida fora o pequeno flerte com a profissão de modelo. O gerente de uma loja de departamentos a contratara para ser modelo na seção feminina.

— Mas acabei pedindo demissão, porque ele queria favores sexuais — declarou mamãe.

E, mais uma vez, ela se lançou a um dos seus discursos sobre os homens.

— Se odeia tanto os homens, mamãe, por que sai com um quase todas as noites?

— Não banque a espertinha, Raven. — Ela pensou por um momento, depois deu de ombros. — Tenho o direito de me divertir um pouco, não acha? Afinal, trabalho demais. Gosto que os homens me levem para um programa e gastem algum dinheiro comigo.

— Não quer conhecer algum homem correto, mamãe? Não gostaria de casar de novo?

Ela se contemplou no espelho. Os olhos se entristeceram por um instante, mas na mesma hora ela assumiu uma expressão furiosa e virou-se bruscamente para mim.

— Não! Nunca mais quero ter um homem mandando em mim. Além do mais, nunca fui casada. — Ela quase gritava agora. — Nunca tive um casamento, nem mesmo num tribunal.

— Mas pensei... meu pai...

— Ele era seu pai, mas não era meu marido. Apenas vivíamos juntos.

Mamãe desviou os olhos.

— Mas tenho o sobrenome dele... Flores — balbuciei.

— Foi apenas para salvar a minha reputação. — Ela virou-se para mim, com um sorriso frio. — Pode escolher o nome que quiser.

Eu me sentia atordoada, o coração disparado. Nem sequer tinha um sobrenome?

Quando me postava diante do espelho, quem eu via? Ninguém, pensei.

Era como se fosse invisível, concluí. Voltei a me sentar junto da janela, observando as nuvens cinzentas turbilhonarem na direção das montanhas, na direção da promessa de uma vida melhor.

Uma promessa.

Era tudo o que eu tinha.

Um terrível despertar

 

Despertei ao som de batidas, mas não sabia se era alguém batendo em nossa porta. Havia sempre pessoas socando as paredes do prédio durante todo o tempo, de dia e de noite. As batidas foram se tornando mais fortes, mais frenéticas, até que ouvi a voz do meu tio Reuben:

— Raven! Acorde logo! Raven!

Ele batia na porta com tanta violência que pensei que ia arrebentá-la. Peguei meu roupão e me levantei.

— Mamãe! — chamei.

Esfreguei os olhos para afugentar o sono, escutando. Tinha a impressão de que a ouvira chegar em casa, mas as noites eram tão misturadas e confusas em minha mente que não podia ter certeza. Fui até o quarto e olhei. Mamãe não estava lá.

— Raven! Acorde!

— Já vou!

Encaminhei-me apressada para a porta. Quando puxei a tranca, ele empurrou a porta com tanta força que quase me derrubou.

— O que aconteceu? — perguntei.

Tínhamos uma pequena lâmpada acesa no corredor, que transformava as paredes escuras e sujas num marrom da cor de um saco de papel molhado. Havia claridade suficiente por trás de tio Reuben para delinear seu corpo atarracado, de um metro e noventa de altura. Ele pairava na porta como alguma ave de rapina. O silêncio que se seguiu às suas batidas e chamadas urgentes me deixou ainda mais assustada. Tio Reuben parecia ofegar para recuperar o fôlego, como se tivesse subido a escada correndo.

— O que você quer? — perguntei.

— Pegue algumas roupas. Vai embora comigo.

— Por quê?

Recuei, passando os braços em torno do meu corpo. Detestaria ir a qualquer lugar com ele em plena luz do dia, ainda mais à noite.

— Vista-se depressa, Raven.

Encontrei o interruptor e acendi a luz da cozinha. A claridade revelou um rosto vermelho, inchado e suado, as partes salientes das faces parecendo em carne viva. Usava uma camiseta imunda e um jeans seboso. Embora ocupasse agora um cargo administrativo no departamento rodoviário, ainda conservava o corpo musculoso que desenvolvera como operário. Os cabelos castanho-escuros eram bem curtos, cortados à escovinha, fazendo as orelhas parecerem com as asas na cabeça de Mercúrio. Eu costumava me perguntar como mamãe e tio Reuben podiam ser irmãos. As feições dele eram grandes e pronunciadas. A única semelhança entre os dois eram os olhos.

— O que aconteceu? Por que está aqui?

— Não é porque eu queira, pode ter certeza. — Ele foi até a pia para despejar água num copo. — Sua mãe está na cadeia.

- O quê?

Tive de esperar que tio Reuben tomasse a água. Ele largou o copo na pia, como se esperasse que a criada o lavasse depois, e virou-se para mim. Por um momento, apenas me fitou. Seu olhar me deixou com a sensação de que um vento frio entrava por baixo do meu roupão. Cheguei a estremecer.

— Por que mamãe está na cadeia?

— Ela foi apanhada com um traficante. E desta vez o problema é sério. Você terá de morar conosco por algum tempo, talvez para sempre.

Ele disse isso e deu uma cusparada na pia.

— Morar com vocês? Senti meu coração parar.

— Pode ter certeza de que não me sinto nem um pouco feliz com isso. Foi ela que me pediu para vir buscá-la.

Tio Reuben falava com óbvia relutância. Era como se sua boca tivesse de fazer um grande esforço para abrir e fechar, pronunciar as palavras. Ele correu os olhos pelo pequeno apartamento.

— Que chiqueiro! Como alguém pode viver aqui? Antes que eu pudesse responder, ele tornou a se virar para mim.

— Pegue logo as suas coisas. Não quero continuar aqui um instante a mais que o necessário.

— Quanto tempo ela vai ficar na cadeia? — perguntei, as lágrimas começando a arder por trás das pálpebras.

— Não sei. Talvez anos — disse ele, sem qualquer emoção. — Ela ainda estava sob liberdade condicional daquela última condenação. Tenho de ir trabalhar daqui a poucas horas. Ande logo.

— Por que não posso ficar aqui?

— Pelo simples motivo de que o tribunal não vai permitir. Pensei que era uma garota inteligente. Se não vier comigo, será internada num orfanato.

Por um longo momento, considerei a opção. Estaria melhor com estranhos do que com o meu tio.

— E por outro motivo: prometi à sua mãe. — Ele estudou meu rosto por um instante e ofereceu um sorriso frio. — Sei o que está pensando. Também fiquei surpreso por ela se importar.

Minha respiração ficou presa na garganta. Tive de me virar para que tio Reuben não visse minhas lágrimas escapando e escorrendo pelas faces. Fui para o quarto e abri as gavetas da cômoda, a fim de pegar as minhas roupas. A única mala que eu tinha era pequena e precisava ser amarrada com cintos para fechar. Encontrei-a no fundo do armário e comecei a arrumar minhas coisas. Tio Reuben parou na porta e correu os olhos pelo quarto.

— Esse lugar fede demais — murmurou ele. Continuei arrumando minhas coisas. Não sabia por quanto tempo moraria com ele e tia Clara, mas não queria ficar sem meias nem calcinhas.

— Não precisa de tudo isso — disse ele, quando fui pegar mais roupas no armário. — Não quero baratas na minha casa. Leve apenas o básico.

— Tudo o que tenho é o básico, algumas blusas e jeans, dois vestidos. E não tenho baratas nas minhas roupas.

Ele soltou um grunhido. Jamais gostei de tio Reuben. Era um homem cheio de preconceitos, sempre dizendo a mamãe que seus problemas começaram porque ela se envolvera com um cubano. Gostava de se mostrar superior a nós porque fora promovido e usava um terno para trabalhar.

Eu tinha dois primos, William, de nove anos, e Jennifer, de quatorze. William era um menino dócil e retraído, que também gostava, como eu, de ficar sozinho. Falava muito pouco. Uma ocasião eu ouvira tia Clara comentar que muitos na escola pensavam que ele era autista. Jennifer era muito convencida. Tinha um jeito de empinar o nariz que fazia todos sentirem que se julgava superior. Quando eu tinha cinco anos, ficara tão revoltada com ela que pisara com toda força em seu pé, quase lhe quebrando um dedo.

Terminei de arrumar minhas coisas, peguei um jeans e um suéter. Tio Reuben continuava me observando. Passei por ele e fui me vestir no banheiro. Quando saí, ele estava me esperando na porta do apartamento, segurando a mala.

— Vamos embora, Raven. Tenho a sensação de que vou pegar alguma doença aqui.

Ele, tia Clara e meus primos moravam numa boa casa de dois andares. Mamãe e eu não íamos lá com freqüência, mas eu sempre invejara o quintal, os móveis de boa qualidade e os banheiros limpos. William e Jennifer tinham quartos separados. A casa ficava numa pequena comunidade, distante da cidade. O que significava que eu teria de estudar em outra escola.

— Onde vou dormir? — perguntei a tio Reuben, enquanto calçava os tênis.

— Clara está arrumando a sala de costura para você. Há um sofá-cama lá. Veremos o que fazer depois. Agora vamos embora.

— Tenho que deixar tudo? — indaguei, correndo os olhos pelo apartamento.

— O que há para deixar? Pratos velhos, móveis de segunda mão, ratos? Eu nem me daria ao trabalho de trancar a porta.

Ele começou a descer a escada. Parei na porta do apartamento. Tio Reuben tinha razão. Não passava de um buraco na parede, sujo e velho, podre em alguns lugares... mas fora o meu lar para mim. Por muito tempo, aquelas paredes haviam sido o meu pequeno mundo. Sempre sonhara em sair dali, mas agora que o fazia não podia deixar de sentir medo e alguma tristeza.

— Raven! — gritou tio Reuben no sopé da escada.

— Cale essa boca! — berrou alguém. — Há pessoas aqui querendo dormir!

Fechei a porta e desci apressada. Saímos para as ruas vazias. Ainda estava escuro. O resto do mundo dormia. Ele guardou minha bagagem na mala do seu carro e embarcou. Sentei ao seu lado. Olhei pela janela para o prédio de apartamentos, sonolenta. Apenas uma das três lâmpadas na entrada estava acesa. As sombras encobriam a tinta lascada e desbotada, as janelas quebradas do porão.

— Teve sorte de eu morar bastante perto para vir buscá-la, Raven — disse ele. — Senão acabaria indo para algum orfanato.

— Não sou uma órfã.

— É pior do que isso. Órfãos não têm uma mãe como a sua.

— Como pode falar assim de sua irmã?

Por pior que fosse mamãe, eu não podia ficar sentada ali de boca fechada enquanto ele arrasava com ela.

— Muito fácil. Não é a primeira vez que saí de casa de madrugada para salvá-la ou pagar-lhe a fiança, não é? Só que agora ela foi longe demais. Cansei. Ela é um caso perdido.

Tio Reuben olhou para mim, apontou o indicador direito, grosso e comprido, para meu rosto, sem parar de guiar, enquanto acrescentava:

— E vou lhe dar um aviso desde o começo. Não quero que corrompa meus filhos, está me ouvindo? A primeira vez que levar a desgraça para a minha casa será a última. Pode ter certeza.

Enrosquei-me tão longe dele quanto possível e fechei os olhos. É um pesadelo, pensei, apenas um pesadelo. Daqui a pouco vou acordar e me descobrir no sofá-cama da sala do nosso apartamento. Talvez escute mamãe cambaleando de um lado para o outro. Subitamente, isso já não parecia tão ruim.

Seguimos em silêncio durante a maior parte do resto do caminho. De vez em quando tio Reuben murmurava algum palavrão ou se queixava de ter sido arrancado de um sono profundo pela irmã bêbada e imprestável.

— Devia haver uma maneira de se repudiar os parentes — resmungou ele —, entrar num tribunal e se declarar uma alma independente, a fim de que não possam procurá-lo ou arruinar sua vida.

Fiz um esforço para ignorá-lo. Voltei a dormir. Abri os olhos quando paramos na frente de sua casa. Havia luzes acesas no primeiro andar. Ele saltou e abriu a mala do carro. Quase arrebentou minha mala quando a tirou. Segui-o para a porta da frente. Tia Clara abriu-a antes de chegarmos lá.

Tia Clara era um mistério para mim. Não havia duas pessoas tão diferentes do que ela e tio Reuben. Era uma mulher pequena, frágil, delicada, de voz baixa. Seu rosto em geral irradiava compaixão e preocupação. Até onde eu podia saber, nunca nos desdenhara ou dissera coisas ruins a nosso respeito, não importava o que mamãe fizesse. Mamãe gostava dela; e, ironicamente, dizia que sentia mais pena de tia Clara do que de si mesma.

— Viver com meu irmão é um fardo muito maior — comentava ela.

Tia Clara tinha cabelos castanho-claros, sempre bem cortados, por cima das orelhas. Usava pouca maquilagem, mas o rosto era em geral brilhante e animado, por causa do azul profundo nos olhos afetuosos e do sorriso suave nos lábios pequenos. Era apenas uns poucos centímetros mais alta do que eu. Quando ficava ao lado de tio Reuben, podia passar por uma de suas crianças.

Esperava por nós com as mãos cruzadas e comprimidas contra os seios pequenos.

— Minha pobre criança... — murmurou ela. — Vamos, entre logo.

— É mesmo uma pobre criança — resmungou tio Reuben. — Devia ver o apartamento. Como uma mulher adulta pode viver num lugar como aquele... e ainda por cima com a filha?

— Ela saiu de lá agora, Reuben.

— É verdade. E agora vou me deitar. Algumas pessoas precisam trabalhar para ganhar a vida.

Ele entrou na casa e subiu a pequena escada. O corrimão tremia sob seu punho enquanto ele se puxava pelos degraus. Largara minha mala na entrada.

— Quer tomar uma xícara de leite quente, Raven? — perguntou tia Clara.

— Não, obrigada.

— Imagino que também está cansada. É uma coisa terrível para todos. Venha comigo. Já arrumei a sala de costura para você.

A sala de costura era no primeiro andar, ao lado da sala de estar. Não era grande, mas tinha um papel de parede bonito, cheio de flores, um tapete cinza-claro, uma mesa com uma máquina de costura, uma cadeira e o sofá-cama. Tinha uma janela grande, com uma cortina de algodão branca, virada para o lado leste. Assim, o sol a iluminaria pela manhã. Havia nas paredes alguns bordados emoldurados de tia Clara. Eram cenas de casas de fazenda e animais, além de uma mulher e uma menina sentadas ao lado de um regato.

— Sabe onde fica o banheiro; no final do corredor — disse ela. — Eu gostaria de ter outro quarto, mas...

— Está ótimo, tia Clara. Detesto ocupar sua sala de costura.

— Não tem importância. Posso fazer tudo em outro lugar. Não se preocupe mais com isso, criança. Amanhã, você vai apenas descansar. Antes do dia terminar, talvez possamos ir à escola para matriculá-la. Não queremos que fique muito atrasada nos estudos.

Não quis contar a ela que já estava muito atrasada.

— Ali está uma escova de dentes nova — informou ela, apontando para a mesa. — Ganhei na última vez em que fui ao dentista.

— Obrigada, tia Clara.

Ela me fitou em silêncio por um momento, depois balançou a cabeça e afagou meus cabelos.

— As coisas que fazemos com nossos filhos...

Tia Clara me deu um beijo na testa e subiu. Fiquei parada ali por algum tempo. Para tia Clara, aquela sala não era grande coisa; para mim, no entanto, era melhor que um hotel de luxo. A casa recendia a limpeza. Era silenciosa, sem rangidos, sem vozes soando através das paredes, sem passos fazendo o teto tremer.

Tirei as roupas e deitei sob o edredom limpo. O sofá-cama era mais firme do que o nosso, o travesseiro macio. Sentia-me tão confortável e tão cansada que esqueci por um momento que mamãe estava na cadeia. Exausta, assustada e confusa, não tinha condições de pensar direito. Fechei os olhos.

Tornei a abri-los quando senti que alguém me observava. Já era de manhã. A luz do sol entrava pela janela. Eu esquecera onde estava e sentei-me abruptamente. Deparei com William parado ali, olhando para mim.

— Mamãe diz que você vai morar conosco agora — murmurou ele, falando bem devagar.

Esfreguei o rosto com as palmas e respirei fundo, enquanto tudo tornava a aflorar em minha mente.

— William, tire o rabo daí agora mesmo e venha terminar de comer! — gritou tio Reuben.

William ainda hesitou, mas logo saiu apressado. Recostei a cabeça no travesseiro, olhando para o teto.

— Sua mãe está na cadeia — ouvi Jennifer dizer da porta.

Virei-me para fitá-la. Seus cabelos castanho-claros estavam presos atrás da cabeça com uma fita. Era uma garota alta, com uma estrutura óssea larga, que a fazia parecer mais corpulenta do que era. As feições de tia Clara eram ofuscadas pelo que ela herdara de tio Reuben. O nariz de Jennifer era mais largo e mais longo, assim como a boca. Os olhos eram de tia Clara, mas pareciam deslocados num rosto tão grande. Ela era também mais larga na cintura. Mas tio Reuben a tratava como se fosse uma beleza deslumbrante. Nunca houve qualquer dúvida em minha mente de que ele a preferia, em detrimento de William. Afinal, William era pequeno e frágil, muito parecido com tia Clara.

— É o que seu pai disse — murmurei.

— Ele não mentiria sobre isso, não é? Que coisa embaraçosa! E agora, ainda por cima, você vai estudar na minha escola.

— Não quero.

— Só peço que não conte a ninguém o que aconteceu com sua mãe. Inventaremos uma história.

— Que história?

Ela pensou por um momento, depois sorriu.

— Já sei. Diremos que ela morreu.

 

             Pesadelo de Cinderela

Você pensa que é? Uma princesa? — berrou tio Reuben da porta. — Todo mundo já levantou e tomou o café da manhã. Clara não vai ficar esperando por você.

— Eu já ia me levantar — respondi. — Não sabia que era tão tarde. Não há relógio aqui... e não tenho um.

— Não tem um relógio? Vou providenciar. Essas desculpas não funcionam aqui.

— Não é uma desculpa. É a verdade.

Ele estava parado na porta, com as mãos nos quadris. Lançou um olhar pelo corredor e entrou na sala de costura.

— Vamos fixar algumas regras. Primeiro, daqui por diante você levanta antes de todo mundo. Põe a mesa e faz o café. Antes de sair para a escola, tire a mesa e guarde toda a louça e os talheres. Ao voltar da escola, espero que ajude Clara. Quero vê-la limpando a casa, lavando as janelas, encerando o chão. Vai ajudar também com a roupa suja. Não vai ter uma estada de graça aqui só porque sua mãe é uma fracassada. Entendido?

Fitei-o com uma expressão furiosa.

— Quando faço uma pergunta, espero uma resposta. Você precisa de disciplina. É como um animal selvagem, vivendo naquele buraco, com a bêbada da minha irmã. Mas tudo isso termina hoje, entendeu?

— Eu não vivia como um animal selvagem. Ele sorriu.

— Parece que vou acabar me tornando seu tutor legal. O que significa que deverá me obedecer. E vou avisando desde já, Raven: não hesito em dar uma surra e não suporto criança mimada. Entendido?

Ele levantou a mão enorme. A palma parecia tão grande quanto um remo.

— Entendido.

Tio Reuben parara quase em cima de mim, o rosto vermelho de fúria. Não tive a menor dúvida de que ele me bateria se achasse conveniente. E senti medo.

— Raven... — murmurou ele, contraindo os lábios. — Como se pode dar um nome assim a uma garota?

— Gosto do meu nome.

Tio Reuben podia ser assustador, mas eu ainda tinha meu orgulho. Ele continuou parado por mais um longo momento, olhando para mim. Puxei o edredom para os ombros, mas experimentei a sensação de que ele podia ver através.

— Sei que você está crescendo e depressa, Raven. Lembro o que aconteceu com sua mãe, como ela era quando os meninos começaram a observá-la. É melhor você não seguir pelo mesmo caminho. Não quero que corrompa minha Jennifer. Entendido?

Virei o rosto, as lágrimas em meus olhos tornando impossível fitá-lo por mais tempo. Eu não era uma doença. Não contagiaria a sua preciosa Jennifer.

Ele soltou um grunhido e se retirou. Pude ouvi-lo repetindo para tia Clara o que me dissera, quais seriam minhas tarefas. Ela não discutiu. Pouco depois, ouvi-o sair, com Jennifer e William. Esperei mais um tempo e me levantei.

— Está com fome, querida? — perguntou tia Clara, quando fui para o banheiro.

— Só um pouco.

— O café ainda está quente. Posso fazer ovos mexidos, se quiser, até um mingau de aveia.

— Pode deixar que cuidarei de mim mesma, tia Clara. Por favor, não pense que terá de me servir.

— Não se preocupe com isso.

Depois de me lavar e vestir, servi-me de um pouco de cereal frio num prato. Tia Clara me ofereceu um copo com suco de laranja. Sentou comigo, enquanto eu comia.

— O latido de Reuben é pior do que a mordida — comentou ela, tentando me tranqüilizar. — Ele apenas ficou meio perturbado com a surpresa. Não se preocupe com todas as ordens que ele dá.

— Não me importo de ajudar. Afinal, eu fazia quase tudo em casa.

— Posso imaginar.

Tia Clara balançou a cabeça e tomou um gole de café.

— O que vai acontecer com minha mãe, tia Clara? Ela vai mesmo passar muito tempo na prisão?

— Não sei. Reuben disse que eles podem levá-la para um programa de reabilitação de drogados. Mas teremos de esperar para ver. Não é a primeira vez que ela se mete numa grande encrenca.

Reconheci o fato com um balanço de cabeça. Não havia sentido em fingir que não era verdade, ou viver num mundo de sonho. Mamãe estava mesmo metida numa tremenda encrenca. O que significava que a mesma coisa ocorria comigo. Quem queria morar com uma prima como Jennifer e um tio como tio Reuben? Eu preferia viver nas ruas.

— Pense apenas em descansar um pouco, querida — murmurou tia Clara. — Passou por um choque terrível. Depois que eu arrumar a casa, podemos almoçar. E logo em seguida eu a levarei à escola para fazer a matrícula. Está bom assim?

— Eu a ajudarei a arrumar a casa, tia Clara. É o que tio Reuben quer... e ajudará a manter a paz.

— Uma garota esperta, não é? — Ela sorriu e bateu de leve em minha mão. — Mas continue sentada aqui e termine de comer primeiro.

Tia Clara subiu a escada. Depois que acabei, tirei a mesa e lavei toda a louça. Fui me encontrar com ela no momento em que começava a arrumar o quarto de Jennifer. Parei na porta, chocada com a bagunça. Havia roupas espalhadas por toda parte, um prato com sobras de torta de maçã no chão, ao lado da cama, onde o telefone também fora largado. Imaginei-a sentada ali, conversando com amigas e comendo a torta. Mas por que deixara o prato no chão? Não se preocupava com camundongos e baratas?

A cama estava desarrumada. O banheiro que ela partilhava com William dava a impressão de que alguém tivera de sair às pressas. Os potes de maquilagem estavam destampados, ainda havia água suja na pia, um tubo de batom ao lado, a pasta de dentes aberta, um pouco escorrendo para o balcão, a toalha de rosto pendurada na maçaneta, revistas no chão, junto do vaso. A porta do boxe ficara aberta, havia uma toalha molhada no chão lá dentro.

Tia Clara começou a limpar sem fazer qualquer comentário sobre a sujeira.

— Por que ela deixa o quarto e o banheiro desse jeito, tia Clara? Falar em viver num chiqueiro... Acho que tio Reuben não costuma ver as coisas aqui.

— Claro que ele vê. — Tia Clara soltou um profundo suspiro. — Vivo brigando, mas Jennifer... Ela é um pouco mimada.

— Um pouco? Isto parece coisa de uma garota mimada demais.

Mas tratei de ajudar. Limpei o banheiro até deixálo impecável. Lavei inclusive os espelhos, manchados de batom e maquilagem.

O quarto de William era mais organizado e mais limpo. O pior era a cama desarrumada. Assim que acabei, desci e arrumei a sala de costura. Endireitei o sofácama para não parecer mais com um quarto. Com minhas poucas coisas guardadas, ninguém poderia imaginar que eu dormira ali.

— Não precisa fazer isso todos os dias — comentou tia Clara. — Basta fechar a porta.

— Tenho certeza de que tio Reuben não gostaria nem um pouco se eu fizesse isso.

Ela não discutiu. Muito embora ele já tivesse saído, sua sombra parecia perdurar na casa. Pela maneira como tia Clara olhava para trás a todo instante, era quase como se acreditasse que a sombra contaria ao marido tudo o que conversávamos.

Depois que arrumamos os quartos, ela começou a passar o aspirador na sala de estar. Dei um polimento em alguns móveis e limpei o chão da cozinha. Precisava me manter ocupada para não pensar em mamãe na cadeia.

— Você não tem medo de trabalhar, Raven. Espero que alguns dos seus bons hábitos contagiem Jennifer — comentou ela, mas sem muito otimismo.

Tia Clara fez uma salada de galinha para o nosso almoço. Sentamos e conversamos. Eu não a conhecia direito. Ela descreveu onde fora criada, como conhecera tio Reuben. Disse que começara a trabalhar no departamento de obras públicas logo depois de se formar na escola secundária.

— Ele era como um Atlas trabalhando nas ruas. Tirava a camisa, deixava os músculos brilhando ao sol. Não era tão corpulento naquele tempo. — O tom era afetuoso. Tia Clara soltou uma risada. — Um dia ele fingiu ter de cuidar de uma obra bem na frente da casa dos meus pais, só para me visitar. Casamos cerca de quatro meses depois. Minha mãe esperava que pelo menos eu cursasse uma escola de secretariado, mas os jovens costumam ser impulsivos.

Ela se calou por um longo momento, pensativa. Depois, sacudiu a cabeça e afagou minha mão.

— Não se jogue nos braços do primeiro homem que encontrar, querida. Trate de recuar, escute a cabeça em vez do coração, demore todo o tempo que precisar para tomar uma decisão.

Parecia-me que todas as mulheres me davam o mesmo conselho. Já começava a acreditar que o amor era uma armadilha que os homens preparavam para mulheres inocentes. Diziam o que queríamos ouvir. Escreviam promessas com letras de ouro. Povoavam nossa cabeça com sonhos, faziam com que tudo parecesse fácil. Depois de se satisfazerem, iam embora e montavam uma nova armadilha para outra inocente. Até mesmo tia Clara, que casara com seu jovem namorado, descobrira que fora apanhada numa armadilha. Tio Reuben dominava sua casa como um ogro, transformava-a numa criada de luxo, em vez de colocá-la num pedestal, como eu tinha certeza que ele prometera. Ela se limitava a balançar a cabeça e seguia pelos dias como um rato preso num labirinto.

Depois do almoço, ela pegou o carro e me levou à escola. Era menor e parecia mais sossegada do que a minha. O diretor, sr. Moore, um homem corpulento e de pescoço grosso, em torno dos quarenta anos, convidou-nos para sentar em sua sala. Ouviu o relato de tia Clara, depois chamou a secretária e ditou algumas ordens.

— Quero que entre em contato com a escola anterior dela, fale com a orientadora, peça que sua ficha seja enviada para cá, Martha, o mais depressa possível — disse ele, impressionando-me pela facilidade com que assumia o comando. — Vamos precisar de instruções do juizado de menores sobre a situação da menina. Suponho que você e seu marido serão os tutores legais.

— Isso mesmo — confirmou tia Clara.

— Ela vai se dar bem aqui. — O diretor olhou para mim. — Sei que não será fácil para você, mas deve considerar como será para seus novos professores. Eles têm o fardo adicional de fazê-la acompanhar o resto da turma. As matérias podem ser as mesmas, mas cada professor tem seu jeito de ensinar. Portanto, as diferenças são inevitáveis. Alguns professores avançam pelo currículo mais depressa do que outros.

— Sei disso — murmurei.

Ele me fitou em silêncio por um momento, com uma expressão preocupada, mas depois sorriu.

— Por outro lado, você tem uma prima que já estuda aqui. Ela deve ser de grande ajuda. — O sr. Moore olhou para tia Clara. — Sua filha não é um ano mais velha do que Raven?

— É, sim.

— Não é uma diferença grande. Tenho certeza de que possuem interesses similares. Ela poderá ajudá-la a entender nossas normas e regulamentos. Trate de se comportar e nos daremos muito bem. Certo?

Balancei a cabeça. O sr. Moore sugeriu que eu começasse a assistir às aulas imediatamente.

— Não há sentido em perder mais tempo. Ainda dá para ela assistir às aulas de matemática e estudos sociais. Pelo menos receberá os livros dessas matérias.

— É uma boa idéia — concordou tia Clara.

Um estudante que trabalhava como assistente da diretoria me levou à sala de aula e me apresentou ao professor de matemática, sr. Finnerman, que me entregou um livro e me designou para a última carteira na primeira fila. Todos se viraram para mim, observando cada movimento meu. Recordei como me sentia interessada quando um novo aluno entrava na turma. Tinha certeza de que todos sentiam a mesma curiosidade.

Uma jovem negra, que se apresentou como Terri Johnson, levou-me até a sala de estudos sociais. No caminho, apresentou-me a vários colegas, chamando-me de ”a nova aluna”. Ao nos aproximarmos da sala, avistei Jennifer andando pelo corredor, com duas amigas. No momento em que me viu, ela parou e soltou um gemido.

— É ela! — ouvi-a dizer para as amigas, ao passar por mim sem me cumprimentar.

Foi pior ainda quando a aula de estudos sociais acabou e tive de procurar o ônibus escolar certo, que me levaria para casa. Jennifer já estava ali, sentada no fundo, com as amigas. Fingiu que não me conhecia. Sentei na frente e fiquei conversando com um rapaz magro e de cabelos escuros, chamado Clarence Dunsen. Ele gaguejava muito. O que o tornava tímido, mas também desconfiado. Depois de me dirigir a palavra, ele esperou para ver se eu zombaria. Olhei para Jennifer, cuja risada ressoava pelo ônibus, mais alta do que qualquer outra.

Por favor, mamãe, pensei, tenha um bom comportamento, faça todas as promessas, até rasteje se for necessário, mas saia da prisão e me leve de volta para casa, para qualquer lugar, contanto que me tire daqui.

— Tenho notícias — anunciou tia Clara, assim que entramos em casa.

— O que aconteceu? — indaguei, apertando os livros contra meu peito com toda força.

— Sua mãe não vai mais para a prisão.

— Graças a Deus!

Eu já ia acrescentar: ”E adeus para você, Jennifer, sua presunçosa e mimada”, mas percebi que tia Clara não sorria.

— O que mais, tia Clara?

— Ela tem de se internar num centro de reabilitação de drogados. Pode passar um bom tempo ali, Raven. Não querem nem permitir que ela telefone para você enquanto o terapeuta não autorizar.

— Ahn... — balbuciei, arriando numa cadeira.

— É melhor do que poderia ser — comentou tia Clara.

— É demais. Tenho uma tia num centro de reabilitação de drogados. — Jennifer virou-se para mim, os olhos irradiando ódio. — É melhor você fazer o que eu falei e dizer a todo mundo que sua mãe morreu.

Não respondi.

— Não fale assim, Jennifer — interveio tia Clara. — E deve saber que sua prima me ajudou a limpar seu quarto. Veja se consegue mantê-lo arrumado.

— Qual é o problema? Ela tem mesmo de arrumar a casa. Ouviu o que papai disse. Ela não vai viver à nossa custa?

— Jennifer! — gritou tia Clara. — Onde estão sua caridade e seu amor?

— Amor? Eu não a amo. Já foi bastante difícil explicar quem ela era. Todos queriam saber por que ela é tão escura. Tive de contar o que seu pai era.

— Jennifer!

— Você não é melhor do que eu só porque sua pele é mais branca — protestei.— Claro que não — disse tia Clara. — Jennifer, nunca lhe ensinei essas coisas horríveis.

— Não é justo, mamãe. Todos os meus amigos vão ficar pensando coisas sobre a nossa família agora. Não é justo!

— Pare de falar assim ou contarei para seu pai.

— Pode contar — desafiou ela, com um sorriso, para depois subir a escada.

— Não sei de onde ela tirou tanto rancor — murmurou tia Clara.

Fitei-a, aturdida. Será que ela era tão cega assim? Ou deliberadamente enterrava a cabeça na areia? Era fácil perceber que Jennifer herdara todo o rancor e mesquinhez de tio Reuben.

— Sinto muito — acrescentou tia Clara.

— Não se preocupe, tia Clara. Vou ficar muito bem, com ou sem a amizade de Jennifer.

A porta foi aberta e William entrou, em passos lentos. Olhou para mim com alguma timidez.

— Como foi seu dia na escola, William? — perguntou tia Clara.

Ele abriu seu caderno e tirou um teste de ortografia em que recebera um noventa.

— Mas isso é maravilhoso! Olhe só, Raven! Dei uma olhada.

— Meus parabéns, William. Terei de pedir sua ajuda nos deveres de ortografia.

Ele assumiu uma expressão agradecida, mas pegou o teste de volta e tornou a guardá-lo no caderno sem dizer nada.

— Quer um copo de leite e biscoitos, William? — perguntou tia Clara.

Ele sacudiu a cabeça, tornou a me fitar, com a expressão mais próxima de um sorriso a que podia chegar, depois subiu apressado para seu quarto.

— Ele é muito tímido — murmurei, observando-o subir. — Não sabia que era tanto assim. Não tem amigos com quem costuma brincar depois das aulas?

Tia Clara balançou a cabeça, desolada.

— Ele passa a maior parte do tempo sozinho. A orientadora da escola já me chamou para uma conversa. Os professores acham que ele é retraído demais. Todos dizem que nunca levanta a cabeça durante as aulas. Mal fala com os colegas. Você o viu. William mais parece uma tartaruga prestes a recolher a cabeça para dentro do casco. Não sei por quê.

Os olhos dela se encheram de lágrimas. Tive vontade de passar o braço em torno de seus ombros.

— Ele vai crescer e mudar, tia Clara.

Mas ela não sorriu. Apenas sacudiu a cabeça.

— Alguma coisa não está certa, mas não sei o que é. Já o levei ao médico. Ele é saudável, quase nunca fica resfriado, mas... — A voz definhou. Depois de um longo momento, tia Clara virou-se para mim, ainda em lágrimas, e perguntou: — O que leva um menino a se comportar desse jeito?

Eu não sabia naquele momento. Mas logo descobriria o motivo. Só que não seria capaz de encontrar as palavras certas para contar a ela.

 

                                 O lar difícil

- Centro de reabilitação de drogados... — murmurou tio Reuben, enquanto mastigava o pedaço de bife. Quando mamãe e eu comíamos carne, era quase sempre sobras requentadas que ela trazia do Charlie’s. — É um desperdício de dinheiro do governo.

Ele parecia triturar as palavras amargas com os dentes, como fazia com a carne.

— Não será um desperdício de dinheiro se puder ajudá-la — murmurou tia Clara.

Tio Reuben parou de mastigar e fitou-a, furioso.

— Ajudá-la? Nada pode ajudá-la. Ela é um caso perdido. A melhor coisa seria trancafiá-la e jogar a chave fora.

Jennifer riu. Levantei os olhos do meu prato para fitá-la.

— Pare de me olhar desse jeito — queixou-se ela. — É falta de educação ficar olhando fixamente para as pessoas... não é isso mesmo, papai?

Tio Reuben olhou para mim e confirmou com a cabeça.

— Claro que é. Mas como ela poderia saber? Jennifer soltou outra risada. Depois, sorriu para mim. Minha carne tinha gosto de papelão, parecia entalar na garganta. Parei de comer e inclinei a cabeça para trás.

— Gostaria que me dessem licença — murmurei.

— Nada disso. Não vai sair desta mesa enquanto não acabar. — Tio Reuben apontou com a cabeça para o meu prato. — Não desperdiçamos comida aqui.

Jennifer cortou seu bife e pôs-se a mastigar, com um sorriso largo no rosto redondo, fingindo saborear ao máximo.

— Está uma delícia...

— É falta de educação falar com comida na boca — declarei no mesmo instante.

William levantou o rosto com um sorriso exultante nos olhos. Jennifer parou de mastigar e olhou para tio Reuben. Ele continuou a pegar batatas no prato e a enfiálas na boca como se quisesse acabar em tempo recorde.

— Fiz uma torta de nozes, Reuben — interveio tia Clara. — Sua predileta.

Ele balançou a cabeça como se não esperasse menos. Todos aqui são mimados, refleti.

— Tirei oitenta no meu teste de inglês, hoje — anunciou Jennifer.

— Fala sério? — disse tio Reuben. — Oitenta? Isso é ótimo.

— Tenho uma possibilidade de entrar no quadro de honra da turma se o sr. Finnerman me der uma boa nota em matemática neste trimestre — gabou-se ela.

— Ouviu isso, Clara? É a minha garota deixando seu papai orgulhoso.

— É maravilhoso — concordou tia Clara. — William voltou para casa com um noventa em ortografia.

William olhou para o pai, mas tio Reuben continuou a mastigar, limitando-se a um ligeiro aceno de cabeça.

— Acho que tenho de cuidar dos documentos de

Raven — disse ele, depois de um longo momento. — Foi tudo bem na escola?

— Foi, sim — respondeu tia Clara. — Ela está matriculada.

— Que tipo de notas você costuma tirar, Raven? — perguntou ele.

— Passo em tudo — murmurei, desviando os olhos.

— Posso apostar. Sua mãe alguma vez perguntou como você ia na escola?

— Claro que sim! — respondi, indignada, fazendo-o contrair os lábios. — Ela tinha de assinar meu boletim. Por isso, sempre via minhas notas.

— Nunca falsificou a assinatura dela? — perguntou Jennifer, com um sorriso capaz de congelar lava.

— Por quê? É isso o que você faz?

— Claro que não. Não preciso. Passo em tudo. E papai assina meus boletins. Não é, papai?

— Sempre. — Ele empurrou a cadeira para trás e levantou-se. — Se ela vai desperdiçar comida, Clara, não lhe dê tanto para começar. Dou o maior duro para ganhar dinheiro e pagar tudo.

Embora meu estômago protestasse, forcei-me a engolir o último pedaço de carne e mais uma garfada de ervilhas.

— Quero ver o noticiário. Pode me chamar quando o café e a torta forem servidos.

Tio Reuben deixou a mesa para ligar a televisão. Meus olhos acompanharam-no por um instante. Depois, olhei para William, que me fitava com uma expressão compreensiva. Sorri para ele, e seu rosto se iluminou.

— Tenho de fazer meus deveres, mamãe. E não preciso fazer nada com a louça do jantar, não é? — Jennifer acenou com a cabeça para mim. — Ela vai lavar tudo.

— Ainda assim você deve ajudar, Jennifer.

— Não posso. Ouviu o que papai disse. Ele quer que eu entre no quadro de honra. Não quer que eu faça meus deveres?

— Claro que quero.

— Nesse caso, vou subir agora — disse Jennifer, levantando-se de um pulo. — Descerei mais tarde para comer uma fatia de torta.

Ela saiu da cozinha. Tia Clara balançou a cabeça, desolada.

— Eu ajudo — murmurou William, começando a tirar a mesa junto comigo.

Depois que acabamos, ele perguntou:

— Quer ver a casa de passarinhos que eu fiz?

Tia Clara sorriu para mim, feliz porque William começava a sair um pouco de seu casco.

— Claro que quero — respondi.

— Está no meu quarto. Fiz sozinho.

Segui-o para seu quarto. Ele tirou a casa de passarinhos da prateleira. Era triangular, com espigas de milho secas presas no lado de fora.

— Colei todas — comentou ele, mostrando como as espigas estavam firmes.

Segurei a casa com todo cuidado.

— É maravilhosa, William. Deve ter demorado para construir uma casa assim do nada. Quanto tempo levou?

— Dois dias — respondeu ele, orgulhoso. — Assim que poupar dinheiro suficiente, vou comprar um binóculo para poder observar os passarinhos que chegarem perto da minha casa. Sabe alguma coisa sobre passarinhos?

Sacudi a cabeça. William foi até sua mesa para pegar uma enciclopédia de aves. Continha fotos coloridas das aves, seus habitats e indicações do tipo de alimentos que comiam. Depois, ele me mostrou outro livro, que dava instruções para a construção de casas de passarinhos.— Esta é a próxima que quero construir — comentou ele, apontando para uma casa de dois andares.

— É linda. Tem certeza que pode construir isso?

— Claro — garantiu ele, confiante. — Eu a avisarei quando tiver o material. Poderá observar a construção, se quiser.

— Obrigada.

William me ofereceu o melhor sorriso, que deixou seus olhos radiantes.

— É melhor eu começar meus deveres agora — murmurei.

Saí do quarto. Ao passar pelo quarto de Jennifer, que tinha a porta entreaberta, avistei-a enroscada no chão, falando ao telefone. Parei por um instante. Ela me fitou.

— O que está fazendo aqui? — indagou Jennifer, ríspida. — Veio me espionar?

— Claro que não. Mas pensei que tinha subido para fazer seus deveres... ou freqüenta algum curso novo de fofoca?

Desci a escada, o coração batendo forte. Ouvi-a bater a porta do quarto.

Como a sala de costura ficava tão perto da cozinha, pude ouvir a conversa entre tio Reuben e tia Clara, enquanto ele tomava seu café e comia a torta.

— Não vamos sair por aí gastando um bocado de dinheiro com roupas novas para ela. Quero ver se consigo arrumar alguma ajuda do governo. Acho que se você aceita uma criança em sua casa, eles deveriam dar algum dinheiro para sustentá-la.

— Ela precisa de coisas, Reuben — insistiu tia Clara, a voz baixa. — Não quer voltar para verificar o que mais ela tem no apartamento?

— De que adiantaria? Teríamos de fazer uma dedetização.

— Não podemos deixá-la usar apenas o que ela trouxe.

— Está bem, está bem. Pode comprar algumas roupas para ela. Mas não quero que gaste muito dinheiro, Clara. Lembre-se que temos Jennifer, que precisa de roupas novas. Sabe como ela vem crescendo depressa.

— Talvez Jennifer possa partilhar algumas de suas roupas com ela — sugeriu tia Clara.

Ele soltou um grunhido, para depois acrescentar:

— Se isso acontecer, cuide para que Raven esteja muito limpa antes de vestir qualquer coisa de Jennifer.

— Ela é muito limpa, Reuben. Uma ótima garota, apesar da vida que levava com sua irmã.

— Veremos... — Ele se levantou. — Mande-a arrumar a cozinha antes de se deitar. Quero que ela aprecie tudo o que tem aqui.

— Ela aprecia.

Tio Reuben não disse mais nada. Ouvi-o voltar para a sala e ligar a televisão. Fui ajudar tia Clara.

— Não precisa fazer isso, Raven — sussurrou ela. — Não resta muita coisa. Vá cuidar dos seus deveres.

— Não trouxe muitos deveres, tia Clara. Tenho de me reunir com os professores depois das aulas todos os dias, durante a próxima semana, para poder alcançar o resto da turma. Quando saberemos que dia mamãe poderá falar comigo?

Ela balançou a cabeça.

— Não sei, querida. Reuben saberá mais amanhã.

— Ele devia ter dado mais importância ao teste de ortografia de William — comentei. — E oitenta não é uma nota tão boa assim.

Tia Clara fitou-me com algum medo nos olhos, murmurou uma concordância cautelosa:

— Também acho. Tenho insistido com ele para passar mais tempo com William.

— Não sei se isso ajudaria — murmurei, mais para mim mesma.

Se tia Clara ouviu, não respondeu. Ela ficou imóvel de repente, como se visse um fantasma. Virei-me. Tio Reuben estava parado na porta.

— Ela deve fazer isso sozinha, Clara. Você precisa descansar.

Os olhos de tio Reuben fixavam-se em mim.

— Não resta mais nada para fazer, Reuben.

Ele continuava a me fitar. Teria ouvido meu comentário?

— Está bem, Reuben — acrescentou tia Clara. — Já estou indo.

Ela enxugou as mãos numa toalha de prato e deixou a cozinha. Depois que ela se retirou, tio Reuben lançou-me outro olhar irritado e seguiu-a.

Pelo que eu já vira, compreendi que tio Reuben manipulava a família naquela casa com um olhar, uma palavra, um gesto. Era como um titeriteiro. Todos saltavam quando ele puxava os cordões. Podia sentir que tio Reuben também amarrava cordões em meus braços e pernas. Muito em breve me tornaria apenas outro boneco.

Assim que acabei os deveres da escola, arrumei a cama e vesti a única camisola que possuía. Deitada ali, olhando pela janela para as estrelas que cintilavam entre as nuvens, pensei que, de alguma forma, me transformara na Cinderela sem o sapato de cristal mágico da fada madrinha. Não haveria qualquer magia em minha vida.

Houvera um tempo em que eu sonhava com lugares distantes, belas casas, rapazes bonitos, bailes de gala, boas roupas e jóias. Participava do meu filme, projetando as cenas na parede da minha imaginação. Tudo para escapar daquele pequeno apartamento.

Tive de rir.

Aqui estava eu, fora do apartamento, com uma família, estudando numa nova escola... e com o que sonhava? Em voltar para o meu pequeno apartamento.

Na verdade, passei a gostar da nova escola. Como as turmas eram bem menores, os professores podiam me dedicar mais tempo. Também comecei a fazer amizades. Jennifer continuava a me evitar tanto quanto possível, mas eu aceitava isso. Pelo que podia observar de suas amigas, garotas parecidas com ela, egoístas, vaidosas, mentirosas, achava até melhor assim. Havia muitas outras alunas mais simpáticas para conhecer.

Jennifer estava longe de ser a moça virtuosa que fingia ser na presença de tio Reuben. Andava com garotas que fumavam no banheiro. Pelo que me disseram e que eu pude ver, ela muitas vezes colava nos deveres e provas. Descobri que os professores também não gostavam dela. Terri Johnson me contou que Jennifer e suas amigas costumavam fazer pequenos furtos em lojas nos shoppings apenas pela emoção. Ali estava ela, uma moça com pais, uma boa casa e todo o resto, mas não era melhor do que várias outras que eu conhecera, de famílias destruídas e morando em lugares horríveis. Perguntei-me o que tio Reuben faria se descobrisse aquelas coisas sobre sua preciosa filha.

Um dia, no refeitório, Jennifer parou com duas amigas à minha mesa. Interrompi a conversa e fitei-a.

— Está atrasada na lavagem da roupa — disse ela. — Preciso daquela blusa azul e branca amanhã. Trate de providenciar.

Fiquei boquiaberta, enquanto desviava os olhos de Jennifer para suas amigas sorridentes.

— Então por que não a lava você mesma? — indaguei.

— Não é você quem precisa fazer jus a casa e comida?

— E você?

— Não preciso. Tenho pais — respondeu ela, presunçosa. — Faça o que mandei ou contarei a papai.

Depois da ameaça, ela se afastou, rindo. Terri baixou os olhos, embaraçada por mim.

— Ela é uma garota mimada.

Eu tinha vontade de dizer muito mais, mas era difícil falar. As palavras ficaram presas na garganta, apertada no esforço de reprimir as lágrimas.

— Prefiro viver com uma cobra do que com sua prima — comentou Terri.

Todas as garotas à mesa riram.

— É o que estou fazendo — murmurei — vivendo com uma cobra.

Quando voltei para casa, naquele dia, encontrei a preciosa blusa azul e branca no cesto de roupa suja. Antes de metê-la na máquina de lavar, abri um buraco no ombro com a ponta do compasso. Depois do jantar, nas terças-feiras, tia Clara e eu dobrávamos e passávamos as roupas. Ela não notou o buraco na blusa. Levou tudo para o quarto de Jennifer. Foi só na manhã seguinte, quando eu tinha certeza de que vestiria a blusa para exibi-la na escola, que ouvimos seu grito.

Eu já me levantara e me vestira. Tia Clara estava comigo na cozinha, preparando o café da manhã.

— Mas o que foi isso?

Ela seguiu apressada até a escada. Jennifer estava parada no patamar lá em cima, de saia e sutiã, com a blusa na mão.

— Olhe só para isto, mamãe! Olhe só!

— O que aconteceu? — perguntou tio Reuben, saindo de seu quarto e abotoando a camisa.

— Tem um buraco na minha blusa predileta e foi ela quem fez! Foi ela, papai!

Jennifer mostrou-lhe a blusa. Ele examinou-a, depois olhou para mim lá de cima.

— Você fez isso? Sacudi a cabeça.

— Nem mesmo vi, ou teria avisado a tia Clara.

— Por que Raven faria uma coisa dessas? — perguntou tia Clara.

— Porque é uma invejosa! — gritou Jennifer.

— Nem mesmo gosto dessa blusa — comentei, sarcástica. — É antiquada, o tipo de blusa que uma avó poderia usar.

— Não é, não! Todo mundo está usando blusas assim. Você não sabe de nada sobre moda.

— Por favor, Jennifer — disse tia Clara —, pare de gritar.

William saiu de seu quarto e olhou ao redor, surpreso. Sorri para ele, que retribuiu.

— Se eu souber que foi você quem fez o buraco na blusa... — ameaçou tio Reuben. Ele tornou a examinar a blusa. — Não sei como esse buraco pode ter aparecido aí.

— Pode ter sido feito por traças — sugeri. Tio Reuben levantou os olhos abruptamente.

— Não temos traças... ou pelo menos não tínhamos até você vir para cá. Clara?

— Comprarei uma blusa nova para ela hoje, Reuben.

— É melhor eu não tornar a ver qualquer outra coisa assim — advertiu ele.

Tio Reuben devolveu a blusa a Jennifer e voltou para seu quarto, a fim de terminar de se vestir. Tia Clara foi para a cozinha. Jennifer e eu nos fitamos.

— Vai se arrepender — declarou ela. — Vou usar ablusa de qualquer maneira e contar a todo mundo o que você fez.

— Como quiser, Jennifer. Só vai bancar a tola mais ainda.

Pisquei para William.

— Do que está rindo? — gritou ela para o irmão, antes de voltar correndo para o quarto.

Pela primeira vez em muito tempo, tive um grande apetite e comi tudo. Até mesmo tio Reuben ficou impressionado porque não deixei nenhuma migalha.

 

                               Por um triz

Quando embarcamos no ônibus escolar, na quintafeira, eu tinha os braços cheios. Jennifer tivera de fazer um projeto de estudos sociais. Optara por um gráfico grande. Houvera um bom motivo para isso. Uma de suas amigas, Paula Gordon, com muito talento para desenhar, fizera a maior parte do trabalho. Quando Jennifer mostrara a tio Reuben, na manhã de quinta-feira, ele ficara extasiado, como se fosse a obra de um pintor famoso, como Rembrandt, ou aquele que cortara a orelha para dar à namorada. Eu achava que qualquer das casas de passarinhos que William fazia em sua oficina era uma realização duas vezes melhor, mas nunca ouvira tio Reuben sequer mencioná-las, muito menos elogiá-las.

Como sempre, Jennifer exultou com os elogios jogados pelo pai, como se fosse arroz num casamento. Quando nos aprontávamos para sair de casa, ela se mostrou muito preocupada em levar seu precioso projeto para a escola intacto. Surpreendeu-me ao parar na porta e perguntar se eu poderia lhe prestar um favor, com a voz mais doce do mundo. Percebi que esperara para fazer isso num momento em que tio Reuben se encontrava próximo.

— Sabe como todo mundo faz a maior bagunça no ônibus, Raven. Tenho de proteger meu gráfico. Pode fazer o favor de carregar meus livros, os cadernos e o saco com o lanche? Por favor. Quando você precisar, também lhe farei um favor.

O que mais eu podia fazer senão concordar? Sentime como uma escrava ao andar atrás dela, os braços carregados com as coisas de Jennifer, além das minhas. Ela desfilou pela calçada e entrou no ônibus segurando o gráfico lá em cima, para que todos vissem.

— Alguém tem que dar o lugar a Raven! — pediu ela. — Ela está carregando minhas coisas!

Não havia necessidade. Eu sempre sentava com Clarence Dunsen. Jennifer queria apenas que todos soubessem que podia me obrigar a fazer uma coisa assim.

Quando chegamos na escola, ela me surpreendeu ao pegar apenas os livros e cadernos de que precisava para as aulas da manhã.

— Leve o resto para o refeitório, Raven. Tenho de carregar o gráfico até a aula de estudos sociais.

Jennifer falou na presença das amigas, que me fitavam com sorrisos sugestivos e olhos irônicos.

— Por que não deixa agora na sala de estudos sociais? — perguntei.

— E correr o risco de alguém sabotar? Nunca! Lembram o que aconteceu com a criação de formigas de Robert Longo na aula de ciências? — Ela correu os olhos por seu séquito. Todas acenaram com a cabeça. — Alguém despejou água e afogou todas as formigas.

— Eu me pergunto quem seria capaz de fazer isso — murmurei, sarcástica.

— Obrigada, Raven.

Jennifer se afastou antes que eu pudesse protestar. Levei suas coisas junto com as minhas para a primeira aula.

— Por que trouxe dois lanches hoje? — perguntou Terri Johnson, na sala de inglês.

Relatei o que acontecera. Terri franziu as sobrancelhas, a pele na testa se contraiu em pequenos sulcos.

— Jennifer está apenas tentando se mostrar — acrescentei.

Mas Terri ainda parecia desconfiada.

— Ela podia pedir a uma de suas escravas para fazer isso. Aquelas garotas ficam na maior alegria quando lhe prestam algum favor. Já vi muitas vezes. Não sei o que ela está tramando, mas minha avó sempre diz que uma cobra não pode virar um coelho.

Soltei uma risada. Mais tarde, também comecei a estranhar a situação. Pouco antes da aula terminar, olhei para o que eu pensava ser o saco do lanche de Jennifer. Descobri que tinha o meu nome. Por que ela faria isso?

Abri o que deveria ser o saco de Jennifer. Em geral levávamos as mesmas coisas. Eu sabia porque ajudava tia Clara a preparar. Mas havia um pequeno pacote extra de papel encerado no saco de Jennifer. Levantei os olhos para me certificar de que a sra. Broadhurst não estava olhando, então abri o pacote.

Um choque frio mas elétrico atingiu meu coração. Já vira aquilo antes. Sabia o que era um cigarro de maconha. Já vira e cheirara no meu antigo apartamento. Lila Thomas tentara um dia me persuadir a fumar.

Olhei para Terri. Ela percebeu no mesmo instante, por minha expressão, que havia algum problema. Baixei a mão para o lado da carteira, olhei para a professora. E abri a mão. Quando tornei a olhar para Terri, ela acenava a cabeça com satisfação. Cinco minutos antes da aula terminar, o verdadeiro motivo pelo qual Jennifer me pedira para carregar seu saco do lanche foi revelado.

— Com licença, sra. Broadhurst — disse da porta a estudante que servia como ajudante voluntária da diretoria. — O sr. Moore quer falar com Raven Flores imediatamente. E mandou que ela levasse todas as suas coisas.

— Raven... — murmurou a professora, acenando com a cabeça para mim.

Olhei para Terri, que tinha uma expressão preocupada. Sorri e pisquei para tranqüilizá-la.

Peguei todas as coisas, olhei mais uma vez para Terri, e segui a estudante. Ao deixar a sala, enfiei o papel encerado com o cigarro de maconha em meu sutiã. Já vira muitas garotas fazerem isso em minha antiga escola. Ninguém olhava ali. Era uma coisa séria despir uma aluna para revistá-la. Os professores tinham pavor de sequer fazerem a sugestão. As garotas sabiam disso.

O sr. Moore estava de pé atrás da mesa quando entrei na sala. Fitou-me em silêncio por um momento, depois balançou a cabeça para a ajudante voluntária.

— Pode sair e fechar a porta.

Ela me lançou um olhar curioso antes de obedecer.

— Sente-se — ordenou o diretor, indicando a cadeira. Sentei, mas ele continuou de pé.

— Sempre foi minha política cuidar dos problemas internamente, se possível. — Ele me lançou um olhar rápido, para verificar minha reação. — Isso não significa que não conto aos pais o que acontece. Tenho a obrigação de contar. Mas o resto do mundo não precisa tomar conhecimento de nossa roupa suja.

— O que quer comigo?

Ele alteou as sobrancelhas, surpreso com a minha coragem.

— Sei que teve uma péssima criação, vivia num lugar horrível. O que pode explicar seu comportamento. Mas agora chegou a uma idade em que tem de ser responsável por suas ações, mocinha. Deve saber disso.

Virei o rosto. Fiquei olhando para uma placa na parede, esperando que ele continuasse.

— Se há alguma coisa ilegal no saco do seu lanche, quero que tire agora, deixe em cima de minha mesa, e volte para a aula. Mais tarde conversaremos a respeito... e pode acreditar que isso é um grande favor que estou lhe prestando.

Meu coração batia forte, mas sorri assim mesmo. Inclinei-me para a frente, abri meu saco, tirei o sanduíche e os biscoitos. Virei o saco pelo avesso e pus ao lado da comida. Esperei.

— O que tem no outro saco? — perguntou o sr. Moore.

— Aquele é da minha prima, embora tenha o meu nome. Estou fazendo um favor para ela. Seus braços estavam ocupados com os livros e o projeto de estudos sociais.

— Como posso saber que é dela se tem o seu nome?

— Não pode, mas trazemos o mesmo lanche. Portanto, não tem importância.

Tirei o sanduíche e os biscoitos. Também virei o saco pelo avesso. E esperei. Os olhos do diretor foram do conteúdo inofensivo dos sacos para os meus livros e depois para o meu rosto.

— Posso pelo menos saber o que está procurando? — perguntei.

— Não importa. Pode guardar tudo. Foi o que fiz, bem devagar.

— Acho que não é justo que eu tenha sido chamada assim sem qualquer motivo. É embaraçoso sair no meio da aula para ir ao gabinete do diretor.

Ele empinou os ombros num movimento brusco, como se eu tivesse acertado com um elástico em seu rosto.

— Tenho uma grande responsabilidade aqui, mocinha. Há muitas vidas jovens entregues aos meus cuidados. Além disso, li sua ficha na escola anterior. — Ele levantou uma pasta grossa em cima da mesa. — Para ser franco, eu consideraria levá-la ao Juizado de Menores se fizesse tudo isso aqui. Não me surpreende que sua mãe esteja na prisão.

— Não fiz nada de errado.

— Veremos...

— Quem contou que eu tinha feito?

— Isso não é da sua conta. Muito bem, pode voltar para a sua aula. E lembre-se de uma coisa. — Ele bateu com os dedos na pasta com a minha ficha. — Ficarei de olho em você.

Levantei-me e deixei a sala. Como a campainha já tocara, a secretária teve de me dar um passe de atraso. Quando entrei na sala, Terri levantou os olhos, na maior expectativa. Inclinei a cabeça e sorri, para indicar que estava tudo bem. Depois da aula, relatei o que fizera e o que acontecera.

— Ela tentou armar para cima de mim... me meter numa encrenca.

— Não me surpreende. Jennifer e suas amigas estão sempre armando contra outras pessoas. É melhor você tomar cuidado.

— É o que farei... mas ela vai descobrir que também precisa tomar cuidado.

Na hora do almoço, Jennifer e suas amigas vieram até minha mesa.

— Vou levar meu lanche — disse ela.

— Não sei qual dos dois é o seu, Jennifer. Por algum motivo, meu nome está nos dois sacos. Por sorte, trouxemos a mesma coisa.

Estendi o saco. Ela pegou-o, olhou para suas amigas e depois para mim.

— Ouvi dizer que você foi chamada ao gabinete do diretor. Por que ele queria falar com você? — Jennifer sorriu para as amigas. — Espero que não tenha embaraçado meus pais.

— Não foi nada importante. — Tomei um gole de leite, sugando pelo canudo. — Ele só queria saber o que tínhamos para o lanche. Comentou que ouvira dizer que trazemos os melhores lanches da escola.

Dei uma mordida no sanduíche ao terminar de falar. Até mesmo as amigas de Jennifer tiveram de rir. Ela ficou furiosa, o rosto tão vermelho que até pensei que o sangue sairia pelo alto da cabeça, como um gêiser. Virou-se abruptamente e afastou-se. Terri e as outras garotas à minha mesa riram tanto que outros alunos no refeitório pararam de conversar para olhar.

— Acho que há também uma pequena serpente em você — comentou Terri.

— E podia ser diferente? Somos primas, não é mesmo?

O que provocou mais risadas.

Mas eu ainda não acabara.

No sábado, Jennifer saiu com as amigas logo depois do café da manhã, como sempre fazia. Tia Clara tentou persuadi-la a me levar junto, mas ela resistiu e queixou-se:

— Raven não tem as mesmas amigas que eu.

— O que isso significa? — perguntou tio Reuben no mesmo instante, olhando para mim. — Quem são as amigas de Raven?

Jennifer deu de ombros.

— Ela anda com alunas negras. Imagino que é por ser tão escura.

— Não é por isso — declarei. — Ando com pessoas de cor que por acaso são simpáticas, em vez de falsas.

— E com isso está querendo insinuar que minhas amigas são falsas?

Foi a minha vez de dar de ombros.

— Como sou nova na escola, todo mundo me alerta contra elas.

Falei com um tom tão despreocupado quanto podia. O rosto de Jennifer dava a impressão de que enfrentava uma parede de fogo. Antes que ela pudesse gaguejar uma resposta, tia Clara interveio:

— Vocês duas deveriam se dar bem. São mais ou menos da mesma idade.

— Não quero que Jennifer ande com garotas encrenqueiras — resmungou tio Reuben.

— Não ando com garotas encrenqueiras — protestei. — É o inverso que acontece.

— Por que ela não pode sair com Jennifer e se divertir com gente jovem? — indagou tia Clara.

— Não se preocupe. Sinto-me bem aqui.

Não sei por que tia Clara sugeriu que eu saísse também. Ela sabia que tio Reuben ficaria em casa e me vigiaria, para ter certeza de que eu cumpriria todas as minhas tarefas. Jennifer não levantaria um dedo, e com toda certeza não me esperaria.

Pouco depois da saída de Jennifer, tia Clara e eu iniciamos a faxina semanal da casa. William queria ajudar com o aspirador, mas tio Reuben repreendeu-o.

— Isso é trabalho de mulher. Deixe que elas façam tudo. Por que não sai para jogar beisebol ou futebol americano, em vez de passar o tempo todo em seu quarto?

A pergunta fez com que William fosse se meter em seu quarto ainda mais depressa. Olhei para tia Clara, esperando que defendesse William. Mas ela desviou os olhos e continuou a trabalhar. Subimos para a faxina nos quartos. Comecei pela sujeira de Jennifer, como sempre. Estava pior do que nunca, agora que ela sabia que eu tinha de limpar. Tia Clara sentiu pena de mim e veio ajudar. Começou por arrumar a cama. Quando levantou o travesseiro, parou e ficou olhando, aturdida. Continuei a recolher as roupas, espalhadas por toda parte, talvez de uma forma deliberada. Uma blusa fora pendurada na beira do espelho de maquilagem.

— O que é isto? — indagou tia Clara.

— Isto o quê?

Virei-me e olhei, enquanto ela largava o travesseiro e pegava o cigarro de maconha. Tia Clara cheirou-o e fitou-me. Aproximei-me e inclinei a cabeça para cheirar também. Balancei a cabeça devagar, os olhos arregalados.

— Isto é o que eu penso, Raven?

— Infelizmente, tia Clara, é, sim.

— Oh, não, não, não! Tenho de contar a Reuben! Ela saiu apressada do quarto e desceu. Momentos depois, ouvi tio Reuben subir correndo, os passos tão pesados que toda a casa tremia.

— O que está acontecendo aqui? — gritou ele.

Saí do banheiro, carregando as toalhas úmidas que levaria para a lavanderia.

— Não sei.

— Quem pôs isto na cama?

Tia Clara apareceu por trás dele.

— Não sei, tio Reuben.

— Não foi você?

— Ela recolhia as roupas sujas quando encontrei, Reuben — interveio tia Clara, começando a chorar. — Não foi ela.

— E suponho que você não sabe de nada a respeito — insistiu tio Reuben.

Sacudi a cabeça. Os olhos de tio Reuben se contraíram e alargaram. Ele olhou para tia Clara, depois para mim.

— Cuidaremos disso quando ela voltar para casa. Tio Reuben lançou-me outro olhar furioso e depois deixou o quarto.

— Oh, não, não! — balbuciou tia Clara, saindo também.

Larguei as toalhas, olhei para a foto de Jennifer na cômoda. Ela exibia o sorriso mais presunçoso do mundo. Sorri para mim mesma.

A reação de Jennifer foi a que eu esperava. Assim que foi confrontada com a prova, desatou a chorar e apontou o dedo indicador direito para mim, como uma pistola.

— Foi ela! Fez isso para me causar problemas! Tio Reuben acenou com a cabeça.

— Foi o que eu pensei.

— Como eu poderia fazer isso? — indaguei. — Não entrei em seu quarto até subir com tia Clara para limpar a sujeira.

— Deve ter posto lá antes.

— Por quê?

— Para me meter numa encrenca.

— Por que eu faria isso? Por que me rebaixaria a pôr uma coisa dessas sob seu travesseiro?

Ela me fitava com um ódio intenso. Virou-se para tio Reuben e gemeu.

— Papai!

— Jennifer nunca fez isso antes — declarou tio Reuben. — Mas aposto que você já fez.

— Perderia a aposta — respondi.

— Não fiz nada, papai! — gritou Jennifer, batendo com o pé.

— Está bem, está bem. Acredito em você.

Ele pensou por um momento. Percebi que havia uma sombra de dúvida em sua mente.

— Vamos deixar como está, por enquanto. Mas ficarei atento a mais problemas, por menores que sejam. E se tornar a encontrar drogas nesta casa, levarei a pessoa à polícia. É uma promessa.

Tio Reuben dirigiu suas palavras para mim. Jennifer parecia satisfeita. Fitou-me com uma expressão de contentamento.

— Estou cansada — disse ela. — Quero descansar antes de sair para o cinema.

Nada mais se falou sobre o incidente no domingo. Mas quando saímos para a escola, no dia seguinte, Jennifer me disse, antes de embarcarmos no ônibus:

— Sei que foi você quem pôs a maconha ali.

— O cigarro era seu. Por acaso deixou-o no saco com o seu lanche. Tirei-o a tempo, antes que se metesse numa encrenca. — Fiz uma pausa e acrescentei, fingindo ser uma idiota: — Pensei que me agradeceria por escondê-lo para você.

Ela me fitou em silêncio por um longo momento, antes que uma compreensão fria aflorasse em seus olhos. Mais tarde, contei a Terri. Nós duas nos divertimos ao contarmos a várias amigas. Jennifer evitou-me durante a maior parte do dia. Foi um dos meus melhores dias na nova escola, mas ainda desejava que tudo aquilo acabasse. Já me cansara de tio Reuben e de brigar com Jennifer.

Minhas esperanças tiveram uma morte súbita quando chegamos em casa naquela tarde. Jennifer recusou-se a falar comigo no ônibus. Andava tão devagar que cheguei em casa primeiro. Assim que entrei, tia Clara saiu da sala, a mão segurando um lenço, cobrindo a boca.

— O que aconteceu? — perguntei. Jennifer entrou atrás de mim.

— Sua mãe — respondeu tia Clara. — Ela escapou do centro de reabilitação. É uma fugitiva.

— Acho ótimo — murmurou Jennifer. — Talvez ela venha buscar você e as duas fujam juntas.

— Pare com isso! — gritou tia Clara, numa voz tão alta e estridente que surpreendeu até a mim. — Não vou admitir!

Os olhos de Jennifer encheram-se de lágrimas.

— Você se importa mais com ela do que comigo, mamãe!

Tia Clara começou a sacudir a cabeça, mas ela insistiu:

— É verdade! Mas isso não me surpreende! Jennifer subiu correndo a escada.

— É melhor eu ir embora — murmurei, olhando para ela.

— E para onde iria? Tem de ficar com a sua família. Família, pensei. Eis uma palavra que jamais poderei compreender.

 

                       Por trás de portas fechadas

— Dá para acreditar? — gritou tio Reuben, ao entrar em casa. — A polícia foi ao meu escritório! Foi me procurar no trabalho! A polícia! Todos viram e queriam saber o que tinha acontecido. Minha irmã, tive de explicar, fugiu de um centro de reabilitação de drogados, violou ordens judiciais. É uma espécie de fugitiva. A polícia veio perguntar se ela havia me procurado. Uma coisa posso garantir. Se ela tiver a ousadia de me procurar, vou entregá-la à polícia. Ela está nos arrastando para a lama!

Eu estava em meu quarto, tremendo. Podia ouvi-lo batendo as coisas na cozinha.

— Por favor, Reuben, não fique tão transtornado — suplicou tia Clara.

— Não ficar transtornado? — Ele soltou uma risada furiosa. — Minha irmã está cada vez pior, Clara. É como uma espécie de fruta escura e podre, deixando tudo fedorento. E agora tenho de criar sua delinqüente juvenil. Por que ela não pensou antes de engravidar daquele vagabundo? O Estado terá de nos pagar por isso. Darei um jeito. Vejo esse tipo de coisa durante todo o tempo... mulheres que não têm condições de ter filhos, que nunca deveriam ter filhos, parindo e jogando a responsabilidade para cima de nós. É por isso que os impostos são tão altos, por causa de pessoas como minha irmã e do que elas geram.

— Tem de parar com isso, Reuben. Vai acabar doente.

— Doente? Já estou doente. Não agüento mais isso. — Ele soltou um grunhido tão alto que pensei que ia atravessar a parede. — E ninguém diga que não tentei ajudar minha irmã. Disse a ela como um homem de verdade age... mostrei a ela. E mostrei direitinho!

— Reuben... acho que você não deve ficar tão nervoso.

Pelo tom de voz, dava para perceber que tia Clara também se sentia nervosa e queria mudar de assunto.

O que tio Reuben estava dizendo sobre minha mãe? O que ele mostrara a mamãe?

Ouvi-o se levantar e seguir para a escada, parando na minha porta. Meu coração disparou. Pensei que ele abriria a porta, furioso, gritaria coisas sobre minha mãe, como eu era um ônus para a sociedade. Mantive os olhos no chão e esperei, prendendo a respiração. Um momento depois, ouvi-o subir a escada.

Meus olhos ardiam com lágrimas quentes. Olhei pela janela.

Mamãe, como pôde fazer isso comigo? Por que fugiu? Por um momento, especulei se ela viria me buscar, me levar para longe de tudo aquilo. Até me esconderia com ela. Mas logo pensei: Quem eu queria enganar? Provavelmente eu fora a última coisa em que ela pensara ao fugir. A esta altura, mamãe deveria estar com um dos seus namorados degenerados, ou escondida ou fugindo para viver em algum buraco.

Minha mãe parecia-me agora ser duas pessoas diferentes. Quando eu era menor, pensava nela como alguém para amar e alguém que me amava. Mas de alguma forma, em algum lugar, tudo isso desaparecera. Passáramos a viver como duas estranhas. Talvez tio Reuben tivesse razão. Talvez minha mãe não prestasse. Alguma coisa saíra errada dentro dela, nunca mais poderia ser recuperada. Nunca mudaria.

O mesmo germe ruim existia dentro de mim? Haveria de me tornar igual a ela algum dia, apesar de todo o meu esforço em contrário? Tio Reuben teria razão também nesse ponto? Era a filha de minha mãe. Herdara alguma coisa dela... e talvez fosse o que tinha de ruim. Não era uma boa aluna. Não tinha amigas de verdade. Sentia medo de ter ambições. Por isso, quando tentava me imaginar dez anos depois, só podia ver a mesma pessoa solitária e perdida.

Tio Reuben não estava enganado. Eu seria igual à minha mãe.

Soltei um suspiro tão fundo que meu peito doeu. Depois levantei-me, enxuguei os olhos e fui ajudar tia Clara a preparar o jantar. Ela parecia muito cansada e triste. A maneira como deixava os ombros caídos, mantinha os olhos abaixados e andava em passos pequenos e indecisos fazia-a parecer ainda menor do que era. Dava a impressão de que encolhera vários centímetros desde que tio Reuben voltara do trabalho. Era ela quem parecia digna de pena, mas virou-se para mim com uma profunda compaixão nos olhos e balançou a cabeça.

— Sei como deve estar se sentindo, minha pobre criança. Lamento que sua mãe tenha feito aquelas coisas. Ela devia ter pensado no que significava para você.

Não respondi. Pus a mesa, circulando pela cozinha em movimentos mecânicos. Temia sentar à mesa para jantar com tio Reuben naquela noite. Minha garganta se fechava só de pensar. Assim que ele iniciasse seu discurso sobre minha mãe e se queixasse de mim, euengasgaria e sufocaria com qualquer coisa que tivesse na boca... e tio Reuben reclamaria do desperdício da comida que trabalhara tanto para comprar.

Senti-me tonta de repente e precisei me apoiar no encosto de uma cadeira para não cair. Tia Clara veio correndo para mim.

— O que houve, Raven?

— Não sei. Minha cabeça começou a girar.

— Está branca como uma vela. Vamos, sente. Beba um pouco de água.

Sentei. Tinha o estômago embrulhado. Quando ela trouxe a água, tive de segurar o copo com as duas mãos para beber. Senti-me um pouco melhor.

— Quero que você se deite, meu bem — insistiu tia Clara. — Não preciso que faça mais nada. Pode ir descansar. Sofreu um grande choque.

Ela me ajudou a levantar e ir para a sala de costura. Eu ainda não abrira o sofâ-cama. Tia Clara fez isso por mim. Deitei e murmurei:

— Ainda me sinto um pouco tonta.

— Se não estiver melhor daqui a pouco, vou levá-la ao pronto-socorro.

— Não estou tão doente assim, tia Clara. Ficarei boa num instante.

Ela afagou meus cabelos, sentiu minha testa.

— Não tem febre, mas está suando muito. É tudo emocional, tenho certeza. Só precisa descansar.

Tia Clara trouxe um novo copo com água e pôs ao meu lado. Acomodei-me sob as cobertas. Logo me senti um pouco melhor, mas continuava com o estômago embrulhado. Fechei os olhos de novo. Antes de perceber, mergulhei no sono, apenas para ser acordada pela voz alta de tio Reuben, ressoando pela casa como uma trovoada, querendo saber onde eu me metera, por que não ajudava a servir o jantar. Fiz menção de me levantar, mas o quarto girou tanto ao meu redor que fui obrigada a deitar de novo.

As vozes tornaram-se murmúrios indistintos. Devo ter adormecido de novo. Quando abri os olhos, deparei com tia Clara parada na porta, com uma bandeja nas mãos.

— Como se sente agora, querida? — perguntou ela. Pisquei várias vezes, esfreguei o rosto, sentei devagar. Felizmente, o quarto não girou.

— Melhor.

— Isso é ótimo. Trouxe seu jantar. Tem de pôr algum alimento quente no estômago.

— Não tenho fome.

— Sei que não tem, mas é melhor comer quando sente toda essa tensão. — Ela ajeitou a bandeja em meu colo. — Coma o que puder.

— Não dá para aceitar, servir a garota desse jeito, como se fosse uma hóspede especial — resmungou tio Reuben da porta.

— Eu disse que ela não se sentia bem, Reuben. Precisa comer alguma coisa.

— Claro que ela não se sente bem. Quem poderia sentir se fosse criada do jeito como ela foi? É de admirar que não esteja muito doente, com alguma coisa grave. Poderíamos todos pegar a doença... e você ainda pediu que Jennifer partilhasse roupas com ela.

— Sou tão saudável quanto Jennifer. Ele sorriu.

— Posso imaginar como estão seus dentes. Quando foi ao dentista pela última vez?

Já tinha passado quase um ano. Por isso, não respondi.

— Entende agora o que eu quis dizer? — insistiu ele, olhando para tia Clara. — Ou damos um jeito para que o Estado nos ajude, ou...

— Ou o quê? — perguntei.

— Não banque a espertinha para cima de mim — resmungou ele, sacudindo um dedo para mim.

— Deixe-a comer, Reuben. Há tempo para conversar sobre tudo isso mais tarde.

Ele lançou um olhar furioso para tia Clara, que se apressou em baixar o rosto.

— Tempo? Isso mesmo, temos tempo. — A voz era sarcástica. — Muito tempo. Minha irmã não voltará para buscá-la. Com toda a certeza.

Tio Reuben se afastou. Comecei a chorar. Os ombros tremiam tanto que pensei que o coração se partiria ao meio. Tia Clara pôs a bandeja no chão. Sentou ao meu lado e me abraçou.

— Não chore, querida. Ele não falou sério. Está transtornado por causa do constrangimento que sofreu no trabalho. Se continuar assim, só vai ficar ainda mais doente... e depois?

Respirei fundo, fiz um esforço para reprimir as lágrimas.

— Por favor, Raven, coma alguma coisa — suplicou tia Clara.

— Está bem. Obrigada, tia Clara.

Comecei a comer. Ela se retirou. Mais tarde, William apareceu na porta.

— Vou levar sua bandeja para a cozinha — ofereceu ele.

— Obrigada — murmurei, sorrindo. — Posso fazer isso, William. Mas foi muito gentil de sua parte se oferecer.

Ele continuou a me fitar.

— Algum problema, William? — perguntei a ele.

— Sente-se melhor agora?

— Bem melhor. Sua mãe tinha razão. A comida quente ajudou.

William sorriu.

— Ainda bem, porque quero lhe mostrar minha casa de passarinhos de dois andares. Já acabei.

— É mesmo? Pois quero ver.

Levei a bandeja para a cozinha. Tia Clara, que assistia à televisão, veio correndo.

— Pode deixar que eu faço isso, Raven.

— Estou bem agora — murmurei, sorrindo.

— E comeu também. Ótimo. — Ela pôs a louça na máquina. — Pode ir fazer os deveres da escola. Se preferir, Raven, venha assistir à televisão comigo.

— Vou subir para ver a nova casa de passarinhos de William. Farei os deveres depois.

— Está bem.

William tinha uma expressão de orgulho.

— Vamos subir.

Fomos para o seu quarto. Enquanto sentava e o ouvia explicar que tipo de passarinho se alimentaria em sua casa, senti pena dele, porque seu pai não demonstrava o menor interesse pelas coisas que fazia. William era como uma flor, atrofiada e pálida porque recebia pouco sol. Falava quase tanto tempo sobre o pai escarnecendo de seu hobby quanto sobre o motivo pelo qual adorava fazer aquelas casas. Quando demonstrei um interesse sincero pelo que fazia, William não se mostrara mais tímido ou triste. Tornara-se radiante de orgulho.

— Obrigada por me mostrar seu trabalho, William. Aposto que poderia vender essas casas de passarinhos. São perfeitas.

Corri os olhos por sua coleção. Era sem dúvida impressionante, ainda mais quando se sabia que ele fizera tudo aquilo sozinho.

Mais radiante ainda, ele circulou pelo quarto, mostrando seus livros sobre aves, ferramentas e tintas, algumas outras criações.

— Tem algum passarinho predileto, Raven? Porque se tiver, farei uma casa especial para você.

— Não, não tenho. E não sei muita coisa sobre passarinhos. Não havia muitas árvores em torno do prédio.

— Tem razão. Sabe, Raven, eu gostaria de construir uma casa para cada tipo de passarinho que temos por aqui. Mas é preciso dinheiro para comprar a madeira e o resto do material. E cada vez que falo com papai sobre meus projetos, ele ri de mim.

William baixou a cabeça, desolado.

— Eu gostaria de ter algum dinheiro para ajudá-lo a comprar o material.

— Não se preocupe. Arrumarei o dinheiro. — Ele pensou um instante, e depois decidiu me contar como. — Papai deixa cair uma porção de moedas por trás das almofadas do sofá lá embaixo ao se esparramar para assistir à televisão. Quando não há ninguém por perto, levanto as almofadas e pego as moedas. Uma vez encontrei quase dois dólares em moedas de vinte e cinco e dez centavos.

Soltei uma risada.

— Seu segredo está seguro comigo, William. Inclinei-me e beijei-o na testa. Por um momento, ele parecia tão chocado que pensei que ia chorar ou gritar. Quando me virei, descobri a causa de seu alarme. Tio Reuben estava parado na porta.

— O que vocês dois estão fazendo aqui? — O rosto de tio Reuben se tornara vermelho de raiva. - Raven, fique longe do meu filho. Eu sabia que era uma encrenqueira que não prestava, como sua mãe. E agora você se exibe e tenta meu filho, da mesma forma como ela me tentou. Mas não vou admitir nada parecido! Saia deste quarto agora, antes que eu a arraste pelos cabelos!

Por um segundo, fiquei apavorada demais para fazer qualquer movimento. Depois, tio Reuben começou a puxar William, e compreendi que tinha de escapar dali.

Mas vi a expressão horrorizada de William ao me levantar. Sabia que devia defendê-lo.

— Não fizemos nada de errado, tio Reuben. William estava apenas me mostrando suas casas de passarinhos.

Provavelmente deixei-o ainda mais zangado com essas palavras. Não tinha a menor idéia do motivo para sua fúria. E me sentia envergonhada por deixar William enfrentar o pai sozinho.

Sem olhar para trás, desci correndo, entrei em meu quarto e fechei a porta. Sabia que tio Reuben a arrombaria com a maior facilidade se quisesse, mas houve um súbito silêncio na casa. Rezei, pensando que talvez estivesse segura. Pelo menos por enquanto.

Tentei começar os deveres de matemática, mas não havia a menor possibilidade de me concentrar, com o coração ainda disparado. E se tio Reuben estivesse dando uma surra em William? E o que ele pensara que nós estávamos fazendo?

William vivia num medo constante de ser escarnecido e menosprezado pelo pai. Agora, parecia que tio Reuben tinha mais uma coisa para acrescentar à sua munição... contra nós dois.

Era óbvio, até para mim, que o motivo do retraimento de William era o medo. Isso mesmo, ele tinha medo que o pai gritasse, zombasse, até fizesse algo pior. Sabia que tia Clara preocupava-se com William; ela até falara em levá-lo a um médico. Por que não podia perceber que a causa da timidez de William era o medo?

O que aconteceria se eu continuasse naquela casa, onde também era menosprezada e ridicularizada... por meu nascimento, por minha mãe, por coisas que nem sequer fizera? Acabaria me tornando como William? Também desapareceria dentro de mim?

No momento em que peguei o livro de matemática, tia Clara abriu a porta e esticou a cabeça para dentro do quarto.

— Você está bem, Raven?

Ela tinha os olhos vermelhos e inchados, de quem chorara muito.

— Estou, sim, tia Clara. E como está William? Tio Reuben não bateu nele, não é? E não fizemos nada de errado, tia Clara. Eu apenas agradecia a William por me mostrar suas casas de passarinhos. Nós... nós...

Falar a respeito me deixava transtornada de novo. Comecei a chorar tão forte que não podia emitir mais nenhuma palavra.

— Calma, calma... Eu sei, querida, eu sei. Tudo vai acabar bem.

— Mas... mas William... o que tio Reuben fez com ele?

Por que tia Clara não respondia às minhas perguntas?

— Ele está bem, querida. Mas, por favor, prometa que não vai falar sobre isso de novo. Reuben ficaria transtornado outra vez. Prometa que nunca mais vai falar sobre isso!

— Prometo, tia Clara.

Ela ficou imóvel por um instante, depois me disse para não ficar acordada até tarde estudando, e saiu. Continuei sentada, com o livro de matemática no colo, olhando para o teto escuro. Ouvi os passos pesados de tio Reuben, uma porta sendo fechada, água correndo, um telefone tocando. Pobre William, pensei. Eu percebera em seu rosto. Ele ficara apavorado. E tia Clara? Ela construíra um muro de abnegação ao seu redor, excluindo todos os segredos sinistros. Como um fio enroscado ligado a uma bomba-relógio, mais cedo ou mais tarde todo o horror que existia naquela casa haveria de explodir.

Eu não queria vir para cá. Também não queria estar aqui agora, mas que opção havia? Não tinha um pai. Não tinha outros parentes. Sentia-me acuada, dominada por acontecimentos além do meu controle. Aumentava ainda mais o pânico que vibrava tão alto em meu coração. Pensei que soava com certeza como um tambor na selva, batendo os ritmos do alarme.

Pelo que eu deveria orar? Pelo aparecimento milagroso de minha mãe? Pelo súbito interesse de um pai misterioso por uma filha que ele jamais conhecera? Quem podia estar mais perdida do que eu, alguém que nem sequer tinha um sobrenome, obrigada a viver com pessoas que não me queriam?

Uma tremenda trovoada sacudiu a janela, acompanhada logo em seguida por um aguaceiro. Gotas enormes batiam contra o vidro, enquanto o vento soprava mais forte, arremessando lençóis de água contra as paredes da casa. Ouvi tia Clara correndo pelo primeiro andar, fechando as janelas. Depois, ouvi tio Reuben gritar do alto da escada. Momentos depois houve silêncio, exceto pelo som monótono da chuva. Pude sentir as trevas se aprofundando ao meu redor, envolvendo a casa.

Sentia o rosto frio. Todas as lágrimas haviam se transformado em gelo por trás dos meus olhos. Virei-me e comprimi o rosto contra o travesseiro, enquanto me contraía na posição fetal e tentava reprimir o medo e a solidão.

O sol incidiu em meu rosto e me acordou, pouco antes de tio Reuben descer. Pulei da cama e corri para o banheiro. Antes mesmo de lavar o rosto, ele já começara a berrar por eu não estar na cozinha, ajudando tia Clara a preparar o café da manhã para todos. Parecia que as coisas haviam voltado ao normal.

— Por que não se levantou antes para ajudar? — perguntou-me tio Reuben quando entrei na cozinha.

William desceu e foi ocupar seu lugar à mesa. Seus olhos se encontraram com os meus por um momento, antes que ele os baixasse para o prato de cereal e o copo com suco de laranja. Tio Reuben olhou de William para mim e bateu com o punho na mesa.

— Nunca mais quero encontrá-la no quarto de William. Entendido?

— Entendido — murmurei, torcendo para que fosse a última coisa a ser dita sobre a noite passada.

— E hoje, mais uma vez, tenho de encontrar algum tempo em minha agenda lotada para cuidar dos seus problemas. Aposto que sua mãe nunca perdeu um minuto sequer com você. Alguma vez ela foi à escola para saber do seu desempenho?

Sentei e comecei a tomar meu suco de laranja.

— Quando falo com você, quero que olhe para mim e responda, Raven.

— Não, ela nunca foi à escola.

— Foi o que pensei.

Satisfeito com a minha resposta, ele olhou para tia Clara, que continuava ocupada na pia.

— Jennifer deve descer logo, Reuben. Ou vai se atrasar para o ônibus.

— Ela nunca se atrasa — declarou tio Reuben.

— Sabe que ela já se atrasou algumas vezes, e você teve de levá-la à escola.

— O ônibus passou cedo demais nesses dias — insistiu ele.

Quando Jennifer desceu, William e eu já acabáramos de comer. Comecei a tirar a mesa.

— Deixe isso — ordenou Jennifer, quando peguei o açucareiro. — Ainda não comi meu cereal.

— Deveria se levantar mais cedo, Jennifer — disse tia Clara. — Não tem muito tempo agora.

— Eu desceria antes se conseguisse encontrar as roupas que quero — queixou-se Jennifer. — Alguém pôs minhas blusas no lugar errado, e minha saia predileta estava tão no fundo do armário que quase não pude encontrá-la.

Ela me lançou um olhar furioso.

— Você mesma poderia guardar suas roupas — comentei. — Assim saberia onde encontrar cada coisa.

— Você sente inveja porque tenho mais roupas do que você. Se tivesse tantas quanto eu, teria dificuldade para lembrar onde as guardou. Além do mais, é bem provável que tenha escondido a saia para poder usá-la um dia.

— Não quero usar suas coisas. Tenho minhas próprias roupas e...

— Parem com essa briga à mesa! — berrou tio Reuben.

Ele se levantou de um pulo, o rosto vermelho e furioso. Jennifer sentou-se. Tia Clara apressou-se em despejar café numa xícara para ela.

— Nunca brigamos à mesa antes — acrescentou tio Reuben, olhando para mim — -, mas aposto que era uma coisa que sempre acontecia na sua casa.

— Não era.

Tia Clara me fitou, assustada, e sacudiu de leve a cabeça. Queria que eu fizesse como ela, enterrasse a cabeça na areia, absorvesse os comentários horríveis de tio Reuben, e orasse para tudo acabar depressa.

— Se eu tiver de fazer alguma coisa valiosa por você, será lhe ensinar a se comportar direito — continuou ele. — Sei que há anos de vida degenerada para corrigir, mas juro por Deus que você vai superar tudo se continuar a morar conosco.

Tio Reuben sacudiu seu punho monstruoso para mim e arrematou:

— Por que não observa Jennifer? Aprenda com ela. Alteei as sobrancelhas e quase ri. Jennifer assumiu uma expressão presunçosa, mastigando um pouco de cereal, tomando um pouco de café, antes de se levantar de um pulo.

— Temos de ir agora, papai — declarou ela. — Pode ensinar a ela a se comportar mais tarde.

Ele soltou um grunhido. William me ofereceu um olhar compadecido, mas não disse nada. Fui pegar meus livros e saí de casa poucos segundos depois de Jennifer. Ela já se afastara pela calçada, ao encontro das amigas, no ponto do ônibus. O grande assunto de todas as conversas era o iminente baile da escola. As garotas falavam sem parar sobre os rapazes que esperavam que as convidassem. A lista de desejos de Jennifer era a mais longa.

— Ela não está aqui há muito tempo — ouvi Paula Gordon sussurrar, acenando com a cabeça em minha direção. — Acha que alguém vai convidá-la?

— Quem poderia convidá-la? — indagou Jennifer, rindo bastante alto para que eu ouvisse. — Oh, não, espere um instante. Talvez Clarence Dunsen a convide.

— Isso mesmo — concordou Paula. — Ele vai dizer ”Raven... vo-você... go-gostaria... de-de... ir-ir...”

Todas caíram na gargalhada. Afastaram-se em seguida. Suas vozes se tornaram mais baixas, mais furtivas. Fiquei aliviada quando o ônibus parou. Entrei logo. Todas tornaram a rir quando passaram por mim, sentada ao lado de Clarence.

Era engraçado, pensei, como garotas como Jennifer sempre atraíam outras garotas iguais a ela. Todas ficam juntas, tão à vontade quanto porcos na lama, pensei. O que me fez rir. Clarence olhou para mim, com uma curiosidade inquisitiva. Por um momento, desejei que ele me convidasse para ir ao baile. Daríamos uma lição em todas aquelas garotas. Mas isso não passava de uma fantasia... e na minha vida as fantasias estavam escritas em nuvens que passavam flutuando pelo céu, impossíveis de agarrar, tangidas por um vento forte, desaparecendo tão depressa quanto haviam aparecido.

 

                         Ele gosta de mim!

Eu me apaixonara por um garoto quando estava na sexta série. Seu nome era Ronnie Clark. Tinha olhos azuis que brilhavam com tanto entusiasmo quando ele sorria, que fazia uma pessoa se sentir bem, mesmo quando estava perturbada. Apesar disso, aqueles olhos podiam se tornar sombrios com mistério e intensidade, quando ele fitava alguém fixamente ou se concentrava em pensamento profundo. Surpreendera-o olhando-me assim algumas vezes. Meu coração disparara e pequenos choques elétricos subiram e desceram por minha espinha. Subitamente, começara a pensar em meus cabelos, minhas roupas, uma espinha aparecendo no queixo.

O mundo ao redor muda quando se percebe que alguém tão bonito quanto Ronnie Clark está olhando para você com interesse. Cada vez que eu me movimentava e me virava, quando me levantava para sair da sala, até mesmo quando pegava a caneta para escrever no caderno, tinha plena consciência de que era assim. Mal podia esperar para alcançar um espelho, verificar meu rosto e cabelos. Detestava as minhas roupas e me arrependia de não observar minha mãe se maquilar, o que ela fazia muito bem.

Eu tentava não ser óbvia quando olhava para Ronnie; e se Ronnie me surpreendia a contemplá-lo, desviava os olhos depressa e fingia que não tinha o menor interesse por ele. Às vezes ele sorria, às vezes parecia desapontado. Era tão tímido quanto eu. Sempre pensava que seria preciso um trator para nos arrastar de uma maneira dramática para o caminho um do outro. Ronnie parecia não ter coragem para sentar ao meu lado no refeitório, nem me abordar no corredor. Depois de algum tempo, tivera medo de estar dando mais importância do que devia aos seus olhares. Nada podia ser mais embaraçoso do que pensar que um garoto gostava de você quando não era o caso.

Uma tarde, quando eu estava na aula de educação física, olhara pela porta do ginásio. Avistei-o parado ali, olhando para mim. Jogávamos vôlei e todas tinham o uniforme de ginástica. A bola fora cair perto da porta. Corri para pegá-la, olhando para Ronnie ao mesmo tempo.

— Gostei — murmurara ele.

Um sentimento de pânico me dominara, mas ofereci o melhor sorriso de que era capaz. A sra. Wilson apitara e gritara para que eu voltasse ao jogo. Ronnie afastara-se apressado, antes que ela o repreendesse por estar ali. Mas na hora do almoço ele me abordou na fila, comentando que eu jogava vôlei muito bem.

— Poderia até entrar no time feminino agora, em vez de esperar mais um ano — acrescentara ele.

— Conte-me como é participar de um time da escola — pedira.

Ronnie então veio se sentar à mesma mesa. Começamos a namorar. Mas nunca fizemos mais do que ficar de mãos dadas e trocar alguns beijos depois das aulas. Fomos juntos ao cinema uma noite, mas ele tivera que voltar para casa assim que terminou a sessão. E de repente, da mesma maneira repentina como começara, tudo acabou. Ronnie afastara-se de mim, como se eu não passasse de mais um quadro interessante num museu. E passara a olhar para outras garotas como antes olhava para mim. Senti que seria uma idiota se o assediasse. Parei de olhar para ele; e foi mais ou menos nessa ocasião que minha freqüência começou a cair.

Havia menos alunos na escola em que eu estudava agora e apenas cerca de uma dúzia de garotos podiam ser considerados tão bonitos quanto Ronnie Clark. Concordava com Jennifer que não podia ter a esperança de que qualquer deles sentisse algum interesse por mim. Para minha surpresa, no entanto, naquela mesma tarde, depois que Jennifer e suas amigas zombaram de mim por causa de Clarence Dunsen, um garoto gorducho chamado Gary Carson esbarrou em mim de propósito, no intervalo entre as aulas, sorriu e disse:

— Jimmy Freer gosta de você.

Ele se afastou apressado, deixando-me confusa. Sabia quem era Jimmy Freer, o capitão do time de basquete, alto para sua idade... e muito bonito. Ele figurava no alto da lista de desejos de Jennifer. Nunca sequer sonhei que ele poderia olhar para mim. Na hora do almoço, no entanto, quando fui comprar leite, descobri-o atrás de mim.

— Essa é a opção saudável — gracejou ele. Virei-me e, por um momento, fiquei surpresa demais para falar. Jimmy acrescentou: — A maioria compra um refrigerante.

— Não gosto muito de refrigerante. Prefiro leite. Paguei o leite e me encaminhei para a mesa em que se sentavam Terri e algumas de minhas amigas. Mas ele me alcançou no meio do caminho.

— Não quer sentar comigo? — indagou Jimmy, acenando com a cabeça para uma mesa à nossa direita.

Olhei para as garotas, todas observando com interesse. No outro lado do refeitório, Jennifer e suas amigas também olhavam para nós. Aqueceu meu coração perceber a inveja em seus rostos. Fez-me sorrir.

-OK.

Jimmy seguiu na frente e pôs sua bandeja na mesa.

— Gosta da nossa escola? — perguntou ele, enfiando a colher na tigela de sopa.

- É Ok.

— É essa a sua expressão predileta?

— Não. Às vezes também digo que não é OK.

Ele riu. Notei que tinha um sorriso lindo, um nariz perfeito. Gostei da maneira como uma covinha aparecia na face direita quando ele falava. Os cabelos castanhoescuros eram bem cortados nos lados, mas ondulavam na frente. Os olhos bonitos eram castanho-claros, com insinuações de azul, verde e dourado. Não era de admirar que Jimmy despertasse a paixão de todas as garotas, pensei. Tentei parecer calma e sofisticada sob seu olhar. Podia sentir que todos no refeitório nos observavam. O que me levou a pensar que me encontrava numa enorme tela de televisão, cada movimento ampliado. Limpei os lábios com um guardanapo, com medo de que pudesse haver uma migalha na boca ou no queixo.

— Quer dizer que está vivendo com Jennifer, hem?

— Mais ou menos.

— Mais ou menos?

— Não chamo aquilo de viver.

Jimmy riu de novo. Sorriu em seguida, os olhos me absorvendo com tanta intensidade que experimentei a sensação de estar nua ali.

— Tive a impressão de que você era mais inteligente do que a maioria das garotas da escola.

— Não sou mais inteligente do que ninguém.

— Sabe o que estou querendo dizer — insistiu ele, com um brilho malicioso nos olhos.

— Não, não sei.

Ele riu, mas depois voltou a ficar sério.

— Já foi a algum jogo de basquete da escola?

— Não.

— Há um jogo importante na noite de amanhã, com o Roscoe. Já os vencemos antes, mas eles ganharam o primeiro jogo que tivemos este ano. Por que não vem assistir?

— Não sei se posso.

— Por que não pode? Não acredita em ter o espírito da escola?

O sorriso provocante ressurgira.

— O problema não é esse. Não sei se meu tio me deixará sair.

Jimmy continuou a comer, enquanto pensava.

— Por quê? — Ele inclinou-se para a frente e sussurrou: — Tinha uma ficha suja na última escola em que estudou ou algo parecido?

— Claro. Meu retrato aparece nas paredes de todas as delegacias do país.

Ele me fitou aturdido por um momento, depois caiu na gargalhada, tão alto que os alunos ao redor pararam de conversar para olhar.

— Você é mesmo demais. Apareça no jogo. Depois, Missy Taylor vai dar uma pequena festa na casa dela. Podemos nos divertir, ainda mais se vencermos o Roscoe. Posso ouvi-la dizer OK de novo?

— Não posso fazer promessas. Minha vontade era ir, a qualquer custo.

— Você já tem idade suficiente para sair se quiser. Não devem mantê-la trancada. Jennifer não fica trancada. E aposto que ela vai ao jogo. Pode ir com ela, não é?

— Tentarei. Mas Jennifer não gosta de ir comigo a nenhum lugar.

— Darei um jeito para que ela passe a gostar — murmurou Jimmy, piscando um olho.

Conversamos mais um pouco. Ele fez perguntas sobre minha vida antes de ir morar com tio Reuben. Eu não queria lhe contar muita coisa. Jennifer espalhara a notícia de que minha mãe morrera. Agora, eu tinha medo de contradizê-la e criar um escândalo. Poderia afugentar Jimmy, pensei; e, de qualquer maneira, que diferença fazia o que os alunos daquela escola sabiam ou não a meu respeito?

Jennifer abordou-me no corredor na primeira oportunidade que teve, depois da hora do almoço. Em circunstâncias normais, ela nem olharia para mim, mas as amigas zumbiam ao seu redor, cheias de curiosidade, em vez de pólen.

— O que há entre você e Jimmy? — perguntou ela, como se fosse uma interrogadora da polícia, parada na minha frente, com as mãos nos quadris.

— Com licença, Jennifer. Não quero me atrasar para a próxima aula.

— Não se afaste de mim, Raven! — exclamou ela. Suas narinas tremiam. Naquele instante, ela parecia exatamente com tio Reuben.

— Não estou me afastando. Quer que eu me atrase para a aula e tenha um problema? Tio Reuben não gostaria, não é?

— Você tem tempo. Responda.

— Que Jimmy? — indaguei, com uma expressão inocente.

— Que Jimmy? Jimmy Freer, é claro. Conversou com ele no refeitório.

Ela se mostrava espantada com a minha pergunta. Olhou para as amigas, também surpresas.

— Ahn... É assim que ele se chama? Nunca me disse. Ahn... Não há nada entre nós. Mas quando houver alguma coisa, você será a primeira a saber.

E saí andando. Quase que pude ouvir a explosão de raiva em sua cabeça. Não imaginava que Jennifer passaria a me dispensar mais atenção só porque eu fora vista com Jimmy Freer. Ela até esperava por mim no ônibus ao final do dia.

— Quer ir ao jogo de basquete amanhã de noite? — perguntou ela, numa voz tão próxima de cordial quanto era capaz.

— Como?

— Está surda? Perguntei se queria ir ao jogo comigo.

— Claro que quero.

Agora era eu que estava espantada.

— Pois então não deixe meu pai furioso por alguma coisa senão vai estragar tudo.

Ela entrou no ônibus antes que eu pudesse perguntar por que de repente não se importava mais de ser vista em minha companhia. Só descobri mais tarde. Um amigo de Jimmy, Brad Dillon, convidara Jennifer para ir ao jogo e à festa. O plano era um encontro duplo, junto com Jimmy e comigo; e como Brad figurava também em sua lista de desejos, Jennifer estava ansiosa em me possibilitar o programa, para que também pudesse ir. Fiquei ainda mais surpresa por Brad querer sair com ela. Afinal, em minha opinião Brad era mais bonito do que Jimmy. Mas como em breve descobriríamos, os rapazes tinham planos especiais.

Jennifer queria mesmo fazer o programa. Durante toda aquela noite e no dia seguinte, ela fez tudo o que podia para ter certeza de que tio Reuben não nos impediria de ir ao jogo. Tornei-me subitamente muito importante para ela. Jennifer até se ofereceu para ajudar em algumas tarefas em casa. Encenou uma reconciliação, fingindo me ajudar a fazer novas amizades.

Tio Reuben marcara uma reunião na agência de serviço social e anunciou durante o jantar que estava tomando as providências legais para se tornar meu tutor formal. Enquanto isso, o pessoal do serviço social prometera que cobriria minhas necessidades básicas e despesas com saúde.

— Ainda me irrita que a sociedade tenha de pagar pelos erros da minha irmã — declarou ele, enquanto mastigava um pedaço da costeleta de cordeiro.

Pensei que ele seria capaz de devorar tudo, até o osso, triturando-o como se fosse um buldogue. Ao ouvir seu comentário, levantei os olhos abruptamente. Era como se tio Reuben tivesse se inclinado por cima da mesa e me espetado com o garfo.

— Não sou um erro — declarei, com todo o orgulho de que era capaz.

Havia um fio esticado dentro de mim, uma tensão tão grande que pensei que podia perder o controle e desatar a chorar a qualquer momento. Mas prendi a respiração e contive as lágrimas.

Tio Reuben ficou imóvel por um instante, fitando-me com expressão furiosa, a carne suspensa entre os lábios grossos e o brilho de gordura no queixo. Jennifer nos fitava com o maior nervosismo. Tia Clara prendia a respiração, enquanto William baixava os olhos para sua comida. Quase que pude sentir o tremor de seu corpo franzino.

— É um erro não estar preparada direito para ter uma filha — declarou ele, com firmeza.

— Minha mãe pode ter cometido erros, mas eu não sou um erro. Também sou um ser humano com sentimentos. — Joguei os cabelos para trás. — E, de qualquer maneira, ninguém é perfeito.

— Ouviram isso? Prestaram atenção à maneira como ela fala e pensa? Era de se esperar que se mostrasse mais respeitosa e agradecida. Tento arrumar um novo lar, mas ela fala desse jeito, com a maior insolência.

— Não estou sendo insolente, tio Reuben.

— Ela não teve essa intenção — interveio Jennifer. Tio Reuben olhou para ela. Até eu me virei para fitá-la. Jennifer lançou-me um olhar de advertência.

— É difícil começar numa nova escola, com novos colegas — acrescentou Jennifer. — Vou ajudá-la a fazer novas amizades.

Tia Clara ficou radiante.

— Isso é maravilhoso, querida! Viu só, Reuben? As meninas vão se dar muito bem.

Ainda havia um brilho desconfiado nos olhos de tio Reuben, mas ele soltou um grunhido e continuou a comer. Jennifer pôs-se a falar sobre o jogo de basquete como se fosse o evento do século.

— Até mesmo os professores vão ao jogo. É importante mostrar o espírito da escola.

— Acho uma coisa linda — comentou tia Clara. Tio Reuben começou a falar sobre os seus dias na escola. Por um momento, senti que participava de fato de um jantar em família. Tia Clara até riu, recordando algumas histórias que ele relatou. Mas tio Reuben parou de falar subitamente e olhou para William.

— Ouviu como é importante se empenhar em atividades esportivas, William. Não deveria passar tanto tempo em seu quarto. Seria melhor se de vez em quando ficasse na escola depois das aulas e entrasse em algum jogo.

William olhou para mim, com desespero nos olhos tristes.

— Ele é pequeno demais — ressaltei. — Ainda não há times para garotos da idade dele.

— Claro que há — resmungou tio Reuben. — Ele nem quis entrar na Pequena Liga quando teve a oportunidade. Eu ia arrastá-lo para o campo, mas a mãe ficou transtornada.

— Nem todos podem se tornar atletas — insisti. — Algumas pessoas têm outros talentos. William é fantástico em construir coisas.

— Mas o que é isso? Você não está aqui há um mês, e já quer me dizer do que meu filho é capaz ou não de fazer? Ela é como minha irmã, com a boca maior do que o cérebro. Quando eu disser alguma coisa a William, não quero ouvir você contestar. Entendido?

Ele bateu com o garfo na mesa para dar ênfase. Jennifer apressou-se em interferir:

— Ela não teve a intenção de contestar ninguém. Raven, se você quiser eu a ajudarei com a louça e depois com os deveres de matemática. Eu disse que a ajudaria.

Ela piscou para mim e tornou a se virar para tio Reuben. Balancei a cabeça e continuei a comer. Depois do jantar, quando tio Reuben foi assistir à televisão, Jennifer ajudou com a louça. Postou-se a meu lado na pia e sussurrou:

— Não pode ficar de boca fechada no jantar? Deixe papai fazer seus discursos sem dizer nada, como eu faço.

— Ele maltrata a família.

— Quem se importa? Quer que ele fique zangado e nos proíba de ir ao jogo e à festa? Fique de boca fechada.

Jennifer enxugou outro prato, depois virou-se e deixou a cozinha. Onde estava o amor naquela casa?, especulei. O que faz com que esta família seja melhor do que aquela que eu formava com minha mãe? Era apenas pelo teto sobre a cabeça das pessoas e pela comida na geladeira? Começava a pensar que preferia os bons dias ocasionais com mamãe do que a constante vida de tensão e medo que existia naquela casa. Só que não tinha mais a opção. Talvez eu fosse mesmo um erro. Era uma pessoa que podia ser mudada de lugar sem qualquer dificuldade, como se não passasse de um móvel.

No dia seguinte, na escola, Jimmy me deu ainda mais atenção. Andou comigo pelos corredores nos intervalos das aulas, sentou comigo na hora do almoço. Quando perguntei se Brad Dillon queria realmente sair com minha prima, ele sorriu e disse:

— Não falei que daria um jeito para que você pudesse ir ao jogo? Vamos pensar apenas em nos divertir. Ficarei olhando para você na arquibancada.

Jennifer persuadiu tio Reuben a nos levar de carro ao ginásio da escola. Só quando estávamos quase chegando é que ela revelou que fôramos convidadas para uma festa depois do jogo. Tio Reuben quase parou o carro para nos levar de volta para casa.

— Mas que história é essa? Que festa?

Ele berrou tão alto que até pensei que podia partir o vidro das janelas. Permaneci calada no banco de trás, enquanto Jennifer desfiava suas mentiras.

— Todo mundo vai. É uma festa com gente mais velha presente, na casa de Missy Taylor. Não chegaremos tarde em casa. Será uma comemoração.

— Por que não me disse nada antes?

— Acabamos de ser convidadas, não foi, Raven? Missy nos ligou.

Não falei nada. Não queria que ele me culpasse mais tarde. Estava decidida nesse ponto. Vi os olhos de tio Reuben subirem para o espelho retrovisor.

— Quem é essa Missy Taylor?

— Melissa Taylor. Conhece o pai dela. É o dono da Taylor’s Steak House.

— Não passa de um bar — resmungou tio Reuben.

— Eles têm uma boa casa — insistiu Jennifer. Ele soltou um grunhido.

— Não quero que cheguem tarde em casa. Espero vocês até meia-noite. Por falar nisso, como voltarão para casa?

— Temos uma carona combinada. Não se preocupe, papai.

Tio Reuben olhou para ela e depois para mim, através do espelho retrovisor.

— Não me agrada muito. Quem serão os responsáveis pela festa?

— A mãe de Missy estará presente. Pare de se preocupar tanto, papai. Também ia a festas quando tinha a nossa idade.

— Não, não ia. E só saí com uma garota quando estava no último ano.

Quem soltou um grunhido então fui eu, pois não podia imaginar uma garota que quisesse sair com ele. Tio Reuben fitou-me pelo espelho e não disse mais nada.

Foi um jogo emocionante. Jimmy teve uma atuação espetacular, roubando a bola várias vezes, marcando cestas de três pontos, mantendo o jogo numa diferença de quatro pontos. Também fez o que prometera: olhou para a arquibancada e me descobriu. Quando ele sorriu, Jennifer olhou para mim com os olhos tão cheios de inveja ardente que até pensei que pegariam fogo.

No último minuto do jogo, Jimmy interceptou um passe e fez a cesta. Depois, um dos adversários sofreu uma falta, mas perdeu os lances livres. A bola chegou às mãos de Jimmy, que fez um arremesso do canto da quadra. A cesta levou o jogo para uma prorrogação de dois minutos. A multidão ficou excitada, os aplausos foram ensurdecedores. Quando os torcedores começaram a bater os pés, pensei que a arquibancada ia desabar.

A prorrogação foi tão emocionante quanto o jogo, cada time marcando até os últimos trinta segundos, quando Jimmy pegou a bola e protelou o arremesso ao máximo possível. Todos prenderam a respiração, enquanto a bola voava pelo ar e caía direto na cesta, para dar a vitória à nossa escola. Jimmy deixou a quadra nos ombros dos companheiros, o herói da escola.

— E você vai com ele à festa! — murmurou Paula Gordon.

— E não sei por quê — comentei.

Ela trocou um olhar divertido com Jennifer, as duas cobrindo o sorriso com a mão.

Depois, os rapazes se encontraram conosco na arquibancada para assistir ao jogo principal. Não foi tão emocionante quanto a preliminar. No intervalo, Jimmy sugeriu que fôssemos logo para a festa.

— Começaremos antes dos outros — disse ele. Embarcamos em dois carros e fomos para a casa de Missy Taylor. O tempo piorara, com uma chuva fina constante. Mas em vez de arrefecer nosso entusiasmo, fez todo mundo gritar, ao corrermos para os carros. Quando chegamos na casa, descobri que os pais de Missy estavam em seu bar e restaurante. Assim, a primeira mentira de Jennifer se tornou imediatamente evidente. Era uma boa casa, maior que a de tio Reuben e tia Clara. Missy era filha única. A casa tinha quatro dormitórios, além de um salão de festas no porão, com um bar e uma vitrola automática.

A música começou a tocar assim que chegamos. Brad foi para trás do bar, começou a servir cerveja e vodca. Eu não queria beber nada. Mas todos bebiam, inclusive Jennifer, que alegou estar acostumada a tomar vodca.

— Bebo em casa e depois ponho água na garrafa para que meu pai não saiba — explicou ela.

Acreditei na declaração. Mas não demorou muito para que ela começasse a passar mal. Teve de ir ao banheiro para vomitar.

— Ela bebeu depressa demais — disse Jimmy. — É o segredo, beber devagar. Você está fazendo muito bem. Sabe se cuidar.

Eu tomara apenas meio copo de cerveja. Minha mãe cairia na gargalhada, pensei.

— Vamos deixar esses perdedores para trás — disse Jimmy, pegando minha mão.

— Para onde vamos?

— Já vai ver.

Ele subiu a escada para os quartos.

— Não podemos andar por toda a casa desse jeito, não é? — perguntei.

— Claro que podemos. Missy sabe. Não tem problema. Já tivemos outras festas aqui antes. É uma casa sensacional para festas, porque os pais dela nunca fiscalizam a bebida e estão sempre ausentes.

Missy Taylor também não deve ter uma grande vida familiar, pensei. Já começava a me perguntar se algum dos alunos da escola tinha uma situação melhor do que a minha.

Jimmy parecia não saber exatamente para onde ir. Levou-me para um dos quartos de hóspedes. Assim que passamos pela porta, ele fechou-a e me abraçou. Foi o beijo mais maravilhoso que eu já experimentara, prolongado, molhado, tão firme que me deixou com a nuca doendo. Ele subiu com as mãos pelos lados do meu corpo. Beijou-me no pescoço.

— Você é deliciosa, Raven... como eu imaginava.

— Não sou um bombom — murmurei, tentando rir. Começava a me sentir nervosa. Gostava de Jimmy, queria que ele me beijasse. Mas Jimmy avançava tão depressa que meu coração disparara. As mãos cobriram meus seios, os dedos abrindo os botões da blusa. Enquanto fazia isso, ele me levava para a cama. Antes que eu me desse conta, estávamos sentados ali. Jimmy encostou os lábios em meu peito, começou a abrir o sutiã.

— Espere, Jimmy.

— Esperar o quê?

— Não quero fazer isso tão depressa. Podemos nos meter numa encrenca.

Ele me fitou com um sorriso.

— Não se preocupe. Não haverá nenhum problema. Tenho o que precisamos. Esperava por isso, não é?

— Não. Por quê?

— O que está querendo dizer com não? Concordou em vir até aqui comigo. O que pensava que faríamos? Comer pipoca e assistir à televisão? Sabe muito bem o que está acontecendo. Sei de tudo a seu respeito. Jennifer contou a todo mundo.

— Como assim? — perguntei, empurrando-o para trás. — O que ela contou a todo mundo?

— Ei, o que está havendo? Isto não é uma cirurgia cerebral. Vamos apenas nos divertir. Você já fez isso antes.

— Não, não fiz — declarei, levantando-me. — Não sei o que Jennifer contou a todo mundo, mas não sou o que você está pensando.

— Ora, pare com isso. Não sou de beijar e contar aos outros.

Ele se inclinou para pegar minha mão, mas recuei.

— Também não sou... a trepada de uma noite de ninguém.

Repeti o que ouvira mamãe dizer a um de seus amantes. Embora ela fosse isso mesmo com freqüência: a trepada de uma noite.

- — Pensei que fosse mais inteligente que as outras garotas da escola. Por que acha que a convidei para sair na noite do maior jogo do time? Venha para cá. Não mereço uma recompensa?

— Não — respondi. — Merece um chute entre as pernas, e é isso que vai receber se tentar me puxar para essa cama.

Meus olhos irradiavam toda a raiva que eu sentia. Ele se intimidou.

— Como quiser. E agora suma daqui. Encaminhei-me para a porta.

— Você e sua prima são um pé no saco — acrescentou Jimmy.

— Não me inclua na mesma categoria de Jennifer.

No corredor, avistei Brad saindo de um dos quartos, com um sorriso no rosto, enquanto endireitava as roupas.

— Brad, onde está Jennifer? Vamos para casa agora.

— Tudo bem. Já acabei com Jennifer. Ela é toda sua. Ele riu enquanto descia para voltar à festa. Abri a porta do quarto e vi Jennifer estendida na cama, a saia levantada, a blusa desabotoada. Dava a impressão de que dormia, mas eu tinha experiência suficiente com minha mãe para saber que apagara.

— Jennifer, acorde! — Sacudi-a pelos ombros. — Acorde logo! Temos de sair daqui!

— Como? Quem? Raven... O que está fazendo aqui? O que aconteceu? — Ela correu os olhos pelo quarto, tonta. — Onde Brad se meteu? Estávamos nos divertindo, o quarto começou a girar e...

— Vamos logo, Jennifer! Você tem de se levantar! Puxei-a para ficar sentada. Jennifer estendeu as pernas pelo lado da cama.

— Ai, minha cabeça! Quero ir para casa...

— É o que faremos. Foi por isso que vim procurála. Mas primeiro é melhor contar que histórias andou espalhando para todo mundo a meu respeito.— Por favor, Raven, só quero ir para casa. Compreendi que não adiantava argumentar com ela no estado em que se encontrava. Passei o braço por sua cintura e ajudei-a a ir até a escada. Brad e outros rapazes estavam parados lá embaixo. Todos riam histericamente.

— É melhor alguém nos levar para casa — pedi. — Jennifer está passando mal. Precisamos ir agora.

— Por que não pedem uma carona na rua? — sugeriu Brad, provocando risadas.

Jennifer e eu descemos. Virei-me para Missy Taylor, que subira do porão para saber por que todos riam.

— Se alguém não nos levar para casa, meu tio vai armar a maior confusão para cima de você, ainda mais com toda essa bebida oferecida aqui.

Ela sorriu.

— Leve as duas para casa, Brad. Não quero ter nenhum problema. De qualquer maneira, as duas são crianças demais para estarem aqui. Foi uma idéia idiota.

— Foi mesmo — resmungou Jimmy, descendo a escada atrás de nós.

— Vamos embora logo — falei para Jennifer, enquanto passávamos pela porta.

— Tratem de andar depressa — resmungou Brad, furioso. — Não quero perder a diversão.

— Detestaríamos se você perdesse a diversão... qualquer diversão — murmurei.

Levei Jennifer para o carro. Ela se esparramou no banco traseiro.

— É melhor ela não vomitar no meu carro — disse Brad.

— Você não queria realmente trazê-la para a festa, Brad. Por que a trouxe?

— Como um favor a Jimmy, para que você viesse também. Acho que você acabou não fazendo nada, não é mesmo? — Ele sorriu. — Mas não tem problema, porque Jennifer e eu nos divertimos.

— Tem razão, nós não transamos.

— Muitas garotas gostariam de sair com Jimmy — comentou ele, como se eu tivesse perdido uma grande oportunidade.

— Aqui tem uma que não está mais interessada. Ele sacudiu a cabeça.

— Afinal, de onde você veio?

Isso mesmo, de onde eu vinha? Mas depois pensei em outra coisa. Não interessa de onde eu venho. O que importa é para onde eu vou.A festa acabou

Chovia forte quando chegamos em casa. Brad não me ajudou com Jennifer. Permaneceu sentado, impaciente, enquanto eu fazia o maior esforço para tirá-la do carro. Ela parecia nem sequer perceber que nos molhávamos cada vez mais, porque não quis ou não pôde andar depressa. Praticamente a carreguei do carro de Brad para casa. Ele partiu assim que saltamos. Ao chegarmos à porta, nós duas estávamos ensopadas. Eu esperava entrar com Jennifer e levá-la para seu quarto sem que ninguém percebesse. Mas no instante em que abri a porta, tio Reuben saltou de sua poltrona na sala e veio para o corredor. Arregalou os olhos ao ver Jennifer. Ela estava pálida, as roupas encharcadas e desarrumadas, os cabelos grudados na testa, os olhos meio fechados. Apoiava-se em mim.

— O que aconteceu com Jennifer? — perguntou tio Reuben. — Qual é o problema? Ela está passando mal?

Jennifer fitou-o, patética por um momento, em seguida desatou a rir e a chorar ao mesmo tempo. Ele olhou para mim.

— O que aconteceu?

— Ela bebeu vodca na festa — respondi, tomando a decisão de não mentir para protegê-la.

— O quê? Bebeu... vodca? Clara!

Tia Clara saiu correndo do quarto, aparecendo no alto da escada. Vestia apenas a camisola.

— O que foi, Reuben?

— Olhe só para sua filha!

Ele estendeu os braços para Jennifer. Ela parecia ainda mais ridícula com um sorriso idiota, apoiada no meu braço. Revirou os olhos e comprimiu as mãos contra a barriga.

— Ahn... não me sinto muito bem... Tio Reuben tornou a me fitar.

— Pensei que você tinha dito que haveria pessoas mais velhas tomando conta da festa.

— Não falei nada. Foi Jennifer quem disse isso. Ele franziu as sobrancelhas espessas e escuras. Os olhos se contraíram em suspeita.

— Quem deu a vodca a ela?

— Estou passando mal, papai — suplicou Jennifer. — Leve-me para o meu quarto.

— Oh, querida, querida! — exclamou tia Clara, descendo a escada.

Ela pegou o outro braço de Jennifer. Começamos a subir. Mas tio Reuben estendeu as mãos enormes, segurou meus ombros e puxou-me. Quase me levantou do chão quando aproximou o nariz do meu rosto e farejou.

— Você também bebeu, Raven.

— Só meio copo de cerveja.

— Eu sabia! Tinha certeza de que esse tipo de coisa acabaria acontecendo quando você veio para a nossa casa!

— Não foi culpa minha. — Tirei as mãos dele de meus ombros. — Jennifer queria ir à festa mais do que eu. E sabia exatamente o que ia acontecer lá.

Se ele soubesse o que mais acontecera... nem mesmo sua preciosa princesa estaria a salvo de sua ira.

Tio Reuben não ouviu nada. Jennifer tropeçou num degrau. Tia Clara fez o maior esforço para evitar que ela caísse. Ele se adiantou, pegou-a no colo, subiu o resto da escada, como se a filha crescida não pesasse mais que um bebê.

— Não a sacuda tanto, Reuben — advertiu tia Clara, subindo atrás dos dois.

O aviso veio tarde demais. Jennifer começou a ter ânsias de vômito no instante em que chegou ao patamar. Tio Reuben correu para o banheiro.

— Oh, não, não... — balbuciou tia Clara, comprimindo as mãos uma contra a outra, as duas contra o rosto. — Como isso pôde acontecer, Raven?

— Acho que já aconteceu antes, tia Clara, só que vocês nunca souberam.

Eu não sabia o que exatamente acontecera com Jennifer e Brad. Ou se já acontecera antes com outros rapazes. Mas tinha certeza de que Jennifer não ia querer que os pais soubessem disso também. Tia Clara mordeu o lábio e continuou a subir. Tio Reuben saiu do banheiro e ordenou:

— Cuide de Jennifer. Dê um banho frio nela. William viera até a porta de seu quarto, de pijama.

Esfregou os olhos e olhou para a confusão, aturdido.

— O que aconteceu?

— Volte a dormir. — Tio Reuben olhou para mim, furioso. — Quero conversar com você.

— Não fiz nada!

Fui para o meu quarto e fechei a porta. Ele quase a arrancou das dobradiças ao abri-la.

— Não ouse se afastar de mim desse jeito!

— Não foi culpa minha, tio Reuben. Ela queria ir ao jogo e à festa. Persuadiu os garotos a nos convidarem. Assim que chegamos, foi até o bar e serviu-se de um copo de vodca, alegando que sabia beber. Mas começou a passar mal logo em seguida, Acho que bebeu demais, muito depressa, tentando se mostrar. Trouxe-a para casa assim que pude. É a verdade.

— Jennifer nunca foi a uma festa assim antes — insistiu ele. — Nunca voltou para casa desse jeito. De alguma forma, tenho certeza que foi tudo culpa sua.

— Acredite no que quiser. Não vai adiantar mesmo eu negar.

Virei as costas. Foi um grande erro. Num gesto rápido, sua enorme mão esquerda agarrou-me pelo pescoço, enquanto a mão direita segurava a bainha do vestido. Ele me jogou em cima do sofá-cama, quase virando-o. Antes que eu pudesse gritar, tio Reuben desafivelou o cinto e tirou-o da calça. Baixou minha calcinha. Foi nesse instante que soltei um grito, tão alto quando podia.

— Sua desgraçada! — berrou tio Reuben. — Não vou permitir que venha para cá e arruine minha Jennifer! Acabarei com esse comportamento pernicioso esta noite!

O primeiro golpe do cinto me chocou mais do que doeu. Não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Com a palma da mão em minhas costas, ele me imobilizava, enquanto tornava a golpear com o cinto. Desta vez a dor subiu por minha espinha.

— Requebrando a bunda para os garotos, indo a festas, bebendo e não sei mais o quê. Você é igual à sua mãe. Deveria ter levado uma surra antes, mas nunca é tarde demais.

Ele me bateu outra vez e mais outra. Entre os gritos e as lágrimas, comecei a sufocar. Era inútil tentar escapar. Tio Reuben me imobilizara com sua mão enorme. Finalmente parou de me bater, mas por um longo tempo me manteve na mesma posição. Minha bunda ardia em dor. Era como se tivesse sido picada por uma dúzia de vespas. Senti-o passar a mão direita por minha bunda, mas desta vez com uma surpreendente suavidade. Pensei que devia estar verificando se me deixara bastante machucada. Depois, ele tirou a mão esquerda das minhas costas. Tive medo de me virar, de fazer qualquer movimento. Senti que ele se levantava, olhando para mim, a respiração pesada.

— Talvez agora você se comporte, Raven. Estremeci com os soluços, enquanto ele saía e fechava a porta. Não me mexi por muito tempo. Permaneci ali, virada para baixo, esperando que a dor diminuísse. Virei-me quando isso aconteceu. Doeu mexer as pernas, ainda mais apoiar o peso na bunda. Estendi-me de costas, tentei recuperar o fôlego, enquanto limpava o rosto. Mas acho que me sentia mais perturbada pela afronta e a perda da dignidade do que pela dor. Lentamente, estiquei-me e puxei a calcinha para o lugar. Quando me levantei, foi como se ficasse de pé numa praia ou na beira de uma piscina, para descobrir que ficara queimada demais. Sentia a pele latejar, havia uma sensação de náusea no fundo do estômago.

Tinha vontade de abrir a porta e gritar: ”Como ousa fazer isso comigo?”

Cheguei a abrir a porta, mas quando olhei para a casa silenciosa me senti ainda mais apavorada. Se ele fora capaz de me bater daquele jeito, quem sabia o que mais poderia fazer? Fui para o banheiro, comprimi uma toalha umedecida com água quente contra minha bunda e coxas.

Não adiantou muito. Voltei para o quarto, em passos cautelosos e lentos. Ouvi tio Reuben gritando lá em cima, os soluços abafados de tia Clara. Mal tive forças para me despir. Quando finalmente deitei, a dor piorou. Acho que desmaiei em vez de adormecer, pouco antes do amanhecer.

Um choque frio me despertou. Compreendi que estava encharcada de água gelada. Gritei e sentei, para deparar com tio Reuben, parado na minha frente, com um balde nas mãos. A água logo ensopou o cobertor, mas continuei a comprimi-lo contra meu corpo seminu.

— Trate de se levantar e vá ajudar Clara a fazer a faxina da semana. Não vai dormir até tarde aqui porque se comportou como uma vagabunda, entendido? Eu a ensinarei o que significa se comportar mal enquanto estiver morando comigo. — Ele falava com os dentes semicerrados. — Não sou sua mãe. Não admitirei essas coisas em minha casa. Levante-se!

— Já vou levantar. E agora me deixe sozinha. Ele fez menção de me jogar mais água.

— Reuben, pare com isso! — gritou tia Clara do corredor.

Ele me lançou mais um olhar furioso, depois acenou com a cabeça e saiu do quarto. Parou na porta e disse à tia Clara:

— Não a mime, Clara. Ela precisa de uma disciplina rigorosa. Não passa de um animal selvagem.

Tio Reuben se afastou.

Quando comecei a me mexer, a dor do corpo espancado subiu pela espinha e me fez gritar.

— O que foi? — indagou tia Clara, entrando no quarto. — O que aconteceu, Raven?

— Ele me deu uma surra, tia Clara. Bateu em mim com um cinto ontem à noite.

Ela sacudiu a cabeça, negando a possibilidade. Mas virei de lado e levantei o cobertor, mostrando as coxas e a bunda. Tia Clara soltou uma exclamação de horror e recuou.

— Oh, não!

— Está tão horrível assim?

— São vergões, inchados. Reuben, como pôde fazer isso?

Mas ela não falou bastante alto para que o marido ouvisse. Era mais como se fizesse a pergunta a si mesma, como tio Reuben pudera se transformar naquele monstro. Havia outras perguntas para se responder, mas aquele não era o momento para fazê-las, pensei.

— Vou buscar uma pomada, Raven. Espere aqui. Oh, não, não...

Ela saiu apressada. Tornei a arriar para o travesseiro, a cabeça latejando. O que me torturava não era tanto a surra injusta que levara, mas sim a constatação de que não havia ninguém com quem pudesse contar, agora que mamãe se metera numa encrenca ainda maior. Tia Clara era fraca demais. Não tinha outros parentes a quem pudesse recorrer em busca de ajuda. Residia numa cidade estranha, estudava numa escola em que ainda era tão nova que não tivera tempo de fazer qualquer amiga íntima. Estava mesmo acuada.

— Pronto, querida. Deixe-me ver o que posso fazer. Virei-me para deixar que tia Clara passasse a pomada. Proporcionou algum alívio.

— Não posso acreditar que Reuben tenha feito isso — murmurou ela. — Mas ele ficou transtornado. E tem um temperamento explosivo.

— Não persuadi Jennifer a beber vodca, tia Clara. As pessoas na festa eram amigas dela, não minhas.

— Sei disso, querida, sei disso.

— Ele não quer acreditar em qualquer coisa negativa sobre Jennifer. — Virei-me quando tia Clara acabou. — Não é justo... e não é certo.

— Conversarei com Reuben.

— Não vai adiantar, tia Clara. Ele tem uma péssima opinião a meu respeito e de minha mãe. Odeia-me por estar viva e ser um problema para vocês. Eu deveria ir embora.

— Claro que não. Para onde iria? Nem sequer pense nisso, Raven. Ele vai se acalmar. Tudo acabara bem.

Tia Clara falava como alguém que vivesse na Terra do Nunca.

— Não vai acabar bem, tia Clara. E ele nunca vai se acalmar. É um ogro. Até pior do que isso. Sei por que ele dá tanta preferência a Jennifer.

Pronunciei baixinho a última frase. Tia Clara não ouviu, ou fingiu que não ouviu. Tratou de se esquivar.

— Vou preparar alguma coisa quente para comermos. Todo mundo se sentirá melhor depois. Não precisa se apressar, querida.

Ela se retirou antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa. Continuei sentada ali, furiosa. Queria apenas pegar Jennifer e torcer seu pescoço, até obrigá-la a confessar a verdade. Não a deixaria escapar impune com aquilo, pensei. Levara a surra que deveria ser destinada a ela.

Saí do quarto, cautelosa, detestando até o pensamento de me confrontar com tio Reuben agora. Não ouvi vozes, apenas o barulho de louça e os movimentos de tia Clara na cozinha. Quando dei uma espiada, avistei William sozinho à mesa. Jennifer tivera permissão para dormir até passarem os efeitos da noite passada, mas não eu.

A raiva subiu em mim, como o leite fervendo no fogão por tempo demais. Tive a sensação de que o coração subia para a boca. Sem a menor hesitação, virei-me e subi a escada. Se tivesse de arrastá-la pela escada abaixo e jogá-la aos pés do pai, balbuciando a verdade, faria isso, pensei.

Ao chegar no patamar, vi que a porta do seu quarto estava entreaberta. Comecei a me adiantar, mas parei quando ouvi o som nítido de alguém se lamuriando. Ou-

Ouvi a voz de Jennifer, baixa e patética, parecendo mais com a de uma garota com a metade de sua idade, sem a arrogância habitual. Cheguei mais perto, curiosa e confusa.

— Desculpe, papai. Eu não queria fazer aquilo, mas Raven e as outras garotas começaram a zombar de mim. Disseram que eu era imatura, uma criança, que não deveria ir a festas.

— Não permita que elas digam essas coisas a seu respeito, princesa. Nem sequer pense nisso.

Se tio Reuben soubesse de toda a verdade, pensei, o que pensaria de sua princesa? Um momento depois, tia Clara me chamou:

— Raven? Você está aí em cima?

Tio Reuben ouviu e apareceu na porta do quarto de Jennifer.

— O que está fazendo aqui? — perguntou-me ele.

— Vim falar com Jennifer.

— Ela não se sente bem esta manhã, como você deve saber. Vá cuidar de suas tarefas.

— Papai! — gritou Jennifer.

— Vá logo, Raven!

Comecei a descer. Olhei para trás quase no meio da escada. A porta do quarto de Jennifer estava fechada.

— O que houve, querida? — perguntou tia Clara. Fitei-a em silêncio por um momento. Pensei em lhe contar o que acontecera na noite passada.

— Não houve nada, tia Clara. Já estou descendo. Eu não estava disposta a me rebaixar ao nível de Jennifer. Pelo menos ainda não.

Tia Clara sabia que havia alguma coisa errada, mas não me pressionou em busca de respostas. Suponho que não queria saber sobre o comportamento de Jennifer, como também não queria saber sobre tio Reuben aterrorizando William. No fundo de seu coração, tia Clara não podia ser feliz com a pessoa em que Jennifer estava se transformando. Não podia ignorar a impostura da filha, sua preguiça e mesquinhez. Sabia que ela se sentia transtornada pela maneira como William se isolava de todos, até da própria mãe, e queria o melhor para o filho. Mas o que dizer da filha? O que ela queria para Jennifer?

E foi nesse momento que reconsiderei tudo, parei de odiá-la, passei a ter pena dela. Só estava na casa há pouco tempo. Não tinha idéia das coisas horríveis que tia Clara tivera de suportar antes da minha chegada. Era fácil perceber que ela tinha medo de tio Reuben, talvez ainda mais do que eu. Bastava ele altear a voz, erguer os ombros, e tia Clara começava a balbuciar e se encolher, cabeça baixa, as mãos comprimidas contra o peito. Em algumas ocasiões, quando ela não sabia que eu a observava, podia divisar a profunda tristeza em seus olhos, ou até surpreendê-la enxugando uma ou outra lágrima do rosto. Muitas vezes, após o trabalho encerrado, ela sentava na cadeira de balanço e ficava se balançando, os olhos abertos, mas sem ver nada. Nem sequer percebia a minha presença.

Nunca duvidei de que ela amava os filhos. Talvez tivesse outrora amado tio Reuben. Mas agora era alguém que perdera a independência, o orgulho e a força, uma sombra oca da personalidade antiga, sem muita semelhança com a moça bonita que aparecia nas fotos, com um rosto cheio de esperança, cujo futuro parecia promissor e maravilhoso, sem motivos para pensar que outra coisa além de rosas e chuva perfumada pudesse atingi-la.

Alguns adultos perdem o controle, pensei, bebem, consomem drogas, tornam-se desvairados e incontrolados quando perdem seus sonhos, como minha mãe. Outros sofrem uma espécie de morte discreta, que mal se nota, só continuam a viver no eco de outras vozes. Suas próprias vozes e sorrisos são levados pelo vento, desaparecem para sempre, visíveis apenas por um ou dois segundos, no brilho dos olhos e risos radiantes que afloram com as lembranças.

Mais tarde, Jennifer saiu de seu quarto, com um sorriso escarninho e triunfante. Eu tirava o pó dos móveis, depois de ter passado o aspirador na sala. Tio Reuben tirava um cochilo. William fora para seu quarto, e tia Clara saíra para fazer compras. Jennifer arriou no sofá, pôs os pês em cima da almofada, sem tirar os sapatos. Parei de trabalhar e fitei-a, com uma repulsa ostensiva.

— Estou muito cansada — disse ela. — Ainda bem que hoje não tem aula.

— Você me meteu numa encrenca. Que histórias espalhou na escola a meu respeito? Como pôde contar tantas mentiras sórdidas?

— Sua reputação a precedeu. — Jennifer soltou uma risada. — Não precisei espalhar nenhuma história.

— Você é desprezível, Jennifer. Podia pelo menos ter contado a verdade a seu pai.

— Podia mesmo, mas nesse caso eu é que ficaria encrencada. — Ela riu de novo. — Pode continuar com a limpeza. Não vou atrapalhar. Só quero que não faça muito barulho.

— Você é mesmo nojenta. — Minha raiva estava a pique de estourar. — Sob vários aspectos.

— O que está querendo dizer com isso? Vai me dizer que nunca bebeu demais? Em sua casa, devia ser uma ocorrência diária.

— Para sua informação, não era, não... pelo menos não para mim.

Fitei-a em silêncio por um momento, debatendo-me se tinha ou não coragem para falar. Mas resolvi falar.

— Como pôde deixar que Brad fizesse aquilo com você? Não tem nenhum orgulho?

Ela sustentou meu olhar, mal piscando.

— Do que está falando agora, Raven? Que tipo de mentira tenta inventar para se safar da encrenca?

— Você sabe do que estou falando... e sabe que não é uma mentira.

A expressão de Jennifer não se alterou. Ela desviou o rosto por um instante, mas logo voltou a me fitar, balançando a cabeça.

— Não sei do que está falando, Raven, mas devo avisar para não dizer qualquer coisa que possa deixar papai furioso.

— Ele já ficou furioso.

Larguei o pano de pó, abri a calça e baixei-a, junto com a calcinha. Virei-me para mostrar os vergões.

— Que coisa horrível... — murmurou ela, com uma careta.

— Ele gostou de fazer isso comigo — acrescentei, levantando a calça. — É um sádico... um pervertido.

— Pare com isso! — Jennifer levantou-se de um pulo. — Ele é meu pai. Se resolveu castigar você, foi porque fez alguma coisa errada. É um homem gentil e se preocupa comigo.

— Você apenas tem medo dele. E deve ter mesmo. Se ele soubesse como se comportou, levaria uma surra ainda pior do que a minha.

Cheguei mais perto e fitei-a nos olhos.

— Pare com isso! — sussurrou ela. — Papai pode ouvir.

Jennifer bateu com o pé no chão.

— O que está acontecendo aí embaixo? — gritou tio Reuben do seu quarto.

Jennifer hesitou, fitando-me com olhos arregalados e assustados.

— Devo contar a ele? — indaguei. — Devo relatar tudo o que aconteceu ontem à noite?

Ela pensou por um instante, depois decidiu que podia apostar que eu evitaria um novo confronto com tio Reuben.

— Nada, papai — respondeu Jennifer.

— Pois então falem baixo. Estou tentando descansar um pouco. Quase não dormi na noite passada, graças a alguém nesta casa.

— Está bem, papai. Raven pede desculpas.

— Você é mais doente do que ele — murmurei, sacudindo a cabeça.

— Você apenas sente inveja porque não tem um pai — declarou ela, os olhos contraídos e odiosos, mas também marejados de lágrimas. — Nunca teve um pai. Tem uma mãe que é uma vagabunda e viciada em drogas... e agora não tem nem mesmo ela.

— É verdade, não tenho nada disso... mas pelo menos ainda tenho algum amor-próprio, algum respeito por mim mesma.

Passei por ela, quase a derrubando com um esbarrão.

— E quem mais a respeitaria? — gritou Jennifer, enquanto eu me afastava. — É pior do que uma órfã. Não é nada. Nem mesmo tem o nome certo! É isso mesmo. Papai me contou que sua mãe nunca foi sequer casada. Portanto, pare de jogar pedras nos outros. É uma filha ilegítima!

Saí da sala e bati a porta.

Jennifer tinha razão, é claro. Era verdade tudo o que ela dissera, mas eu preferia não ser ninguém, pensei, a ser alguém com um pai como o dela.

— Não mandei vocês duas ficarem quietas aí embaixo? — berrou tio Reuben.

— Está tudo bem, papai. Vou dar um pulo à casa de Paula. Se houver mais algum barulho, não serei eu.

Um momento depois, ouvi-a sair de casa. Tudo ficou quieto de novo. Respirei fundo e fui até a janela. Ainda estava cinzento e desolado lá fora. Jennifer adivinhara corretamente. Eu não contaria a tio Reuben. Por que ele acreditaria em mim? Guardaria o segredo dela. Por enquanto.

De repente avistei uma pessoa parada na esquina, debaixo de um bordo copado. Ela usava capa e estava com um lenço sobre os cabelos, como minha mãe costumava fazer.

— Mamãe? — chamei, meus olhos se enchendo de lágrimas.

A mulher virou-se e desapareceu na outra rua. Corri para a porta da casa. Saí e fui até a esquina. Quando cheguei lá, no entanto, não havia ninguém à vista. Fiquei parada, olhando. Teria imaginado?

— Mamãe!

Minha voz se perdeu no vento. Ninguém apareceu.

E se tivesse mesmo sido mamãe?, pensei. No fundo do meu coração, gostaria que fosse, só para saber que ela pensava em mim, só para saber que se importava um pouco, mesmo que não voltasse para me buscar.

Talvez, pensei, olhando para a rua comprida e vazia, sem sequer um carro passando por ali, talvez eu quisesse tanto que simplesmente imaginara.

Como tudo de bom que eu queria para mim, aquilo não passava de um sonho, uma ilusão, outra esperança ligada a uma bolha que estouraria, deixando-me tão perdida e esquecida quanto antes.

Virei-me e voltei para o inferno que tinha de chamar de lar.

 

                       Inocência perdida

O orientador em minha antiga escola, o sr. Martin, disse-me uma ocasião que é mais difícil olhar para nós mesmos do que para os outros. Alguns professores vinham se queixando de mim. Quando tivemos a reunião e ele leu a lista de reclamações, eu tinha uma desculpa para tudo. Era tão boa em me defender que ele acabou se recostando na cadeira, fitou-me nos olhos e riu.

— Sei que você mesma não acredita em metade do que me diz, Raven. E sabe que ao sair daqui terá a certeza de que eu também não acredito em você. A verdade é que você tem sido irresponsável, negligente e, até certo ponto, autodestrutiva. Quer saber o que eu penso?

Ele inclinou-se para a frente, cruzando as mãos sobre a mesa. Tinha cabelos ruivos e olhos tão verdes quanto esmeraldas. Pequenas sardas derramavam-se da testa, escorriam pelas têmporas, até as saliências dos malares. Sempre tinha um cumprimento cordial para todos. Nunca o vi perder o controle, mas tinha um jeito de fazer com que um aluno bagunceiro se sentisse constrangido. Falava suavemente, com um tom de sinceridade, agia como se fosse o irmão mais velho de todos.

Encarava cada desapontamento em termos pessoais e fazia perguntas que forçavam o aluno a ser franco.

Meu coração pareceu se encolher dentro do peito, enquanto esperava que ele lançasse sua bomba. Tive de baixar os olhos. Ele tinha um olhar muito penetrante, exigente.

— Não, não quero — acabei respondendo —, mas imagino que vai me dizer de qualquer maneira.

— Isso mesmo, Raven. Acho que você é uma garota rebelde, revoltada com sua vida, e pensa que vai magoar alguém se for uma péssima aluna, tiver um péssimo comportamento. Mas a única pessoa que vai sair magoada será você.

Virei-me para olhar além dele, pela janela da sala, porque podia sentir que as lágrimas afloravam sob minhas pálpebras. Poucas pessoas eram capazes de penetrar através do muro que eu erguera em torno dos meus verdadeiros sentimentos. Sempre que alguém o fazia, sentia-me um tanto nua e desamparada, quando era menor.

— Sua mãe não responde a nenhum dos meus telefonemas ou cartas. Nunca esteve disponível para se reunir com seus professores.

— Não me importo se ela vem aqui ou não — declarei, em tom ríspido.

— Claro que se importa. — Ele tornou a se recostar. — Às vezes, talvez até na maior parte do tempo, não podemos fazer nada sobre as cartas que recebemos. Apenas tratamos de tirar o maior proveito e continuamos no jogo. Não adianta se lamentar a respeito, não é mesmo? E você sabe disso.

— Não sei do que está falando, sr. Martin. Fui mal em algumas provas. Não tem nada demais. Os professores sempre implicam comigo porque sou um alvo fácil. Os outros alunos conversam na aula, passam bilhetes, esquecem os livros e fazem outras coisas, mas não recebem nem a metade das queixas. O sr. Martin sorriu.

— Quando eu jogava no time de basquete da universidade e dava desculpas assim ao meu treinador, ele começava a erguer e a baixar as pernas como se andasse por um pântano. Entende o que estou dizendo?

Senti um aperto na garganta e baixei os olhos.

— Muito bem, Raven. Não vou mantê-la aqui por mais tempo. Pense nas coisas que falamos, e saiba que estou aqui à sua disposição, se precisar conversar.

Levantei-me apressada, praticamente fugindo de seus olhos penetrantes e perguntas inquisitivas. Fui para o banheiro e me contemplei no espelho. Tinha os olhos vermelhos da tensão de conter as lágrimas. O sr. Martin estava certo: era mais difícil olhar para mim mesma, ainda mais depois que ele erguera um espelho de realidade e verdade.

Agora, recordando a cena, compreendi que era muito mais difícil, se não mesmo impossível, Jennifer se contemplar num espelho. Todos na casa do meu tio sofriam da mesma cegueira auto-imposta, especialmente tia Clara, que não apenas desviava e baixava os olhos, mas também fingia que não sabia que havia qualquer coisa errada.

Havia deixado a sala do sr. Martin sentindo ainda mais pena de mim mesma e achando-me um pouco culpada. Muitos alunos que se comportavam mal ou tiravam notas baixas deixavam a sala do sr. Martin furiosos por ele obrigá-los a se olharem naquele espelho. Eu deveria ter esperado o mesmo tipo de comportamento de Jennifer. Afinal, eu ameaçara denunciá-la a tio Reuben.

O resto do fim de semana transcorreu como sempre. Mantive-me apartada, fiz as tarefas da casa e os deveres da escola. Tia Clara sempre me convidava para ir assistir à televisão na sala com a família, mas nas poucas vezes em que aceitei o convite senti os olhos de tio Reuben me observando com hostilidade. Quando o fitava, ele assumia no mesmo instante uma expressão de repulsa ou raiva. Fazia com que eu me sentisse uma presença incômoda. Era como se eu devesse lhe agradecer por me deixar respirar o próprio ar dentro de sua casa. Sabia que ele nunca me daria qualquer coisa de bom grado ou com algum afeto. Não que eu quisesse algo de tio Reuben. Doía mais que eu tivesse de depender dele. Era de fato o que ele chamava de ônus das relações familiares. Só que não era ele quem carregava todo o peso daquela aflição, e sim, eu.

Se eu precisava de qualquer lembrete do constrangimento entre nós, Jennifer se mostrava mais do que feliz em fornecê-lo. Ela me ignorou durante a maior parte do domingo, mas na segunda-feira, como sempre, juntou-se às amigas na parada do ônibus, fingindo que eu não saíra da mesma casa. Nossa breve amizade, para permitir sua ida à festa, acabara para sempre. Ironicamente, porque tomara um porre e vomitara e porque transara com Brad na casa de Missy Taylor, ela se tornou uma heroína ainda maior para as amigas. Todas aguardavam ansiosas pelo relato dos detalhes principais, como se vomitar tudo o que havia no estômago fosse uma grande façanha.

Sentei na frente do ônibus com Clarence, mas foi difícil ignorar as risadas estrondosas que partiam de Jennifer e seu clã lá atrás. Só no meio da manhã é que comecei a compreender por que tantos alunos sorriam para mim, riam nas minhas costas, e balançavam a cabeça. Pouco antes do almoço, alguns me dirigiram a palavra, ao passarem por mim e Terri no corredor:

— Ouvi dizer que teve um fim de semana sensacional, Raven.

— Estou surpresa que ainda consiga andar.

— Quem é o próximo na sua lista?

— É verdade o que dizem sobre as mulheres com sangue latino?

Ninguém esperava por uma resposta. Continuavam a andar, as risadas em sua esteira. As perguntas me eram jogadas como taças de tinta vermelha, visando a manchar e estragar.

— Do que estão falando? — perguntou Terri.

— Não tenho a menor idéia.

Mais tarde, quando sentamos no refeitório, relatei o que acontecera na festa de Missy Taylor.

— Então você rejeitou o Mister Maravilha — disse Terri. — Ele não vai deixar ninguém saber disso.

— Como assim?

Vi que Jimmy e Brad haviam se juntado a Jennifer e suas amigas a uma mesa. Todos falavam depressa e riam muito. De vez em quando olhavam para mim. Alguém fez outro comentário, provocando gargalhadas. Parecia até uma trilha sonora de risos na televisão. Senti um calor se irradiar da nuca e espalhar-se pelo rosto.

— Não sei o que está acontecendo, Terri, mas posso garantir que já vai acabar.

— O que pretende fazer? — perguntou ela, quando me levantei.

— Observe.

Comecei a atravessar o refeitório. Ouvi os risos e conversas cessarem, percebi que todos se viravam em minha direção. As pessoas à mesa de Jimmy pararam de falar e levantaram os olhos.

— Ouvi dizer que anda inventando histórias a meu respeito, Jimmy.

Ele deu de ombros.

— Em alguns casos, não é preciso inventar nada. Jennifer soltou um grunhido. Suas amigas riram.

— No seu caso, Jimmy, imagino que noventa e cinco por cento são inventados. Depois de passar apenas uns poucos minutos a sós com você, posso compreender por que está sempre procurando por uma garota nova.

Os sorrisos se desvaneceram. Ouvi alguém inspirar fundo. Jimmy virou-se, o rosto começando a ficar vermelho.

— O que está querendo dizer com isso?

— Você é muito melhor no basquete do que no amor. Acho que desperdiça todos os seus talentos na quadra. Se não parar de inventar histórias sórdidas a meu respeito, contarei a todo mundo por que deixei o quarto tão depressa.

Por um momento, Jimmy foi incapaz de responder. Todos à mesa olhavam de um para o outro, os olhos se arregalando numa nova percepção. Eu sabia que não havia maneira melhor de fazer um garoto como Jimmy ter medo do que atacar sua virilidade e sua reputação exageradas.

— Como? — foi tudo o que ele pôde balbuciar. Comecei a me virar quando Jennifer se intrometeu.

— Pare de tentar se proteger, Raven. É você quem sempre faz besteira. É por isso que está aqui, vivendo como uma criada em minha casa.

Suas amigas riram. Fiquei paralisada por um instante, sentindo que minha espinha se transformava em aço frio. Depois, tornei a me virar lentamente.

— Eu? Me proteger? ”Por favor, papai”, imitei. ”Não queria vomitar por toda a casa. Foi Raven quem me obrigou.”

— Cale-se! — gritou ela.

— ”Sou uma boa menina” — arremedei. — ”A boa menina do papai.”

Todos prenderam a respiração. Jennifer ficou tão vermelha que pensei que poderia pegar fogo. Em vez disso, ela se inclinou, pegou uma tigela de sopa de tomate pela metade, e jogou em mim. A sopa quente respingou em meu rosto e nas roupas. A tigela caiu no chão e quebrou. O sr. Wizenberg, monitor do refeitório, veio correndo.

— O que está acontecendo aqui? Quem fez isso? Todos à mesa olhavam para ele. O sr. Wizenberg virou-se para mim.

— Quem jogou isso em você?

— Ninguém. Voou da mesa sem que ninguém tocasse.

Eu não seria dedo-duro, nem mesmo para meter Jennifer numa encrenca.

Frustrado, o sr. Wizenberg mandou todos à mesa e a mim para o gabinete do sr. Moore. Incapaz de fazer alguém falar, o sr. Moore deixou todos detidos e mandou cartas para as famílias. Como era de se esperar, todos me culparam.

Antes de nossas cartas chegarem, Jennifer foi falar com tio Reuben, chorando, alegou que fora eu quem começara tudo. Desta vez tia Clara interveio antes que ele pudesse tirar o cinto.

— Não faça isso, Reuben — declarou ela. — Talvez a culpa não seja toda de Raven, e você já a puniu o suficiente.

Tio Reuben ficou mais furioso com a interferência de tia Clara do que com qualquer outra coisa, mas não disse nada. Apontou um dedo para mim e sacudiu a mão, sem falar. Para mim, isso era mais assustador. Ele parecia monstruoso, capaz de matar alguém. Retirei-me assim que pude, e deixei-o descarregar sua raiva em tia Clara.

— Obviamente é ela quem precisa de disciplina, Clara. Não podemos mantê-la aqui se não tentarmos controlar seus péssimos hábitos. Olhe só para todos os problemas que ela criou no pouco tempo em que está conosco. Nunca mais interfira, entendido? Entendido?

— Está bem, Reuben. Conversarei com ela.

— Falar não ajuda em casos assim. Ela é muito mimada, já foi longe demais. Sou sua única esperança.

Se ele era minha única esperança, eu estava mesmo perdida.

Quando as cartas chegaram, tio Reuben pregou a minha no lado de dentro da porta do meu quarto.

— Não ouse tirar isso daí, entendido? Quero que a veja todas as manhãs, cada vez que sair do quarto.

— Também vai pregar a carta de Jennifer na porta?

— Não se preocupe com Jennifer. Trate de se preocupar apenas com você mesma. Já é o suficiente.

Não pude evitar que a emoção transparecesse em meu rosto. Vi-o inclinar a cabeça ao me fitar, os olhos focalizando-me como pequenos microscópios, para esquadrinhar meus pensamentos.

— Pode ter enganado Clara com aquela sua encenação de doçura — disse ele, num sussurro rouco e veemente —, mas conheço sua mãe. Conheci seu pai. Sei de onde você vem. Não pode me enganar.

— Se minha mãe era tão ruim, por que você também não é? É irmão dela. Saiu dos mesmos pais. E foram criados juntos, não é mesmo? Você não é perfeito. Fez algumas coisas horríveis.

No instante mesmo em que disse isso, compreendi que fora longe demais. Mas não sabia o quanto fora longe. Ele avançou pelo quarto.

— O que ela lhe contou? Inventou alguma mentira a meu respeito? Diga logo. Despeje seu lixo. Vamos, comece a falar.

Sacudi a cabeça.

— Não há nada para contar.

Meu coração batia forte. Tio Reuben parecia se expandir, ficar mais alto, mais largo.

— Nunca fiz nada com ela. E se algum dia eu ouvir você dizer qualquer coisa, juro que arrancarei sua língua.

Fitei-o nos olhos, depois baixei a cabeça. Ele continuou a pairar ali, como um gato gigantesco. Quase podia ouvir meus ossos triturados sob o seu bote.

— Ela era nojenta, desfilando nua de um lado para o outro, dizendo tudo o que queria, tentando me atrair para seus costumes pervertidos. Pois eu lhe dei uma lição. Foi bom quando ela fugiu... só que ela não foi bastante longe.

Quase que dava para sentir sua respiração quente no alto da minha cabeça, mas não me mexi, não contraí um músculo. Tentei parar de respirar, fechei os olhos e fingi que me encontrava em outro lugar. Depois do que pareceu uma eternidade, ele virou-se e saiu do quarto. Foi como se uma aragem fria o seguisse, deixando-me num vácuo horrível, silencioso e escuro. Tinha medo de pensar, até de imaginar a que tipo de coisas ele se referia.

Subitamente, senti que tinha de respirar um pouco de ar fresco. Vesti um suéter e saí. Todas as casas em nossa rua e na rua seguinte eram bastante espaçadas. Havia apenas seis ou sete em cada rua. No momento, não havia ninguém à vista. Cruzei os braços sob os seios e fui andando de cabeça baixa. Estava tão absorvida em meus pensamentos que nem notei que atravessara a rua.

-Ei!

Levantei a cabeça ao ouvir o chamado e deparei com Clarence Dunsen.

— Pa-para... onde... vo-você vai?

Ele tinha um saco de lixo na mão e acabara de levantar a tampa da lata ao me ver. Parei e olhei ao redor, surpresa ao descobrir como me afastara de casa.

— Estou apenas dando uma volta — murmurei. Clarence pôs o lixo na lata e fechou-a. Depois, continuou parado ali, olhando para mim.

— É aqui que você mora?

Apontei com a cabeça para a casa modesta, em estilo de rancho. Tinha paredes cinzentas, as janelas de um cinza mais escuro, um gramado grande, com sebes ao longo da calçada, um bordo vermelho na frente. A porta da garagem estava aberta, deixando à mostra uma caminhonete e uma pickup. Avistei também uma bicicleta pendurada na parede da garagem. Em outra parede havia algumas ferramentas, como alicates e chaves de porca.

— É, sim. Mo-moro no... po-porão.

— No porão? — Sorri para ele. — Como assim?

— É onde eu... dur... durmo e faço coisas. — Clarence também sorriu. — Tenho uma... entrada independente.

Balancei a cabeça, ainda confusa.

— Ve-venha... comigo... eu mostrarei. Clarence me exortou com um gesto. Deu alguns passos para o lado da casa e esperou. Pensei por um momento, corri os olhos pela rua vazia, depois segui-o para os degraus que levavam a uma porta de porão. Ele apontou.

— Aqui.

— Você mora aqui?

— Ahn... quer... ver?

Ninguém jamais me falara sobre aquilo, nem mesmo Jennifer. Mas também ninguém prestava a menor atenção a Clarence, exceto para rir de sua gagueira. Tornei a acenar com a cabeça e desci os degraus. Ele abriu a porta para um pequeno quarto, que continha uma escrivaninha e uma cadeira, uma cómoda, um armário e uma mesa pequena, em cima da qual havia um aparelho de televisão. O chão era coberto por um linóleo marrom-escuro, com um pequeno tapete cinzento oval ao pé da cama. Embaixo da cama estavam alguns pares de sapatos e tênis. Havia dois aquecedores elétricos nos lados do quarto.

As roupas espalhavam-se por toda parte, camisas na cadeira, uma calça pendurada na porta do armário, camisetas dobradas em cima da televisão. Vi revistas no chão, alguns livros e caixas de quebra-cabeças.

— Por que dorme aqui embaixo, Clarence?

O quarto não tinha janelas e era iluminado por uma lâmpada no teto e um abajur de pé ao lado da escrivaninha.

— O novo ma-marido... de minha mãe... arrumou pa-ra o bebê... ficar no meu... antigo quarto.

As paredes cinzentas de cimento tinham várias rachaduras. O quarto parecia úmido e bolorento. As vigas do chão eram visíveis por cima de nós, as teias de aranha se destacando. Era mais uma masmorra do que um quarto, pensei. Por que sua mãe o queria ali embaixo? Dava para ouvir os passos por cima, o som de uma cadeira arrastada pelo chão, depois o choro de um bebê.

— É uma menina... Donna Marie — informou Clarence.

Balancei a cabeça e continuei a correr os olhos pelo quarto úmido e sujo.

— Onde fica o seu banheiro?

— Lá em ci-cima. Tem de ir?

— Não — respondi, sorrindo. — Apenas queria saber. Faz quebra-cabeças?

Indiquei as caixas no chão.

— Às vezes. De-depois... de fazer um, desmonto e faço de novo.

” Não pude deixar de rir. Clarence riu também. Foi nesse instante que a porta do quarto se abriu.

Um homem alto e magro, de cabelos escuros, camiseta branca e jeans, chinelas velhas nos pés, entrou no quarto. Tinha a barba por fazer, o queixo quadrado, com uma fenda na ponta, nariz fino, sob olhos castanhoescuros cansados, que brilharam de interesse quando se fixaram em mim.

— Quem é você? — perguntou ele.

— Sou Raven Flores.

— Quem é ela, Clarence? — O homem sorriu. — Sua namorada?

— Ahn... não...

Clarence ficou vermelho. Olhou para mim com uma expressão de terror.

— Sou apenas uma vizinha. Estou morando com meu tio.

— Quem é ele?

— Reuben Stack.

O sorriso se alargou.

— Reuben, hem? Ele nunca mencionou você. Trabalhamos juntos. — Ele olhou para Clarence. — Estávamos sem saber por que você não voltou depois que saiu com o lixo. É hora do jantar.

O homem virou-se para mim.

— Detesto interromper. Volte mais tarde, se quiser.

— Não tem problema. Eu o verei amanhã, Clarence.

— Tem certeza de que não vai voltar esta noite? — indagou o padrasto.

Ignorei-o e me encaminhei para a porta. Sua risada me acompanhou. Saí de lá sentindo mais pena de Clarence do que de mim. Onde estava aquela família mágica da América, a que eu via na televisão? Pode-se ter pais e ainda assim ser um órfão, pensei.

— Onde você se meteu? — perguntou tio Reuben quando entrei em casa.

— Fui dar uma volta.

— É hora do jantar. Você tem de ficar aqui para ajudar.

Segui para a cozinha.

— Jennifer já pôs a mesa — informou ele.

— Sozinha?

— Não banque a engraçadinha. Apenas ajude Clara a servir a comida. E da próxima vez avise quando resolver sair de casa. Entendido?

— Sim, senhor.

Quase bati continência. O olhar de tio Reuben se tornou ainda mais ameaçador. Continuei para a cozinha, onde encontrei tia Clara pondo a comida nas travessas para servir. Tive o pressentimento de que tio Reuben já a culpara por eu não estar presente.

— Desculpe o atraso, tia Clara, mas...

— Basta levar isto, querida — disse ela, entregando-me a travessa com o purê de batata.

Quando entrei na sala de jantar, encontrei Jennifer sentando-se, com um sorriso satisfeito. William parecia tão dócil e derrotado como sempre. Tio Reuben estava sentado em seu trono, os braços grandes em cima da mesa, esperando como o rei que pensava que era.

— Já era tempo — disse Jennifer. — Estou faminta. Pus a mesa para você.

Ajeitei a travessa no descanso e olhei para os pratos e talheres.

— Os garfos estão no lado errado, Jennifer.

Pisquei para William, que me ofereceu um pequeno sorriso. Voltei à cozinha antes que Jennifer pudesse dar uma resposta.

Foi outro jantar com tio Reuben apresentando suas opiniões sobre as mulheres e os jovens. O mundo estava fora de controle. Os valores eram destruídos, a própria estrutura do país desmoronava. Era tudo culpa das mulheres que queriam demais e das crianças que não eram disciplinadas corretamente. Ninguém o contestou. Tentei abafá-lo com meus pensamentos, mas ele berrava e batia na mesa quando queria impor suas conclusões. Tia Clara limitou-se a dizer:

— Não se irrite quando estiver comendo, Reuben.

Apressei-me em limpar tudo depois. Como sempre, Jennifer levantou-se e subiu sem sequer levar seu prato para a pia. Percebi que William queria ajudar, mas tinha medo de irritar o pai, que acabara de declarar que as mulheres pressionavam os homens para fazerem seu trabalho, o que era uma das coisas erradas no país.

Depois que acabei, fui para meu quarto, a fim de começar os deveres da escola. Podia ouvir Jennifer na sala de estar assistindo à televisão com tio Reuben e tia Clara. Sua risada soava alta e detestável. Por que não lhe perguntavam sobre seus deveres da escola? Ouvi o telefone tocar. Poucos minutos depois, a porta do meu quarto foi aberta.

Tio Reuben estava parado ali.

— O que é? — perguntei.

— Onde você esteve antes? — Ele entrou no quarto e fechou a porta. — Hem?

— Já disse. Saí para dar uma volta.

— É mentira. Estava na casa de Dunsen, não é?

— Encontrei Clarence, que quis me mostrar seu quarto no porão.

Tio Reuben sorriu friamente e balançou a cabeça.

— Você sabe que o garoto é retardado.

— Ele não é retardado. Apenas tem um problema de fala.

— É mais fácil se aproveitar de alguém assim. O que você tentava fazer? Seduzi-lo?

— Não! — gritei. — Deixe-me em paz!

— Tenho de receber um telefonema de um dos homens que trabalham sob as minhas ordens, exultando porque surpreendeu você com seu enteado? Tenho de aturar isso? O que você está fazendo com a nossa reputação na vizinhança?

Virei-me, as lágrimas escorrendo tão depressa e com tanta intensidade que desta vez não pude contê-las. Não era eu quem transava com os rapazes, mas acabava sendo a acusada!

— Parece que você precisa de mais uma lição... e é mais uma lição que vai receber. — Ele tirou o cinto. — Deite-se agora.

— Não! Deixe-me em paz!

— Se obedecer agora, darei apenas seis golpes. Se resistir, serão dez. — Tio Reuben pairava entre mim e a porta. Não havia como escapar. — E então? O que prefere?

— Não fiz nada de errado! Por favor, não me bata!

— Parece que serão dez — murmurou ele, avançando.

-Não!

Levantei-me e recuei para a cama, as mãos erguidas.

— Reuben, o que está acontecendo aí? — perguntou tia Clara.

— Não se meta, Clara, ou será pior para todo mundo. Ele virou-se para mim. Eu não conseguia parar de chorar. Não queria levar uma surra de cinto, muito menos dez golpes. O que podia fazer? Fui para a cama.

— Abaixe — ordenou ele.

Chorando ainda mais, enfiei as mãos por dentro da saia e baixei a calcinha. Tio Reuben me empurrou para a frente e me imobilizou de novo, enquanto me batia seis vezes com o cinto.

— Não pode ir para o quarto de um garoto sozinha. E fique longe daquele retardado, entendido?

Eu não podia falar. Mordi o cobertor e esperei. Senti-o passar a palma da mão por minha bunda, depois o ouvi se encaminhar para a porta e sair. Levei algum tempo para recuperar o fôlego e levantar a calcinha. Fiquei estendida na cama, amaldiçoando-o muitas vezes, rezando para que caísse da escada e quebrasse o pescoço. Fantasiei me postar por cima de seu cadáver, cuspindo e chutando. Pensei que não fosse possível odiar alguém tanto quanto eu o odiava.

A porta foi aberta de novo. Virei-me, dominada pelo terror. Era Jennifer. Ela parou ali, balançando a cabeça.

— Clarence Dunsen? Você saiu com Jimmy Freer e depois foi procurar Clarence Dunsen?

— Não. Ela sorriu.

— Espere só até todo mundo saber disso. Se eu fosse você, rastejaria para baixo da cama e não sairia mais.

Jennifer se retirou, rindo. Continuei deitada, o corpo parecendo um vidro vazio que se enchia com o líquido vermelho do ódio. Quase duas horas depois, ouvi todos subirem para se recolher. Esperei mais um pouco. Fui até a porta, os punhos cerrados, o peito tão tenso que o coração tinha dificuldade para bater. Sem fazer barulho, mas determinada, subi a escada. Estava tudo escuro. A porta do quarto de tio Reuben e tia Clara fora fechada, assim como as portas de Jennifer e William. Pude ouvir Jennifer falando baixinho pelo telefone e depois rindo.

Abri sua porta. Ela levantou os olhos do chão, onde estava enroscada.

— O que você quer, Raven?

— Se espalhar essa história a meu respeito, contarei a seu pai o que realmente aconteceu na noite da festa de Missy.

Fechei a porta e desci, de alguma forma esquecendo e ignorando a surra de cinto que levara.

Não suporto mais

 

Jennifer estava tão quieta na manhã seguinte que me deixou nervosa. Não olhava para mim; e se por acaso o rosto se virava em minha direção, era como se olhasse através de mim. Parecia cansada, tinha olheiras. Imaginei que dormira com minha ameaça, que a perturbara, fazendo com que se revirasse durante a noite, em sucessivos pesadelos.

Minhas mãos tremiam tanto que quase larguei um prato. Tio Reuben estava preparado para me atacar se isso acontecesse. Olhava para mim com faíscas nos olhos sempre que eu batia com um pires ou xícara. Jennifer manteve os olhos abaixados. De vez em quando levantava o queixo, o que me permitia ver sua boca contraída. Ela comeu e pegou suas coisas quase sem falar.

— Está se sentindo bem, Jennifer? — perguntou tia Clara.

Eu não fora a única que notara uma mudança acentuada em seu comportamento. Em geral, ela não conseguia permanecer calada. Falava sem parar, como alguém que adora o som da própria voz e acha que todos os outros também adoram.

Jennifer me lançou um olhar furioso logo depois da pergunta de tia Clara. Tanto que esperei que ela desatasse em novas acusações, revelando minha ameaça. Respirei fundo, na expectativa.

— Estou bem — murmurou ela. — Apenas um pouco cansada.

— Espero que não tenha ficado doente — disse tia Clara.

As sobrancelhas de tio Reuben projetaram-se para cima, como se puxadas por cordões.

— Todos eram saudáveis nesta casa até agora — murmurou ele.

Tio Reuben realmente me considerava como uma espécie de germe ambulante e falante, uma portadora de doenças, uma pessoa cheia de infecção e podridão?

— Talvez você devesse ficar em casa hoje — sugeriu tia Clara.

— Não dá — respondeu Jennifer, com um suspiro profundo e doloroso. — Tenho provas para fazer. Não posso perder nenhuma aula.

Por favor, não venha com essa para cima de mim, tive vontade de dizer. Desde quando ela se importava com as aulas, por menos que fosse? Colava nas provas e copiava os trabalhos das outras. E, de repente, a pobre Jennifer assumia um papel de mártir? Pensei agora que tudo o que eu comera não ficaria no estômago. Levantei-me e comecei a tirar a mesa.

Jennifer saiu de casa na minha frente, como sempre. Com as tarefas que tinha de concluir — ajudar a lavar a louça do café da manhã, limpar a mesa, arrumar meu pequeno quarto — quase perdi o ônibus. Tia Clara me ajudou. Saí de casa e desatei a correr pela calçada, no instante em que o último estudante embarcava no ônibus. Como sempre, havia um lugar vazio ao lado de Clarence. Ele levantou os olhos para mim, tímido. Sorri e sentei ao seu lado. Jennifer estava lá atrás, com as amigas.

— Sin... sinto... muito... por meu... pa-padrasto... — murmurou Clarence. — Ele é um grosso.

— Está tudo bem, Clarence. Não se preocupe com isso. Não dei muita importância a ele.

— Ele tem uma men... mente sórdida. Disse piadas depois.

— Onde está seu pai? Clarence deu de ombros.

— Não sei. Talvez esteja na Califórnia. Não me lem... lembro mais dele.

Uma cara triste, Clarence olhou pela janela do ônibus. Caía uma chuva fina, as gotas escorrendo pelo vidro, espalhando-se para formar o que parecia com teias de aranha. O céu cinzento fazia a manhã parecer mais desolada do que o habitual. Todos no ônibus pareciam desanimados. As conversas eram em voz baixa, havia pouco riso. Quando olhei para trás, avistei Jennifer me fitando com uma expressão furiosa, segurando seus livros e balançando com os movimentos do ônibus. Até mesmo suas amigas, normalmente exuberantes e barulhentas, pareciam meio adormecidas.

O interior da escola foi se tornando mais e mais escuro à medida que as nuvens se adensavam lá fora. Alguns corredores não eram tão bem iluminados quanto outros. Assim, eu tinha a sensação de que andava por túneis ao ir de uma sala para outra naquela manhã. À medida que a chuva se tornava mais forte, despejando-se em lençóis contra as paredes e janelas da escola, os estudantes foram ficando sonolentos. Até mesmo os professores pareciam ter de fazer um esforço para demonstrar algum entusiasmo em seu trabalho.

Pouco antes do almoço, no entanto, a chuva cessou. O sol rompeu as nuvens. Acabou com a sonolência.

As vozes se tornaram mais altas. Os alunos passaram a andar mais depressa, a brincar uns com os outros.

Terri e eu fomos juntas para o refeitório, conversando sobre um filme prestes a estrear. Eu costumava ir ao cinema de vez em quando no tempo em que morava com mamãe, mas agora não sabia quando poderia ir de novo.

Subitamente, ouvimos uma explosão de risadas logo depois de um canto do corredor. Havia pelo menos uma dúzia de rapazes agrupados ali. Quando se viraram, vi que Jimmy era um deles. Fiquei tensa no mesmo instante. Quando eles se dispersaram, descobri que estavam cercando o pobre Clarence Dunsen, que parecia apavorado.

— Lá vem... ela... ela, Clarence — disse Jimmy. — Por que não diz a ela como... como vo-você a ama?

Todos os outros caíram na gargalhada.

— Deixem-no em paz — ordenei.

— Não o estamos incomodando — disse Jimmy, bastante alto para que todos ao redor ouvissem. — Clarence apenas nos contava sobre o encontro que vocês dois tiveram no quarto dele.

— Seu filho da puta!

Minha reação fez com que ele e os outros rissem ainda mais alto. Segui apressada para o refeitório, com Terri atrás de mim.

— Que história é essa, Raven?

— Minha prima fez outra das suas.

Furiosa, larguei os livros em cima da mesa e cruzei os braços.

— Não faça nada violento — aconselhou Terri. Ela acenou com a cabeça na direção do sr. Wizenberg, que me observava como um coelho nervoso. Procurei Jennifer e avistei-a em uma mesa no outro lado do refeitório, cercada por sua corte. Parecia muito satisfeita. Tive vontade de arrancar seus olhos.

Os rapazes entraram no refeitório atrás de Clarence, que tentou chegar à sua mesa habitual. Todos entoavam:

— Eu... a-amo, vo-você... Ra-Raven.

Todos no refeitório se viraram. Clarence, vermelho, arriou em sua cadeira, olhando para baixo.

— Quietos! — gritou o sr. Wizenberg. — Eu disse quietos!

Os rapazes pararam e seguiram para suas mesas, rindo e se dando os parabéns com tapinhas nas costas. Jimmy foi procurar Jennifer, e os dois riram juntos.

— O que está acontecendo? — perguntou Terri.

Relatei o que ocorrera, mas não contei que ameaçara revelar a tio Reuben o relacionamento entre Jennifer e Brad. Não podia cair ao nível de Jennifer. Talvez ela soubesse disso desde o início. Quando Jennifer se levantou para entrar na fila da comida, também me ergui. Terri me segurou pelo braço.

— Cuidado — advertiu ela. — Desta vez pegará uma suspensão.

Acenei com a cabeça, mas continuei em frente.

— Você é uma pessoa horrível, Jennifer — falei, indo me postar atrás dela. — Não se importa com quem magoa?

— Não sei do que está falando. Não contei a ninguém. — Ela jogou os cabelos para trás. — Clarence gabou-se de você para alguns amigos e a notícia se espalhou.

— É mentira. Você é uma tremenda mentirosa. Dei um passo à frente. Ela recuou.

— Se causar mais algum problema, Raven, papai vai pô-la na rua.

— Prefiro ficar na rua. Há menos sujeira.

Um fluxo de pânico surgiu em seus olhos, enquanto ela se virava para verificar se alguém nos ouvia.

— Não ouse dizer qualquer coisa horrível a meu respeito ou de minha família, Raven. Não ouse.

A voz de Jennifer saiu como um sussurro fraco.

— Você é nojenta.

Balancei a cabeça. Algumas garotas prestavam atenção a nós duas. Hesitei.

— Não se preocupe, Jennifer. Não vou me arrastar na lama com você.

Ela sorriu, um sorriso malicioso e rancoroso. Deixei-a e voltei para minha mesa, frustrada, a raiva fazendo meu sangue ferver.

— Calma — murmurou Terri.

Ela pôs a mão em meu braço e acenou com a cabeça para o fundo do refeitório. O sr. Wizenberg aproximara-se por trás de mim. Balançou por um momento sobre os calcanhares, com as mãos nas costas. Lançoume um olhar irritado de advertência, depois continuou a atravessar o refeitório.

— Todos pensam que sou a causa dos problemas aqui — murmurei. — Não é justo.

— Ela vai receber o que merece — previu Terri. — Algum dia.

Por enquanto, eu tinha de deixar tudo como estava. Fui para minhas aulas depois do almoço. O resto do dia passou mais depressa. Senti-me aliviada quando a campainha da última aula tocou e fomos pegar o ônibus. Hesitei ao embarcar. Sabia que se sentasse ao lado de Clarence, Jennifer e suas amigas se divertiriam ainda mais. Foi para ajudá-lo que passei por ele. Tentei indicar com um sorriso que era melhor não me sentar ao seu lado pelo menos nesse dia. Ele pareceu compreender. Segui adiante, encontrei um banco vazio. Ninguém sentou ao meu lado.

O ônibus partiu. A princípio, houve apenas o som habitual de conversas e risos. Mas de repente soou uma risada estridente, que reconheci como sendo de Jennifer. Virei-me no momento em que ela e suas amigas começavam a entoar:

— Eu... eu... a-amo vo-você... Ra-Raven.

Uma onda de gargalhadas percorreu o ônibus. Todos riram e aderiram ao coro. A motorista do ônibus parecia confusa. Era uma mulher corpulenta, chamada Peggy Morris, os cabelos cortados curtos. Vestia um jeans e uma blusa de flanela, as mangas enroladas até os cotovelos. Apesar de sua aparência rude, eu sempre a achara simpática e cordial.

Olhei para Clarence. Ele tapara os ouvidos e balançava no banco.

— Parem com isso! — gritei, o que provocou mais risos. — Parem, seus idiotas!

O coro se tornou ainda mais alto. Eu esperava que Peggy Morris fizesse alguma coisa, mas ela se encontrava ocupada demais com um carro em ziguezague na frente do ônibus.

Subitamente, Clarence levantou-se de um pulo e gritou como um animal ferido. Sua voz ressoou pelo ônibus. Mas em vez de interromper a zombaria, provocou mais risos, um coro mais alto. Clarence tornou a tapar os ouvidos. Também gritei para que parassem. O tumulto era total, como se o ônibus estivesse ocupado por um bando de loucos. Peggy acabara de fazer a curva, diminuindo a velocidade do ônibus, quando Clarence surpreendeu a todos, ao bater com o punho na janela. A primeira batida fez com que o coro cessasse. Eu sentia a garganta apertada, mal podia emitir qualquer som, mas consegui balbuciar:

— Clarence...

Ele bateu de novo, com mais força ainda, espatifando o vidro. Ficou parado ali, o sangue escorrendo pelo lado do braço. As meninas gritaram. Até alguns garotos gritaram. Peggy Morris pisou no freio e parou o ônibus junto do meio-fio, no instante em que Clarence cambaleava para trás. Ela segurou-o antes que ele caísse por cima da grade e rolasse pelos degraus.

Todos ficaram em silêncio. Avancei pelo corredor. Peggy gritou para que eu pegasse o estojo de primeiros socorros. Foi o que fiz. Ela o abriu, comprimindo um punhado de gaze contra a mão e o braço de Clarence. Depois me fitou e disse:

— Salte e procure um telefone. Peça uma ambulância. Depressa!

Quando ela abriu a porta, saltei do ônibus e corri para uma loja de conveniências na esquina. O homem por trás do balcão ligou para 911 por mim. Voltei ao ônibus. Todos continuavam quietos, inclusive Jennifer. A motorista fazia o melhor que podia para estancar a hemorragia. Clarence estava deitado no chão, com os olhos fechados. A impressão foi de que passou uma hora, mas demorou apenas alguns minutos para que ouvíssemos a sirene de uma ambulância, seguida por um carro da polícia. As conversas recomeçaram quando os paramédicos entraram no ônibus, ouviram o relato do incidente e começaram a cuidar de Clarence. Momentos depois, tiraram-no do ônibus numa maca. Assim que ele foi posto na ambulância, Peggy Morris voltou ao ônibus, parou no início do corredor, com as mãos nos quadris largos. Lançou um olhar furioso para todos, o rosto ainda pálido pelo choque e ansiedade.

— Não quero ouvir mais um pio de ninguém — disse ela, a voz trêmula. — Absolutamente nenhum pio.

Ela deu a partida no ônibus e seguimos para nossos destinos num silêncio fúnebre. Meu coração batia forte. Sentia uma náusea revoltante a me embrulhar o estômago. Em nossa parada, levantei-me e desci os degraus devagar.

— Obrigada por sua ajuda — disse Peggy Morris. Acenei com a cabeça e saltei. Quando comecei a subir a calçada, Jennifer passou por mim e disse:

— Você é a única culpada.

Precisei de todo o meu controle para não correr atrás dela, agarrá-la pelos cabelos, enquanto chutava e esmurrava seu rosto zombeteiro e horrível. Mas sabia que não podia mergulhar ao seu nível, não importava o que acontecesse. Nunca seria tão mesquinha.

Tio Reuben soube de Clarence antes de chegar em casa naquela noite. O padrasto de Clarence recebera um telefonema no trabalho e correra para o hospital. Tio Reuben ignorava os detalhes, mas percebi, pela maneira como me fitava ao fazer perguntas a respeito, que presumia que eu tinha alguma coisa a ver com o incidente.

— O que aconteceu? — perguntou ele.

— Clarence pirou — respondeu Jennifer.

— Por quê?

— Os garotos começaram a zombar dele e ele pirou. Já é mesmo meio louco.

— Como zombavam dele?

— Por causa de sua gagueira.

— Isso é tudo? — insistiu tio Reuben, ainda me fitando com expressão desconfiada.

— Não sei se aconteceu mais alguma coisa, papai, porque não estava prestando atenção. De repente, ele bateu com a mão na janela. Não é coisa de louco?

— Que coisa horrível... — murmurou tia Clara.

— Ele sangrou? — perguntou William.

— Bastante — respondeu Jennifer. — Foi por isso que tiveram de chamar a ambulância.

William fez uma careta e olhou para mim.

— É muito estranho que todas essas coisas horríveis comecem a acontecer de repente — comentou tio Reuben.

Mais tarde, Jennifer teve a desfaçatez de me procurar para dizer que me prestara um favor.

— Protegi você, Raven. Portanto, não me culpe por coisa alguma.

— Como me protegeu? — indaguei, espantada com sua ousadia.

— Não contei a papai por que estavam zombando de Clarence. Ele ficaria furioso se soubesse. Por isso, é melhor você ser boazinha comigo, ou...

Sacudi a cabeça.

— Prefiro ser boa com uma cascavel. Você e tio Reuben merecem um ao outro.

— Contarei a ele que você disse isso. Quer levar outra surra?

— Deixe-me em paz.

— Preciso que algumas blusas minhas sejam passadas, mas não tenho tempo. Mandarei William trazê-las. E é melhor você não estragar nenhuma, ou vai se arrepender.

Ainda naquela noite, ouvi tio Reuben informar a tia Clara que o padrasto de Clarence telefonara. Dissera que Clarence levara vinte pontos e ficara internado no hospital em observação. Talvez tivesse de ir para a enfermaria psiquiátrica.

— Ainda não sei como — concluiu ele —, mas tenho certeza de que Raven tem aiguma coisa a ver com o caso.

— Ora, Reuben, isso não é possível.

— Vou descobrir. Ela só sabe criar problemas. A culpa é de minha irmã. Devia ter sido esterilizada.

Era uma coisa horrível para se dizer, pensei.

Sentia-me angustiada por Clarence. De alguma estranha maneira, eu supunha ser a responsável. Se não deixasse que me persuadisse a dar uma olhada em seu quarto no porão, os outros não teriam zombado dele. Eu trazia o desastre para todas as pessoas, pensei. Tio Reuben não estava tão errado assim.

O ferimento de Clarence e todo o incidente no ônibus foi o grande assunto das conversas na escola durante o dia seguinte. Os colegas que lhe haviam causado um tormento tão profundo não sentiam o menor remorso. Na verdade, comportavam-se como se tivessem ajudado a deixar evidente a sua doença mental. Agora Clarence iria para o lugar a que pertencia... o hospício. Eram tão presunçosos que eu não podia mais suportar. Clarence não voltou à escola; e, na minha opinião, foi ele quem se deu melhor por isso.

Ainda naquela semana, o padrasto de Clarence descobriu tudo sobre as zombarias e contou a tio Reuben Ao chegar em casa, munido com esse conhecimento, ele exibia uma expressão de profunda satisfação. Anunciou orgulhoso para tia Clara que eu fora mesmo a causa do problema. Por enquanto, parecia contente em comprovar que tinha razão. Tia Clara refugiou-se ainda mais fundo dentro do seu casco. A tirania de tio Reuben prevalecia sem qualquer controle. Ele era o que queria ser, o rei de sua casa, o juiz supremo e o júri. Nós existíamos apenas para o seu prazer e conforto.

Minhas tarefas em casa aumentaram. Não teria permissão para ir a qualquer lugar com qualquer pessoa nos fins de semana, pelo menos por um mês. Nada de atividades depois das aulas, festas, nem mesmo um passeio no shopping. Tia Clara quase não tentava argumentar. Uma nuvem cobria a casa, ainda mais escura e opressiva do que as outras que a haviam precedido.

Esperei e torci por notícias de minha mãe. Não veio nenhuma. Tio Reuben dizia apenas que ela figurava nas listas dos mais procurados de todo o mundo.

— Mas por que ela haveria de aparecer por aqui — declarou ele, com uma risada desdenhosa —, se conta com um irmão para assumir as suas responsabilidades?

Minha mãe fizera muitas coisas cruéis e estúpidas comigo, mas a pior de todas, pensei, fora a de ter me deixado com seu irmão.

Eu não imaginava que as coisas ainda pudessem ficar piores.

Mas podiam.

 

             Sozinha em casa

Ficar confinada em casa, enquanto todos saíam e faziam coisas nos fins de semana, não era tão ruim assim. Eu gostaria ainda mais se William, que parecia apreciar minha companhia mais do que a de qualquer outra pessoa da família, também pudesse permanecer em casa. Mas tia Clara levou-o ao shopping na tarde de sábado para lhe comprar roupas e um par de tênis. Jennifer foi a uma matinê com as amigas. Antes de sair, ela veio até a sala de costura, onde eu estava passando roupa, para tripudiar.

— Vamos nos encontrar para comer uma pizza e depois iremos ao cinema. Brad sentará comigo. Portanto, não importa o que você pensa, ele realmente se interessa por mim.

— Fico feliz por você — comentei, sarcástica.

— Se não fosse tão rancorosa comigo, Raven, eu poderia fazer com que os garotos gostassem também de você.

— Eu? Rancorosa com você? — Não pude deixar de sorrir. — Acredita mesmo nisso... ou apenas acha que sou uma idiota?

— Acho que é uma idiota. Virei-me para ela.

— Quando vim para cá, Jennifer, sentia pena de mim mesma e até a invejava. Você tem pais, uma boa casa, um irmão caçula maravilhoso. Parecia ter tudo que eu sempre desejara. Mas depois passei a conhecê-la melhor e descobri o que realmente acontece aqui. Quer saber o que penso agora?

— O que é?

— Sinto ainda mais pena de você do que de mim. Voltei a me concentrar em passar a roupa.

— Não tenho a menor idéia do que está falando, Raven. Você é doida, como Clarence. Não sei por que me dei ao trabalho de tentar ser sua amiga.

— Ser sua amiga é como fazer amizade com uma cobra.

Jennifer virou-se e foi embora. Bateu a porta da frente com tanta força que toda a casa tremeu. Sorri para mim mesma, liguei o rádio e comecei a desfrutar a minha solidão. Tio Reuben já partira para o boliche com seus amigos. Eram bem poucas as ocasiões em que eu tinha oportunidade de ficar sozinha sem sentir que era vigiada ou julgada.

Tinha de encarar o fato de que minha mãe nunca viria me buscar, que eu nunca mais poderia viver com ela. Quando fosse apanhada, passaria uma boa temporada na prisão; e mesmo que tivesse bom comportamento e recebesse livramento condicional, ainda assim seria enviada para outro centro de reabilitação de drogados. Depois disso, talvez nem recebesse permissão para morar comigo; e quem podia afirmar que ela de fato queria essa responsabilidade?

Talvez eu devesse parar de lutar com a realidade, pensei. Isso só fazia aumentar mais ainda a minha mágoa. Era como uma pessoa amarrada com cordas de piano, que, ao se debater para ficar livre, só conseguia se cortar por todo o corpo. Tinha de aprender a ignorar, a olhar para o outro lado, fingir, inventar meu próprio mundo. Talvez tia Clara não estivesse se comportando de uma maneira tão errada. Pelo menos ela encontrava alguma paz em sua vida ao se manter deliberadamente cega para todas as coisas desagradáveis que havia em sua família. Podia continuar, encarar cada nova manhã com uma esperança renovada.

Eu era como uma pessoa sendo levada rio abaixo pela correnteza forte. Podia me debater, tentar desesperadamente lutar contra a água, mas apenas desperdiçaria minhas forças; ou podia me virar na direção em que a água fluía e tentar nadar um pouco mais depressa do que a correnteza. Talvez se permanecesse mesmo alguns poucos centímetros à frente do meu destino pudesse ter algum senso de propósito, algum sentido e identidade, pensar em mim mesma como real, uma pessoa com um sobrenome e com algum controle sobre o que lhe aconteceria. A correnteza não poderia continuar para sempre. Haveria de me levar para algum lugar, deixar-me em alguma praia; e se eu resistisse e me mantivesse forte, poderia me levantar sobre os meus próprios pés e iniciar uma vida nova.

Era a minha única esperança, a única opção que me restava. Compreender isso foi como remover um peso dos meus ombros. Comecei a me sentir bem. Até balancei o corpo ao ritmo da música enquanto trabalhava. Acompanhei os cantores. Fui à cozinha, peguei um refrigerante, voltei ao meu quarto para terminar de passar a roupa. Depois de terminadas as minhas tarefas, tomaria uma chuveirada e passaria o resto do dia lendo e fazendo os deveres de inglês.

Estava sendo um dos melhores dias que eu já passara na casa dos meus tios. Ri para mim mesma ao refletir que o motivo para aquele momento tão agradável era o fato” de não haver mais ninguém em casa. Lavei os cabelos no chuveiro. Fui sentar na frente do pequeno espelho em meu quarto. Enxuguei os cabelos, primeiro com uma toalha, depois com o secador de tia Clara. Meus cabelos eram de fato gloriosos, abundantes e longos. Mamãe sempre os invejara, lamentando os seus, muito finos e ralos. Passava as mãos por meus cabelos e os encostava nos dela, como se o contato pudesse transferir um pouco do meu viço.

Sentada ali, no roupão azul-claro que tia Clara me dera, comecei a fantasiar. Sonhei com as mais diversas situações, em companhia de um lindo rapaz, que se apaixonaria por mim à primeira vista, me levaria para longe de tudo aquilo. Por que eu não podia ser uma Cinderela de verdade? Em algum lugar havia, com certeza, um rapaz destinado a se apaixonar por mim, meu marido, meu príncipe encantado, alguém que reconheceria minhas forças e minha beleza, que haveria de me querer ao seu lado para todo o sempre.

Entregava-me a esse devaneio, até ouvindo a música, as vozes, sentindo o vento em meus cabelos enquanto passeávamos de carro por pitorescas estradas rurais, rindo, beijando, prometendo amor eterno, quando tio Reuben voltou. Não o ouvi entrar em casa, muito menos vir para o meu quarto. Só quando ele se postou atrás de mim, balançando-se, os olhos vidrados, é que percebi sua presença. Virei-me na cadeira para fitá-lo.

— Está se arrumando toda para outro, hem? — indagou ele, com um sorriso frio.

— Não. Já fiz todas as minhas tarefas em casa; resolvi então tomar um banho e ficar limpa antes de começar os deveres da escola.

Não pude acreditar como minha voz saía tão tímida. Sentia-me tão tensa e contraída que o coração mal batia.

— Ficar limpa? Você? — Ele sacudiu a cabeça, soltando um grunhido. — É suja demais, da cabeça aos pés.Nem todo o sabonete e água quente do mundo poderiam limpá-la.

— Não é verdade! — protestei. — Não sou suja!

— É a filha de sua mãe. Já demonstrou isso no pouco tempo em que está aqui. Seduzindo aquele garoto retardado...

— Não fiz isso!

— Vai continuar assim — acrescentou ele, acenando com a mão. — Nunca vai mudar. É uma questão de sangue ruim.

— Se há sangue ruim nesta família — murmurei, os olhos contraídos —, está mais em você do que em minha mãe e em mim.

Ele deu um passo para trás e piscou, aturdido, como se eu lhe tivesse dado um tapa.

— Então é assim? Você ainda tem a boca grande, hem?

Tio Reuben cambaleou. Pude sentir o bafo de álcool em sua respiração. Deixou meu estômago embrulhado, enquanto ele acrescentava:

— Eu deveria ter expulsado você desta casa ou entregá-la ao tribunal, para que a internassem em algum orfanato.

— Eu bem que gostaria que tivesse feito isso. Contaria a todo mundo como é uma pessoa horrível... como aterroriza sua família com ameaças e surras.

Os olhos de tio Reuben se arregalaram. Ele abriu e fechou a boca sem emitir qualquer som. Cambaleou um pouco, enquanto o rosto se tornava vermelho.

— Do que está falando? Que tipo de mentiras sórdidas andou espalhando? A quem contou essas histórias?

— A ninguém... por enquanto.

Apesar das pernas trôpegas e dos olhos meio vidrados, ”ele conseguiu erguer a mão com tanta rapidez e precisão, que me deu um tapa no rosto antes que eu pudesse levantar o braço para me defender. O golpe doeu. A violência me derrubou da cadeira. Caí sobre um joelho. Antes de poder ficar de pé, ele segurou meu roupão por trás e o puxou com força, suspendendo-o.

— Você está nua por baixo? Sentada nua aqui?

— É o meu quarto.

— Com a porta escancarada? Você é uma vagabunda, uma provocadora, como sua mãe. Terei de lhe ensinar a mesma lição que ensinei a ela. Vou lhe mostrar o que acontece com garotas como você.

Tio Reuben se abaixou e me agarrou pela cintura. Levantou-me como se eu não pesasse nada e me jogou no sofá-cama.

— Não! — gritei. — Não toque em mim!

Ele deu um tapa com toda força na minha bunda. Sentou ao meu lado e puxou o roupão ainda mais, o que o fez subir para a cintura.

— Isso é tudo o que você quer: ser tocada — murmurou ele, a voz subitamente mais suave.

Sua atitude me deixou ainda mais assustada. Um calafrio me subiu pela espinha. Virei-me para escapar, mas tio Reuben comprimiu o tronco pesado contra as minhas costas. Fiquei imobilizada por baixo dele. Tornei a sentir sua mão nas minhas nádegas, descendo por entre as coxas.

— Igualzinha à sua mãe; tudo o que você quer é ser acariciada.

Gritei e me debati quando seus dedos avançaram para o lugar em que até eu hesitava em tocar.

— Está trazendo vergonha para a minha casa — murmurou tio Reuben, enquanto continuava a me tocar.

Depois, como se percebesse de repente o que estava fazendo, ele parou e me deu outro tapa.

— Todos no boliche falavam sobre o garoto Dunsen e o que você fez. Foi embaraçoso. Queriam saber que tipo de sobrinha morava comigo. Você não escuta. Continua fazendo coisas horríveis. Tenho sido indulgente demais com você.

Tio Reuben inclinou-se para a frente e pegou minha escova de cabelo. O primeiro golpe doeu tanto que até vi estrelas. Raios iluminaram meus olhos. A dor espalhou-se pelas costas e os lados do meu corpo, como se eu fosse uma placa de vidro se espatifando. Ele me bateu outra vez e mais outra; sua mira era tão precária que alguns golpes me acertavam nas coxas. Cada um me deixava sem fôlego. Quando acabou, tio Reuben permaneceu no sofá, por cima de mim, a respiração pesada.

— Será pior ainda se fizer outra coisa errada. Arrancarei sua pele, entendido?

Ele beliscou com toda a força a carne por baixo das minhas nádegas.

— Entendido?

— Entendido!

— Assim é melhor. — Tio Reuben se levantou. — E também não quero que conte qualquer coisa para Clara, entendido? Se contar...

Não me mexi até ouvi-lo sair do quarto, fechando a porta. Ao primeiro movimento, não pude acreditar que doesse tanto. Era a pior surra que eu já levara, a mais degradante.

Gemi, virei de costas, e fiquei olhando para o teto. Foi assim que tia Clara me encontrou mais tarde. Pensou que eu estava doente. Expliquei que apenas sentia dor da menstruação. Ela acreditou e me deixou na cama, propondo cuidar de todo o jantar sozinha. Tio Reuben não contestou a história. Jennifer não se importava; nem ao menos apareceu na porta do quarto para dizer que se divertira com os amigos. William foi me ver. Tentei desesperadamente esconder minha dor e agonia, mas mesmo assim ele pareceu senti-la. Seus olhos transbordavam de suspeita e medo.

Mais tarde, quando saí do meu quarto para jantar com os outros, andei como uma garota que sofria de cólicas menstruais. Tia Clara comentou que era lamentável que a medicina moderna pudesse encontrar cura para quase tudo, menos para aquilo.

— Talvez seja porque quase todos os médicos são homens — murmurou ela.

— Isso é um absurdo, uma propaganda das feministas — protestou tio Reuben.

Ele se lançou em um dos seus discursos sobre os padrões de nossa sociedade em decadência, com todos os movimentos liberais na política e no governo.

Fui deitar cedo e passei a maior parte do dia seguinte na cama. A dor era profunda e persistente. Comi pouco e dormi o máximo que podia. Na manhã seguinte, segunda-feira, tio Reuben ordenou que eu me levantasse e ajudasse nas tarefas da manhã.

— E nem pense em ficar em casa, em vez de ir à escola. Sei que costumava fazer isso quando vivia com minha irmã. Provavelmente ela perdia a noção dos dias.

Andar ainda era doloroso, mas me apavorei ao pensar que ele arranjaria outro pretexto para me bater, se não obedecesse. Embarquei no ônibus e segui em silêncio para a escola. Durante as aulas da manhã, não parava de me contorcer na carteira, à procura de posições confortáveis, menos dolorosas. Só o sr. Gatlin notou, perguntando se eu sentara num formigueiro. O que provocou risos, mais sussurros e zombarias nos corredores, no intervalo das aulas.

Meu maior problema era a aula de educação física. Tentei usar a menstruação como desculpa, mas a sra. Wilson mandou que eu pusesse o uniforme assim mesmo e ficasse assistindo à aula. Bem que supliquei, mas ela exigiu.

— Minhas alunas sempre vestem o uniforme de ginástica. Não abro mão dessa norma.

Ela me observou sair de sua sala. Minutos depois, quando eu trocava de roupa, a sra. Wilson entrou no vestiário.

— Oh, Deus! — exclamou ela. — O que aconteceu com você?

Virei-me, segurando o uniforme contra o peito. Os vergões e marcas roxas nas coxas ainda eram visíveis, em particular no lugar em que tio Reuben me beliscara.

— Nada — murmurei.

— Isso está longe de ser nada. Pode se vestir. Vá direto para a sala da sra. Millstein.

— Mas...

— Faça o que estou mandando!

Ela ficou me olhando, horrorizada, enquanto eu tornava a me vestir. Depois, voltou à sua sala. Quando cheguei à sala de enfermagem, descobri que a sra. Wilson já telefonara. A sra. Millstein me esperava, pronta para o que descobriria.

— Entre, Raven, por favor — murmurou ela, quando abri a porta.

A sra. Millstein levou-me para uma das salas de exame e disse:

— A sra. Wilson me falou de suas lesões. Quer me mostrar?

— Estou bem.

— Sei que está. Mas caso seja preciso fazer mais alguma coisa, seria uma boa idéia me mostrar. Certo?

Hesitei. E, de repente, o mundo inteiro pareceu desmoronar. Não podia mais me controlar. As lágrimas que haviam aflorado a meus olhos muitas e muitas vezes antes, as lágrimas que me esforçara em reprimir, agora se despejaram sem qualquer controle. Desatei a chorar e parecia que nunca mais acabaria. A sra. Millstein teve de me ajudar a sentar.

— Calma, Raven, calma... Tenho certeza de que a situação não é tão ruim assim.

— É, sim!

Levantei a saia devagar. Ela examinou as equimoses. Fiquei de pé e mostrei as outras.

— Como isso aconteceu, Raven?

Como eu hesitasse, a sra. Millstein acrescentou, em voz mais firme:

— Tem de me contar, Raven. Quem fez isso com você?

Respirei fundo. Tinha mais alguma importância quem soubesse e que tipo de vida horrível eu levava? Tornei a me sentar e olhei para o chão. As lágrimas pingavam do meu queixo.

— Raven?

— Meu tio — murmurei, a voz cansada, derrotada.

— Como ele fez isso?

— Bateu em mim com uma escova de cabelo e me beliscou depois... depois...

As lágrimas tornaram a correr num fluxo incontrolável. Tinha a sensação de que o peito ia ruir e esmagar o coração. A sra. Millstein me entregou um maço de lenços de papel. Pegou minha mão em seguida.

— Fale devagar, Raven. Não precisa se apressar. Mas quero que me conte tudo. Estou aqui para ajudá-la, meu bem. Continue. — Ela se ajoelhou na minha frente, segurando-me a mão. — O que mais ele fez com você?

— Depois que começou a me bater, tio Reuben me tocou onde não deveria. Em seguida me bateu com a escova até eu quase desmaiar.

— Isso já tinha acontecido antes?

— Já, sim. Na última vez foi com um cinto.

A sra. Millstein fitou-me em silêncio por um longo momento, antes de se levantar.

— Fique descansando aqui, Raven. Vai ficar boa. Voltarei num instante.

Tudo o que aconteceu depois foi muito rápido, meio confuso, como um filme projetado depressa demais em minha cabeça. Pouco depois, entrou na sala uma mulher do serviço de proteção à infância e adolescência, Marjorie Rosner. A sra. Millstein pediu-me que descrevesse o que acontecera. Marjorie interrogou-me sobre detalhes. Depois, afastou-se com a sra. Millstein para uma conversa reservada. Fui levada a um médico, que examinou minhas lesões e entregou um relatório escrito a Marjorie Rosner. Durante todo esse tempo, havia uma atividade intensa ao meu redor, telefones tocando, policiais aparecendo. Fui levada para um lar de adoção temporário, dirigido por um casal idoso. Forneceram-me uma refeição quente e um lugar para dormir. Não pensei que seria possível, mas mergulhei no sono assim que encostei a cabeça no travesseiro, sentindo o corpo afundar no colchão.

Pela manhã, Marjorie veio me buscar. Explicou que eu seria levada a um tribunal de família, para ser interrogada por um juiz. Avisou que meu tio e minha tia talvez estivessem presentes.

— Seu tio já foi interrogado pela polícia, assim como sua tia — informou ela.

— O que ele disse que fez com a minha mãe?

— Vamos nos concentrar em você por enquanto — declarou Marjorie.

Eu me sentia tão assustada que mal consegui andar até o carro de Marjorie. Ela procurava me tranqüilizar a todo instante, insistindo que tudo acabaria bem.

— Prometo que ele nunca mais vai pôr a mão em você, Raven.

Quando entramos no tribunal, avistei tia Clara sentada sozinha num banco do corredor. Ela tinha a cabeça baixa, as mãos no colo. Parecia muito pequena e perdida. Senti pena dela. Quando nos ouviu no corredor, tia Clara ergueu o rosto. Tinha os olhos injetados, o rosto pálido.

— O que você fez, Raven? — perguntou ela, num fio de voz.

— O problema não é o que ela fez, sra. Stack, mas sim o que seu marido fez — interveio Marjorie Rosner.

— Ele não faria essas coisas. Tenho certeza de que não faria.

Ela me fitou, esperançosa.

— Sinto muito, tia Clara. Acho que sabia que ele faria.

Tia Clara levou o punho à boca para tentar conter o choro que comprimia sua garganta.

Marjorie me fez seguir em frente. Olhei para trás antes de entrarmos na sala do juiz. Tia Clara cobrira o rosto com as mãos e balançava-se gentilmente, como uma pessoa sentindo uma intensa dor. Meu coração parecia um bloco de chumbo.

— Detesto magoá-la...

— Está fazendo o que é certo, Raven. Apenas responda às perguntas do juiz.

Respirei fundo e entrei na sala, sentindo-me como alguém numa montanha-russa que acaba de alcançar o ponto mais alto antes de uma descida. Dentro de um momento, sabia que iniciaria uma descida vertiginosa, segurando o carro com toda a força, os olhos fechados, gritando, sem saber para onde a próxima volta me levaria.

 

Tio Reuben negou tudo, é claro. Admitiu me bater, mas alegou que eu era tão corrompida que não tinha opção. O juiz não acreditou nele. Também não tinha a menor intenção de me mandar de volta para a casa de tio Reuben. Com minha mãe desaparecida e sem outros parentes que pudessem assumir a responsabilidade por mim, eu me tornava uma tutelada do Estado. Era o que tio Reuben previra para mim desde o início. Portanto, de certa forma, suponho que ele conseguiu o que queria.

Senti mais pena por William e Jennifer, já que tinham de continuar em casa. Foi o que comentei para Marjorie. Ela achava que William podia um dia sair do casulo auto-imposto da família para ajudar a todos, especialmente tia Clara.

— Na terapia, tudo será exposto — comentou Marjorie.

Eu não sabia se acreditava ou não; e, no momento, não podia pensar em qualquer outra coisa além do que me acontecia. Ela percebeu como eu me sentia ansiosa. Por isso, decidiu me levar pessoalmente ao novo lar de adoção.

— É uma das nossas melhores instalações — explicou ela, ao partirmos de manhã. — Era antes uma pousada. O mesmo casal que a dirigia, Gordon e Louise Tooey, cuida agora do lar de adoção. O terreno é lindo e há muito espaço no prédio.

Do jeito como ela falava, parecia que eu ia para um acampamento de verão. Marjorie informou que havia outras garotas da minha idade ali. A próxima escola em que eu estudaria era uma das melhores do Estado.

— Pais adotivos em potencial visitam o local com freqüência — garantiu ela.

Eu não sabia se queria outra mãe. Nunca tivera um pai, e a experiência com tio Reuben me deixava nervosa com a perspectiva de deixar outra pessoa assumir o controle.

E, àquela altura, por que alguém haveria de querer me adotar? Se eu fosse uma mulher à procura de uma criança para adotar, tentaria encontrar uma que fosse pequena, a quem pudesse ensinar e desenvolver. Jamais desejaria uma filha que tivesse levado uma vida como a minha.

Marjorie viu o pessimismo em meu rosto, mas continuou a falar sem parar sobre o futuro brilhante que me aguardava. Prometeu-me que o pior já passara. Assegurou-me que o Estado providenciaria para que eu nunca mais ficasse nas mãos de alguém tão pervertido e cruel como meu tio ou tão perturbado quanto minha mãe.

— Não permitimos que qualquer pessoa assuma o controle de nossas crianças.

Era como se o Estado fosse uma gigantesca supermãe, com olhos que tudo viam e examinavam, que conhecia cada uma e todas as suas tuteladas.

Eu me sentia muito cansada e deprimida para argumentar ou mesmo me importar. Aquela seria a terceira escola em que eu estudaria em menos de seis meses. Encontraria novos rostos, com olhos desconfiados e cautelosos. A coisa mais difícil do mundo era fazer uma amiga de verdade, desenvolver um relacionamento com outro ser humano que confiasse em você, se importasse com você, que tivesse certeza de que você retribuía. Eu nunca contara com uma amiga assim, e agora tinha dúvidas se algum dia conseguiria.

Pouco mais de uma hora depois chegamos a um lugar chamado Lakewood House. Descobri que era verdade a primeira coisa que Marjorie me dissera. Era mesmo um prédio enorme, com a maior varanda em torno que eu já vira. Marjorie ajudou-me a pegar minhas coisas. Olhamos ao redor. Ela respirou fundo, como se o ar ali fosse mais fresco.

— Não é lindo? Olhe para o lago lá atrás, para as flores. Foi maravilhoso que o casal decidisse fazer da propriedade um lar de adoção temporário, partilhando tudo isso.

Por que fariam tal coisa?, pensei.

Começamos a subir os degraus. A porta por trás da porta de tela estava aberta. Ouvimos uma voz de mulher:

— Já estou indo!

Marjorie abriu a porta de tela e deparamos com uma morena alta, os cabelos descendo até os ombros. Devia ter seus cinqüenta anos, os olhos azuis eram vibrantes e cordiais.

— Esta é Raven Flores — disse Marjorie. — Raven, esta é Louise Tooey.

— Oi, querida. — Louise pegou minha mão livre. — Vamos entrar. Sei de tudo a seu respeito.

A voz era suave e triste. Os olhos até se tornaram lacrimejantes.

— O que estamos fazendo com as nossas crianças... — Ela sacudiu a cabeça para Marjorie. Tornou a sorrir para mim. — Vou apresentá-la agora mesmo à sua colega de quarto. Ela se chama Brooke. Tenho certeza de que vocês duas vão se tornar amigas num instante. Somos uma grande família aqui. Cuidamos uns dos outros.

Olhei para Marjorie, que me acenou com a cabeça e sorriu de novo. Não podia deixar de me sentir cética. Era como a garota que recebera tantas promessas não cumpridas que bastava apenas mais uma para empurrá-la ainda mais fundo num poço de tristeza. Preferia que não me prometessem coisa alguma. O desapontamento perdurava nas sombras, faminto, ansioso, pronto para dar o bote na menor esperança que eu pudesse acalentar.

— Louise! — gritou alguém, no alto da escada. — A descarga está com defeito de novo.

Uma garota alta e magra, com aparelho nos dentes, cabelos escuros escorridos, olhava para nós, com as mãos nos quadris.

— E não fui a última a usar — acrescentou ela. — Por favor, avise a Gordon.

— Está bem, querida. Não se preocupe. Vou chamá-lo. — Louise riu. — Elas ficam nervosas quando há algum problema. Gordon conserta tudo num instante. É fácil para ele. Vem fazendo isso há muito tempo. Agora, levarei Raven lá para cima. Descerei logo para nos reunirmos no escritório.

— Combinado. Adeus, Raven. — Marjorie abraçoume. — Você vai ficar bem.

— Não sei por quê — murmurei. — Nunca fiquei antes.

Marjorie e Louise trocaram um olhar apreensivo. Subi atrás de Louise. A garota alta observou-nos por um momento, antes de se virar e se afastar apressada pelo corredor. Imaginei que era para anunciar a minha chegada. Paramos num quarto à esquerda. Louise bateu na porta.

— Pois não? Louise abriu a porta.

— Sou eu, Brooke, com a sua nova colega de quarto que tinha prometido.

— Sorte minha — resmungou Brooke.

Ela levantou os olhos da mesa em que havia um gravador, com a caixa aberta. Parecia que o consertava. Ao me ver, Brooke empinou a cabeça, num gesto de surpresa, interrompendo o que fazia.

— Esta é Raven. Raven, esta é Brooke. Vocês duas são mais ou menos da mesma idade. Portanto, imagino que têm muita coisa em comum.

— Duvido muito — disse Brooke. Sorri para ela.

— Também duvido.

— Ahn... Brooke lhe dirá tudo sobre a Lakewood House e a apresentará às outras garotas no andar. Pode fazer isso, Brooke?

— Tenho opção?

— Claro que tem, querida.

— Venha comigo — murmurou Brooke, com uma voz cansada. — Eu lhe direi tudo sobre o Hotel dos Horrores.

— Brooke!

— É brincadeira, Louise. Sabe disso.

— Claro que sei. Minhas garotas adoram esta casa. Vou acabar com Marjorie e depois virei falar com você, Raven. Sinta-se em casa, querida.

Ela saiu do quarto, fechando a porta.

Brooke e eu nos fitamos por um longo momento.

— Já conheceu Gordon? — Quando sacudi a cabeça, ela acrescentou: — Foi o que pensei. Achei-a muito calma.

— Por que diz isso? Como ele é?

— Enorme, feio e brutal. Afora isso, até que é legal.

Comecei a sorrir.

— Nunca esteve em outros lares de adoção, Raven?

— Apenas passei uma noite em um. Antes disso, morava com a família.

— Com a família? O que aconteceu?

— É uma longa história, com um final infeliz.

— Ainda não.

— Como?

— O final. Ainda não foi escrito. Dei de ombros.

— O que está fazendo?

— Tentando consertar o gravador de Borboleta. Alguém deixou-o cair da escada. Acho que sei quem foi.

— Ela dorme no quarto do outro lado do corredor, junto com Crystal. Vai conhecê-las daqui a pouco. Guarde suas coisas. Pode ficar com metade do armário e metade da cômoda. O banheiro fica no final do corredor.

— Obrigada.

— Não agradeça a mim. Agradeça ao Estado. Brooke voltou a mexer no gravador, enquanto eu arrumava minhas coisas. Alguém bateu na porta.

— Abre-te, Sésamo! — gritou Brooke.

Duas garotas entraram no quarto, uma pequena e delicada, a outra com óculos de lentes tão grossas que pareciam um fundo de garrafa. As duas me fitaram.

— Soubemos que sua colega de quarto chegou — disse a mais alta, que parecia muito inteligente. — Sou Crystal. Esta é Janet. Nós a chamamos de Borboleta.

— Oi — murmurou Janet.

Ela parecia uma boneca que adquirira vida por um passe de mágica. Por que ninguém a levara para sua casa até hoje?

— O nome dela é Raven — informou Brooke. — Tinha uma vida familiar horrível, e se sente contente por ter vindo para cá.

— Não a deixe ainda mais deprimida — protestou Crystal. — Estamos nos dando bem aqui.

— Claro que sim — concordou Brooke. — Somos as Três Órfãteiras.

— Agora quatro — corrigiu Crystal. Brooke olhou para mim.

— Isso depende dela. Soltei uma risada.

— O que foi mesmo que você disse? Tenho uma opção?

Brooke riu também. Borboleta ofereceu um sorriso radiante, enquanto Crystal balançava a cabeça.

— Vamos descer e comer a gororoba — decidiu Brooke, levantando-se.

— Gororoba?

— O almoço — explicou Crystal. — E a comida não é tão ruim.

— Prefiro pensar nela como horrível, para ter assim uma surpresa agradável — disse Brooke. — Vamos embora.

Comecei a sair atrás dela. Crystal ficou ao meu lado e disse:

— É difícil no início, mas você acabará se acostumando.

— Não pode ser pior do que o lugar em que eu morava.

Ela balançou a cabeça.

— É o que todas esperamos.

Crystal adiantou-se para pegar a mão de Borboleta. Descemos. Além da Lakewood House, em casas por todo o país, garotas da nossa idade almoçavam, conversavam com amigas ou sentavam-se com a família. Seus sonhos não eram muito diferentes dos nossos. Alguém podia nos contemplar e saber que só contávamos com nós mesmas agora? Havia uma expressão, um gesto, ou um tom em nossa voz que traísse a solidão que sentíamos?

Percebi tudo nas outras três — a desconfiança, o medo, a hesitação. Refleti que, num sentido concreto, éramos irmãs, nascidas sob aquela mesma estrela pequena e distante, cercadas pela escuridão, esperando, observando, tentando desesperadamente manter nossa luz acesa.

Quantos sorrisos a menos teríamos? Quantas risadas a menos? Quantas lágrimas a mais que todas as garotas seguras e amadas de nossa idade? O que fizéramos para sermos trazidas para este lugar?

No fundo da escada, elas ficaram esperando que eu as alcançasse.

— Mantenha-se perto — ordenou Brooke. — É uma de nós agora.

— Acho que sempre fui — murmurei. Brooke sorriu.

Crystal parecia pensativa.

Continuamos pelo corredor, juntas. Quatro meninas unidas, acumulando forças para travar a batalha contra a solidão.

Para acender a nossa preciosa estrela.

 

 

                                                                                V. C. Andrews 

 

 

                      

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