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Naquela manhã, acordei com fortes dores no estômago. Eu havia desenvolvido gastrite crônica por conta de passar muitas horas seguidas sem comer ou mesmo dias sem me alimentar direito. A comida era escassa em um país devastado pela pobreza, crise econômica e corrupção. Ao me olhar no espelho, pude me notar pela primeira vez alguns quilos mais magra.
Mas a dor não me deixou permanecer de pé, então me deitei novamente. Somente horas depois de me contorcer na cama levantei-me mais uma vez e abri as cortinas para que a luz do sol entrasse. No entanto, ao olhar através da janela do meu quarto, no terceiro andar do prédio onde eu morava, meu coração ainda teve forças pra bater mais forte de susto, de desespero. Meu corpo tremeu e em poucos instantes meus olhos já vertiam as lágrimas de desesperança, de angústia. Era a ânsia pelo fim de um pesadelo.
Através da janela eu observei a realidade cruel do mundo: pude ver meus vizinhos, no quintal de uma casa velha, com a pintura descascada pelo tempo, dilacerando um cachorro para o cozinharem em uma fogueira improvisada recém-acesa. Não havia nem mesmo gás de cozinha para preparar os alimentos de um modo decente, digno. Mal havia alimento. É isso mesmo que eu acabei de afirmar: os mais pobres, para não morrerem de fome, passaram a comer a carne dos cachorros vira-latas que vagavam pelas ruas, e sinceramente não duvido que muitas pessoas tenham comido seus animais de estimação. Lamentável, triste, assustador! Comer carne de gato e de ratos também fazia parte da busca desesperada pela sobrevivência naquele país demolido pelo algoz de uma política populista e totalitária.
Jamais duvide do poder destruidor de uma ideologia nas mãos corruptas do ser humano, e neste caso eu falo do socialismo bolivariano, tido inicialmente como uma forma de organização política e econômica que, na verdade, foi parte de um culto ao ego fomentado por fins políticos, fins esses que nada têm a ver com as ideias originais de seu fundador. É quase sempre assim: os governantes se apropriam de uma ideologia e a adaptam aos seus propósitos tiranos, às suas ganas pelo poder, opressão e dinheiro. Tudo isso somado à instabilidade do governo, da economia e às sanções e embargos econômicos impostos à minha pátria por parte de governos estrangeiros, tornou meu país um caos de pobreza, fome, morte e revolta.
A náusea insuportável invadiu meu corpo, senti vontade de vomitar depois de ver aquela cena que era o retrato da miséria. Me joguei na cama de novo, encharquei o travesseiro com o choro aflito de quem não aguentava mais tanta injustiça. Independentemente de quem fosse a culpa, fato era que o meu povo estava passando fome, quase não havia comida nas prateleiras dos mercados, a moeda do meu país não valia mais nada. Era preciso o salário de um mês inteiro pra comprar um litro de leite ou um quilo de carne bovina, e isso caso encontrássemos um lugar onde esse produto estivesse disponível. As filas nos açougues pra comprar carne podre eram enormes, afinal comer carne podre é melhor do que morrer de fome.
A sorte da minha família era que, por ter alguns contatos importantes, meu pai ainda conseguia um pouco de comida com amigos comerciantes e fornecedores estrangeiros, o suficiente para não precisarmos comer ratos ou coisas do tipo, mas nada de carnes nem qualquer comida especial, apenas vegetais, como frutas e legumes; às vezes leite, quando muito.
Na realidade, as coisas nem sempre foram assim tão difíceis. Antes de todo o caos se instalar em meu país, nós tínhamos uma vida boa, uma vida digna. Meu pai era um empresário da área de jardinagem e paisagismo, de classe média alta, e minha mãe uma dedicada dona de casa. Tínhamos carro, casa própria, lucro, até negociações com clientes estrangeiros!
Mas a vida na América do Sul tornou-se um verdadeiro pesadelo quando a gana pelo poder fez com que nosso antigo presidente decidisse redistribuir a riqueza da nação para os mais pobres. É sempre assim: os políticos juram que tudo o que fazem é para o bem do povo, mas, no fim, quase tudo que fazem é para o bem de si próprios. Eles não se importavam se o povo morreria de inanição.
E não era apenas a fome que nos afligia, a censura também. Todos os meios de comunicação que fizessem qualquer manifestação contrária ao governo eram interditados ou mesmo confiscados pelo Estado.
Naquele momento, quase todas as economias que meu pai havia juntado em dólares nos bons tempos foram usadas para comprar nossas passagens aéreas para os Estados Unidos. Iríamos como visitantes para nunca mais voltar. Um velho amigo, seu nome era David Jenkins, ex-empresário e professor universitário, nos receberia como anfitrião em Ocean City, no estado de Maryland. Nos tempos antigos, ainda quando eu era criança, meus pais e eu já havíamos visitado a América do Norte. Meu pai, Santiago Rodríguez, chegou a ir mais vezes pra lá quando ainda era um empresário bem-sucedido, antes de perder tudo. A ajuda de amigos comerciantes em nosso país fez com que meu pai ainda mantivesse o status de empresário e vínculo com a nossa nação até aquele momento, mesmo estando de fato falido.
Mas não permaneceríamos em Ocean City por muito tempo. O auxílio do David era só para a chegada; ficaríamos apenas alguns dias em sua casa, até que ele conseguisse com seus amigos latinos da Califórnia trabalho e casa para a minha família. Assim que chegássemos aos Estados Unidos, tudo seria decidido. As pessoas em geral tinham medo de se envolver demais nessa situação. Nosso plano era partir o quanto antes de Ocean City para a Califórnia a fim de trabalhar e começar uma nova vida. Não queríamos comprometer o destino de um amigo com nossa futura situação de imigrantes sem status.
Foi nossa sorte ter a amizade do David. Aquela era a nossa única chance, seria um verdadeiro milagre. Havia sim o risco de não passarmos pela polícia de imigração quando chegássemos à América do Norte. Éramos turistas estrangeiros vindos de um país em crise, onde grande parte da população sofria com a fome, onde muitos estavam comendo carne de cachorro para sobreviver. As autoridades norteamericanas poderiam muito bem desconfiar que estivéssemos na verdade fugindo, nos refugiando. Mas o risco valeria a pena, isso era o que meu pai dizia. “Se temos que ir embora, iremos para o melhor lugar”, ele afirmava.
***
Já era fim de tarde quando meu pai entrou pela porta da sala carregando duas sacolas na mão. Já não comíamos há pouco mais de vinte e quatro horas. Eu e minha mãe, Doralis, permanecíamos sentadas no sofá, eu com minha cabeça recostada em seu colo e ela clamando a Deus que nos poupasse de morrer de fome ou doentes até que chegasse o dia de fugir.
— Rosa Maria, minha filha. Doralis, meu amor – meu pai chamou pelo meu nome e de minha mãe depois de colocar as sacolas sobre a mesa.
— Pai, meu estômago dói, me sinto muito mal – eu murmurei.
— Sei que estão famintas. Consegui frutas, verduras, legumes e leite. As filas para comprar comida continuam atravessando os quarteirões. Eu vou servi-las. Precisam comer frutas e tomar leite – ele disse, enquanto tirava as coisas da sacola. Pegou os copos e os pratos.
— Obrigada, pai. Sei que não está sendo fácil conseguir alimento por um preço que podemos pagar, sei que precisamos economizar os poucos dólares que ainda restam para a viagem, afinal é tudo que temos. Mal posso esperar pelo dia do embarque. Quero estar longe desse inferno – eu disse com voz fraca. A dor da fome e da gastrite arrebentava meu estômago naquele instante.
— Não há futuro para nós aqui na América do Sul, Rosa Maria – meu pai afirmou, suspirando.
— Nosso povo está sucumbindo, Santiago – minha mãe comentou, olhando fixamente para o copo de leite.
— Hoje cedo eu vi pela janela os vizinhos dilacerando um cachorro para o comerem. Foi uma cena horrível – eu relatei, desabando em lágrimas.
— Isso é horrível. O que acontece nesse país é um crime contra a humanidade. Há crianças morrendo de fome no colo de suas mães prostradas nas calçadas. Não há medicamentos nos hospitais, está tudo desmoronando sobre nossas cabeças. Nós temos que ir embora daqui para sempre, minha filha. – Meu pai me consolava. Ele era o meu herói. Nos serviu as frutas e o leite, e em seguida comeu conosco. – Só precisamos de um pouco mais de paciência. O dia da nossa partida está próximo – ele afirmou, depois de tomar mais um gole de leite.
***
Naquele momento tudo já era escasso e racionado: papel higiênico, remédio, energia elétrica e água. Os saques eram constantes nos poucos supermercados abastecidos para atender só os ricos, que podiam pagar pela fortuna que custavam os produtos mais básicos. As mortes eram inevitáveis. O caos parecia ser irreversível. Pessoas famintas e desesperadas já invadiam os condomínios e casas em busca de algo para comer. Eram cenas de horror.
Aquele regime que teoricamente pregava a igualdade social era na verdade um livro apócrifo do apocalipse. Naqueles últimos meses o surto de doenças como sarna, diarreia, malária e disenteria foi intenso. Um povo sem água e sem alimento não pode sobreviver. Não havia como enterrar os mortos com decência; como os caixões custavam muito caro, as pessoas enterravam seus mortos no quintal de casa.
Nem é preciso dizer que naquela situação não havia espaço para paixões, mas mesmo assim eu amei alguém pela primeira vez. O nome dele era Endry, e é impossível esquecer tudo o que vivemos juntos.
Conheci o Endry durante o primeiro ano da faculdade de engenharia elétrica, dois anos antes da minha partida para os Estados Unidos. Naquela época eram poucos os jovens que, em meio à crise e miséria que o país enfrentava, tinham condições e coragem de frequentar a universidade. A busca pela fuga daquela situação era o grande objetivo da maioria da população.
A universidade estadual localizada na capital do país se encontrava em péssimas condições, os computadores eram muito antigos, não havia mais manutenção das instalações físicas e elétricas, paredes descascadas, telhados caindo, salas abandonadas, salários dos professores reduzidos em mais de cinquenta por cento. Essa era a realidade que eu havia presenciado logo naqueles primeiros dias de aula. Eu morava perto da universidade, pegava o primeiro ônibus todas as manhãs.
Eu tinha apenas dezessete anos e já havia dentro de mim a esperança de ser alguém na vida, algum dia, em algum lugar. Em meio à toda aquela escuridão, enfim eu pude ver a luz do amor brilhar pela primeira vez dentro do meu coração.
Depois de muito tempo de tempestade e falta de motivos para seguir em frente, um jovem com o sorriso que acalentou minha alma entrou pela porta da sala de aula. Aconteceu uma semana depois do início do ano letivo. Meu encantamento foi imediato. Como se fosse mágica, ele me notou, e senti até arrepio. Não sei se há alguma explicação para sentirmos empatia por alguém quando a vemos de imediato.
Certo dia Endry sentou-se perto de mim. Eu nunca me esqueço daquela semana difícil. Eu chegava à aula com o estômago vazio quase todas as manhãs, ainda sonhando em ser alguém, mesmo sem vislumbrar uma luz no fim daquele túnel obscuro. Mas enxergar o rosto daquele rapaz todos os dias era a verdadeira recompensa.
Sempre que sobravam alguns centavos, meu pobre pai os dava a mim, para que eu pudesse comprar pão com geleia e chá (era o que havia) na cantina da universidade durante o intervalo das aulas. Naquela ocasião, depois de aguardar na fila da cantina, peguei meu lanche e, como se estivesse distraída, esbarrei no Endry. Não teve jeito: meu copo de chá virou no colo dele, que ficou com a camisa manchada.
— Oh! Me desculpe. Agora já era. Fiquei sem chá e dinheiro, e não tenho mais dinheiro hoje pra comprar outro copinho – eu disse, mais preocupada por ter perdido meu café da manhã do que com a roupa dele que eu havia acabado de sujar.
— Rosa Maria, não se preocupe. Não foi nada. Eu divido meu copo de chá com você – ele respondeu com delicadeza. Meu coração acelerou ao ouvi-lo chamar meu nome.
— Endry, como eu sou indelicada. Sua camisa está toda suja de chá. Me desculpe.
— Já disse que não foi nada. Depois eu lavo no banheiro, ou deixo pra lavar em casa. – Ele me livrou da culpa mais uma vez.
— Eu agradeço, mas o copo de chá é seu e não seria justo que ficasse para mim. Eu como só o pão com geleia mesmo. Não é como as geleias de antigamente, mas é o que temos.
— Não seja por isso. Podemos dividir nosso lanche. Gostaria de ir comigo à mesa do pátio para partilhamos o pão com geleia e o chá?
— Seria muito legal. Vamos – eu respondi, sorrindo.
Endry e eu nos sentamos à mesa do pátio e começamos a conversar entre os goles de chá e mordidas no pão.
A partir daquele momento passamos a conversar todos os dias, Endry sempre se sentava ao meu lado durante as aulas. Nós nem sequer imaginávamos que, dentro de algum tempo, a realidade iria culminar na população comendo carne de cachorro e de rato pra não morrer de fome.
***
Guardo a lembrança do nosso primeiro passeio de moto pela cidade. Matamos aula naquela manhã ensolarada de outono para passear. Endry, assim que me viu entrar pelos portões da universidade, me pegou pelas mãos e disse:
— Rosa Maria, vem comigo, vamos passear hoje.
— Mas Endry, e a aula? – me mostrei preocupada.
— Aula tem todo dia, mas esse passeio só posso te dar hoje. Consegui uma moto emprestada – ele me explicou.
— Jura? – perguntei, surpresa.
— Sim. – Ele sorriu.
— Então vamos – concordei, já ansiosa.
— Vou te levar a um lugar sensacional. Não sei se já esteve lá, mas dessa vez será especial – ele me disse com entusiasmo.
Meu coração bateu mais forte de nervosismo ao ouvir as palavras do Endry. Na hora, ansiei por saber o que haveria de especial no lugar pra onde ele estava me levando. Subi na moto e segurei firme na cintura do rapaz que me fazia esquecer por um momento as mazelas que sobrevinham às nossas vidas.
***
Percorremos mais de trinta minutos pela rodovia principal da cidade, até que chegamos a um local ermo. A entrada era uma estrada de terra de difícil acesso com qualquer outro veículo que não fosse uma moto. No fim daquela estrada de terra havia uma paisagem linda que parecia ser distante do local de misérias onde vivíamos. Era um tipo de reserva ecológica longe do centro urbano. Eu nunca havia estado ali. Embora fosse minha cidade natal, havia cantinhos dela que eu não imaginava que existiam.
Endry parou a moto e descemos.
— Chegamos. Rosa Maria, seja bem-vinda à Gruta do Oeste, um lugar que poucos se preocupam em conhecer. Vai começar a aventura – ele me disse, mostrando-me o local.
— Percebo que o lugar é lindo, mas é seguro?
— Ao meu lado você sempre estará segura. Vamos.
Endry segurou minha mão e caminhamos por uma trilha. Em dado momento ele pediu que eu fechasse os olhos e continuou me conduzindo ao fim do caminho.
— Agora pode abrir os olhos – ele me disse, empolgado.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao vislumbrarem a cachoeira com uma linda queda d’água.
— Endry, é lindo esse lugar! E também o barulho da queda d’água! – eu disse, respirando fundo em seguida. Pude sentir a paz por uns instantes.
— Fico feliz que tenha gostado. – Ele sorriu.
— Aqui é tão tranquilo, parece até que o mundo está em paz – eu disse, fascinada com a paisagem.
— Nesse lugar ele está em paz. Mas eu te trouxe aqui por um motivo especial. – Endry fez mistério.
— Que motivo mais especial poderia existir além desse? Endry, obrigada por me fazer esquecer por uns instantes todos os momentos ruins que estamos passando. Não está sendo fácil lá fora. Meu pai perdeu tudo, estamos completamente falidos. Já começa a faltar comida, mas a dor de fome no meu estômago até passa quando você está perto – eu confessei, em tom de voz delicado.
— Faço isso porque durante esses meses em que ficamos amigos eu descobri algo muito importante – Endry começou a se explicar.
— Descobriu? O quê? – Me mostrei curiosa.
— Rosa Maria, eu sou um homem apaixonado por você. Por isso eu te trouxe aqui. Quer ser minha namorada? – Ele fez o pedido com o sorriso mais lindo do mundo.
Naquela hora meu coração bateu mais forte, mais uma vez. O Endry era um ano mais velho que eu e certamente havia tido outras namoradas, ao contrário de mim, que estava vivendo o meu primeiro amor, pois paixões não correspondidas de adolescência não contam.
Fiquei nervosa. Ele continuou segurando minha mão, eu permaneci olhando sua face reluzente de carinho. Tudo que eu ouvia era o barulho das águas da cachoeira.
O medo do futuro quase me fez hesitar na resposta. “E se nada der certo?”, eu me perguntei. Mas ao mesmo tempo seria crueldade deixar de viver aquela paixão por falta de esperança no futuro. Tão jovem e tão racional era o meu coração já sensibilizado pelas tragédias. Pensei por mais alguns instantes e a emoção tomou conta de mim, fazendo com que minha decisão não pudesse ser outra.
— Endry, eu também sou muito apaixonada por você. Eu aceito sim ser sua namorada. – Eu aceitei, já confessando o que sempre havia sentido desde os primeiros dias de aula. Então sorri.
— Você não imagina o quanto ouvir isso me deixa feliz. Eu trouxe isso pra você. – Ele estendeu as mãos, me entregando o presente.
— É uma linda correntinha, e tão delicada – eu disse, surpresa.
— Eu coloco em seu pescoço. – Ele se mostrou gentil.
— Obrigada.
Endry colocou o colarzinho em meu pescoço e disse:
— Agora vamos tirar uma foto juntos nesse lugar que será sempre nosso. É a nossa primeira selfie de namorados.
— Ah! Esqueci meu smartphone em casa – eu me lembrei.
— Não tem problema. Eu trouxe meu smartphone pra fazer nossa foto.
— Depois me envia por email. Eu quero imprimir a foto e colocar no espelho do meu quarto – eu pedi.
— Tudo bem, eu envio. Agora fica com o seu rosto bem juntinho do meu pra fazermos nossa foto mais importante – ele disse, colando o rosto dele no meu.
— Tudo bem. De fundo vai aparecer a cachoeira – eu comentei, empolgada.
Essa foto eu tenho até hoje. Depois dos cliques, nos abraçamos. Fiquei um pouco trêmula, sim, meu corpo tremeu todo. O Endry queria muito me beijar e eu também, mas eu nunca tinha feito aquilo, então considerei natural minha insegurança.
— Meu amor, você está meio gelada, parece nervosa. Fica calma. Me abraça. Tudo vai ficar bem. – Ele me abraçou com força, me envolveu de verdade em seus braços.
Por alguns minutos ele apenas me abraçou. Senti a paz acalmar meu corpo. Eu ainda estava de olhos fechados quando senti as mãos do Endry acariciarem meu rosto.
— Está mais calma agora? – ele me perguntou.
— Estou – respondi, ainda tímida.
Abri meus olhos, mas em poucos segundos fechei-os novamente. Logo senti o Endry me beijar de um jeito tão carinhoso que parecia ter me curado de todos os males.
Ele sorriu. Estava emocionado, a paixão saltava dos seus olhos. Empolgado, abriu sua mochila, pegou uma sacola e me entregou-a.
— O que é isso, Endry? – perguntei, curiosa.
— Abre o pacote.
Eu abri com pressa. Fiquei surpresa ao ver o que ele havia conseguido.
— É chocolate! Como você conseguiu? Custa uma fortuna! Quase o salário de um mês inteiro! – exclamei, surpresa.
— Eu dei um jeito. Esse momento não poderia passar em branco. Eu trouxe também sanduíches. Pão com queijo.
— Queijo? Você está brincando! – Fiquei ainda mais surpresa por saber que ele havia conseguido aqueles itens de luxo.
— Estou falando sério, Rosa Maria. Vamos fazer um piquenique. Está tudo aqui na minha mochila. Esse momento não poderia passar em branco.
— Confesso que agora que o nervoso passou, estou morrendo de fome. Já que você trouxe um banquete, quero comer logo – comentei, cheia de apetite.
— Ali tem um cantinho pra estender a toalha.
— Obrigada. Você é incrível. – Pulei no pescoço dele e o abracei de novo.
Naquele momento senti muita vontade dizer ao Endry “eu te amo”, mas me contive. No meu entendimento, ainda era muito cedo pra declarar amor a alguém que eu conhecia há apenas alguns meses. Até aquele momento ele ainda não havia dito que me amava. Mas só depois eu aprendi que algumas vezes o amor pode ser demonstrado com atitudes, e quase nunca com palavras. Eu deveria ter dito “Endry, eu te amo”, afinal o amor não precisa ser perfeito; é justamente o afeto imperfeito que demonstra que os seres amam e sentem com suas limitações, e essas limitações não significam que o sentimento não existe.
***
Passamos aquela tarde estudando na mesa do quarto. O Endry costumava me levar à sua casa depois da aula às sextas-feiras. Eram momentos de estudo e carinhos. Era maravilhoso admirar seu olhar compenetrado em meu semblante. Entre cálculos, calculadoras e cadernos havia espaço e tempo para afagos. Sempre que me lembro desses momentos, sinto vontade de voltar no tempo.
***
Naquele mês nosso namoro completava oito meses. Naquele dia, depois de estudar, ficamos lado a lado na cama e assistimos a um filme de ação e ficção científica no DVD. O Endry adorava filmes assim, com adrenalina. O primo dele costumava trazer os CDs piratas de suas andanças pelos países vizinhos.
Era costume eu me debruçar no colo do Endry. Ele afagava meus cabelos, me fazendo relaxar, e eu praticamente adormecia. Por uns instantes o mundo parecia estar em paz, mas aquele era só o princípio das dores e do caos.
Dormi mais do que o esperado e, ao acordar, percebi que já era noite, hora de ir pra minha casa. Meus pais haviam imposto limites e regras ao meu namoro. Eu ainda era muito jovem e eles tinham medo de que algo ruim me acontecesse naquele cenário caótico pelo qual meu país passava. Éramos católicos praticantes e eu uma jovem que procurava seguir os preceitos básicos da religião. Particularmente, eu acreditava em Deus e mantinha a esperança em milagres.
O Endry me levava de moto pra casa sempre que a conseguia emprestada do seu vizinho e amigo.
— Meu amor, que horas são? – perguntei, depois de abrir os olhos.
— Passa das oito. – Ele me beijou.
— O quê? Já está tarde. As ruas são perigosas durante a noite – eu disse, assustada pelo horário.
— Fica um pouco mais. Eu protejo você. – Ele sorriu.
— Você sabe que eu não posso. Tenho que ir pra casa, meus pais já devem estar preocupados. Nunca demorei tanto.
— Você gosta do meu carinho, sempre relaxa e pega no sono, então eu não quis te acordar – ele disse.
— Isso é verdade. Perto de você sinto como se o mundo estivesse em paz – afirmei, tentando demonstrar minha emoção.
— É uma pena. Eu gostaria que você ficasse mais tempo aqui comigo. Eu me sinto tão sozinho longe de você. Mas, já que tem que ir, então vamos. – Ele sorria enquanto falava.
Endry e eu tínhamos uma música preferida que marcou nosso namoro. Éramos fãs dos flashbacks anos 80 americanos e latinos. Essa música se tornou especial pelo fato de estar tocando em alto volume em um carro que passou perto de nós no dia em que ele me pediu em namoro. Era “Wishing on a Star”. Havia outras canções, como “Angel”, do Jon, e “Save Me Now”, do Andru. Essa última o Endry tocava para mim no violão. Ele me dizia: “Rosa Maria, o que foi que você fez com a minha mente? É como se eu estivesse aprisionado dentro da paixão que eu sinto por você.”
“Save Me Now” foi a nossa música.
***
Os dias passavam cada vez mais velozes, parecia não haver tempo nem pra respirar. A esperança de um país melhor se esvaziava à medida que a realidade cruel batia à nossa porta.
Aquela semana na faculdade foi sombria. Já fazia três dias que o Endry não aparecia e também não atendia às minhas chamadas, não respondia às minhas mensagens. Fui à casa dele logo no segundo dia em que ele esteve ausente, mas lá não havia ninguém.
Algo estranho estava acontecendo. Pior: algo muito ruim sobreveio à família do rapaz que eu tanto amava, apesar de até aquele momento eu não ter pronunciado essa frase de confissão de amor. Eu sei, eu ainda era tão jovem, mas já tão comedida. Eu ainda não tinha coragem de declarar que o que eu sentia era amor. Na verdade, eu tinha medo de fazer uma afirmação tão profunda como essa e depois tudo mudar, e as circunstâncias me mostrarem que tudo era apenas paixão e afeto.
No quarto dia, logo depois da aula, fui novamente à casa dele, e enfim pude encontrar meu namorado prostrado na beira do quintal, de cabeça baixa. Vertendo lágrimas, ele pronunciava palavras de desespero e indignação. Eu me aproximei atordoada e sem entender o que se passava ali.
— Endry, o que aconteceu? Você está em prantos. Tentei falar com você por telefone, mas não consegui. Cheguei a vir até aqui, mas não encontrei ninguém. – Meu coração estava aflito.
Eu já estava agachada diante dele, que vertia as lágrimas mais angustiantes que vi na vida.
— Rosa Maria, aconteceu uma desgraça – Endry me disse.
— Que desgraça? – Meu coração já era pura angústia.
— Minha mãe teve um mal súbito, a ambulância a levou ao hospital, mas quando ela chegou lá não havia médicos pra atendê-la. O hospital está caindo aos pedaços, não há remédios nem recursos pra salvar a vida das pessoas. Minha mãe faleceu da maneira mais cruel. Nosso país está o caos.
Senti o impacto da triste notícia.
— Meu Deus! Eu lamento muito. Quando foi isso? Por que você não me contou nada? Eu poderia ter estado ao seu lado, te consolando. Que tragédia! – Lágrimas já caíam dos meus olhos.
— Aconteceu há quatro dias.
— Eu sinto muito, Endry.
— Rosa Maria, meu amor, tem algo que você precisa saber – ele disse, com voz trêmula e semblante sério.
— Diga logo. Já que é pra sofrer, então que seja logo.
— Meu pai e eu decidimos ir embora desse país. Vamos fugir daqui para bem longe. Partiremos para a Argentina em busca de uma vida melhor. Nós queremos dignidade. – Endry pronunciou essas palavras com aflição.
— Endry, eu sinto muito por tudo – eu disse, seguindo a falta de palavras que me acometia, e já sentindo um aperto no coração por sentir a iminência do fim.
— Eu fiquei desnorteado. A esperança de um futuro melhor não existe aqui nesse país. Me desculpe, meu amor, mas eu não posso te dar a vida que você merece. – Endry caiu novamente em prantos.
— Eu entendo, eu sei que tudo isso é um grande tormento em nossas vidas. Mais uma vez eu lamento por toda essa tragédia. – Eu o abracei ainda com mais força.
A distância e ausência iminentes me fizeram ter coragem de, naquele momento, olhar no fundo dos olhos dele e dizer:
— Endry, eu amo você. Sei que não é hora nem momento pra dizer isso, mas, diante das circunstâncias, essa é uma verdade que não posso mais guardar comigo. Eu te amo muito, você é o homem da minha vida.
Ele me olhou assustado, como se tivesse sido surpreendido por uma grande revelação.
— Eu fico feliz em ouvir isso. Saiba que eu amo você faz tempo. Só é terrível que tudo de bom que ainda poderíamos viver juntos esteja sendo destruído por um governo corrupto, por um sistema que nos mata aos poucos. – Endry estava soluçando, e seu rosto estava lavado de lágrimas.
— Meu amor, estou aqui do seu lado e posso sentir um pouco da sua dor. – Nos abraçamos fortemente, como se quiséssemos guardar um ao outro dentro de nós.
***
O Endry abandonou a universidade e se preparava para se despedir. Naquele mês, a inflação chegou ao ápice de 500 mil por cento, e os preços dos produtos não paravam de subir. Um simples sabonete custava quase todo o salário mínimo. Impossível ter tudo de que precisávamos.
Faltava um tempo até que eu completasse dezoito anos. Eu ainda era muito jovem, sonhava em construir uma carreira, em ser uma mulher com condições de garantir um futuro melhor aos meus pais, que estavam falidos. Mas certamente esse futuro não seria no meu país.
Meus pais estavam decididos que iríamos embora para os Estados Unidos da América dentro de no máximo um ano. Só precisávamos ajeitar algumas coisas. E então aconteceu o que eu temia: declarei amor por alguém com quem eu não poderia mais ficar, declarei amor pelo Endry, um rapaz que estava indo embora para sempre, e eu também iria pra bem longe.
O Endry ainda não sabia que eu e minha família também nos preparávamos para abandonar o país. Marcamos uma conversa no nosso lugar especial, na gruta, lugar onde ele havia me pedido em namoro meses antes. Aquele foi nosso último passeio e também uma despedida. Ele me buscou de moto e ficamos o tempo todo em silêncio até chegarmos à gruta. Meu coração estava acelerado, não de paixão, mas de angústia, a angústia do adeus.
— Rosa Maria, estou indo embora nessa semana – ele me disse com os olhos lacrimejantes. Estávamos de frente para a cachoeira.
Eu respirei fundo. Entendi que ele quis dizer que eu poderia ir embora com ele, entendi que no fundo ele esperava que eu dissesse que partiria com ele. Olhando profundamente em sua face, eu disse:
— Apesar de te amar muito, eu tenho apenas dezessete anos, ainda sou muito jovem, não posso ir embora com você. Meus pais não permitiriam e, além do mais, não foi isso que eu sempre desejei pra minha vida. Meu sonho é terminar meus estudos, ter uma carreira, amadurecer e depois sim noivar e me casar em paz, com dignidade, sem desespero.
— Já imaginei que você não fosse embora comigo e me sinto muito triste por isso. Você é a garota que eu amo. Mas nenhum de nós jamais pensou que essas coisas cruéis aconteceriam e bagunçariam nosso destino.
— Endry, tem uma coisa que eu preciso te contar.
— O que é?
— Meu pai decidiu que vamos embora para os Estados Unidos, dentro de no máximo um ano. Meus pais têm amigos lá que podem nos ajudar a ter uma vida digna. Eu não posso ficar longe dos meus pais. Tenho planos de construir uma vida melhor pra eles, seja como for, seja onde for. Eles precisam de mim – afirmei com dor no coração.
— Eu sei disso e jamais pediria que você largasse seus pais pra ir embora comigo, pra enfrentar um futuro totalmente incerto. Sei que você ainda é muito jovem e não está preparada pra se casar nem ter uma família. Eu não tenho muita coisa pra te oferecer agora. Entendo que você queira estudar e lutar por um futuro melhor. É sábia a decisão do seu pai de ir embora. Não há outra saída. Isso é horrível porque você e eu teremos que nos separar. Vou sofrer muito longe de você, Rosa Maria.
— Sim, é horrível, mas é a realidade, Endry. Teremos que viver pra sempre com essa dor que, por um lado, até passa, mas a dor da lembrança jamais se apaga.
— Meu amor, precisamos seguir em frente, lutar pelo melhor em nossas vidas, e isso tem um preço. Eu cansei de perder tudo por causa de tanta injustiça que acontece nesse país.
— Entendo a sua dor, sei bem como é. Minha família tinha tudo e de repente perdemos nossos bens, nossa casa, nossa dignidade – comentei. – Minha mãe, que era acostumada com pequenos luxos e uma vida agradável, se tornou uma mulher triste, depressiva. Meu pai desenvolveu problemas cardíacos de tanto passar nervoso, e eu já adquiri gastrite por passar muitas horas ou mesmo dias seguidos sem comer direito.
— Eu perdi minha mãe. E agora vou te perder também, Rosa Maria. Mas depois que esse pesadelo terminar, eu posso te encontrar de novo. Eu prometo. Eu vou até onde você estiver pra ficarmos juntos. – Ele acariciava meu rosto enquanto falava.
— Não, não prometa nada, Endry. Estaremos muito longe um do outro, as coisas podem mudar. Temos que terminar esse relacionamento sem juras e sem promessas. Podemos ser bons amigos à distância. – Minhas palavras foram ponderadas, e nesse momento eu já estava prestes a derramar minhas lágrimas.
Os olhos dele lacrimejaram. Endry não se conteve, começou a chorar e desabafou:
— Eu não queria que fosse assim, meu amor.
— Eu também não, meu amor. – Nos abraçamos e nos beijamos mais uma vez e pela última vez.
Naquele dia ele me deixou em casa e foi embora sem olhar para trás. Decidimos não nos vermos mais até sua partida.
Nunca imaginei que a despedida fosse doer tanto. Os dias seguintes foram os mais dolorosos. Continuei frequentando a universidade por mais alguns meses depois que Endry havia ido embora.
Há tempos o meu estojo de maquiagem já estava preparado para aquele momento. Tínhamos que aparentar saúde e alegria, nada de rostos pálidos nem desiludidos pela fome e miséria de um país. Éramos a família feliz indo visitar um velho amigo americano. Os vistos de turismo estavam devidamente carimbados em nossos passaportes, mas ainda seria necessário passar pela imigração ao desembarcarmos em Annapolis, capital de Maryland.
Éramos os sobreviventes do caos que se havia se tornado a América do Sul. É claro que o meu país estava em uma situação pior do que todos os outros, afinal, quando as coisas são tão ruins a ponto das pessoas comerem os cachorros vira-latas das ruas, é sinal de que tudo se transformou em desumanidade e decadência.
O governo havia proibido a entrada de ajuda humanitária em meu país. Havia milhares de crianças desnutridas, morrendo de fome todos os dias, caídas nas esquinas ou no colo de suas mães.
Enfim meus pais e eu atravessamos o portão de embarque. Conforme meus pés seguiam em direção ao avião, meu coração batia mais forte. Entramos!
As poltronas eram confortáveis e ali dentro da aeronave havia certa paz. Meu estômago doía. Eu sentia muita fome, ainda não havia comido nada desde o momento em que havíamos abandonado nossa casa para tentar ter uma vida digna em outro país.
Depois de um tempo de voo, as comissárias de bordo começaram a servir a primeira refeição da classe econômica: sanduíches de carne, torradas, sucos, refrigerante e um doce. Meus olhos arregalaram-se quando olhei para a comida. Há muito tempo eu não sentia o gosto da carne na minha boca. Eu nem sabia mais o que era aquilo.
Confesso que minha vontade era de devorar o sanduíche apressadamente, mas eu não poderia fazer isso, eu tinha que manter a pose. O lanche foi servido na minha mesinha e eu o comi delicadamente, como todos que estavam ali. Naquele instante eu pude entender o quanto um simples sanduíche era precioso.
***
Como eu disse, já havia viajado para os Estados Unidos na minha infância. Tempos bons aqueles em que os cachorros eram apenas animais de estimação e não alimento.
Ainda havia algo que muito me preocupava. Embora meu pai não admitisse, foi depois da crise em nosso país que ele entrou em depressão e adquiriu doenças cardíacas. Meu pobre pai Santiago envelheceu anos em poucos meses.
Depois do desembarque em Annapolis, entramos na fila pra passar pela imigração. Fiquei nervosa, afinal ainda havia o risco de não nos deixarem entrar no país. Fomos conduzidos aos guichês e as autoridades nos entrevistaram.
Fiz todo o esforço pra manter meu semblante tranquilo, enquanto notei meus pais impecáveis em sua postura. O agente de imigração fez várias perguntas e depois de alguns minutos finalmente tivemos nossos passaportes carimbados com autorização pra ficarmos no país por até seis meses como turistas.
Fiz todo o possível para me manter tranquila, sem choros e sem desespero pela incerteza do futuro. Um peso enorme parecia ter saído das minhas costas. Enfim tínhamos uma chance de começar uma vida nova. Seguimos para a alfândega, onde retiramos nossas bagagens. Conforme eu caminhava até a saída do aeroporto, me sentia em outro mundo, um mundo onde as pessoas sorriam de verdade, um mundo onde havia paz, onde a chance de uma vida digna era real.
O David enviou um carro para nos buscar. O motorista era um sujeito meio sisudo e sem muita conversa. Gentilmente nos apresentamos e houve cumprimentos com apertos de mãos. Colocamos nossas malas no bagageiro. Meu coração acelerou por causa das coisas que meus olhos não podiam ver. Entramos no carro e meu pai sentou-se no banco da frente, ao lado do motorista, com quem tentou puxar conversa, mas o sujeito era mesmo muito retraído.
Foram duas horas e quinze minutos até a chegada em Ocean City, uma cidade litorânea, pequena, pacata, com pouco mais de seis mil habitantes. Seriam apenas alguns dias na casa do David. Pelo que eu havia visto nas fotos, nosso anfitrião era um homem alto, forte, de cabelos castanhos, olhos azuis e pele clara. Pelas coisas que meu pai comentava, David era, ao que tudo indicava, solitário, um viúvo de quarenta e oito anos que ainda não havia tido sorte em suas tentativas de se casar novamente. Seus filhos, já adultos, moravam no Canadá, e também por isso sua solidão era completa.
A caminho da casa do nosso anfitrião, passamos pela praia, que era extensa, com restaurantes e lojas por toda a orla. Havia também um parque de diversões próximo ao calçadão. Naquela hora imaginei como seria linda a vista do alto da roda gigante colorida.
A brisa do mar tocou meu rosto e minha angústia diminuiu. Respirei fundo pra resgatar o otimismo, afinal eu estava me livrando do pior, da fome, da miséria.
A casa do David era enorme, branca, de dois andares, próxima a uma das praias. Eu ainda não sabia por quê, mas quando o carro parou em frente àquela casa, meu coração acelerou de novo. Era como se eu pressentisse as incertezas que estavam por vir.
Certamente o David escutou o barulho do carro, pois antes que eu e meus pais saíssemos do veículo, ele já estava de pé, em frente à porta, nos observando. Era fim de tarde, a brisa do mar voltou a tocar meu rosto e lá estávamos nós começando uma nova vida. Saímos do carro, tiramos nossas malas do bagageiro, David se aproximou e logo abraçou meu pai.
— Santiago, meu amigo, é um prazer recebê-lo aqui com sua família – David saudou-o.
— Obrigado, parceiro. Estamos felizes por nos receber. – Meu pai abraçou David como quem abraça um irmão.
— Sejam bem-vindas, senhora Doralis, Rosa Maria – ele disse, depois de abraçar meu pai.
Fiquei um pouco constrangida pela reação amistosa do David, pois eu sempre ouvira dizer que os americanos eram frios e não gostavam de abraçar nem de beijar o rosto das pessoas que mal ou pouco conheciam. Apenas estendi minha mão para cumprimentar o dono da casa. Já o havia visto de perto quando eu ainda era criança, mas não lembrava direito de suas feições vistas pessoalmente. David era um homem muito bonito, como nas fotos, o típico americano de cabelos quase loiros e de olhos azuis.
Já estava tudo preparado para a nossa chegada: haviam sido reservados dois quartos na casa, um para mim e outro para meus pais. Minha mãe ficou totalmente entregue à situação desde os primeiros momentos. Acho que, no fim, ela era a mais atormentada por tudo o que havíamos passado, por tudo o que havíamos perdido em nosso antigo país, onde famílias foram empobrecidas e separadas por uma política desumana. Logo ela estava no comando da cozinha, preparava as refeições e arrumava a casa do David. Ela realmente queria agradar o anfitrião que tão gentilmente nos abrigava.
Os primeiros dias foram os mais estranhos para mim. No começo não havia muito o que fazer, a não ser caminhar pela praia e visitar alguns pontos da cidade, mas uns cinco dias depois da nossa chegada o David conseguiu para minha mãe uma vaga de cozinheira na casa de uns veranistas. Seria só por alguns dias, enquanto eles estivessem na cidade, e então eu passei a auxiliá-la no serviço. Além de cozinhar, minha mãe e eu passamos também a fazer a limpeza da casa, assim conseguimos ganhar um pouco mais de dinheiro.
Meu pai, naqueles primeiros dias, fez alguns serviços de jardinagem. Era o que ele mais amava fazer, afinal nossa antiga empresa havia sido de paisagismo. Mas era na Califórnia, do outro lado do país, onde estavam os amigos latinos do David, que poderiam nos ajudar a nos estabelecermos de maneira definitiva.
***
Na primeira vez em que entrei em um supermercado americano me senti digna novamente. Parecia que eu havia entrado em outro mundo, um mundo melhor e muito diferente do de outrora, onde eu havia vivido. Nunca imaginei que eu me emocionaria só pelo fato de poder comprar comida e todas as coisas de que eu precisava por um preço justo. Parecia até que estava sonhando.
Eu passava pela fileira do chocolate e meus olhos se deliciaram com as caixas de bombom feito de cacau puro. Coloquei uma caixa no carrinho e passei pelas barras de chocolate branco. Quando minha mão tocou em uma delas, não pude conter minha emoção. Já fazia tantos meses que eu não sabia o que era comer um doce. Chorei bastante enquanto contemplava a barra de chocolate em minhas mãos. Lembranças da minha doce infância me vieram à mente. Enfim, depois de tanto tempo, eu poderia comprar aquele doce novamente e me sentir um ser humano digno.
***
Ser auxiliar de cozinha e faxina, embora fora algo fora dos meus sonhos, era um trabalho digno com o qual consegui juntar um bom dinheiro, que era necessário, especialmente naquele primeiro momento.
Ocean City era uma cidade aconchegante e pacata. No verão, ficava cheia de turistas vindos de todas as partes.
Evitei conversar com o David, pelo menos nos primeiros dias. Apenas meu pai tinha longas conversas com ele. Entretanto, depois da segunda semana, notei que David me olhava de um modo diferente. Parecia haver algo que ele quisesse me dizer, mas não tinha coragem. Eu fugia, sim, afinal eu era apenas uma garota de quase vinte anos em um país desconhecido, entre pessoas desconhecidas.
Minha mãe se tornou uma mulher ainda mais frustrada e estranha. Depois de alguns dias da nossa estada em Ocean City, ela parecia querer me jogar nos braços do David. Era o desespero, o medo de algum dia ter que voltar ao pesadelo em que vivíamos em nosso país de origem. Mas me jogar nos braços de um homem pelo qual eu não tinha o menor interesse amoroso não estava nos meus planos. Eu não poderia fazer isso, pois seria como me vender. Eu fugi do tormento pra ter uma vida digna. Algumas vizinhas em meu antigo país foram obrigadas a se vender por um dólar a hora para que seus filhos não morressem de fome.
Lá estava eu, em um mundo estranho, vivendo uma situação que aparentemente seria a minha salvação.
***
Minha mãe e eu acordávamos às seis da manhã e às sete seguíamos para o trabalho. Mas naquele dia fui surpreendida por uma dor de cabeça atípica que me deteve na cama por mais algumas horas.
O relógio marcava nove da manhã quando a dor passou e enfim me levantei. Tomei um banho, me arrumei e segui para a cozinha a fim de preparar algo para comer. Meu estômago já doía de fome, eu não deveria ter passado da hora de me alimentar.
Desci as escadas depressa. Não via a hora de chegar à cozinha e preparar minhas panquecas preferidas, típicas do meu país, as cachapas, feitas de farinha de milho.
A casa parecia estar vazia, não havia ouvido nenhum barulho até aquele momento. Peguei a farinha de milho, o açúcar, a água, a tigela e a panela. De repente ouvi passos na escada. Conforme o som se aproximava da cozinha, olhei para trás. Então pude ver o David entrar.
— Bom dia, senhorita Rosa Maria – ele me disse, indo em direção à geladeira. David pegou o leite para preparar seus sucrilhos.
— Bom dia. Pensei que não havia ninguém em casa.
— Meu horário na universidade mudou. Agora irei todas as tardes e em algumas noites.
— Entendo.
— E você, não deveria estar no trabalho com sua mãe? – Ele pareceu surpreso por me encontrar ali.
— Deveria, mas acordei com uma dor de cabeça muito forte. Precisei descansar mais um pouco.
— Já está melhor? Precisa de alguma coisa?
— Estou melhor sim. Já tomei um comprimidinho pra dor. Eu agradeço a sua preocupação. Acordei com fome e agora estou aqui, preparando minhas panquecas preferidas.
— Panquecas?
— Sim. Mas não são panquecas americanas – respondi.
— Não?
— São panquecas típicas do meu país, feitas com farinha de milho. Nós as chamamos de cachapas.
— Cachapas! Pelo nome, parecem ser boas.
— São uma delícia. Vai querer provar?
— Com certeza. Você está tão empolgada fazendo essas panquecas que me deu até vontade experimentá-las.
— Farei umas a mais para que prove. Depois de comer, vou seguir para o trabalho.
David sorriu para mim, mas não foi um sorriso qualquer. Ele parecia perceber algo em meu semblante, algo que o agradava.
Enquanto eu fazia as panquecas, conversamos sobre as comidas típicas da minha terra natal. Fiz alguns comentários sobre a culinária americana e sobre tudo do que eu mais havia gostado desde que havia chegado a Ocean City.
Foi naquele instante que eu comecei a enxergar o David de outra forma, não só como o homem mais velho que estava ajudando a minha família, mas também como um amigo verdadeiro.
Depois de prontas, eu recheei as panquecas com geleia e pasta de amendoim.
— É mesmo uma delícia essa panqueca de milho. Quero aprender a fazer – disse David, satisfeito. – Dia desses sua mãe fez um almoço delicioso. Há tempos eu não desfrutava de uma comidinha caseira como essas que vocês fazem. Eu estava almoçando em restaurantes ou comendo comida pronta e enlatados.
— Eu posso te passar a receita sim, mas é bem simples de fazer – respondi sorrindo, enquanto o observava degustar a panqueca.
— O jantar estava uma delícia, senhora Doralis. E essa sobremesa então, muito saborosa. Não sei o que será de mim depois vocês que forem embora. Já estou me acostumando a ter companhia e a todas essas comidas maravilhosas! – David exclamou, irradiando seu sorriso que me encantava a cada momento.
— Que bom que gostou do jantar, senhor David. É mesmo uma pena termos que ir para longe daqui.
— Sim, é uma pena.
— Mas a sobremesa quem fez foi a Rosa Maria – minha mãe fez questão de mencionar.
— E está uma delícia, Rosa Maria. Você tem as mãos de fada. Como se chama esse doce? É parecido com pudim. É típico de seu país, não? – David perguntou, enquanto se deliciava com o cardápio.
— Sim. É o quesillo, um tipo de pudim com ingredientes especiais. Fico feliz em ter agradado.
— Minha filha, está realmente muito bom – comentou meu pai, provando mais um pedaço do doce. – Está cozinhando melhor do que antes. É importante que você mantenha as tradições culinárias do nosso povo. Jamais poderemos virar as costas para as nossas origens latinas. Quem sabe um dia tudo melhora e assim possamos regressar ao nosso país.
— Melhorar? Eu já não tenho essa esperança diante de todas as notícias que são cada vez piores. A maioria das pessoas que conseguem chegar aqui nem pensam em voltar ao seu país de origem – comentei, muito desiludida. – Voltar pra quê, depois que já perdemos tudo?
— Seu pai tem razão, Rosa Maria – disse David, com os olhos brilhando. – Não temos certeza sobre o futuro, as coisas podem mudar. Por pior que seja a situação, e mesmo estando longe, eu creio que vocês não devem desistir de sua terra nem de seu povo.
— Senhor David, dessa vez tenho que concordar com a minha filha – interferiu minha mãe. – Fugimos de uma situação de morte. Vimos pessoas morrerem de fome nas ruas. Perdemos tudo. Qual seria o sentido de voltarmos àquele lugar se, aqui na América, mesmo uma pessoa indocumentada tem uma vida muito mais digna do que aquela que tínhamos?
— Eu entendo a sua dor, senhora Doralis, e sei de tudo que sofreram até chegarem aqui. Mas ainda assim acredito que precisam manter as origens e um laço com sua terra natal. Os mexicanos, e mesmos outros latinos, quando vêm pra cá, se mantêm conectados com seus costumes, com seu povo. Além de tudo, a esperança de um dia poder voltar e em condições melhores não pode ser perdida.
— Sim, David, eu tento convencer Doralis sobre isso, mas ela ainda resiste – comentou meu pai. – Apesar de tudo, sinto falta da minha terra e dos meus familiares, meus irmãos e primos que ficaram pra trás.
— Tudo ficou para trás, Santiago – respondeu minha mãe, com o semblante angustiado. – Eu também deixei familiares em nome da sobrevivência, muitos inclusive deixaram nosso país antes de mim. E agora, tudo que eu quero é não ter que voltar. – Ela aparentava um tom de protesto.
— Nenhum de nós quer voltar. Se chegamos aqui, é pela busca de uma vida melhor, com o mínimo de dignidade – eu disse.
— Já estão tendo dignidade – respondeu David. – E terão ainda mais o apoio dos meus amigos da Califórnia. O Juan e a Marieta são imigrantes mexicanos e entendem muito bem do que vocês estão passando. Eles conseguiram se legalizar, depois de várias dificuldades.
— Somos muito gratos pela sua ajuda, meu amigo – meu pai comentou.
— Não precisa me agradecer. Sou fiel aos meus amigos e às minhas promessas. Eu disse que te ajudaria a vir pra cá e assim o fiz. – David sorriu.
***
Algumas semanas se passaram desde que chegamos a Ocean City. Naquela noite, sonhei com o Endry e acordei no meio da madrugada angustiada e com a boca seca. Sentia muita sede, e não era raro isso acontecer. Naquela noite foi assim. Levantei-me devagar da cama e me aproximei da janela para ouvir mais de perto o barulho do mar. Um amor de verdade não desaparece do nosso coração rapidamente como que em um passe de mágica. Naquele momento, a realidade falava mais alto.
Meu antigo amor ainda me enviava mensagens pelo Facebook. Decidi não responder mais. Eu queria que ele me esquecesse de uma vez por todas. Durante aquele tempo, o Endry teve uma namorada na Argentina, mas, pelo que me contou, o relacionamento não deu certo. Então ele voltara a fazer contato comigo. As mensagens diziam que sua paixão por mim era o tormento de sua alma.
Não foi a primeira vez que tive sonhos angustiantes com o Endry, afinal isso havia acontecido muitas vezes. Mas na casa do David foi a primeira vez. Saí do quarto e desci à cozinha para saciar minha sede.
Eu estava de camisola, o hobby por cima. Estava quase tudo escuro, a casa era iluminada pelas luzes que vinham dos postes da rua. Depois que desci as escadas, segui pelo corredor que dava para a entrada da cozinha e, bem na porta, dei de cara com o David. Quase nos esbarramos. Ele estava de calção, com o hobby aberto por cima.
— Desculpe, senhor Jenkins. Fiquei com muita sede, por isso desci para tomar um copo d’água – me expliquei.
— Eu é que peço desculpas pelo hobby aberto. Não imaginei que a encontraria aqui nesse momento – ele disse, atando o nó da faixa que fechou o hobby.
— Imagine, não há problemas, eu nem reparei.
— Mas, por favor, não me chame de senhor, apenas David. E não precisa se desculpar. Também tenho sede durante a noite. Já tomei meu copo d’água. – Ele tentava me deixar mais à vontade.
— Com licença. – Fui até a geladeira e peguei a garrafa de água.
David permaneceu parado na porta da cozinha, me olhando, sorrindo. Meu coração acelerou. Bebi a água. Se não fosse por estar com muito sono, meu coração teria disparado ainda mais.
— Boa noite – eu disse, seguindo meu caminho. O quarto parecia estar mais longe.
— Rosa Maria! – David chamou por mim. Interrompi meus passos e me virei novamente em direção a ele.
— Sim – respondi, aflita.
— Você gostaria de passear na praia comigo amanhã?
Fiquei surpresa com o convite, que me deixou nervosa.
— Passear na praia? – balbuciei.
— Sim. Mas não nessa praia. Quero que você conheça a Praia da Pedra Verde. É linda, acredito que você vai gostar. Também tem bons restaurantes lá.
— Ah, claro que eu gostaria. Seria legal conhecer outra praia – respondi sem graça.
— Fico contente que tenha aceitado meu convite. – Ele sorriu.
— E eu agradeço a sua gentileza, David.
— Até amanhã então.
— Até amanhã. – Segui para o quarto.
Meus passos até o quarto eram ansiosos. Então eu havia aceitado um convite pra passear na praia no dia seguinte. Fiz de tudo para evitar esse tipo de aproximação durante tantos dias, mas foi como se não tivesse havido uma chance de evitar o inevitável. Eram tantos olhares, tantos sorrisos que David lançava em minha direção, que ficou claro o interesse dele por mim. Àquela altura eu já conhecia um pouco mais o seu jeito de homem solitário e encantado pela hóspede jovem e estrangeira. Eu era uma jovem de apenas vinte anos, mas não era mais criança; era uma adulta que começava a viver a experiência dos relacionamentos e as várias possibilidades de sentimentos que podemos ter por alguém. Nem sempre é amor, nem sempre é paixão, às vezes é só atração, às vezes é amizade, às vezes é carinho, outras vezes uma carência de afeto, a necessidade de uma companhia, de alguém por perto.
***
Eu estava em frente ao espelho, me arrumando para o passeio na praia. Confesso que naquele momento eu ainda não sabia ao certo porque havia aceitado o convite. Minha mãe entrou no quarto e começou a me interrogar, mostrando-se frenética. Quando contei pra onde e com quem eu iria, ela disse:
— Rosa Maria, muito me alegra saber que você decidiu se entender com o David. Ele é a nossa salvação definitiva. Se você se casar com ele na vigência do visto de turista, nosso futuro estará praticamente garantido aqui na América. Ele solicita o seu ajuste de status e receberá seu visto de esposa, depois terá direito ao Green Card, assim poderá nos ajudar a permanecer no país futuramente. Ainda estamos aqui legalmente. O ideal seria você se casar com ele dentro desses seis meses, e depois fica fácil provar que não veio para se casar, só pra passear.
— Mãe, acho que você não entendeu. É só um passeio na praia, justamente pra que eu esclareça que não tenho segundas intenções com ele. Não foi pra me vender que viemos pra cá – contestei, certamente decepcionando-a.
— Como assim, minha filha? Essa é a sua grande chance! Os americanos morrem de amores pelas latinas. Você não pode jogar fora uma oportunidade como essa. Rosa Maria, entenda, se não se casar antes do visto vencer, tudo será mais complicado.
— Chance? No meu entendimento, oportunidade é poder estudar, ser uma excelente profissional, conquistar uma carreira, me casar por amor, ter dignidade e não me vender, e não me casar por desespero. Não estou aqui pra me prostituir, mãe – eu disse de maneira incisiva, cabisbaixa e com os olhos lacrimejando de angústia.
— E quem está falando em se prostituir? Estou falando de você se casar com um homem bom, educado, que tem dinheiro, muito bem de vida e que pode te dar o direito de permanecer legalmente nesse país. Não venha me dizer que o David não é, além de tudo isso, um homem lindo, um homem elegante, tem status e profissão. – Ela tentava me convencer.
— Realmente o David é um homem muito bonito, elegante, tem dinheiro, mas a senhora esquece que, para eu me casar com ele, eu precisaria, antes de tudo, amá-lo, o que seria impossível nos poucos mais de vinte dias em que estamos aqui. – Tentei fazer com que ela me compreendesse, mas parecia inútil.
— Rosa Maria, não temos tempo a perder.
— Eu não quero me vender em troca de um pedaço de papel.
— Um pedaço de papel que vai te autorizar a permanecer legalmente nesse país e ter uma vida digna, Rosa Maria.
— Mãe, será que você não enxerga? O David é vinte e nove anos mais velho do que eu! Ele tem idade pra ser meu pai. Perto dele, eu sou apenas uma jovem de vinte anos de futuro incerto.
— Ele tem idade pra ser seu pai, mas ele não é seu pai. Não finja que não sabe que ele está muito interessado em você. O jeito como ele te olha diz tudo.
— Eu nunca imaginei que você, minha mãe, se transformaria em uma pessoa assim, tão transtornada, obcecada pelo medo de um dia sermos deportados. Mãe, eu também tenho medo de algum dia nos expulsarem daqui, mas esse medo não é maior do que a minha dignidade, do que a minha honra.
— Minha filha, me escuta, eu sei que você ainda é muito jovem, mas já é adulta e poderia muito bem fazer esse sacrifício pela sua mãe e pelo seu pai. Será que você não vê que corremos o risco de sermos pegos pela polícia e deportados de volta àquele inferno de país depois que nossos vistos vencerem? O David está interessado em você, e você poderia ao menos dar a ele uma chance para se conhecerem melhor.
— Esse sacrifício eu não estou disposta a fazer, mesmo que fosse um casamento de mentira.
— Quem sabe com o tempo você se apaixone por ele. Pelo o que eu conheço do David, acho difícil que ele se submeta a um casamento de mentira se esse casamento pode muito ser de verdade. Ele gosta de você.
— Eu tenho certeza de que o meu pai não concordaria com uma barbaridade dessas.
— Rosa Maria, acorde. Não caia na ilusão do amor romântico, paixões só servem pra nos fazer sofrer. Falta de dinheiro destrói qualquer amor, destrói a nossa vida. Eu sei que você ainda ama aquele rapaz, o Endry, mas ele já é passado. Por favor, não diga ao David que você não tem o menor interesse por ele, pelo menos não nesse momento, não nesse primeiro passeio. Encare como um passeio de amigos. Dê ao menos uma chance de se conhecerem. O que custa? – Com seu semblante de desespero, minha mãe lançou seus argumentos e suplicou-me que, naquele momento, eu fosse mais receptiva ao senhor David Jenkins.
Senti muita pena da minha mãe depois de ouvir suas palavras. Aquela pobre mulher, cujos olhos irradiavam desilusão, implorou pra que eu considerasse seus conselhos. A mera possibilidade de ter que voltar ao país que ela chamou de inferno lhe deixava transtornada. Na verdade, estávamos todos perturbados com essa futura possibilidade.
— Tudo bem, mãe, eu não vou dizer nada hoje, afinal é só um passeio na praia. Eu já vou então, ele deve estar me esperando na sala. – Aliviei, ao menos por aquele momento, o coração da minha mãe.
David me esperava na sala. Quando me viu descendo as escadas, lançou o sorriso mais lindo que eu havia contemplado até aquele momento. Seus olhos me diziam existir um prazer por estar em minha companhia. E então eu não pude deixar de retribuir seu gesto e sorri também.
Talvez aquele instante fosse mesmo de sorte. E se eu ouvisse os conselhos de minha mãe e desse ao menos uma chance ao David? Uma chance para que ele me conhecesse melhor, uma chance pra que eu o conhecesse melhor. Nos últimos dias ele havia se mostrado tão gentil elogiando minha comida, minha cultura, nos dando muito apoio para continuarmos nossa luta pela dignidade.
E se o amor romântico fosse mesmo pura ilusão e o mais importante fosse a amizade, o carinho e a gratidão? E se aquela fosse realmente a minha grande e única oportunidade de garantir um futuro digno para mim e para os meus pais? Todas essas dúvidas assombraram meus pensamentos a partir de então.
Sim, o Endry já era passado, um passado doloroso, mas ao mesmo tempo tão cheio de amor e paixão. Mas só podemos viver o presente, e o meu presente naquele momento era o passeio na praia com o David.
***
Entrei no carro com meu coração aflito. Tudo aquilo era, de longe, o oposto do que eu havia desejado para minha vida. Mas aos poucos a brisa marinha de Ocean City tocou meu rosto mais uma vez depois de atravessar as janelas do automóvel. David ligou o rádio do carro. Foi quando começou a tocar a música “Romance Rosa”, do cantor Luis Guerra. Essa música tinha tudo a ver com a ocasião, pois a melodia da canção fazia-me recordar o ambiente de sol, mar, frescor, uma praia deserta, águas cristalinas.
— Essa é uma das minhas músicas preferidas. Eu sou um fiel amante das músicas hispânicas – David comentou.
Eu não disse nada, apenas sorri. Permaneci em silêncio durante quase todo o trajeto. Eu estava nervosa, senti que não conseguiria deixar tão claro em palavras que eu não poderia corresponder às intenções do David. Mas, apesar de tudo, ele era sim um verdadeiro cavalheiro, e estava disposto a ajudar a mim e a meus pais.
Havia algo em Ocean City que me inspirava paz. Aquele clima de praia era pura calmaria. Assim que chegamos, saí logo do carro. Respirei fundo a brisa daquele mar do qual nunca me esqueço.
— Chegamos. Rosa Maria, essa é a Praia da Pedra Verde – ele me disse, contente.
— Pedra Verde? É linda – exclamei.
— Podemos caminhar um pouco à beira-mar até o pôr do sol e depois jantamos. Os restaurantes aqui são ótimos.
— Eu não tenho dúvidas. Tudo em Ocean City tem sido incrível – afirmei.
Descemos até a areia e respirei fundo mais uma vez quando senti as ondas da orla molharem meus pés. Era tão bom contemplar o horizonte azul. O sentimento de ser livre é sempre arrebatador.
— Obrigada, David, pelo convite e por me trazer até aqui. – Eu quis demonstrar gratidão.
— Não precisa me agradecer. Sempre faço questão de ter por perto as pessoas boas de quem eu gosto. Sempre tive muitos amigos latinoamericanos e seu pai é um deles. Quando me pediu ajuda pra se refugiar aqui, aceitei prontamente sem pensar duas vezes – ele confessou, enquanto contemplava o horizonte.
— Sim. Essa é a nossa sorte, ter um amigo que realmente se importa e se sacrifica por nós. Os outros fugiram, não quiseram nos ajudar.
Começamos a caminhar à beira-mar enquanto conversávamos. A orla era extensa. Depois de alguns minutos eu já me sentia mais à vontade para falar.
— Seu pai te disse que eu consegui um apartamento e trabalhos informais pra vocês em Santa Ana? – ele me perguntou.
— Não. Ele ainda não me disse nada sobre isso. Santa Ana, na Califórnia? É muito longe.
— Sim, é bem longe daqui. Como eu havia dito desde o início, amigos meus de lá vão ajudar sua família. A maior parte das pessoas que eu conheço e que podem ajudar vocês vive lá. Eu morei em Santa Ana por muitos anos. Tenho parentes que vivem lá.
— Entendo. Presumo que tenha se mudado pra cá por motivos de trabalho.
— Também. Mas vocês podem ficar tranquilos, porque meus amigos Juan e Marieta vão recebê-los com todo o carinho.
— Juan e Marieta? De onde eles são?
— Eles são mexicanos, da capital, Cidade do México. Já estão no país há mais de dez anos.
— A situação deles é legal?
— Sim. Eles estão legalizados, têm até Green Card. Também vieram pra cá em busca de uma vida melhor, como você e seus pais – David me explicou.
— David, eu não tenho palavras para agradecer tudo o que você está fazendo pela minha família. Obrigada mais uma vez.
Neste momento, interrompemos a caminhada por uns instantes e ficamos frente a frente.
— Rosa Maria, eu sei que as coisas estão muito ruins em seu país, sei que você e sua família são praticamente refugiados aqui, tenho acompanhado as notícias na internet – ele disse, me encarando com olhar profundo, preocupado.
— Sim. Meus pais e eu perdemos tudo, nossa casa, nossa empresa, nossa dignidade. E eu perdi o rapaz que eu tanto amava. Ele foi embora para a Argentina depois que a mãe dele faleceu por falta de atendimento no hospital, que está praticamente abandonado, sem medicamentos, sem recursos. É uma realidade cruel e desumana.
— É mesmo muito triste essa situação. Bem, quanto ao rapaz que você ama, pode voltar a encontrá-lo algum dia – David cogitou, como se quisesse ouvir de mim alguma confissão.
— Acho pouco provável que eu volte a vê-lo. Ele namora outras mulheres. Penso que foi mesmo o fim.
— Entendo. Vidas destruídas, amores perdidos, famílias separadas pela insensatez e ganância dos governantes... Mas você pode encontrar um novo amor. Você é livre pra amar de novo. – Seus olhos estavam fixos no mar.
— Sabe, por mais que eu sofra pelo Endry, essas coisas de paixão e amor não me importam tanto agora. Meu sonho mesmo é continuar meus estudos, ter uma carreira, me realizar como ser humano.
— Você está certa por um lado, mas, vendo de outra forma, mesmo debaixo da maior tempestade, é difícil impedir a paixão de acontecer, é difícil impedir a paixão de nascer.
— Pode ser... Mas e você? Depois que ficou viúvo, nunca mais se casou, nunca se interessou por ninguém? E seus filhos, por que foram embora daqui? – perguntei, curiosa.
— Não, eu nunca mais me casei depois da morte da minha esposa Trisha. Nos conhecemos no final da adolescência. Me casei aos vinte, e dez anos depois ela veio a falecer. Depois disso, eu tive sim vários relacionamentos, alguns curtos, outros que duraram mais tempo. Minhas namoradas eram mulheres maravilhosas, mas nenhuma delas despertou em mim a vontade de me casar de novo e construir uma família. Meus filhos Jenna e Jacob tinham apenas nove anos quando minha esposa faleceu.
— Seus filhos são gêmeos?
— Sim, são gêmeos.
— Deve ter sido difícil cuidar de duas crianças ao mesmo tempo.
— Foi uma experiência única ao lado da mulher que eu tanto amei. Hoje meus filhos têm vinte e sete anos, já são casados há mais de quatro, moram no Canadá. Além disso, eu tenho netinhos, o Josh e a Hellen.
— Que incrível! Então você já é avô, um jovem avô?
— Sim, sou um “jovem avô”, e amo muito os meus netos. Sinto saudade.
— Família grande. Pena que estejam longe. Se bem que o Canadá é aqui pertinho.
— Então, como eu disse, depois que minha esposa partiu desta vida, tive algumas namoradas, mas ainda não descobri a pessoa certa pra se casar comigo, por enquanto. Pode ser que eu até já a conheça e ainda não saiba que é ela, e ela não saiba que sou eu. – Nesse instante, David suspirou.
— É, poder ser isso. Mas como eu já disse, você ainda é um vovô jovem, tem só quarenta e oito anos e muito tempo pra ser feliz.
— Talvez.
— Sabe, eu não queria ter que viver fugindo como se eu fosse uma criminosa. Mas vou trabalhar bastante pra pagar um advogado e entrar com o pedido de asilo político. Sei que pode ser negado, mas essa pode ser minha única chance. Agradeço a sua ajuda. Como eu também disse antes, várias pessoas que se diziam nossas amigas se recusaram a nos ajudar, se recusaram a nos receber aqui. Não quiseram nos acolher. – Paramos a caminhada e nos olhamos fixamente.
— Gosto de ajudar meus amigos de verdade – ele disse de um jeito carinhoso.
— Sim, eu sei, e já fez demais por nós. Seremos eternamente gratos.
— Você é uma mulher de coragem, Rosa Maria. Faço tudo de coração e não me arrependo.
Voltamos a caminhar e eu continuei comentando algumas coisas:
— Algum tempo antes de deixar meu país, eu me deparei com meus vizinhos comendo carne de cachorro para não morrerem de fome. Foi a cena mais chocante que havia visto até então. A que ponto chegamos! Vi também pessoas comprando carne podre pra comer porque não tinham alternativa.
— Que coisa horrível! Eu sinto muito que isso seja uma realidade. Acompanho as notícias na TV e internet. Os rumos que as coisas estão tomando são mesmo assustadores. Como resultado disso, temos o fenômeno da imigração ilegal em massa, centenas de pessoas tentando entrar aqui neste país pelos meios mais diversos.
— Sabe, na primeira vez que entrei no supermercado aqui em Ocean City, chorei quando segurei em minhas mãos o chocolate que há tempos eu não comia. Era o doce da minha infância, dos tempos em que fui feliz. Eu nunca imaginei que segurar um chocolate na mão pudesse me abalar tanto emocionalmente. – Encerrei minhas palavras desabando em lágrimas. Eu não conseguia parar de chorar, afinal relembrar os momentos ruins é como vivê-los de novo.
O David me envolveu em seus braços carinhosos, e esse foi o abraço mais tenro que recebi naqueles momentos de angústia.
— Chore, Rosa Maria, coloque pra fora toda a sua dor – ele disse, enquanto me abraçava.
Depois de me abraçar, o David segurou em minha mão esquerda e fez carinho nela. Foi a primeira vez que eu senti seu afeto de maneira única, especial. Naquela noite jantamos juntos, conversamos mais e eu descobri um homem de nobre coração. Ele sorriu pra mim o tempo todo, e com delicadeza enxugou as minhas lágrimas.
Eram por volta das nove horas quando chegamos em casa. Entramos e tivemos uma conversa na sala. Ao que tudo indicava, meus pais já estavam dormindo.
— Obrigada pelo passeio, pelo jantar, pela conversa. Eu me senti relaxada, pareceu até que o mundo estava em paz. Aquela praia é linda. A brisa tocando meu rosto e a areia que senti nos meus pés transmitem calma – comentei, sorrindo de modo singelo.
— Então precisamos fazer isso mais vezes. Rosa Maria, eu adorei sua companhia. Foi muito bom te conhecer melhor.
— Eu também gostei muito. Agora eu vou subir pro quarto, estou caindo de sono.
— Também estou cansado. Antes vou passar na cozinha e tomar um copo d’água. Boa noite. – Em seguida beijou minha mão direita.
— Boa noite – respondi, enquanto ele beijava minha mão.
Então virei as costas e fui para o meu quarto, com minhas pernas quase cambaleantes de nervosismo e o coração acelerado por ter minha mão beijada pelo David.
— Rosa Maria – David me chamou meu nome depois de adentrar meu quarto, que estava com a porta aberta.
— David. – Olhei surpresa para ele, que interrompeu minha leitura. Eu estava sentada na poltrona perto da janela.
— Me acompanha em uma partida de xadrez? Seu pai já foi pra cama. Pensei que poderia contar com você para uma partida – ele me convidou.
— Xadrez?
— Sim. Meu jogo preferido – ele disse.
— Ah, estou meio enferrujada. Faz tempo que eu não jogo – respondi, tentando evitar, mas ciente de que não poderia.
— Vem comigo – ele pediu mais uma vez.
— Tudo bem, você venceu.
A mesa com o tabuleiro de xadrez ficava em um cantinho acolhedor da sala de estar, perto das estantes de livros e da poltrona onde David costumava relaxar e fazer suas leituras.
— Qual é sua peça preferida? – perguntei, depois que já estávamos sentados à mesa, diante do tabuleiro.
— O rei.
— Uau! Combina com você.
— Tem alguma que é sua preferida?
— Na verdade não. Como eu disse, faz muito tempo mesmo que eu não jogo, estou super enferrujada. Não lembro nem como começa.
— Vamos recapitular então. Quero sua companhia para futuras partidas.
— Ok, vamos recapitular – concordei, com certa empolgação.
— Vamos começar pela torre. A torre se movimenta para frente e para trás, para a direita e para a esquerda.
— Quantas casas eu quiser?
— Sim, quantas casas você quiser. O que você não pode fazer é pular qualquer outra peça.
— Certo.
— Agora é a vez do bispo. O bispo faz seu movimento na diagonal, e deve ser mantido sempre nas casas de cor igual à que ele se encontrava no início da partida. Ele também vai para frente e para trás.
— Quantas casas eu quiser?
— Exato. E, assim como a torre, não pode pular nenhuma outra peça.
— Entendi.
— O cavalo, por sua vez, tem um movimento em forma da letra L, e se movimenta duas casas para frente ou para trás; em seguida, uma casa para a direita ou para a esquerda, ou duas casas para a direita ou para a esquerda, e em seguida uma casa para frente ou para trás.
— Pode pular outras peças?
— Dessa vez sim, pois o cavalo é a única peça de xadrez que pode pular outras peças.
— Interessante.
— A rrainha, também chamada de dama, não pode pular nenhuma outra peça, embora seja a mais poderosa de todas as peças, pois ela pode se movimentar para frente, para trás, para a direita, para a esquerda, em diagonal, quantas casas quiser.
— Uau! Acho que minha peça preferida é a rainha.
— E com razão. Já o rei pode se movimentar somente uma casa em qualquer direção. E tem um detalhe: o rei nunca pode se movimentar para uma casa que esteja sob ataque, nem mesmo capturar uma peça que esteja defendida por uma peça adversária. Há ainda algumas situações especiais em que o rei pode andar duas casas.
— Legal.
— E por fim temos o peão, que só se movimenta para frente.
— Então é a única peça que não pode se mover para trás.
— Correto. No primeiro lance de cada peão, ele pode avançar uma ou duas casas. Do segundo lance em diante, pode se mover apenas uma casa.
— Acho que consegui reascender a memória. Então vamos começar esse jogo. – Eu sorri e iniciei a partida.
***
Era um fim de tarde quando meu pai entrou apressado em meu quarto. Ele estava ofegante para me dizer algo.
— Minha filha! – ele exclamou com euforia.
— Pai. O que foi? Aconteceu alguma coisa?
— Sua mãe me contou tudo que tem se passado por aqui. E eu estou do seu lado, filha. Você não tem que se casar com ninguém só pra ter um visto de esposa ou o Green Card. Não vou permitir que sua mãe a convença de se vender, Rosa Maria. Não foi pra obrigar minha filha a se casar com quem não ama que fugimos de nosso país. Se escolhi vir pra cá, foi pra fugir da fome e da miséria.
— Obrigada, pai. Ainda bem que você me entende. A mamãe quer que eu sacrifique meus sentimentos pra tentar nos salvar. Mas meus sonhos são outros. Eu quero ser livre de verdade. Eu quero estudar, ter uma carreira, viver legalmente aqui nesse país. Não quero me casar com alguém pra esse alguém resolver os meus problemas. Se algum dia eu me casar, tem que ser por amor.
Eu e ele nos abraçamos. Pude ver nos olhos do meu pai que ele se compadecia da minha situação. Fiz de tudo pra não me sentir culpada pelo destino da minha família.
***
Aquela seria a minha última noite em Ocean City. Meus pais e eu nos preparamos para partir e seguir o rumo que nos levaria ao futuro, um futuro incerto, cheio de obstáculos e dificuldades. Ao menos teríamos o apoio de pessoas boas que nos ajudariam. Apesar de tudo, meu pai permanecia tranquilo. Para ele, só o fato de termos conseguido entrar na América já era um alívio, o alívio para a alma de um homem que perdeu tudo que tinha em um país vítima de um governo corrupto e instável, que pouco se importava se seu povo morria de fome.
Já minha mãe guardava em seu olhar a fúria e o medo de que tudo pudesse dar errado. O pior é que, na visão dela, eu passei a ser a culpada por tudo de ruim que nos viesse a acontecer dali em diante. Doralis me culpava pelo nosso possível futuro terrível. Mas eu jamais me venderia por um documento. Ainda no início da adolescência, eu sonhava em viver um amor do tipo conto de fadas, do tipo dos romances dos filmes de Hollywood. Afinal, minha mãe me ensinou assim, a esperar pelo homem certo e a hora certa. Entretanto, já adulta, depois de tudo que passei, enxerguei que esse amor de cinema não passava de uma utopia desejada pela nossa mente, que é tão frágil.
Só que entre não viver esse amor utópico e me vender por um documento eu preferi ficar sozinha. Minha mãe não me entendia; em sua visão, eu estava perdendo a maior chance da minha vida. No fundo, eu só queria dignidade e não ter que fugir pra outro país pra implorar por misericórdia aos estranhos. Mas ali estávamos, nos preparando para implorar misericórdia ao governo da América.
***
Aquela última noite na bela Ocean City não seria uma noite qualquer. Uns três dias antes, David havia me abordado na cozinha enquanto eu tomava meu copo d’água. Ele me convidou para acompanhá-lo à festa de casamento de um amigo. A cozinha era o lugar onde nos encontrávamos frequentemente, mas sempre por acaso.
— Rosa Maria – ele chamou meu nome. Pronunciava-o sempre em tom de voz suave.
— David. – Olhei pra ele, que me lançou mais de seus sorrisos singulares.
— Em três dias vai acontecer a festa de casamento de um amigo meu do trabalho. Quero saber se você gostaria de me acompanhar nessa noite. O evento vai acontecer na casa dele mesmo, de frente para o mar, na Praia da Pedra Verde. Na verdade, ele já se casou no cartório, mas só agora fará a festa. O que me diz? – Ele me fez o convite com os olhos brilhando, olhos esses que desejavam o meu sim.
— Confesso que estou surpresa com o seu convite. Será minha última noite em Ocean City – eu disse.
— Sim, será sua última noite aqui. Também por isso estou fazendo o convite, já que será nosso passeio de despedida. Além do mais, não quero ir sozinho. Ainda não encontrei uma companhia tão agradável quanto a sua. – Os olhos dele brilhavam ainda mais, e meu coração se rasgava de emoção.
— Fico lisonjeada com suas palavras. Mas eu nem tenho um vestido descente pra usar na festa. Estou juntando cada centavo das faxinas para o porvir – respondi.
— Entendo. Quanto a isso, não precisa se preocupar. Uma ex-colega de trabalho é dona de uma loja de roupas no centro da cidade. Eu sempre compro lá. Você pode passar na loja e escolher o vestido que quiser. Eu deixo autorizado. – Ele demonstrou mais uma vez sua gentileza.
— Imagina, David. Eu não quero ser um incômodo pra você.
— Não é incômodo nenhum. Será meu presente pra você. Além do mais, somos amigos, certo? – Ele praticamente exigiu que eu fosse até a loja e escolhesse o vestido.
Pensei por alguns segundos. Os olhos do David brilhavam confiantes de que minha resposta seria positiva. Seria minha última noite. Não havia motivos pra não aceitar o convite.
— Certo. Amanhã vou à loja escolher o vestido. Prometo não comprar nada muito caro – garanti.
— Escolha o que quiser, eu já disse. Será um presente.
Quando eu o via tão sincero e amoroso como naquele momento, fragmentos de uma espécie de remorso invadiam meu coração. Remorso por eu não ser capaz de corresponder às suas intenções. Confesso que o David era um homem muito bonito, que estava me cativando com sua gentileza e carinho, mas isso não era suficiente pra que eu ficasse com ele. Meu sentimento por ele era de amizade sincera, admiração, mas ainda não era amor, não era o sentimento necessário para ficarmos juntos.
***
Fiquei ansiosa. Quando o momento chegou, senti o aperto no peito por causa da despedida. Eu já estava me acostumando a ter o David por perto. No fim das contas, seu carinho era meu maior consolo naqueles tempos difíceis.
A casa do San, amigo do David, era enorme. Tinha dois andares e umas sacadas de frente para o mar, o mar de Ocean City que me inspirava calma.
Eu usei um vestido cor creme, justo no corpo, com mangas até o cotovelo e a barra na altura dos joelhos. O David estava lindo vestido em seu terno azul-marinho, que combinava perfeitamente com a cor dos seus olhos.
A casa estava enfeitada com flores por todos os lados. Era o momento de o casal comemorar a nova fase de sua vida. David me apresentou aos anfitriões da noite, que me disseram para ficar à vontade e aproveitar a festa.
Na sala enorme havia mesas para os convidados jantarem. Em um canto, um buffet com comidas variadas; mais à frente havia sido montado um espaço para a música ao vivo, e a banda que tocava era da capital. O vocalista era dono de uma voz cativante, daquelas que invadia nosso ouvido e penetrava em nossa mente, nos fazendo viajar nas ideias com a letra da canção.
— Está gostando da festa? – David me perguntou, depois de colocar sua mão sobre a minha. Estávamos sentados à mesa assistindo à banda tocar.
Começou uma sequência de músicas românticas dos anos 90. Quanto senti a mão do David sobre a minha, meu coração acelerou imediatamente como nunca antes. Era estranho ser admirada daquela forma por um homem quase trinta anos mais velho do que eu, mas com uma alma jovem e cheia de amor.
Ele sorriu mais uma vez. Outra música iniciou, “All By Myself”. A voz do cantor traduziu com perfeição meus sentimentos naquele instante. Antes que eu pudesse responder, o David fez sinal com a cabeça e me conduziu ao centro do salão. Era nossa dança de despedida, ao tom da melodia que falava da minha solidão.
Foi inesquecível. No primeiro minuto de dança, não pude conter minha emoção, uma lágrima caiu dos meus olhos. Naquele instante eu tinha tudo e ao mesmo tempo não tinha nada. David enxugou meu rosto com sua mão delicada, demonstrando mais uma vez seus sentimentos por mim.
Depois que a música terminou, David me segurou pela mão, sorriu e me conduziu até a sacada de frente para o mar. A brisa fresca e o barulho das águas fizeram-me lembrar da saudade que logo invadiria meu coração. A sensação de ganhar e perder ao mesmo tempo só não era pior do que a sensação de perder para sempre.
— Que noite linda, que vista incrível! Minha cidade ficava um pouco longe da praia. Antes da grande crise, meus pais me levavam pra nadar no mar de vez em quando, mas, depois que tudo ruiu, não fui mais à praia. Voltei a ver o mar somente aqui em Ocean City – eu disse, contemplando o mar.
— Então aqui é um lugar especial para você – ele confirmou, olhando para o mar.
— Sim, muito. Mas terei que partir amanhã – relembrei-lhe.
— Você vai gostar de morar em Santa Ana. Meus amigos e uns primos estão lá. Prometo visitá-la. É melhor mesmo que você e seus pais se estabeleçam em um lugar definitivo, para reconstruir a vida.
—Sim, é melhor nos estabelecermos em lugar seguro. – Me virei na direção dele e ele também se virou. Ficamos frente a frente.
— David, sou grata por tudo que tem feito por mim e pelos meus pais. Eu gosto muito de você, saiba disso. Vou sentir sua falta.
— Rosa Maria, pode parecer estranho, mas você me cativou desde o início. Você é linda de todas as maneiras, tem um coração frágil e machucado pela dor, mas eu estou aqui pra te proteger – David desabafou, fazendo meu coração bater ainda mais forte.
— E eu sou muito grata pelo seu carinho.
— Nessa noite de despedida eu tenho um pedido especial a fazer – David me disse, com os olhos lacrimejando.
— Um pedido? – Meu coração acelerado parecia que explodiria, a emoção não terminava.
— Sim. — Ele me olhava como se estivesse hipnotizado.
— O que deseja? – perguntei, sentindo meu corpo inteiro se arrepiar.
— Isso – ele respondeu, aproximando ainda mais seu rosto do meu. Era o beijo da despedida.
E foi assim que nos beijamos pela primeira vez. Era o desejo verdadeiro de deixar guardado para sempre na lembrança um momento especial. Mais uma vez chorei e mais uma vez ele me abraçou. Depois do abraço, que me fazia sentir segura e protegida, David segurou minha mão esquerda como de costume. Notei que esse era um jeitinho particular que ele tinha de demonstrar carinho. O engraçado é acontecia sem que eu percebesse. Quando me dava conta, sua mão já estava ali, acariciando a minha.
A chegada à cidade de Santa Ana, na Califórnia, foi tranquila. Pegamos um voo até Las Vegas e o restante do trajeto fizemos de carro. Os amigos Marieta e Juan nos receberam com toda a amabilidade possível e nos levaram ao apartamento que conseguimos alugar direto com a Adelita, uma senhora mexicana muito amável, conhecida da Marieta. O apartamento era simples, localizado em um bairro humilde, mas era o bastante para nos abrigar com dignidade.
Minha mãe e eu passamos a fazer faxinas em quatro casas, quase todos os dias, e meu pai iniciou seu trabalho como ajudante de obras. Foi o que David conseguiu com alguns contatos. Meu pobre pai não entendia nada de construção civil, mas passou a aprender muita coisa. Eu via muito nos noticiários que os refugiados do meu país passaram a trabalhar com todo tipo de coisa nos países para os quais imigraram. Era advogado virando vendedor de sorvete, médico que passou a vender banana na feira... Nada de errado com esses trabalhos, mas as circunstâncias era o que nos afligia, nos indignava.
Assim seguimos com nossas vidas, avaliando as possibilidades de entrarmos com o pedido de asilo político. O meu pai, sempre o mais tranquilo, preferia deixar as coisas como estavam até aquele momento, mas fato era que, sem a documentação legal, não progrediríamos lá. Meus desejos eram muito mais do que aquilo. Está certo, já tínhamos uma vida muito mais digna do que aquela que levávamos em meu país de origem, no entanto apenas aquilo não seria suficiente para sermos livres.
***
Conforme os meses passavam, recebíamos mais e mais notícias de que os pedidos de asilo político estavam sendo negados aos imigrantes refugiados do meu país. Meu pai preferiu não arriscar. Era melhor deixar tudo como estava do que perder o mínimo de dignidade que nos restava. Tanto sacrifício pra entrar na América não poderia ter sido em vão. Então eu percebia que meus planos de estudos e planos profissionais tão cedo não se tornariam realidade.
Naquele ano eu engordei uns oito quilos. A comida na América era muito barata, caros mesmo eram os tratamentos médicos, realmente uma fortuna.
***
Aquele havia sido mais um dia cansativo de trabalho. Tinha que ser assim para pagarmos o aluguel e economizar para processos futuros e pagamentos de atendimento médico. Nosso lema era guardar dinheiro. Depois do banho, ainda vestida em meu roupão, eu tinha costume de checar as redes sociais. Já fazia mais de seis meses que morávamos em Santa Ana, e uns dois meses antes eu havia recebido a notícia de que o David estava namorando uma mulher da idade dele, uma professora nova na universidade onde ele lecionava. Eu vi tudo no Facebook. Ele estava certo; o David tinha mesmo que seguir em frente e me esquecer. Confesso que senti aquele nó na garganta que vem quando sabemos que perdemos uma grande oportunidade, mas a razão às vezes fala mais alto do que a emoção.
Antes de sair do banheiro, depois que fiz meu login no Facebook, fui surpreendida com a notícia que verdadeiramente me machucou. Eu não esperava reagir daquela maneira quando aquilo acontecesse; pensei que já havia superado estar separada do Endry, meu primeiro grande amor. Mas minha reação revelou que eu ainda amava aquele rapaz, mesmo ele estando tão longe. O Endry havia se casado na Argentina e havia postado as fotos da cerimônia. Até mudou seu status de relacionamento para “casado”. Aquilo acabou comigo, arrebentou meu coração, um flashback invadiu a minha mente e me fez relembrar todos os momentos bons que eu havia vivido com ele.
Meu corpo não parava de tremer. Quanto mais eu passava as fotos, mais eu chorava. O telefone caiu da minha mão. A miséria e a política de um governo malvado me separaram do meu primeiro namorado e grande amor. Assim como o celular, eu caí de joelhos no chão frio do banheiro, de azulejo cinza, cor da minha alma naquele instante. Toda a dor ainda estava presa em meu coração. Minha desesperança era indescritível. Fiquei pensando em como teria sido meu futuro ao lado do Endry se a realidade fosse diferente e menos cruel.
Sem dó nem piedade, a dor no meu estômago dominou meu abdômen, então segurei minha barriga com as mãos. Como a porta do banheiro estava aberta, minha mãe passou pelo corredor e me viu jogada no chão.
— Rosa Maria, o que aconteceu, minha filha? Por que está chorando tanto? – Ela se agachou diante de mim.
— Mãe, o Endry – eu respondi, aos soluços.
— O que tem o Endry? – ela perguntou de novo.
— Ele se casou na Argentina.
— Então essa é a razão das suas lágrimas? Pois a culpa é toda sua. Foi escolher demais, ficou sozinha. Não quis o David, agora ele está namorando outra, e por fim perdeu pra sempre o Endry também. Aprende de uma vez, minha filha. Às vezes, na vida, temos que fazer o que é melhor para nós e não aquilo que queremos. – As palavras de minha mãe eram amargas.
— Não, eu não quero ouvir os seus sermões agora, mãe. Eu tenho pelo menos o direito de chorar. Me deixa sozinha.
Ela se retirou e eu continuei sentada no chão do banheiro com meus pensamentos.
***
Por vezes o David aparecia na cidade, em algumas ocasiões acompanhado da namorada, outras vezes vinha sozinho, visitar os amigos e também meu pai. Ele costumava passar lá em casa. Nesses momentos eu o evitava. Não nos falamos por algum tempo.
Eu preferi me manter o mais longe possível do David. Sentia aquele aperto no peito toda vez que nos víamos, mesmo de longe. A primeira vez que o vi com sua namorada também senti o clássico nó na garganta. Sim, às vezes eu temia que minha mãe tivesse razão. De repente a oportunidade acaba por causa de uma falsa idealização do amor.
Chegou a época do Natal, e lá era mesmo como nos filmes: a cidade estava toda colorida, as casas enfeitadas com luzes. Embora não nevasse em Santa Ana, o friozinho de quatro graus Celsius garantia o clima típico do inverno no hemisfério norte. Eu amava vestir aqueles casacos grandes, luvas e cachecol. Embora fosse mais raro, a temperatura chegava a três graus negativos.
Voltando de uma caminhada, eu havia refletido muito sobre os rumos que minha vida tomava. Parei em frente a uma casa grande, enfeitada com luzes coloridas por todos os lados. Havia até um boneco de neve no jardim, e parecia ser feito de um material muito bom, pois de longe era semelhante ao boneco feito mesmo de neve.
Lembrei-me da minha infância, dos tempos em que minha família e eu ainda podíamos nos reunir no meu país e comemorar o Natal com uma ceia farta de pratos típicos da nossa terra e o clássico peru no centro da mesa.
Depois de contemplar a cidade noturna, voltei para casa, deitei na cama e pensei sobre tudo o que havia acontecido naquele ano: minhas perdas, supostas oportunidades, coração partido... No dia seguinte haveria a ceia na casa dos nossos amigos Juan e Marieta.
Eu não tinha amizade com os americanos, primeiramente porque não queríamos expor nossa situação de imigrantes sem status. Nosso único amigo americano era mesmo o David. Na verdade, ele sempre foi, desde quando eu ainda era criança. Eu não conseguia entender por que ele era um homem tão sozinho. Mulheres interessantes e sozinhas não faltavam. Se bem que ele estava namorando. Mas pouco antes do Natal eu percebi que ele havia apagado das suas redes sociais as fotos que tinha com a tal namorada. Bom, mas isso também não me importava, era a vida dele.
Durante aqueles últimos meses, o David foi muito gentil com minha família, sempre aparecia na cidade pra nos visitar, pois gostava muito do meu pai. Até se ofereceu pra conseguir um advogado que nos orientasse na questão do pedido de asilo político. Mas meu pai não aceitou, pois tinha muito medo de que o consulado negasse nosso pedido e assim fôssemos deportados. Meu pai Santiago preferiu deixar as coisas como estavam.
***
Meus pais e eu seguimos para a casa do Juan e da Marieta para cearmos todos juntos. Eles eram nossos melhores amigos latinos. Era mesmo tão gostoso aquele clima de Natal. Para a ocasião, eu e minha mãe preparamos pratos especiais e vários temperos, comidas típicas da nossa terra. Eu fiz hallaca (folha de bananeira recheada com carnes, vegetais, farinha de milho) e mamãe preparou um asado negro (corte da parte traseira do boi, assado e banhado em um molho escuro feito de rapadura, vinho e ají doce, um prato que acompanha arroz e banana frita).
***
Quando chegamos à casa, me surpreendi com a mesa já toda posta e enfeitada. Tinha um pouco de tudo: comida americana, comida mexicana, doces e o peru no centro, coberto com a tampa da bandeja. A culinária mexicana é sortida e muito requintada. Naquela noite, a Marieta havia preparado romeritos, tortinhas com camarão, bacalhau Biscaia, o peru e salada de maçã.
Minha mãe e eu colocamos sobre a mesa as tigelas com as comidas que trouxemos. Abraçamos o Juan e a Marieta antes de começar a ceia. Éramos de certa forma uma só família.
Iniciamos a ceia quando alguém bateu à porta da sala. Juan levantou-se e abriu-a. Eu não podia imaginar quem fosse. Quando o David entrou, meu coração disparou como na primeira vez em que ele me beijou e me pediu pra ficar com ele. Não sei o que tinha aquele homem que me deixava assim. Ele estava tão lindo, vestindo um sobretudo marrom e com gel no cabelo. Entrou sorrindo, com uma sacola de presentes na mão.
Fiquei surpresa. Sequer imaginava que ele viria, pensei que estivesse no Canadá com os filhos.
— Achei que fosse passar o Natal no Canadá, com seus filhos – Juan comentou, depois de abraçá-lo.
— David, meu amigo, você veio. – Meu pai levantou-se da mesa, foi até ele e o abraçou também.
— Que surpresa, David. – Minha mãe o cumprimentou com um aperto de mão.
— Estamos todos surpresos com a sua presença, David – Marieta comentou, ainda sentada à mesa.
— Meus filhos foram passar o Natal na Europa. As famílias de suas esposas moram na França. Então decidi passar o Natal com os meus amigos. Quis fazer uma surpresa. Afinal, vocês também são minha família. Sem falar que tenho primos aqui na cidade. Passei o dia com eles e agora vim pra cá. Essa era a intenção: fazer surpresa – David se explicou.
Eu mantive certa distância. Fiquei um pouco constrangida. Era um caleidoscópio de ideias e emoções difícil de explicar. Seria impossível evitá-lo completamente e ele nem merecia, afinal foi sempre tão gentil, sempre tão amável. Eu sentia muito medo de magoá-lo.
David deixou a sacola de presentes no sofá e veio em minha direção.
— Feliz Natal, Rosa Maria – ele disse, me encarando, sem desviar o olhar.
— Feliz Natal, David – respondi, depois de me levantar da mesa e me pôr em sua direção.
Ele se aproximou mais de mim, demonstrando que queria me abraçar. E é claro que eu não poderia negar esse gesto de carinho. É algo curioso. Eu não era apaixonada por ele, mas em seus braços eu me sentia protegida. Depois do abraço, ele disse com voz serena:
— Eu trouxe presentes.
— Eu vi as sacolas – comentei.
— Mas o seu é especial. Está lá no carro. Depois da ceia eu entrego pra você – ele disse, com os olhos brilhando.
— Tudo bem – respondi, tímida.
Todos nos sentamos novamente e conversamos durante a ceia. O David nos contou coisas engraçadas que lhe aconteceram naquele ano na universidade.
***
Depois da ceia, levantei-me e fiquei um tempo na janela admirando a paisagem colorida do lado de fora, as casas todas enfeitadas, desde as mais simples até as mais caras. Foi quando o David levantou-se e veio ao meu encontro.
— Rosa Maria – ele chamou meu nome.
— Sim. – Me virei em sua direção.
Depois de muito tempo, enfim estávamos de novo frente a frente.
— Senti sua falta durante esses meses em que mal conversamos – ele comentou.
— Pois não deveria. Você tem namorada, ela tem que ser sua melhor companhia para conversar. Ela não veio dessa vez? – eu perguntei aflita e ao mesmo tempo curiosa.
— Eu e ela não estamos mais juntos. Pedi um tempo pra pensar – David me contou, seus olhos lacrimejando, como sempre quando estava emocionado.
— Pensar em quê? – perguntei, ainda sem entender.
— Pensar que eu não posso namorar uma mulher sendo apaixonado por outra.
— Outra?
— Sim, outra.
— Quem é a outra?
— É você.
Meu coração bateu mais forte do que nunca, minha ansiedade era tamanha que tropecei nas palavras, balbuciei. Ouvir que ele era apaixonado mexeu muito com as minhas emoções, com minhas concepções da realidade. Eu não esperava por uma declaração assim naquele instante.
— David, achei que você estivesse bem com ela – eu me demonstrei surpresa.
— Rosa Maria, basta uma palavra sua e eu termino de uma vez por todas qualquer vestígio ou esperança de reatar um relacionamento com ela. Eu sou muito apaixonado por você. Não consigo esquecer a noite em que você me beijou. Se o nosso relacionamento der certo, podemos nos casar. E olha, se recusarem seu visto, podemos ir embora pro Canadá. Você será minha esposa e poderemos ser felizes em qualquer lugar desse mundo – ele se declarou, arrebentando meu coração.
— Eu realmente estou surpresa com suas palavras. Mas não entendo. Existem tantas mulheres sozinhas, americanas lindas, inteligentes, donas de uma vida tranquila, normal e da sua idade. Eu sou apenas uma imigrante sem status, de futuro incerto, com apenas uma fagulha de esperança.
— Não fale assim. Rosa Maria, você é uma mulher determinada, que luta pela sua dignidade. Tem objetivos de estudar, ter uma carreira, um amor verdadeiro. Eu apoio você em tudo. Só o fato de você não ter aceitado ficar logo comigo já demonstra o quanto você é honrada e que não tem outros interesses.
— Se as coisas fossem tão simples assim... David, eu não tenho mais nada pra te dizer agora. Agradeço o seu carinho por mim, sei que você está sendo sincero, mas nesse momento eu ainda não estou preparada pra entrar em um relacionamento como esse – expliquei, já me sentindo sem saída.
— Qual é o seu medo? – Ele olhava compenetrado em minha face.
— Eu tenho os meus motivos.
— Não sente nada por mim?
— Sinto, eu sinto carinho por você, me sinto protegida quando você me abraça. Por você eu sinto apenas coisas boas – eu disse, respirando fundo.
— Então, está vendo? Temos chance de dar certo. Pelo menos pense na possibilidade de cultivarmos esse sentimento juntos.
— Tudo bem, eu prometo que vou pensar – respondi, denotando meu constrangimento.
— Já fico contente em ouvir isso. Agora vamos até o carro, quero entregar o seu presente. – David abriu um sorriso que me derrubou. Aquele homem tinha algo que me cativava; não era simplesmente paixão, aliás, nem sei se em algum momento houve paixão da minha parte, porque o que eu senti por ele era algo maior que isso.
***
Fomos para o lado de fora da casa. David tirou meu presente do banco de trás do carro. Era um pequeno aquário com um peixinho beta vermelho.
— Aqui está o seu presente – ele me disse, sorrindo enquanto segurava o presente nas mãos.
— É um peixinho! – eu exclamei surpresa.
— Sim. Ele vai te fazer companhia quando eu não estiver por perto. Já tem aqui o regulador térmico pro inverno. Agora está ligado na bateria, mas pode ligar na tomada quando chegar em casa. Esses dias estão frios.
— Muito obrigada. – Estalei um beijo no rosto dele.
Quando eu já estava com o pequeno aquário em minhas mãos, o David ficou mais perto de mim e, me encarando, disse:
— Rosa Maria, eu vou ficar na cidade até meados de janeiro. Meus primos vão dar uma festa na virada de ano. Gostaria de me acompanhar?
— Festa?
— Sim, festa de ano novo.
Pensei uns instantes e sem hesitar respondi:
— E por que eu não iria? Gosto de festas.
— Então combinado. Eu te pego dia trinta e um à noite em sua casa.
— Combinado.
— Mas antes podemos nos ver, não é mesmo?
— Sim, claro que podemos. – Sorri.
O David nos deu carona até em casa naquela noite. Ao se despedir, ele me abraçou e, sem que eu percebesse, depois daquele abraço de Natal, como nos velhos tempos, David segurou minha mão esquerda. Esse era seu gesto peculiar de fazer carinho sempre depois que me abraçava.
Coloquei o peixinho no meu quarto. O aquário ficou sobre a cômoda, perto do espelho. Coloquei seu nome de Estrelinha. A partir daquele momento, toda vez que eu via o peixinho, eu me lembrava do homem que surgiu em minha vida como um anjo.
A noite caiu com aquele friozinho típico que me fazia ter vontade de ficar debaixo do cobertor tomando um chocolate quente. Eu estava deitada na cama lendo um dos meus livros favoritos quando minha mãe bateu à porta e entrou no quarto. A senhora Doralis estava ansiosa, com olharzinho inquieto, mas ao mesmo tempo empolgada.
— Rosa Maria – ela chamou pelo meu nome, já bem próxima a mim.
— Mãe? – Eu não gostava muito quando ela entrava daquele jeito no meu quarto.
— Adivinha quem está lá na sala querendo falar com você? – Sorrindo, seu semblante reluzia esperança.
— A Marieta? – perguntei.
— Por que você acha que é a Marieta?
— Porque ela ficou de vir falar comigo sobre um trabalho em Los Angeles – respondi.
— Trabalho em Los Angeles? Esqueça isso e vá atrás do que realmente vale a pena, minha filha. É o David que está na sala te esperando. Acho até que ele quer te convidar pra sair, porque está todo arrumado. Eu não sei como você ainda não se jogou nos braços desse homem de uma vez por todas.
— Sério, mãe? É o David?
— Sério. É ele mesmo.
— Caramba! Estou toda desarrumada, sem maquiagem, sem nada. Por que ele não me ligou? – Me senti pega de surpresa.
— Eu falo pra ele que você está no banho e em meia hora você se arruma. Fique bem linda.
— Será? Tudo bem, mãe, obrigada. – Beijei o rosto dela.
Quarenta minutos depois eu estava arrumada e maquiada. Nunca gostei de aparecer em público sem pelo menos uma maquiagem básica. Apressei meus passos até a sala e lá estava ele, David Jenkins, me esperando, com seu sorriso cativante.
— David – chamei por ele antes que me lançasse seu sorriso.
— Oi.
— Estou surpresa com sua visita. Nem me ligou pra avisar que viria.
— É que eu também não sabia que eu faria essa visita. Passei aqui em frente e decidi subir pra te fazer um convite – ele me explicou.
— Tudo bem.
— Você gostaria de dar um passeio comigo pela cidade?
— Passeio? Pra onde a gente vai?
— Pensei em dar uma volta no shopping center, ver algumas lojas, livrarias e depois jantamos. O que acha?
— Eu acho ótimo. Faz tempo que eu não faço um passeio assim. Eu só vou colocar meu casaco, avisar minha mãe e a gente já pode ir.
— Que bom que você pode ir comigo. Eu nem avisei nada, você poderia até ter outro compromisso.
— Espera aqui que eu já volto.
— Espero.
Vesti meu sobretudo e seguimos para o passeio.
***
Fomos para Santa Maria Plaza Shopping Center. O lugar era enorme, repleto de lojas e três grandes livrarias. Decidimos entrar na Livraria Bendele. David, como professor de literatura e tradutor, amava aquele mundo dos livros.
— Meu sonho sempre foi abrir uma livraria – David me confidenciou, enquanto apreciávamos as obras nas prateleiras.
— E por que ainda não abriu? – perguntei.
— Os anos vão passando e a gente acaba deixando os sonhos pra depois – ele me respondeu, com seus olhinhos brilhando, demonstrando prazer por conta de minha companhia.
— Você ainda é jovem, David, pode começar agora a realizar esse sonho.
— Esse clima, cheiro, ambiente da livraria me fascinam. Amo estar nesse templo do saber. – Ele sorriu.
— Eu sinto algo parecido, uma magia que não tem como explicar. Gosto muito de folhear e saber mais sobre os autores dos livros.
— Eu também. Antes de analisar o texto, busco saber sobre a vida dos seus autores. Isso faz com que eu possa compreender mais a obra que eles escrevem, dá mais sentido aos temas e às minhas traduções. Preciso sempre saber qual mensagem o escritor quis passar em cada diálogo de cada personagem.
Nos aproximamos de uma prateleira onde havia vários objetos à venda, dentre eles peças de xadrez para enfeitar a estante.
— Uma peça de xadrez! – David exclamou surpreso. Seus olhos brilharam de fascínio ao ver o objeto; a peça prateada era um rei. David parecia uma criança que acabou de ver o brinquedo novo.
— Pela sua cara, você adora mesmo xadrez – comentei, depois de perceber que aquele era mesmo seu jogo preferido.
— Sim, desde menino. Como você bem sabe, pelo tempo em que morou em minha casa, esse é meu jogo favorito.
— Sim, não restam dúvidas.
— Acho que agora a gente pode ver a seção dos livros de ciências exatas. Desses eu sei que você gosta. – David falava no pé do meu ouvido, me olhava como se estivesse hipnotizado. Isso me deixava toda arrepiada, quase sem saber como agir ou o que fazer. Era o início de um sentimento verdadeiro.
Passando pelas prateleiras dos romances contemporâneos, avistei o livro “Se Nada Der Certo Até os Trinta, Você Se Casa Comigo?”.
— Olha só esse livro, “Se nada der certo até os 30, você se casa comigo?” – eu disse, me mostrando interessada pelo tema. Imediatamente li a sinopse.
— Nunca tinha visto, estou conhecendo agora – ele comentou.
— A sinopse diz que é a história de um casal de namorados que faz um pacto depois de separados: se eles não tiverem sucesso em relacionamentos amorosos até completarem trinta anos, ambos ficarão juntos de novo e se casarão – expliquei-lhe.
— Acho a proposta interessante. Quero fazer esse pacto com você, Rosa Maria – ele propôs.
— Comigo? – perguntei, quase não acreditando na proposta que viria.
— Sim, com você. Rosa Maria, se nada der certo até os seus trinta anos, você se casa comigo? – David fez a pergunta me encarando, me deixando com as pernas bambas. Quase senti o chão se abrir.
— Jura que você está falando sério? – Eu ainda não queria acreditar que ele não estava brincando comigo.
— Juro. Seríssimo. Vamos fazer o pacto aqui mesmo na livraria. – David me fitava como se fosse me engolir com os olhos.
— Uau! – exclamei, apreensiva. Fazer um pacto desses no meio de uma livraria não é algo que acontece todo dia. Pensei por uns instantes, respirei fundo e, sem medir muito as consequências, dei minha resposta:
— Então, já que é assim, pacto feito. Mas você vai ter que esperar uns nove anos ainda.
— É bastante tempo. Quem sabe eu consiga antes. – Ele se aproximava mais de mim, parecia querer me beijar. Disfarcei e apontei o dedo em direção às prateleiras de livros de exatas que estavam do lado oposto.
— Agora vamos ver os livros que mais me interessam, de ciências exatas – eu disse, tentando sair do estado de quase hipnose no qual aquele homem me deixava.
***
Saímos da livraria e fomos direto a um restaurante japonês. Eu amava comer sushi, principalmente o sashimi; salmão cru sempre foi meu preferido. Mal comecei a comer e deixei o hashi cair da minha mão. Então David começou a rir e serviu os sushis direito na minha boca. Não tinha jeito, David conseguia me deixar nervosa cada vez que me olhava, cada vez que falava. Comecei a conhecê-lo mais profundamente.
— Eu só quero te ajudar a jantar hoje – ele disse, todo empolgado. – É bom saber que alguém sente alegria em nossa companhia.
— Espero que você sinta essa alegria também – eu disse, mordendo mais um pedaço de peixe em seguida.
***
Eram por volta das dez da noite quando o David me deixou em casa. Mais uma vez eu senti quando ele segurou minha mão esquerda e fez carinho. O olhar dele parecia um ímã, não desgrudava do meu. Eu tinha receio de que um sentimento verdadeiro não pudesse surgir assim entre duas pessoas que se conheciam há pouco tempo, eu tinha medo de tanta coisa.
Sim, ele fez de tudo pra me agradar, mas esse era meu temor: me entregar demais a uma situação que fosse, na verdade, apenas uma ilusão passageira, uma paixão de momento. E aquele medo de dizer “eu te amo” pra alguém de novo também me assombrava mais uma vez.
Eu estava em frente ao espelho, terminando de me arrumar para a grande noite de réveillon. Usava um vestido prateado, meias e sapatos combinando e, por cima, um casaco de festas. Estava frio. Ouvi batidas na porta. Era minha mãe, que entrou e disse:
— Filha, o David está na sala esperando por você. Ele está tão lindo.
Meu coração acelerou como sempre. Um coração que bate assim só podia estar sentido amor. Aquela seria nossa primeira festa juntos depois da ocasião em Ocean City. Caprichei na maquiagem e no penteado. Foi a primeira vez em meses que eu senti vontade de me arrumar para que alguém me achava bonita.
Pra finalizar, coloquei meu perfume, o mesmo que usava desde que chegamos à América. Me aproximei do aquário e desejei feliz ano novo pro meu peixinho:
— Feliz ano novo, Estrelinha. Agora vou à uma festa, mas mais tarde te conto como foi tudo.
Embora o apartamento fosse pequeno, a distância do meu quarto até a sala parecia enorme. Eu estava muito ansiosa pra ver o David. Aquele homem conseguia abalar as minhas emoções de um jeito que não sabia explicar.
Assim que ele me viu, sorriu e disse:
— Rosa Maria, você está linda, mais linda do que em todas as vezes que já te vi.
— Você também está encantador – eu disse, me aproximando. Beijei seu rosto e senti seu perfume, que estava mais forte na ocasião. O David vestia calça jeans, camisa social de cor clara, um sapato preto e sobretudo escuro.
— Então vamos, a festa já começou.
— Vamos – concordei, segurando em seu braço esquerdo.
***
A festa estava animada. Logo que chegamos, fomos recebidos pelo Paul e o Allan, os primos do David. Havia bastante gente, a casa era grande, tinha até DJ conduzindo a trilha sonora da noite. Fazia tempo que eu não me sentia tão animada.
Dançamos muito músicas eletrônicas e algumas românticas dos anos 90. Houve uma mais especial, pedida pelo próprio David, uma de suas preferidas, “All Out Of Love”, que significa “Sozinho Sem Amor”. Era de uma das minhas bandas favoritas, a Air Supply.
Os olhos de David brilhavam de alegria; era o olhar de paixão, de alguém que sentia ter encontrado a pessoa que lhe completava. Naquela hora consegui esquecer por um momento todas as minhas tristezas e angústias, e pude perceber, pelo menos naquele instante, que havia esperança de um futuro melhor para a minha família, que as coisas boas ainda poderiam acontecer em minha vida.
***
A meia-noite se aproximava. Nós, convidados, nos reunimos no jardim para a contagem regressiva. Os anfitriões haviam preparado uma modesta queima de fogos de artifício. Olhamos para o alto e a contagem começou. David estava ao meu lado.
O relógio marcava meia-noite e um minuto. David e eu nos abraçamos.
— Feliz ano novo, Rosa Maria. – Não poderia esquecer de seu sorriso naquele momento.
— Feliz ano novo, David – desejei com coração sincero.
— Rosa Maria – ele chamou meu nome, permanecendo com o olhar fixo em minha face.
— Sim.
Percebi que ele respirou fundo antes de me dizer o que queria.
— Quer ser minha namorada? – ele perguntou apreensivo, pois ainda havia a possibilidade de eu lhe dizer não.
Antes de responder-lhe, agradeci o momento com mais um sorriso. Aquele homem já me fazia sentir uma mulher amada.
— Sim, eu aceito ser sua namorada. – Pulei em seu pescoço e o abracei. Foi um abraço demorado. Não queríamos nos largar de jeito nenhum.
— Esse é um dos momentos mais especiais da minha vida. Descobri quem é a pessoa pela qual espero há tantos anos. Essa pessoa é você, Rosa Maria – David afirmou com toda a sinceridade de sua alma.
— É mais especial pra mim. Estou tentando me recompor dos estragos que o destino fez no meu coração e na minha vida. E ao seu lado, David, estou conseguindo enxergar um pouco de paz – confessei.
— Não diz mais nada, apenas... – Ele me beijou.
***
Depois da festa o David me deixou em casa. Minha mãe já me esperava aflita em meu quarto, querendo saber tudo o que havia acontecido. Ela havia estado na casa da Marieta e do Juan, que fizeram uma ceia entre amigos.
— E então, minha filha, como foi? – Ela se levantou da cadeira e veio ao meu encontro.
— Mãe, o David e eu estamos namorando. Foi lindo. Ouso dizer que esse homem me ama de verdade, não é apenas uma paixão – respondi.
— Fico feliz, minha filha! Até que enfim você tomou a decisão correta. Agora vai garantir o seu futuro e o nosso futuro. Logo terá que pensar em casamento.
— Lá vem a senhora com essa história de casamento. Estamos apenas namorando, ainda nos conhecendo.
— Mas você mesmo acabou de me dizer que ele te ama. Não há motivos pra esperar muito.
— Eu disse que senti que ele me ama. Ah, mãe, chega de conversa. Agora eu preciso dormir, estou muito cansada.
— Tudo bem, filha, durma bem. – Ela beijou meu rosto e saiu toda animada do quarto.
Pobre mãe. Doralis se tornou uma mulher frustrada e deprimida por causa de tudo que havíamos passado até então. Naquela noite depois do réveillon foi a primeira vez que eu a vi sorrir novamente, de um jeito sincero e esperançoso. A notícia do meu namoro com o David acendeu a chama da esperança em seu semblante.
No começo foi estranho namorar o David, pois ainda me sentia desconfortável na questão de como me comportar mais intimamente com ele. Não era como namorar o Endry, com o qual me sentia à vontade para abraçar, beijar, deitar no colo. Namorar um rapaz jovem não é a mesma coisa que namorar um homem quase trinta anos mais velho. Com o David era diferente. Mesmo meu carinho por ele sendo enorme, eu me sentia estranha em certos momentos.
Tudo bem, ainda era cedo pra me adaptar e estávamos apenas nos conhecendo. O David era cuidadoso comigo. Inevitavelmente, por causa da diferença de idade, em alguns momentos ele parecia até ser meu pai, me dando conselhos, contando suas experiências de vida, o que era bom por um lado, mas às vezes desagradável.
Quando estávamos somente ele e eu, era boa a proteção que ele me dava, os cuidados, os conselhos; no entanto, em certas ocasiões, isso se tornava algo inconveniente, pois ele me tratava como se eu fosse filha dele diante dos outros, me dando ordens ou mesmo fazendo uma advertência, como se eu fosse uma criança. Eu sei que não era por mal, mas me causava certo constrangimento.
Logo na primeira semana já discutimos. Ele ainda estava de férias em Santa Ana. Como aceitei o namoro, David ficaria até o dia trinta de janeiro, momento em que ele voltaria para Ocean City e retomaria seu trabalho de professor na universidade. E assim passaríamos a nos ver uma ou duas vezes por mês. A expectativa era de que ele ficasse em Santa Ana por dois ou três dias cada vez que viesse me ver. A distância era enorme, horas de voo, só não maior que o sentimento que tínhamos um pelo outro.
***
Ainda naquele mês de janeiro houve um almoço na casa do Juan e da Marieta. Estávamos todos à mesa quando o David chamou minha atenção pra que eu não comesse certo tempero que poderia prejudicar mais meu estômago. Mas não foi somente isso; ele me deu uma ordem no momento em que eu me retirava da mesa: disse pra eu não esquecer de ajudar a Marieta a lavar a louça. Me senti muito constrangida, afinal eu estava na presença dos meus amigos e nunca precisei receber ordens de ninguém pra saber o que eu tinha que fazer. Eu também sabia perfeitamente o que fazia mal pro meu estômago. Era assim quase o tempo todo quando estávamos perto das pessoas, e aquilo estava me incomodando.
Naquele dia, depois que ele me deu a ordem, eu me levantei da mesa e saí de lá sentindo raiva. David notou meu descontentamento e foi atrás de mim.
— Rosa Maria, meu amor, pra onde você vai? – Ele segurou meu braço, me impedindo de continuar.
Me virei pra ele e respondi, nervosa:
— Vou a qualquer lugar onde eu seja tratada como adulta.
— Do que está falando? – Ele parecia mesmo não entender.
— David, você me trata como se eu fosse uma criança diante dos meus amigos, você me dá ordens, advertências na frente dos outros. Isso está me incomodando, porque é ridículo. Alguma vez você já viu o Juan dar ordens pra Marieta na frente de todo mundo? – eu o questionei. Ele tinha que perceber que nossa diferença de idade não poderia ser motivo pra ele me tratar diferente de como havia tratado suas namoradas mais velhas.
— Meu amor, me desculpa. É que meu jeito é assim, sou muito protetor. Mas reconheço que posso estar exagerando. Eu entendo a sua frustração, e olha, eu prometo que a partir de agora eu não falo mais nada. Pronto, sem ordens, sem advertências diante das pessoas. – Seu semblante mostrava arrependimento.
— Assim espero. E também não me dê ordens na frente dos meus pais. Outro dia você me mandou calçar os chinelos pra eu não ficar com os pés descalços, e isso diante deles. Às vezes eu gosto de ficar com os pés descalços, sempre fiz isso – reforcei.
— Está certo, eu vou mudar. Sem ordens. Pode ficar com os pés descalços. Eu não quero mais que a gente brigue por isso. Já passou. Estou perdoado? – David falava com um sorriso no rosto, aquele sorriso que me cativava.
— Sim, é claro que está perdoado, seu bobo. – Pulei em seu pescoço e nos beijamos.
***
Depois de uns dos nossos primeiros almoços juntos como namorados, no restaurante no centro da cidade, eu passei mal, tive crise de gastrite. Estávamos quase terminando o jantar quando a dor bateu forte no meu estômago. Que vergonha eu senti. Fiquei com náuseas, estava prestes a vomitar.
— O que foi, Rosa Maria? – David me perguntou, percebendo meu mal-estar.
— Não é nada demais. Começou a dor no meu estômago, a crise de gastrite chega de surpresa. A náusea é intensa. Mas não se preocupe. Tão subitamente como essa dor vem, ela também vai embora. Eu só preciso me deitar e respirar fundo por alguns minutos – expliquei-lhe, tentando amenizar a situação.
— Meu amor, você precisa fazer um tratamento. Não pode passar o resto da sua vida com essas crises de dor no estômago – ele me aconselhou, me olhando com carinho.
— Eu já fiz vários tratamentos, mas não tem cura. O doutor me disse que já é um estado crônico – expliquei.
— Eu ainda acho que você tem que procurar outros médicos, novos tratamentos, outras opiniões.
— Sim. Se você pagar, eu procuro outro médico, porque eu não tenho dinheiro, apesar de achar que será inútil. Eu já até me acostumei com essas crises.
— Faço questão de te ajudar a se livrar desse mal. Eu pago o médico pra você. Não gosto de ver minha namorada sofrendo assim.
— Obrigada, meu amor, mas eu preciso ir pra casa agora.
— Sim, vou pagar a conta e te levo em casa. – Nos levantamos da mesa.
***
A náusea era intensa. Eu precisava ficar deitada, respirando fundo até a crise passar. O David me levou pra casa e fez questão de cuidar de mim. Meus pais não estavam em casa naquela hora.
Me segurando pelo braço, David me levou até o banheiro, onde vomitei. Lavei meu rosto e deitei na cama. Ele foi até a cozinha e preparou um chá.
Demorou uns trinta minutos para que ele entrasse no meu quarto de novo com o chá e um sal de frutas na mão. Pegou uma cadeira e sentou-se perto de mim na cama. Fiquei em silêncio, ele também. Eu apenas o admirava.
O enjoo passou um pouco. Respirei fundo mais uma vez e fiz carinho no braço direito do David. A sensação foi diferente, boa e estranha ao mesmo tempo. Aquele foi meu primeiro carinho para com ele além dos beijos. O braço dele era peludo, mas de longe não se viam os pelos, porque eram loiros. No momento eu pensei “ele é meu ursinho”.
— Sente-se melhor, meu amor? – David me perguntou, me olhando com carinho.
— Depois de vomitar, já estou melhor. A náusea passou. Vou tomar o chá. – Bebi dois goles do chá que ele fez pra mim e dei um risinho.
— Do que está rindo? – ele me perguntou.
— É que você cuidando de mim assim parece até que é meu pai – respondi.
— E isso é ruim?
— Não, pelo contrário, é muito bom. Eu me sinto protegida duas vezes. Se fosse um rapaz jovem, certamente ele iria correndo telefonar pra minha mãe vir me socorrer. Mas você sabe o que fazer. É claro que eu não gosto de ser tratada como criança diante dos outros, mas quando você cuida de mim quando estamos sós eu me sinto bem, me sinto protegida.
— Essa é vantagem de você namorar um homem experiente, que entende das coisas da vida. – Ele sorriu mais uma vez.
David gostava muito dos jantares que eu preparava lá em casa. Naquela ocasião não nos víamos já há duas semanas. Era fevereiro, e ele veio pra Califórnia pra passar três dias comigo.
Durante o tempo em que ficávamos longe, batia aquela saudade forte. Então aquela noite de sábado era o momento de aproveitar a companhia um do outro. Eu e minha mãe havíamos preparado Pabellón Criollo, um prato feito com arroz branco, feijão preto, banana e carne desfiada.
— Eu adoro comida latina, principalmente o feijão que vocês preparam. Confesso que os enlatados americanos não são meus preferidos – David disse, bem-humorado, e todos nós rimos.
Além de ter um coração nobre, David era um admirador da cultura latinoamericana. Depois do jantar, ele subiu comigo até o quarto para se despedir. Foi quando tivemos nossa conversa importante.
— O jantar foi divertido – eu disse.
— A comida de vocês é maravilhosa, os temperos, os sabores. Como eu queria ter uma esposa em casa que cozinhasse desse jeito pra mim – ele confessou, sorrindo.
— Você e seus sonhos – eu desconversei.
— Eu tenho o direito de sonhar e lutar pra que esse sonho se torne realidade – ele disse, me beijando em seguida.
Depois de alguns segundos eu continuei:
— David, embora eu acredite que isso já tenha ficado subentendido, penso que é bom nós falarmos sobre o assunto pra que não haja nenhum equívoco.
— Do que está falando, meu amor? – Ele se mostrou curioso.
— Bom, estamos entrando no nosso segundo mês de namoro.
— Sim, estamos, e tem sido maravilhoso estar ao seu lado, Rosa Maria. Mesmo com a distância, é uma emoção saber que existe alguém do outro lado do país esperando por mim. Meu coração bate mais forte de ansiedade cada vez que eu viajo pra cá pra te encontrar.
— Tem sido muito bom também pra mim. Você não imagina o quanto é bom saber que existe alguém que se importa comigo nessa terra estranha.
— O que você quer me dizer, Rosa Maria?
— Eu sei que pode parecer ridículo, ou mesmo antiquado, mas eu gostaria que o nosso namoro permanecesse dessa forma, sem mais intimidade, além dessa que já temos. Eu fui educada para me entregar apenas ao homem que um dia será o meu marido. Pode soar fanatismo religioso, mas eu prefiro assim, eu quero assim. E agora, nessa minha situação difícil em que me encontro, quero que seja assim mais do que nunca. Eu não condeno quem é diferente de mim, apenas quero que meu estilo de vida seja respeitado.
— Rosa Maria, eu acho que você ainda não me entendeu.
— E o que eu não entendi?
— Eu não quero uma mulher pra satisfazer os meus desejos momentâneos, eu não quero mais uma mulher só pra agora, eu quero uma mulher pra ser a minha esposa e companheira pra sempre – David disse, me deixando comovida com essas palavras. Senti meu coração disparar, como era de costume quando eu me emocionava. Senti até uma pontada na boca do estômago, o que sempre acontecia quando eu ficava ansiosa.
— Suas palavras me emocionam. Obrigada por me entender. – Suspirei.
— E é por isso que estou aqui, pra te conquistar e te convencer a ficar comigo por toda a vida. Nesses quase vinte anos viúvo, eu tive todas as mulheres ao meu redor. Elas satisfaziam os meus desejos momentaneamente, mas agora não é isso que eu quero. Por mais que elas tenham sido grandes mulheres, nenhuma delas despertou em mim o verdadeiro desejo: me casar novamente e construir uma nova família. Mas você, Rosa Maria, é a mulher que me faz sentir vontade de ser feliz outra vez.
— Ouvir você falando assim me deixa até sem graça. Eu não sei se sou tudo isso que você pensa.
— Eu não quero mais ficar sozinho, eu cansei da solidão do meu lar. Estou em busca de muito mais que um dia ou uma noite com uma mulher bonita – David disse, com os seus olhos brilhando, lacrimejantes. Seu semblante emanava amor.
David arrebatou meu coração com essas palavras, que eram mais que uma declaração de amor. Eu nunca imaginei que ouviria palavras tão belas de um homem apaixonado quase trinta anos mais velho.
Mas fato era que, mesmo comovida, eu ainda não sentia o mesmo por ele, além de haver muitas incertezas dentro de mim. Uma dessas incertezas era o meu futuro como imigrante. Era cedo pra eu ter certeza de que o David era o homem da minha vida e eu a mulher da vida dele. Às vezes eu pensava que eu não tinha nada de bom a oferecer-lhe, até porque minha situação era tão complicada. Eu o abracei com força, me sentindo protegida, e eu quis que ele se sentisse protegido também. Sim, meu carinho por ele era grande, e a gratidão maior ainda, mas ainda não a ponto de eu ter certeza sobre me casar.
***
Eu havia acabado de dar comidinha pro meu peixinho. Peguei o livro que estava sobre a cômoda, deitei na cama e comecei a lê-lo. Uns dez minutos depois, minha mãe entrou eufórica no quarto, me fazendo perguntas:
— Rosa Maria!
— Mãe, o que foi? Aconteceu alguma coisa? – perguntei, surpresa.
— Aconteceu sim. Eu estava conversando com o David pelo WhatsApp. – Doralis era só empolgação.
— E?
— E ele me disse coisas lindas sobre os sentimentos dele por você. Esse homem te ama, minha filha, só você que não percebe. Eu até fiquei empolgada com as coisas que ele disse. – Ela estava quase atropelando as palavras.
— Posso imaginar. Ele me desmancha quando fala de sentimentos. Nosso namoro está indo bem, mas ainda é cedo pra falar em casamento, pelo menos até termos certeza de que vai dar certo.
— Eu não entendo o que mais você espera pra prender logo o David pra sempre em sua vida. Rosa Maria, coloca logo um filho do americano dentro da sua barriga e garanta pra sempre o seu futuro e o nosso futuro – minha mãe disse, me decepcionando.
— Mãe! Eu não acredito que estou ouvindo isso.
— Não acredita por quê? Eu falei algum absurdo?
— É claro que falou. O David e eu ainda estamos namorando, ainda não me casei pra poder ter filhos. Sinceramente, mãe, eu não reconheço mais você. Onde está aquela mulher que me ensinou a ser uma moça honrada? Onde está aquela mulher que sonhava em me ver casando de branco?
— Isso foi no passado, quando ainda tínhamos condição de sonhar e seguir a religião passo a passo. Agora essas coisas são ilusão, as circunstâncias são outras, temos que agir conforme a necessidade. Filha, nosso futuro está em suas mãos.
— Eu cansei disso, mãe. Você quer mesmo que eu me prostitua em troca de um documento. Trazer filhos a esse mundo é algo muito sério. E eu jamais faria isso só pra ter o visto e alguém que me sustente. – Naquele instante minha vontade já era de chorar.
— Se você soubesse o quanto eu sofro só de pensar que algum dia podem nos mandar embora de volta ao inferno de onde nós viemos...
— Pensa que eu também não sofro com essa possibilidade, mãe? A senhora insistiu pra que eu aceitasse o namoro com o David, e eu aceitei. Agora quer que eu engravide imediatamente. Você está enlouquecendo, mãe, e isso me assusta.
— Tudo que eu digo é pensando no seu bem e no bem do seu pai, que inclusive tem piorado dos problemas no coração. Logo ele não poderá mais trabalhar e nossos gastos vão aumentar. As despesas médicas e remédios custam caro nesse país. Você acha mesmo que vamos conseguir bancar tudo com dinheiro de faxinas? – Minha mãe lembrou-me da iminente realidade que estávamos prestes a enfrentar.
— Eu sei de tudo isso e estou vendo uma possibilidade de trabalho em Los Angeles que pague mais. Mas entenda, eu não posso tomar uma decisão tão séria movida pelo desespero.
— Não é pelo desespero, é pela razão, por piedade de seus pais que já não aguentam mais sofrer.
— Eu não quero deixar que o desespero me transforme em alguém que eu não sou. E eu não sou essa pessoa que você quer eu seja. Sou como você me ensinou a ser: honesta, casta, verdadeira.
— Rosa Maria, eu só quero que você não perca a única e maior oportunidade da sai vida.
— Não, mãe, a vida tem que ser mais do que isso. Eu não vou engravidar. Ainda estamos apenas nos conhecendo, e faz pouco mais de um mês.
— Rosa Maria, você ainda vai se arrepender quando perder o David.
— Eu e ele não dormimos juntos, se é isso que você quer saber. Sabe de uma coisa? Eu já cansei de tudo isso. Minha cabeça está um inferno. Só aceitei esse namoro porque pensei no que você disse sobre dar uma chance às oportunidades. Eu gosto do David, tenho carinho por ele e muita gratidão, me sinto protegida quando ele me abraça. Mas isso não é suficiente para eu pensar em algo a mais agora. Eu preciso de mais tempo pra decidir se me caso ou não.
— Não se iludida, os romances dos filmes não existem na vida real. Seu príncipe encantado novinho e milionário não vai aparecer, minha filha.
— Talvez eu seja apenas uma mulher desiludida que não sente mais paixão. Mas sabe de uma coisa, mãe?
— O quê?
— Eu prefiro voltar ao nosso país e comer carne de cachorro, de rato, comer lixo, do que me submeter às situações que você propõe e perder minha dignidade – eu disse, indignada.
— Isso é o que você diz agora, mas saiu correndo pro aeroporto no dia em que viajamos para a América do Norte.
— Mãe, basta dessa conversa. Agora eu quero ficar sozinha aqui no quarto. – Eu já estava irritada.
— Tudo bem, eu vou lidar com as minhas coisas. Mas pense em tudo que conversamos.
— Com certeza eu vou pensar.
Ela se retirou e fechou a porta.
***
David e eu estávamos sentados à beira do lago, conversando sobre nossas vidas, durante um dos dias em que ele me visitava. Ele aproximou seu rosto pra me beijar, mas eu não retribuí. Os conselhos de minha mãe haviam me deixado aflita.
— Desculpe, hoje estou sem vontade de beijar – eu disse, cabisbaixa.
— O que houve? Parece tensa, meu amor.
— Sabe, eu estou cansada de tudo. Tenho até medo de te contar e te magoar.
— Pode me contar, se vai fazer você se sentir melhor – David permitiu.
— É a minha mãe. Ela vive me atormentando. Quando chegamos à sua casa, ela insistiu pra que eu ficasse com você, pra garantir o Green Card. – Soltei a verdade.
— Eu sei.
— Sabe?
— Sem querer, eu ouvi algumas vezes ela dizendo isso pra você. – David admitiu que já sabia das vontades da senhora Doralis.
— Mas dessa vez ela passou dos limites. Ela disse que eu deveria engravidar logo e garantir um filho seu. Garantir um futuro pra nós aqui na América do Norte.
— Não seria má ideia. – David riu.
— O quê? – perguntei, surpresa.
— Rosa Maria, sua mãe está apenas com medo de ter que sofrer de novo todas as coisas ruins pelas quais vocês passaram. Olha pra mim e escuta o que eu vou te dizer. – Ele segurou meu queixo.
— Estou olhando e escutando. – Mirei meus olhos no rosto dele, me mostrei atenta.
— Se nosso relacionamento der certo, eu quero fazer tudo como manda a tradição. Vamos nos casar na igreja, você vestida de noiva, e depois teremos nossos filhos. – Sua expressão era de quem estava vislumbrando o futuro.
— Você pensa em ter mais filhos nessa idade? – perguntei, curiosa.
— Está me chamando de velho? Ainda não completei cinquenta anos – ele se defendeu.
— David, não foi isso que eu quis dizer. É que você já tem filhos adultos, já passou por essa fase de cuidar de crianças, de ouvir choros, gritos, despesas. Minha surpresa é saber que você ainda tem paciência pra viver tudo de novo.
— Você não teria, Rosa Maria?
— Sei lá. Sou apenas uma imigrante sem status que não tem a menor ideia de como será seu futuro.
— Não diga isso. Mas, respondendo à sua pergunta, se for com você, eu gostaria de ter ainda mais uns três filhos, pelo menos. Seria fascinante viver tudo de novo, construir uma nova família. É bom ter preocupações. Minha vida sempre esteve tão vazia, tão monótona. Cansei do silêncio no meu lar. Depois que minha esposa faleceu e meus filhos cresceram e saíram de casa, eu entrei em uma fase de solidão profunda.
— Imagino o quanto foi difícil pra você perder sua esposa.
— Só não foi pior pelo fato do meu trabalho como professor me tomar bastante tempo. Decidi vender a empresa que eu tinha e fazer aquilo que eu realmente sempre amei: ser professor. O fato é que em todos esses anos nenhuma mulher despertou esses desejos em mim. Até que eu encontrei você, adulta, cheia de vontade de viver e vencer os obstáculos. Você é linda, é carinhosa comigo. Você me faz sentir bem. – Ele me olhava seriamente.
— Suas palavras me comovem tanto, me emocionam. Eu tento ser a mais carinhosa possível, quero mesmo que você se sinta amado. Se as coisas fossem mais simples e todos os nossos desejos se tornassem realidade...
— Eu penso que pra tudo ser verdade só depende de você, Rosa Maria – ele disse, mostrando certeza do que dizia.
Eu apenas sorri e o beijei. Cheguei a pensar em explicar pra ele que não era o meu sonho me casar logo, muito menos ter filhos tão cedo. Meus objetivos e sonhos sempre foram profissionais e acadêmicos. Mas eu não disse nada, fiquei quieta. As palavras dele sobre nós formarmos uma família juntos foram tão fortes dentro de mim que arrebentaram o meu coração. Tive que segurar as lágrimas pra não chorar. Como pode aparecer alguém em nossa vida e bagunçar os nossos planos?
David conseguiu uma casa de praia emprestada com uns amigos para passarmos o fim de semana junto com meus pais, Juan e Marieta. A cidade era linda, várias praias, clima ameno, brisa fresca, havia palmeiras por todos os lados. Respirei fundo e senti uma sensação de liberdade parecida com aquela que senti ao pisar os pés em Ocean City pela primeira vez. A casa era grande, apesar de ter somente três quartos. As sacadas tinham vista para o mar.
Depois de estacionar os carros na garagem, descemos. As portas da sala eram de vidro, favorecendo a visão para a praia.
Nos fundos havia uma piscina e no quintal um jardim colorido. Levamos nossas bagagens para dentro. Os quartos ficavam no andar de cima.
A Marieta subiu eufórica as escadas, queria escolher o melhor dormitório. Não havíamos pensado nessa questão das acomodações antes. Logo depois subimos eu, o David, meus pais e o Juan.
A Marieta estava parada em frente à porta de um dos quartos. Àquela altura ela já havia escolhido em qual deles se acomodaria com o Juan.
— Meus amigos, acho que temos um problema – Marieta disse.
— Que problema, querida? – Juan perguntou, curioso, pois até então não parecia haver nenhum problema ao nosso redor.
— Somos três casais, mas em apenas dois dos quartos há camas box. E eu imagino que o David, que conseguiu a casa pra passarmos o feriado, vai querer ficar com sua namorada em um dos quartos com cama de casal. Até aí nada mais justo. Então eu gostaria de pedir pra Doralis ceder o outro quarto com cama box pra mim e o Juan. Mas se não der, também não tem problema. A gente fica no outro quarto e junta as camas.
Todos nos entreolhamos. Até o David ficou um pouco constrangido. Confesso que fiquei mesmo foi com vontade de rir da cara da minha amiga.
— O que foi, gente? Por que vocês estão me olhando com essa cara? Eu falei alguma bobagem? – Marieta parecia não entender nossa reação de silêncio.
Foi então que eu falei, lembrando-lhe da realidade:
— Marieta, você, o Juan e meus pais podem ficar com os quartos com cama de casal. Eu e o David ainda não somos casados, por isso não dormirmos na mesma cama. Sendo assim, você pode ficar com um dos quartos de cama box.
— Ah, me desculpe pelo comentário, Rosa Maria. Eu não sabia que vocês ainda não dormiam juntos.
— É, não dormimos. Nosso namoro é à moda antiga, só beijinhos e pegar na mão.
Meus pais não aguentaram e começaram a rir.
— Ah, Marieta, você me faz passar vergonha com essas suas observações indelicadas – Juan comentou, colocando as mãos na cabeça.
— Mas, Juan, como eu poderia adivinhar que o David e a Rosa Maria ainda não dormem juntos? É algo tão comum, todos os namorados que eu conheço fazem isso.
— Marieta, pare de fazer comentários sobre a vida íntima das pessoas – Juan advertiu, aflito.
— Mas nós somos todos amigos. Podemos falar sobre isso, não? – Marieta já estava perdida, sem saber ao certo o que dizer.
— Juan, não vamos discutir por bobagem. Você e a Marieta ficam com um dos quartos de cama box – meu pai sugeriu. – A Rosa Maria e minha esposa Doralis podem dormir juntas no outro quarto de cama box, e eu durmo no quarto de camas separadas com o David.
— Se for preciso, eu durmo no sofá, no jardim, até na areia da praia. – David apaziguou a situação em tom bem-humorado.
— Areia da praia? – meu pai perguntou.
— É, por que não?
— Essa conversa está ficando engraçada – minha mãe entrou no debate.
— Pessoal, não tem ninguém radical aqui. Sou eu que vou dormir, então posso escolher onde. Marieta fica com a sua cama box e meus pais também. Eu e o David vamos dormir no quarto com camas separadas e pronto. Assim ninguém precisa dormir na areia da praia nem no sofá – eu disse, sorrindo em seguida.
— Está resolvido! Camas separadas! – David exclamou, em tom bem-humorado, nos fazendo rir.
***
Aquela foi a primeira ocasião em que eu vi o David sem camisa. Começamos a namorar ainda no inverno, então a chegada da primavera proporcionou momentos de novas descobertas. A água estava geladinha, uma delícia para contrastar com o calorzinho e sol radiante no céu. Marieta e Juan preferiram ficar na piscina. Meus pais caminhavam pela orla e o David e eu entramos no mar. Toquei os ombros dele, olhei no fundo de seus olhos azuis, que pareciam gritar, dizendo que ele não queria me perder.
Eram dois sentimentos que aconteciam ao mesmo tempo: a sensação de estar protegida por um pai e a sensação de estar sendo amada por um homem. O carinho que sentia por ele também era um amor novo. Eu nunca havia vivido antes nada parecido. Depois de alguns mergulhos, começamos a conversar:
— Eu via nos filmes os casais se beijando na água e sonhava em encontrar o príncipe encantado que vivesse esse momento comigo. É uma fantasia meio boba, mas é o que nós meninas imaginamos. Pelo menos eu imaginava – confessei a ele.
— Não sei se eu sou o príncipe dos seus sonhos, mas o beijo na água eu posso te dar – David disse, aproximando mais seu rosto do meu.
Aquele momento dentro do mar foi engraçado. Depois que o David me beijou, eu cuspi na água.
— Meu Deus! Foi tão ruim assim meu beijo na água? – ele perguntou, surpreso com a minha atitude. Eu comecei a rir muito.
— Não é isso. É que ficou tão salgado. Só senti gosto de sal – expliquei. Rimos muito. Ele me pegou e me girou dentro da água. Foi divertido.
***
Naquela noite, nós, os seis amigos, estávamos sentados na areia, em volta da fogueira, assando marshmallow nos espertos.
— Quando eu era criança, eu tinha muita vontade de comer marshmallows assados na fogueira. Eu via nos filmes americanos e não entendia direito o que era. Mas é mesmo tão gostoso quanto parecia ser – comentei, enquanto segurava minha varetinha com o marshmallow na ponta.
— Somos seis amigos assando marshmallow ao redor da fogueira, mas só um de nós é americano – Marieta comentou, bem-humorada.
— Estou sempre apreciando as iguarias latinas e mexicanas. Vocês também precisam apreciar um costume norteamericano – David disse, alegre.
— Eu me acostumei rápido com a comida americana. De onde viemos não havia nem mais comida – disse minha mãe, fazendo com que todos ficassem quietos e sérios. De certa forma, todos ficaram constrangidos com o comentário dela.
— Doralis, estamos em um momento de descontração, de alegria, não é hora de lembrarmos de nossas tristezas – meu pai a repreendeu. Ele era o que menos gostava de se lembrar do passado, ainda tão presente na realidade daqueles que permaneceram em meu país de origem.
— Peço desculpas. Não quis estragar nossa alegria. Apenas me lembrei da realidade de onde viemos – minha mãe tentou se justificar.
— É mesmo triste o que acontece em seu país, Doralis – Juan comentou.
— Como pode um governante permitir que quase um país inteiro morra aos poucos de fome? – Marieta questionou, indignada.
— Eu posso imaginar, meus amigos, a dor que vocês sentiram ao ter que abandonar seu país por falta de condições dignas de vida. Todos os anos, milhares de pessoas sofridas como vocês tentam entrar nesse país de todas as maneiras. Muitos não conseguem, morrem no caminho ou são presos. Eu não sou contra às pessoas lutarem por sua sobrevivência – David comentou, mostrando-se solidário.
Foi minha voz de falar:
— Famílias separadas, amores perdidos, vidas que se vão... Estamos em busca da nossa paz.
— Mas, apesar de tudo, estamos aqui reunidos ao redor da fogueira em uma praia linda. Ainda resta uma esperança – meu pai comentou.
— Mas é claro que existe, meus amigos – disse David. – E no que depender de mim, os próximos três dias nessa praia serão um dos mais inesquecíveis de nossas vidas.
***
Então havia chegado o momento de maior tensão: a hora de dormir. Desejamos boa noite uns aos outros. Meus pais entraram no quarto deles e a Marieta e o Juan também se recolheram em seu quarto. Minha amiga estava feliz por ter ficado com uma das camas box.
Olhei ao redor, mas não vi o David. Eu não fazia ideia de onde ele poderia estar.
Entrei no quarto, fui ao banheiro e vesti meu pijama, um conjuntinho bege de tecido leve, um short e camiseta.
Ao sair do banheiro, enfim vi o David. Lá estava ele, sem camisa, só de bermuda, preparado pra dormir.
— David, onde você estava? – perguntei.
— No banheiro social lá embaixo. Imaginei que você estivesse usando aqui em cima e não quis te atrapalhar – ele explicou.
— Bom, já estou pronta pra dormir e muito cansada. Se você não se importa, eu fico com a cama perto da janela. Gosto de admirar o céu antes de adormecer – eu pedi, um pouco sonolenta.
— Pode ser assim – ele concordou.
— Obrigada. – Virei-me em direção à cama. Foi quando senti David me segurar pelo braço esquerdo.
— Não vai me dar nem um beijo de boa noite? – ele perguntou.
— Ah, sim. Boa noite. – Aproximei minha boca da sua e o beijei rapidamente.
Segui de novo em direção à cama e ele segurou meu braço mais uma vez.
— Espera. Isso não é beijo! – David me puxou com força e me beijou de novo, mas dessa vez foi um beijo mais demorado. Então ele me soltou.
— Agora sim, meu amor. Boa noite – ele disse. Em seguida foi até o interruptor e apagou a luz.
Enfim eu me deitei. A vista para o céu estrelado me trazia paz, calma, me fazia sonhar alto. O David se deitou. A noite estava fresquinha e ele nem se cobriu com o lençol.
Passados alguns minutos, percebi que a presença do David no quarto me inquietava de modo inesperado. Eu não conseguia fechar os olhos. Aquela era a primeira vez que eu o via dormir.
Ele estava de bruços. Como uma chama que se acende de maneira súbita, eu senti uma vontade quase incontrolável de ir até o David e fazer carinho em suas costas. Comecei a respirar fundo para me controlar, afinal trato era trato. Foi quando ele se virou na cama, abriu os olhos e ficou me olhando sem parar. Depois sorrimos um pro outro.
Meu coração acelerou como nunca. Naquele momento eu senti que era com o David que eu gostaria de ficar pra sempre. Perto dele eu respirava amor. Eu precisava me preparar para abrir meu coração de uma vez e confessar meus sentimentos, todos os sentimentos, todas as vontades.
David e eu nos olhamos por mais alguns minutos, até que o sono me venceu e então adormeci. Mas em vários momentos durante a madrugada eu abria os olhos e admirava o David ali, deitado na outra cama, tão lindo, em paz, meu anjo.
***
Acordei descansada naquela manhã. Logo que abri meus olhos, vi que o David estava saindo do banheiro, pronto pra mais um dia naquele paraíso.
— Bom dia, meu amor. Dormiu bem? – ele me perguntou com um risinho.
— Bom dia. Dormi sim. Esse lugar é incrível. Agora vou tomar meu banho e me arrumar. Quero preparar pra gente um café da manhã típico do meu país – respondi.
— Mal posso esperar para experimentar. Já vou esperar lá embaixo. – David sorriu mais uma vez
***
Marieta e eu estávamos na cozinha preparando o café da manhã: panquecas feitas de farinha de milho, prato típico da minha terra natal, e outras iguarias mexicanas para acompanhar.
— Rosa Maria, tenho novidades sobre aquela oportunidade de trabalho no hotel em Los Angeles – Marieta me disse.
— Me fale mais sobre.
— Então, eu falei com a minha cunhada Alejandra, aquela que trabalha como cozinheira em um hotel super chique em Los Angeles. O local é finíssimo, frequentado só por pessoas muito ricas. O dono é o senhor Hernandez, um mexicano, e ele costuma ajudar imigrantes como você, dando-lhes emprego. O detalhe é que o hotel paga bem, mais do que as faxinas – Marieta me explicou.
— Parece interessante essa possibilidade de trabalho – comentei.
— Minha cunhada garantiu que consegue pra você uma vaga de camareira. Você ganharia mais do que com as faxinas e teria mais dinheiro pra ajudar seus pais.
— Obrigada, amiga. Eu vou pensar bem nessa nova chance de ganhar mais. –Agradeci com um sorriso.
— Rosa Maria, não me esconda nada. Você está com um carinha de quem viu o pássaro azul. Parece até que viu as estrelas. O que foi que aconteceu naquele quarto nessa última noite? – Marieta me perguntou, notando meu semblante alegre.
— Ah, Marieta, essa noite foi uma loucura. Mas não é nada disso que você está pensando. Eu passei quase a noite toda sem dormir direito, admirando o David deitado, repousando como um anjo. Ele estava de bruços, e fui dominada por uma vontade quase incontrolável de fazer carinho nas costas dele.
— Amiga, que loucura. Não sei como você aguenta. Que o Juan não me escute, mas se eu fosse você, partiria pra cima do David com tudo. – Nós rimos. – O David é uma pessoa maravilhosa e eu não entendo por que você ainda não se casou com ele. – Marieta apresentava uma certa euforia.
— Sim, ele é maravilhoso, e eu tive a certeza disso nessa noite. Antes de dormir ele me deu um beijo que me abalou muito. Eu respirei amor naquele quarto.
— Uau! Até eu fiquei sem fôlego agora. Quanta paixão, amiga. Pelo amor de Deus, se casa logo com ele – ela me aconselhou.
— Estou me preparando pra dizer a ele tudo que sinto. Sabe, às vezes parece até um sonho ter um homem como ele em minha vida, um anjo que me ama tanto, que me ajuda e me protege – confessei.
— Você é uma mulher de sorte, Rosa Maria. Todo o seu sofrimento até aqui valeu a pena, porque você descobriu o amor. Não há nada mais importante nessa vida do que descobrir o amor da maneira mais pura que possa existir. – Os olhos de Marieta brilhavam.
— Sim, eu descobri o amor mais uma vez. Eu não imaginava que isso aconteceria de novo tão logo.
— Mas aconteceu. – Ela sorriu pra mim.
Meus pais, o Juan e o David entraram na cozinha.
— Agora vamos mudar o assunto porque eles estão chegando – adverti-a.
— Alguém prometeu um café da manhã exótico e eu estou morrendo de fome – David disse, todo animado.
— Exótico? Pensei que havia dito café da manhã típico da minha terra – eu disse. – Bom, todos nós conhecemos muito bem as calóricas panquecas americanas de farinha de trigo. Mas hoje eu e a Marieta preparamos panquecas de farinha de milho e mais algumas iguarias mexicanas, que são uma delícia. Vocês vão amar. No meu país chamamos essas panquecas de milho de cachapas.
— Bom, faz tempo que não comemos cachapas – meu pai comentou.
— Nos acostumamos muito rápido com a comida americana – minha mãe afirmou.
— Bom, eu já havia experimentado as cachapas, mas agora, com as iguarias mexicanas, acredito que esse café vai ficar ainda melhor.
***
Era nosso terceiro dia na praia. Decidi abrir meu coração pro David, decidi me declarar. Aquele homem merecia ouvir as palavras mais lindas saírem da minha boca.
Caminhávamos à beira-mar quando paramos e ficamos frente a frente. Iniciei minhas confissões:
— Eu tenho algumas coisas pra te dizer.
— Pode dizer, estou te ouvindo. – Ele pareceu surpreso.
— David, eu amo você. Eu amo você como nunca amei ninguém. Esses dias nessa praia me fizeram descobrir que você é o homem com quem eu quero viver por toda a minha vida. Eu nunca imaginei que o amor fosse acontecer de novo em minha vida tão depressa.
— E pra mim demorou dezoito anos. Minha amada, Rosa Maria. Meu coração está explodindo de felicidade ao ouvir você dizer isso.
— É algo mais forte do que eu.
— Então agora eu posso fazer a pergunta – David disse.
— Que pergunta? – me mostrei curiosa.
— Rosa Maria Rodríguez, você aceita se casar comigo?
Meu coração começou a bater muito mais forte. O nervosismo fez meu estômago doer um pouco. Fiquei trêmula. Quase balbuciando, respondi:
— Sim. Eu aceito. Tudo que eu mais quero é me casar com você. Com você eu caso, eu vivo, eu morro.
— Morrer agora não. Ainda teremos muitos momentos juntos pra relembrar. Assim que eu chegar em Ocean City, vou contatar o cartório pra ver tudo que é preciso pra fazer nosso casamento e consultar um advogado de imigração pra nos orientar sobre os trâmites do seu pedido do visto e quais seriam os recursos legais disponíveis pra evitar sua deportação. Lembrando que as autoridades de imigração não precisam ficar sabendo que nos casamos.
— Sim, mas nesse caso eu continuaria ilegal e sempre fugindo. Nunca seríamos livres pra viajar e viver como uma família normal. Eu continuaria com uma vida limitada, correndo o risco de ser descoberta.
— Eu sei disso, mas podemos ir com calma. Primeiro veremos o que dirá o advogado. Vai dar tudo certo. Eu tenho certeza, meu amor – David disse, com seus olhinhos lacrimejando de esperança.
Eu o agarrei pelo pescoço e nos beijamos. Entramos no mar e brincamos. Aqueles foram os dias mais felizes da minha vida.
***
Naquela última noite na praia, anunciamos nosso casamento aos meus pais e aos nossos amigos Marieta e Juan. Minha mãe ficou muito emocionada, era uma alegria que não cabia em seu coração. Ela me abraçou, assim como meu pai. Ele ficou emocionado e surpreso com a notícia. Na verdade, ele não imaginava que seu grande amigo se tornaria seu genro.
— Precisamos comemorar a novidade! – meu pai exclamou, contente.
— Que tal pedirmos pizza? – Juan sugeriu.
— Eu acho uma ótima ideia. A alegria me dá fome – David concordou, animado.
— Mesmo com a pizza, depois vou querer festa de noivado – afirmei contente.
— Mas é claro que vai ter festa de noivado. Eu encontrei a mulher dos meus sonhos, quero fazer todas as festas possíveis! – David exclamou, enquanto me admirava.
— Então, viva os noivos! – Marieta exclamou, sorrindo.
— Viva! – todos disseram em uníssono.
Meu amor completava quarenta e nove anos. David não quis festa, apenas passar o dia comigo e de noite um jantar na casa do Juan e da Marieta. Era tão bom estar em sua companhia. Nossa primeira parada foi no Fiesta Plaza, um shopping center localizado no centro da cidade.
Levei comigo o presente que comprei pra ele, que seria entregue durante nosso passeio. Era uma surpresa, o David teria que adivinhar o que havia dentro daquele pacote. Eu contava as horas pra ver a face do meu namorado quando ele abrisse o embrulho e visse a surpresa que ali havia.
O Fiesta era repleto de lojas e livrarias, e essa era a nossa aventura: explorar livrarias ainda por nós desconhecidas, encontrar novos títulos de livros que tivessem a ver com nossa vida. A escolhida da vez foi a Martinez BookStore. Nunca havia estado lá antes. Não demorou nem dez minutos para o David se aproximar de uma das prateleiras e fazer o comentário que renderia as risadas do dia:
— Olha, amor, que livro engraçado. Chama-se “Tatuagens até lá embaixo”.
Achei estranho. Naquela hora me perguntei quem colocaria em um livro o título “Tatuagens Até Lá Embaixo”. Olhei com mais atenção para a capa da obra e notei que o título correto era “Tartarugas Até Lá Embaixo”. No mesmo instante, tive um dos maiores ataques de risos da minha vida. O pessoal da livraria deve ter pensado que eu era uma louca, rindo sem parar ali no meio de todo mundo.
— David, pelo amor de Deus! O nome do livro é “Tartarugas Até Lá Embaixo”, e não “Tatuagens Até Lá Embaixo” – eu o corrigi.
— Caramba! Eu li errado, nem percebi – ele disse, com um risinho.
— Você quer acabar comigo e com o autor da obra! – Eu já estava quase sem conseguir respirar de tanto rir.
— Meu amor, se acalme. Assim você vai parar de respirar e cair desmaiada aqui no meio da livraria.
— Eu acho que preciso me sentar pra recuperar o fôlego. Olha só o que você fez comigo! Isso não é coisa que o namorado faça com a donzela amada.
— Vamos ali na mesa. – Ele me segurou pelo braço e nos sentamos.
— David, assim não dá. Mal entramos e você já me fez rir.
— Sempre que entramos em uma livraria, uma coisa legal acontece. Naquele dia foi o pacto, e hoje as tartarugas, ou melhor, as tatuagens – ele disse.
— Quem teria coragem de publicar um livro falando de tatuagens nas partes íntimas? Que brega – comentei com bom humor.
— Nesse mundo há pessoas pra tudo.
— Disso eu não tenho dúvidas, David.
— Nossa próxima parada é o cinema. – Ele sorriu.
— Nem tive tempo pra ver o que está em cartaz – comentei, com o fôlego quase recuperado.
— Eu quero mesmo é saber o que é o meu presente! Deixa-me abrir logo esse pacote! – David se mostrou curioso pra saber o que era o seu presente dentro daquele pacote que eu segurava firme em minha mão.
— Tenha calma. Depois que a gente almoçar na lanchonete do cinema, eu entrego o seu presente. Controle sua ansiedade. Só quero ver se você vai conseguir adivinhar o que é – eu disse.
— Não é justo você me deixar nessa ansiedade por causa desse presente – ele me disse, irradiando alegria pelo olhar.
— Está chegando a hora do almoço, estou com fome. Vamos logo ao cinema. A gente almoça e depois pegamos uma sessão.
— Tudo bem, minha donzela, vamos, porque eu estou muito curioso pra saber o que tem dentro desse pacote de presente. – Nos levantamos e seguimos rumo ao cinema.
Eu não largava o pacote com o presente. O pior é que quem começou a ficar ansiosa fui eu. Durante todo trajeto até o Edwards Cinemas, ainda coloquei pra fora umas risadas por conta das “Tatuagens Até Lá Embaixo”.
Entramos de mãos dadas no cinema. O lugar era enorme, havia várias lanchonetes, além da bilheteria e salas de exibição no andar de cima. Sentamo-nos à mesa da lanchonete italiana e pedimos uma pizza margarita, a preferida do David.
— Vou comer logo essa pizza pra depois poder abrir meu presente – ele disse.
— Come com calma. Aproveita que tá uma delícia – comentei, degustando em seguida mais um pedaço da pizza.
Passaram-se uns vinte minutos do momento em que o garçom serviu a pizza ao instante em que David sentiu-se satisfeito e exigiu que eu lhe entregasse o presente:
— Agora chega, Rosa Maria. Eu quero o meu presente!
— Tudo bem. Mas, antes de abrir o pacote, tente adivinhar o que é pelo tato –propus o desafio.
— Eu já ia fazer isso. Me dê aqui. – Ele esticou os braços pra que eu lhe entregasse o pacote.
— Feliz aniversário, David! Aqui está seu presente. – Entreguei nas mãos dele o embrulho.
Ele começou a apertar o pacote na tentativa de adivinhar o que havia lá dentro. David olhava para o alto à medida que tateava. Ficou uns dez minutos assim, mas não conseguiu adivinhar o que havia dentro do pacote.
— Meu amor, eu desisto de adivinhar. Vou abrir logo esse pacote. – Ansioso, ele rasgava o embrulho, com as mãos até trêmulas.
Contei os segundos pra ver sua reação depois daquela surpresa. Fixei meus olhos na figura daquele homem que era tão especial em minha vida, eu não queria perder nem um segundo daquele momento.
Enfim David abriu o pacote. Junto com o presente havia também um cartão no qual eu escrevi palavras de carinho.
— Rosa Maria! É aquela peça de xadrez que a gente viu na livraria depois do Natal! – ele exclamou, com um sorriso que foi ao céu. Nunca havia visto alguém tão surpreso como ele naquele momento.
David realmente ficou surpreso. Ele não imaginava que ganharia de presente aquela peça de xadrez que tanto lhe agradara. Deu o sorriso mais lindo que contemplei em toda a minha vida. Seu semblante e seus olhos emanavam felicidade. Tinha alma, tinha ânimo. Meu namorado parecia até uma criança que havia acabado de ganhar o presente tão sonhado. Estar com ele era como se o mundo inteiro desaparecesse e só existíssemos nós dois.
— O aniversário é seu, mas o presente é meu, David. Você tinha que ver o seu rosto e seus olhos no instante em que você abriu o pacote e viu que era sua peça de xadrez preferida. Esse momento é impagável. Pensei que você fosse saltar dessa cadeira até o teto – eu disse.
— Fiquei mesmo surpreso. Não imaginava que você ainda se lembrasse disso. – Ele estava encantado.
— Pois não saiu da minha cabeça o dia em que fomos à livraria juntos pela primeira vez e você viu essa peça de xadrez, seu jogo favorito. Agora que você já sabe qual é o presente, leia o cartão.
Eu notei que o David estava nervoso, suas mãos tremiam um pouco enquanto ele segurava o cartão e fazia a leitura. Seus olhos lacrimejavam. Percebi que ele estava com vontade de chorar de alegria. Sinceramente, esse foi um dos momentos mais especiais e inesquecíveis da minha vida. Eu nunca havia presenciado alguém tão feliz diante de mim. E o mais impressionante é que eu era quem havia causado aquele momento de alegria que me surpreendeu. Eu não imaginava que o coração daquele homem explodiria de tão contente por uma peça de xadrez.
Proporcionar a alegria de alguém encheu minha alma de plenitude, de satisfação, ainda mais de alguém que eu tanto amava. É uma pena que o tempo passe tão rápido e esses momentos acabem logo. Eu gostaria que aqueles minutos e instantes congelassem e eu os pudesse viver eternamente. Se fosse possível voltar ao passado, esse seria um momento que eu gostaria de reviver várias e várias vezes. A máquina do tempo até quebraria de tanto que eu viajaria nela.
***
Saímos da pizzaria e fomos até a bilheteria conferir os filmes que estavam em cartaz.
— Olha, é o filme “A Teoria de Tudo”, sobre a vida Stephen Hawking. Ainda está em cartaz. Eu queria tanto assistir – eu disse, ainda emocionada pelos momentos vividos minutos antes.
— Você gosta dele? – David me perguntou.
— Sim. Hawking é meu cientista preferido. Eu amo as ciências exatas. Não à toa eu era estudante de engenharia elétrica. As matérias de Física eram as minhas preferidas – respondi, empolgada.
— Rosa Maria, você é uma mulher muito inteligente.
— Obrigada.
— Bom, vamos assistir então. A sessão começa em dez minutos. – Ele segurou em meu braço.
Compramos os ingressos e entramos naquela sala enorme de exibição. Eu gostava das fileiras do meio, nem tanto à frente, nem muito atrás. A história de vida dos cientistas que eu admirava me fascinava. Todos tinham uma linda trajetória, cheia de coragem, de determinação e comprometimento com a ciência, com as descobertas humanas.
***
Ao fim da exibição, David e eu estávamos emocionados.
— A história de vida dele é fantástica. Eu já conhecia um pouco, mas vendo agora, no filme, fiquei mais tocado – David me disse, com seus olhinhos lacrimejando.
— Também me emocionei – eu disse, olhando fixamente em sua face.
— O fato de o Hawking ter se divorciado da esposa por querer vê-la livre de um peso que era a sua condição física debilitada foi uma atitude nobre da parte dele – David comentou.
— Sim, foi triste, mas ele queria que ela fosse feliz, com um novo amor.
De repente, David ficou quieto, apenas me olhando. Chegou mais perto, e com suas mãos segurou meu rosto. Uma lágrima caiu de seus olhos.
— Rosa Maria, promete que quando eu ficar bem velhinho você não vai me deixar? – ele perguntou.
Essa pergunta me comoveu muito. Essa era a dúvida que todos tinham. Por alguns anos o David ainda seria um homem maduro, charmoso e atraente. Ele passava até por uns 43 anos, mas chegaria o dia em que eu seria uma mulher de quarenta anos e ele um senhor idoso de setenta anos de idade. Mas, a despeito dessa dúvida, eu o amava, e, quando o amor é verdadeiro, permanece, passe o tempo que passar, e independe das aparências.
— Eu prometo sim. Nunca vou te deixar por isso. Você vai ser o velhinho mais lindo do mundo, o meu velhinho! – Eu fiz a promessa e o abracei, estalando-lhe um beijo.
David e eu nos abraçamos. Senti seu carinho e o calorzinho do seu abraço.
Quinze dias se passaram desde a minha decisão de me casar com o David. Estávamos todos esses dias sem nos vermos. Ele voltou para Ocean City para trabalhar e tratar das coisas necessárias para nosso casamento. Já passávamos dos três meses de namoro. Foi tempo suficiente pra eu perceber que ele era o homem que eu queria pra dividir minha vida.
Naquele dia eu fui trabalhar, não poderia largar as faxinas. Por mais que o David fosse meu futuro marido, em nenhum momento permiti parecer que estava com ele só pra ter uma vida boa.
A saúde do meu pai não andava nada bem. Ele até tomava uns remédios caros receitados por um médico mexicano, que cobrava mais barato pela consulta. Mas minha mãe tinha razão: meu pai já dava sinais de que logo não aguentaria mais trabalhar nas obras; seus problemas de saúde aumentavam.
No fim daquele dia, nos preparávamos para jantar quando, de repente, meu pai começou a passar muito mal. Ele sentia fortes dores no peito. Entrei em desespero. Senti muito medo de que ele morresse naquela hora.
Minha mãe começou tremer de nervoso. Com as mãos trêmulas, peguei meu celular e chamei uma ambulância.
Meu pobre pai gritava “socorro, não me deixem morrer”.
Em poucos minutos a ambulância já estava lá na porta de casa. Enfim meu pai foi socorrido e levado para o hospital. Minha mãe e eu tomamos um táxi e seguimos para lá também.
Pobre Doralis! Ela chorava muito. Meu pai era tudo pra ela e para mim também. Assim que descemos do táxi, corremos para dentro do hospital. Logo pedi informação à moça da recepção, que me disse que meu pai estava em atendimento.
Aguardamos aflitas por notícias. Depois de duas horas o médico apareceu. Era o doutor Scott.
— Doutor, me diz logo, pelo amor de Deus, como está meu marido? – minha mãe perguntou, demonstrando desespero. Ela temia pelo pior.
— Seu marido sofreu um infarto agudo. A situação dele é delicada, mas não corre risco de morte. Foram feitos os procedimentos necessários e agora ele está descansando. Vocês só poderão falar com ele amanhã, depois que ele acordar – o doutor nos disse.
— Obrigada, doutor, por salvar a vida do meu pai – eu lhe agradeci.
— Quanto tempo meu marido terá que ficar internado? – minha mãe quis saber. Seus olhos lacrimejantes revelavam sua angústia.
— Isso vai depender de sua evolução clínica. Mas no mínimo uns três ou quatro dias – ele esclareceu.
— Está certo, doutor. Obrigada por tudo – minha mãe agradeceu.
Eu preferi não telefonar pro David, pelo menos não naquele momento. Eu não queria incomodá-lo com os meus problemas, isso não seria justo. Mas no penúltimo dia em que meu pai ficou internado a conta do hospital chegou e não tínhamos como pagar. Fiquei muito assustada pelo fato de não saber como seriam as coisas dali em diante. Os tratamentos e despesas médicas eram cada vez mais caros.
Com minhas mãos trêmulas, pois eu ainda estava abalada pelo susto e risco de perder meu pai, peguei o celular e liguei para o David. Ele atendeu a chamada:
— Rosa Maria, meu amor, está tudo bem? – Pude imaginar seu sorriso naquele instante, pois sua voz era de alegria, pelo fato de eu ter ligado.
— Me desculpe por ligar a essa hora. Eu não queria te incomodar, mas aconteceu algo muito ruim aqui – eu disse, balbuciando.
— O que foi que aconteceu? Me diz logo. Agora você me deixou preocupado.
— O meu pai teve um infarto grave.
— Meu Deus! Como ele está agora? – Sua voz dessa vez era de preocupação.
— Logo que ele passou mal chamamos a ambulância. Ele foi levado pro hospital e submetido a procedimentos médicos. Vai ficar internado até amanhã. Já está fora de perigo.
— Quando isso aconteceu?
— Há três dias.
— Três dias? Rosa Maria, por que não me telefonou antes?
— Eu não queria incomodar você.
— Incomodar? Você é minha noiva, não me incomoda.
— David, os serviços prestados pelo hospital custaram muito caro e eu e minha mãe não temos como pagar. A conta ficou muito alta. Não sei o que faremos, não posso assumir essa dívida.
— Meu amor, estou viajando até aí ainda hoje. Fica calma. Amanhã de manhã eu chego. Promete que vai ficar bem? – David perguntou, com voz doce.
— Tudo bem, eu prometo.
— Agora eu tenho que desligar. Se precisar de qualquer coisa, me avisa.
— Obrigada, meu amor – agradeci.
— Te amo. Tchau. – Ele desligou o telefone.
Naquele instante pude sentir o David mais próximo de mim, pude sentir ainda mais seu afeto, sua generosidade, sua entrega e dedicação genuínos. Esse era o amor que não se encontra todo dia em qualquer lugar, era o presente especial que a vida havia me trazido.
***
Na manhã seguinte, minha mãe e eu estávamos no hospital novamente, aguardando meu pai receber alta médica. Senti um alívio na alma quando avistei o David adentrar a sala de espera. Ele era meu anjo, o homem que resgatou minha alma da solidão, que resgatou o meu coração do abismo que é o desamor, a desilusão e a desesperança.
— David! – Pulei em seu pescoço e o abracei com força.
— Meu amor. Doralis. Não se preocupem. Estou aqui para ajudar no que precisarem. Como está o meu amigo Santiago? – David perguntou, demonstrando preocupação.
— Ele vai receber alta a qualquer momento, estamos aguardando – respondi.
— Obrigada por ter vindo, David – minha mãe agradeceu.
— Bom, me esperem aqui. Vou pagar a conta e ver como está o meu amigo Santiago – David disse, com semblante de satisfação por estar ali e poder nos ajudar.
Depois que David se retirou, minha mãe se aproximou de mim e disse:
— Está vendo, minha filha? É disso que eu estou falando. Sem o David conosco, quem iria pagar a conta? Sem ele não vamos sobreviver nesse país, não com o estado de saúde do seu pai piorando a cada dia.
Depois de ouvir as palavras de minha mãe, senti um nó na garganta. Enfim eu comecei a perceber que ela tinha razão por sentir todos os seus temores, temores esses que a assombravam de modo constante. Infelizmente o David era uma espécie de garantia de sobrevivência para ela. Eu não suportei aquele momento e comecei a chorar até soluçar.
Alguns minutos depois o David voltou e me encontrou em lágrimas.
— Rosa Maria, por que está chorando?
— Porque eu não queria que essas coisas estivessem acontecendo – respondi, soluçando.
— Meu amor, já está tudo bem. Eu já paguei a conta e seu pai já recebeu alta, já está vindo ao nosso encontro. Ele está bem, o médico está conversando com ele sobre o tratamento. Não chore. – Ele enxugou minhas lágrimas e me abraçou.
— David – chamei pelo seu nome.
— Sim – respondeu.
— Você já conversou com seus filhos sobre você e eu? – Eu queria muito saber, pois sentia a necessidade de conhecer sua família.
— Ainda não, mas nessa semana eu viajo para o Canadá e vou conversar com eles sobre nosso relacionamento, sobre a nossa decisão de nos casarmos. Não se preocupe, tudo vai ficar bem – ele me garantiu.
Naquela manhã, como de costume, depois de tomar meu café, abri o aplicativo para verificar minhas mensagens. Era praxe eu me comunicar com amigos latinos que me passavam notícias do meu país. Mas aquela vez foi diferente, eu tive uma surpresa, a pior de todas.
Eu havia recebido duas mensagens: eram dos filhos do David, uma da Jenna e outra do Jacob. De alguma forma não muito legal eles descobriram meu relacionamento com o pai deles. Jenna não aceitava, principalmente pelo fato de eu ser quase trinta anos mais nova que seu pai. Ela me disse coisas horríveis, palavras ofensivas, me humilhou.
Jacob também disse horrores pra mim, me chamou de interesseira, me acusou de estar com o pai deles só pra conseguir um Green Card e ser sustentada por um americano trouxa. Proferiram a mim vários outros adjetivos pejorativos. Jacob ainda fez uma ameaça: ele disse que, se David ficasse comigo, ele proibiria o pai de ver os netos, eles romperiam as relações com o pai. A guerra estava declarada.
Entrei em choque e comecei a tremer de nervoso. Nunca havia sido tão humilhada em toda a minha vida. A Jenna e o Jacob me viam como o pior ser humano do mundo, pior do que lixo. Foi o que senti diante das palavras dirigidas a mim.
Pelo que a Jenna me disse, parece que ela visitou o David de surpresa, pegou o celular dele e descobriu tudo. Viu nossas fotos juntos, e sei disso porque ela chegou a comentar que eu e o David em fotos éramos ridículos.
O David viria no dia seguinte conversar comigo antes de ir ao Canadá explicar tudo aos seus filhos. Mas não houve tempo: descobriram antes e já estavam me ofendendo, me magoando, me humilhando com tantas palavras horríveis.
Eu caí em prantos, chorei demais, quase me senti aquele lixo que Jenna e Jacob disseram que eu era. Naquele dia me tranquei no quarto. Eu não queria ver nem falar com ninguém. Era hora de pensar em novos rumos pra minha vida.
O David me ligou várias vezes durante aquela noite, mas eu não atendi. Enviou várias mensagens de texto, mas não respondi nenhuma. Ele não tinha ideia das mensagens que seus filhos haviam me enviado.
***
Naquele dia eu enfrentei uma forte crise de gastrite. A dor era quase insuportável. A decepção e o estresse desencadeavam esse mal no meu corpo. Ouvi alguém bater à porta. Era o David, e ele queria falar comigo. Durante o dia todo eu não havia atendido às suas chamadas, nem respondido às suas mensagens.
Eu estava quase me deitando, com as mãos sobre o estômago. David se aproximou de mim, quis me beijar, mas desviei meu rosto.
— Rosa Maria, o que foi? Você está bem? Aconteceu alguma coisa? Sua mãe me disse que você passou o dia todo com fortes dores no estômago. Fiquei preocupado, você não atendeu minhas ligações. Tem algo que eu preciso te falar, é importante – ele disse, se aproximando novamente. Tentou me beijar mais uma vez, porém eu recusei. – Meu amor, você está estranha. Se aconteceu alguma coisa, me diga logo o que há. Você nunca recusou meu beijo.
Meu coração começou a bater aflito pelas coisas que eu teria que lhe revelar. Eu não merecia passar por tudo aquilo e, mesmo sabendo que ele me amava de verdade, eu precisava resgatar minha dignidade.
— Sim, David. Aconteceu algo muito ruim. Mas pode falar primeiro, percebo seu olhar aflito – eu lhe respondi, dando-lhe a palavra.
— Minha filha Jenna apareceu de surpresa lá em casa pra passar dois dias comigo. Na primeira noite antes do jantar, ela pediu pra usar meu celular. Por descuido eu permiti, sem me dar conta das coisas que ela poderia descobrir. A Jenna viu as nossas fotos juntos, viu suas fotos e informações. Ela sabe que eu e você estamos namorando e até que pretendemos nos casar. – Ele me contou o que eu praticamente já sabia.
— Como ela reagiu ao descobrir nosso relacionamento? – perguntei, como se eu ainda não soubesse.
— Ela reagiu de maneira péssima, me disse barbaridades, pegou as coisas dela e foi embora de volta ao Canadá naquela mesma hora. Ela não aceita o fato de você ser muitos anos mais nova do que eu. Pela sua aparência e nome, ela sabe que você é latina e acha que só quer se aproveitar de mim, que você só está comigo por interesse. Eu deveria ter viajado antes ao Canadá e conversado com os meus filhos sobre nosso relacionamento, pra evitar que eles soubessem de tudo dessa forma.
— Eu já imaginava que as coisas tivessem acontecido assim.
— Eu sinto muito, Rosa Maria. Eu deveria ter conversado com meus filhos antes.
— Sim, você deveria ter conversado com eles antes disso acontecer. – Comecei a derramar minhas lágrimas. Em poucos segundos meu rosto estava todo molhado.
— O que houve, meu amor? Você parece estar mal desde o momento em que eu entrei nesse quarto. O que tem a me dizer? – David perguntou com o olhar aflito.
— David, eu já sabia que os seus filhos não me aceitam.
— Já sabia? Como? – Ele se mostrou surpreso.
— Ontem pela manhã eu fiz meu login na rede social, como de costume, e me deparei com duas mensagens que me afetaram moralmente. Na verdade, as mensagens me humilharam, me denegriram.
— E que mensagens foram essas? Quem as enviou? – David perguntou-me, ainda mais apreensivo.
— Seus filhos Jenna e Jacob escreveram as mensagens.
— Meus filhos?
— Sim.
— E o que eles te disseram?
— Seus filhos me disseram coisas horríveis, me chamaram de sem-vergonha, caçadora de Green Card, oportunista, aproveitadora, interesseira, sem caráter e de tantos outros adjetivos pejorativos que eu prefiro não mencionar – desabafei, enquanto enxugava minhas lágrimas.
— Meu Deus, que coisa horrível! Eu sinto muito, meu amor. Eu não queria que fosse assim. Estou tão arrasado quanto você.
— Seus filhos ainda me disseram que eu vou destruir a sua vida e que se nós ficarmos juntos eles não falam com você nunca mais. O Jacob afirmou categoricamente que se você ficar comigo ele vai te proibir de ver seus netos. Disse que você não é um bom exemplo pros filhos dele.
— Estou chocado com isso e gostaria que não fosse verdade.
— Seus filhos me chamaram de meretriz, e esse é o termo mais suave que eu encontro pra traduzir todas as palavras degradantes que eles escreveram contra mim. E tem mais: a Jenna disse que eu só quero engravidar de você pra garantir os meus direitos aqui nesse país e ter alguém que me sustente. David, para os seus filhos eu não valho nada, pra eles eu sou um lixo humano.
— Droga! Eu sinto muito, eu lamento mesmo a atitude deles. Quem meus filhos pensam que são pra te ofender assim de maneira tão baixa? Eles realmente acreditam que podem me proibir de ver meus netos? – David disse em voz alta, transparecendo sua fúria pelos olhos. – Eu deveria ter conversado com eles e esclarecido tudo desde o início do nosso namoro, eu deveria ter exigido respeito. Rosa Maria, meu amor, você não merece ouvir isso, você não merece passar por isso. Eu prometo resolver essa situação o mais rápido possível. – Ele tentou me segurar pelos ombros.
Eu estava muito nervosa, meu coração batia mais forte de raiva e desilusão por lembrar que eu havia sido tão humilhada pelos filhos do homem que eu amava. Naquele momento, a dor da decepção, a dor da verdade era mais forte do que toda a minha coragem e ânimo de levar aquele relacionamento adiante. A desilusão e o choque de realidade eram muito grandes. Saber que eu não era bem-vinda na família, saber que eu era tão malquista assim acabou comigo. Me senti fracassada. É por isso que naquele momento tive que dizer a ele com voz balbuciante, o corpo trêmulo e olhos vertendo lágrimas:
— Não, David. Você não vai resolver nada. Essa será uma guerra sem fim. Eu nunca fui tão ofendida em toda a minha vida. É melhor terminar nosso namoro. Nosso noivado acabou. Vai ser melhor assim, cada um vive sua vida do jeito que for possível.
— Como assim acabou? Isso não é um jogo que a gente simplesmente termina, desiste quando tudo fica difícil. Estamos falando de sentimento. Rosa Maria, olha pra mim. Eu sei que você está magoada e se sentindo humilhada, e com toda a razão. Mas nosso amor tem que estar acima de tudo isso, acima das piores coisas, acima das piores baixezas humanas. Meus filhos têm a vida deles e eu preciso ter a minha.
— Sim, estamos falando de sentimento, estamos falando de coração, e o meu já não aguenta mais ser pisado, já não aguenta mais tanta humilhação, não aguenta mais sangrar. Acabou, entendeu? Não é só pelas mensagens dos seus filhos, é pelo que eu teria que aguentar pelo resto da minha vida se decidisse ficar com você. E tem mais: não é justo que você tenha que se afastar dos seus filhos e dos seus netos por minha causa. David, seus filhos não aceitam que eu seja tão mais jovem do que você, eles não aceitam o fato de eu ser mais jovem do que eles. Eles pensam que eu sou uma imigrante vislumbrada e oportunista.
— Meu amor, calma, me escuta. Nós não podemos terminar nosso relacionamento assim por causa dos caprichos e da falta de respeito dos meus filhos. Eles não podem ofender dessa forma alguém que eles nem sequer conhecem. Terminar nosso noivado por causa disso não é justo com você e não é justo comigo também. Eu tenho direito de viver minha vida independentemente do que pensam meus filhos. Eu e você estávamos tão felizes! Você me completa, você alegra a minha vida e eu a sua. – Os olhos dele já estavam cheios de lágrimas.
— E o que tem sido justo na minha vida até agora? Eu fugi do meu país, onde as pessoas estão comendo carne de cachorro pra não morrerem de fome, e agora estou aqui em um país estranho, com pessoas estranhas, dependendo da misericórdia de quem me detesta! Continuo sendo humilhada, continuo sendo lembrada de que sou apenas uma imigrante sem destino, sem futuro, porque é isso que todo mundo pensa quando me olha.
— Não fale assim. Eu amo você. Juntos nós teremos um futuro lindo. Nós vamos nos casar.
— Não me chama de meu amor. Nós não vamos mais nos casar. Acabou, David. Tudo não passou de um sonho, nós não podemos ficar juntos. – Tentei fazer com que ele compreendesse a realidade.
— Por que não, Rosa Maria? Nós temos tudo pra sermos felizes.
— Será que você não enxerga? Eu e você somos de mundos diferentes. David, eu só vou estragar a sua vida e te separar da tua família. Os seus filhos são mais importantes do que eu, uma latina que você conheceu há pouco mais de um ano. Eu cansei de tudo isso. Às vezes eu penso que seria melhor eu arrumar minhas malas, voltar de uma vez pro meu país e enfrentar tudo que eu tiver que enfrentar, sofrer tudo que eu tiver que sofrer lá. Eu não vou ter paz mesmo. – Mais lágrimas caíam dos meus olhos. Eu mantinha minhas mãos apertando meu estômago, e a dor só aumentava.
— Eu sei que você está sofrendo, a sua dor também é a minha. Mas não podemos terminar tudo assim, no afã da emoção. Nós somos adultos e podemos encontrar uma solução para esse problema. Eu vou até o Canadá exigir que meus filhos se retratem com você, vou exigir respeito e colocar as coisas em seu devido lugar. Tudo bem, eles não precisam te aceitar, eles não precisam gostar de você, mas precisam te respeitar. Eu sou o pai deles e eles me devem o mínimo de consideração, eles me devem respeito também. Eu dei tudo pra eles, eu fiz tudo por eles, depois que minha esposa faleceu eu fui tudo pra eles. Agora eu só quero viver minha vida ao lado da mulher que eu amo, e essa mulher é você.
— Sabe, ter sido chamada de meretriz pelos filhos do homem que eu amo foi a maior humilhação que eu já passei em toda a minha vida. Eu juro que a minha vontade agora é de arrumar minhas malas e voltar pro inferno que é o país de onde eu vim. Eu prefiro voltar pra lá e comer lixo do que continuar aqui, nessa terra estranha, sendo tão humilhada, passando tantas dificuldades. Eu já cansei disso. Já pensou o que os seus filhos vão dizer aos seus netos? Vão dizer que o avô deles se casou com uma prostituta. Que vontade que eu sinto de ir agora até a imigração e pedir pra ser deportada! – exclamei, com meu pranto ainda mais intenso.
— Rosa Maria, pelo amor de Deus, não fale assim. Eu sei que você está sofrendo, eu sei que você foi humilhada da pior maneira possível. Mas eu amo você e vou até o Canadá exigir dos meus filhos respeito. Se eu tiver que me afastar deles pra sempre pra ficar com você, eu me afasto. Eu não me permito deixar de ser feliz por eles nem por ninguém nesse mundo.
— Não. Você não vai se afastar da sua família por minha causa. Se fizer isso agora, no futuro você será um homem infeliz e frustrado por ter largado seus filhos e seus netos por minha causa. Eu não quero isso, eu não quero separar pais e filhos. Eu não quero ser responsável pela guerra dentro de uma família. – Tentei fazer com que ele entendesse o meu lado da história.
— Você aceitou se casar comigo, você me ama, eu te amo. E eu não vou permitir que as opiniões de quem quer seja nos separem. Eu não aceito isso e jamais aceitarei. Se você não me amasse, tudo bem, mas lá na praia você se declarou pra mim. Você disse que, naquela noite, no quarto, nós respiramos amor. Já começamos a planejar nosso casamento. Você não faz ideia da felicidade que eu estava sentindo, Rosa Maria. – David implorou mais uma vez.
— Sabe o que as pessoas pensam quando elas me veem com você nas ruas, nos restaurantes? – perguntei.
— O que elas pensam?
— Elas pensam “olha lá a garota de programa estrangeira divertindo o americano”. Ou elas pensam que sou sua amante mais jovem, a latina bonitinha, no mínimo.
— Não fala assim. É muito ruim ouvir você dizer essas coisas.
— Eu sei, é ruim. Mas a realidade é triste mesmo, e ter ficado com você foi o maior erro da minha vida. Eu deveria ter ido embora com o Endry, o meu primeiro grande amor. Mas não! Fiquei com a ilusão besta de primeiro estudar, construir uma carreira e um belo dia encontrar o príncipe encantado e casar vestida de branco com ele na igreja. Como eu sou idiota.
— Cala a boca, Rosa Maria! Você não sabe o que está dizendo. Você não pode jogar fora tudo o que a gente construiu até agora. O nosso amor vale mais que tudo isso.
— Agora você voltou a me dar ordens. Quer que eu fique quieta? A verdade dói, não é, senhor Jenkins?
— A única verdade aqui é que eu e você nos amamos. Vou ao Canadá resolver essa situação de uma vez por todas. Daqui mesmo eu já embarco pra lá, minhas bagagens estão na casa do Paul. Meus filhos terão que entender, eles precisam respeitar você e pedir desculpas por todas as barbaridades que te disseram. – David chorava muito naquele instante, até sua camisa estava molhada de lágrimas.
— Com seus filhos faça o que você quiser. Agora, por favor, sai daqui, vai embora, eu quero ficar sozinha no meu quarto. Eu preciso descansar, estou sentindo muita dor no estômago – eu disse, em tom de voz alterado, apontando em direção à porta.
David baixou a cabeça e, sem dizer nada, saiu do quarto. Me joguei na cama e chorei como nunca.
***
A dor no meu estômago veio avassaladora. Era uma gastrite crônica e sem cura. Sempre que eu ficava nervosa, a dor piorava. Meu pai entrou no quarto pra saber o que havia acontecido:
— Minha filha, o que houve? O David passou por mim de cabeça baixa, chorando. Perguntei o que tinha acontecido, mas ele não me respondeu. Saiu depressa, parecia muito aflito.
— Pai, meu relacionamento com o David acabou – respondi, já deitada na cama com as mãos no estômago.
— Mas por quê? Vocês pareciam tão felizes. – Meu pai sentou-se à beira da cama.
— Hoje cedo eu recebi mensagens dos filhos dele.
— O que diziam as mensagens?
— Coisas horríveis, pai! Os filhos dele não aceitam o fato de eu ser mais jovem, acham um absurdo. O pior é que me chamaram até de meretriz. Disseram que eu sou uma imigrante interesseira, aproveitadora, disseram que eu só estou com o David pra conseguir o Green Card e alguém que me sustente.
— Eu sinto muito, minha filha. Mas será que terminar um relacionamento por esse motivo não foi uma atitude precipitada da sua parte? – Meu pai propôs a mim essa reflexão.
— Eu já estou cansada de tudo isso. Todo mundo que me vê com o David pensa que eu estou com ele só pra conseguir um maldito documento! Às vezes eu penso se não seria melhor voltar ao nosso país e comer carne de rato do que continuar aqui nessa terra estranha sendo humilhada e chamada dos piores adjetivos possíveis. Não é isso que eu sonhei pra minha vida, pai. Eu não gosto de passar fome, mas também não quero perder a minha honra, pai.
— Eu entendo você. Chore, Rosa Maria. Chore no colo do seu pai. Sabíamos que a vida de imigrante não seria fácil. Existe o preconceito em toda parte e mais ainda no seu caso. Os filhos do David são mais velhos do que você e é por isso que estão indignados. Ainda existe o medo de que você se case com o David e tenha mais filhos. É claro que eles acreditam que o seu único interesse no pai deles é garantir os seus direitos e sustento aqui na América. Eu sei de tudo isso. Mas procure colocar-se no lugar deles e do David também. Não é uma situação fácil pra nenhum de nós.
— Já me coloquei no lugar deles e por isso mesmo terminei tudo com o David. Pai, por que o amor surgiu mais uma vez em minha vida em condições tão complicadas?
— Minha filha, nosso coração não escolhe a hora certa de amar, às vezes acontece contra a nossa vontade. A vida é assim. – Meu pai afagava meus cabelos enquanto eu mantinha minha cabeça em seu colo.
***
O pior de tudo foi quando minha mãe entrou no quarto gritando, perguntando detalhes do meu rompimento com David. Meu pai havia lhe adiantado o assunto. Depois de saber que eu de fato havia terminado o noivado e os motivos da minha decisão, ela exclamou desesperada:
— Filha, me escuta. Que se danem os filhos do David, que se dane o mundo! O importante é você se casar com ele, ter um filho com ele e garantir o seu futuro, o nosso futuro aqui na América ou em qualquer outro país com condições de vida!
— Pra você tudo se resume em garantir nosso futuro, não é, mãe? A senhora não se importa com os meus sentimentos. Pra senhora, pouco importa se a minha vida vai virar um inferno me casando com o David – respondi.
— Inferno? E desde quando ouvir uns xingamentos de enteados mimados é inferno, minha filha? Sabe o que é inferno? Eu vou te dizer. Inferno é ter que voltar pro país de onde nós viemos e ter que revirar o lixo pra achar o que comer! Rosa Maria, você não percebe que os motivos que te fazem desistir do David são ridículos e pequenos perto de tudo que você pode conseguir ficando com ele?
— Mãe, você não me entende. Eles me chamaram de coisas horríveis. Como eu posso entrar pra uma família de pessoas que me odeiam?
— A única coisa que importa é que o David te ama. Quantas vezes eu vou ter que te dizer pra tirar dessa sua cabeça a fantasia do amor romântico perfeito? Filha, mais uma vez eu vou pedir: me escuta. O amor sempre vem com pedras e espinhos no caminho. Essas pedras e espinhos vão machucar muito, vão doer na sua alma, mas só quem suporta tudo isso consegue conhecer o amor, que na verdade é um prêmio, um prêmio que chega somente aos mais fortes – ela tentou me convencer.
— Eu não quero esse prêmio, não à custa da minha honra – respondi, quase já sem forças pra falar.
— Pra onde foi o David?
— Ele foi ao Canadá, pra conversar com os filhos dele sobre mim. Disse que vai exigir que os filhos me respeitem e que peçam desculpas pelo que me disseram.
— Pois bem, enquanto ele está viajando é bom que você reflita sobre tudo que aconteceu e tome a decisão correta. Quando ele voltar, é bom que você esteja pronta pra aceitá-lo de volta em sua vida. Agora eu vou deixar você sozinha pensando. Vou preparar um chá pro seu estômago. – Ela beijou minha testa e saiu do quarto.
***
David me ligou várias vezes durante aquela noite, mas eu não atendi. Enviou mensagens e eu não as respondi. Eu já havia me decidido. No dia seguinte eu iria embora para Los Angeles. Aceitei a oferta de trabalho no hotel do senhor Hernandez. Já há tempos a Marieta havia me indicado a uma vaga de camareira. Liguei para Alejandra, cunhada da Marieta, e combinei tudo.
Sim, eu estava muito magoada pelas coisas que haviam acontecido. Meu coração sangrava. Naquele momento o David não fazia mais parte dos meus planos. Eu seguiria em frente da maneira que fosse possível. Ter que dizer adeus ao homem que eu amava era doloroso, mas a dor em minha alma pelas palavras amargas cravadas em meu coração e pela minha realidade cada vez mais complicada me machucavam muito mais.
Arrumei minhas malas. Minha mãe ficou furiosa, gritou, fez escândalo, não aceitava meu rompimento com o David. Ignorei seus apelos, peguei minhas bagagens, meu peixinho e embarquei no ônibus para o meu destino. Antes, apenas abracei meu pai e prometi que lutaria para pagar seu tratamento e lhe dar uma vida digna. O trajeto durou pouco mais de uma hora. Eu precisava mesmo ficar um tempo longe da minha mãe. A convivência com ela se tornaria insuportável a partir de então. Eu precisava ficar sozinha.
Minha chegada a Los Angeles foi tranquila. Eu precisava mesmo respirar outros ares. A vida lá era mais cara, porém também se ganhava mais. Fiquei no apartamento que a Alejandra conseguiu com aluguel pela metade do preço. Os amigos latinos por vezes tinham empatia por nós imigrantes sem status e nos ajudavam.
O apartamento era pequeno, localizado em um bairro humilde, no Rancho La Tajauta, longe do centro da cidade, mas era bom o bastante para me acomodar. Tirei meu celular da bolsa e notei que havia várias mensagens do David. Não li nenhuma. Guardei de volta o telefone na bolsa e segui pro hotel. Alejandra e o gerente me esperavam para uma conversa. Eu mal podia esperar para iniciar meu novo trabalho.
***
Enfim eu havia chegado ao Hotel Ilhas Cayman, um local deslumbrante, de frente para a praia; uma extensa avenida adornada com palmeiras dava as boas-vindas aos hóspedes que chegavam. Sua fachada exuberante aliada aos ares vindos do mar fazia aquele hotel parecer mesmo um pedaço do Caribe. O hall de entrada fazia me sentir naqueles filmes americanos que eu assistia na TV. Pessoas muito bem vestidas circulavam por ali, vindas de várias partes do país e do mundo. Eu me apresentei na recepção e fui orientada a seguir para o escritório da gerência. Logo a Alejandra apareceu e me conduziu ao caminho correto.
O senhor Hernandez já nos aguardava em sua sala para conversar. A partir de então, a Alejandra esteve ao meu lado o tempo todo.
— Senhor Hernandez, essa é minha amiga Rosa Maria Rodríguez – Alejandra me apresentou.
— Como vai, senhorita Rodríguez? Sentem-se, por favor. – Hernandez me cumprimentou com um aperto de mão.
— É um prazer conhecê-lo, senhor Hernandez. Estou muito feliz por ter essa oportunidade. Seu hotel é lindo. Será uma honra trabalhar aqui – eu disse.
— Fico contente que tenha gostado de tudo por aqui. Acredito que vai se adaptar logo.
— Eu não tenho dúvidas – respondi.
— A Rosa Maria é uma pessoa muito dedicada – Alejandra me elogiou.
— Sabe, um dia eu já fui um imigrante em situação difícil, assim como você. E com muito trabalho e muita luta, me tornei dono dessa rede de hotéis – Hernandez me contou, parecendo querer me animar com aquela oportunidade.
— É incrível. Espero algum dia chegar perto do seu sucesso de vida.
— Acredito que Alejandra já tenha adiantado a você algumas regras do hotel.
— Adiantei, claro – Alejandra disse.
— Dentre as regras, uma das mais importantes é não manter conversas de cunho pessoal com os hóspedes aqui dentro do hotel.
— Ah, sim. Minha amiga já me adiantou algumas coisas, especialmente essa regra. Nada de conversas íntimas com os hóspedes. – Mostrei que estava atenta às ordens.
— O pagamento é semanal e os horários de entrada e saída devem ser cumpridos com rigor. A Alejandra vai lhe dar seus uniformes, mostrar o vestiário e o refeitório dos funcionários.
— Muito obrigada por tudo, senhor Hernandez. Serei eternamente grata por essa chance. Estou precisando muito desse trabalho.
— Bem-vinda ao Sofitel Ilhas Cayman, senhorita Rodríguez.
***
Depois do meu primeiro dia de trabalho, a Alejandra me levou pra casa de carro. Durante o trajeto, tivemos uma conversa de amigas. Na verdade, aquele era o início de uma longa amizade. Ela era uma mulher mais velha, tinha uns trinta e dois anos, e mais experiência do que eu nos campos do amor.
Fiquei calada quase o tempo todo. Foi Alejandra quem iniciou a conversa. Certamente ela havia notado a angústia que de certa forma havia escondida em meu olhar.
— A Marieta me contou que você terminou seu relacionamento com o David.
— As notícias correm rápido. O David deve ter enchido os ouvidos do Juan, que por sua vez já comunicou tudo à Marieta. Sim, eu terminei tudo com ele. Tivemos uma conversa desagradável. Eu rompi, mas acho que ele ainda não se deu conta disso, nem sabe que estou aqui em Los Angeles, a não ser que minha mãe já tenha dito a ele.
— Rosa Maria, eu já fui uma imigrante ilegal nesse país, mas com a ajuda de amigos consegui me legalizar. E hoje tenho minha profissão, meu emprego como chefe de cozinha, e já há algum tempo conheci o homem da minha vida, o Dylan, um americano lindo de todas as maneiras. E o melhor é que a família dele me aceitou numa boa.
— Isso porque você e o Dylan têm quase a mesma idade. No meu caso é muito complicado. Sabe, eu nunca desejei amores complicados, mas dizem que a gente não escolhe quem vamos amar, dizem que o amor acontece algumas vezes independentemente da nossa vontade. Os filhos do David me detestam, além de terem feito mil ameaças ao pai se ele ficar comigo. Eu não posso conviver com isso.
— Eu tive sorte de ter um homem que tem tudo a ver comigo e uma família que me aceita. Mas o seu caso não é regra. Os americanos são bons. O preconceito existe em todos os países do mundo, e na sua situação mais ainda. Eu só acho que você não deveria desistir do homem que você ama assim, sem lutar um pouco mais. Sei que não é fácil ouvir as coisas horrorosas que os filhos dele te disseram, só que você merece ser feliz ao lado de quem ama, e o David também te ama muito. Eu o conheço há anos e garanto que ele saberá como agir pra te defender. Ele é um homem honrado e de coragem.
— Pelo que vejo, você já sabe da história toda, e certamente já comentou com a Marieta que estou aqui em Los Angeles. A essa hora o David já sabe sobre meu novo emprego, sobre meu novo lar.
— Sim, você tem razão. A Marieta perguntou por você e eu disse que hoje foi seu primeiro dia no hotel.
— É, o David tem um exército de amigos pra defenderem os interesses dele.
— São os seus interesses também, e não adianta me dizer que não.
— Eu só quero trabalhar e lutar por uma vida melhor, com as minhas próprias mãos, sentindo e suportando a minha própria dor.
— Sei que você vai conseguir, Rosa Maria. Estou aqui pra te apoiar, pode contar comigo.
— Eu sou muito grata por tudo que você e sua família têm feito por mim, Alejandra. – Agradeci com um sorriso.
Meus primeiros três dias em Los Angeles enfim já haviam se passado. Aos poucos, eu me adaptava à nova rotina de trabalho no Sofitel Ilhas Cayman, com toda a sua sofisticação. No início do verão, como aquele que se iniciava, o hotel costumava receber turistas de várias partes do mundo.
O clima da praia me fazia bem. Eu já estava sentindo falta da sensação de bem-estar que o contato com a natureza nos traz. Já havia experimentado isso em Ocean City, lugar em que eu sentia a brisa vinda das águas do oceano tocar meu rosto de modo tão suave, me fazendo sentir como se o mundo estivesse em paz. Passei a tirar um tempinho todo dia depois do expediente para sentar-me na areia e admirar o mar.
Ainda ao fim daquele dia, depois dos meus minutos na areia da praia, a Alejandra me deu uma carona até em casa. Mais uma vez a agradeci por tudo que ela estava fazendo por mim. Ela era uma mulher alegre e otimista, sempre gentil e disposta a me ajudar. Antes de começar a trabalhar no hotel, eu já havia tido alguns contatos com ela, nos vimos em algumas ocasiões na casa do Juan. Mas foi só depois de trabalharmos juntas que nos tornamos amigas.
— Alejandra, mais uma vez obrigada por tudo. Sou muito grata pela sua ajuda. Eu preciso desse trabalho agora mais do que nunca, e não é só pra poder comprar os remédios do meu pai, mas também porque a convivência com a minha mãe estava se tornando insuportável. Eu estava precisando mesmo mudar de ares – eu disse.
— Eu imagino. Você ainda está assim por causa da sua história com o David, não é? – ela me perguntou, como se pudesse adivinhar meus pensamentos.
— É por isso também. Além de tudo, minha mãe não aceita o fato de eu desistir de me casar com ele.
— Rosa Maria, eu não quero me intrometer na sua vida, mas acho que dessa vez sua mãe pode ter razão. Se você ama o David, não deveria desistir assim tão fácil. Você tem que lutar pra ficar com o amor da sua vida. Sabe, eu fiquei pensando naquilo que você me contou sobre o dia lindo em que você deu de presente pra ele a peça de xadrez. – Alejandra relembrou-me o momento mais feliz que eu havia vivido até então.
— Alejandra, por que você está me dizendo isso agora?
— Porque depois que você me contou sobre esse dia, fiquei imaginando tudo e me emocionei. É difícil encontrar alguém que nos complete como o David te completa. O que aconteceu entre vocês parece até amor de cinema, de filme de Hollywood.
— Só se for filme de tragédia. Alejandra, será que você também se lembra das coisas horríveis e degradantes que os filhos dele me disseram por mensagem?
— Amiga, é claro que eu me lembro, você me contou tudo, cada detalhe. Mas é o que eu te disse: você precisa lutar pelo homem que você ama, e não simplesmente desistir quando a batalha começa.
— Acho que ninguém me entende. Eu, mais do que ninguém, sei que é preciso muito mais do que amor pra duas pessoas ficarem juntas – afirmei.
— E o que mais é preciso, Rosa Maria?
— Dinheiro, dinheiro pra pagar as contas e sobreviver. É preciso paz, um pouco de paz. O Endry e eu nos amávamos, mas não ficamos juntos porque no nosso país não havia paz nem dignidade, nem dinheiro.
— Eu entendo suas dificuldades, a dor que você está sentindo, mas tenta descansar e esfriar a cabeça. Pensa com calma sobre tudo isso. Escuta um pouco o seu coração e não somente a razão. Amanhã a gente se vê no hotel. Fica bem. – Nesse momento, Alejandra parou o carro em frente ao meu prédio.
— Está certo, vou tentar descansar e pensar com calma sobre tudo o que está acontecendo. Até amanhã. – Beijei seu rosto e saí do automóvel.
***
Já passava das oito horas da noite quando cheguei em casa após mais um dia de luta. Tomei banho, vesti meu pijaminha, short e camiseta, e fui até cozinha preparar um lanche. As palavras da Alejandra ainda latejavam em minha mente, mas eu não conseguia enxergar os fatos como os outros enxergavam. Meu coração estava magoado e minha alma ferida por eu ainda não levar a vida digna com a qual eu tanto sonhava. Não ter o respeito das pessoas às vezes pode ser a pior coisa que nos vem a acontecer, assim como comer lixo, assim como passar fome.
Eu havia acabado de abrir a geladeira pra pegar o pão de fôrma quando a campainha tocou. Levei o susto súbito de quem não espera ouvir esse barulho àquela hora. Até imaginei que fosse a Alejandra do outro lado da porta, afinal eu ainda não conhecia mais ninguém naquela cidade. Aliás, esse tipo de coisa já havia acontecido na primeira vez em que ela me levou ao apartamento (ela havia saído e depois voltado pra me entregar a chave de um armário). Então imaginei que fosse ela ali, voltando pra me entregar alguma coisa que de repente eu havia esquecido no carro.
Abri a porta e, para minha surpresa, não era a minha amiga, que inclusive naquela hora já deveria estar bem longe dali. Era o David! Sim, lá estava ele com seu olhar ansioso, semblante aflito e uma mochila nas costas.
— David! – eu disse, surpresa.
— Rosa Maria, precisamos conversar – ele disse, mantendo seus olhos arregalados, nervosos.
— Estou surpresa, não imaginava que fosse você aqui.
— Como você não respondeu às minhas mensagens, liguei pra sua mãe e ela me passou seu endereço. Depois o Juan também me disse que você estaria aqui – ele se explicou.
— Ah, sim. Entre – eu disse, indicando com a mão que ele poderia passar para dentro.
— Com licença. – Ele entrou e largou a mochila sobre a mesa.
Eu fechei a porta, mas não a tranquei.
— Eu cheguei há pouco do trabalho, tomei um banho e já ia preparar um sanduíche. Você já jantou? Está com fome? Eu posso preparar um sanduíche pra você também. – Eu quis ser gentil, até porque ele estava com uma aparência de cansaço, aflição.
— Eu não estou com fome – ele disse, com semblante sério.
— Está hospedado em algum hotel aqui perto? – perguntei, angustiada pra saber.
— Não verdade eu desci no aeroporto, peguei um táxi e vim direto pra cá. Precisamos conversar. Eu ainda nem passei no hotel, nem fiz reserva. – David se aproximou mais de mim.
— Tudo bem. Estou ouvindo, David. Pode falar. – Naquele momento eu também já estava aflita.
David respirou fundo antes de começar a me explicar:
— Eu fui ao Canadá e tive uma conversa séria com meus filhos.
— Verdade? E então? Eles aceitam ter uma madrasta mais jovem do que eles? – perguntei, certa da resposta que receberia.
— Não, eles não aceitam. Meus filhos repudiam nosso relacionamento, mas eu coloquei as coisas no seu devido lugar. Exigi que eles me respeitem, exigi que eles te respeitem e que peçam desculpas a você por todas as ofensas e infâmias que te disseram. Deixei bem claro que eles não têm o direito de querer controlar a minha vida, porque eu sou o pai deles e tenho total capacidade de tomar minhas próprias decisões, inclusive aquelas que dizem respeito aos rumos da minha vida.
— É muita generosidade da sua parte exigir que seus filhos me peçam desculpas por todas as barbaridades que eles me disseram. Fico agradecida. Era só isso que você tinha pra me dizer? – Eu estava ainda mais decepcionada com os fatos.
— Como assim só isso? – Ele estava ofegante.
— David, o que você quer que eu diga? Que está tudo bem, que eu vou me casar com você e seremos felizes para sempre como nos finais dos livros de contos de fada? Meu coração está sangrando. Estou profundamente magoada, e saiba que jamais, jamais eu faria parte de uma família que me odeia, que me despreza. Eu não tenho nada de bom pra te oferecer, David. Volta pra sua casa, volta pra sua família e me esquece. Será melhor assim. – Foi impossível disfarçar o tremor do meu corpo ao pronunciar essas palavras que rasgavam ainda mais meu coração magoado e aflito por ter que dizer adeus a mais um amor em minha vida.
— Você só pode estar brincando comigo. Rosa Maria, se você soubesse o que é amar de verdade, você entenderia a dor que estou sentindo por causa de tudo isso.
— E se você soubesse o que é sofrer de verdade, você entenderia a humilhação pela qual estou passando, a dor que estou sentindo. Eu já disse, eu não sou a melhor opção pra você. Ao meu lado você só vai estragar sua vida. Já pensou ter que mudar de país só por minha causa? Isso é loucura. Mudar de país, se afastar da sua família! Nenhum amor, por maior que seja, vale todo esse sacrifício. – Tentei mostrar meu ponto de vista, minha razão, minha indignação.
— Escuta aqui, eu sou um homem de quarenta e nove anos de idade, totalmente seguro quanto aos meus sentimentos. Eu sei perfeitamente o que é bom e que não é bom pra mim. Eu sei o que eu quero pra minha vida. Eu não sou nenhum adolescente apaixonado pela primeira namorada. Se eu escolhi você pra ser minha mulher, é porque sei o que eu estou fazendo, tenho plena consciência das consequências dessa minha escolha.
— Aí é que tá. Você tem quarenta e nove anos. E será que eu, uma jovem de vinte e um anos, estou preparada e madura pra tomar a decisão correta? Será que estou preparada pra me casar com um homem vinte e nove anos mais velho, que tem uma família que me odeia? Será que vale mesmo a pena eu jogar fora toda a juventude que eu ainda tenho pra ser constantemente rejeitada e constrangida por pessoas estranhas? Acho que não, senhor David Jenkins.
— E o nosso amor? E o sentimento profundo e inexplicável que eu e você sentimos um pelo outro? Isso não conta? Estou disposto a fazer todos os sacrifícios por você, mas você não está disposta a fazer nenhum sacrifício por mim – David me acusou, apontando o dedo no meu rosto.
— O amor? O amor é uma coisa que a gente sente, guarda e esquece, pelo menos nesse caso. Não será a primeira vez que eu tenho que esquecer alguém que amo. Sabe, eu amei o Endry com toda a força do meu coração. E você não faz ideia do quanto eu sofri quando soube que ele se casou com outra mulher. Mas aí o tempo passou e você apareceu de novo em minha vida, me mostrando que é possível amar outra vez e de um jeito diferente, afinal os amores nunca são iguais. Só que chegou o momento de te esquecer. Acabou, não podemos ficar juntos – eu disse, com lágrimas correndo pelo rosto. Meu coração batia forte de angústia.
— Escuta aqui, eu também sofri muito depois que minha esposa faleceu. Passei dezoito anos sozinho, afligido pela saudade, suportando a angústia de não ter mais ao meu lado a mulher que eu tanto amava. Foram quase duas décadas tentando encontrar alguém que despertasse em mim o desejo de amar outra vez de verdade, de construir uma nova família. E então eu te encontrei, o destino trouxe você pra mim, como se fosse um milagre. Rosa Maria, você é a mulher que me faz sentir vontade de viver plenamente, construir uma nova família. As circunstâncias não são ideais, mas o que é perfeito nesse mundo?
— Nada, nada pode ser perfeito nesse mundo, David.
— Meu amor, o dia do meu aniversário, quando você me deu aquela peça de xadrez de presente, foi o dia mais feliz da minha vida. A alegria aconteceu de modo tão natural, a emoção me arrebatou. É uma pena que aquele momento tenha passado tão rápido. Naquele instante em que recebi seu presente, não restou a menor dúvida de que é com você que eu quero ficar, construir um novo lar.
— Suas palavras me comovem, mas infelizmente elas não são suficientes para apagar as mágoas, os medos e as dúvidas que permeiam e assombram o meu coração e a minha alma. Acabou e vai ser melhor assim. Volta pro seu trabalho, pra sua família, viva a sua vida longe de mim e seja feliz. Eu quero muito que você seja feliz – respondi, com o coração sangrando. Até a força da desilusão foi maior que a minha dor de estômago naquele momento.
David respirou fundo. Seus olhos estavam vermelhos de tantas lágrimas que ele derramou enquanto eu falava. Eu também chorei, meu rosto estava molhado. Ele aproximou ainda mais seu rosto do meu e me disse:
— Estou sofrendo muito e vou sofrer mais ainda longe de você. Não sei se conseguirei ser feliz depois disso. No entanto, já que tem que ser assim, eu vou embora, vou voltar pra minha casa e seguir em frente com a minha vida. Meu coração também está sangrando, Rosa Maria, até mais do que o seu. Porque eu tenho certeza de que eu te amo, eu tenho certeza de que você é a mulher com quem eu quero passar o resto da minha vida. Mas talvez você não tenha essa certeza. Adeus.
Em seguida ele virou-se em direção à porta.
— Adeus – respondi, cabisbaixa.
David estava quase abrindo a porta para ir embora quando, de repente, ele se virou novamente em minha direção. Veio depressa até mim, envolveu-me em seus braços e me beijou, me beijou com muito amor. Caímos sentados no sofá. Eu estava quase me rendendo, quando a realidade, de maneira abrupta, dominou de novo a minha mente.
— Espera, David. É melhor parar por aqui – eu disse, me afastando um pouco dele.
— Parar por quê, se a gente se ama? – Ele não largava as mãos de mim.
— Eu sei que nos amamos, mas não é o momento de continuar essa relação. Eu e você precisamos de um tempo longe um do outro. Eu ainda estou muito magoada com tudo o que aconteceu. Eu e você precisamos de um tempo afastados, pra pensar, colocar em ordem os nossos sentimentos.
— Tudo bem. Já que é assim que você quer, pode ser bom um tempo afastados. Eu vou procurar um hotel e amanhã cedo volto pra minha casa.
— Tá bom. Se cuida – eu disse, enquanto o via se retirar.
Ele se levantou do sofá, pegou sua mochila e foi embora. Senti uma dor na alma quando a porta se fechou. Eu ainda estava com lágrimas nos olhos. Era uma confusão de sentimentos difícil de explicar. Era amor, mágoa, aflição, paixão, tudo junto, de uma vez só.
Acordei antes de o sol nascer, assim como todos os dias, para assumir meu posto de camareira e servente no Sofitel Ilhas Cayman. Depois de me arrumar e colocar o meu uniforme na bolsa, o dia raiou. Aquela era uma manhã ensolarada, o clima tropical da praia me fazia bem, me dava certa sensação de liberdade.
Eu já havia me adaptado ao novo trabalho. Embora para algumas coisas eu ainda não houvesse me preparado, para outras eu estava mais do que vacinada, como, por exemplo, receber bilhetes de hóspedes querendo encontros fora do hotel. Quando isso acontecia, ou eu fingia que não via ou fingia que não entendia o que aquilo significava. Eu ignorava. Mas chocada eu não fiquei, já era de se esperar, porque, no fundo, era isso que todos pensavam que éramos.
A vida de uma imigrante ilegal na América do Norte era mais difícil do que eu havia imaginado no início. Quando estávamos desesperados pra não morrer de fome no meu país, tudo que nos importava era sair de lá, mas depois, diante da realidade daquele novo mundo cheio de promessas boas de salvação e ao mesmo tempo cheio de ameaças, a dúvida me dominava e eu pensava por uns instantes se talvez não teria sido melhor ter permanecido em meu país e enfrentado a miséria.
***
Alguns dias já haviam se passado desde que eu havia me afastado do David. O relógio marcava 8h da manhã quando, pelos corredores do hotel, eu empurrava o carrinho da refeição matinal, no qual eu levava o café aos hóspedes. Distraída em meus pensamentos inquietos, em passos rápidos, dobrei mais um corredor. Foi quando, de repente, um evento inédito ocorreu: esbarrei de maneira certeira em um jovem hóspede que por ali passava. Quando as rodinhas do carrinho pressionaram seus dedos do pé, ele já se apressou em gritar, demonstrando sentir dor e certa raiva:
— Ai! Caramba! Por que você não olha por onde... anda... – ele exclamou, baixando aos poucos o tom de voz conforme encarava minha face. Em poucos segundos ele sorriu pra mim.
Naquela hora, quando ele me deu seu largo sorriso, meu coração acelerou, pois pude contemplar sua face angelical que me fez lembrar do Endry. Aquele rapaz que estava diante de mim tinha lindos cabelos negros, olhos verdes e pele clara. Qualquer fato novo me abalava emocionalmente. Lembrar-me de alguém que eu amei tanto no passado fez meu corpo se arrepiar, tremer por dentro. Há coisas que não entendemos no exato instante em que elas acontecem. E eu não fazia ideia do porquê de eu ter esbarrado em alguém parecido com o Endry mexer comigo daquele jeito.
— Ah, me desculpe, eu sinto muito. Machuquei seu pé? Não foi minha intenção, eu deveria ter empurrado o carrinho mais devagar. Nunca esbarrei em nenhum hóspede antes. Eu sinto muito mesmo, eu estava distraída em meus pensamentos – tentei me explicar, completamente desnorteada.
— O que é isso, senhorita? Não se preocupe, foi só uma topada de leve no meu dedo do pé. Não sinto mais nada – ele me perdoou, sorrindo mais uma vez.
— Jura? Você pareceu sentir muita raiva e dor na hora em que as rodinhas do carrinho esmagaram seus dedos. Você quase me xingou – eu o contradisse.
— Exagero seu, senhorita. Estou bem. Foi apenas um susto. E, a propósito, que pensamentos são esses que fizeram uma jovem camareira sempre tão eficiente se distrair e atropelar um pobre hóspede? – Ele queria ter uma conversa mais pessoal, o que já estava ultrapassando os limites permitidos pelas regras do hotel.
De repente eu sorri sem graça e envergonhada por estar ali parada na hora do trabalho, conversando com um lindo rapaz que me fazia lembrar do meu primeiro amor.
— Nem queira saber os motivos dos meus pensamentos inquietos. Agora eu tenho que voltar ao trabalho. Os hóspedes esperam pelo café. Não posso deixá-los com fome – respondi em tom de voz triste, e já cabisbaixa por relembrar meus problemas.
— Espere! Vai sair assim sem ao menos me dizer seu nome?
Meu coração bateu mais forte novamente. Eu não entendia por que aquele rapaz queria tanto saber quem eu era. Saber meu nome não faria nenhuma diferença na vida dele, pelo menos foi isso que eu pensei naquele instante.
— Perdoe minha má educação, mas as regras são claras: nada de conversas íntimas com os hóspedes do hotel. Se alguém me ver conversando com você algo que não esteja relacionado aos serviços do estabelecimento, eu posso até perder meu trabalho – justifiquei minha recusa.
— Por que eu não poderia saber o nome de alguém que quase decepou meus dedos do pé? Por isso eu detesto essas regras bobas! Lá no Caribe as pessoas são mais livres. É por essas e outras que eu saí daqui, apesar de estar voltando agora. Mas eu entendo sua situação. Muito prazer, meu nome é Nathan Thomas, hóspede do apartamento 402. Estou passando férias aqui em Los Angeles, tenho muitos amigos na cidade dos grandes astros.
— Que legal, de férias.
— Na verdade, estou aqui dessa vez também para fazer minha matrícula na universidade. Depois volto pro Caribe pra passar uns dias com meus pais, organizar minha mudança, e em seguida venho pra cá pra morar de vez. Minha mãe é portuguesa com cidadania americana, meu pai é das Bahamas, e eu sou americano nascido aqui na Califórnia. Meus pais e eu moramos em Santa Mônica por alguns anos.
— Sério?
— Sim. Meu pai é médico e atuou por muito tempo no Hospital Regional do Coração em Santa Mônica. Depois de uma coisa que aconteceu, voltamos para o Caribe.
— Interessante. Então você é filho de imigrantes. Prazer em conhecê-lo, senhor Thomas. Meu nome é Rosa Maria Rodríguez, sou uma imigrante latinoamericana que acorda cedo todos os dias pra trabalhar, mas que no momento encontra sérias dificuldades para permanecer legalmente aqui nos Estados Unidos da América. Agora eu preciso voltar ao trabalho, caso contrário posso ser demitida.
— Uau! Parece ser uma aventura e tanto. – Nathan sorriu mais uma vez.
— Aventura? – perguntei, sem entender o que ele queria dizer com aquilo.
— Sim, uma aventura, como nos jogos de videogame, quando é preciso vencer os desafios pra conseguir avançar as fases e sobreviver. Desculpe a comparação, não sou muito bom em analogias – ele tentou se explicar.
— Acha mesmo isso uma aventura? Correr o risco de ser deportada com meus pais me parece algo bem mais difícil e desesperador do que perder uma partida de jogo de videogame. Mas entendo o ponto de vista de alguém que não enfrenta grandes problemas na vida – afirmei, como se estivesse o censurando.
Nathan retribuiu minha indignação com mais um sorriso.
— Eu lamento, senhorita. Sei que a vida na América Latina não é fácil e imagino os momentos difíceis que você deve ter passado pra chegar até aqui. – Ele demonstrava delicadeza, empatia.
— Sim, não é fácil viver lá, principalmente em meu país, que passa por uma das maiores crises política e econômica que o mundo já viu. Agora eu preciso mesmo ir. Tenho que voltar ao trabalho. Com licença. – Segui adiante, empurrando o carrinho, desta vez com mais cuidado.
Ter esbarrado no Nathan naquele corredor, daquele jeito, e todas as sensações que esse momento provocou em mim, me fizeram repensar minha vida durante todo aquele dia. Um flashback invadiu minha mente e repassei vários momentos que estavam guardados em minha memória. Recordei o dia em que o Endry me pediu em namoro na gruta e desejei que aquele momento voltasse, pra que eu pudesse me sentir amada e poder contemplar o sorriso do rapaz que foi meu primeiro e grande amor. Sim, eu senti saudade. E como eu não sentiria saudade daquilo que foi bom?
Completava um mês que David e eu estávamos separados. Nada de mensagens nem telefonemas. Sim, o silêncio doía, mas era necessário. Naquele mês fiquei afastada dos meus pais também. Eu ainda não havia voltado a Santa Ana depois que comecei a trabalhar no hotel. Eu precisava desse tempo para decidir os rumos da minha vida.
É claro que os amigos verdadeiros não me esqueceram. Além da Alejandra, que era irmã do Juan, a Marieta também se preocupava comigo. Naquele dia, ela me ligou avisando que estaria em Los Angeles para fazer compras e me convidou pra almoçar com ela. Disse que tinha algo importante pra me dizer. Eu não imaginava o que poderia ser. Marieta e o Juan eram tão felizes, se completavam.
Marcamos ao meio-dia em um restaurante popular mexicano chamado Tierra Caliente. Nunca fiquei tão ansiosa pra conversar com uma amiga como naquela ocasião. O que será que a Marieta tinha de tão importante pra me dizer?
Eu havia chegado primeiro e reservei nossa mesa. Dez depois minutos lá estava ela, entrando no restaurante, toda animada, sorridente, segurando sua bolsa rosa preferida. Eu fiz sinal com a mão para que ela me enxergasse. Logo que me viu, ela sorriu e veio ao meu encontro.
— Marieta. Que saudade de você, amiga. – Eu a abracei.
— Rosa Maria, também senti sua falta. Seus pais estão aflitos, porque você não apareceu mais – ela me contou.
— Eu tenho trabalhado muito, as coisas não estão tão simples como eu pensava.
— Entendo o que você está passando.
Ela sentou e eu também.
— A Alejandra tem sido um anjo em minha vida – confessei. – Sua família é muito importante pra mim.
— E você e seus pais são muito importantes pra gente também. Já fez o pedido? Estou morrendo de fome. – Marieta sorriu.
— Já fiz sim e acho que você vai gostar. Enchiladas cobertas com creme azedo, queijo cotija, alface, tomate e cebola, acompanhando feijão e arroz.
— Adoro enchiladas. Parece que você adivinhou meus pensamentos, Rosa Maria.
— Daqui a pouco o garçom já deve estar trazendo. Mas o que você tem de tão importante pra me contar, amiga? Sabe, eu fiquei imaginando qual seria a novidade tão importante a ponto de a Marieta querer me contar pessoalmente e não por telefone – eu disse, entusiasmada.
— A notícia que eu tenho para dar a uma grande amiga tem que ser contada pessoalmente.
— Então conta logo, porque não estou mais aguentando de tanta curiosidade. – Eu já estava aflita pra saber o que ela tinha a me dizer.
— Amiga, eu estou grávida. Juan e eu vamos ter um bebê – ela disse, sorrindo, quase pulando da cadeira.
— Que notícia boa! Parabéns, Marieta! Eu tenho certeza de que vocês vão construir uma linda família. – Dei um sorriso de felicidade por ela, mas ao mesmo tempo fiquei cabisbaixa, pois, sem que eu pudesse escolher, naquele momento veio à tona em minha mente os meus sonhos que não concretizaram, como esse, de construir uma família feliz ao lado do homem que se ama.
— Então, no sábado eu vou dar um jantar para comemorar essa novidade nas nossas vidas. Vai ser uma festinha para os amigos. E eu quero muito que você vá.
— Jantar ou festa? – perguntei.
— Ah, vai ser um pouco de tudo. Jantar, festa, chá de bebê.
— O velho e animado jeito mexicano de celebrar as boas novas – eu afirmei, sorrindo.
— Sim. Nós mexicanos somos sempre muito animados. Sem contar que será uma oportunidade de você ver seus pais. Eu sei que faz tempo que você não aparece em Santa Ana.
— Verdade, eu preciso aparecer por lá pra visitá-los. Eu posso tirar uns dois dias de folga. Estou trabalhando já há trinta dias consecutivos.
— Rosa Maria, o que foi? Você parece não estar feliz.
— E como eu poderia? A cada dia um novo problema surge em minha vida – lamentei.
— Você está assim por causa do David, não é mesmo?
— Também.
— Vocês estão mesmo separados pra valer? Não tem mais volta? – ela quis saber, como se estivesse na verdade me investigando.
— A princípio, a gente só deu um tempo longe um do outro, mas acredito que não tem mais volta. Eu não falo com ele já há um mês – respondi, esclarecendo a dúvida.
— Amiga, você e ele se amam tanto. Aqueles dias na praia provaram isso. Acho que vocês deveriam se entender e ficar juntos pra sempre. – Os olhinhos da Marieta brilhavam de esperança enquanto ela me dizia isso. Eu sabia o quanto ela gostava do David e torcia por sua felicidade.
— Eu gostaria muito de ficar com ele, mas as coisas não são tão simples assim. Pra você e o Juan tudo foi mais fácil, vocês dois são mexicanos, têm quase a mesma idade, tem os mesmos projetos de vida. Mas no meu caso e do David existe uma montanha de obstáculos, quase intransponíveis.
— O Juan conversou com o David na semana passada – ela comentou.
— Conversou? E o que ele disse pro Juan?
— Olha, seu ex-namorado está arrasado, acabado, está sofrendo muito longe de você. Um amor como esse não se esquece em um mês, amiga.
— Eu também estou sofrendo, Marieta. Eu não queria que as coisas fossem assim. Mas a realidade quase nunca é como nós desejamos.
— Não tome nenhuma decisão definitiva agora. Pense com mais calma sobre tudo. Mas me diz, você vai à minha festa?
— Eu não sei, Marieta. O David vai estar lá, não é?
— Rosa Maria, o David é um dos melhores amigos do Juan, e é meu amigo também. E isso há mais de dez anos. É natural que ele esteja sempre presente em ocasiões especiais como essa. Inclusive ele será um dos padrinhos do nosso filho, e você seria a madrinha, é claro.
— Sim, eu entendo. Mas é que eu ainda não estou pronta pra vê-lo, ainda não estou preparada pra encarar a situação.
— Me conta, vai. Do que você tem medo? De ver o David, não resistir e se jogar nos braços dele, de se entregar de uma vez? É isso que você teme?
— Sim, é, é isso mesmo que eu temo. Eu tenho medo de vê-lo, de me jogar nos braços dele e não o largar nunca mais, mas ao mesmo tempo sofrer as consequências terríveis dessa escolha.
— Sinceramente, amiga, eu vou repetir o que eu já te disse uma vez. Eu não sei como você aguenta ficar perto do David, que é um homem charmoso, alto, todo galã, sem se atirar nos braços dele e prendê-lo de uma vez por todas na sua vida. Eu não sei como você consegue deixar esse homem escapar.
— Do jeito que você fala, até parece que você gostaria de tê-lo pra você.
— Eu amo o meu marido, o Juan é tudo pra mim. Mas eu não sou cega.
— Estou brincando, amiga. Sei que o Juan é tudo pra você.
— Qualquer mulher em sã consciência é capaz de enxergar as qualidades do David e todas as oportunidades que você está deixando escapar, jogando-as fora.
— Eu sei, eu sei disso. É difícil sim resistir aos encantos dele, ao amor que ele sente por mim. Mas acontece que a mágoa, a dor aqui no meu coração, é muito grande. Quando eu me lembro de todas as humilhações que eu já passei e todas que eu ainda posso vir a sofrer ao lado dele, eu me entristeço e acabado desistindo de tentar mais uma vez. Marieta, será que você me entende? Eu não posso fazer parte de uma família que me odeia. Sim, porque os filhos dele pensam que eu sou uma meretriz, e isso usando o termo mais leve pra designar o que eles acreditam que eu sou. E não são só os filhos dele não. Os primos dele lá de Santa Ana também não foram muito com a minha cara, apenas me toleram. Sabe, nunca imaginei que eu sofreria tanto preconceito.
— Eu entendo você. Sei que você está sofrendo muito com tudo isso, mas, sinceramente, por um amor como o seu e do David, eu jogaria tudo pro alto, eu enfrentaria o mundo pra ficar com ele. Eu conheço muito bem o meu amigo e posso te garantir com toda a certeza que durante esses anos o David teve várias namoradas, mas nenhuma delas fez ele tão feliz como você fez, nenhuma delas despertou no coração dele a vontade de se casar de novo e construir uma nova família como você despertou.
— Sabe, eu não entendo como ele pode ter se apaixonado tanto assim por mim em tão pouco tempo. A gente conviveu por pouco mais de um mês em Ocean City, nós fomos algumas vezes para Santa Ana durante meu primeiro ano aqui na América. Sim, eu também o amo, mas ele já quer se casar, já quer ter filhos, e eu ainda não estou pronta pra isso. Não nas minhas circunstâncias atuais.
— Isso se chama encontro de almas, minha amiga. Quando duas pessoas com uma grande afinidade se encontram, o amor acontece como mágica. O fator tempo é irrelevante. Eu tenho uma prima no México que, depois de dois meses de namoro, já se casou e é feliz até hoje. Essas coisas são assim, imprevisíveis.
— Você pode ter razão quanto ao encontro de almas, mas talvez esse tenha acontecido na hora errada.
— Eu quero muito que você seja a madrinha do meu filho, Rosa Maria. Quem sabe até o nascimento do bebê você e o David se acertam.
— Tudo bem, eu vou pensar sobre isso. Eu também quero muito ser madrinha dele.
— Você vai à minha festa no sábado?
— Olha, eu não sei se eu vou à festa, mas vou a Santa Ana visitar meus pais. Talvez eu passe na sua casa pra te dar um abraço e levar um presentinho pro bebê.
— Tá ótimo, amiga. Eu vou te esperar lá. Olha só, o garçom está trazendo o nosso almoço.
— Ainda bem, me bateu aquela fome – eu disse.
Sorrimos.
O Sofitel Ilhas Cayman era um lugar lindo e emocionante, com jardins enormes, salão de festas e danças, restaurante, academia de ginástica, SPA, piscinas cobertas. Os quartos eram verdadeiros apartamentos, com sala, cozinha, espaços decorados e banheiros planejados.
Eu nunca imaginei que meu trabalho de camareira pudesse me trazer emoções tão fortes como aquela que eu senti quando esbarrei com o jovem hóspede Nathan. De modo inesperado, me deparei com alguém que me fez sentir o que eu não imaginava, saudade do passado, saudade do Endry. Na hora eu não entendi como tantas lembranças puderam vir à tona só porque o destino me fez cruzar com um rapaz que me lembrou meu primeiro amor.
E todos os dias o Nathan estava lá. Eu não sabia ainda quanto tempo ele ficaria no hotel, mas fato era que a cada manhã eu o via e ele ficava me encarando de longe. Aquele era meu trabalho, e eu não me atrevia a me aproximar mais dele.
Era sexta-feira, um dia antes de seguir para Santa Ana para visitar meus pais. Aquela tarde foi a terceira vez em que eu vi o Nathan acompanhado por uma moça. Ela deveria ter a idade dele, uns 19 ou 20 anos. Pela intimidade que tinham um com o outro, estava claro que ela era sua namorada. Mas a moça não estava hospedada no hotel, aparecia sempre como visitante; notei desde a primeira vez que ela chegou sem bagagens.
***
Meu trabalho no hotel me trouxe novas amizades e uma delas era o jovem Franz Hermann, filho de pais alemães que imigraram para a América na década de 70. Era um dos garçons e serventes do hotel, rapaz prestativo, atencioso e apaixonado por mim. Eu não esperava por isso, porque, na verdade, minha vontade era de ser invisível, pelo menos naquela fase da minha vida, mas a gente não tem o poder de controlar os sentimentos dos outros, e, por mais que eu não desse qualquer sinal de que eu o corresponderia de modo romântico, Franz permanecia sendo gentil e amável comigo.
Desde o dia em que nos conhecemos, seus olhos não desgrudaram de mim. Sempre que eu estava perto ele sorria. Muitas vezes me desejava bom dia me oferecendo uma flor que colhia dos jardins do hotel.
Eu conhecia muito bem o olhar de um homem atraído, e a atração que o Franz sentia por mim era muito forte, impossível de disfarçar. Claro que ele era um homem bonito, não só de aparência, mas sua alma também era bela, eu reconhecia isso, mas não, eu não podia correspondê-lo de outra forma que não fosse amizade. Eu procurava ser sempre grata pelas suas gentilezas. Uma vez o retribuí com um chocolate depois que recebi sua flor.
***
Ainda naquela noite eu embarquei para Santa Ana. Minha mãe havia me ligado pra saber a que horas eu chegaria. Estava ansiosa para me ver. Que saudade eu sentia do meu quarto na casa dos meus pais!
A Alejandra ficou de passar no meu apartamento pra dar comida pro meu peixinho Estrelinha nos dois dias em que eu estaria fora.
Cheguei a Santa Ana por volta das vinte e duas horas. Como foi bom abraçar minha mãe e meu pai mais uma vez! Por mais que a nossa vida tenha sido difícil, vivemos bons momentos, momentos de alegria. E por falar em momentos bons que deixam saudade, ainda naquela noite, depois que eu deitei minha cabeça sobre o travesseiro, veio à tona em minha mente o momento de alegria que eu vivi com o David no dia do seu aniversário.
Eu relembrei cada segundo da cena em que ele abriu o presente. Impossível esquecer seus olhos brilhando de felicidade, como o olhar de uma criança pura e inocente que acabou de ganhar o brinquedo tão sonhado. Aquela peça de xadrez era o símbolo de tudo de bom que vivemos naquele dia único, que valeu por toda uma vida.
Momentos assim são como o ditado que diz que os raios não caem duas vezes no mesmo lugar. Um momento assim não acontece duas vezes na vida. Acho difícil explicar a overdose de alegria que aquele instante causou em mim.
Eu sentia tanta falta do sorriso do David, do carinho que ele fazia em minha mão esquerda depois de cada abraço, dos nossos planos de vida. Não há dinheiro no mundo que pague isso. Mas ao mesmo tempo eu sentia um sufoco trancado no peito ao me lembrar que os filhos dele me odiavam, ao me lembrar que eu não era bem-vinda em sua família. O gosto amargo da realidade era uma lâmina afiada descendo sem dó pela minha garganta.
Eu não queria ser a responsável por separar um pai dos próprios filhos. Eu sabia o quanto o David amava sua família e seus netos. Sim, eu era capaz de prever que, se eu ficasse com ele, essa situação se tornaria insustentável com o tempo.
As palavras horríveis ainda me magoavam muito. Eu até entendia que não fosse assim tão fácil ver o pai deles com uma mulher mais jovem, mas eu não esperava ser agredida daquela forma. Por acaso o amor tem idade? O David era um homem maduro, de 49 anos, muito charmoso, e aparentava até ser mais jovem. Tinha um sorriso que hipnotizava. Por isso, não à toa as mulheres eram loucas por ele. Mas era a mim que ele amava, e eu o amava também. Não só por ele ser um homem bonito ele me atraiu, seu jeito amável e generoso foi o que também me conquistou.
Todos os momentos que passamos juntos formavam o elo que nos mantinha ligados um ao outro. Então, no dia seguinte, nos encontraríamos pela primeira vez depois de um mês separados.
A festa da Marieta ficou linda. A sala estava enfeitada com uma decoração que remetia às lembranças da infância. Minha amiga estava tão feliz. Quando me viu entrar pela porta, correu em minha direção e me saudou com um forte abraço. Meu sentimento por ela era verdadeiro, era como se ela fosse minha irmã, a irmã que eu não tive. Havia dez casais convidados; dois deles eu já conhecia, o Pablo e a Amélia, o Federigo e a Gracielia, todos imigrantes legais, que já moravam há muitos anos em Santa Ana. Alguns levaram seus bebês para a festa. Eu os cumprimentei logo depois de abraçar a Marieta e entregar-lhe o presente que eu havia levado para o meu futuro afilhado. Prontamente ela colocou o pacote junto aos outros sobre a mesa cheia de regalos.
Sobre a mesa de comidas havia um self-service de tacos, além de uma variedade de doces mexicanos de encantar o paladar. Havia palanqueta, que é um doce de amendoim torrado com rapadura, o alegría, que é um doce feito de amaranto e mel, além de frutas cristalizadas chamadas pelos mexicanos de dulces cubiertos. Sem falar nos meus preferidos, os garapiñados, feitos de amendoim, nozes e amêndoas cobertas com uma calda de açúcar quente; quando secos, forma-se uma camada grossinha e muito saborosa. Eram meus favoritos.
Houve várias brincadeiras divertidas e até pagamento de prenda se cruzássemos as pernas. Durante as brincadeiras, quem cruzasse as pernas recebia um bebê para cuidar, e ficava assim até ver outra pessoa cometendo o mesmo deslize. No fim das brincadeiras os maridos tiveram que pegar cada presente e tentar adivinhar quem os tinha dado.
***
A Marieta estava tão feliz com a gravidez. Ela e o Juan se amavam muito. Os amores, quando são possíveis, nos fazem suspirar de êxtase. É o desejo de que aquilo que estamos vendo seja real em nossa vida também.
As brincadeiras já haviam terminado e, enfim, havia chegado a hora do baile. A Marieta colocou pra tocar uma seleção de músicas românticas latinas de arrebentar o coração.
O som começou a surgir na sala, mas eu já queria ir embora. No dia seguinte eu teria que voltar para Los Angeles e retomar minha rotina. Até aquele momento eu ainda não havia falado com o David; passamos a festa toda apenas nos olhando de longe. Ele me olhava com olhos lacrimosos de saudade. Mas eu o evitava, procurei ficar perto das mulheres o tempo todo, de modo a não dar a ele chances de se aproximar de mim. Não que eu não quisesse; pelo contrário, é justamente por querer demais estar com ele é que mantive distância. Esse querer era sinônimo de sofrer. Naquela altura dos acontecimentos, eu já não tinha mais certeza de qual caminho era o correto a ser seguido. Era assim que tinha que ser.
De repente, os maridos presentes na festa tiraram suas esposas pra dançar. Fiquei sozinha sentada à mesa, afinal eu era a única solteira ali. Bem, havia o David, que era viúvo. Até meu pai tirou minha mãe pra dançar. Foi naquele instante que eu decidi me levantar e ir embora. Mas já era tarde demais. O David já estava ali, parado diante de mim. Parece mentira, mas a nossa música “Bachata Rosa” começou a tocar naquele mesmo instante em que eu tentava escapar.
— Rosa Maria, é a nossa música. Dança comigo? – David perguntou, estendendo sua mão para me conduzir à dança.
Fiquei sem saída e respondi com o coração acelerado:
— Sim, podemos dançar.
Segurei de novo em sua mão depois de um mês separados. Olhei novamente no fundo de seus olhos azuis, que brilhavam sempre que me viam. Começamos a dançar e, logo nos primeiros segundos, David pronunciou as palavras que expressavam a verdade de seus sentimentos:
— Senti muito a sua falta, Rosa Maria.
— Eu também senti saudades, muito mesmo – respondi, demonstrando que meu coração também estava afligido pela distância.
— Não precisa ser assim, você sabe. Nós podemos ficar juntos de novo.
— É necessário que seja assim por enquanto – afirmei, segurando as lágrimas que já queriam cair.
— Você está linda hoje – ele me elogiou, fazendo carinho no meu rosto enquanto dançávamos.
— Você também está lindo, charmoso como sempre. – Retribuí seu gesto. Naquele momento eu segurava firme em seus ombros.
— Agora só falta eu ter minha donzela de volta – ele disse, me dando aquele sorriso, segurando em minha mão esquerda depois de tanto tempo.
Eu sorri. A música terminou. Eu precisava me despedir dele.
— David, foi bom ver você de novo, mas agora eu tenho que ir pra casa. Preciso descansar. Amanhã eu já volto pra Los Angeles.
— Eu levo você até a casa dos seus pais. Estou com o carro do Paul. Ele sempre me empresta quando estou aqui na cidade.
— Não precisa se incomodar. Eu vou sozinha mesmo, aproveito pra caminhar um pouco. Meus pais estão se divertindo tanto que acho que vão ficar por aqui mais um tempo.
— Eu te levo, eu insisto. Já está tarde, pode ser perigoso. – Ele fazia questão de me acompanhar até em casa.
— Tudo bem, aceito sua carona. – Enfim aceitei, rendida pela possibilidade de ter sua companhia por pelo menos alguns minutos.
***
Permanecemos quase todo o trajeto em silêncio. Não fosse por eu ter feito dois comentários sobre as músicas que tocavam no rádio do carro naquele momento, não teríamos dito nada um ao outro.
David parou o carro em frente à casa dos meus pais. Eu o notei angustiado. Ele precisava me dizer algo, e é claro que eu tinha muita coisa a dizer também, coisas presas dentro do meu coração que queriam saltar da minha garganta.
— Obrigada, David. Foi bom ver você – eu disse. Em seguida tentei abrir a porta do carro pra sair. Foi quando David segurou em meu braço.
— Espera – disse ele. – Eu posso subir com você pra gente ter uma conversa?
Naquela hora eu me senti perdida, sem saber o que responder. Ele queria conversar e eu estava sozinha em casa. Fiquei nervosa. Confesso que a falta que o David fazia em minha vida era enorme, mas a dor das coisas ruins pelas quais havia passado por ter estado com ele ainda era latente.
— Tudo bem, pode subir comigo. Imagino que queira me dizer algo importante.
Entramos no apartamento e deixei minha bolsa sobre a mesa. David ficou parado, em pé, no meio da sala. Pelo seu semblante, pude notar que sua alma estava inquieta (nada de surpreendente, a minha também estava). Me virei em direção a ele e iniciei o diálogo:
— Aqui estamos, David. Pode falar.
— Meu amor, eu morri de saudade de você. Durante todos esses dias em que estivemos separados, sem conversar, meu sentimento por você só aumentou. Eu sei que você está magoada, mas a gente pode começar de novo, começar do zero. Vamos reconstruir a nossa vida a partir de agora, vamos enfrentar tudo que tiver que ser enfrentado juntos. – Ele assumiu seus sentimentos.
— Eu também senti muita saudade de você, dos nossos carinhos, da sua companhia. Mas esse foi o combinado: de que passaríamos um tempo afastados pra pensar sobre tudo – relembrei-lhe.
— Eu sei, nós combinamos, mas um mês já foi tempo demais pra mim. Eu amo você e dificilmente isso vai mudar – ele se declarou mais uma vez.
David se aproximou mais de mim, acariciou meu rosto, beijou meu pescoço e por fim nos beijamos depois de todo aquele tempo longe. Ele me abraçou e segurou minha mão esquerda. Que saudade eu estava sentindo desse gesto de carinho que ele sempre fazia depois de um beijo ou um abraço.
— E então, estamos juntos de novo? Vamos marcar logo a data do nosso casamento? – ele me perguntou, depois de nos beijarmos daquele jeito carinhoso que era só nosso. Seu rosto ainda estava próximo do meu, sua mão ainda afagava a minha face, quando infelizmente eu me lembrei da realidade.
Precisei respirar fundo para responder àquela pergunta. Metade do meu coração era amor, era paixão, era o desejo de estar com ele para o resto da minha vida, mas outra metade era mágoa, medo e incerteza.
— David, primeiramente eu estou ilegal nesse país. Mesmo que eu me case com você, as chances de negarem meu visto de permanência são de quase cem por cento. Se eles negam esse visto, eu posso ser deportada, e haverá apenas duas alternativas: ou você larga toda a sua vida pra ir embora comigo ou vamos ficar separados.
— Eu falei com o advogado. Podemos pedir seu asilo, apelar na corte, existem vários recursos que podem evitar a sua deportação. Ou mesmo você poderá responder seu processo em liberdade se for o caso de comunicarmos as autoridades sobre sua intenção de se legalizar.
— Tudo bem. Supondo que eu seja perdoada e me concedam o direito de ficar legalmente no país, como seria a minha vida ao lado de um homem que é pai de filhos que me detestam profundamente? Eu ainda não me sinto preparada para enfrentar as consequências dessa decisão. Eu e você ainda estamos dando um tempo no nosso relacionamento. Um mês não foi suficiente pra apagar da minha alma os horrores que eu vi e ouvi nesses últimos tempos. Eu não vou repetir tudo que eu já te falei, mas entenda de uma vez por todas: eu acho que eu não sou capaz de entrar para uma família de pessoas que me detestam dessa forma tão cruel, tão sem piedade, que detestam uma pessoa que fugiu de um país lastimado pela fome, pela pobreza alimentada por um governo corrupto e desumano.
— Meu amor, eu sinto muito por tudo. Eu já disse que, se eu tiver que ficar longe dos meus filhos e dos meus netos, eu não me importo. A única coisa que eu quero é me casar com você, ser feliz com você. Ninguém tem o direito de nos separar.
— Não, não é bem assim. Você não sabe o que está dizendo. Agora você pensa dessa forma, mas depois, quando tudo se tornar realidade, você vai sentir falta dos seus filhos, da sua família, e será um homem frustrado e infeliz. Nós nunca teríamos paz. Eu não teria paz sabendo que o homem que eu amo está longe dos filhos e da família só por minha causa. Não é justo com você que eu concorde com isso. – Mais uma vez coloquei para fora da minha garganta a navalha afiada que era a nossa realidade.
David começou a chorar, chorou feito uma criança, a ponto de eu me apiedar dele. Mas o que eu poderia fazer? Eu estava perdida entre o amor e a honra.
— David, não chora assim. Desse jeito eu fico pior do que já estou – eu disse, fazendo carinho no rosto dele, enxugando suas lágrimas.
— O que você quer que eu faça, Rosa Maria? Estou vendo a mulher que eu amo sair da minha vida pelas razões mais revoltantes e não posso fazer nada pra mudar isso. Me diz uma coisa: você me ama? – ele me questionou de maneira dura.
Ouvir essa pergunta foi como se o chão se abrisse sob meus pés. Senti um desespero dentro de mim só de pensar que o David pudesse duvidar do meu amor por ele. Respondi desesperada para que não restasse dúvidas sobre os meus sentimentos:
— É claro que eu te amo. Eu te amo demais. Mas entenda: metade do meu coração é paixão, amor, saudade, e a outra metade é medo, mágoa, desilusão. – Eu olhava nos olhos dele. Fiz carinho em seu rosto mais uma vez.
— Está certo, eu acredito em você, Rosa Maria. Mas só não sei quanto tempo eu ainda suporto essa distância. O que aconteceu entre nós não foi um simples flerte, não foi uma simples paixão. Eu gostei de você desde os primeiros dias em que te vi, quando você chegou à minha casa. Vou confessar uma coisa: antes da sua chegada, eu me sentia muito sozinho, e os dias que você e seus pais passaram na minha casa fizeram com que eu não me sentisse mais solitário. Cada vez que você fazia o almoço ou preparava um prato típico do seu país, era como se eu tivesse a presença de uma esposa no meu lar. Não sei explicar direito, apenas tenho certeza de que quero você na minha vida.
— Isso que você está me dizendo é maravilhoso. Eu sou feliz por ter o seu amor, mas eu ainda não tenho nenhuma resposta definitiva. Minha mente está imersa em um mar de sentimentos e ideias confusos. Agora vou pro meu quarto dormir. Preciso descansar. Amanhã, depois do almoço, volto pra Los Angeles. Boa noite, David. Fica bem. A gente conversa depois. Você pode trancar a porta e colocar a chave debaixo do tapete. Quando meus pais chegarem, vão precisar pra entrar. Eles estão sem chave lá na festa, a outra cópia ficou aqui em cima da mesa – falei com pressa, como se eu quisesse acabar logo com aquela situação horrível.
— Tudo bem, eu tranco a porta pra você – ele disse, com voz rouca e cabisbaixo. Ele foi até a mesa e depois seguiu em direção à porta.
Eu caminhava em direção ao meu quarto quando senti as mãos do David me segurarem. Ele me puxou, me envolveu em seus braços e me beijou. Sim, ele não queria mais me largar. Caímos sentados no sofá. Mais uma vez eu estava quase me rendendo, quando enfim tive forças pra interromper o momento.
— David, é melhor você ir agora. Eu preciso mesmo descansar. Foi bom rever você, matar a saudade, ficar um pouco junto. Mas agora eu preciso mesmo dormir – eu pedi, sorrindo meio sem graça, fazendo um último carinho em seus cabelos.
— Está certo. Eu já vou. Tchau – ele disse, beijando minha testa.
— Tchau.
Ele se levantou, saiu e trancou a porta como eu havia pedido.
Fazia dias que eu não aparecia em Santa Ana. Aproveitei o convite da Marieta para dar as caras por lá. Eu sentia muita saudade do meu pai e até da minha mãe, mesmo com toda pressão e crítica que ela jogava sobre mim. Um primo do Juan daria uma festa pra comemorar seu casamento com uma californiana filha de mexicanos, nascida e criada em Santa Ana.
Eu não estava lá com ares pra festa, mas naquele momento de alma angustiada eu precisava mesmo me distrair, e a companhia dos amigos talvez me fizesse bem. Eu teria apenas que suportar as feições de angústia da minha mãe me condenando pelo fato de eu ainda não ter aceitado me casar com o David.
E foi assim que tudo aconteceu.
Lá estava eu em meu velho quarto, diante do meu velho espelho, me arrumando para uma festa de casamento. A família do Juan havia alugado um restaurante muito bom para a ocasião. Era o restaurante Los Sanchez.
Eram por volta das 20 horas quando cheguei ao local acompanhada dos meus pais. Cumprimentei meus amigos Juan e Marieta e em seguida os noivos Roberto e Paola. Sentei-me à mesa com meus pais e mais dois convidados. Aquela parecia ser uma noite morna, um momento de mero passatempo se não fosse por aquela figura ter adentrado o restaurante trinta minutos depois da minha chegada.
A presença de David fez meu coração disparar de imediato. Ele entrou acompanhado de amigos, vestido em seu terno azul marinho, com seu sorriso largo, cumprimentando a todos. Primeiro ele abraçou a Marieta, depois o Juan, e em seguida os noivos, que estavam posando para fotos no centro do salão.
Como se fosse um mecanismo de defesa, prontamente pensei em me esconder. A presença dele foi para mim uma surpresa, pois a Marieta quase me garantiu que ele não viria. Mas naquele instante já era tarde demais, David já havia me visto e caminhava em minha direção.
Ainda estávamos afastados, dando um tempo, e viver um momento romântico cercados por todas aquelas incertezas muito provavelmente não seria algo bom para nenhum de nós dois.
— Rosa Maria. – Eu ouvi aquela voz acompanhada de um sorriso chamar meu nome.
— David! Você aqui? Que surpresa. A Marieta havia comentado que você não viria.
— Sim. A princípio eu não viria, mas quando percebi que vir hoje seria uma ótima chance de te encontrar, então vim o mais rápido que pude. Eu precisava te ver. Você não sente saudade?
— Mas que pergunta! É claro que eu sinto. Aliás, sinto muito sua falta.
— Que bom. Sem mais perda de tempo, vem logo dançar comigo, porque uma das nossas músicas favoritas começou a tocar.
— Não poderia haver música mais perfeita pra esse momento, Air Supply, “Making Love out of nothing at all” – eu disse, segurando sua mão.
Quando senti as mãos de David envolverem minha cintura e seus olhos mirando profundamente os meus, todo o meu corpo foi dominado pelo sentimento de paixão e carinho que me fizeram ter mais uma vez a certeza de que ele era o homem que eu amava.
Naquele instante recordei do dia mais feliz que tivemos: o aniversário dele, quando lhe presenteei com a peça de xadrez. Aquele dia foi mágico. Foi o dia em que nos transbordamos de alegria. Ver alguém sentir-se tão feliz por algo que eu fiz não tem preço.
Eu jamais poderia esquecer aquele momento de felicidade. Perto do David eu sentia como se o mundo inteiro estivesse em paz, eu sentia como se meu corpo estivesse em plena saúde, e como se não houvesse mais todos aqueles problemas em minha vida. Perto dele eu vivia o meu momento colorido em meio às cinzas da realidade.
Aquela música marcou a noite e a minha vida. Depois do fim da canção, David me segurou pela mão e saímos da festa sem dar explicações a ninguém.
— Pra onde estamos indo? – perguntei.
— Não seja tão ansiosa, apenas entre no carro – ele me disse, enquanto abria a porta pra mim.
Entrei no carro já com meu coração acelerado de tanto nervosismo, afinal eu não fazia ideia para onde ele estava me levando.
— David, para de mistério. Pra onde estamos indo? – eu quis saber mais uma vez.
— Quando chegarmos você verá.
Ele estava atônito. Parecia querer chegar logo ao lugar.
Cerca de trinta minutos depois chegamos a um local que eu ainda não conhecia. Era semelhante a uma reserva ecológica. Tinha uma trilha, gruta e muita vegetação.
Saímos do carro e seguimos de mãos dadas até o lago.
— Esse lugar é lindo. Eu nunca havia estado aqui antes – eu disse, impressionada com a beleza.
— Imaginei que não, por isso te trouxe aqui – David disse e sorriu.
— O céu também está maravilhoso, repleto de estrelas. David, obrigada por me trazer aqui. Obrigada por tudo. Eu... eu... eu amo você.
Vi os olhinhos dele lacrimejarem naquele exato instante. Ele sorriu pra mim, como se sua alma estivesse aliviada por me ouvir dizer que o amava.
— Você não sabe o quanto me sinto feliz por saber disso.
— Que bom que te dou um pouco de alegria. Você merece ser feliz – eu disse a ele.
— Rosa Maria, pra minha felicidade ser completa, eu preciso ter você ao meu lado todos os dias, como minha esposa. Casa comigo?
Quase comecei a tremer naquele instante, depois de ouvir de novo aquela pergunta. Como sempre, veio à tona em minha mente todos os motivos pelos quais eu não deveria me casar com ele. Eram motivos fortes demais para ignorar.
Eu disse, segurando-o pelos braços, encarando-o com firmeza:
— David, presta atenção: o que você vai dizer pra sociedade depois que já estivermos casados? “Essa aqui é a minha esposa imigrante ilegal?” Mesmo que eu não me apresente às autoridades, andando com você, em seu círculo social, é provável que alguém me denuncie pra imigração, mais cedo ou mais tarde.
— Meu amor, depois que casarmos vamos dar entrada em seu processo de visto.
— Mas acontece que casar com você na minha situação não me garante um visto de esposa, muito menos o Green Card. O mais provável é que eu sofra um processo de deportação e ao fim seja obrigada a deixar esse país. E ainda tem a questão dos seus filhos, que não me aceitam pelo fato de eu ser uma mulher mais jovem, de vinte e dois anos.
— Eu já sei mais do que ninguém de todos os motivos que impedem o nosso casamento. Mas vamos esquecer de tudo isso e ser apenas felizes. Essa é a minha proposta, ficarmos juntos. E se você tiver que ir embora do país, eu vou junto com você pra qualquer lugar desse mundo. Eu posso lecionar no exterior, eu tenho uma boa reserva em dinheiro. Seus pais vão conosco. E então, o que você me diz? – ele insistiu.
— Você me pegou de surpresa. Eu não imaginava que teria que te dar uma resposta hoje. Você me dá mais alguns dias pra pensar? Eu prometo que vou refletir melhor. Será minha resposta final.
A grande verdade é que naquele momento eu era sim uma mulher imatura e inexperiente, que talvez ainda não estivesse preparada para lidar com todas as consequências que viriam depois de me casar com ele. Por mais que houvesse amor, a obscuridade de um futuro incerto ainda me assustava.
— Sim. Tudo bem. Eu espero mais alguns dias pela sua resposta final. Eu entendo que não é nada fácil pra você, mas essa é a realidade, e se quisermos ficar juntos, temos que enfrentá-la sem medo.
Depois que David me disse essas palavras, nos abraçamos tão forte que parecia que ele me colocaria para dentro de si.
David me deixou de carro na porta da casa dos meus pais, que por sinal ainda não haviam chegado da festa. A gente saiu tão cedo de lá, parecemos dois fugitivos.
— Posso entrar? – ele me pediu, com olhinhos lacrimejantes.
— Agradeço por ter me trazido, mas acho melhor você não entrar, porque meus pais podem chegar a qualquer momento – respondi.
— Na verdade, eu estou morrendo de fome, mal ficamos na festa e eu nem provei aquelas delícias mexicanas, então pensei que, se eu subir agora com você, poderíamos preparar juntos uma macarronada americana. Que tal?
— Eu acho melhor não, porque...
— Por quê?
— Oras, porque nós ainda estamos dando um tempo no nosso relacionamento. Eu ainda vou pensar em tudo. Não podemos agir como se estivesse tudo bem, entende? – eu disse.
— Não, Rosa Maria, eu não entendo. Mas tudo bem. Já que é assim que você prefere, eu vou pra casa, vou pedir uma pizza, ou melhor, vou voltar pra festa. Lá eu tenho a companhia dos meus amigos e um delicioso jantar – ele disse, dando as costas pra mim. O olhar dele era ainda mais deprimido do que quando chegamos ali.
Meu coração se partiu. Eu não poderia deixá-lo ir, não daquela forma.
— David, espere – eu disse, com voz trêmula.
Ele virou-se em minha direção.
— Sobe comigo. Eu faço a macarronada pra você do jeito que você gosta.
David apenas sorriu, segurou em minha mão e subimos juntos ao apartamento. Quando abri a porta, senti meu coração acelerar. Entramos.
— Sente-se, David, a casa é sua. Vou trocar de roupa e depois tomar meu lugar à cozinha. Vou preparar sua macarronada. Não quero que você passe fome nesta noite por minha culpa. E, pra falar a verdade, também estou morrendo de fome – eu disse.
— Que bom. Estou com saudade da sua comida – ele comentou.
— Espere aqui que eu já volto. – Saí da sala e fui pro meu velho quarto.
Depois de trocar de roupas, me apoiei sobre a pia, limpei e lavei bem meu rosto. Olhei fixamente para o espelho, me perguntando o que eu ainda estava fazendo ali, talvez apenas iludindo ainda mais o homem que tanto me amava.
Fui para a cozinha, coloquei o avental e comecei a preparar o jantar. Olhei para trás e o David já estava ali parado, me olhando, querendo me ajudar.
Conversamos o tempo todo sobre assuntos supérfluos, sobre filmes, artistas famosos, um pouco sobre o trabalho dele, planos profissionais. Quando a tão esperada macarronada ficou pronta, arrumamos a mesa e nos sentamos.
— Enfim, aqui estamos para matar a fome que grita no estômago – eu disse, depois de me sentar.
— Pelo menos essa fome eu vou poder matar hoje – David disse, em tom de ironia, já sentado à mesa diante de mim.
— Como assim, David? Que outra fome você gostaria de matar? – perguntei, me fazendo de desentendida. Degustei uma garfada da macarronada em seguida.
— A fome de ter você comigo pra sempre aqui nos meus braços – ele respondeu.
— Ah, David, para com isso. Já chega dessa conversa. Vamos comer logo essa macarronada, que está deliciosa.
— Ficou assustada? – Ele começou a rir.
— Ah, para de me provocar. Come logo essa comida e me deixe sossegada.
Nós rimos.
Depois de matar a fome do estômago, David ainda me ajudou com a louça. Ele ficou falando um monte de bobagens que me fizeram rir muito. Ele era brincalhão, e sempre acontecia de termos ataques de risos.
O relógio marcava onze horas, mas meus pais ainda não haviam chegado. Eu bocejei. O sono já estava em mim.
— Já com sono – ele disse.
— Está na hora de me recolher. Amanhã tenho que estar cedo em Los Angeles para trabalhar.
— Muito bom. Eu ainda fico aqui por mais um dia – ele disse.
— Bom pra você aproveitar a companhia dos seus primos e dos seus amigos.
— É, vou aproveitar sim. – David ficou cabisbaixo.
— Então está certo, David. O jantar foi muito bom. A festa foi maravilhosa, nossa noite inesquecível. Mas agora é hora de me recolher e você tem que ir.
— Sim, eu já vou, mas esperarei ansioso por sua resposta definitiva.
— Tudo bem, eu vou pensar muito, com calma, e levar em conta o sentimento que temos um pelo outro. Eu valorizo o seu amor por mim. Espero que você acredite no amor que sinto por você e saiba que minha decisão final será pautada nesse sentimento, mas sem desprezar a razão. Infelizmente os sentimentos quase nunca levam em conta a razão.
— Eu acredito em você, Rosa Maria. Eu já vou então. Boa noite.
— Boa noite – ele respondeu, virando as costas e seguindo em direção à porta.
Fiquei observando o meu amor ir embora cabisbaixo, triste porque talvez aquela fosse a nossa última noite como duas pessoas que planejam estar juntas para sempre.
De repente, antes que saísse pela porta da sala, David novamente se virou em minha direção. Ficamos parados, nos olhando sem dizer nada. Em passos apressados, David veio até mim, segurou-me pelos braços e disse, mirando profundamente em meus olhos:
— Rosa Maria, eu amo você. Eu nem queria, mas eu amo. Como você mesmo disse, os sentimentos não levam em conta a razão nem a realidade.
— Eu também te amo – afirmei, sorrindo.
David me beijou mais uma vez, e parecia não querer me soltar. Fiquei a ponto de perder toda a minha resistência e quase me traí, mas tive forças pra interromper e dizer, com o coração doendo pelo fato das coisas não serem assim tão simples como pareciam:
— Chega, David. Eu preciso mesmo descansar.
— Por que, Rosa Maria? Por que você não pode ser minha de verdade? Por que você não pode ser completamente minha? Por que você não fica comigo e acaba de uma vez com essa aflição?
— Eu ainda não posso ser sua porque as coisas não são tão simples assim.
— Eu concordei e quis que, com você, as coisas fossem diferentes. Falei que não queria mais uma namorada apenas para ter algumas noites, mas sim uma companheira pra vida inteira. Cumpri com a minha palavra até agora, mas está ficando cada vez mais difícil não ter você nos meus braços de noite, quando durmo e quando acordo. Cada vez que eu te beijo, sinto mais e mais que te amo. – David expressou sentimentos mais sinceros.
Naquele momento as lágrimas já corriam pelo meu rosto. Minha alma se despedaçava conforme David pronunciava aquelas palavras.
— Por favor, me perdoe, me perdoe por fazê-lo esperar tanto assim, mas a verdade é que meu coração está sangrando, está confuso e com medo diante da realidade cada dia mais hostil. Mas eu prometo que dessa vez eu não vou demorar pra responder. Serão apenas mais alguns dias até que eu pense, e, como eu disse, vou levar muito em consideração nosso amor nessa minha escolha.
— Está certo, eu entendo. Agora eu já vou, com o coração quebrado, mas eu vou – ele disse, retirando-se da sala apressadamente. Até bateu a porta.
Eu mal dormi naquela noite, pensando em tudo que David e eu conversamos, pensando nos momentos lindos que vivemos. Meu coração batia, suportando a distância que havia entre nós.
Os dias se passaram e naquela manhã eu havia acordado com o coração pleno de certeza, a certeza de que eu amava o David mesmo sem saber se eu me casaria com ele. Eu estava muito inclinada a dizer sim ao seu último pedido, ainda diante das lembranças de tudo de ruim que havia acontecido comigo por causa desse relacionamento.
Foi difícil não recordar nossos bons momentos juntos. Ao lado dele eu vivi os melhores dias da minha vida. Tudo ia bem. Até pensei em pegar o telefone, ligar pra ele e dizer que sim, que eu aceitava seu pedido de casamento, mas, antes que eu fizesse isso, meu smartphone sinalizou o alerta de mensagem no WhatsApp.
Depois de ler aquela mensagem, constatei que meu sentimento de coragem em enfrentar tudo pra ficar com o David era, na verdade, o medo adormecido.
Jenna e Jacob de novo dirigiram a mim palavras de raiva; na verdade, de repúdio não disfarçado, nem fingido. Estava tudo muito claro. Apenas os primos do David de Los Angeles me toleravam. Certamente o restante da família me enxergava como seus filhos: a jovem oportunista. Para eles, eu era apenas uma imigrante sem escrúpulos, caçadora de Green Card.
A parte mais leve da mensagem dizia:
“O que você fez com o meu pai? Ele não é mais o mesmo depois que começou a se envolver com você. Ele não fala mais conosco, não se importa mais com os próprios filhos, nem com os próprios netos. Eu soube, através de um amigo, que meu pai anda triste, completamente infeliz. Tudo estava em paz antes de você entrar em nossas vidas e estragar tudo. Não sente remorso por causar a separação de uma família? Por favor, nos deixe em paz. Eu quero meu pai de volta. Os netos precisam dele. Tudo tem que voltar a ser como era antes.”
Isso era apenas um alerta de como seria a minha vida se eu me casasse com o David. Naquele momento senti um nó na garganta e uma leve vertigem. Eu já não sabia mais o que eu diria ao homem que me amava quando nos encontrássemos. Eu nem sabia mais se haveria um próximo encontro. Talvez fosse melhor terminar tudo por telefone, sem olhar para trás.
Já completavam mais de quinze dias desde a última vez que havíamos nos visto. Respirei fundo e decidi permanecer em meu silêncio doloroso para não entrar em contato com ele, não naquela hora em que a realidade veio à tona mais uma vez. Era melhor deixar tudo como estava.
Muitos me condenavam por amar um homem mais velho, mas muito mais pessoas condenavam o David por estar amando uma mulher muitos anos mais jovem do que ele. Acho até que esse fato da idade pesava mais do que o fato de eu ser imigrante.
As lágrimas foram inevitáveis. Durante todos os dias trabalhei cabisbaixa, quase não falei nada com ninguém. A Alejandra notou que eu não estava bem e, ao fim do expediente, me ofereceu uma carona e até me convidou pra jantar. Eu aceitei o convite, apesar da minha vontade de ficar sozinha. Fomos para o restaurante La Media Noche. Minha amiga queria muito me ouvir, me ajudar, senão para resolver meu problema, ao menos para me confortar com suas palavras.
***
Ela parou o carro em frente ao restaurante e saímos do automóvel. Eu permanecia em silêncio, como se houvesse algo entalado em minha garganta.
Entramos e nos sentamos. Deixei que Alejandra escolhesse o prato. Enquanto esperávamos o garçom nos servir, a conversa começou com a Alejandra me questionando com seus olhinhos curiosos:
— Então, amiga, o que foi dessa vez? Nunca te vi tão triste assim desde que nos conhecemos.
— Ah, acho que agora eu cheguei ao meu limite, Alejandra. A barra é pesada demais pra eu suportar – respondi.
— Posso ver nos seus olhos um pedacinho da sua dor. Problemas com o David?
— Sim. Fiquei de dar uma resposta definitiva a ele sobre o pedido de casamento.
— E?
— E aí que acordei hoje cheia de coragem pra dizer sim a ele e aceitar ser sua esposa pra sempre.
— Que maravilha! Mas o que foi que foi que aconteceu pra você ficar tão triste, se já estava quase se decidindo pelo seu grande amor?
— Eu recebi uma mensagem hoje cedo.
— Mensagem? Que mensagem?
— Jenna e Jacob, filhos do David, me enviaram a mensagem. Eles me arrasaram mais uma vez. Foi horrível. Minha coragem na verdade era medo escondido, adormecido por um tempo. Eu não suportaria passar o resto da minha vida sendo hostilizada dessa forma, vivendo sob as ameaças que eles me fazem, garantindo que se o David ficar comigo ele não verá os netos nunca mais. Eu não posso ser a responsável por separar um pai dos seus filhos e netos.
— Rosa Maria! Achei que você tinha bloqueado os filhos do David das suas redes de contato. Não está certo o que eles estão fazendo com você.
— Eu bloqueei. Mas eles enviaram a mensagem por outro número.
— Eu sinto muito, minha amiga. Mas se a situação é assim tão insustentável, pelo que vejo em seu olhar, tudo indica que você vai mesmo terminar tudo de uma vez com o David, não é?
— Não vejo outra saída.
— Ele é meu amigo. Eu conheci os filhos dele ainda quando eram adolescentes. Eu, o Juan e a Marieta sempre fomos amigos de toda a família, mas você não merece passar por tanta humilhação, não está certo o que eles estão fazendo com você. Acredito que o maior problema para Jenna e Jacob é a grande diferença de idade entre você e o David. Eu gostaria que vocês fossem felizes juntos, mas, diante do que você está me dizendo, parece improvável. Você já contou pra ele sobre essa mensagem?
— Não, eu ainda não falei nada com ele sobre isso. Não dei minha resposta. Mas a verdade é que eu não posso me casar agora. Eu até gostaria de continuar o namoro, mas casamento não. O problema é que ele não quer namorar, ele quer casar, diz que já está em uma idade que não pode mais esperar.
— Olha, nisso o David tem razão. Ele precisa de uma esposa, sempre sonhou com isso. Eu não quero te aconselhar errado, mas se você acha que esse amor de vocês é tão grande que vale o sacrifício, case logo com ele e vá ser feliz. Esqueça os filhos dele.
— Não. Não é tão simples assim. Que pai poderia ser feliz longe dos próprios filhos e da família? Que pai pode ser feliz em constante conflito com os filhos? Mais cedo ou mais tarde, ele pode se tornar um homem triste por causa disso. Eu posso ser jovem, mas já vi isso acontecer na vida de outras pessoas. O sofrimento que presenciei e passei também me ensinou muita coisa.
— Ah, seus olhos já estão cheios de lágrimas, Rosa Maria. Acalma o seu coração. Tenta distrair sua mente com outras coisas, pra quando chegar a hora você tomar a melhor decisão. Eu torço muito por você. Quero que você seja feliz. – Ela segurou em minha mão enquanto enxuguei minha lágrima.
Naquele instante, enquanto eu esfregava o chão do saguão do hotel, pude me deparar com a figura daquele homem de olhos arregalados e aflitos, de semblante atordoado e gestos inquietos bem acima de mim.
— Rosa Maria – ele chamou meu nome em tom de voz angustiado.
— David! Você aqui? – Me mostrei surpresa.
— Eu preciso conversar com você e tem que ser agora – ele disse, sério. Seus movimentos faciais e seu olhar revelavam sua inquietação.
— Agora? Não vê que estou trabalhando? Eu nem posso ficar conversando aqui no saguão, no meio do meu expediente. Posso até perder meu trabalho. Passe mais tarde no meu apartamento – eu pedi. Já nervosa, quase o ignorei.
Naquele momento Nathan passava pelo saguão e observou a cena. Naqueles últimos três dias, o jovem hóspede passou a me encarar com frequência, parecia querer se aproximar mais de mim.
— Mais tarde não! Tem quer ser agora, nesse exato instante. – David exigiu que tivéssemos logo aquela conversa. Não tive um bom pressentimento.
— Tudo bem, vamos lá fora pra conversar, mas eu não posso demorar, estou trabalhando. – Me levantei e, ao encará-lo, pude notar mais profundamente seu semblante de angústia.
— Vamos. – Ele pegou-me pelo braço, me conduzindo para fora.
Saímos do hotel. Logo que pisei meus pés na calçada, o barulho do trovão me assustou. Uma tempestade se formava, mas não apenas no céu, também no meu coração.
— David, estou surpresa com a sua visita! Eu não esperava que você aparecesse aqui no meu trabalho hoje, assim, de repente, sem me avisar. Nós nos vimos há poucos dias. Aconteceu alguma coisa? Você parece aflito.
— Aconteceu sim – ele disse, com as mãos e o corpo irrequietos.
— Então me diga logo o que foi que houve pra você aparecer assim de repente.
— Rosa Maria, você sabe que eu te amo, não sabe? – Ele me fez a pergunta que, de certa forma, me perturbava.
— Mas é claro que eu sei disso, e é recíproco – respondi, mais angustiada do que minutos antes.
— Eu te amo como nunca amei ninguém. Mas eu não posso e não vou esperar por você a minha vida inteira. Eu não sou mais nenhum adolescente pra continuar assim, sem rumo certo, sem esperanças. Eu preciso decidir minha vida.
— Não estou entendendo, David. Aonde você quer chegar? – Minha mente se tornou um caleidoscópio de sentimentos naquele momento.
— Eu estou aqui porque eu cansei de esperar, eu preciso de uma resposta agora. Você casa comigo o quanto antes, para que nós possamos construir uma vida juntos, seja onde for?
Naquela hora um raio caiu bem próximo de nós. O barulho foi estrondoso. Levei um susto, meu coração acelerou, meu estômago começou a doer e a chuva começou a cair. Pensei bem na resposta. Era tudo ou nada. Não havia mais a chance de protelar a verdade nem deixar pra depois. A lembrança das mensagens de Jenna e Jacob veio-me à mente. Então, com a roupa já molhada pelas gotas da chuva que começava a cair, e com minha face já molhada pelas lágrimas que meus olhos vertiam, eu respondi:
— Acabou. Acabou pra sempre, David. Agora, mais do que nunca, eu tenho a certeza de que não posso me casar com você. E você tem toda razão. Você precisa seguir em frente com sua vida de uma vez por todas e me esquecer. Eu vou guardar com carinho todos os momentos bons de alegria que nós vivemos juntos. Ter conhecido você, ter ficado com você valeu muito a pena. Eu prometo que de você eu não guardo mágoa nenhuma. Eu espero de verdade que você não guarde mágoa de mim também. Desejo do fundo do meu coração que você seja muito feliz.
David não me disse nada. Permaneceu imóvel, me olhando com seus olhos vermelhos de tanto chorar, enquanto a chuva caía sobre nós forte e impiedosa. Enfim aquele era o adeus definitivo, a despedida a qual um dia tanto tememos. Só eu sabia das mensagens que voltei a receber dos filhos dele indignados porque já se sentiam afastados do pai. Eu não disse nada sobre isso, pois não faria mais diferença.
Ele apenas respirou fundo e despediu-se:
— Adeus, Rosa Maria.
Depois de dizer essas palavras, David virou as costas e foi embora debaixo daquela tempestade. Era o céu que chorava junto comigo. Eu caí de joelhos na poça de água e derramei meu pranto junto àquela chuva torrencial.
Eu precisava esquecer o David. Não fazia mais sentido alimentar um amor que não poderia ser real, não poderia se concretizar. Os impedimentos eram enormes. E de pensar que um dia eu acreditei que eu e ele poderíamos ficar juntos e ser felizes... Sim, ele foi o meu príncipe encantado quando eu cheguei à América, a pessoa que fez tudo por mim. E justamente por isso eu não me sentia no direito de separá-lo de sua família.
Para ocupar mais minha cabeça, decidi fazer horas extras no hotel. Eu precisava desviar meus pensamentos dos dias anteriores. Na ocasião, eu ficaria até às vinte e uma horas. Eu havia sido designada para servir o jantar, dentre outros, do hóspede Nathan, no apartamento quatrocentos e dois, aquele hóspede que há algum tempo havia esbarrado em mim no corredor. Eu já havia lhe servido algumas vezes o café da manhã, mas o jantar era a primeira vez. Entrei no apartamento cabisbaixa. Meu coração permanecia oprimido por tudo o que eu passava.
— Boa noite. Aqui está o seu jantar, senhor Thomas. – Coloquei a bandeja sobre a mesa.
— Está vendo mesmo algum senhor por aqui? Eu não estou vendo – ele me respondeu, bem-humorado.
— Desculpe, mas essa é maneira formal através da qual eu devo me dirigir aos hóspedes.
— Pode olhar nos meus olhos. Eu não vou te morder, Rosa Maria. Esse é o seu nome, não é mesmo?
— Sim, esse é meu nome.
— Por favor, pode deixar que eu mesmo sirvo meu prato.
— Sim. Como quiser.
— Senhorita, desculpe a minha intromissão, mas percebo que você está triste. Não combina uma moça linda como você ter um olhar tão triste assim. O que houve? – ele me questionou.
— Nada que lhe diga respeito, apenas problemas – respondi.
— Ok.
— Deseja mais alguma coisa?
— Desejo sim.
— O que é? Eu peço ao serviço de quarto que prepare o que você deseja. – Me dirigi a ele de modo mais informal.
Apenas nos olhamos por alguns segundos e ele sorriu pra mim. Me virei para me retirar, quando ele disse:
— Espere.
Eu me virei novamente em sua direção.
— Sim.
— Não gostaria de jantar comigo? – ele convidou-me, sorrindo.
Minha mente mal podia acreditar no que meus ouvidos tinham acabado de escutar. Eu não conseguia entender o que aquele jovem hóspede pretendia me convidando para jantar.
— Você não pode estar falando sério. Acorda, eu sou camareira do hotel, não posso parar o meu trabalho, me sentar aqui e jantar com você.
— E por que não? Não vejo nenhum problema nisso. Eu gosto de fazer amigos por onde passo, e especialmente por você eu sinto uma empatia inesperada. Até porque a maneira como nos conhecemos foi inusitada. Já me hospedei em muitos hotéis ao longo dos meus poucos vinte anos, e em nenhum deles uma jovem camareira quase arrancou meus dedos do pé fora.
Nós rimos.
Ele conseguiu mesmo me fazer rir ao me lembrar daquele dia em que nos conhecemos no corredor do hotel. Como se parecia com o Endry, e sorrindo daquela maneira, ele mexeu muito comigo. Nem sei explicar direito o que aquela situação inusitada com aquele hóspede havia causado em minhas emoções.
O Nathan tinha o jeito doce, angelical. Era o tipo de pessoa com quem se faz uma amizade muito rapidamente.
— Sabe que até hoje, quando me lembro do dia em que esbarrei em você com o carrinho, fico imaginando a dor horrível que você deve ter sentido no dedinho do pé – eu disse.
— E eu senti mesmo. Foi uma dor terrível.
— Acredito que sim, porque você quase me xingou.
— Sim, quase. E sabe por que eu não te xinguei? – Nathan me perguntou.
— Por quê?
— Porque eu fiquei encantado com sua beleza, com seu jeitinho sensível e preocupado, foi isso.
— Agora você está querendo levar vantagem sobre mim.
— Não é isso, eu falo sério. Estou sendo o mais sincero possível. Eu ia xingar sim, mas quando olhei no seu rosto a sua beleza calou minha voz. E qual é o problema? Não posso mais achar uma mulher bonita? – ele me questionou mais uma vez.
— Não há problema nenhum. É claro que pode achar uma mulher bonita.
— Menos mal. Agora só o que me faltava seria eu não poder mais achar uma mulher bonita.
— Só você mesmo pra me fazer sorrir assim, Nathan.
— Agora é sério. Janta comigo, Rosa Maria? – ele fez o pedido de novo. Seus olhinhos de anjo brilhando transpareciam sinceridade.
— Agradeço seu convite, mas não posso, tenho que trabalhar por mais duas horas ainda. Estou fazendo hora extra para esquecer os problemas. Perto das vinte e duas horas eu chego em casa, durmo pra refazer minhas forças e no dia seguinte começa tudo outra vez.
— Entendo. É uma pena. A comida deve estar deliciosa como a de ontem.
— Sim, com certeza. Minha amiga Alejandra é a cozinheira-chefe do hotel, tem mãos de fada e cria todo o menu das refeições dos hóspedes. Com licença, agora tenho mesmo que ir, não posso deixar os outros hóspedes com fome.
— Eu entendo, mas ainda jantamos juntos? Em outro lugar? Em outra ocasião? – ele quis saber.
Pensei por alguns segundos e respondi:
— Tudo bem, em outro lugar e em outra hora. – Sorri, virei as costas e saí do apartamento em seguida.
Saí de lá animada. Ter aquele momento de descontração com o Nathan me fez bem. Era disso que eu precisava, de momentos de alegria, de pessoas que me fizessem rir um pouco e esquecer os problemas.
Voltei para a cozinha depois de ter servido os hóspedes. O sorriso de Nathan não saía da minha cabeça. Eu fazia a reprise do momento toda hora em meu pensamento.
Entrei na cozinha com meu semblante alterado pelo encanto de um sorriso que eu havia vislumbrado, mas não cabisbaixo. Tomei um copo d’água e meditei sobre o convite que havia recebido do Nathan para jantar, convite esse que eu já havia aceitado com uma alegria indisfarçável.
Alejandra percebeu meu jeito diferente naquele momento, um jeito atordoado de olhar, com feições inquietas. Largou por uns instantes as panelas e foi me interrogar, sem mais demora. Sim, ela era minha amiga, e com certeza dela eu não poderia esconder a novidade. Ela me chamou no cantinho da parede e me interrogou:
— Rosa Maria, o que aconteceu? Larguei as panelas só pra vir até você e saber de tudo que se passa. Você entrou aqui nessa cozinha toda inquieta, seu riso incontido e suas expressões faciais não rotineiras te denunciam. Passou o dia todo cabisbaixa, saiu pra servir o jantar dos hóspedes e voltou sorrindo.
— Já vi que de você eu não posso esconder nada, Alejandra.
— Com certeza não. Sou uma mulher experiente, que já passou dos trinta anos, e sei da vida mais do que você pensa. E olha, você não é a primeira camareira que entra aqui sorrindo depois de servir o jantar aos hóspedes.
— Você nem vai acreditar, amiga!
— Acreditar em quê? Fala logo, Rosa Maria!
— Você se lembra do hóspede do quatrocentos e dois?
— Sim, eu me lembro. É aquele em quem você esbarrou há uns dias atrás com o carrinho.
— Exato, ele mesmo!
— E o que tem ele?
— O nome dele é Nathan, e ele me convidou pra jantar.
— O quê?
— É isso mesmo que você ouviu. Ele me convidou pra jantar em outro dia, em outro lugar.
— Mas como foi isso? Vocês já estão se falando faz tempo?
— Na verdade, desde o episódio do esbarrão no corredor ele fica me encarando de longe e sorrindo pra mim. Então hoje fui servir o jantar, conversamos um pouco e recebi o convite.
— E você aceitou?
— Aceitei sim. Ele até me fez sorrir. Acho que é disso que estou precisando: rir, sorrir um pouco – suspirei.
— Esse rapaz do quatrocentos e dois é muito lindinho. Mas tenha todo cuidado do mundo, não dê tanta confiança a esses hóspedes. Eu já te avisei que muitos só querem diversão.
— Eu sei disso, mas foi só um convite. Eu nem sei se ele quer mesmo jantar comigo. Às vezes ele pode ter só sentido pena de mim porque contei pra ele que sou uma imigrante ilegal – eu disse.
— Não acredito que você fez isso, Rosa Maria. Não exponha sua vida assim. Pra que foi contar que é ilegal?
— Eu sei, mas aconteceu, e eu acabei falando. Sabe quando você conhece uma pessoa e logo à primeira vista já simpatiza com ela, tem afinidade?
— Sim, já aconteceu comigo mais de uma vez. Aliás, meu namorado Dylan, um americano lindo, pediu pra namorar comigo sete dias depois que nos conhecemos.
— Jura?
— Juro. Foi assim mesmo. O bom é que a família dele me aceitou muito bem.
— Não tenho dúvidas que te aceitaram. Você não é ilegal e o Dylan não tem filhos mais velhos que você.
— Sim, pode ser por isso, mas, de qualquer maneira, tenha cuidado com esse tipo de envolvimento.
— Está certo, amiga, eu terei cuidado sim – garanti a ela.
Sorrimos.
Não, eu não havia esquecido o David. Na verdade, meu coração ainda sangrava, pedindo por socorro, e era justamente isso que me impulsionava a seguir em frente com a minha vida e viver as experiências novas que surgiam diante de mim.
Os dias seguintes foram os piores pra mim. A presença do David em minha vida fazia muita falta. Tudo que restou foi passar horas durante a noite revivendo, através da memória, os momentos lindos que tivemos juntos. Mas nenhum momento se compara com aquele dia no cinema em que eu lhe dei de presente de aniversário a peça de xadrez. Por mais incrível que pareça, relembrar aquele momento não me trazia dor, muito pelo contrário, me enchia de alegria, como se tudo estivesse acontecendo de novo, a alegria que fiz o David sentir no instante em que seus olhos vislumbraram aquele presente.
Sem dúvida, aquele foi o momento em que eu descobri de verdade que, tão prazeroso quanto sentir alegria, é proporcionar alegria a alguém que amamos. Dizem que, quando temos uma lembrança boa com uma pessoa e essa lembrança não nos faz chorar, significa que é amor de verdade. Porém, esfregando o chão daquele hotel, tive certeza de que fazer o David renunciar sua vida e sua família pra ficar comigo, uma mulher ainda muito jovem e imatura, seria sim sacrifício demais pra ele. Às vezes, mesmo grandes causas não merecem todo e qualquer sacrifício, principalmente quando há coisas vitais em jogo, como o amor entre pais e filhos.
***
Aquele era mais um dia em que eu seguia minha rotina tentando entender o meu destino, arquitetando soluções para acalmar meu coração inquieto e aflito por tantas coisas.
Eu havia sido designada para servir champanhe na piscina para ninguém menos que Nathan e sua amiga Barbara. Eu ouvia dizer que não eram namorados assumidos, mas ela sempre lhe fazia companhia quando ele estava em Los Angeles. Apreensiva, eu me aproximei da piscina, segurando a bandeja com as taças e a garrafa. Seu convite pra jantarmos ainda mexia comigo, mas eu nem fazia ideia se isso se concretizaria algum dia. No entanto, confesso que a possibilidade de me aproximar mais do Nathan de alguma forma me fazia sonhar, sonhar com o carinho de alguém novo, diferente, mesmo que não fosse pra sempre. Aliás, eu já não era mais apegada ao pra sempre, pois havia vivido circunstâncias em que tudo que eu mais amava havia se acabado.
Quando eu vi o Nathan ali com aquela garota, minhas esperanças de tê-lo mais perto se desmancharam e eu caí na realidade. Tudo era apenas um sonho, foi o que pensei. Talvez eu, a bela camareira, como ele dizia, já fosse desinteressante. Na sala da piscina coberta, Nathan e Barbara se divertiam. Ela agarrou-o pelo pescoço e o beijou. Eu vi a cena toda sentindo um nó na minha garganta. Quanto mais o tempo passava, eu sentia mais e mais que aquele mundo não era o meu.
— Acho que eu te amo – Barbara afirmou, depois de beijá-lo.
— Você é linda, além de uma ótima companhia – Nathan disse, de um jeito meio forçado.
— Tudo o que eu quero é ser oficialmente a sua namorada, quero que todas as minhas amigas de Beverly Hills saibam disso – Barbara disse, empolgada. Minha presença ali não a constrangeu.
— Barbara, eu gosto de você, mas acho que ainda não é o momento para compromisso mais sério, e ninguém precisa saber se estamos juntos ou não. Vamos nos divertir, ainda somos tão jovens. Pra que se preocupar com compromisso ou status de relacionamento agora? – Nathan disse, dando em seguida um mergulho.
— Se é assim que você prefere... – Barbara respondeu, depois mergulhou também.
Naquele momento eu já havia lhes servido. Então recolhi as taças e a garrafa que já estava vazia, coloquei-as na bandeja e me retirava, quando escorreguei por ter pisado em um canto molhado do chão. Havia ficado nervosa por ver a cena do Nathan com a garota. Então caí e derrubei a bandeja com as taças e garrafa no piso molhado.
— Me desculpem. Como eu sou distraída. Não reparei o chão molhado – tentei me justificar.
Prontamente, Nathan saiu da piscina e veio em minha direção.
— Rosa Maria, você está bem? Se machucou? Eu ajudo você a recolher as coisas. – Nathan recolheu a bandeja do chão e ajudou-me a levantar.
Barbara, desgostosa, observou a cena, franziu a testa e fez feição de reprovação, olhando-me com desprezo.
Depois de me levantar, me retirei, mas permaneci no canto do corredor à espreita, para ouvir o que aquela garota comentaria sobre mim. Nada me surpreendeu. O que de bom uma pobre imigrante camareira poderia ouvir de uma mulher que viu seu pretendente ajudar com carinho uma funcionária?
— Essas mulheres vêm pra cá e não sabem fazer nada direito! – Barbara comentou, sem saber que eu estava ouvindo.
— Não fale assim. A Rosa Maria é uma excelente funcionária, muito educada, atenciosa – ele me defendeu.
— Ela deve ter mesmo muitos atributos pra você tê-la ajudado com tanta delicadeza, com tanta vontade – Barbara cogitou, em tom de reprovação.
— A pobrezinha escorregou e caiu. Eu apenas ajudei a Rosa Maria como ajudaria quem quer que fosse – Nathan explicou.
— Rosa Maria? Então você já é amigo daquela mulher pra saber o nome dela. Desde quando?
— Eu a vejo sempre desde que cheguei ao hotel há alguns dias. Ela sempre me serve no quarto. Aqui o tratamento aos hóspedes é personalizado. Não tenho do que reclamar.
— Eu não sabia que você costumava defender empregados – Barbara disse, com seus olhos ardendo de ciúmes.
— Se não fossem os empregados, quem nos serviria, Barbara?
— Estou surpresa com as suas palavras. Você não era assim, Nathan. Pelo sotaque dela, nota-se claramente que não é americana.
— A Rosa Maria é uma imigrante latinoamericana que luta pra sobreviver em meio às dificuldades da vida. Sinceramente, não estou a fim de discutir esse assunto com você. Não seja preconceituosa, Barbara. Abra sua mente para coisas mais úteis.
— Preconceituosa? Eu só perguntei de onde ela era. É proibido perguntar isso? Confesso que ela é até bonita, deve chamar muito a sua atenção para defendê-la com tanto ímpeto. Desde quando você se preocupa com os pobres desamparados? – Barbara insistiu em seus questionamentos.
Nathan, até aquele momento, ainda não havia tido um grande amor em sua vida, apenas namoros temporários e paixões passageiras. Isso ele me disse um tempo depois de nos conhecermos. Depois de ter ouvido as palavras de Barbara, contrariado, ele exclamou:
— Barbara, cansei de ficar aqui! Vou para o meu quarto. Mas quero ficar sozinho. Ainda tenho que acertar algumas coisas da faculdade pela internet. Hoje vou dormir mais cedo. Logo eu volto pro Caribe pra falar com meus pais e acertar minha mudança pra Los Angeles. Amanhã nos encontramos na praia, ok?
— Nathan, o que aconteceu? Não quer que eu fique mais aqui com você? – Barbara exclamou, parecendo se sentir rejeitada.
— Não é isso, eu só quero ficar sozinho agora, pode ser?
— Tudo bem. Vou trocar de roupa no vestiário e já vou embora então. Até outro dia, Nathan. – Barbara se retirou.
— Até. – Ele pareceu satisfeito em vê-la partir.
Saí dali depressa. Não queria que o Nathan percebesse que eu fiquei ouvindo a conversa. Ter sentido um pouco do carinho dele por mim me comoveu. Percebi que ele se importava comigo, afinal ele me ajudou a me levantar, quis saber se eu estava bem. Eu gostava de me sentir protegida, ainda que por um instante. Como qualquer outra mulher, eu tinha muitos sonhos, e um deles era ter uma vida digna, onde quer que fosse, cursar a faculdade, ver meus pais felizes e saudáveis.
Era fim de expediente. Me despedi da Alejandra, que naquela noite iria a um jantar especial na casa dos pais de seu namorado Dylan. Ela estava tão feliz, o brilho dos seus olhos não podia disfarçar todo seu entusiasmo gerado pela paixão. Ao que tudo indicava, um noivado estava a caminho. Eu torcia muito pela minha amiga. Como era bom ver a alegria das pessoas que têm um amor sem obstáculos. Felizmente a realidade não é cruel para todos.
Depois de pisar meus pés na calçada do hotel, olhei para o céu, que naquele momento não possuía estrelas. As nuvens carregadas anunciavam a tempestade se formando. Chamei o táxi e permaneci ali, parada, esperando. Passaram-se alguns minutos e a tempestade começou a desabar. Abri meu pobre guarda-chuva quando pude avistar um carro se aproximando, mas não era o táxi. Era o Nathan voltando para o hotel. Não percebi que era ele de imediato, mas ele me notou ali debaixo da chuva. Como sempre, Nathan vestia uma calça jeans e camisa social. Esse era seu traje habitual.
— Rosa Maria! – ele chamou por mim.
Toda aquela água que caía do alto embaçou minha visão. O guarda-chuva também atrapalhava minha tentativa de reconhecer quem era o dono daquela voz que saía de dentro do carro.
— Entra aqui! – ele disse, quase gritando.
Me aproximei mais da janela do carro e fiquei assustada por alguns segundos. Até então, nem desconfiava quem poderia estar me pedindo pra entrar naquele carro. No instante em que percebi quem era o motorista, meu coração bateu mais forte.
— Sou eu, o Nathan, o seu hóspede! Entra! Te dou uma carona até sua casa – ele me disse, sorrindo.
— Nathan! É você! Nem reconheci o carro. Eu não quero incomodar – eu disse, quase gritando por causa do barulho da chuva que começou a ficar ainda mais intensa.
— Não é incômodo nenhum. Entra logo, antes que fique toda molhada.
— Tudo bem, obrigada. O táxi está demorando. – Fechei o guarda-chuva, entrei no carro, coloquei o cinto e o Nathan acelerou.
Percorremos as ruas iluminadas de Los Angeles.
— Obrigada pela carona.
— Não precisa me agradecer. – Ele sorriu.
— É claro que preciso. Não sei o que houve, mas o táxi que eu chamei não apareceu.
— Não me custa nada ajudar uma jovem sempre tão dedicada e bela. – Ele fez questão de me elogiar mais uma vez.
— Apenas cumpro meu trabalho. No mais, já estou acostumada a pegar chuva de verão. Olha pra mim! Já estou toda molhada, vou estragar seu carro.
— Que nada. Não vai estragar meu carro só por causa de uma roupa molhada. Mas me diz onde você mora que eu te deixo lá – ele disse.
— Ah, sim, eu digito meu endereço aqui no seu GPS. – Peguei o GPS.
— Me faça esse favor.
— Feito. Agora basta obedecer ao GPS. Se ele errar alguma coisa eu corrijo. – Coloquei de volta o GPS no suporte.
— Certo, garota.
— Engraçado. Nós mal nos conhecemos e eu estou aqui no seu carro com você. Estamos quebrando as regras do hotel – comentei.
— Que regra?
— É recomendado que os funcionários do hotel não se relacionem com os hóspedes – expliquei-lhe.
— Bobagem! Estou apenas fazendo uma gentileza, não vejo mal nisso.
— E sua namorada? Ela pode não gostar de saber que você está sendo gentil comigo.
—Que namorada? – Nathan pareceu não entender do que eu estava falando.
— A Barbara.
— A Barbara não é minha namorada – ele garantiu.
— Ah, não? Então por que vocês estão sempre se beijando na piscina? Não me diga que ela te beija à força, porque eu não vou acreditar.
— Não. Ela não me beija à força. Mas o fato é que ela não é minha namorada. Pra falar a verdade, eu nem sei por que eu deixo aquela garota ficar me cercando, me prendendo sempre que venho pra Los Angeles.
— Pobre Barbara, sofre como todas as garotas que sonham em ficar com você.
— Pobre não, ela é muito rica. – Ele sorriu mais uma vez.
— Imagino. Mas você não deveria fazer as garotas sofrerem assim por sua causa. Isso é cruel, Nathan.
— Eu não alimento a ilusão de ninguém, inclusive já conversei com a Barbara sobre isso. Não quero nada com ela. Já dei um basta nisso naquele dia da piscina. Eu sei que errei ao alimentar de certa forma as esperanças dela, mas não vou mais deixar que isso se repita. Acabou mesmo. Então me diga, Rosa Maria, como você tem passado? Você me pareceu mais triste desde o dia em que aquele homem apareceu no saguão do hotel querendo falar com você. – Nathan começou a tocar no assunto que eu tanto queria evitar.
— Aquele homem é meu ex-namorado. O nome dele é David. Naquele dia ele terminou tudo comigo – eu disse a ele, e fiquei cabisbaixa.
— Que pena, eu lamento. Mas por que romperam?
— Os filhos dele não me aceitam porque eu sou muito mais jovem que o pai deles. Sou mais jovem inclusive do que eles. Além de tudo, acredito que o fato de eu ser imigrante também é um agravante. Mas os filhos do David não chegaram a saber que eu estou ilegal.
— Entendo. E como ele reagiu diante da posição dos filhos? – Nathan se mostrou curioso pra saber mais detalhes da situação.
— O David estava disposto a enfrentá-los, e até a se afastar dos filhos por mim, mas não aceitei esse sacrifício. Nenhum outro amor pode ser maior do que o amor de um pai pelos filhos. Eu jamais me perdoaria se eu separasse uma família inteira em nome de um amor que talvez nem fosse pra sempre. E não é só isso: os filhos dele me ofenderam muito com mensagens agressivas pela internet. Estávamos noivos, mas tudo acabou.
— É uma história complicada. Mas talvez você devesse ter tentado um pouco mais antes de desistir.
— É o que todo mundo me diz, mas era muito complicada a situação, até porque não havia garantias de que as autoridades permitiriam minha permanência legal nesse país mesmo depois do casamento. Se eu tivesse que ir embora, o David teria que largar a vida dele aqui. Um amor, mesmo sendo tão grande quanto o nosso, não vale tamanho sacrifício. Afinal, qual é o pai que seria feliz vivendo pra sempre longe dos filhos e dos netos? – argumentei.
— Entendo o seu ponto de vista, mas de repente, se é um amor tão grande assim como você diz, talvez o sacrifício valesse a pena – Nathan comentou.
— Essa é uma visão romântica que eu já não tenho mais desde que tive que deixar meu país. Meu sonho é ter uma vida digna, me formar na faculdade. Sabe, antes de fugir da minha pátria, eu estudava engenharia elétrica na universidade da capital. Foi um tempo bom, em que eu vivi meu primeiro grande amor. O nome dele era Endry. Mas depois que a mãe dele morreu por falta de atendimento num hospital precário, Endry foi embora pra Argentina tentar uma vida melhor, mais digna. Eu fiquei com os meus pais. Não pude ir embora com ele. Minha mãe e meu pai precisavam de mim.
— Compreendo a sua dor, em parte, é claro. Só quem vive uma situação é capaz de entender plenamente o que ela significa.
— A vida na América Latina era indigna. Vendemos o pouco que tínhamos e fugimos pra cá, viemos como turistas e nunca mais voltamos ao nosso país. O David já era amigo do meu pai mesmo antes de perdermos tudo, e nos ajudou a vir pra cá. Ele foi nosso anfitrião, a nossa única chance de escapar daquele inferno. Nathan, no meu país as pessoas estão comendo carne de cachorro e de rato pra não morreram de fome. Muitas comem lixo também. – Meus olhos começaram a se encher de água ao relembrar essas cenas.
— Rosa Maria, eu lamento muito por tudo isso. Imagino o quanto deve ser triste ter que fugir da sua terra natal pra escapar da miséria. De fato, sofremos uma crise de imigração ilegal aqui por conta de tudo o que está acontecendo não só no seu país, mas em outros também.
— Um dia acordei com uma dor horrível no estômago. Tenho gastrite por conta de passar horas ou dias sem comer. Então, naquele dia, olhei pela janela e vi meus vizinhos dilacerando um cachorro para comê-lo, ao redor de uma fogueira improvisada. Não é uma crise qualquer. Além das pessoas estarem comendo cachorros e ratos, estão saqueando supermercados, enquanto outras morrem de fome nas esquinas.
— Vejo em alguns noticiários da internet. É algo lastimável. Entendo o seu medo de ser deportada, bela jovem. Mas por que não entraram com o pedido de asilo político? Vocês são refugiados de fato, perseguidos políticos? – Nathan perguntou.
— Exatamente. Somos refugiados, perseguidos políticos. Mas meu pai sempre teve medo de pedir asilo e negarem, e assim sermos expulsos daqui. As notícias não são nada animadoras. Estão sendo negados muitos pedidos de asilo a pessoas que estão em situação semelhante à nossa. Desculpe estar te contando tudo isso, Nathan. Infelizmente não tenho nada melhor pra te dizer.
— Não precisa se desculpar. Todos nós temos obstáculos a serem enfrentados. Eu imagino o quanto deve estar sendo difícil pra você, mas acredito que devem tentar o asilo político. Ainda terão a chance de apelar para a Suprema Corte.
— Sabe de uma coisa? Só o fato de eu ter shampoo a um preço acessível pra lavar meus cabelos aqui na América, já me faz uma pessoa de certa forma em paz, aliviada. Apesar de toda a dor, eu me sinto alegre por ter comida. Tive momentos felizes aqui na América. Minha mãe tem um medo horrível de sermos deportados, de ter que voltar. Não é fácil ver as pessoas morrendo de fome ou doentes ao nosso redor e não podermos fazer nada – eu disse, relembrando o passado.
— Eu entendo sua situação. Pode contar comigo pra tudo em que eu puder ajudar. Podemos ser amigos, Rosa Maria.
— É claro, podemos ser amigos. Mas me fale um pouco de você. Quando vai se mudar pra cá? E a sua faculdade?
— Acredito que até semana que vem estou voltando pro Caribe. Vou organizar minha mudança e no próximo mês estarei aqui de novo.
— Que bom. Vai estar por perto.
— Sim, estarei. Não mais no hotel, é claro.
— E seus pais não vêm morar pra cá?
— Não. Minha mãe não gosta de Los Angeles.
— Não gosta? Por quê? – Naquele momento eu fiquei curiosa.
— Porque minha irmã mais velha morreu atropelada por um motorista bêbado em Beverly Hills. Ela era jovem, tinha apenas quinze anos na época, e desde então meus pais decidiram que não morariam mais em Los Angeles. Por isso partirmos de vez pro Caribe.
— Que horror. Sinto muito por isso. Já faz tempo?
— Sim, dez anos.
— Eu lamento.
— Tudo bem, Rosa Maria, todos temos nossos dramas e tragédias. Como você vê, eu também sou pobre de algum modo. Mas, mudando de assunto, por que não janta comigo esta noite? – Nathan me convidou, quando já nos aproximávamos da minha casa.
— Jantar? Com você? – Fiquei surpresa pelo convite.
— Sim, você e eu!
— Onde?
— Onde você quiser, jovem donzela. – Ele sorriu.
— Você me pegou de surpresa, Nathan. Nem sei o que dizer.
— Apenas diga sim.
— Tudo bem. Sim. Gostou?
— Adorei a resposta. – Seu semblante era de alegria por estar ali comigo.
Nathan estacionou o carro em frente ao meu prédio humilde. Eu precisava entrar, me arrumar, ficar linda para aquele momento novo, inédito na minha vida.
— Eu moro aqui nesse prédio simples, apartamento 202, terceiro andar. Vou subir, me arrumar e já volto. A chuva passou.
— Tudo bem, eu espero.
— Você quer subir? – perguntei, depois de prestar atenção nos olhinhos dele, meio pedintes.
— Se quiser, posso te esperar aqui mesmo no carro – ele disse.
— O que é isso? Eu não quero ser mal-educada e te deixar esperando aqui fora. Sobe comigo. O apartamento é pequeno, mas tem um sofá razoavelmente confortável. Eu coloco um filme pra você ver enquanto eu me arrumo. Já que vamos a um restaurante legal, tenho que me arrumar pra ficar mais bonita.
— Nem precisa tanto, você já é linda por natureza. – Nathan tinha um semblante de anjo que inevitavelmente me fazia lembrar do meu primeiro amor.
— Então vamos subir – eu disse.
Meus passos até o terceiro andar eram ansiosos, não para menos, afinal aquele ser angelical apareceu em minha vida de maneira inesperada, justamente no momento em que eu mais precisava, me consolando, me estendendo a mão. Minhas amigas haviam me dito pra tomar cuidado com os convites dos hóspedes, e sempre procurei manter toda cautela do mundo quanto a isso. Sim, outros hóspedes já haviam tentado algo e eu fugi. Mas com Nathan era diferente. Nem por um segundo senti que ele quisesse se aproveitar de mim ou mesmo brincar com meus sentimentos.
No momento em que entramos no elevador, aquele homem que parecia ter vindo dos meus sonhos segurou em meu braço. Este foi seu primeiro gesto de carinho físico que eu pude sentir. Ele já havia me feito esse convite pra jantar dias antes, mas nada havia se concretizado até aquele momento. Eu olhei para sua face e sorri como forma de retribuir o pouco, mas tão significativo gesto que ele teve para comigo, me oferecendo uma carona até em casa. Senti, naquele instante, que de alguma forma ele já gostava de mim, e de alguma forma eu já estava ligada a ele. Por uns instantes eu me esquecia de que era uma imigrante ilegal no país, por um instante eu esquecia minhas dores, medos e dúvidas.
Eu sofria muito pelas perdas e incertezas do destino. Meu mundo era mais pranto do que alegria. Porém, momentos como aquele me faziam repensar certas coisas, me faziam sentir que ainda havia uma esperança para minha vida, e que eu nunca estaria sozinha. Minha fé se reascendia. Eu havia me afastado um pouco da religião, mas reconhecia que Deus, de alguma forma, aliviava a minha dor e a minha solidão trazendo à minha vida pessoas que me ajudavam nos momentos mais difíceis.
Entramos no apartamento e pedi que o Nathan me aguardasse sentado no sofá. Liguei a TV e o deixei à vontade para escolher o que quisesse assistir.
— Nathan, você me espera aqui enquanto me arrumo. Vou tentar não demorar – prometi.
— Tudo bem, eu espero. Fique tranquila. Ainda temos bastante tempo para aproveitar a noite – ele me disse, pegando em seguida o controle remoto.
Entrei no meu quarto e tranquei a porta, ainda sem acreditar que havia um príncipe em minha humilde sala. Um príncipe imperfeito, mas que me tratou com carinho desde a primeira vez em que nos esbarramos no corredor do hotel.
Dentro do meu quarto eu respirava fundo, tentando não ficar tão nervosa, pois o inesperado estava acontecendo. Enfim havia chegado minha primeira noite especial com meu anjo. Sim, o Nathan era muito parecido com o Endry, e talvez esse fato tivesse me encantado também, afinal o Endry foi meu primeiro grande amor, e isso eu jamais poderia esquecer. Contudo, o Nathan tinha seu próprio jeito de ser, seu algo peculiar e único, algo que nenhuma outra pessoa nesse mundo poderia ter igual. Era isso que me prendia e me cativava ainda mais. Um estudante caribenho das Bahamas estava ali me esperando pra sair pra jantar.
Coloquei um vestidinho azul que havia usado apenas uma vez em uma festa de casamento de uma amiga da Marieta, um sapatinho preto, fiz uma maquiagem mais leve, e nas minhas orelhas brinquinhos discretos.
Destranquei a porta. Meus passos até a sala continuaram ansiosos. Enfim me deparei com Nathan rindo de uma cena do filme. Pelo o que notei, já estava quase no fim. Eu havia demorado mais de uma hora para me arrumar.
Nathan me olhou e meu coração acelerou um pouco. Ele se levantou do sofá, segurou em minha mão direita e disse, como antes, sorrindo:
— Rosa Maria, você está linda.
— Obrigada – respondi, tímida.
— Estou até sem graça diante da sua beleza.
— Bobagem. Você é muito lindo, Nathan. Eu é que fico sem graça.
— Vamos então. Quero te levar a um lugar especial. – Ele ainda me mirava com olhinhos radiantes.
Nathan segurou em meu braço direito e meu coração, já mais calmo, sorria por dentro, sentindo paz. Seguimos em silêncio até o lado de fora. Depois que entramos no carro, meu perfume exalou pelo ar, fazendo que com que meu príncipe respirasse fundo.
— Além de linda, você está suavemente perfumada.
— Obrigada. Assim fico ainda mais sem graça.
— Vamos ao lugar especial. – Ele deu a partida.
— Agora estou curiosa pra saber aonde vamos.
— Acredito que vai gostar.
— Obrigada por esse momento. Seu sorriso e gentileza são incomparáveis.
— Incomparáveis?
— Sim. Você é único, Nathan.
— Eu admiro muito a sua força pra continuar mesmo diante de tanta adversidade. Essas coisas também nos fazem encantar por alguém, minha Rosa.
— Engraçado você dizer isso, porque às vezes eu me sinto uma pessoa tão fraca – confessei.
— Talvez, em algum momento, todos nós nos sintamos assim, fracos. Mas é assim que ficamos fortes. – Ele sorriu.
***
Nathan parou o carro na Avenida Sepulveda Boulevard, em frente a um restaurante elegante, do qual não me recordava já ter visto antes. Mas é claro, eu só trabalhava, mal tinha tempo para passear por Los Angeles.
— Chegamos. Este é o The Bar Bel-Air, clássico e de muito requinte. Tem um ambiente acolhedor, música ao vivo e cardápio variado, com frutos do mar.
— Mal posso esperar para entrar – eu disse.
— Nem precisa esperar, vamos entrar logo.
O ambiente era mesmo requintado, as mesas de madeira castanho-escuro, a decoração com flores nos cantos, um lustre grande no centro do teto, luminárias menores nos cantos das paredes com espelhos. Escolhemos uma mesa próxima ao palco onde músicos se apresentavam.
— Sinceramente, mal posso acreditar que estou aqui com você! – eu disse. Certamente meus olhos já estavam umedecidos nesse momento. Segundos depois senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto.
— Sabe, também parece um sonho pra mim – ele confessou, enxugando a lágrima do meu rosto.
— É sério? – Segurei em sua mão.
— Sim. Estou aqui nesse lugar lindo, com uma mulher tão encantadora e inteligente. Uma vez você comentou que era estudante de engenharia elétrica no seu país e que seu sonho era terminar os estudos e seguir uma carreira. Admiro muito isso. Não gosto de julgamentos, mas, se fosse outra mulher, ficaria de qualquer forma com um cara americano pra, de certa forma, garantir um futuro – ele disse, me convencendo da sinceridade de suas palavras.
— Era o que minha mãe queria que eu fizesse, que eu engravidasse logo do David pra garantir alguma coisa, ter no mínimo alguém que provesse o meu sustento e da criança.
— Entendo. Esse pensamento da sua mãe é de alguém que está em desespero, que não vislumbra a chance de um futuro melhor de outra forma.
— Foi difícil pra ela quando o David terminou tudo comigo porque eu não aceitei o casamento.
— E será que ainda tem volta o seu relacionamento com o David?
— Não, não tem volta. Mas não viemos aqui pra falar sobre isso, não é mesmo?
— Sim, você tem razão, Rosa Maria. Eu e você nos vemos no hotel todos os dias, e você é a primeira mulher a chamar minha atenção pelo que é, e não pela sua aparência, apesar de você ser uma mulher bonita. Sim, quando nos esbarramos no corredor foi a sua beleza que me atraiu, mas meu interesse genuíno por você começou depois de perceber quem você é de verdade, uma mulher que não foge da luta, que não foge da vida. As coisas horríveis que você viu e enfrentou em seu país antes de chegar aqui me surpreenderam. Isso me atraiu muito.
— Ouvir isso me deixa muito surpresa, pois eu pensava que o fato de eu ser uma imigrante ilegal te afastaria. As pessoas costumam não gostar de problemas, e eu acho que, na minha situação, eu sou um problema para os homens.
— Digamos que você é um problema agradável.
— Não diga isso. Não consigo imaginar algum problema que possa ser agradável. Eu não entendo; você está sempre rodeado de tantas mulheres fascinantes que pertencem ao seu mundo, e foi se interessar por mim.
— Quer que eu repita o que acabei de dizer? Alguma hora na vida a gente descobre que beleza e status não são tudo. Questões de documentação e circunstâncias políticas não impedem o amor de acontecer, não é mesmo?
— Amor?
— Sim, amor, afeto, carinho, admiração.
— Você tem razão. O coração não sabe o que está acontecendo aqui fora, ele apenas sente – eu disse.
— Não esqueça de uma coisa: você pode escapar da imigração pelo resto da sua vida, mas do amor você nunca vai escapar. – Ele mirou fixamente meus olhos. – Vamos dançar até o garçom servir nosso prato? – ele convidou-me, sorrindo.
— Dançar?
— Sim! Escuta. A banda está tocando um dos meus flashbacks favoritos, “Why”, da Annie Lennox. – Ele se levantou da mesa.
— Essa música é bonita, mas na verdade também me traz angústia – eu disse.
— Assim como o prazer, a angústia faz parte de nós, não é mesmo? – ele questionou, com os braços estendidos em minha direção.
— Sim, é claro.
— Então vamos dançar.
— Vamos.
Nathan pegou-me pela mão e iniciou a dança à meia luz do local, que naquele momento estava quase vazio. Havia uns três casais nas mesas ao redor. O clima de romance invadiu o restaurante, onde dançamos face a face. Sorrimos um para o outro. Parecia até que já nos conhecíamos há muito tempo.
Nathan me olhava com brilho nos olhos, parecendo já estar apaixonado por mim. Me encarava com aquele olhar que grita “eu quero que você seja minha, meu coração agora é seu”. Momentos como esse são mágicos, não acontecem o tempo todo. Parece até loucura, mas ali, tão pertinho dele, me lembrei ainda mais do Endry e senti saudade do passado, mesmo sabendo que o homem que estava ali diante de mim era outro anjo, outro anjo que, sem que eu fosse capaz de explicar, surgiu em minha vida em um momento difícil, como um milagre.
— Já parou pra pensar por que você está aqui dançando em um restaurante requintado com a camareira do hotel? – sussurrei ao pé do ouvido de Nathan.
— Na verdade, parei pra pensar que eu estou aqui dançando com a camareira mais linda e mais amável que eu já conheci – ele respondeu-me, também sussurrando.
— Não pense que vai conseguir me beijar hoje, senhor hóspede. Eu não sou assim – eu disse, ainda enquanto dançávamos.
— Quem disse que eu quero te beijar hoje?
— Não quer?
— Eu quero te beijar todos os dias, Rosa Maria – ele respondeu com seu sorriso angelical de costume.
Quando ouvi ele me dizer, isso meu coração acelerou de novo, como nunca imaginei. Eu não pensava que outro homem fosse me fazer sentir daquele jeito, emocionada. Na verdade, eu ainda acreditava pouco no amor, mesmo ele sendo tão evidente diante dos meus olhos. Eu quis me entregar totalmente àquele momento, mas a razão latejava em minha mente, exigindo cautela.
***
Depois do jantar, Nathan me levou de carro até meu apartamento. Ele parou o automóvel em frente ao prédio. Senti um calafrio na espinha, era o nervosismo.
— Nathan, muito obrigada pelo jantar. Foi muito bom. Agora eu tenho que subir pra descansar. Amanhã eu acordo cedo pra trabalhar, como você bem sabe.
— Eu sei, mas eu vou subir, te levo até a porta – ele disse.
— Não precisa se incomodar – tentei evitar.
— O que é isso? Eu faço questão de te acompanhar até a porta do seu apartamento. Eu te busquei lá, te entrego lá – ele insistiu.
— Tudo bem, obrigada pela gentileza.
Concordei com o coração saindo pela boca. Nathan segurou em meu braço e juntos fomos em silêncio em direção ao meu humilde apartamento. Ao chegar na porta, coloquei a chave, abri, me virei em direção a ele e me despedi:
— Aqui estamos. Mais uma vez obrigada por essa noite tão linda.
— Fico feliz que tenha gostado. Fiz tudo pra demonstrar o meu carinho por você – ele disse, acariciando meu rosto.
— Você é um verdadeiro príncipe. Foi bom sonhar – confessei, tímida. Na verdade, eu estava cabisbaixa por me lembrar de que talvez tudo aquilo não passasse mesmo de um sonho, uma ilusão.
— Não tem que ser apenas um sonho, pode ser real e já está sendo – ele afirmou, ainda acariciando meu rosto.
— E como tudo isso poderia ser mais que um sonho? Eu nem sei se futuramente vão permitir que eu continue nesse país. Talvez eu tenha que ir embora. Além de tudo, nossos mundos são tão diferentes, Nathan. Não é porque saímos hoje que significa que está tudo bem.
— Rosa Maria, eu não sei do futuro, nenhum de nós sabe, mas tudo que eu quero agora é estar ao seu lado. Quero poder te ajudar no que for possível.
— Sou grata. Você é um anjo na minha vida. Meu coração anda tão aflito. Foi Deus quem mandou você, pra me fazer esquecer por um momento tudo que eu sofri.
— Não precisa agradecer. Foi um prazer – ele afirmou.
— Agora eu preciso descansar, amanhã tenho que ir cedo para o trabalho.
— Tudo bem, conversamos depois. Amanhã nos vemos no hotel. Ainda há coisas que eu preciso te dizer. Boa noite. – Ele se despediu beijando meu rosto, depois de tanto tê-lo acariciado.
— Boa noite – respondi, depois de receber seu doce beijo em minha face.
***
Naquela noite eu mal consegui dormir, pensando no carinho que havia recebido do Nathan, pensando em como eu poderia retribuir esse afeto, pensando em como eu havia sido cativada por cada gesto dele que me emocionou. Por alguns momentos, eu até achava que nem merecia mais essa chance da vida, do destino.
Nunca imaginei que um hóspede seria o responsável por me fazer sonhar de novo. Logo ele se mudaria de vez para Los Angeles e ficaríamos mais perto do que nunca.
Ansiei pela chegada do dia seguinte, no qual eu o veria de novo no hotel. Nós seres humanos precisamos de sonhos pra seguir em frente, e o Nathan acendeu essa chama de novo dentro de mim.
— Bom dia! – eu disse, sorrindo aos meus colegas do hotel que estavam na copa preparando o café da manhã para os hóspedes.
— Amiga, o que foi que aconteceu? Nunca te vi tão sorridente e tão animada logo cedo. Por que você está tão feliz hoje? Ganhou na loteria? Me conte agora, eu quero saber – Alejandra me interrogou, com a certeza de que algo muito especial havia acontecido.
— Não, Alejandra, infelizmente eu não ganhei na loteria, mas o que aconteceu foi muito bom também – respondi.
— Uau! Azar no jogo, sorte no amor, eu suponho. Estou certa? – ela perguntou.
— Está um pouco certa. Ainda não sei se é amor.
Alejandra me segurou pelo braço e me levou em um canto do corredor para falarmos mais discretamente.
— Sem mais enrolação, Rosa Maria. Conte-me logo o que aconteceu.
— Ontem à noite eu vivi um dos momentos mais lindos da minha vida – eu disse, suspirando.
— Jura?
— Juro, amiga.
— E o que aconteceu? Foi com quem? Estou morrendo de curiosidade.
— Sabe o hóspede do 402, lindo, a quem eu sirvo todo dia?
— Sim, sei, o rapaz rico do Caribe. Você sempre comenta que ele é muito lindo e está rodeado de mulheres ricas. O que foi? Ele te convidou pra jantar de novo?
— Então, ontem, na hora daquela chuva no fim do dia, ele me deu uma carona até minha casa e depois me convidou pra sair. Nós jantamos juntos e dançamos no The Bar Bel-Air. Foi maravilhoso, como em um conto de fadas.
— Amiga! Isso merece uma comemoração, uma grande festa! É a notícia do ano! Será que ele está apaixonado? – ela mostrou empolgação.
— Festa? Achei que você fosse ficar desconfiada, me recriminar, dizer que eu tenho que me afastar dele. Você tinha dito pra eu ter cuidado com os hóspedes, porque muitos se aproveitam das camareiras imigrantes.
— Sim, isso é fato, mas, como esse rapaz já está hospedado aqui há praticamente mais de um mês, notei que ele é uma boa pessoa. Talvez ele esteja mesmo apaixonado. Pode acontecer, como eu disse. Já passei por isso. É aquela paixão relâmpago de filme – Alejandra explicou.
— Foi muito bom mesmo. Meu coração disparou de entusiasmo, achei que ele me cativou, me conquistou um pouco. Mas tenho medo, ainda não sei até que ponto levo isso adiante. Em breve ele virá morar de vez aqui em Los Angeles, para estudar.
— Então ele vai ficar por perto. Mas por que não seguir em frente com ele, amiga? – Alejandra perguntou.
— Ora, porque eu sou apenas a pobre imigrante ilegal que muito provavelmente será deportada assim que as autoridades me descobrirem.
— Mas que bobagem, Rosa Maria! Põe uma coisa na sua cabeça: pra se viver o amor, não é preciso documentos, visto, passaporte, nada disso. Pra viver o amor, você só precisa de um coração e uma mente disposta a amar.
— Talvez, mas agora eu preciso servir os hóspedes. Depois a gente conversa mais.
— Com certeza, amiga. Eu vou querer saber de tudo. Também tenho muito trabalho hoje. E eu bem sei quem é o hóspede que te espera. Vá logo. Hoje o café está caprichado – Alejandra me disse, sorrindo.
Quando entrei no quarto 402 para servir o café da manhã, Nathan já me esperava sentado em volta da mesa, olhando a porta se abrir. Ele me disse:
— Bom dia, princesa. Trouxe meu café mais cedo hoje?
— Mais cedo não, na hora certa. E está delicioso, como quase sempre. Foi minha amiga Alejandra quem preparou. Ela é a melhor cozinheira deste hotel.
— Acredito que sim. Se ela é sua amiga, deve ser muito competente. Sente-se aqui, tome café comigo – ele me convidou.
— Nathan, está maluco? Estou no meu trabalho, não percebe? Estou vestida em meu uniforme de camareira.
— Vou falar com o gerente do hotel para que você me sirva com exclusividade, assim podemos passar o dia todo juntos – ele disse, com um risinho cínico.
— Se você fizer esse pedido ao gerente, que inclusive também é o dono deste hotel, com certeza eu perco meu trabalho aqui. Ele me manda embora na mesma hora. Uma das ordens mais importantes que recebi do senhor Hernadez foi para não me relacionar pessoalmente com os hóspedes aqui no hotel.
— O senhor Hernandez é muito radical.
— Radical? Ele já faz muito dando trabalho aos imigrantes latinos.
— Vou te dizer a verdade, Rosa Maria.
— Diz.
— Eu passei a noite toda pensando no que aconteceu ontem. Eu nunca me senti tão bem com uma mulher como eu me senti com você. É sério, foi muito bom.
— Jura?
— Sim.
— E eu não preciso nem dizer. Foi maravilhoso, inesquecível. Como eu disse, foi bom sonhar. A vida é assim, feita de momentos, alegres ou tristes. Agora a realidade me espera, eu tenho que servir o café dos outros hóspedes.
— No fim do expediente você pode passar aqui? Podemos sair pra conversar.
— Eu adoraria, Nathan, mas hoje eu não posso, vou fazer um trabalho extra de garçonete em uma festa de aniversário de um milionário.
— Então, que tal amanhã? – ele insistiu.
— Amanhã tudo bem, pode ser.
— Ótimo! Amanhã você vai jantar comigo depois do expediente aqui mesmo no restaurante do hotel. Tem música ao vivo, vai ser legal.
— Aqui? Se o senhor Hernandez ver, ele não vai gostar.
— Depois eu me entendo com o senhor Hernandez.
— Bom, pelo menos os funcionários do turno da noite não me conhecem muito bem. Acho que pode ser – eu disse.
— Combinado. E já que não nos veremos hoje à noite, eu vou à festa de aniversário de um amigo meu. Faz tempo que ele me convidou. Assim o tempo passa mais rápido e amanhã chega logo – ele disse.
— Que coincidência. Eu vou à uma festa para trabalhar e você vai à outra festa pra se divertir. Aproveite com seus amigos.
— Na verdade, vou contar os minutos pra amanhã chegar logo e estarmos juntos de novo! – ele exclamou.
— Tudo bem. Agora eu vou, até amanhã.
— Até.
Ele me jogou um beijo. Eu sorri e saí do quarto.
Meu expediente havia encerrado. Eu estava no vestiário me preparando para meu trabalho extra na festa daquela noite. Foi quando Alejandra surgiu me procurando, tinha algo a me dizer. Ela me contou que Franz pegou-a pelo braço, puxou-a para um canto da parede e a interrogou da seguinte maneira:
— Alejandra!
— O que foi, Franz? Algum problema?
— Alejandra, você sabe se a Rosa Maria está namorando?
— Pelo que eu sei, já faz tempo que ela terminou com o David.
— E será que ela está gostando de alguém?
— E se estiver, qual é o problema? Franz, desde quando a Rosa Maria deve satisfações a você?
— Apenas estou preocupado com ela. Outro dia notei que ela entrou no carro com aquele hóspede caribenho. Tenho medo de que ela seja enganada, seduzida.
— Eu sei que você é apaixonado por ela, mas acho que é melhor você não se intrometer na vida da Rosa Maria. Ela já tem problemas demais. E outra: ela já é adulta e pode muito bem se defender.
— Eu só não quero que ela se machuque. Ela é importante pra mim.
— Mas pra acabar logo com a sua ilusão, eu vou te dizer: ela está sim saindo com alguém, e esse alguém é o hóspede caribenho.
— Eu não acredito que a Rosa Maria está se iludindo com aquele playboy que vive nesse hotel rodeado de mulheres interesseiras.
— Não acredita por quê? Ela é solteira e não deve satisfações a ninguém.
— Eu me preocupo com a Rosa Maria e tenho quase certeza de que esse cara só quer se aproveitar dela! Alejandra, eu sou apaixonado por ela.
— Lamento muito por isso, mas desista. Ela gosta de outro. E tem mais: o hóspede parece gostar dela de verdade, sem interesses escusos.
— Pois eu não confio nem um pouco nesses hóspedes, eu sei o que a maioria deles faz com as moças estrangeiras como a Rosa Maria. Ela não merece ser usada.
— Nem todas as pessoas são como você pensa, Franz! A Rosa Maria é uma mulher muito bonita, honesta, atraente, adulta. Por que os outros homens também não podem ser? Agora, com sua licença, eu tenho que voltar pra casa, já está na minha hora. Franz, tem meninas legais aqui no hotel. Para de sofrer pela Rosa Maria. Liberta o seu coração dessa paixão impossível.
Ao saber que eu estava saindo com o Nathan, era como se Franz estivesse perdendo a mim, sua grande paixão. Sobre seus sentimentos, eu soube tempos depois, quando muitas coisas aconteceriam, coisas essas que mudariam para sempre nossas vidas.
***
Minha mente sonhadora e meu coração disparado de paixão me impediram de enxergar quem estava ao meu redor naquele instante. Foi quando eu senti uma mão segurar meu ombro. Aconteceu no corredor que dava pra cozinha. Foi o que me despertou daquele sono emocional. Eu me virei, mas não fiquei surpresa ao ver aquele rosto.
— Franz! – exclamei, depois de perceber que era ele.
— Rosa Maria.
— Precisa de alguma coisa? – perguntei.
— Sim. Eu preciso saber se algo está acontecendo.
— Algo? Que algo?
— Você está se envolvendo com aquele hóspede caribenho?
— Olha, Franz, eu sei que você é meu amigo, mas isso não te dá o direito de invadir minha privacidade desse jeito. Não somos tão íntimos assim. Eu não te devo essa resposta nem que você fosse meu irmão, muito menos nas reais circunstâncias, dentro das quais você é apenas meu colega de trabalho – respondi.
— Eu sei que eu posso estar sendo invasivo, mas acontece que eu me preocupo com você. Geralmente hóspedes estrangeiros, quando se aproximam das camareiras, é porque querem apenas se divertir. Tenha cuidado. Às vezes é melhor não se envolver e evitar mais decepção na sua vida. Você já sofreu tanto pelo David, pra que sofrer ainda mais?
— Franz, você não tem que se preocupar com minha vida particular. Agradeço sua atenção, mas eu posso me cuidar sozinha – falei com voz firme, mas Franz me encarava naquele instante com olhos lacrimosos, oprimidos.
Fiquei com pena, respirei fundo, me aproximei mais e disse:
— Tudo bem, eu vou ter cuidado. Vou refletir sobre seu conselho. Obrigada. – Beijei-lhe o rosto e segui meu caminho para a cozinha.
Eu me apiedei porque vi em seus olhos que ele era apaixonado por mim. O olhar da paixão, do encantamento, é um olhar que brilha e é quase sempre lacrimejante quando não é correspondido. O Franz era tão lindo e amoroso quanto os outros rapazes que eu havia conhecido. Talvez fosse até uma injustiça eu não o amar, mas meu sentimento por ele era apenas de amizade, coleguismo e nada além disso.
A conversa com Franz havia me deixado um tanto pensativa. Eu sabia que talvez estivesse embarcando em mais uma ilusão, a ilusão de que tudo seria fácil e lindo como nos filmes românticos e contos de fadas.
***
O relógio marcava 20:30 quando cheguei à festa para minha noite de trabalho. Já vestida com meu uniforme de garçonete, comecei a servir os convidados, todos jovens, animados, cheios de vida. Ainda em meus primeiros meses em Santa Ana, eu já havia feito trabalhos extras como garçonete em festas que ocorreram em outras mansões, mas nenhuma era tão grande e luxuosa como aquela: um jardim imenso e colorido, com chafariz, lago artificial, nos fundos uma piscina enorme. Para a festa foi montada uma pista de dança e palco pro DJ.
Eu me dirigia ao dono da festa para servi-lo quando me deparei com Nathan chegando à festa acompanhado por Barbara. Eles entraram de braços dados pelos jardins dos fundos. Fiquei muito surpresa; meu coração disparou de susto, espanto. Minha dúvida naquele momento era se Nathan tinha apenas a intenção de se divertir comigo. Ele e Barbara pareciam tão alegres naquele instante.
Fiquei cabisbaixa. Na verdade, eu queria chorar. Sempre que essas coisas aconteciam, uma enxurrada de dúvidas e lembranças ruins invadiam minha mente. Foi assim que eu me senti naquele momento, mesmo sem ainda ter certeza quais eram de fato os meus sentimentos pelo meu hóspede caribenho. O Franz reparou como eu fiquei desconcertada ao ver o Nathan e a Barbara juntos. Desviei meus olhos daquela cena e fui direito para a cozinha. O Franz me seguiu. Ele era um homem incrível. Uma pena eu não ser apaixonada por ele. A vida é tão estranha algumas vezes, custa acreditar que às vezes amamos a pessoa errada ou inadequada para nossa realidade.
Franz se aproximou de mim e sussurrou:
— Eu falei que ele só quer se aproveitar de você, Rosa Maria. Esquece esse hóspede, se afaste dele.
Meus olhos já estavam lacrimejando. Engoli seco. O Franz estava certo, pelo menos naquela hora. Respirei fundo, enchi minha bandeja com as taças de champanhe e segui meu caminho para servir os convidados.
Ao pisar meus pés nos jardins dos fundos, pude avistar Nathan, que me encarou assustado. Pareceu ter ficado surpreso ao me ver ali. Não suportei e voltei para a cozinha. Senti vergonha, vergonha da minha situação, das minhas esperanças, das minhas ilusões.
Nathan me seguiu, ao que andei mais apressadamente. Eu queria que ele não me encontrasse, mas não teve jeito; senti sua mão segurar meu braço esquerdo.
— Rosa Maria! – ele chamou meu nome de modo discreto, no canto da parede da cozinha.
Eu me virei em sua direção e, como se ele me fosse um estranho, perguntei-lhe:
— O que você quer?
— Não imaginei que essa fosse a festa em que você trabalharia hoje – ele me disse.
— Certamente que não. Se imaginasse que eu estaria aqui, você não apareceria nessa festa de braços dados com a Barbara. – Meu tom de voz era áspero.
— Não é nada disso, Rosa Maria. Acredite, a Barbara vive me perseguindo e eu e ela ainda somos amigos, só isso, bons amigos. Além do mais, o aniversariante é nosso amigo em comum. Eu a encontrei logo na entrada da mansão, não a convidei para vir comigo – ele tentou se explicar.
— Não se preocupe com isso, Nathan. Você não me deve nenhuma explicação. Até onde eu sei, eu e você não temos nenhum compromisso. Eu só fiquei um pouco surpresa de te ver com ela, afinal você havia me dito que queria distância dessa garota. Fique tranquilo, eu não tenho nada a ver com a sua vida. Vá aproveitar a festa com seus amigos. Eu preciso voltar ao trabalho agora. Com licença. – Me retirei dali, ainda nervosa.
Eu nem sequer olhei para trás. Eu precisava servir os convidados, era a minha noite de trabalho extra e nada mais poderia me abalar. As músicas eletrônicas agitadas tocavam, mas para mim aquele não era um momento de diversão; muito pelo contrário: quando notei a maneira como a Barbara se atirava pra cima do Nathan, uma onda de desesperança destruía meu castelo de areia de ilusão. Eu sentia que não poderia competir com ela, que tinha muito mais a oferecer a ele do que eu.
Franz continuou percebendo minha tensão durante a festa. Ele me olhava sério, preocupado e ao mesmo tempo indignado. Entrei de novo na cozinha. Dessa vez Franz se aproximou e quis saber como eu estava:
— Como está, Rosa Maria?
— Não se preocupe, Franz, estou bem. Estamos aqui pra trabalhar, não é mesmo? – respondi.
— Eu não quero me intrometer na sua vida, mas é óbvio que esse cara só quer se divertir com você. Ainda há pouco ele chegou à festa de braços dados com aquela mulher fútil que sempre andava com ele no hotel.
— Franz, agradeço a sua preocupação, mas eu não tenho nada a ver com a vida do Nathan. Por mim ele pode andar com quem ele quiser.
— E não te incomoda o fato dele brincar com seus sentimentos?
— Ele me disse que a Barbara e ele se encontraram por acaso na entrada da mansão. Mas eu e o Nathan não temos nenhum compromisso um com o outro. Além do mais, no fundo eu sei que, nas minhas atuais condições, um relacionamento com ele não teria futuro, somos de mundos tão diferentes. Aliás, qualquer pessoa aqui, até a mais pobre, está em um mundo diferente do meu. Veja só, estamos na mesma festa, mas ele é um convidado e eu sou a garçonete. É nessa hora que meu mundo desaba e a realidade vem à tona – desabafei.
— Sou seu amigo e colega e me preocupo com você. Rosa Maria, se precisar de mim, saiba que estarei sempre aqui pra te ajudar. Sei o quanto sua realidade é difícil, e não é justo que você seja enganada por ninguém.
— Tudo bem, eu agradeço a sua amizade e preocupação, Franz. Agora vamos voltar ao trabalho.
Segurando a bandeja pesada, eu me aproximei dos convidados para servir-lhes as bebidas. Em passos apressados e nervosos devido às emoções que invadiram a minha mente naquele momento, caminhei em direção àqueles jovens que dançavam felizes celebrando a sorte que tinham.
A Barbara não largava nem por um minuto o Nathan. Parecia querer mostrar a todos que, de alguma forma, ele lhe pertencia. Foi quando meus olhos mais uma vez se espantaram ao ver a realidade a qual eu tentava evitar. Naquele instante Nathan dançava com ela uma música eletrônica muito agitada. Barbara pegou-o pelo pescoço e deu-lhe um beijo diante de todos. Ele pareceu não resistir, não se mostrou constrangido. Seus amigos riram e até aplaudiram.
Minhas mãos ficaram trêmulas e quase deixei a bandeja cair. Era a dor de perder aquilo que nunca foi meu. Senti uma tontura repentina e, ao virar-me para não mais ver aquele momento ruim, esbarrei em uma convidada, derramando sobre o vestido dela a bebida das taças que eu carregava.
— O que você fez? Sujou todo o meu vestido! Você por acaso é cega? Garçonete inútil! – a convidada gritou, furiosa comigo.
— Senhorita, me desculpe, não foi minha intenção! – tentei me redimir, em vão.
— Suas desculpas não vão limpar meu vestido! Pelo que percebo, é uma dessas estrangeiras incompetentes!
Barbara observava tudo. Achou graça e pareceu sussurrar algo, certamente palavras contra mim. Nathan não se conteve e se aproximou para me defender das palavras ofensivas que a convidada proferia contra mim:
— Pare com os insultos! É só um vestido! A Rosa Maria é estrangeira sim, mas não é incompetente. Acidentes acontecem.
— Obrigada, Nathan, mas não precisa me defender, eu sei bem o meu lugar. – Corri para a cozinha. Meu coração estava acelerado e minha respiração ofegante.
Enquanto seguia para a cozinha, ouvi quando Nathan disse para a Barbara em tom de voz alterado:
— Barbara, cala a sua boca e me deixa em paz! Afaste-se de mim! Da minha vida cuido eu!
O momento foi um show de horror sentimental. Sujei o vestido de uma convidada. Tudo o que eu queria naquele momento era ir embora dali o quanto antes. Até o DJ havia parado a música para que todos pudessem ouvir melhor a confusão.
Eu estava sentada na cadeira. No canto da cozinha eu vertia minhas lágrimas tão insignificantes. Quando olhei para cima, pude ver o rosto do Nathan me contemplando com piedade.
— Rosa Maria, você está bem?
— Não, Nathan, eu não estou bem, mas não precisa me defender. Eu é que não deveria estar aqui, eu deveria estar no meu país lutando pelo meu povo e pela minha dignidade, mesmo que pra isso eu tivesse que comer carne de rato, baratas, seja lá o que fosse. As pessoas têm toda a razão: eu e você somos de mundos muito diferentes. Eu não deveria ter me impressionado ao ver você beijando a Barbara.
— Eu não quis beijá-la, foi ela que se pendurou no meu pescoço e me deu o beijo.
— Não precisa me dar nenhuma satisfação sobre sua vida. Eu e você não temos nenhum compromisso e jamais haveremos de ter. Volta pra sua festa, volta para as suas garotas. Eu sou só a garçonete, a camareira imigrante ilegal. Agora vou ter que pagar um vestido novo pra garota histérica, no mínimo a conta da lavanderia – eu disse.
— Não se preocupe com o vestido dela, eu pago o que for preciso. Escuta, eu levo você pra casa. Eu não quero saber da Barbara, nem de qualquer outra garota – Nathan disse, querendo me fazer carinho, mas eu desviava meu corpo de sua direção.
De repente a música voltou a tocar e a festa continuou do lado de fora. A única abalada mesmo era eu, que carregava em meus ombros a estigma de um futuro incerto. Começou a tocar “In My Place”, da banda Coldplay, enfim uma música mais romântica para que os casais presentes dançassem juntos, abraçados.
— Obrigada, Nathan, mas vou pra casa sozinha mesmo. Vou tirar esse uniforme e vou embora daqui – eu disse.
Somente depois de olhar para o lado, percebi que Franz havia se aproximado de mim. Ele havia ouvido o final da minha conversa com o Nathan. Meu colega de trabalho lançava para mim um olhar piedoso, como se quisesse me acolher dentro dele.
— Rosa Maria, eu lamento pelo que aconteceu. Se quiser, eu te levo em casa. Era só um vestido, a garota histérica exagerou no show. Falei com o dono da festa, você está dispensada. É melhor você ir pra casa e descansar – Franz me disse.
— Franz, você é um cavalheiro. Eu preciso mesmo ir pra casa, eu já estava me despedindo do Nathan. Até mais, Nathan – falei, me levantando da cadeira.
Segurei Franz pelo braço esquerdo e, ao me distanciar, percebi que os olhos de Nathan estavam lacrimejantes ao me verem partir assim, com outro rapaz, desconsolada, decepcionada por tê-lo visto beijar outra mulher.
— Rosa Maria, espere! – Nathan exclamou, indo até mim.
— O que você quer, Nathan? – perguntei, depois de virar-me na direção dele.
— Eu sinto muito pelo o que aconteceu. Já expulsei de vez a Barbara da minha vida! Ela é louca e está fazendo de tudo pra me afastar de você! Não virei mais a essas festas também – Nathan tentou se explicar.
— É sempre assim. Ela te persegue, consegue o que quer e você é a pobre vítima assediada pela milionária mimada. Quer saber de uma coisa? Eu não tenho nada a ver com isso – eu disse, seguindo em direção à saída. Preferi não perder tempo trocando de roupa. Minha bolsa estava firme em minha mão. Tudo o que eu queria era sair logo dali.
— Você não ouviu, Nathan? Ela não quer mais falar sobre isso. Eu mesmo a levarei pra casa – Franz disse, encarando Nathan com semblante sério.
— É isso mesmo. O Franz me leva pra casa – eu disse, já vencida pela desilusão. – Ele não é rico como você, mas tem um carro confortável. Vamos, Franz.
Franz e eu saímos dali. Segundos antes vi os olhos de Nathan umedecerem ainda mais.
***
Durante todo o trajeto para casa eu não disse nada. Franz também permaneceu em silêncio. Em um momento ou outro ele segurava minha mão esquerda, querendo me dar algum consolo, ou mais que isso: querendo mostrar seu carinho por mim. Aquela era a primeira vez que eu o enxergava como um amigo. Meus sentimentos por ele sempre foram mais distantes antes desse episódio.
Franz parou o carro em frente ao meu prédio:
— Rosa Maria, aqui estamos – ele disse.
— Obrigada por tudo, Franz. Você demonstrou ser um bom amigo. Agora eu vou subir, preciso muito descansar.
— Espera um pouco, eu quero te dizer uma coisa.
— Pode dizer. – Fiquei nervosa.
— Eu sei que você está apaixonada por aquele cara, mas acredite no que eu digo: mesmo que ele te ame, seria quase impossível ficarem juntos. A família dele jamais aceitaria você, que apenas sofreria a vida inteira com o preconceito, assim como você sofreu com o David. Eu me informei sobre a família do Nathan. Você não merece sofrer mais.
— Eu sei disso, e, aliás, que família me aceitaria nas condições em que eu vivo agora? Meu pai está muito doente e quase tudo que ganho uso pra pagar um caro tratamento médico – eu disse, colocando as mãos no estômago em seguida.
— Eu sinto muito pelo seu pai. O que houve? Está com as mãos no estômago. – Ele estava sério.
— Eu sofro com uma gastrite crônica, sem cura. Já faz anos que estou passando por isso. Fiquei assim por passar dias e horas sem comer quase nada, ou às vezes sem comer nada quando eu ainda estava em meu país. Agora estou aqui, trabalhando graças à caridade de quem dá trabalho para imigrantes ilegais como eu. Meu pai sempre teve medo de entrarmos com o pedido de asilo político, ele ser negado e, por isso, sermos deportados.
— Você deveria ter falado comigo sobre seus problemas. Eu teria feito tudo que pudesse para te ajudar, Rosa Maria. Não sou rico, mas posso te ajudar a pagar o advogado pra fazer o pedido do seu asilo político, ou mesmo te ajudar com o tratamento médico. Entendo o medo do seu pai, mas essa é uma forma legal de resolver as coisas. E depois, se houver um processo de deportação, vocês têm grandes chances de defesa e até mesmo de ficar aqui legalmente – Franz me disse.
— Eu sei disso, mas minha mãe tem muito medo de que esses processos deem errado e nós sejamos obrigados a retornar ao nosso país, onde as pessoas estão morrendo de fome, de sede, doentes. A vida lá está indigna – expliquei.
— Entendo. Eu acompanho as notícias nos jornais. Seu país enfrenta a maior crise política e humanitária de todos os tempos. É triste ver como seu povo está sendo maltratado, sacrificado.
— As coisas estão cada vez piores por lá. Sabe, nos velhos tempos meu pai foi um comerciante bem-sucedido, comprou uma casa, carro. Era o que tínhamos. Então veio um regime que prometeu dividir igualmente as coisas entre o povo, mas tudo que ele dividiu foi a miséria e a fome. Meu pai até participou de movimentos contra o governo, mas desistiu de lutar por algo que talvez ninguém possa mudar. Então, por diversos motivos, entre eles o fato de termos um amigo aqui, o David, meu pai achou que os Estados Unidos nos ofereceriam mais oportunidades.
— Eu lamento muito por tudo isso que me diz agora. Se eu puder te ajudar na Corte, eu ajudarei. Posso testemunhar a seu favor.
— Obrigada, Franz. – Naquele instante ele me abraçou forte pela primeira vez. Tive a sensação de que aquele rapaz queria me colocar pra dentro de si.
Quando o abraço terminou, notei que uma lágrima correu pelo meu rosto e Franz a enxugou.
— Eu te acompanho até a porta.
— Não precisa se incomodar mais. Obrigada por ter me trazido aqui. Agora eu preciso mesmo descansar. Qualquer dia desses eu te convido pra subir e tomar um chocolate quente comigo.
— Tudo bem. Eu vou cobrar depois esse chocolate quente, hein.
— Certo.
— Nos vemos amanhã, então.
— Sim, nos vemos amanhã no trabalho. Boa noite. – Beijei-lhe o rosto.
— Boa noite – ele respondeu.
Saí do carro, fechei a porta, segui meu caminho, olhei para trás e notei que Franz me acompanhava com o olhar. Depois de sentir seu carinho, enfim entendi que ele era muito apaixonado por mim.
Ainda naquela noite desabafei com a Alejandra pelo telefone. Ela pensou em ir até meu apartamento, mas eu disse que não precisava. Não queria que minha amiga perdesse seu descanso com os meus problemas. Coloquei minha cabeça sobre o travesseiro e derramei mais algumas lágrimas, até que o sono me venceu.
— Amiga, tem certeza que você quer ir até lá? Eu posso pedir pra outra camareira servi-lo hoje. – Alejandra tentou me preservar de ter que encarar o Nathan naquela manhã.
— Eu agradeço sua proteção, Alejandra, mas não precisa se preocupar. Tudo tem que estar normal como sempre foi. Eu vou fazer meu trabalho, até pra que fique claro que eu nunca supus que eu e ele tínhamos alguma coisa.
— Se é assim que você prefere, vá em frente e boa sorte, amiga.
— Vai ficar tudo bem – eu disse, me preparando para servir o café da manhã aos hóspedes.
Segui meu caminho em direção aos quartos dos hóspedes. O primeiro seria ele, Nathan. Em frente ao apartamento 402 eu respirei fundo. Era o momento de agir como se nada tivesse acontecido na noite anterior. Eu bati à porta, abri, pedi licença e entrei. O hóspede estava de costas. Fui até a mesa, servi o café e saí dali, quando Nathan se virou e disse, depois de perceber que era eu quem estava servindo:
— Você! Achei que depois do que aconteceu ontem, eu não te veria mais aqui.
— E por que eu deixaria de cumprir a minha obrigação de todo dia? Preciso desse trabalho, jamais permitiria que o incidente de ontem prejudicasse meus afazeres – respondi.
— Então é só isso? – ele me questionou.
— Isso o quê?
— Você está aqui só pra cumprir sua obrigação de camareira? – Nathan me interrogou, como se quisesse ouvir outra resposta.
— Sempre estive.
— Esta será minha última noite nesse hotel. Amanhã de manhã eu volto pro Caribe – ele me contou.
— Tenha uma boa viagem, Nathan. Espero que tudo fique bem pra você, espero que tudo ocorra bem nos seus estudos.
— E o nosso jantar de hoje à noite? – ele quis saber.
— Que jantar, Nathan?
— O que a gente combinou ainda ontem de manhã.
— Eu lamento que as coisas sejam assim, mas eu e você não podemos continuar saindo, nem jantando, não depois do que aconteceu.
— Rosa Maria, vamos apagar o que aconteceu ontem à noite e começar de novo. Eu já tirei de vez a Barbara da minha vida.
— E quem é que está falando da Barbara? Às vezes parece que você não tem consciência da realidade. Por acaso pensa que isso aqui é uma novela, onde no final tudo dá certo e os personagens que sofreram têm um final feliz?
— Eu tenho total consciência do que está acontecendo e entendo os seus motivos de não querer mais sair comigo. Mas eu não consigo me esquecer da noite em que saímos juntos pela primeira vez. Eu não esqueço o que senti quando nos esbarramos nesses corredores pela primeira vez – ele falou, e eu percebi sinceridade em suas palavras.
— Sentiu dor no dedo, que eu sei. – Sorri levemente.
— Não foi só a dor no meu dedo. Eu te achei muito linda, desde o primeiro instante. Vamos jantar juntos hoje. Pode ser aqui mesmo no hotel se você não confia que irei me comportar em outro lugar. Será uma despedida. Eu voltarei para Los Angeles só no próximo mês, mas não mais para cá. Vou morar em um apartamento com mais dois amigos estudantes.
— Será que você não entende? Ontem eu fui humilhada diante dos seus amigos.
— Não, eles não são meus amigos, são apenas conhecidos. Meus amigos de verdade são esses dois colegas caribenhos que estão vindo para cá. E, além do mais, o importante é o que eu quero, e não a opinião desses falsos amigos.
— Você me conheceu há apenas um mês e já quer fazer tudo por mim? – questionei.
— Não, eu não quero fazer tudo por você, eu quero apenas te conhecer melhor, eu quero sair com você, eu quero fazer o que todo homem faz quando se sente atraído por uma mulher interessante, linda, inteligente, batalhadora. O que é agora? Por acaso o fato de você ser uma imigrante ilegal impede um homem de se apaixonar por você, de gostar de você? A paixão não se importa se somos ou não documentados.
— Paixão?
— Rosa Maria, embora nos conheçamos há pouco tempo, estou muito interessado em você. Quero estar perto. Não é assim que as coisas são quando gostamos de alguém? – Nathan foi se aproximando de mim e acariciou meu rosto.
— Sim, é assim que as coisas são quando gostamos de alguém.
— Então janta comigo? – Ele sorriu, e mais uma vez acariciou meu rosto.
Pensei por uns instantes. Eu queria dizer não, mas meu coração dizia sim.
— Tudo bem. Aceito jantar hoje com você. Se eu não te ver mais depois que você voltar pro Caribe, ao menos teremos uma última boa lembrança – proferi a decisão tomada pelo meu coração.
— Não pretendo que essa seja a nossa última noite juntos. Vai depender só de você a decisão mais importante.
— Combinado então. Nos encontramos de noite, no restaurante do hotel. – Ele segurou em minha mão.
— Sim, vou contar as horas – ele afirmou.
— Agora lembrei: eu não trouxe nenhuma roupa boa pra usar no jantar! Estou de calça jeans e uma blusinha simples. Eu não queria que você passasse vergonha jantando com uma mulher desarrumada.
— Sem problemas. Estarei simples também, calça jeans e camisa. Além do mais, os hóspedes aqui do hotel costumam ficar mais à vontade no restaurante.
— Se é assim, tudo bem. Estarei lá depois do expediente. – Eu sorri, sentindo um frio na barriga, nervosa. – Agora tenho que voltar ao trabalho.
— Tudo bem, até mais tarde.
— Até.
Saí um pouco trêmula do apartamento. Fiquei ansiosa, começando a pensar como seria aquele jantar; como ele disse, um jantar de despedida.
Sentada à mesa, eu aguardava ansiosa o meu rapaz surgir pela porta do restaurante. Eu não parava de mexer meus pés e olhar o relógio. Era algo novo em minha vida complicada e turbulenta.
Os minutos se passaram e enfim eu vi o Nathan entrar sorrindo pela porta do restaurante depois de me ver ao longe. Seu sorriso era de alegria genuína ao me ver ali, esperando por ele. Ele se aproximou com uma rosa na mão e me ofereceu-a:
— Boa noite, minha Rosa. Aceita esta rosa?
— Quanta gentileza, Nathan. É linda, muito obrigada – eu agradeci e sorri.
— Que bom que gostou. – Ele sentou-se, depois de beijar a minha mão.
— Você está bem?
— Muito bem agora, em sua amorosa companhia. Você está linda nesse vestido. – Ele elogiou meu figurino da noite me olhando fixamente.
— A Alejandra me emprestou a roupa e a maquiagem. Ela foi buscar na casa dela, na hora do almoço.
— Ficou lindo em você.
— Obrigada. Vamos pedir o jantar?
— Sim. Peça o que você quiser. Hoje a noite é sua.
— Tudo bem. Eu já tinha feito o pedido para o garçom antes de você chegar – eu disse.
— Certo.
— É bom viver esse sonho – afirmei.
— Um sonho que eu quero tornar realidade. Pensei em você o dia todo. Acho que estou mesmo apaixonado – ele se declarou mais uma vez.
— Apaixonado? Nathan, isso é loucura. Eu e você nos conhecemos há poucos dias.
— Poucos dias são suficientes para uma paixão acontecer, especialmente por uma mulher interessante e bonita.
— Falando desse jeito, eu posso até me apaixonar também. Sabe, você tem sido um anjo pra mim. De certa forma, está me ajudando a seguir em frente.
— Eu quero ser seu anjo, não só agora, mas por mais tempo. – Ele segurou minha mão.
— Lá vem o garçom. Estou com fome. Ao contrário de você, eu trabalhei o dia inteiro.
— Também estou com fome – ele disse.
— Caramba! É o Franz! – exclamei surpresa, reparando quem era o garçom.
— Franz?
— Sim, é aquele rapaz que me levou pra casa ontem.
— Ah, sei, aquele que também é apaixonado por você. – Nathan o reconheceu.
— Achei que ele não estaria aqui nesta noite. Deve estar fazendo hora extra. Mas não há problemas, serei imparcial.
— Boa noite – disse o Franz, contraindo os músculos do rosto, demonstrando decepção por me ver ali na companhia do Nathan.
— Boa noite, Franz – eu o cumprimentei. Ele respondeu sinalizando positivamente com a cabeça. Nathan e eu sorrimos depois que o garçom nos serviu e se retirou.
Imaginei que o Franz estivesse furioso comigo e profundamente desiludido. Certamente ele pensou que, depois de eu ter sido humilhada na festa, eu nunca mais voltaria a falar com o Nathan. Mas foi tudo exatamente o contrário: eu me sentia cada vez mais ligada ao meu anjo caribenho.
***
Já estávamos nos servindo da sobremesa quando a nossa música “Why” começou a tocar. Sei lá, esse tipo de coisa parece mágica. Ele não resistiu e segurou-me pela mão, dizendo:
— Rosa Maria, a nossa música está tocando. Vamos dançar?
— Mas, Nathan! – Tentei me esquivar da dança, porém não consegui, me rendi ao momento.
Nathan acariciava meu rosto enquanto dançávamos, com o carinho de alguém que já estava apaixonado há tempos. Depois nossas faces se tocavam uma na outra, como se estivéssemos nos cheirando. Meu coração acelerou quando os lábios dele se aproximaram. Meus olhos se fecharam e assim eu pude sentir o amoroso beijo em minha vida. As luzes nos iluminavam. Mais uma vez eu descobria o amor verdadeiro.
Nós sorrimos, mas de longe eu pude perceber que a Barbara nos observava no canto da porta do restaurante. Ao notar que eu a vi, ela se retirou. Eu entendia que jamais poderia admitir que o rapaz de seus sonhos estivesse apaixonado por mim, uma simples camareira do hotel. Mas não foi só a Barbara que se entristeceu ao me ver nos braços do Nathan; meu colega Franz também presenciou a cena que aconteceu enquanto ele servia uma mesa próxima.
Nathan sorriu pra mim mais uma vez. Terminamos a dança e pedi pra ir embora. Eu estava cansada. Foi quando ele se ofereceu pra me levar para casa:
— Eu te levo em casa, Rosa Maria.
— Não precisa se incomodar, eu posso pegar um táxi.
— Táxi? De jeito nenhum. Depois desse momento, é óbvio eu te levo. Faço questão. O jantar será incluído na minha conta do hotel, então podemos sair daqui agora.
Sorrimos mais uma vez. Ele me segurou pela mão e fomos juntos para o lado de fora do hotel.
Aquela noite era de céu estrelado, iluminado, alegre. Mais uma vez me lembrei do Endry, foi inevitável. Era como se eu tivesse um pedacinho do meu primeiro amor perto de mim.
***
Nathan parou o carro em frente ao meu prédio. Eu quis me despedir, mas ele não deixou. Segurou em minha mão e pediu algo que para ele, naquele momento, era importante.
— Obrigada pelo jantar. Foi muito bom – agradeci.
— Sim, foi bom. – Ele sorriu.
— Eu tenho que subir.
— Te acompanho. Precisamos conversar.
— Tem que ser hoje? – perguntei-lhe.
— Tem que ser agora. – Ele segurou minha mão e sorriu.
— Tudo bem, vem comigo.
Saímos do carro. Nathan segurou em meu braço, entramos no elevador e fiquei em silêncio. Meu coração acelerou, como na primeira vez em que ele me acompanhou até o apartamento.
Quando chegamos à porta, olhei pra ele e disse:
— Chegamos. Agora vai me dizer que quer entrar pra conversar – adivinhei sua vontade.
— Sim, eu preciso.
— Eu sei, estou brincando.
Coloquei a chave na fechadura e abri a porta. Entramos.
— Sente-se. Fique à vontade. Vou guardar minha bolsa no quarto, tirar os sapatos e volto aqui pra termos a nossa conversa.
— Eu espero. – Ele me olhava com seus olhinhos angelicais e lacrimejantes.
Entrei no quarto, coloquei minha bolsa sobre o armário, tirei os sapatos, entrei no banheiro, tirei a maquiagem, lavei o rosto, me olhei no espelho e fiquei me perguntando o que Nathan queria tanto me dizer.
Antes de voltar para a sala, troquei de roupa; coloquei meu pijama preferido, mais confortável para uma conversa informal; em meus pés meu chinelo pantufa que havia ganhado de presente da Alejandra.
Voltei pra sala. Nathan pareceu surpreso ao me ver já preparada para dormir:
— Já pronta pra dormir?
— Sim. A noite foi boa, mas estou cansada. – Sentei-me ao lado dele no sofá. Segurei sua mão. – Então, o que quer tanto me dizer?
— Eu não posso ir embora amanhã sem saber sua resposta.
— Minha resposta? Resposta do quê?
— Da minha pergunta.
— Que pergunta, Nathan?
— A pergunta que eu vou fazer agora. – Ele começou a acariciar meu rosto.
— Pois então faça sua pergunta.
— Amanhã eu volto pra casa dos meus pais. – Ele começou a dizer.
— Eu sei. Espero que ocorra tudo bem pra você. Mas qual é a pergunta? – Demonstrei meu interesse em saber logo do que se tratava.
Houve uns segundos de silêncio, enquanto permanecemos imóveis, apenas nos olhando. Foi então que ele respirou fundo e fez a pergunta:
— Rosa Maria, você aceita ser minha namorada?
Arregalei os olhos. Fiquei mesmo surpresa. Não esperava por isso assim tão cedo.
— O quê? Ser sua namorada? – perguntei, como se não tivesse entendido a pergunta.
— Sim. Você parece surpresa.
— E estou.
— Já disse que estou apaixonado e gostaria de sair daqui sabendo sua resposta.
Fiquei nervosa. Eu já estava encantada por ele, mas, como ainda estávamos nos conhecendo, fiquei mesmo surpresa com o pedido de namoro. Eu já sabia que a paixão nos faz cometer loucuras ou atitudes apressadas, sem pensar, mas, pensando na minha solidão daquele momento, no quanto eu me sentia carente e precisava de alguém que me afagasse nos braços com carinho, respirei fundo e respondi:
— Você tem certeza disso?
— Eu tenho, você não?
— Nathan, você tem demonstrado gostar de mim de verdade. Sei que os sentimentos são verdadeiros. Você me tem feito muito bem. E eu espero te fazer bem também.
— Isso quer dizer que você aceita ser minha namorada?
— Sim, eu aceito – eu disse, sorrindo.
— Agora sim posso ir feliz pela sua resposta – ele comemorou.
— Sim, mas vamos devagar. Ainda estamos apenas nos conhecendo.
— Tudo bem, eu não tenho pressa de nada, minha Rosa.
— Vou sentir saudade de você, meu anjo – afirmei, fazendo carinho em seu rosto.
— Eu também. Mas em poucos dias estarei de volta e estaremos juntos novamente.
Sorrimos. Eu o abracei e tive um sentimento bom, aquela sensação de que Nathan surgiu em minha vida como um anjo para aliviar meu momento de tristeza. Nos braços dele eu me sentia protegida e amada. Pelo menos naqueles dias foi assim.
Depois do abraço ele levantou-se, eu o acompanhei até a porta e nos despedimos com mais um beijo. Estávamos emocionados.
Tranquei a porta e fui direto para o quarto, onde me atirei sobre a cama e comecei a sonhar acordada. Fiquei imaginando como seria minha vida se minhas condições civis fossem outras, se eu estivesse legalizada e fosse simples viver os amores com os quais tanto sonhei mas sempre perdi, perdi desde antes de sair do meu país.
A sensação de renovação que nos traz uma nova paixão pode ser melhor do que qualquer outro consolo, do que qualquer outra palavra. E era isso que eu sentia naquele momento: um carinho, um relacionamento aparentemente sem conflitos, sem a pressão de ter que decidir sobre me casar em circunstâncias hostis.
Naquela manhã eu cheguei ao trabalho com um sorriso de descanso nos lábios, sorriso esse percebido pelas colegas, e muito mais pela Alejandra. Logo lhe contei como havia sido minha noite anterior com o antigo hóspede caribenho. Ela se mostrou feliz por saber que minha vida sentimental seguia em frente, apesar de toda a dor. Ela me abraçou.
O Franz, claro, mal olhou no meu rosto, e eu entendia perfeitamente sua atitude. Pensei que seria melhor assim, pois eu não queria iludi-lo nem o enganar fingindo qualquer sentimento. Ele era um bom amigo, meu colega, e eu o respeitava.
Mas o sorriso estampado no meu rosto sumiu por alguns instantes depois que vi uma notícia na TV que ficava fixada na parede do nosso vestiário. A jornalista anunciava que aproximadamente mil e quinhentos imigrantes hondurenhos, em dois grupos, haviam saído no dia anterior, do norte de Honduras, com a intenção de chegar aos Estados Unidos e entrar no país ilegalmente, a fim de fugir da violência, pobreza e crise econômica.
Meu corpo ficou trêmulo. Pessoas em desespero saíam em busca de uma vida melhor e seguiam rumo à América, sem saber se conseguiriam passar por suas fronteiras. Eu pensava que poderia ser eu a estar ali, sem rumo certo, sem esperança de qualquer futuro.
Eu havia sido escalada para limpar os quartos dos hóspedes que haviam ido embora naquela manhã. Era a hora de entrar no quarto 402, que dessa vez estava vazio. Entrei e não havia mais ninguém lá para sorrir pra mim, não havia mais ninguém lá para me convidar pra jantar ou mesmo pra tomar um café da manhã. Percorri os cômodos como se estivesse visitando as memórias passadas.
Toquei na mesa, me recordando dos sorrisos do Nathan me convidando pra tomar café quando ele estava ali. Fui até o quarto e contemplei cada canto do guarda-roupa. Ele havia esquecido algo ali, uma camisa, nada inédito, quase sempre acontecia de os hóspedes deixarem algo para trás. Peguei aquela peça de roupa em minhas mãos, sentei-me na cama ainda com os lençóis bagunçados, e foi inevitável: cheirei a camisa, senti seu perfume.
Em seguida, notei que na mesinha de cabeceira havia um livro. Peguei-o, folheei-o, e no meio dele havia uma foto do Nathan. Ele se parecia tanto com o Endry que por alguns segundos eu me perdi, me perdi no mar dos sentimentos confusos e inquietantes que já estavam impregnados em minha alma. Acreditei por um instante que se tratasse da mesma pessoa. Então tudo se tornou nostálgico. Limpar aquele quarto era como apagar uma parte dos momentos que eu vivi ali.
***
Aquela havia sido minha noite de folga. Marieta, Alejandra e eu combinamos de jantar no restaurante Rosa Mexicano. O garçom já havia nos servido a entrada Tlayuda y Ensalada, basicamente frango assado, feijão preto, serranos e queijo de Oaxaca, servido com salada, quando o assunto da conversa girou em torno do meu novo namoro.
— Rosa Maria, me conte tudo sobre seu novo namorado, quero saber como surgiu essa nova paixão assim tão de repente. Faz pouco tempo que você e o David terminaram de vez – Marieta disse, demonstrando sincero interesse. Ela já está com a barriga enorme por conta de sua gravidez.
— Como assim de repente? Não foi nada de repente. Muitas coisas aconteceram no meio do caminho. Alejandra, não contou pra Marieta como as coisas aconteceram? – perguntei, meio que reprovando o modo como a Marieta havia falado sobre meu novo relacionamento.
— Ah, contei sim, desde o início. Só se ela não estiver lembrada... – Alejandra se defendeu.
— Pois não parece. Do que jeito que você fala, Marieta, parece até que eu sou uma pessoa que troca de namorado o tempo todo. Você falou de um jeito como se eu é que tivesse desistido do David – eu disse.
— Minha querida, você interpretou errado. Eu apenas fiquei surpresa com a notícia porque eu acho uma pena que você e o David tenham rompido o relacionamento. O amor que existia entre vocês era claro como a luz do sol – Marieta tentou se explicar.
— Marieta, será que você não entende? Foi o David que terminou comigo, foi ele que preferiu terminar o namoro. Ele apareceu lá no hotel, no meio do meu expediente, me pressionando. O David pediu pra eu escolher, ou o casamento ou nada, então eu escolhi nada. Minhas amigas, me entendam, eu não estou preparada para me casar nessas circunstâncias de guerra, brigas e hostilidades. Os filhos dele me repudiaram de todas as maneiras, e eu não suportaria ser odiada e rejeitada pelo resto da minha vida pela família do homem que eu amava. – Tentei lembrá-las das circunstâncias.
— Nós entendemos você, Rosa Maria. Também somos imigrantes e enfrentamos preconceitos, tanto ou até mais do que você, quando chegamos aqui nesse país. – Alejandra se mostrou compreensiva.
— Sim, minha amiga. Nós entendemos sua situação. Apenas achamos uma pena, quase um pecado, você e o David estarem separados. Eu o conheço há muitos anos e nunca o vi amar uma mulher assim depois que a esposa dele faleceu – Marieta me disse.
— Pra vocês as coisas deram mais certo. Você, Alejandra, foi aceita pela família do seu namorado americano, e você, Marieta, tem o Juan, que é um bom homem e do mesmo país que você. E eu? Eu não consegui ficar com o rapaz que eu amava nem mesmo lá no país de onde eu venho. Eu não consegui ficar com o homem que eu amei aqui nessa terra estranha e hostil. E agora? Eu não posso viver outra paixão? Eu não posso ter o carinho e o afeto de outra pessoa que me queira como companhia em meio a esse caos e medo que é o meu destino? Eu já sei bem o que é. Na cabeça de vocês, o amor tem que vencer todas as barreiras, não é mesmo? Eu vou dizer uma coisa: nem sempre o amor vai vencer todas as barreiras, mas isso não significa que ele não foi verdadeiro, só quer dizer que foi realista – desabafei, tentando fazer com que elas me entendessem.
— Rosa Maria, se acalme. Não nos interprete mal, amiga. Ficamos felizes que você tenha encontrado uma nova paixão, não é mesmo, Marieta? – Alejandra disse.
— Sim, claro. Eu entendo porque você não quis se casar. Fico feliz que você tenha encontrado um novo amor. – Marieta concordou meio sem graça.
— Foi o David que quis assim. Mas agora estou namorando o Nathan, e até agora ele foi muito bom pra mim. E ele diz que sou boa pra ele também, e não há nenhum tipo de pressão ou intenção de casamento agora entre nós dois. É uma troca de carinho e companheirismo. Entendem?
— E nem poderia haver pretensão de casamento. O namoro de vocês está apenas começando, precisam aproveitar ao máximo essa fase – Alejandra comentou.
— Verdade. Estamos apenas no início, ainda nem nos vimos depois que ele saiu do hotel e voltou pro Caribe, mas já conversamos bastante por mensagem no celular.
— Eu desejo que ocorra tudo bem pra você e pro Nathan – Marieta me disse.
— Obrigada, amiga. Vamos apostar nas paixões possíveis e não nas complicadas.
Nós rimos.
Nunca quis que minhas amigas me olhassem com pena, mesmo que minha situação não fosse das melhores. Elas eram amigas do David também, e eu entendia que torciam para que ele e eu ficássemos juntos, mas isso era uma ilusão naquele momento. Ao que tudo indicava, a situação dos imigrantes ilegais só piorava naquele país, e na América Latina os conflitos se tornavam mais e mais tensos, preocupantes. Uma guerra inevitável parecia estar a caminho, e os aliados da minha nação possuíam poderosas armas nucleares capazes de destruir os países inimigos em segundos.
***
Aquele havia sido mais um dia cansativo de trabalho no hotel, mas dessa vez Alejandra não me deu carona, pois tinha um encontro marcado com seu namorado Dylan. Voltei de táxi. Mas antes que eu terminasse de tirar meu celular da bolsa pra chamar o carro, me deparei com a Barbara. Ela estava à espreita, me esperando.
— Barbara – eu disse, com certo tom de indiferença.
— Rosa Maria. – Ela sorriu de um jeito irônico.
— Passeando? – perguntei, como se eu realmente estivesse interessada em saber.
— Na verdade, eu estava aqui te esperando mesmo, Rosa Maria. Preciso ter uma conversa séria com você, garota.
— Conversa séria comigo? Pelo que eu me lembre, Barbara, não tenho nenhum assunto pra tratar com você.
— Você pode até não ter, mas eu tenho. Não se faça de inocente, porque eu já levantei sua ficha. Eu vi você e o Nathan juntos na última noite dele aqui no hotel.
— Olha, eu não sei o que exatamente você viu, mas de uma coisa eu tenho certeza: eu não te devo satisfações da minha vida. Com licença, eu estou cansada, trabalhei o dia inteiro, preciso ir pra minha casa – eu disse, já nervosa.
— Espera.
— O que você quer? – perguntei.
— Você e o Nathan estão juntos?
— Essa sua conversa está me cansando. Pergunta pra ele. Quem sabe você tem a resposta.
— Eu sei que você é uma mulher trabalhadora, uma imigrante (ao que tudo indica, ilegal). E olha, não tenho nada contra as pessoas que chegam aqui em busca de um futuro melhor, de uma vida mais digna, mas se eu fosse você, tomaria cuidado com os homens, principalmente com o Nathan. – Barbara fingia querer me alertar.
— Onde você quer chegar com essa conversa, hein?
— Engraçado, eu sempre fiquei com o Nathan, ou melhor, ele sempre ficou comigo quando passava férias aqui em Los Angeles. Somos amigos há muitos anos, mas digamos que, por muitas vezes, fui pra ele uma espécie de namorada não assumida. E por isso seria muito difícil de acreditar que do dia pra noite o Nathan decidiu ser um homem sério e assumir compromisso amoroso com uma mulher que ele conheceu há pouco mais de um mês. Você não desconfia nem por um momento que ele queira apenas uma aventura com a camareira do hotel? – ela me perguntou.
— Pode destilar o seu veneno o quanto quiser. Eu sei muito bem até onde posso ir com uma aventura amorosa. E, aliás, quem te disse que eu quero mais que uma aventura amorosa nesse momento? Por acaso acha que eu estou atrás de um americano pra conseguir o Green Card? Não, muito obrigada, essa chance eu já tive com outra pessoa. E, pra sua informação, eu confio no Nathan. Não é uma confiança cega nem obscurecida pela ilusão, até porque ele se mostrou um rapaz muito amável e compreensivo.
— Pelo visto você caiu mesmo na conversa de bom moço do Nathan. Escuta o que eu estou te falando, Rosa Maria: ele vai fazer com você o mesmo que ele fez comigo!
— Tudo bem, Barbara. Eu já ouvi seus argumentos contra o Nathan. Mas agora estou mesmo muito cansada. Ali vem um táxi, e é naquele mesmo em que vou entrar. Passe bem. – Eu me retirei dali o mais rápido que pude.
Depois de entrar no táxi, senti um alívio por já estar longe do alcance daquela garota. Não vou mentir nem negar que suas palavras martelaram um bom tempo em minha mente. Havia sim, ainda que remota, a chance de Nathan apenas estar interessado em se divertir comigo e mais nada. Entretanto, de modo algum eu queria algo mais sério do que a alegria de viver uma paixão, de receber um carinho e de dar carinho. Eu me sentia muito sozinha em meio a todo aquele turbilhão de incertezas, uma solidão que já fazia parte de mim.
Fazia tempo que eu não via minha mãe. Na verdade, passamos a nos falar com menos frequência depois que David e eu terminamos nosso relacionamento. Bom, havia chegado a hora de contar a ela que eu já tinha uma nova paixão. Talvez minha pobre mãe se animasse por saber que meu novo namorado também era americano.
Naquela noite a campainha do meu apartamento tocou. Fiquei surpresa, pois eu não estava esperando por nenhuma visita. Abri a porta e a senhora Doralis estava ali, diante de mim, com uma maleta na mão.
— Mãe, que surpresa! – eu disse, com um sorriso.
— Não vai me convidar pra entrar, minha filha? – Ela sorriu também.
— Claro. Entra, mãe. Eu estava planejando viajar pra lá nesse fim de semana. Vou tirar dois dias de folga – expliquei a ela.
— Sim, claro. Você tem que ir a Santa Ana logo, seu pai está com saudades de você.
— E eu também estou morrendo de saudade dele. Com certeza estarei lá nesse fim de semana. – Eu a abracei.
— E como tem sido sua vida aqui em Los Angeles? – Minha mãe se mostrou curiosa. Ela queria saber na verdade como andava o meu coração; seu olhar de dúvida não a deixava esconder.
— Muito trabalho. Estou dando tudo de mim pra juntar dinheiro para o nosso bem, principalmente para o tratamento do papai. Não quero que nos falte nada – eu disse.
— Apenas trabalho?
— Como assim, mãe, apenas trabalho?
— Eu quero dizer, você está ficando, namorando alguém? – Ela foi diretamente ao assunto.
— Mas que pergunta! A Marieta e a Alejandra com certeza já espalharam a notícia.
— Então você tem mesmo alguém, e eu, sua mãe, fui a última a saber.
— Eu não falei nada ainda porque é um namoro que mal começou. Ele nem está em Los Angeles. Além disso, não seria justo que eu passasse o resto dos meus dias chorando em um canto por causa do David.
— Minha filha, aquele homem te ama tanto.
— Mas, mãe, foi ele quem quis romper comigo. Se fosse só pela minha vontade, eu continuaria o namoro, mas o David só quer saber de casamento. Ele me colocou contra a parede e exigiu que eu tomasse uma decisão: ou o casamento ou nada.
— E ele tem razão. Filha, o David precisa de uma esposa.
— Acontece que eu ainda não estou preparada pra me casar nessas circunstâncias. Eu não quero me casar com um homem cujos filhos me repudiam, me desprezam. Você tinha que ler as mensagens horríveis e as ameaças que os filhos dele dirigiram a mim. Quer um suco, mãe? Por sorte tenho uma jarra de maracujá.
— Aceito sim o suco. – Ela já estava sentada no sofá.
— É bom tomar suco de maracujá, assim a senhora se acalma – eu disse. Depois fui até à geladeira, peguei a jarra, coloquei o suco no copo e servi para minha mãe.
— Foi a Marieta que me falou sobre seu novo namorado. Ela deixou escapar.
— Então é isso, mãe. Eu estou namorando um novo rapaz.
— E quem é ele?
— É Nathan. Ele é americano, mas mora com os pais no Caribe. O pai dele é médico em um hospital importante de lá, mas já atuou como médico aqui na Califórnia por alguns anos.
— Interessante. E como foi que essa nova paixão aconteceu?
— Bom, Nathan e eu nos conhecemos no hotel onde eu trabalho. Ele ficou hospedado lá por uns dias, enquanto resolvia suas coisas na universidade. Em breve ele vai voltar a morar aqui em Los Angeles, pra estudar. Alugou um apartamento, onde vai morar com mais dois amigos estudantes.
— Se ele ainda é um estudante, quer dizer que ele ainda depende dos pais financeiramente. As faculdades aqui são caras. Ou ele ganhou bolsa de estudos?
— Eu ainda não sei desses detalhes. Mas se ele estuda com bolsa ou é o pai que está bancando, tudo não faz a menor diferença pra mim.
— Minha filha, que escolha é essa que você fez? Se ele ainda depende dos pais, é porque não tem condições de se casar com você, e também quer dizer que os pais dele podem não te aceitar e impedir esse relacionamento.
— Espera um pouco, mãe. Eu acho que você está confundindo as coisas. Eu não quero me casar com o Nathan. Pelo amor de Deus, estamos apenas namorando! Aliás, o namoro ainda mal começou, ele ainda nem voltou pra Los Angeles.
— Rosa Maria, não se começa um relacionamento sem pensar no futuro.
— Lá vem a senhora de novo com essa história de que eu tenho que me casar. Mas foi justamente isso que eu fiz em relação ao David, eu pensei no futuro, no futuro infernal que eu viveria se eu me casasse com ele, porque os filhos dele não iriam me deixar em paz. Isso sem contar que, com certeza, ele seria um homem infeliz por ser obrigado a se afastar do convívio com os filhos. Será que a senhora não é capaz de entender isso? – eu disse, nervosa.
— Minha filha, me escuta, eu sei que você está encantada por esse novo rapaz, que parece ser mesmo uma boa pessoa. Mas tome cuidado, lute pela sua felicidade. Ao mesmo tempo, tente não mergulhar tão fundo nessa paixão. Não quero que você seja humilhada mais uma vez.
— Fica tranquila, mãe, eu sei bem o que estou fazendo. Eu não vou sair por aí de mãos dadas com o Nathan. Nem quero que os amigos dele saibam, até porque a minha situação é delicada, e não é conveniente que seja exposta. Será um namoro discreto. Afinal, todos nós precisamos de carinho para seguir em frente, dar afeto e receber afeto.
— Tudo bem, minha filha. Eu espero que fique tudo bem pra vocês – minha mãe desejou, e senti sinceridade em suas palavras.
Eu já estava de pijama, deitada na cama, ouvindo uma música romântica, quando a campainha tocou. Sinceramente, naquele instante eu não imaginava quem poderia ser. Minha mãe não estava mais na cidade, a Alejandra e a Marieta há pouco haviam me enviado mensagem de boa noite; elas estavam em Santa Ana organizando as coisas para mais um chá de bebê.
Levantei-me da cama com o coração palpitando de curiosidade. Quando abri a porta tive uma surpresa: me deparei com a face angelical daquele que era capaz de acalmar as minhas aflições. Era o Nathan! Enfim de volta pra mim! Fui mesmo surpreendida, afinal ele não havia me avisado que chegaria naquela noite.
Eu sorri, exclamei seu nome, pulei em seu pescoço e o abracei. Mais uma vez nos beijamos. Ele quase me segurou em seu colo. Um minuto depois voltei ao meu estado normal. Respirei fundo, ele entrou e eu fechei a porta.
— Que surpresa! Você voltou e nem me disse nada. Chegou quando? – perguntei.
— Eu cheguei hoje à tarde, mas tive que passar na universidade pra levar alguns papéis da matrícula que ficaram faltando. Eu quis fazer mesmo uma surpresa pra você, Rosa Maria.
— E conseguiu me surpreender. – Eu não podia desviar meus olhos de sua face.
— Bom, já estou morando no apartamento com os meus amigos. Depois te passo o endereço por mensagem.
— Que ótimo. Fico feliz que já está tudo certo pra você iniciar seus estudos.
— Também estou feliz e animado com essa nova fase da minha vida. Enfim vou estudar medicina como o meu pai. Ele também se graduou na Universidade de Los Angeles.
— Isso é incrível. Meu sonho maior ainda é terminar meu curso de engenharia elétrica – eu disse, cabisbaixa.
— Meu amor, não faz essa carinha triste não. Tudo vai se resolver, vamos lutar pra isso. Mas então, quero te convidar pra passearmos na praia amanhã, sei que é seu dia de folga. – Seus olhinhos brilhavam de empolgação.
— Pois é, marquei de almoçar amanhã em Santa Ana, na casa dos meus pais. Mas vou ter dois dias de folga. Amanhã podemos almoçar lá, e depois de amanhã podemos passar o dia juntos, na praia, só nós dois. Que tal? – fiz a proposta.
— Está certo. Vou adorar conhecer sua família – ele disse, mais uma vez com entusiasmo.
— Quero que você conheça também os meus amigos, a Marieta e o Juan. O Juan é irmão da Alejandra, a cozinheira do hotel. Foram eles que conseguiram o meu trabalho de camareira.
— Sério? Então é a eles que eu devo agradecer por ter te conhecido. Afinal, se não fosse por seu trabalho no hotel, eu e você não teríamos nos encontrado.
— Isso é verdade. Eles são meus melhores amigos. Estou com saudades de ir lá. As festas na casa da Marieta são muito animadas.
— Sim, o povo hispânico é muito alegre e faz festas muito animadas, além de terem, é claro, uma culinária que eu particularmente aprecio demais.
— Se é assim, você vai se sentir em casa – eu disse, em seguida estalando um beijo em seu rosto.
— Não tenho dúvidas, minha Rosa Maria. – Ele me beijou de novo, um beijinho estalado no canto da boca.
Era de manhã, por volta das onze horas. Nathan passou de carro para me buscar, e fomos juntos para Santa Ana almoçar na casa dos meus pais. Era o nosso primeiro passeio juntos depois que ele havia voltado para Los Angeles.
Fiquei nervosa pelo o que meu pai poderia estar pensando de mim. Ele e David eram muito amigos, mas minha saudade era muito grande. Como foi bom abraçar meu querido pai depois de tantos dias sem vê-lo! O que eu ganhava no hotel até aquele momento estava sendo suficiente para pagar seus remédios e consultas médicas. As faxinas que minha mãe fazia pagavam o aluguel e a comida, e assim seguíamos em frente.
— Mãe, pai, esse é o Nathan, meu namorado. Nathan, essa é minha mãe Doralis e este é meu pai Santiago – eu os apresentei.
— Prazer em conhecê-los, senhora Doralis e senhor Santiago – Nathan disse.
— O prazer é nosso, Nathan – minha mãe o cumprimentou.
— Seja bem-vindo, Nathan – meu pai disse, enquanto o cumprimentava com um aperto de mão.
O olhar da minha mãe era de desconfiança e do meu pai era de indiferença. Eu senti que eles não acreditavam que meu relacionamento pudesse ser melhor do que foi com o David.
Depois do almoço, passamos na casa da Marieta. Ela e o Juan foram uns amores. A Alejandra também estava lá, e acabou nos contando uma novidade: estava organizando sua festa de noivado, que aconteceria dentro dos próximos meses. Com os amigos a conversa foi mais descontraída, o Nathan se sentiu à vontade.
***
Já era quase fim de tarde quando seguimos de volta para Los Angeles. Nathan, apesar de tranquilo, demonstrou preocupação com a reação dos meus pais ao comentar enquanto dirigia:
— Seus amigos foram gentis comigo, gostei deles. O Juan é um cara legal e a Marieta é um amor de pessoa.
— Sim, eles são os melhores amigos que eu já tive – completei.
— Mas notei um ar de indiferença e dúvida no semblante dos seus pais. Sei lá, pode ser coisa da minha cabeça, mas sua mãe, principalmente, pareceu desconfiada. Fez um monte de perguntas.
— Nathan, eu também percebi, mas acontece que minha mãe desconfia de tudo, principalmente por causa do preconceito que muitas vezes sofremos. Além do mais, tanto meus pais quanto o Juan, a Marieta e a Alejandra são amigos do David. Aliás, o Juan é o melhor amigo do David. Todos eles queriam e querem muito que eu e o David fiquemos juntos. É natural que eles achem estranho eu aparecer lá com um novo namorado. Se você, de algum modo, se sente constrangido, não precisa mais vir comigo pra Santa Ana.
— Não, eu faço questão de vir. A torcida pro David é grande, mas eu não me importo que eles sejam amigos dele, afinal nada impede que eles sejam meus amigos também. Não é mesmo?
— Claro, claro que sim. Nada impede que vocês sejam amigos – concordei.
Assim que chegamos à praia, saímos do carro e fomos direto para a beira do mar. Sentamo-nos na areia e admiramos as águas enquanto conversávamos.
— Sabe, Nathan, perto de você sinto como se estivesse tudo bem. Sinto como se o mundo estivesse em paz. Não sei explicar. Você chegou em um momento tão complicado da minha vida, é como um anjo pra mim. – Segurei em sua mão.
— A vida tem seus propósitos, Rosa Maria. Podia até não parecer, mas eu estava em busca de uma mulher que realmente me fizesse sentir vontade de estar na companhia dela, não apenas pela beleza, nem pela paixão. E você despertou esse sentimento em mim. No caminho até aqui, você me contou sobre seus gostos, sobre seus planos, sobre os livros e as músicas de que gosta. Temos gostos em comum.
— Sinceramente, espero poder te proporcionar momentos bons como esses que já vivemos juntos, Nathan. Eu sei que minha situação é complicada, mas eu ainda sou um ser humano que gosta de se divertir, sair, amar, viver.
— Eu entendo seus medos, entendo o receio dos seus pais também. E sim, você tem todo o direito de ter alegria e amor, mesmo nessa situação complicada.
— Temos medo de ter que voltar pro lugar horrível que o nosso pobre país se tornou.
— Eu vejo as notícias na TV e no rádio. As coisas não vão bem na América do Sul. Quando fiquei sabendo da caravana de imigrantes que se aproxima daqui, imediatamente me lembrei de você. E vi outra notícia que me deixou ainda mais surpreso: na semana passada, mil imigrantes ilegais tentaram atravessar ao mesmo tempo a fronteira entre México e Califórnia.
— Isso é assustador! Mil pessoas ao mesmo tempo. Mas estamos apenas lutando pra sobreviver.
— Eu sei disso. Mas agora vamos parar com essa conversa triste e fazer alguma coisa que nos deixe alegres – Nathan propôs, sorrindo.
— O quê, por exemplo? – perguntei, como se eu não soubesse.
— Que tal isso? – Nathan sorriu e me beijou. – Agora a gente vai cair nessa água. – Ele me segurou pelas mãos e me conduziu até o mar.
Brincamos na água, mergulhamos, sorrimos, sentindo o calor dos raios de sol que tocavam a terra e a nossa pele naquele fim de tarde.
Aqueles foram meus dias de sol ao lado do Nathan. Ele, eu e seus amigos da faculdade passamos o fim de semana em Laguna Beach, em uma casa de praia emprestada pelo tio de seu amigo Jimmy. Éramos jovens animados, cheios de vida e empolgados pelo contato com toda aquela natureza. A cidade era linda, bem como as casas de frente para o mar que estavam adornadas com jardins de flores coloridas e árvores de várias espécies. Era tão bom acordar ouvindo o barulhinho daquele mar.
— É muito estar aqui com você, sentir a natureza com você! Gostei de conhecer os seus amigos, eles também foram legais comigo – eu afirmei, sentada na areia, à beira d’água, ao lado de Nathan.
— E essa é a primeira vez que estou aqui ao lado da minha namorada – Nathan afirmou, com sorriso radiante.
— O dia não poderia estar mais lindo e ensolarado, irradiando alegria, como esta que estou sentindo em meu coração! Estar assim, diante de tanta natureza e ao mesmo tempo ao lado do rapaz que é um anjo em minha vida, acalma o meu coração. – Respirei fundo, sentindo nos meus pulmões aquele ar fresquinho. Senti na minha pele o calorzinho bom daquele sol e a brisa leve em meu rosto.
Nathan sorriu.
***
De mãos dadas, entramos juntos no mar. Caminhamos dentro da água, nos abraçamos, nos beijamos. Era paixão sem fim.
Depois nos sentamos novamente à beira-mar. Eu gostaria tanto que aqueles dias jamais terminassem. Conversamos sob a luz do sol, que ainda nos aquecia:
— Eu sei que ainda é cedo, mas eu penso que já te amo de alguma maneira, Rosa Maria. É ternura, é carinho. Essa paixão está no teu beijo, no teu olhar. Seu amor lateja dentro de mim. Dessa vez estou gostando de alguém de verdade, eu nunca me senti assim antes. Você entende?
— Confesso que não esperava ouvir isso agora, mas o que eu posso te dizer é que eu também estou muito apaixonada por você. Sinto afeto, ternura – confessei, sentindo certo receio de dizer a palavra amor. Sim, eu ainda tinha medo de dizer para alguém “eu te amo” e depois tudo acabar. Dói na alma e no coração jurar amor a alguém que um dia irá embora para sempre de nossas vidas.
— Você me faz sonhar os melhores sonhos e ter os melhores desejos. Eu não imaginava que precisava de tão pouco pra ser feliz! – Nathan se declarou.
— Suas palavras são lindas e me comovem. Também estou apaixonada e não gostaria de ter que ficar longe. Seria tão bom se apenas o amor bastasse para duas pessoas ficarem juntas – eu disse.
— Se apenas o amor bastasse, você e o David estariam juntos até hoje – Nathan comentou, ficando cabisbaixo em seguida.
— Eu não estou falando apenas por mim e pelo David. Mas o fato é que, nesses últimos meses em que estamos namorando, ao mesmo tempo em que sinto alegria, também sinto angústia, isso por não ter certeza se poderei permanecer aqui nesse país. A incerteza do futuro é um tipo de prisão.
— Eu entendo o seu misto de sentimentos, mas, meu amor, eu vou te ajudar. Não se preocupe. Eu sei que sua vida é difícil, mas você e sua família já estão há um bom tempo aqui, e trabalham dignamente. São praticamente refugiados. Não poderão deportá-los sem um longo processo. Acredito que as chances de vocês se legalizarem são enormes. Vamos tentar o pedido de asilo.
— O mais duro é convencer meu pai a entrar com esse pedido. Sabe, há um tempo atrás, no meu país, meu pai apanhou da polícia em um protesto contra o governo. A América do Sul está de cabeça pra baixo. Todos os países lá estão com a economia detonada, mas meu país é o pior de todos.
— Eu sei. Não há comida suficiente nos mercados, os preços são caros e agora as notícias que chegam dizem que tudo está piorando – ele comentou.
— Nathan, obrigada por tudo, mas eu não quero que você pense que eu estou com você só por causa do seu dinheiro ou pra aliviar o meu fardo, que é tão pesado, assim como o fardo de milhares de pessoas que se encontram em situação pior do que a minha.
— Você não tem que pensar isso. Sei que não está comigo pelo dinheiro, nem por qualquer outro interesse. Eu sei que seu afeto por mim é genuíno. – Ele sorriu e nos abraçamos.
***
Aquela havia sido a primeira vez que eu acordava contemplando o nascer do sol em Laguna Beach. Sua luz brilhou intensamente naquela manhã. Nathan e eu caminhamos mais uma vez pela orla, entramos na água do mar, mergulhamos e nos jogamos contra as ondas. Paramos por um instante e nos abraçamos dentro das águas refrescantes. De repente, fiquei olhando para a face angelical que tanto havia me conquistado e disse:
— Seu amor é tudo que eu quero.
— E eu te amo tanto que, se você for deportada, eu peço pra ir junto – ele afirmou, sorrindo.
Durante a noite passeamos pela cidade. Depois de chegarmos em frente à casa de praia, eu saí do carro e corri até a areia. Estava feliz por viver aqueles momentos. Enfim eu me sentia amada de novo.
— Quero ver se você me alcança – desafiei Nathan, correndo em direção ao mar.
Nathan sorriu e correu atrás de mim, pegou-me pela cintura e nós dois caímos na água. Rolamos pela areia molhada e, deitados, nos beijamos.
— Eu gostaria que esse dia não terminasse nunca – eu disse, deitada ao lado dele na areia.
— Eu também. Gostaria que esse momento durasse pra sempre – ele concordou, com a ânsia de que nosso amor fosse eterno.
É complicado aceitar que os momentos bons não duram para sempre e que, depois que os anos passam, permanecem enterrados no cemitério das lembranças, restando apenas a saudade.
***
Ainda naquele dia voltaríamos para Los Angeles. Eu estava arrumando as minhas malas. A TV estava ligada, e as notícias não eram boas, a ponto de eu interromper o que estava fazendo para chorar. Foi quando Nathan abriu a porta do quarto e se deparou comigo chorando sentada, à beira da cama.
— Rosa Maria, estamos te esperando para almoçar. Vamos ao restaurante aqui perto da praia – ele disse, ainda sem notar que eu estava chorando.
— Nathan. – Eu me virei em sua direção. Foi quando ele percebeu minhas lágrimas.
— Meu amor, o que houve? Aconteceu alguma coisa? Você está chorando. – Preocupado, ele se aproximou de mim e se agachou à beira da cama.
— Aconteceu sim. A situação no meu país está piorando. O presidente fechou as fronteiras pra impedir a entrada de ajuda humanitária de outros países. Meu povo está morrendo aos poucos de fome, de tristeza. Eu tenho parentes lá, eu sinto a falta deles, dos meus primos. Isso não é justo, é desumano – eu disse.
— Eu sinto muito, Rosa Maria.
— O exército bolivariano ateou fogo nos caminhões de suprimentos. O que será de nós?
— É lamentável, mas você está aqui, a salvo. Estou do seu lado, vou te proteger. Não chore – ele me consolou.
— A salvo, mas até quando? Até eu e minha família sermos descobertos pela imigração e nos deportarem – eu afirmei, aflita.
— Não diga isso. Tudo vai se resolver. Conversei com bons advogados sobre sua situação e há vários caminhos a percorrer antes que o pior aconteça. Não se preocupe.
— Eu não tenho tanta certeza disso.
— Eu pretendia falar com você sobre isso depois do nosso passeio. Mas já que você tocou no assunto, vou lhe contar a opinião do advogado.
— Qual é a opinião dele?
— Ele acredita que você e sua família devem entrar logo com o pedido de asilo político. Isso evitaria a deportação ou detenção antes do processo. Você disse que já passa de um ano que entraram aqui no país.
— Sim, já vai fazer dois anos – eu disse.
— O ideal é entrar com o pedido de asilo dentro de um ano da chegada.
— Eu sei. O problema é que meu pai não quer, porque ele tem medo de que o asilo nos seja negado. As notícias não são boas, as autoridades vêm negando quase noventa por cento dos pedidos de asilo político feitos por imigrantes em situação como a minha.
— Meu amor, algo precisa ser feito. As coisas não podem continuar assim.
— Eu sei, mas o risco de sermos deportados, obrigados a ir embora daqui, é desesperador. Você não faz ideia nem nunca vai saber dos horrores que eu vi acontecer no meu país. Nathan, meu povo está morrendo de fome, doente, não há mais recursos nem dignidade. Como eu não vou chorar?
— Rosa Maria, olha pra mim. Eu não sou uma pessoa alienada. Sei que somam três milhões de pessoas que abandonaram o seu país e posso imaginar todos os horrores que você relata.
— Eu nunca mais vou esquecer aquela cena. Eu vi meus vizinhos dilacerando um cachorro pra comer ao redor de uma fogueira no quintal, porque certamente não havia mais gás de cozinha. Não havia mais dignidade. As pessoas lá estão se transformando em animais.
— Lamento por tudo isso. Mas tente aproveitar mais esses momentos comigo, aqui nessa praia tão linda.
— Na verdade, minha mente vive um tormento que não termina nunca. Eu perdi pessoas que eu amava por causa de tudo isso.
— Dentre essas pessoas se inclui o David?
— Não é sobre o David que eu estou falando. Você não entende? Eu só queria um pouco de dignidade e não ter que viver me escondendo como se fosse uma criminosa. Eu não matei ninguém, eu não roubei nada de ninguém. Minha família e eu só fugimos da morte lenta – afirmei.
— Tudo bem. Eu consigo compreender a sua dor. Mas estou aqui e vou te defender em tudo que for preciso. Agora fica bem e me abraça. Rosa Maria, eu amo você como a nenhuma outra garota. E nada me deixa mais triste do que te ver chorar assim. O mundo às vezes é injusto, minha amada, mas faremos todo o possível pra consertar as coisas. – Ele me abraçou com ternura e eu afaguei seu rosto e seus cabelos. Eu queria que ele também sentisse meu carinho.
Os meses haviam se passado tão rápido. Com o início dos seus estudos, Nathan e eu já não nos víamos com tanta frequência.
Enfim minha querida amiga Marieta deu à luz seu bebê tão esperado. Era uma menina! Clarita era seu nome, e eu mal podia esperar para conhecê-la, mal podia esperar para ter em meus braços minha afilhada do coração. Então eu me planejei para, no dia seguinte, visitar minha amiga no hospital em Santa Ana.
Tempos atrás a Marieta vivia comentando que queria muito que eu e o David fôssemos os padrinhos da criança. Era também uma vontade do Juan, já que David era seu melhor amigo. Mas como David e eu já não estávamos mais juntos, achei por bem não fazer parte do batizado. Mesmo assim eu me sentia uma madrinha do coração, afinal eu fui a primeira a saber daquela gravidez.
***
Aquele foi um dos meus momentos mais intensos de nervosismo. Pode até parecer bobagem, mas fiquei muito ansiosa conforme me aproximava do hospital. Ser madrinha de alguém, ainda que só por consideração, era algo inédito em minha vida. Eu amava os meus amigos e a felicidade deles também era a minha felicidade.
Depois de pisar meus pés no hospital, ao caminhar pelos corredores daquela maternidade, meu coração palpitou mais acelerado, minha emoção era indisfarçável. Só de pensar que minha grande amiga já tinha em seus braços sua doce criança, minha alma se enchia de alegria.
Era o horário de visitas, mas mesmo assim não imaginei que, ao entrar no quarto, eu veria aquele homem ao redor da cama onde a Marieta repousava com seu infante no colo. Estavam lá o Juan, minha mãe, a Alejandra e o David. Logo que entrei, os olhos de todos se voltaram em minha direção.
O olhar de David foi o que mais me chamou a atenção porque, ao contrário dos outros, ele não parou de me olhar com seus olhos lacrimejantes. Meu coração bateu mais forte naquele momento. Cumprimentei a todos de um modo geral e me aproximei da minha amiga para lhe cumprimentar pela nova fase em sua vida. Eu levei-lhe flores e uma roupinha para o bebê.
— Juan, meu querido amigo, parabéns pelo bebê. Eu desejo toda a felicidade do mundo pra você nesse momento tão especial. Agora você tem uma família linda, completa – eu disse a ele, sorrindo. Em seguida o abracei.
Juan era homem doce, amável e humilde. Sentir o calor do seu abraço naquele momento era como sentir o afago de um irmão.
— Obrigado, Rosa Maria. Eu estou mesmo muito feliz com o nascimento da nossa princesa Clarita. A Marieta já estava perguntando se você não viria – Juan me disse, com seus olhinhos brilhando de felicidade.
— Aqui estou, minha amiga – disse eu à nova mamãe.
— Obrigada por ter vindo, Rosa Maria. – Marieta me deu um sorriso.
— Eu trouxe essas flores e um presentinho para a bebê. – Mostrei os pacotes.
— Obrigada. Pode colocar ali na mesa – Marieta me disse.
— Sim. Claro.
Coloquei os presentes sobre a mesa que estava no canto da parede. Fiz um carinho na criança. Aproveitei a ocasião e conversei um pouco com minha mãe, que antes daquele momento ainda não havia me visto, pois quando cheguei à cidade ela já havia saído para o hospital.
Na verdade, por mais que eu apreciasse a presença dos meus amigos, a presença do David me inquietava, portanto tudo o que eu queria era sair logo dali, voltar para Los Angeles e ficar um pouco com meu namorado, que, por sinal, andava longe de mim ultimamente.
***
Passados alguns minutos, outros amigos começavam a chegar. Então era hora de me retirar, pois havia um limite quanto ao número de pessoas que podiam permanecer no quarto.
Eu me despedi de todos com um aceno e um “tchau, pessoal”, já sentindo certo alívio por sair da presença do David, que não desgrudou os olhos de mim nem por um minuto. Minha mãe ficou, pois era ela quem estava fazendo companhia para a Marieta fora do horário de visitas.
Caminhei de modo apressado pelos corredores. Tudo o que eu mais queria era voltar logo pro meu humilde apartamento em Los Angeles. Mas antes disso eu ficaria um dia na casa dos meus pais. Foi quando ouvi uma voz chamar meu nome:
— Rosa Maria.
Interrompi meus passou e virei-me para ver quem me chamava. Era ele!
— David – eu disse, com meus olhos arregalados.
— Como você está? – ele perguntou, aproximando-se mais de mim.
— Estou bem, trabalhando no hotel. Vou levando a vida a qual você já conheceu muito bem. E você, como tem passado? – perguntei, como se eu tivesse realmente coragem de saber.
— Estou bem também – ele me respondeu.
— Está feliz? – ousei perguntar. Ainda não sei por que essa pergunta havia saído da minha boca.
— Sim. E agora estou morando aqui em Santa Ana, perto dos meus amigos e parentes. Estou mais feliz ainda – David me respondeu.
— Novidade! Está morando aqui então?
— Sim. Meu novo trabalho é aqui. Fui chamado pra ocupar uma cadeira de doutor no curso de Letras Inglês e Espanhol na Universidade Regional. Essa já era uma vontade antiga minha, ficar mais perto dos meus parentes e amigos da Califórnia e ao mesmo tempo melhorar minha colocação profissional.
— Que bom. Fico feliz por você, David. Parabéns pela sua nova conquista. É bom mesmo que esteja mais perto dos seus familiares – tentei expressar meus bons sentimentos.
— Obrigado – ele agradeceu, cabisbaixo.
— Agora eu tenho que ir pra casa dos meus pais. Amanhã cedo volto pra Los Angeles. Até logo.
— Até logo – ele respondeu.
***
De novo eu apressei meus passos. Eu não queria olhar para trás, não queria me lembrar do que eu deixei para trás, de quem eu havia deixado para trás. Mas de repente, sem que eu pudesse evitar, ouvi mais uma vez aquela voz chamar meu nome.
— Rosa Maria. – Era o David outra vez.
— Sim. – Me virei em sua direção.
— Será que a gente pode conversar antes de você voltar pra Los Angeles? Pode ser aqui mesmo na lanchonete do hospital.
— David, eu acredito que você e eu não temos mais nada pra conversar. Quero dizer... Me desculpa. Eu estou com a cabeça cheia de problemas, eu seria uma péssima companhia pra você hoje – eu disse.
— Problemas, sempre os problemas – ele comentou, demonstrando aflição.
— É, David, sempre os problemas, porque, ao contrário de você, eu não sou uma cidadã americana que tem um emprego bom, um salário alto, uma vida estável. Meu coração não está em paz, minha mente não está em paz. Eu tenho que ir. Até outro dia. – Minha voz era firme.
Apressei definitivamente meus passos e não olhei para trás dessa vez.
***
Todas as dificuldades pelas quais nós, imigrantes ilegais, estávamos passando eram muito graves. As notícias que chegavam eram cada vez mais assustadoras. Afligia a alma saber que a fome, a miséria e o desespero pela sobrevivência tornavam as pessoas capazes dos atos mais insanos, capazes de sacrificar suas próprias vidas em nome da breve esperança de uma existência com mais dignidade.
Todos os dias centenas de adultos e crianças tentavam atravessar ilegalmente as fronteiras do México com os Estados Unidos. Esses seres humanos, se valendo de um amparo quase inexistente, atravessavam rios e desertos carregando consigo a esperança de chegar à América e assim terem o mínimo de condições de vida. Mas muitas vezes tudo o que essas pessoas encontravam era a morte.
Foi assim para um homem e uma criança. Ainda naquela semana, uma imagem chocou a minha mente e o meu coração. Era foto de um pai e sua filha, mortos por afogamento ao tentarem cruzar a fronteira a nado pelo Rio Bravo, no México. A filha ainda era uma bebê de um ano, que teve seu corpo encontrado junto ao corpo do pai, dentro de sua camisa. Eles tentaram enfrentar a correnteza e chegar ao outro lado, mas foi inútil.
Senti como se uma faca atravessasse meu coração e rasgasse o meu peito. Ver aquilo me fez lembrar das dificuldades que eu havia enfrentado até ali, mas que de certa forma ainda eram pequenas perto do que aquele pai e aquela filha enfrentaram antes de morrer. Minha família e eu ainda tivemos a ajuda de amigos, mas aquelas vítimas do destino não tinham ninguém que olhasse por elas. Quando não vivemos determinada situação difícil, pode parecer fácil se livrar dela, mas não é bem assim que as coisas são. As vítimas Óscar e Valeria Martínez eram latinoamericanos de El Salvador. Essa situação refletia a tragédia e o drama migratório vivido em grande parte da América. Os corpos foram encontrados às margens do rio Bravo.
Quando chegaram em Tamaulipas, no México, aquele pai, sua esposa e filha se depararam com uma cidade transformada em caos, lotada de imigrantes acampados diante da Agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA, à espera de serem atendidos para talvez algum dia receberem permissão para entraram nos Estados Unidos e conseguirem assim o asilo. Mas a demora em saber se teriam ou não uma chance era desalentadora, e por isso muitos imigrantes decidiam não esperar e tentar entrar de qualquer maneira dentro do país que, em suas mentes, pode lhes dar mais dignidade.
Aquela fotografia era somente um pedaço do retrato da dor. Todos os meses crianças, homens e mulheres eram encontrados mortos no deserto do Texas, o qual tentavam atravessar ilegalmente.
Diante de tudo isso, fiquei pensando, ao olhar aquela foto, que poderia ser eu ali, sem vida, sem chances, sem sonhos. Talvez, se eu não tivesse tido as oportunidades que tive, podia ter sido meu aquele triste destino.
Naquele fim de semana houve um jantar entre amigos na casa da Marieta. Todos eram convidados, e o Nathan fez questão de me acompanhar. Confesso que nosso relacionamento havia esfriado um pouco. Por conta de sua faculdade e outras tantas obrigações, já não nos víamos mais com frequência, e tê-lo comigo naquele momento ao meu lado havia se tornado algo raro. Eu sempre soube que as coisas mudam, mas eu só percebia mesmo isso quando tudo começava a se transformar, quando os destinos começavam a tomar novos rumos.
— Rosa Maria, aquele que acaba de entrar é o David, seu ex-noivo? – Nathan me perguntou, quando estávamos na sala da Marieta, de pé, próximos à mesa do jantar.
— Sim, é ele mesmo. Mas a Marieta havia me dito que ele não viria hoje. Nathan, vamos embora daqui; eu não quero ter que falar com ele hoje, não hoje – eu disse atônita e desconcertada logo que percebi que David se aproximava de nós.
— Não, Rosa Maria. Nós não vamos embora daqui, vamos ficar. Você não tem que fugir assim, não deve nada a ele. E tem mais: você precisa encarar a situação. A menos que você ainda sinta algo pelo David.
— Não é nada disso, Nathan – eu disse, com a voz vacilante e coração acelerado. Por mais que eu tentasse disfarçar meu desconcerto por estar perto do David, era notório.
— Então não há motivos pra fugir. Agora você é minha namorada e não precisa temer nada. Prepare-se, ele está se aproximando – Nathan me alertou. Respirei fundo e melhorei minha postura.
David se aproximou de nós e chamou pelo meu nome:
— Rosa Maria. – Sua voz tinha o tom suave.
— Olá, David – eu disse.
— Olá, como você está? – David me perguntou.
— Eu estou bem. David, esse é o Nathan, meu namorado.
— Olá, Nathan. Como vai? – David o cumprimentou com um aperto de mão.
— Eu estou bem, e o senhor? – Nathan respondeu.
— Senhor não, por favor. Ainda não tenho cinquenta anos.
— Tudo bem, David. Desculpe. Como vai você? – Nathan corrigiu-se.
— Eu vou muito bem. É bom vê-los aqui entre os amigos.
— Também é bom te ver, David.
— Com licença, eu preciso cumprimentar Marieta e o Juan – David disse, se retirando.
— Sim, claro. Vá – eu disse.
Esse encontro até que não foi tão difícil quanto pensei que seria. Talvez não fosse justo com o David ele me ver com outro homem, mas ao mesmo tempo eu não poderia iludi-lo. Doía demais no meu coração confirmar com as minhas atitudes que eu não voltaria mais à sua vida. Mas eu estava sendo honesta porque eu não poderia tê-lo em meus braços, eu não poderia ser sua do jeito que ele merecia. Eu desejava com sinceridade que ele fosse feliz com outro alguém.
Aquela seria mais uma noite alegre ao lado de Nathan e seus amigos, no apartamento perto da universidade. Estávamos na sala, assistindo a um filme, e em poucos minutos eu serviria o jantar preparado por mim e pela namorada do Jimmy. Fiz de tudo para não relembrar minha real situação, mas havia momentos em que isso era impossível diante das notícias que chegavam aos meus olhos e ouvidos. Eu preparava as coisas na cozinha quando vi na TV fixada na parede algo que só não me deixou mais impressionada do que as mortes que aconteciam nas travessias do deserto.
Eu comecei a chorar, pois a notícia que passava na TV da cozinha me fez recordar cruelmente de tudo que eu já havia visto e vivido até ali. Foi quando Nathan entrou e, ao ver as lágrimas encharcarem o meu rosto, perguntou, atordoado:
— Rosa Maria, o que houve? Por que está chorando assim?
Cada vez mais eu sentia que o meu mundo não era aquele, eu me sentia inadequada. O Nathan era um jovem estudante de medicina de boa família, ele precisava de paz para seguir com sua vida, e naquele momento minha mente era todo torpor. Era para ser uma noite alegre, mas minhas dores vieram à tona.
— Nathan, acabo de ver uma notícia que me deixou muito abalada, temendo ainda mais o meu futuro, o futuro da minha família. Por favor, me desculpa, eu sei que essa era pra ser uma noite alegre com seus amigos, mas a verdade é que toda vez que eu vejo esse tipo de notícia minha alma se abala – eu disse.
— Que notícia? – ele perguntou, me olhando com feições de um homem apiedado.
— Ontem a imigração prendeu trezentos trabalhadores, todos imigrantes ilegais, dentro de uma fábrica no Texas. Era uma empresa grande. Eu fico me perguntando se algum dia não vai acontecer a mesma coisa dentro daquele hotel onde eu trabalho.
— Meu Deus! Trezentos? Isso é assustador. Não pelo fato de serem ilegais, mas pela quantidade de pessoas trabalhando mesmo de modo informal, lutando por um pouco de dignidade, a dignidade que elas nunca tiveram no país onde nasceram. – Nathan enxugava minhas lágrimas.
— Eu penso isso também. Se nós ainda estivéssemos cometendo algum crime grave, mas não, nós estamos apenas trabalhando, ajudando esse país a crescer, lutando por uma vida melhor.
— Meu amor, não chora assim. Eu vou te ajudar a continuar aqui nos Estados Unidos. Farei tudo que eu puder pra solucionar o seu caso. Falei com um advogado e ele está estudando a melhor alternativa pra você. Agora, não chore mais. Essa é uma noite de alegria. – Nathan e eu nos abraçamos.
Aquela seria mais uma simples manhã de trabalho no Hotel Ilhas Cayman, não fosse pela ordem de serviço que havia recebido e que me surpreendeu. Meus olhos percorreram a lista de hóspedes os quais eu deveria servir naqueles próximos minutos do dia, e qual não foi minha surpresa ao perceber que, dentre eles, estava o senhor Richard Thomas. Sim, ele mesmo, o pai de Nathan, o rapaz com face angelical que havia trazido mais uma vez o afeto e o carinho à minha vida.
Algumas vezes eu agia por impulso, fazia as coisas acreditando que não haveria problemas, mas naquela situação, no fundo meu âmago, eu queria mesmo era saber a verdade. Meus ouvidos queriam saber o que as pessoas pensavam de mim. Era como se eu não quisesse perder de vista a realidade que me cercava, a realidade inevitável que mais cedo ou mais tarde eu teria que enfrentar. Ergui minha cabeça e segui empurrando o carrinho até o quarto 308, onde eu serviria o café do senhor Thomas.
Agi como de costume, bati à porta que ficou entreaberta e pedi licença para entrar. Enquanto eu servia o café sobre a mesa, o senhor Thomas permanecia sentado na poltrona, lendo atentamente seu jornal. Fiquei tentada a me apresentar, a dizer quem eu era. Meu coração bateu mais forte, como se eu quisesse saber a verdade logo.
— Pronto, está servido o seu café. Deseja mais alguma coisa, senhor Thomas? – perguntei-lhe.
— Não. Está tudo bem. Apenas vou terminar de ler minha notícia e em seguida me sirvo – ele respondeu, mal olhando em minha face.
— Ok – eu disse, já decidida a me retirar daquele quarto.
Eu já tinha virado as minhas costas para sair dali, mas o impulso falou mais alto. Respirei fundo, virei-me novamente em direção a ele e disse:
— Senhor Thomas, permita-me apresentar-me. Meu nome é Rosa Maria Rodríguez.
— Desculpe-me a pergunta, mas eu deveria saber quem você é, senhorita? – ele me questionou, mostrando que, de fato, não fazia a menor ideia de quem eu era.
— Acredito que sim. Eu sou a namorada do seu filho Nathan – revelei, já com o coração angustiado por saber que, com vários meses de namoro, Nathan ainda não havia dito aos pais nada sobre mim, nem mesmo meu nome.
— O quê? Você é namorada do meu filho? – O senhor Thomas levantou-se da poltrona me analisando de cima a baixo.
— Sim, do seu filho Nathan Thomas. Ele não contou que está namorando?
— Ele até mencionou que estava saindo com uma garota de Los Angeles, mas ele nunca disse nada sobre você, senhorita.
— Então o Nathan mentiu e omitiu, porque eu não sou de Los Angeles, sou latina. E ele não está simplesmente “saindo com uma garota”, ele está namorando comigo.
— É lamentável, mas, pelo o que você acaba de expor, sim, o Nathan mentiu e omitiu a verdade. E já adianto que é melhor você não alimentar ilusões sobre ele. O Nathan ainda é um jovem imaturo e totalmente dependente de mim. Sou eu quem paga o aluguel do apartamento onde ele mora, o carro que ele dirige, todas as despesas da faculdade que ele cursa. Enfim, meu filho não tem nenhuma estrutura pra levar adiante qualquer relacionamento mais sério. Se é casamento que você espera, isso está bem longe de acontecer, senhorita.
— Aí é que o senhor se engana. Eu não espero nada do seu filho, senhor Thomas. Eu me apresentei ao senhor porque queria apenas confirmar aquilo que na verdade eu já sabia – eu disse, já com os olhos marejados de lágrimas.
— É confortante que tenha essa consciência, senhorita. Além de tudo, seria inconcebível que meu filho tivesse um relacionamento com uma imigrante que possivelmente está ilegal nesse país. Mas fique tranquila, eu não direi nada ao Nathan sobre essa nossa conversa. É melhor que você resolva tudo com ele na próxima vez que se encontrarem.
— Sim, senhor. Eu não alimento nenhuma ilusão, nem com o seu filho nem com qualquer outra pessoa que seja – afirmei a realidade sobre o que sentia.
Minhas pernas e todo meu corpo já estavam tremendo, as lágrimas de desgosto já corriam pelo meu rosto como uma cachoeira. Saí depressa daquele quarto, até deixando o carrinho para trás. As palavras do senhor Thomas foram uma faca afiada que cortaram ao meio o meu coração já tão sofrido.
De repente senti a mão de alguém tocar meus ombros quando eu ainda atravessava o corredor do hotel. Virei para trás. Era o Franz.
— Rosa Maria, eu ouvi sua conversa com o pai do Nathan e sinto muito. Eu passava em frente ao quarto, a porta estava entreaberta, ouvi sua voz. Eu tinha que deixar umas toalhas de mesa no apartamento, mas, como percebi que estavam conversando, não quis entrar e apenas escutei toda a conversa com atenção. Eu trabalho aqui há mais tempo que você e já conhecia o senhor Thomas e o Nathan também. Sempre foi claro que a família dele dificilmente te aceitaria.
— Franz, o que mais me dói é que eu quase amei o Nathan e ele não teve coragem de contar para os pais quem eu sou – eu disse.
— Eu sinto muito. Mas, nesse caso, acredito que ele queira te poupar de todo esse preconceito.
— Pode ser. Aliás, é bem provável que seja. Mas mesmo assim dói. Eu não aguento mais tudo isso. Vou pegar minha bolsa e ir pra bem longe daqui. Não trabalho mais nesse hotel. É melhor eu voltar a trabalhar com a minha mãe fazendo as faxinas em Santa Ana. Hoje eu arrumo as minhas coisas e amanhã eu volto.
— Você está muito abalada, está tremendo. Eu levo você até o apartamento e te faço companhia até que se acalme. Faço um chá pra você – Franz dizia, me segurando pelos braços.
— Agradeço a sua preocupação, mas eu prefiro ir pra casa e ficar sozinha. Eu quero ficar longe de todo mundo, pelo menos por algumas horas. Obrigada. – Beijei seu rosto e me retirei dali com o coração partido.
Foi só o tempo de pegar minha bolsa e sair correndo daquele hotel. A verdade era amarga e doía. Em passos trepidantes, já no meio da rua, fiz sinal para o táxi, que parou de imediato. Tudo o que eu queria era debruçar-me sobre meu travesseiro e chorar. E foi isso mesmo que eu fiz.
Naquele dia o Nathan me ligou durante a tarde inteira, mas não atendi. Ele me enviou várias mensagens, mas não as respondi.
O relógio marcava dez horas da noite quando a campainha do meu apartamento tocou. Eu estava sentada no sofá assistindo a um filme, mas ao mesmo tempo chorando ao relembrar dos momentos que eu havia vivido no hotel ainda naquele dia. Era a dor por não ser aceita. Enxuguei minhas lágrimas e levantei-me, já supondo quem estaria do outro lado da porta.
— Nathan – eu disse, cabisbaixa, depois de abrir a porta.
— Rosa Maria, nós precisamos conversar.
— Eu acho que você e eu não temos nada pra conversar.
— Estive com meu pai hoje. Eu não sabia que ele viria, muito menos que se hospedaria no hotel. Ele acabou me contando tudo o que houve depois que me viu nervoso porque você não atendia às minhas chamadas. Fiquei desesperado porque não fazia ideia do motivo de você ter me ignorado o dia todo – Nathan se explicou.
— Acabou, Nathan – eu disse, com meu coração rasgado pela desilusão.
— Como assim, acabou? – Os olhos dele se arregalaram como espantados por ter ouvido minha afirmação.
— Volta pro seu apartamento, volta pra sua vida e me esquece. Eu vou ficar bem longe de você e de toda essa situação. Preciso ser capaz de viver sem um homem ao meu lado, principalmente homens que não podem ficar comigo porque sou uma imigrante ilegal ou porque os pais ou a família não me aceitam. Não seria justo com você, assim como não foi justo com o David. Eu sei que a culpa não é sua. Então é melhor cada um seguir o seu próprio caminho.
— Rosa Maria, não era pra ter sido assim. Eu ia conversar com meus pais sobre, mas na hora certa, com calma, depois que o nosso relacionamento estivesse mais sério, mais firme. Eu não queria te expor sem necessidade, justamente pra que você não tivesse que passar pelo que acabou passando lá no hotel. Por que você se apresentou pro meu pai?
— Eu acho que eu queria enfrentar logo a realidade. Nathan, você omitiu e mentiu pro seu pai sobre mim. Ele achava que eu era uma americana.
— Olha, eu posso entrar ou vou ter que ficar parado aqui na porta? – ele perguntou, já se movendo para entrar no apartamento.
— Mas é claro, pode entrar. Eu não quero que os vizinhos escutem nossa discussão.
Ele entrou e eu fechei a porta.
— Rosa Maria, me escuta. Eu sou completamente apaixonado por você. Eu mal conversei com meu pai sobre o nosso namoro. Você não deveria ter se apresentado a ele naquelas circunstâncias.
— E por que não? Por que eu teria que me esconder?
— Como assim por quê? Olha a sua situação. Quer ser presa, denunciada por pessoas que não gostam de você ou são contra sua situação? Eu fiz de tudo por você, Rosa Maria. Eu fiz tudo que eu podia pra que você se sentisse amada, desejada, protegida. Tudo o que eu pude pra te fazer feliz, eu fiz, mas você quer demais. Você terminou tudo comigo só porque omiti dos meus pais quem você é. E de que adiantaria dizer a eles quem você é? Fazendo isso, eu só colocaria você em um risco maior de ser descoberta. Minhas atitudes foram pra te proteger.
— Tudo bem, Nathan, você tem toda a razão. Eu não deveria ter dito ao seu pai quem eu sou. E seu pai também tem toda a razão: é inconcebível que eu, uma imigrante ilegal, atrapalhe sua vida. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde isso acabaria acontecendo. Então, é melhor que você saia logo daqui, me esqueça e viva a sua vida em paz – eu disse, com lágrimas lavando minha face.
— Espere um pouco. Você pensa que é assim que uma paixão termina? Com meia dúzia de palavras, como se quase nada existisse entre nós?
— E de que outra maneira poderia terminar? Sabe, eu quase te amei, fui feliz do teu lado. Você representou a chance de um novo grande amor em minha vida, Nathan. Mas não vai passar disso, de um sonho.
— Quase me amou?
— Sim, quase.
— E o que faltou pra ser amor? Será que faltou aquilo que você ainda sente pelo David e foi incapaz de sentir por mim? – Nathan perguntou, já com lágrimas no olhar.
— O quê? Do que está falando? – perguntei, como se eu quisesse ocultar meus verdadeiros sentimentos.
— Rosa Maria, esse é mesmo o fim da linha. Já chega de fugir da verdade.
— Que verdade? Eu não sei do que você está falando.
— Minha amada Rosa, até quando você vai continuar mentindo pra si mesma? Eu não sou nem nunca serei o homem que você ama – ele disse, enquanto acariciava meu rosto.
— Nathan, por que você está me dizendo essas coisas? Eu sou apaixonada por você.
— Mas paixão não é amor. A paixão é apenas um encantamento, um arrebatamento emocional passageiro.
— Não é justo que você ponha em dúvida meus sentimentos.
— É exatamente o contrário: não estou colocando em dúvida seus sentimentos, eu tenho certeza do que você sente. Eu sei que você é apaixonada por mim. Sei que seu afeto é verdadeiro, mas não é amor. Você é uma mulher muito carente e tem apego por mim.
— Então é assim que você pensa? Acha que eu não fui verdadeira só porque estou terminando tudo entre nós.
— Eu tentei, eu juro que tentei. No começo, eu até acreditei que eu pudesse fazer você esquecer aquele cara, mas agora tenho certeza de que eu me enganei. Está escrito no seu rosto, está gravado no seu olhar que você ainda ama muito o David. Isso já era claro quando nos encontrávamos os três. O jeito que ele te olha é de dar inveja em qualquer outra mulher. Se eu fosse você, correria agora atrás dele e não sairia de perto nunca mais – Nathan disse, parecendo já estar conformado com nosso término.
— Você não pode estar falando sério, Nathan. Está dizendo pra eu correr pros braços do David.
— Eu gostei de você de verdade, eu fiquei completamente apaixonado, até sonhei em me casar com a donzela camareira que esbarrou em mim no corredor do hotel. Eu estava disposto a enfrentar meus pais e quem quer que fosse pra ter a mulher que eu amo em meus braços, mas pra isso essa mulher teria que me amar também de igual maneira e intensidade. Mas não é o caso. Essa mulher que eu desejei ainda é muito carente, se sente sozinha e ama outro homem – ele lançou as verdades diante de minha face cansada e desiludida.
— Falando assim, você até me magoa. Só falta me dizer que eu fui falsa e que nunca me apaixonei por você. Eu também te dei todo meu carinho, vivemos momentos lindos juntos. Toda essa situação deixou meus sentimentos confusos, perturbados, eu já nem sei de mais nada.
— Eu não duvido do seu afeto por mim, sei que você me deu carinho e lembro muito bem dos momentos alegres e bons que vivemos juntos. Mas não era amor, era só paixão. Eu até agora omiti a verdade dos meus pais porque nem sequer sabia se eu e você ficaríamos juntos. Mesmo assim eu fiquei do seu lado porque eu queria muito te ajudar a se legalizar aqui nos Estados Unidos. Eu queria te dar carinho, aplacar a minha e a sua solidão. Cheguei a sentir vontade de me casar com você sim. O que eu não poderia é passar o resto da minha vida casado com uma mulher que ama outro homem. – Lágrimas caíam pela face de Nathan.
— Quer saber de uma coisa, Nathan? É melhor você ir logo embora daqui. Desaparece da minha vida, vou resolver sozinha meus problemas. Vou me virar pra conseguir o que eu quero sem a ajuda de namorado, sem ajuda de ninguém. Eu vou resolver sozinha os meus problemas sentimentais, emocionais, legais. Então vai embora, é melhor pra você e pra mim – eu disse, com toda a força da minha garganta. Eu estava nervosa, aflita, revoltada com a realidade. No fim eu sabia que não deveria ter me apresentado ao pai dele, e sabia que Nathan estava certo quanto ao fato de eu ainda amar o David.
O Nathan saiu do meu apartamento com os olhos arregalados, bateu a porta e eu a tranquei pra ter certeza de que ninguém mais entraria ali. Corri pro meu quarto, me joguei na cama e chorei muito. A cada dia que passava, eu estava mais e mais arrependida de não ter ido embora com o Endry para a Argentina. Ele sim era o meu grande amor, o amor do qual eu fui separada pelas circunstâncias da vida, o amor que poderia acontecer sem preconceito, sem bombardeios de opiniões.
O Nathan me ligou a noite inteira, mas não atendi; enviou várias mensagens, mas não as respondi. Eu não queria ver nem falar com ninguém. Minha mente era um turbilhão de sentimentos confusos, de vontades reprimidas e afetos interrompidos.
Eu havia acabado de arrumar minhas malas naquela manhã. Dentro de poucos minutos eu seguiria meu rumo de volta a Santa Ana. Para a minha surpresa, a campainha tocou. Com meu corpo cansado de tanto chorar na noite anterior, fui até a porta e a abri.
— Franz – eu disse, em tom de voz de surpresa. Não esperava por ele ali.
— É aqui que ainda mora a jovem que teve mais uma vez seu coração partido pela desilusão do amor e que está prestes a ir embora? – ele perguntou, sorrindo.
— Sim, é aqui que ela mora. Acabei de arrumar minhas coisas. Daqui a pouco é só chamar o táxi, pegar as malas, o aquário com o meu peixinho e partir – respondi.
— Bem, ao menos cheguei a tempo para uma última conversa – ele disse.
— Sim, claro. Entra. Sente-se. Mas essa não tem que ser a última conversa – aleguei.
— Fico feliz em ouvir isso. – Franz entrou e fechei a porta.
— Aceita um suco, um sanduíche? Vou acabar deixando algumas coisas no armário e na geladeira. Depois a Alejandra recolhe pra mim.
— Aceito sim.
— Vou servir seu copo. Mas me diga, você não tinha que estar no hotel?
— Tinha, mas a gente sempre consegue um tempinho pra ajudar uma amiga.
— Obrigada por tudo. Você sempre foi um bom amigo pra mim. – Eu lhe servi o suco, que ele bebeu rapidamente, me devolvendo o copo em seguida.
— Que suco delicioso. Obrigado.
— Por nada.
Sentei-me ao lado do Franz no sofá. Por alguns segundos ficamos apenas nos olhando.
— Então, meu amigo, me diz o que você tem pra me dizer.
— Vou dizer agora. Sei que não sou o homem que você ama (aliás, te aconselho a correr pros braços dele depois que chegar em Santa Ana), mas, antes disso, você aceita meu carinho de despedida? – Franz perguntou.
— E qual seria esse carinho?
— Esse – ele respondeu. Franz acariciava meu rosto e, sem me dar conta, em poucos segundos depois de encerrar suas palavras, ele me beijou. Era esse o carinho de despedida que ele queria tanto me dar.
Foi bom. Eu senti de verdade que ele gostava de mim, ou melhor, que ele era muito apaixonado por mim. Eu apenas me entristecia por não poder correspondê-lo. Como o próprio Franz havia me dito, infelizmente ele não era o homem que eu amava.
Naquela manhã eu ainda estava deitada na cama, apertando meu estômago com as mãos porque a dor era intensa. Foi quando minha mãe bateu à porta e pediu licença pra entrar.
— Mãe – eu disse, surpresa.
— Minha filha, tem visita pra você.
— Visita? Pra mim? Quem é? – Eu realmente não fazia ideia de quem poderia ser.
— É o Nathan. Ele quer conversar com você.
— O Nathan? Diz pra ele vir até aqui. Eu não dormi a noite toda de tanta dor no estômago.
— Tudo bem. Vou preparar mais chá de hortelã pra você e aviso ao Nathan que ele pode entrar.
Minha mãe se retirou. Meu coração acelerou um pouco, afinal o Nathan ainda era uma pessoa muito especial pra mim. E eu sabia que eu não havia sido legal com ele na última vez em que nos vimos. Eu o havia expulsado da minha vida.
Não passou nem cinco minutos quando a porta se abriu e aquele rapaz lindo, sensível e de face angelical entrou em meu quarto.
— Nathan, que surpresa – eu disse, ainda deitada com uma das mãos sobre meu estômago.
— Decidi vir porque preciso muito falar com você. – Ele se aproximou e sentou-se ao meu lado, na beira da cama.
— Pensei que eu não te veria nunca mais depois das minhas grosserias, depois de eu ter terminado nosso namoro, depois de ter te mandado embora – demonstrei meu pesar.
— Como você está? – Ele colocou sua mão esquerda sobre minha mão que estava sobre meu estômago.
— Estou muito mal. Passei a noite inteira com fortes dores no estômago. Não tem mais cura. E, sempre que eu fico nervosa, a dor vem de maneira ainda pior. E tudo por ter passado vários períodos sem comer lá no meu país. Eu era uma moça saudável antes da vida do meu povo desmoronar em meu país. – Uma lágrima caiu do meu olhar.
— Rosa Maria, eu sinto muito. Fiz tudo que pude pagando os médicos pra você.
— Antes de te conhecer, eu já havia consultado outros médicos, mas esses tratamentos não resolvem nada. Só o que me deixa melhor são os chás que minha mãe prepara. Eu passo períodos bons, chego a ficar três ou quatro meses sem dor.
— Bom, pelo menos os chás ajudam.
— É, pelo menos isso.
— Estou aqui porque aquele não foi o jeito certo de terminar um relacionamento no qual existiu afeto verdadeiro, quase amor, como você disse.
— Sim, foi quase amor. E você tem razão, Nathan. Eu fui grosseira com você, eu disse coisas que não se diz pra quem tanto gostamos. Eu não deveria ter me apresentado ao seu pai. O que eu fiz foi ridículo. O tempo todo você queria apenas me proteger. Mas saiba que eu nunca quis te prejudicar. Eu sei que a minha situação é uma encrenca e os pais não querem que seus filhos se metam em encrenca. Ou às vezes os filhos não querem que o pai se meta em encrenca.
Nós rimos.
— É claro que eu te perdoo. Compreendo sua situação, e quero que você saiba que podemos ser amigos. Estarei sempre pronto a te ouvir. Quando precisar, pode me procurar. Eu ainda quero te ajudar a se legalizar aqui, apenas precisam decidir entrar com o pedido de asilo.
— Muito obrigada. Sou grata por todos os momentos bons que eu e você vivemos juntos, Nathan. Ao seu lado eu fui feliz sim, e espero que eu também tenha dado a você carinho e alegria. Saiba que eu também sou sua amiga, e sempre que precisar estou aqui de braços abertos pra você, que foi o meu anjo em dias tão difíceis.
— Eu também fui feliz ao seu lado, minha Rosa. Sempre senti o seu carinho verdadeiro. Fico contente por saber que somos amigos e que posso contar com você. – Ele sorriu e nos abraçamos.
— Vai sair, minha filha? – minha mãe perguntou, depois de me ver finalizando a maquiagem diante do espelho.
— Sim, mãe. Alejandra e eu vamos às compras, escolher seu vestido de noivado. Já aproveito, é claro, e escolho também meu vestido pra festa – respondi, animada.
— Só vão você e a Alejandra?
— Sim. Infelizmente a Marieta está com o bebê doente e não poderá nos acompanhar como de costume.
— Eu soube do bebê e já rezei para que ele fique bom logo – minha mãe disse, com voz e semblante sinceros.
— Se Deus quiser, o Juanzinho vai ficar bom rápido – comentei, enquanto terminava de colocar meu brinco.
— Se cuida, Rosa Maria. E não volta muito tarde.
— Tudo bem, não se preocupe, mãe. Volto antes da meia-noite, horário de cinderela. Agora eu tenho que ir, a Alejandra me espera na casa da Marieta. – Beijei o rosto dela e saí.
***
Como eu amava estar com as minhas melhores amigas. Mais do que amigas, Marieta e Alejandra eram como irmãs pra mim. Eram mulheres mais velhas, mais experientes, me ensinavam muito, me animavam, me apoiavam. Eu fazia tudo o que podia fazer por elas, não muito, mas o possível.
— Marieta! – exclamei logo que me aproximei dela.
— Rosa Maria! Que bom te ver, amiga. – Nos beijamos no rosto.
— Eu digo o mesmo – respondi.
— Alejandra, pronta pra escolhermos seu vestido? – perguntei entusiasmada. Beijei seu rosto.
— Prontíssima. Estou muito ansiosa pra escolher o vestido pra minha noite especial.
— Parabéns, minha amiga. Você merece toda a felicidade desse mundo – Marieta disse, sorrindo.
— É claro que merece. – Sorri.
— Rosa Maria, desejo que algum dia você possa ser feliz com alguém que você ame de verdade – Alejandra me disse.
— Não penso nisso agora, meninas. De repente um dia as coisas melhoram no meu país e eu volto pra lá. Essa ainda não é a vida que eu quero pra mim lá – respondi.
— Rosa Maria, vamos mudar de assunto. Hoje é nossa noite de curtir. Vamos? – Alejandra me animou.
— Vamos – respondi.
Passear com a Alejandra era muito divertido. Ela era brincalhona, contava piadas e coisas engraçadas que lhe aconteciam no hotel. Eu também vivia contando alguns momentos hilários que havia vivido, além dos românticos, é claro, que marcaram muito mais.
Fizemos as compras no shopping. Escolhi meu vestido para a festa de noivado, prateado, de manga longa, justo no corpo e com detalhes de pedrinhas que cintilavam ao serem tocadas pela luz. Já o vestido da Alejandra era rosa claro, tecido leve, longo, com flores bordadas e detalhes delicados.
Caminhávamos pelos corredores do shopping center em direção à lanchonete, quando de repente vi a imagem que interrompeu meus passos e que fez meu corpo tremer e meu coração sangrar de dor.
— Alejandra – chamei pelo nome da minha amiga, que estava ao meu lado.
— O que foi? – Meu tom de voz apreensivo e assustado transformou a face entusiasmada da minha amiga em um semblante tenso e de dúvida.
— Olha ali. É o David – respondi, com as mãos trêmulas que carregavam as sacolas de compras.
— Sim, é ele mesmo, e parece estar muito bem acompanhado. – Seu rosto era sério.
— Eu não consigo acreditar nisso – eu disse, já com meus olhos lacrimejando.
— Pois acredite. Está diante dos nossos olhos – Alejandra me disse.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao ver o David beijando e trocando carinhos com outra mulher em uma das mesas da lanchonete. Fiquei completamente desnorteada. Aquela era a primeira vez que eu o via com outra pessoa depois que nos separamos meses antes.
— Alejandra, vamos embora daqui. – Acabei com o momento de alegria da minha amiga.
— Claro, Rosa Maria. É melhor irmos embora agora. Não seria legal você e ele se encontrarem aqui nesse momento. Você está muito abalada. Eu e a Marieta não sabíamos de nada. Deve ser coisa recente.
Alejandra segurou em meu braço. Ela sentiu pena de me ver tão abalada daquela forma. Naquele instante eu senti o gosto amargo do desamor, e então pude entender o quanto o David devia ter sofrido quando me via com o Nathan. Seria muito injusto e egoísmo da minha parte esperar que o David estivesse sozinho por tanto tempo. Eu só não imaginava que, ao me deparar com essa realidade, eu sofreria tanto. Infelizmente, algumas vezes só nos damos conta de quão valioso é algo depois que o perdemos.
— Não adianta ficar assim agora, amiga. Achou que ele fosse te esperar pelo resto da vida? – Alejandra me alertou sobre a realidade.
— Esperar por mim não, só não imaginei que seria tão doloroso ver essa cena – respondi, com as gotas de lágrima molhando meu rosto.
— Vamos sair logo desse shopping – ela me disse.
***
Alejandra parou o carro na praça central. Era um lindo parque ecológico no centro da cidade, com banquinhos, grama e chafariz, onde podíamos nos sentar, caminhar, relaxar e admirar a natureza.
Nos sentamos em um dos bancos. Reclinei minha cabeça nos ombros da minha amiga e derramei minhas lágrimas enquanto eu dizia:
— Sabe, Alejandra, infelizmente a gente só percebe o valor das coisas e das pessoas depois de perdê-las.
— Eu entendo sua dor. Tem coisas que só sabemos o quanto machucam depois que somos feridos por elas.
— Sei que eu nem tenho o direito de estar assim. As decisões foram minhas – relembrei.
— Sua situação não é nada fácil, Rosa Maria. Não se lastime.
— Me desculpe por estragar sua noite especial. Hoje é a noite em que você escolheu seu vestido de noivado.
— Não há o que desculpar, amiga. Estarei sempre aqui ao seu lado pra te ouvir, pra te consolar. Você não estragou minha noite. Eu me sinto bem em poder estar com você nesse momento difícil. – Alejandra foi gentil comigo.
— Eu me achava tão forte – eu disse, desiludida.
— E você é.
— Não sou não. Minha alma está em pedaços.
***
Eram por volta das vinte e três horas quando cheguei em casa. Meus pais já estavam dormindo e as luzes apagadas. Entrei de mansinho na sala, não quis fazer barulho para não os acordar. Fui direto para o quarto. Troquei de roupa. Vesti meu velho pijama, lavei o rosto e escovei os dentes.
Antes de me deitar, olhei pro meu peixinho no pequeno aquário, me joguei na cama e desabei em lágrimas com a cabeça sobre o travesseiro, enquanto relembrava a cena que havia despedaçado minha alma naquele shopping center.
Foi horrível ver o David beijando outra mulher. Aquela era a sentença do fim. Vieram à tona em minha mente os momentos bons e felizes que tivemos juntos. Como eu queria poder voltar no tempo e reviver cada momento! Como eu queria ter agido de outro modo e ter dado mais uma chance para aquele amor. Mas, enfim, eu estava sozinha. Havia perdido meus três amores para a realidade da vida.
Enfim havia chegado a grande noite. Era a festa de noivado da Alejandra, um dos momentos mais especiais de sua vida, que aconteceu no salão do Grande Hotel em Los Angeles. Fomos de carro eu, meus pais e o Juan, que inclusive foi quem dirigiu naquela noite. A Marieta precisou ficar em casa, pois o bebê ainda estava doente e aspirava repouso e os cuidados da mãe. E o Juan, é claro, jamais faltaria ao noivado da própria irmã, sua única irmã.
Era certo que o David estaria na festa, afinal ele era amigo dos meus amigos, e até porque os amigos já eram dele antes de serem meus. Minha alma dilacerada estava pronta para o pior. Logo que entrei no salão, já avistei o Franz ao longe, todo elegante em seu terno preto. Ele estava na companhia de outros amigos convidados, todos meus ex-colegas de trabalho do Hotel Ilhas Cayman. Assim que me viu, Franz sorriu e eu fiz sinal com a mão, indicando que eu iria ao seu encontro.
O senhor Hernandez também estava lá. Antes de chegar até o Franz, fui até meu ex-patrão e o cumprimentei com todo o respeito e honra que ele merecia por ter me dado a chance de trabalhar em seu hotel. O sorriso dele pra mim, bem como suas palavras, foram como o sorriso de um pai para uma filha.
Depois de abraçar o Franz, foi a vez de cumprimentar os noivos. Primeiro ofereci meus cumprimentos ao noivo Dylan. Ele sorriu e apertou minha mão, agradecendo minha presença. Depois foi a vez de abraçar a noiva, minha amiga Alejandra. Ela estava linda trajada em seu vestido rosa que eu a ajudei a escolher. Sua tiara cor de cristal contrastava perfeitamente com o negro de seus cabelos.
— Alejandra, minha querida amiga, mais lindo que seu vestido somente o seu sorriso. Você está maravilhosa! – eu disse.
— Muito obrigada. É bom dividir esse momento com você, Rosa Maria. – Ela retribuiu meu afeto com seu sorriso. Eu e ela nos abraçamos.
Alejandra e Dylan formavam um casal de noivos perfeito. Era possível ver em seus olhos o amor que sentiam um pelo outro e que transbordava de suas faces.
Enfim chegara o momento de encarar a realidade. Não demorou muito e eu vi o David de mãos dadas com sua nova namorada vindo em minha direção. Dessa vez doeu um pouco menos, porque eu já havia me preparado para o pior. Em um instinto de defesa, virei de costas, na esperança de que ele não me visse, ou mesmo que não me reconhecesse. Mas foi em vão. No momento em que pensei até em sair da festa, ouvi aquela voz pronunciar meu nome:
— Rosa Maria.
Quando virei, tive que encarar o que mais me machucava. A namorada dele era uma mulher mesmo exuberante, magra, alta, loira, olhos claros, aparentava ter uns quarenta anos de idade, corpo atlético e muito elegante.
— David! – respondi, com o coração angustiado.
— Como você está? – ele quis saber.
— Eu vou bem, obrigada. E você, como vai? – Não beijei seu rosto, nem apertei sua mão.
— Estou ótimo. Obrigado.
— Que bom – eu disse, sem graça. Minha vontade era de sumir dali o quanto antes.
— Rosa Maria, essa é a Mônica, minha namorada e professora na universidade — David nos apresentou.
— Prazer em conhecê-la, Mônica. – Cumprimentei-a com um aperto de mão.
— Rosa Maria, o prazer em conhecê-la é meu – ela respondeu, sorrindo.
— A Rosa Maria é filha do senhor e da senhora Rodríguez. Você os conheceu na casa do Juan e da Marieta – David explicou-lhe.
— Sim, claro. Eu conheci seus pais já há algum tempo. Sabe, assim como o David, eu também tenho muitos amigos latinos. É um povo animado, feliz, batalhador e caloroso, sem contar que eu amo comida mexicana. – Mônica se mostrou simpática.
— Que bom. – Sorri sem graça mais uma vez.
— David, meu amor, eu tenho que ir ao toalete, não demoro. Enquanto isso, a Rosa Maria te faz companhia – Mônica disse.
— Sim, querida. Vá tranquila. Eu espero aqui – David respondeu.
— Certo. Já volto. – Mônica beijou-o e seguiu em direção ao toalete, que ficava do outro lado do salão.
O semblante de David mudou depois que sua namorada havia saído de perto de nós. Ele ficou entristecido, com ares de inquietação. Aproximou-se mais de mim e perguntou:
— Você veio sozinha?
— Não. Eu vim com meus pais e com o Juan. A Marieta não pôde vir. Infelizmente o bebê ainda está doente e precisa da mãe o tempo todo do lado – respondi.
— Que pena. Tomara que o Juanzinho melhore logo.
— É, tomara.
— Eu soube que você saiu do hotel e que terminou seu namoro com o Nathan. Eu sinto muito – David me disse, parecendo ser sincero.
— Sim, é verdade. Terminei meu relacionamento com o Nathan e saí do hotel. Estou morando de novo com meus pais. Isso já faz alguns dias. E você, está feliz com sua nova namorada? – perguntei-lhe no mesmo tom com o qual ele havia questionado sobre minha vida pessoal.
— Estou sim. A Mônica é uma mulher encantadora. Ela tem sido uma boa companheira pra mim.
— Eu não duvido disso. Mas que bom pra você. Alguém tem que ser feliz nessa história toda. Eu te desejo tudo de bom, David. Agora eu vou lá pra mesa, me juntar aos meus pais. Com licença. – Eu me retirei da presença dele. Por sorte, a mesa em que meus pais estavam era do outro lado do salão, e as mesas próximas à minha já estavam ocupadas.
David apenas me observou sair de perto dele sem me dizer mais nada. Ele não disse nada com os lábios, mas com os olhos me transmitiu tristeza e solidão, a mesma tristeza e a mesma solidão que eu vi em sua face no dia em que terminamos nosso relacionamento. Palavras não ditas ficaram no ar.
Uma hora depois eu cheguei ao salão, onde dancei com meu pai, um momento mágico, algo especial que eu só havia feito em meu país em uma festa em que participamos uns anos antes da crise se alastrar e destruir tudo que tínhamos por lá.
A festa durou umas três horas. Pouco antes da meia-noite, notei que a namorada do David despediu-se dele e deixou a festa, mas ele permaneceu no salão, onde conversou com amigos e dançou com as amigas, incluindo a noiva.
Apesar de alguns convidados já estarem indo embora, deixando vazias as mesas próximas à minha, para os que ficavam o clima ainda era de alegria e divertimento. Em dado momento notei que o David não parava de me olhar. Isso significa que também a quase todo momento eu o mirava com um olhar perdido e sem propósito. Como eu já queria ir embora... Mas Juan e meu pai insistiram em ficar mais um pouco.
Uma de minhas músicas favoritas começou a tocar, “Corazón Partío”, do Alejandro Sanz. Notei que David não parava de me olhar. Ele estava sentado à mesa do outro lado. O brilho dos seus olhos se confundia com o brilho das luzes que iluminavam o salão. Mas não era um brilho de alegria, era um brilho de angústia.
Foi naquele instante que meu amigo Juan se aproximou de mim. Eu, que estava ali sozinha, sentada à mesa, vendo os casais apaixonados dançarem juntos, estava prestes a ser acolhida pelas mãos de um amigo. Ele me disse, com seu sorriso tão gentil e semblante radiante que contrastava com seu terno azul marinho:
— Será que minha amiga, a “Rosa Solitária”, me daria a honra dessa dança?
Eu sorri, já em sinal de uma resposta positiva. Eu ainda não havia dançado com ninguém, a não ser com meu pai, desde que havia chegado à festa.
— O clássico da música latinoamericana? Seria quase uma blasfêmia se eu recusasse – respondi, sorrindo.
Segurei sua mão e fomos para o centro do salão. A música agora era “La Barca”. Eu sempre amei essa canção, que dizia a verdade de um coração à espera do amor verdadeiro.
A dança mal havia começado e Juan iniciou suas palavras, enquanto me conduzia nos movimentos leves daquela melodia:
— É impressão minha ou tem um lobo solitário na mesa ao longe que não para de te olhar?
— Não sei do que está falando, Juan. – Me fiz de desentendida, afinal eu queria esquecer aquela realidade por ao menos alguns segundos.
— É claro que sabe. A dor de amar é clara como a luz do sol em seu olhar, e também no olhar do meu velho amigo David – ele me disse.
— Sabe, eu não acredito que ele esteja sofrendo tanto assim. Até está namorando uma linda mulher, professora, que tem quase a idade dele. Deve ganhar um bom salário, é um bom partido – eu lhe disse, expondo minhas razões.
— Eu conheço muito bem meu amigo. Essa é mais uma paixão passageira, daquelas que a gente inventa pra aplacar a solidão – Juan afirmou.
— Viver de paixões inventadas não me parece uma boa escolha.
— Depois que a esposa dele faleceu, eu nunca o vi amar alguém como ele te amou, Rosa Maria. – Juan mais uma vez defendeu o amigo.
— Você me chamou pra dançar ou pra bancar o advogado do melhor amigo? – perguntei, com o riso contido.
— Não pode ser os dois? Dançar com você e defender os interesses de um cara legal e de uma jovem mulher a quem eu tenho muita consideração?
— Até entendo e agradeço sua boa intenção, mas não precisa defendê-lo. Eu sou a causadora de toda a dor. Se eu me afasto dele, é pra não o machucar ainda mais. Eu nunca deveria ter me relacionado com o David, eu sabia que era quase certo as coisas terminarem mal.
— Até onde eu sei, as coisas ainda não terminaram. Minha amiga, ouça o que eu te digo, ouça a música, não desista do seu amor, regresse ao seu amor – Juan insistiu.
— Prometo considerar suas palavras, nobre cavalheiro – fiz a promessa.
— Melhor assim. Final feliz? – Ele sorriu enquanto me girava em mais um passo daquela dança.
***
Quando eu não imaginava que mais alguém se aproximaria para um embalar de corpos, foi a vez do jovem de olhos claros se aproximar da minha mesa para pedir alguns minutos no centro do salão à meia-luz. Bem que eu havia desconfiado de sua demora. Ele tardava, mas nunca falhava.
As palavras do Juan ainda latejavam em minha mente quando Franz, em passos rápidos, se aproximou de mim. Eu ainda me recuperava dos últimos minutos em que passei embalada pelas palavras que mexeram com meu coração. Ele me disse, depois de inclinar seu corpo sobre a mesa:
— Minha linda Rosa proibida, me concederia o privilégio de ter uma última dança?
Eu sorri, ele estendeu sua mão e eu a segurei, respondendo:
— Mas é claro que sim, Franz, agora mesmo. “Corazón Partío”, acho que é a sua música.
— Acertou. – Ele sorriu e segurei sua mão.
Fomos para o centro do salão.
— Se não estou enganado, há um homem tão sozinho e apaixonado naquela mesa que não para de olhar pra você – Franz me disse.
— O David? Ele ficou me olhando durante toda a festa. Não disfarçou nem mesmo quando a namorada ainda estava aqui.
— E você não? – Franz me questionou.
— Tudo bem, eu confesso. Olhei pra ele a noite toda também. – Dei um risinho em seguida.
— E por que só olhar, se você pode ir até ele, abraçá-lo, beijá-lo, sentir o amor verdadeiro?
— Mas o que é isso, Franz? Em vez de me conquistar, está me entregando pro inimigo?
— É um inimigo muito forte.
— Se as coisas fossem tão simples assim, eu bem que faria isso.
— Mas as coisas são simples, Rosa Maria, destruidora de corações. Não seja assim tão resistente – ele me disse.
— Eu? Destruidora de corações? Estou mais pra destruidora de lares. A família do David nunca me aceitou nem jamais me aceitará.
— Sim. Com a sua beleza e doçura arrasou meu coração, arrasou o coração do Nathan e principalmente do pobre David. A diferença é que você ama o David e ele também te ama, apenas precisam se entender. Por mais que a família dele não te aceite, não tem que desistir. Vai lá, fala com ele, dança com ele – Franz insistiu.
— Se você continuar falando assim, é possível que eu vá até aquela mesa e me jogue nos braços dele. Mas ele já tem namorada. Eu não faria isso nessa altura dos acontecimentos – afirmei, demonstrando minha razão.
— Uma namorada que ele não ama tanto quanto ama você. Ela nem está aqui, já foi embora. É a sua chance.
— Só se for a chance de complicar tudo ainda mais – eu disse, enquanto sentia as mãos carinhosas do Franz segurando minha cintura.
***
A dança terminou com o beijo do Franz em minha mão direita e com os olhares deprimidos que o David lançava de longe em minha direção. Enfim era hora de me retirar, era hora de ir embora, antes que meu coração sangrasse ainda mais.
Fui até o Juan pedir para ir para casa. Notei que ele havia bebido durante a festa, mas estava sóbrio, apesar de cansado. Chamei meus pais, que terminaram a noite sentados à mesa, olhando os casais que ainda estavam animados dançando. Meu pai, com seus problemas no coração, não podia beber. Já eu nunca gostei, por isso não tinha esse costume.
Ao sairmos do salão, antes de chegarmos no carro, Juan cambaleou. A bebida o fez sentir sono. Naquele momento, meu pai, muito disposto, se ofereceu para dirigir. Ele considerou que o trajeto até Santa Ana não seria tão longo, e que seria mais seguro para nós se ele conduzisse o veículo, pois Juan não se mostrava em condições.
Estávamos sentadas no banco de trás do carro eu e minha mãe Doralis. O Juan estava ao lado do meu pai Santiago, que conduzia o veículo. Aquela era uma noite de trânsito tranquilo. Dada a hora, poucos carros passavam nas avenidas. Algumas pessoas também circulavam a pé pela cidade.
Uma hora depois, já havíamos entrado em Santa Ana. A princípio, não existia nenhum sinal de que algo pudesse atrapalhar aquele fim de trajeto, afinal poucos carros trafegavam naquela hora pela avenida. Notei que algumas pessoas caminhavam pelas calçadas, a maioria jovens que voltavam de festas.
Mas de repente tudo mudou. Sem que esperássemos, um carro em altíssima velocidade surgiu e entrou na contramão, seguindo em nossa direção. Meu pobre pai, em um impulso para nos salvar da colisão, jogou o carro na direção da calçada, onde havia um homem prestes a subir em sua moto e um poste de luz. O homem foi atingido pelo nosso carro e lançado longe. Todos nós gritamos e, em seguida, colidimos com o poste com força brutal. Depois daquele instante, senti dor e meus olhos se fecharam. Não vi mais nada.
***
Certamente os dias já haviam se passado e, quando abri meus olhos, eu estava deitada em um leito de hospital, com minha cabeça enfaixada e curativos na testa. Notei, ao olhar através do vidro da janela, que do lado de fora do quarto onde eu estava havia um policial que parecia vigiar a porta. Um homem vestido de branco estava ali diante de mim. Era o médico me observando, avaliando meu estado.
— Onde eu estou? O que aconteceu? – perguntei, já me sentindo atônita por dentro devido às lembranças confusas do acidente, que começavam a vir à tona em minha mente.
— Senhorita Rosa Maria, eu sou o Dr. Patterson. Há cinco dias você sofreu um acidente de carro, foi socorrida e já está fora de perigo. Você sofreu uma pancada forte na cabeça, mas não precisou de cirurgia. Também teve uma lesão na coluna, que causou um desvio. Precisará usar colete por um tempo. Sentirá dores, mas com fisioterapia, depois de alguns meses, ficará bem – o doutor me explicou.
— Onde está minha mãe e meu pai? – perguntei pelas primeiras pessoas que me vieram à memória.
— Sua mãe passou por uma cirurgia na perna, mas já se encontra em recuperação no setor pós-cirúrgico. Seu pai, por ter estado na frente, ao volante, sofreu lesões mais graves com o impacto da colisão com o poste, por isso passou por uma cirurgia delicada na cabeça e agora se encontra no Centro de Tratamento Intensivo. Ele está em coma induzido.
— E o meu amigo Juan, que estava ao lado do meu pai? – perguntei, preocupada.
— Seu amigo também se feriu gravemente, passou por cirurgia na coluna e também está no CTI.
— Meu Deus, que tragédia – eu disse, com a voz fraca.
— Durante esses dias, amigos seus estiveram aqui. O David, a Marieta, a Alejandra, Hernandez, o Franz e também um rapaz chamado Nathan. Você não os viu porque estava sedada – o doutor me contou.
— Doutor, por que tem um policial do lado de fora, vigiando a porta do quarto?
— Senhorita, você e seus pais foram socorridos pela polícia depois do acidente. Ao conferirem suas identidades, constataram que são imigrantes sem status. As autoridades acionaram a polícia competente. Agora você e seus pais estão aqui internados sob custódia da polícia de imigração, especialmente o seu pai, que está sob custódia também da justiça criminal. Há outro policial vigiando o CTI onde ele está.
Mesmo naquela situação de fraqueza, senti meu coração palpitar de medo, de angústia. Enfim havíamos sido descobertos pelas autoridades, mas minha mente ainda não compreendia porque meu pai estava sob custódia da justiça criminal.
— Criminal? Por quê? Qual crime meu pai cometeu? Ele apenas desviou de um carro que entrou na contramão e vinha em nossa direção – eu disse, já sentindo as dores que dominavam meu corpo.
— Havia testemunhas no local. Na hora do acidente, quando seu pai desviou do carro que entrou na contramão, ele atingiu um homem que estava prestes a embarcar em sua motocicleta – o doutor esclareceu.
— Sim, agora eu lembro desse momento. É o último do qual me recordo, antes da colisão com o poste.
— Esse homem que seu pai atingiu faleceu na mesma hora. – Recebi a trágica notícia.
— Meu Deus, que horror! Isso não pode ser verdade. – Eu não queria acreditar na gravidade do acidente.
— Mas é a verdade, eu sinto muito – ele lamentou.
— E o motorista que entrou na contramão, o que houve com ele? – perguntei.
— Ele também está gravemente ferido, pois colidiu com outro veículo, gerando outro acidente, também com vítimas fatais. Por isso a justiça criminal está averiguando os fatos para punir o culpado.
— Isso é horrível. Mas meu pai não tem culpa de nada. O homem bêbado é o culpado de tudo.
— Não se altere. Por essa razão foi instaurado o processo criminal, para apurar a responsabilidade de todos os envolvidos.
— Doutor, acredite, meu pai não teve culpa de nada. Eu me lembro de tudo, ele apenas desviou o carro do maluco que entrou na contramão e que iria nos matar – eu disse mais uma vez. Eu não podia aceitar que meu pai pudesse ser incriminado por algo de que ele não teve culpa.
— Sim. Fique tranquila. Essa explicação você dará às autoridades depois que sair daqui.
— Meu Deus! Mas eu juro que meu pai não teve culpa. Foi o louco na contramão.
— Senhorita, se acalme. Tudo será esclarecido no devido momento nos tribunais. Havia testemunhas no local. Foi constatado que o homem que entrou na contramão estava bêbado. Como eu disse, ele também bateu o carro e está hospitalizado. Foi um acidente grave, com várias vítimas, inclusive vocês mesmos. Mas não se preocupe, os fatos serão apurados pelas autoridades competentes e, se seu pai é inocente, isso ficará comprovado. A senhorita não pode se alterar. Vou pedir à enfermeira que aplique em você mais uma dose de sedativo.
— Doutor?
— Sim.
— Quando eu receber alta, serei presa? – eu quis saber.
— Sim. O hospital já recebeu seu mandado de detenção. Você e seus pais serão detidos depois que saírem daqui.
— Então vão me levar pra cadeia, é isso? – Eu estava angustiada.
— Você e sua mãe serão detidas e encaminhadas para o Centro de Detenção de Imigrantes. Não é exatamente uma prisão como as outras, onde ficam reclusos os que cometem crimes; é diferente.
— Diferente como, doutor, se eu vou estar presa? E será que nós vamos ficar muito tempo lá? – Eu já estava mais aflita do que antes.
— Até onde eu sei, vocês ficarão detidos pelo menos durante todo o processo de deportação, se não houver fiança, e enquanto durar o processo criminal do seu pai, afinal vocês são testemunhas do fato. Agora fique tranquila, vou chamar a enfermeira.
— Obrigada, doutor – agradeci com voz fraca.
Mais uma vez o dia amanheceu e eu ainda estava ali, no leito daquele hospital. Minha cabeça ainda estava enfaixada e os curativos permaneciam em minha testa. Eu me sentia bem, apesar de notar meu corpo todo dolorido. Naquele instante a dor em meu corpo só não era maior do que a dor da minha alma por saber a situação grave na qual se encontravam meu pai Santiago e meu amigo Juan. Fiquei imaginando o quanto minha mãe e a Marieta estavam desesperadas por conta da situação de seus maridos.
Eu havia aberto meus olhos há poucos minutos quando a porta do meu quarto se abriu e ele entrou. Sim, o David. Foi o primeiro amigo que eu vi depois do acidente.
— David – chamei pelo seu nome com minha voz ainda fraca.
— Rosa Maria. Como se sente? – Ele se aproximou mais de mim.
— Com muita dor. Que bom ver você aqui – eu disse.
— Eu só não pude vir ontem, mas tenho acompanhado seu estado desde o dia do acidente. Já falei com sua mãe. Ela me parece preocupada, e não é pra menos, mas os calmantes e cuidados médicos estão sendo úteis para deixá-la mais calma.
— Minha pobre mãe não merecia passar por isso. Foi horrível o acidente. Meu pai desviou o carro de um motorista bêbado que entrou na contramão, em nossa direção.
— Estou sabendo de tudo. Houve testemunhas e, conversando com sua mãe, ela me contou mais detalhes.
— O pior é que meu pai e o Juan estão em estado grave. Meu Deus! E pra piorar ainda mais, fomos descobertos pelas autoridades, David. Já estamos sob custódia da polícia de imigração. Meus pais e eu seremos deportados. Saindo daqui seremos presos. Como se não bastasse isso, meu pai ainda está sendo processado criminalmente. Às vezes eu penso se não teria sido melhor ficar no meu país e comer carne de cachorro do que vir pra cá e passar tudo isso. – Eu sentia uma profunda angústia em minha alma.
David se aproximou mais do meu leito, segurou em minha mão e disse, com semblante piedoso:
— Fique calma, Rosa Maria, vamos resolver tudo. A inocência do seu pai será completamente esclarecida e comprovada. Agora não há do que se arrepender. Acidentes acontecem. Poderia ter sido em qualquer lugar onde vocês estivessem. Eu já contatei os advogados e eles farão seu pedido de asilo político e o dos seus pais também. Não se preocupe. Será detida por um tempo, mas dificilmente será deportada. Há um processo longo pela frente. Ainda não falei com o advogado sobre a questão da fiança. A princípio, vocês aguardarão detidas o resultado do processo. Mas não se assuste, não é como um presídio de criminosos, é apenas um centro de detenção onde vocês ficarão sob custódia da polícia de imigração até o fim do processo. Já me informei de tudo. Onde você vai ficar não há celas, são quartos abertos, e você poderá receber visitas todos os dias.
— De qualquer forma, estarei presa e correndo o risco de ser deportada. – Essa era minha preocupação.
— O Nathan enviou um advogado pra ajudar nos processos. Ele esteve aqui pra te ver. Talvez venha hoje de novo.
— O Nathan? – Eu estava surpresa.
— Sim. E o Franz também está muito preocupado com você. É bem possível que eles apareçam aqui hoje ou amanhã.
— E a conta desse hospital deve estar muito alta. Quem vai pagar? Não é justo que vocês arquem com todas as despesas. É muito caro.
— Não se preocupe com isso. As despesas dos serviços médicos serão pagas pelo Fundo Humanitário, que auxilia imigrantes em situações graves, como essa a qual você e seus pais estão passando – David esclareceu minha dúvida.
— Obrigada por tudo, David. Eu agradeço pelo seu carinho nesse momento. Agradeça a todos os amigos por mim. Sem vocês eu não sei o que eu faria. São quatro processos, um deles na esfera criminal. Minha pobre mãe deve estar arrasada com o risco de sermos deportados. – Naquele instante as lágrimas já corriam pela minha face.
— Rosa Maria, esqueça isso por enquanto. O mais importante agora é você cuidar da sua saúde. Precisa se recuperar. Nesse momento, nada pode ser mais importante do que seu tratamento. Conversei com o médico. Você e sua mãe ainda vão ficar mais uns dias aqui no hospital.
— Mais uns dias?
— É necessário.
— E meu pai? E o Juan?
— Seu pai não tem previsão de alta. O Juan também não. Estive com a Marieta ainda hoje, estou ajudando-a com as coisas. Ela está muito abalada, a Alejandra também.
— David, eu agradeço mais uma vez por tudo que está fazendo por mim. Você nem sequer tem essa obrigação de nos ajudar.
— Não precisa me agradecer. Nesse tempo todo eu senti muito a sua falta e vou lutar pra que você e seus pais consigam permanecer legalmente aqui na América.
— Vou ter que ir pra prisão. – Eu chorei mais.
— Não será por muito tempo, no máximo alguns meses. Você é forte e vai superar tudo isso. Não está sozinha. – Mais uma vez David me fortaleceu.
— Obrigada – agradeci novamente, segurando sua mão.
E então havia chegado a hora de sair do hospital e seguir rumo ao meu novo destino, mas antes minha mãe e eu tivemos autorização para ver meu pai e o Juan no quarto do CTI. Eles estavam lá, lado a lado, dividindo a mesma dor e inconscientes.
Vestida naquela roupa azul, máscara, luvas e uma touca na cabeça, eu me aproximei do leito do meu pai, que, adormecido, nem sabia que eu estava ali. Naquele instante, ao vê-lo todo entubado, debilitado, senti muita piedade e saudade, saudade dos dias bons em que estive com ele, e arrependimento por ter ficado afastada por um tempo devido às rixas que eu tive com minha mãe.
— Meu pai querido, volta logo pra gente. Eu te amo tanto, pai. Por favor, me desculpe por não ter dito isso mais vezes. Você é meu herói. – Acariciei as mãos dele, olhando-o fixamente. As lágrimas corriam pelo meu rosto.
Depois de alguns minutos, me aproximei do leito do Juan. Meu pobre amigo estava ali, sofrendo, adormecido, correndo o risco de ficar paraplégico para o resto da vida.
— Juan, meu amado amigo, eu sinto muito por tudo. Eu não consigo acreditar que tudo isso está acontecendo. Nós éramos tão felizes juntos. Mesmo na minha situação, hoje eu enxergo que eu era feliz com vocês, pelos jantares, nossa amizade... Lute, meu amigo, lute para ficar bom. Estou pedindo a Deus que livre você e meu pai do pior – eu disse, enquanto acariciava sua mão.
Meus minutos se esgotaram e foi a vez da minha mãe entrar no quarto. Um policial nos aguardava do lado de fora. Olhando pelo vidro da janela do quarto, pude perceber as mãos de minha tremendo ao se aproximar do meu pai. Tudo era surreal e assustador naquele instante.
***
Enfim minha mãe e eu fomos conduzidas pelos policiais de imigração, primeiramente até a delegacia, onde prestamos depoimento sobre o acidente e sobre nossa condição de ilegais, e depois voltamos para o carro da polícia, que nos levou ao Centro de Detenção de Imigrantes.
Aquele era um momento de angústia. Mal sabíamos do que ainda estaria por vir. Minha família estava separada, pois não havia previsão de quando meu pai sairia daquele hospital.
A angústia dominou minha alma dentro daquele carro da polícia, e as lágrimas que não paravam de correr pela face de minha mãe eram a prova da sua imensa dor e pesar, tanto pela situação grave do meu pai quanto pelo medo de que fôssemos deportadas.
Apesar de não ser uma prisão para criminosos, ao chegarmos em frente ao Centro de Detenção de Imigrantes, a sensação que tive era de estar entrando em um presídio comum. Havia grades, arames farpados e cercas elétricas que circundavam o local. Tudo estava bem cercado e muito bem vigiado. Sim, ali era uma prisão.
O local abrigava tanto imigrantes homens quanto mulheres, e os grandes dormitórios não possuíam janelas, tinham camas de ferro com colchão bem fininho. Os quartos eram separados em duas alas, a masculina e a feminina, e havia também a área do refeitório, com várias mesas e os banheiros.
Eu e minha mãe recebemos nosso uniforme azul. Todas as presas tinham que vestir aquela mesma roupa para identificar que éramos imigrantes detidas. Lá recebíamos três refeições por dia, comidas enlatadas; às vezes serviam frango assado. Para a nossa condição, a dieta até que era boa, sempre acompanhada de uma fruta.
Lá dentro da prisão havia um computador chamado de comissária, através do qual poderíamos fazer transações bancárias para receber dinheiro de familiares ou amigos. Com esse dinheiro podíamos comprar as coisas necessárias lá dentro, pois o único material de higiene disponibilizado gratuitamente para as presas era a pasta de dente; qualquer outra coisa que quiséssemos ou precisássemos, como shampoo, creme, sabonete, tínhamos que comprar.
Havia dias em que nos reuníamos em grupo de mulheres para fazer uma limpeza geral. Não era obrigatório, mas era necessário para termos o ambiente mais limpo. Nos pagavam um dólar por semana pela limpeza. As coisas dentro da prisão custavam muito mais caro do que do lado de fora. O que nos mercados comuns custava um dólar, lá dentro custava três.
Havia três telefones em cada dormitório, mas também tínhamos que pagar pelas ligações que quiséssemos fazer. Não era permitido receber chamadas, apenas realizá-las, durante quase todo o dia, geralmente até as onze horas da noite.
As visitas eram permitidas todos os dias, uma hora por dia, geralmente durante a tarde. Havia uma espécie de pátio com mesas e quatro cadeiras ao redor de cada uma. As presas ficavam na cadeira cinza. Nossas mãos tinham que ficar em cima da mesa para mostrarmos que não estávamos recebendo nada. Era permitido abraçar e beijar os visitantes. Havia guardas nos vigiando o tempo todo, portanto não era possível nem pensar em fugir dali.
No centro de detenção havia uma área de esportes com academia, espaço para jogar vôlei, videogame e uma biblioteca. E era na biblioteca que eu passava a maior parte do meu tempo. O sonho de estudar, cursar a faculdade e ser aquilo que eu sempre quis de certa forma ainda estava dentro de mim.
Mas essa não era a realidade de todos os centros de detenção do país. No Texas, por exemplo, muitos centros já estavam superlotados. Os imigrantes detidos, homens, mulheres e crianças, eram amontoados em espaços onde mal cabiam deitados. As condições de saúde e higiene também eram precárias: quatro chuveiros para 700 pessoas, faltava comida, faltava cobertor, faltava tudo. A maior parte desses imigrantes haviam entrado ilegalmente no país, pelo deserto ou mesmo pelo mar, vindos das Bahamas.
***
A primeira visita que eu e minha mãe recebemos foi de um dos nossos advogados, o doutor Rivera, especialista em Direito de Imigração. Aquela figura alta, esbelta, de sorriso simpático, trajada em seu terno cinza estava ali, sentada à mesa diante de minha mãe e eu. Depois de nos apresentarmos e dos cumprimentos com apertos de mão, iniciamos a conversa pela qual tanto ansiávamos:
— Então, doutor, qual é a nossa situação? Tem notícias do meu pai? – perguntei.
— Senhorita Rosa Maria, senhora Doralis, o processo de deportação e os processos de pedido de asilo já se iniciaram e estão correndo junto com o processo criminal do qual vocês são testemunhas e o senhor Santiago é réu. São processos longos, dadas as circunstâncias – o doutor nos explicou.
— Meu pai? Réu? Mas ele é inocente. Ele apenas desviou o carro do bêbado que entrou na contramão em nossa direção. Meu pai não pode ser condenado pela morte daquele motoqueiro. Ele não tem culpa – eu disse, já sentindo dores no meu estômago e na minha coluna vertebral. Eu estava usando o colete ortopédico que pouco impedia a dor nos momentos em que eu me abaixava.
— Doutor, o meu marido é só mais uma vítima desse acidente terrível – minha mãe afirmou, com uma lágrima correndo em sua face.
— Se acalmem. O senhor Santiago no mínimo será condenado por dirigir sem carteira de motorista. Quanto ao homicídio, os fatos já estão sendo apurados. Meu colega advogado, o doutor Sanchez, contratado pelo seu amigo Nathan, vai me ajudar com os processos. Vamos lutar pra provar a inocência do seu pai e para conseguirmos o asilo político pra vocês – o doutor explicou.
— Em quanto tempo sai o resultado do nosso pedido de asilo político? – perguntei, já mais calma.
— Vai demorar pra sairmos, doutor? Quanto tempo ficaremos aqui presas? – minha mãe quis saber.
— O processo de asilo político, como eu disse, já começou, ainda quando estavam no hospital. Não há um tempo certo para sair o resultado, mas farei de tudo para que tenhamos uma resposta em poucos meses. Verei a questão da fiança para que talvez vocês possam responder ao processo em liberdade.
— Doutor, se a fiança ficar cara, eu e minha mãe podemos esperar o resultado dos processos aqui mesmo. Nossos amigos já estão pagando os honorários advocatícios, não seria justo que ainda paguem por nossas fianças – minha mãe disse.
— Transmitirei esse recado ao David e ao Nathan, que estão arcando com nossos honorários. Mas tenham calma e paciência. Tudo o que é possível será feito para que vocês permaneçam legalmente nesse país – o doutor assegurou.
— Doutor, aqui não tenho acesso às minhas redes sociais, por isso quero pedir que o doutor monitore as mensagens que recebo pela internet e me informe sobre tudo que está acontecendo no mundo lá fora – fiz o pedido.
— Tudo bem, senhorita, eu posso monitorar suas redes sociais e anotar as mensagens que recebe.
— Obrigada, doutor. Anote meu login e senha.
— Sim, vou pegar minha agenda. – Ele retirou um caderninho de sua maleta.
— Somos gratas por tudo, doutor. Tem notícias do meu marido? Ainda não falou nada sobre ele – minha mãe comentou sobre o que mais a angustiava.
— O seu marido continua em situação delicada. Ainda não está consciente.
— Meu Deus! Pobre Santiago. – Minha mãe começou a chorar.
— Antes que eu me esqueça, amanhã haverá a primeira audiência diante do juiz de imigração. E na semana que vem haverá audiência do processo criminal – o doutor Rivera nos disse, depois de guardar seu caderninho na maleta.
— Tudo bem, doutor, vamos nos preparar – respondi, com o coração apertado por perceber as lágrimas da minha mãe.
Depois da conversa com o doutor Rivera, voltamos para nosso quarto. Minha mãe estava ainda mais deprimida. Ela já não era nem de longe a mulher alegre e vaidosa que foi um dia. E eu também não. Mas eu precisava ser forte naquele momento, afinal minha mãe precisava de mim. Assim, tive que ser mais forte do que nunca. O pior de tudo era a situação grave em que meu pai se encontrava. Havia sim o risco de morte, e isso atormentava a minha alma.
Foi quase impossível meu coração não acelerar. Naquele momento eu estava ali, no pátio da prisão, diante dele, David, o homem que eu tanto amei. Aquela foi a primeira visita sua que recebi na prisão.
Quando me aproximei, ele já me esperava sentado à mesa. Sorri sem graça e pronunciei seu nome:
— David. – Sentei-me à mesa diante dele.
— Rosa Maria. – Ele fitou-me com seus olhinhos lacrimosos de piedade, certamente por me ver naquela situação, e segurou minha mão esquerda.
— Eu não esperava vê-lo aqui hoje. Na verdade, eu até achei que você não viria mais.
— E por que eu não viria? Não há motivos pra pensar assim. Eu sinto sua falta na minha vida, Rosa Maria. Lamento muito por tudo que você e sua família estão passando.
— Mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer, de um jeito ou de outro. Enfim, aqui estou, na prisão, justamente no lugar que eu tanto temi, e vivendo uma situação pior e mais complicada do que eu imaginei – eu disse, sentindo meus olhos umedecerem. – Meu pai está entre a vida e a morte e o Juan paraplégico.
— Eu sei, sei de tudo isso. Eu, mais do que ninguém, vi de perto a sua história, seus dramas, a sua dor, até porque eu vivi uma parte dela. Entendo o que você está sentindo, mas você precisa ser forte, agora mais do que nunca. Saiba que eu estou e estarei sempre aqui, do seu lado. Enfrento com você o que vier. – David declarou sua lealdade a mim.
— Sabe, a essa altura dos acontecimentos eu já nem me importo mais se vão me deportar, se eu vou ter que voltar pro inferno de onde eu vim ou continuar nesse aqui. – Eu já estava chorando.
— Não fale assim. Aqui você tem seus amigos e muito mais dignidade do que lá em seu país. Ainda há grandes chances de você permanecer aqui legalmente. Você precisa ter fé. Não perca as esperanças. Os advogados estão otimistas. Eu acredito que vai conseguir, mas você também precisa acreditar.
— Depois de tudo o que já aconteceu, depois de tantas coisas que eu passei até chegar aqui, entendo o que levou meu país a se transformar naquele mar de desespero. Eu quero acreditar que vou conseguir, mas o fato é que já não confio mais em governo nenhum.
— Compreendo sua desilusão, sua decepção com a realidade, mas as coisas são assim, e precisamos lutar com os recursos que temos agora.
— David, é a disputa pelo poder, é a luta pra ver quem detém o povo nas mãos que levou meu país ao desespero, à miséria. Os governantes desse mundo buscam apenas seus próprios interesses, sempre foi assim e sempre será. Caso contrário, eu não teria acordado naquela manhã com meu estômago doendo por quase não ter o que comer e presenciado aquela cena horrível pela janela do meu quarto: meus vizinhos comendo carne de cachorro pra não morrerem de fome.
— Entendo a sua dor e descrença, mas agora é tudo ou nada.
— É em momentos como esse que a maldade e a ganância humanas assustam, até o instante em que temos que encontrar meios de escapar do pior. E então chegava a minha hora de tentar fugir e aqui estou pagando um preço alto.
— Você tem razão no que diz, meu amor. Não pode imaginar o quanto estou sofrendo por tudo isso. Eu ainda te amo como nunca amei ninguém – David se declarou mais uma vez, depois de tanto tempo separados.
— Não diga isso, David. Você ainda me ama? Mas e a Mônica? Não é justo com ela.
— Eu não amo a Mônica, e não estamos mais juntos. Nós demos um tempo. Rompemos nosso relacionamento.
— Isso não está certo. Será que você não enxerga que eu estou aqui presa, usando esse uniforme de detenta, correndo o risco de ser deportada e que por isso o nosso amor não pode acontecer? – Tentei fazer com que ele enxergasse as impossibilidades que eram o obstáculo à nossa união.
— Rosa Maria, o fato de você estar presa não me impede de te amar. Meu coração não se importa com seu uniforme azul, não se importa se você está presa ou não, não se importa se você é legal ou ilegal. Eu posso até ter paixões passageiras, mas é você que eu amo – ele disse, acariciando meu rosto.
Naquele momento eu me levantei.
— Eu agradeço muito por ter vindo, mas o horário de visitas está terminando e eu preciso ir pro quarto deitar e descansar. Estou com dores na coluna. É tanta coisa acontecendo – eu disse.
David levantou-se e se aproximou de mim.
— Eu vou sim. Tenho aula na universidade ainda hoje. Mas volto ainda nessa semana. Descanse. Eu quero te ver boa – ele me disse.
— Obrigada por tudo que tem feito por mim e pela minha família. Com o seu carinho eu me sinto em paz, pelo menos por um momento. – Sorri de modo tímido, beijei o rosto dele e me retirei.
Andei depressa até meu dormitório, deitei-me na cama e, com a cabeça sobre o travesseiro, derramei mais uma lágrima.
***
Ainda naquela semana o doutor Rivera me trouxe mais notícias. Sentei-me à mesa com o coração palpitante. A ansiedade já fazia parte de mim, ainda mais depois que havia sido presa.
— Doutor, que bom receber sua visita – eu disse.
— Rosa Maria, você me pediu que eu cuidasse de suas redes sociais e respondesse às mensagens de seus amigos – ele iniciou a conversa.
— Sim. Alguma novidade?
— Seu amigo Endry enviou uma mensagem pra você – o doutor me disse, deixando-me com meu coração batendo mais forte.
— O Endry?
— Sim, ele mesmo. Eu imprimi a mensagem. Aqui está, pode ler. – Ele me entregou a folha.
A mensagem que abalou meu coração dizia:
“Rosa Maria, único e verdadeiro amor da minha vida, escrevo essa mensagem pra te dizer que estou regressando ao nosso tão sofrido país. Meu casamento com a Gianna acabou, acabou porque eu nunca a amei e eu nunca a amei porque eu amo você. Por isso estou voltando à nossa terra pra lutar pela liberdade e dignidade do nosso povo e da nossa nação. Sei que as coisas por lá pioraram muito. Os países aliados enviaram até aviões porta-mísseis nucleares para ajudar o ditador do nosso país a manter seu governo totalitário. Mas o mundo já se mobiliza contra esse absurdo e vários países estão do nosso lado. Uma dura e necessária guerra se inicia e eu estarei lá para lutar pelo futuro da nossa gente. Espero te encontrar de novo em um mundo melhor do que esse no qual vivemos agora.
Do homem que sempre vai te amar,
Endry.”
Minhas mãos tremeram e as lágrimas caíram dos meus olhos durante todo o tempo em que eu li a carta de Endry, meu primeiro e grande amor. Aquele rapaz me amou de verdade e eu também o amei. Passou um filme de nossas vidas em minha mente. O passado em que nos amamos, em meio ao caos, jamais seria apagado da minha memória. Lembrei-me da nossa primeira vez na gruta, quando ele me pediu em namoro. Foi tão lindo. Ao lado do Endry eu sentia como se o mundo estivesse em paz. Éramos apenas dois jovens estudantes com o sonho de nos graduar na universidade, ter uma carreira, construir uma família. Mas esse sonho foi interrompido por um governo corrupto que preferia ver seu povo morrer de fome do que lhe dar a liberdade.
— Doutor, por favor, responda ao Endry que eu também o amo muito e que também espero reencontrá-lo em um mundo melhor. Pode contar a ele sobre minha situação atual.
— Farei isso, senhorita.
— Obrigada, doutor.
Ainda no início daquela manhã, minha mãe e eu recebemos a visita inesperada do doutor Rivera. Quando chegamos ao pátio de visitas, o doutor estava próximo à mesa, esperando-nos. Notei seu semblante sério. Ele era alto e robusto, o que aumentava ainda mais seu ar austero.
— Doutor, que surpresa vê-lo aqui, fora do horário habitual de visitas – eu disse, já dominada pela ansiedade. O clima não era bom.
— Alguma notícia, doutor? – minha mãe perguntou-lhe, com voz desanimada.
— Senhora Doralis, senhorita Rosa Maria, infelizmente não trago boas notícias – ele começou a falar.
— O que aconteceu, doutor? Fale logo! – Meu coração já estava acelerado naquele momento.
— Eu sinto muito informar. O senhor Santiago faleceu nessa madrugada. Ele não resistiu. Eu lamento. – O doutor nos deu a trágica notícia.
— Não, doutor, isso não pode ser verdade. Meu marido não pode ter morrido. Ele é tudo pra mim. Isso tudo só pode ser um pesadelo! – minha mãe exclamou, caindo em prantos.
— Meu Deus! Que desgraça. Eu não consigo acreditar nisso. Como a vida é injusta! – Também caí em prantos. Minha mãe e eu nos abraçamos e choramos juntas.
Aquela foi a pior notícia da minha vida e, com certeza, da vida da minha mãe também. Eu mal podia aceitar que meu pai havia morrido. Um filme passou pela minha cabeça, um filme de tudo o que havíamos vivido até ali.
— Como seu representante legal, senhora Doralis, autorizei a cerimônia de cremação. O David se encarregou de tudo e vai guardar as cinzas do senhor Santiago. Eu consegui a permissão judicial pra que vocês duas assistam à cerimônia de cremação. O velório já está acontecendo. Seus amigos Juan, Alejandra, Marieta, David e Franz estão lá e as esperam. Vocês serão escoltados por dois policiais. Vamos. – O semblante do doutor era de piedade, seus olhos estavam lacrimosos.
***
Foi horrível ter de dizer adeus ao meu amado pai. Ele, que se sacrificou tanto por mim e por minha mãe, já não estava mais entre nós. Naquele momento eu me dei conta do quanto eu amava meu pai, do quanto sua presença, seus carinhos e conselhos me fariam falta.
Depois que cheguei ao crematório com minha alma devastada, abracei meus amigos, um por um, me sentindo acolhida por todos. Mas foi nos braços do David em que fiquei mais tempo. Naquele instante de mais puro sofrimento, somente ele me fazia sentir um pouco de paz.
Após os abraços, minha mãe e eu nos debruçamos sobre o caixão dentro do qual estava o corpo do meu pai. Sobre ele derramei muitas lágrimas e palavras de arrependimento pelos meses que eu havia passado longe dele.
Ainda naquela semana recebi notícias de que haviam se iniciado protestos em meu país contra o governo. Milhões de pessoas foram às ruas da capital protestar e exigir que o presidente ditador renunciasse e, assim, libertasse o povo daquele cativeiro de fome e miséria.
Certamente o Endry estava entre essas milhões de pessoas, que decidiram não mais se calar diante das barbaridades e calamidades que lhes sobrevinham. Sim, ele foi meu herói, meu grande exemplo, o homem que me mostrou o amor pela primeira vez.
***
Naquela tarde recebi mais uma visita do doutor Rivera. Ele havia me trazido mais notícias. Sentei-me à mesa. Diante dele eu estava apreensiva. Como sempre, seu semblante era sério.
— Rosa Maria, o pai do Endry enviou uma mensagem pra você. É importante que você saiba que os conflitos em sua terra se intensificam cada vez mais. Os Estados Unidos cogitam a possibilidade de invadir seu país. O conflito está na iminência de acontecer. Os protestos e a revolta do povo são intensos – o doutor revelou, já me alertando para o pior.
— Meu Deus! Haverá guerra então?
— Provavelmente. Há um dia, em sua nação, iniciou-se uma espécie de confronto final entre opositores e apoiadores do atual presidente. Como você sabe, há um outro presidente autoproclamado. De um lado estão aqueles que são a favor do governo atual, incluindo o exército. Eles lutam contra os rebeldes e pretendem prender o presidente autoproclamado. Do outro lado estão aqueles que são contra o sistema atual, que lhes levou à miséria. Lutam pra expulsar o presidente. É uma guerra civil.
— Que horror! Mas me dê logo a mensagem, eu quero ler.
— Sim, aqui está. – Ele entregou o papel em minha mão.
A mensagem dizia:
“Querida Rosa Maria, a essa altura você já deve saber que as coisas aqui nesse país chegaram ao limite do que poderíamos suportar. Por isso o Endry e eu decidimos voltar e lutar pela nossa terra, pelo nosso povo. Na última segunda-feira, o povo, já massacrado e ferido por um sistema político corrompido, saiu às ruas para brigar e exigir que o governo atual seja expulso e o presidente autoproclamado assuma todo o controle do país, pelo menos temporariamente, até que novas eleições sejam convocadas. Quero que saiba, cara jovem, que em todo esse tempo o Endry pensou em você quase todos os dias, ele me disse muitas vezes depois que voltamos pra cá que você foi e sempre será a mulher que ele mais amou nessa vida. Ontem, enquanto lutávamos em confronto contra o exército do governo oficial, o Endry foi brutalmente atropelado por um dos tanques de guerra dirigido por um soldado enfurecido que tentava parar os manifestantes contrários ao seu presidente ditador. Meu filho morreu com a certeza de que fez a coisa certa. Não fugiu da luta. Ele morreu com a certeza de que um dia amou e foi amado por você, Rosa Maria. Não se sinta triste, pois o Endry sempre desejou que você fosse feliz. Um abraço e que Deus te proteja.”
Enquanto eu lia essas palavras, meus olhos se encheram de lágrimas. Foi impossível meu coração não acelerar de tanta dor. Naquele momento eu tive a certeza de que o Endry foi o primeiro grande amor da minha vida, o meu herói. Morreu como o mais valente dos homens. Lutou até o fim pelo nosso povo, pela nossa terra. Naquele instante eu só lamentei por não ter aproveitado mais os dias em que ele esteve do meu lado.
Foi impossível evitar a lembrança dele tocando pra mim no violão a música “Save me Now”, com seus olhos cheios de amor e carinho ao me olharem. Como eu poderia esquecer o homem que me amou de verdade? Amores verdadeiros jamais esquecemos, pelo contrário, eu os guardo para sempre em meu coração.
Infelizmente, algumas vezes na vida só nos damos conta do quanto amamos alguém depois que perdemos essa pessoa para a morte. Nossa mente imatura tende a acreditar que as coisas e as pessoas durarão ou existirão para sempre. Mas não é assim. De repente, sem esperar, tudo muda, e quem tanto amamos se vai. E então tudo que nos resta é o vazio, a solidão e a frágil possibilidade de resgatar a fé antes perdida pelas dores da vida.
Toda vez que eu fechava meus olhos, via o rosto do Endry diante de mim. Durante alguns dias depois de sua morte eu não consegui dormir. Era impossível não chorar, era impossível não sofrer, era impossível não sentir a dor desse adeus.
Eu estava sem sono. Já passava da meia-noite quando nós, presas, sentimos o chão tremer. Sim, era o início de um terremoto. Outros tremores já haviam ocorrido dias antes. Estávamos longe do epicentro, mas ainda assim sentimos a terra tremer. O sul da Califórnia, principalmente a região sul, sofria a constante ameaça de um grande abalo sísmico em grau, que poderia ocorrer a qualquer momento.
Depois de alguns segundos tudo se acalmou. Mas, diante de todas as coisas pelas quais eu já havia passado, eu não temia mais nada, nem mesmo essa possiblidade de tudo desabar.
***
O horário de visitas já estava quase terminando. Como até aquele momento ninguém havia aparecido, permaneci no dormitório, encolhida na cama, lendo um livro.
Foi quando minha mãe entrou e disse:
— Rosa Maria.
— Sim, mãe – respondi.
— Chegou visita pra você. Tem alguém te esperando lá no pátio – ela me avisou.
— Alguém? Quem? – Eu estava curiosa.
— Vá e veja você mesma.
Eu saltei da cama e fui até o pátio de visitas.
Para a minha surpresa, era o Nathan que estava ali, me esperando, com sua face angelical, seu sorriso acolhedor, sua gentileza e humildade.
— Nathan! Você aqui? Estou surpresa – exclamei.
— Rosa Maria, eu vim me despedir – ele começou a falar.
— Despedir? Vai deixar a Califórnia? Medo dos terremotos?
— Sim. Mas não vou deixar a Califórnia por causa dos terremotos. A viagem foi decidida antes disso – ele me respondeu.
— Não me diga que vai voltar a viver com seus pais no Caribe?
— No Caribe não. Na verdade, meus pais se divorciaram, por isso minha mãe está indo embora de volta pra Portugal. Então eu pensei “vou com ela”, pra mudar de ares e principalmente pra apoiá-la nesse momento difícil. Sabe, a decisão foi do meu pai e ela ficou muito abalada. Mas já aproveito e fujo do terremoto também – ele me disse, com um riso de descontração.
— Entendo. Eu, assim que conseguir o asilo político, volto correndo para Ocean City, bem longe daqui. Enfrento tudo, mas não gosto de terremotos. Sobre seus pais, não deve ser fácil terminar um casamento de tantos anos. Eu lamento pelo divórcio deles.
— Coisas da vida – Nathan me disse, já cabisbaixo.
— Mas e seus estudos? Vai largar a faculdade?
— Vou continuar a faculdade em uma universidade portuguesa.
— Mas é claro! Que cabeça a minha. Universidade boa tem no mundo inteiro.
— Sentirei muita falta daqui, mas vai ser bom.
— Então espero que você seja feliz nessa nova etapa. Nathan, eu sou muito grata por tudo que você tem feito por mim e pela minha mãe. Espero poder te retribuir algum dia.
— Se faço o que faço, é porque acredito que vai dar tudo certo e tão logo você e sua mãe estarão livres novamente e poderão seguir em paz com suas vidas. O advogado me manterá informado de tudo. E, antes que eu me esqueça, lamento pela morte de seu pai.
— Obrigada pelos seus bons sentimentos.
— Rosa Maria, você já me retribuiu.
— Retribuí? Como?
— Com todos os momentos bons que eu e você vivemos juntos. Você foi e continua sendo o grande amor da minha vida – ele se declarou pra mim.
— Continuo sendo? Mesmo presa, vestida nesse uniforme azul?
— Sim, mesmo presa e de uniforme azul. Você é linda de qualquer maneira.
— Não sei dizer se foi amor, mas tenho certeza de que na minha vida você foi uma grande paixão, Nathan. Obrigada. Eu vou sentir sua falta também. – Eu o abracei fortemente.
— Quando você conseguir o seu asilo, saia mesmo da Califórnia, é mais seguro – ele me aconselhou.
— Tudo bem, vou embora para o estado mais seguro desse país – prometi.
Depois daquele abraço, Nathan me beijou e foi embora. Aquele anjo seguiu seu caminho e deixou em minha alma as boas lembranças de como é ter amor e carinho verdadeiros.
***
Os dias se passavam tristes e permanecia o desconsolo dominando o meu coração dentro daquela prisão. Minha pobre mãe havia piorado da depressão, suportava o dia-a-dia à base de remédios controlados. Sua alma não se conformava com a morte de meu pai. Ela se sentia muito sozinha, mesmo tendo os amigos por perto; sempre que podiam, eles estavam lá.
Recebi notícias de que finalmente o Franz estava namorando a Katty. Os dois haviam se conhecido no hotel. Ela era assistente de cozinha da Alejandra, minha colega de trabalho. Cheguei a conhecê-la antes de abandonar meu trabalho no Hotel Ilhas Cayman. Fiquei feliz por ele, afinal ele era um homem que merecia toda a alegria do mundo.
***
Naquela tarde o doutor Rivera nos esperava para conversar. Minha mãe se recusou a se levantar da cama. Para ela, depois da morte do meu pai, nada mais importava. Qualquer notícia que o doutor desse para ela não haveria mais significado.
Respirei fundo e, em passos apressados e ansiosos, me dirigi ao pátio de visitas. Parte das minhas esperanças havia se perdido. Eu não imaginava qual notícia chegaria aos meus ouvidos.
Sentei-me à mesa diante do doutor. Dessa vez seu semblante reluzia paz e satisfação, fazendo com que eu deduzisse que não parecia se tratar de uma notícia ruim.
— Oi, doutor – eu disse.
— Como tem passado, Rosa Maria? – ele perguntou.
— Tirando a saudade que eu sinto do meu pai, até que estou bem. Já não posso dizer o mesmo sobre a minha mãe. Ela está muito deprimida. Na verdade, piora a cada dia.
— Pois eu trago-lhes uma boa notícia. Acredito que é a melhor que vocês já receberam até agora. Pode ser que, depois de saber de tudo, sua mãe se anime a retomar a vida.
— Qual é a notícia?
— Rosa Maria, saiu o resultado dos processos de asilo político. Nós conseguimos! O asilo foi concedido a você e à sua mãe. Amanhã mesmo, bem cedo, vocês estarão livres pra sair daqui e viverem suas vidas em paz. Dentro de algum tempo poderão entrar com o processo de Green Card. Acabou o tormento. Apenas teremos que passar no consulado para realizar alguns procedimentos burocráticos.
Meu coração acelerou de emoção. Enfim, depois tantas coisas ruins, depois de tanto implorar a Deus por um futuro, eu havia conseguido algo pelo qual tanto lutei com a ajuda dos meus amigos: o direto à minha dignidade.
— Doutor, eu realmente estou emocionada. O preço foi alto, mas enfim nós conseguimos. Eu estarei livre para viver a minha vida onde eu quiser nesse país! – exclamei, com meu coração batendo mais forte de alegria.
— Sim, você conseguiu. Agora não precisa mais chorar. É hora de ser feliz, Rosa Maria. – O doutor sorriu pra mim.
— Eu vou agora mesmo correndo contar tudo pra minha mãe. – Enxuguei minha lágrima de alegria e levantei-me.
Corri até o dormitório. Ao entrar, chamei por minha mãe, que naquele instante se encontrava adormecida pelos efeitos do remédio.
— Mãe, acorda! Acorda! – exclamei à beira de sua cama, chacoalhando-a pelo braço.
Minha mãe abriu os olhos aos poucos, erguendo-se na cama vagarosamente.
— Minha filha, o que há? O que aconteceu? Por que me acordou? Outro terremoto? – ela perguntou, meio zonza.
— Não, mãe, não é nenhum terremoto. O advogado esteve aqui. Nós conseguimos! Nós conseguimos, mãe! Nos concederam o asilo! Amanhã de manhã estaremos livres para viver nossa vida em paz, sem medo. Podemos ir pra outro estado, longe das calamidades. Enfim conseguimos, mãe!
— Ah, minha filha! Eu queria tanto que seu pai estivesse aqui pra viver conosco esse momento. – Ela me abraçou.
***
Depois de pisar meus pés fora da prisão, enfim pude sentir, depois de tanto tempo, a sensação da verdadeira liberdade. Respirei fundo, me preparando para seguir em frente. Naquele instante, vislumbrei a chance real do futuro com o qual eu sempre sonhei. Minha mãe estava ao meu lado. Ela sempre havia sido minha heroína, apesar de todos os desentendimentos que tivemos.
Pude vislumbrar aqueles que me amavam de verdade do outro lado da rua, me esperando de braços abertos para me ajudarem no meu recomeço. Eram eles os meus amigos Juan (na cadeira de rodas), Marieta (com o bebê no carrinho), a Alejandra, o Franz, a Katty e o David.
Sim, ele também estava lá, do outro lado da rua, me esperando. O homem que me amava de verdade, que esteve comigo nos momentos mais difíceis. Aquele que esteve disposto a enfrentar todos os obstáculos pra ficarmos juntos estava ali, diante de mim, de braços abertos para um novo tempo.
Eu sorri para os meus amigos, que também sorriam pra mim. Aquele era o meu maior presente. Corri em sua direção e os abracei um por um. Depois chegou a vez de abraçar o David. Antes disso, ele me olhou profundamente e sorriu, dizendo:
— Você conseguiu, meu amor. Agora está livre pra viver sua vida e ser feliz.
— Sim, eu consegui, e com a ajuda de vocês, meus melhores amigos. Estou livre pra sempre – eu disse, emocionada.
— Eu amo você, Rosa Maria – David declarou mais uma vez seus sentimentos por mim.
— Eu também amo você, David, como nunca amei ninguém. – Eu o abracei e senti seu carinho.
Depois daquele abraço, depois de tanto tempo, enfim eu pude sentir novamente David acariciar minha mão esquerda como na primeira vez em que nos beijamos. Naquele instante eu percebi, como nunca antes, que meu amor por ele era mais forte do que tudo, mais forte que o medo, mais forte do que a mágoa, mais forte do que as lembranças ruins. Eu lhe disse:
— Essa é a minha razão de te amar. Todas as coisas boas que você fez por mim, todos os momentos bons e ruins que passamos juntos são a prova de que o nosso sentimento é verdadeiro.
Sim, o amor verdadeiro é esse: aquele que está conosco até o fim. Os obstáculos e dificuldades sempre existirão, as perdas acompanham os ganhos, mas, se houver amor, todas as barreiras podem ser enfrentadas e o fardo se torna mais leve. Tudo o que eu vivi valeu a pena porque, enfim, eu estava ali com ele, com o David, o anjo que para sempre faria parte da minha vida.
Jamila Mafra
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