A França do século XVII é um país de maioria católica e a seu rei interessa manter apenas uma religião oficial no Estado. Luís XIV, personificação máxima do absolutismo, governa segundo o ideário de seus antepassados: "uma fé, uma lei, um rei". Com relação aos protestantes, que na França são chamados "huguenotes", no início de seu governo garánte-lhes a relativa liberdade estabelecida no Edito de Nantes.
Logo, porém, sucumbindo a pressões, o Grande Rei fecha os olhos às sucessivas perseguições aos "hereges", até torna-las oficiais. A partir de 1680, os Dragões aterrorizam e torturam os que não se convertem. E seus métodos são tão eficientes que em poucas semanas regiões inteiras (como o Poitou e o Languedoc) aparentemente tornam-se católicas. Oficializada a repressão em 1685, a ordem dè destruir os locais de encontro e abolir o culto protestante é cumprida com força terrível: homens são torturados, mulheres são chicoteadas, pastores executados.
Nesse ambiente de revolução, Angélica, de volta de sua fracassada expedição amorosa ao Oriente, tem de decidir-se entre a submissão total ao exigente monarca e a solidariedade a seus
Massacrados compatriotas...
"Seja minha amante", suplica o Rei-Sol apaixonado. "Confie em mim. Fale-me, eu a escutarei. Obedeça-me, eu a obedecerei...''
À frente da coluna de revoltosos, atravessando o cenário familiar de árvores, águas e pântanos que lhe moldara a alma, Angélica sentia-se sufocar ao pensar no passado.
Às suaves lembranças de uma infância feliz, vinham sobrepor-se emoções recentes. Como a amarga despedida de Colin Paturel, rei dos cativos do Marrocos, após a longa odisseia através do deserto. Ou as loucuras que cometera à procura do grande amor de sua vida, -um sonho a esfumar-se a distância como as cidades misteriosas por onde passara.
O rompimento com o rei da França lançara-a de volta ao caos. No entanto, estar entre os lambris suntuosos e as honrarias de Versalhes era o que não lhe convinha. Sempre fora uma criatura indócil, rústica, apesar de os homens a desejarem pela desmedida formosura. Era a Rebelde do Poitou, bela e sedutora guerrilheira, uma salteadora, mulher-lenda conduzindo os cavaleiros armados ao combate!
Triunfaria sobre o Rei-Sol? Escaparia a sua perseguição? Enfrentar um poder tão denso e sólido requeria explosão, desafio, impetuosidade.
Reencontraria o amor?
Angélica conseguira fugir à perseguição dos guardas de Mulay Ismael, sultão do Marrocos, numa verdadeira odisseia através do deserto, em compaflhia-do inesquecível Colin Paturel, rei dos cativos. Graças à ajuda de um amigo, o Grão-Eunuco Osman Ferradji, tornara-se a primeira escrava a escapar com vida de um harém muçulmano e, depois de atravessar as montanhas do Rif, encontrara asilo em Ceuta, enclave espanhol no norte dà Africa. Entretanto, enganara-se ao pensar que seus dias de cativeiro haviam chegado ao fim. Tao logo se restabeleceu da aventura, ioi procurada por um emissário de Luís XIV. O sr. de Breteuil, enviado pelo rei com um navio para levar a Marquesa du Plessis-Bellière de volta à França, informou-lhe que tinha ordens de prendê-la.
A PROVÍNCIA EM EFERVESCÊNCIA
CAPITULO I
O filho do deserto
Ao chegar a Marselha, o Sr. de Breteuil, enviado do rei de França, que detivera Angélica em Ceuta, encerrou-a no forte do al-mirantado. Enquanto-pefmanecessem nessa cidade, onde outrora a Marquesa du Plessts-Bellière tão bem lograra a polícia do reino, o gentil-homem não estaria tranquilo.
Foi, pois, numa escura e sinistra cela que a antiga cativa dos berberes, fugitiva do harém de Mulay Ismael ao preço de muitos sofrimentos, teve a certeza de que esperava um filho.
A ideia ocorreu4he no dia seguinte ao de sua prisão na cidadela, quando, ao despertar, sua situação de animal novamente preso numa armadilha se lhe apresentou com maior clareza.
A prisão do almirantado carecia do conforto mais elementar. Apesar do quadrado de céu azul recortado no alto entre as barras de ferro da janela, Angélica sentiu uma trágica impressão de sufocamento. Durante toda a noite lutara contra uma horrível sensação de ser enterrada viva, que a acometia assim que cerrava as pálpebras. Com a aurora, seus nervos, que até ali haviam tão bem resistido, se esfacelaram.
Um impulso de pânico lançou-a até a porta e fê-la socar a madeira dura, sem gritar, mas com uma força desencadeada pela angústia.
O ceu!, o céu!, o ar puro! Haviam-na encerrado naquele túmulo, a ela que durante dias e noites não vivera senão no círculo imenso e mágico do deserto.
Sofria até a agonia com essa prisão. E, como um pássaro enlouquecido na gaiola, chocava-se contra a implacável barreira de madeira e ferro, batendo, batendo em silêncio. Pois suas mãos diáfanas, ainda com as marcas dos sofrimentos passados no deserto, não faziam mais ruído na porta maciça que o bater das asas de um pássaro. Quando sentiu a dor das palmas esfoladas, parou e recuou, apoiando-se à parede.
Seus olhos caminhavam da porta para a trapeira gradeada. O azul do céu era como uma água pura de que tinha sede. Mas Os-man Ferradji não viria levá-la pelos telhados planos, para que saciasse os olhos com uma enganadora impressão de espaço.
Aqueles que a rodeavam eram estrangeiros de olhar taciturno e alma coberta de suspeita. Querendo resgatar os erros passados, o Duque de Vivonne enviara de Paris as ordens mais draconianas contra ela. O almirantado de Marselha deveria prestar total ajuda ao Sr. de Breteuil. Seria vão tentar obter ali um aliado, e mesmo Angélica não se sentia em estado de usar de suas armas. Esmagava-a uma espantosa fadiga, a qual lhe pareceu jamais ter experimentado antes, sequer pelos caminhos do Rif.
A viagem por mar de Ceuta a Marselha, com interrupção em Cádiz, fora um suplício em que a cada dia perdia um pouco de coragem. Teria o Sr. de Breteuil, ao detê-la em nome do rei, partido a mola que lhe permitiria reviver?...
Ela arrastou-se até o leito. Era uma enxerga bastante rija sobre um estrado, mas disso Angélica não se queixava. Dormia ali melhor do que em camas macias, e o único leito que desejaria para repousar os membros doloridos seria um pedaço de relva em algum canto, ao longe, sob os cedros.
Voltou o olhar para a porta. Quantas portas fechadas ao longo de sua existência!, pensou, portas cada vez mais pesadas, mais cerradas. Seria uma brincadeira em que o destino se comprazia para puni-la pela criança de Monteloup que ela fora, quando galopava de pés nus pelas sendas do bocage e da floresta, e tão apaixonada pela liberdade que os camponeses acreditavam-na um pouco fada?
"Você não passará", diziam as portas. E a cada vez que conseguia evadir-se, outra logo se erguia, mais implacável. Após a porta da miséria houvera a do rei de França; depois as grades do harém de Mulay Ismael; e agora novamente o rei da França. Seria ele o mais forte?
Pensou em Fouquet, no Marquês de Vardes, e até naquele fogo-fátuo de Lauzun, encarcerados também, não longe dali, na Fortaleza de Pignerol; em todos os que pagavam durante anos, atrás de portas de prisão, por indisciplinas menos graves que as que cometera.
O sentimento de sua solidão e: de suaJraqueza abateu-a. Ao pôr os pés no solo de França, atracara num mundo em que os homens não agiam senão segundo dois critérios: o medo ou o amor do rei. A lei do mestre sobrepunha-se ao que quer que fosse.
Naquelas paragens a força física e moral de um Colin Paturel, sua incrível bondade, sua sutil inteligência, eram valores que não contavam. Qualquer galanteador estúpido, envergando peruca e punhos nas mangas, podia menosprezá-lo.
Naquelas paragens, Colin Paturel rião tinha poder. Não era senão um pobre marujo. Nem mesmo a lembrança dele podia socorrer Angélica.-Ele desaparecera completamente, mais do que se estivesse morto.."
Ela chamou-o a meia voz:-
- Colin, Colin, meu irmão!
E o mal-estar foi tão grande que um suor frio inundou-a e fê-la desfalecer.
Foi quando lhe veio a ideia de que talvez estivesse grávida dele.
Em Ceuta, ela atribuíra a ausência de certos fenómenos habituais à saúde arruinada por fadigas sobre-humanas; mas, com o tempo, uma outra explicação apresentava-se e não havia mais dúvida possível.
Ela esperava um filho.
Um filho de Colin Paturel! Um filho do deserto! Permaneceu imóvel, encolhida na cama, deixando a dúvida tornar-se certeza dentro de si, e a incrível descoberta caminhar, invadi-la...
Uma surpresa de início, depois uma estranha paz, e por fim a alegria.
Poderia ter sido o desgosto, a vergonha, um desalento maior. Foi a alegria.
Ainda estava muito próxima do deserto e do albornoz de cativa fugitiva, para envergar por completo a libré de grande dama francesa. Uma parte dela permanecia junto ao coração do Normando, em meio às noites de iluminuras cravejadas de ouro, em que a força do amor que os movia um para o outro possuía um sabor de morte e de eternidade.
Sob as roupas espartilhadas à francesa, sob os mantos e os atavios reencontrados em Ceuta, ela conservava a pele áspera, a profunda cicatriz da pele queimada, as do dorso flagelado, que se apagavam aos poucos.
Os pés em elegantes calçados ainda não haviam perdido a camada rija adquirida nas escaladas pelas trilhas pedregosas do Rif.
Ela pensou com entusiasmo que doravante a marca da incrível odisseia permaneceria indelével, através do filho que dela nasceria. Ele seria louro, espadaúdo, sólido.
Que importava que fosse bastardo? A nobreza daquele que fora o "rei" dos cativos juntava-se por suas virtudes à dos cruzados cujo sangue circulava nas veias de Angélica de Sancé de Monteloup.
Seu filho teria seus olhos azuis e sua força. Um pequeno deus Hércules empunhando a clava, destruindo serpentes, aureolado pelo sol do Mediterrâneo!...
Seria belo como a primeira criança nascida sobre a terra.
Ela o via e se maravilhava com sua vida. Para ele, por ele, recobraria forças e lutaria para conseguir-lhe a liberdade.
Permaneceu assim longo tempo, abandonando'-se ao sabor do devaneio um pouco desatinado, esquecida dos muros da cidadela, e falando por vezes a meia voz.
"Você me afastou em vão, Colin", dizia. "Você me desdenhou e rejeitou em vão. Permanecerá em parte comigo, apesar de tudo, Colin, meu companheiro, meu amigo..."
Alguns dias mais tarde, uma carruagem de portinholas gradeadas e cortinas negras fechadas deixava Marselha e tomava a estrada de Avignon. Uma sólida escolta de dez mosqueteiros acompanhava-a. Em seu interior, ao lado de Angélica, o Sr. de Breteuil apressava a marcha.
Tanto lhe haviam dito sobre a incrível habilidade e malícia da Sra. du Plessis-Bellière, que a todo momento ele pensava vê-la escapar por entre seus dedos, e sua única preocupação era chegar ao fim da missão.
Inquietava-o que a jovem parecesse ter vencido a fadiga. Que se mantivesse ereta e se lhe mostrasse, por vezes, insolente fazia-o temer o pior. Não estaria ela esperando pela ajuda de seus cúmplices?
Não era exagero dizer que ele se deitava atravancando a porta e não dormia senão com um olho.
Antes da travessia de uma floresta, onde corriam o risco de ser assaltados por bandos encarregados de, libertar a prisioneira, ele se debatia junto ao governador da cidade mais próxima para obter um contingente suplementar de soldados. Aquilo assumia a aparência de expedição militar. Os curiosos agrupavam-se nas praças, tentando ver a personagem que necessitava de todo aquele reforço. O Sr. de Breteuil enfurecia-se e pagava a homens armados para que dispersassem a multidão a tiros de alabarda, o que aumentava a curiosidade e os ajuntamentos.
De tanto não dormir e roer-se de inquietação, o Sr. de Breteuil não via outra solução para seus tormentos: a pressa. Eles mal se detinham por algumas horas durante a noite, em albergues onde todos os hóspedes eram expulsos e os proprietários, mantidos à vista. Os cavalos corriam sem parada durante o dia e eram substituídos sem cessar por animais descansados que um correio solicitava de antemão, a fim de que não houvesse espera quando a equipagem chegasse aos postos de muda.
Sacudida pelos solavancos, alquebrada pela marcha demente, Angélica protestava:
- Está querendo me matar, senhor! Paremos algumas horas para repousar. Já não posso mais.
O Sr. de Breteuil escarnecia:
- A senhora é bem delicada. Não conheceu fadigas mais intensas no reino do Marrocos?
Ela não ousava lhe dizer que estava grávida.
Agarrada ao banco ou à portinhola, doente com a poeira, fazia promessas para que chegassem ao término da infernal viagem.
Certa noite, ao fim de um dia estafante, como a equipagem fizesse a grande galope uma curva no cimo de uma colina, o carro inclinou-se sobre duas rodas e tombou. O postilhão, pressentindo o acidente, tivera tempo de deter a parelha. O choque foi menos violento do que se poderia temer, mas Angélica, projeta-da para o lado do fosso e comprimida pelo banco arrancado, compreendeu de imediato o que lhe ocorrera.
Rapidamente tiraram-na da carruagem e estenderam-na na grama à margem da estrada.
O Sr. de Breteuil, pálido, inclinou-se sobre ela. Se a Sra. du Plessis morresse, o rei jamais o perdoaria. Numa súbita intuição, compreendeu que sua cabeça estava em jogo e acreditou sentir na nuca o frio do machado do carrasco.
- Feriu-se, senhora? - perguntou, súplice. - Não foi nada, não é mesmo? O choque foi ínfimo.
Ela gritou-lhe com voz alterada, desesperada, enfurecida:
- Culpa sua, imbecil! Com sua marcha infernal!... Você me tomou tudo. Perdi tudo por sua culpa... Miserável!...
E, avançando as unhas, sulcou-lhe as faces.
Os soldados transportaram-na numa padiola improvisada até o burgo vizinho. Ao ver o sangue espalhar-se no vestido, aqueles homens assustados acreditavam-na seriamente ferida. Mas o cirurgião solicitado declarou após exame que o caso não lhe dizia respeito e que era preciso buscar uma parteira.
Angélica achava-se deitada na casa do prefeito. Sentia a vida partir com aquela outra vida.
Entre as paredes da grande moradia burguesa predominava um odor de sopa de couve que lhe aumentava a náusea e o desgosto de tudo. O rosto da parteira, vermelho e suado sob a touca de camponesa, aparecia diante dela a intervalos e magoava-lhe os olhos como o sol poente. Durante toda a noite a boa mulher lutou, não sem bravura, para salvar a criatura estranha e como que imaterial, de cabelos de mel, de luar, espalhados pelo travesseiro, e de semblante curiosamente trigueiro. O crestado da face surgia em placas marrons na tez cerosa, enquanto as pálpebras azulavam e um círculo malva cobria a comissura dos lábios. A parteira reconhecia os estigmas da morte.
- Não faça isso, minha pequena - sussurrava, inclinada sobre Angélica, semi-inconsciente -, não faça isso....
Angélica mirava com soberana indiferença as sombras que se agitavam ao seu redor...
Agora erguiam-na, colocavam-lhe lençóis limpos sob o corpo, e o aquecedor passeava seu disco de cobre num bale morno e cintilante.
Ela sentiu-se melhor. O frio que lhe enregelava os membros esvanecia-se. Friccionavam-na, faziam-na beber uma xícara de vinho quente temperado.
- Beba isto, minha pequena, é preciso recuperar o sangue, que o perdeu muito.
Ela começou a sentir o cheiro acre do vinho, o odor da canela, do gengibre...
Ah! o odor das especiarias...- p/odor das viagens felizes!... Assim morrera Savary, pronunciando tais palavras.
Angélica abriu os olhos. Diante dela, uma grande janela entre pesadas cortinas. Nas vidraças, uma bruma espessa, cor de fumaça.
- Quando nascerá o dia? - murmurou.
À cabeceira, a mulher de faces rubras conte mplava-a com satisfação.
- Há muito que-nasceu - disse, jovial. -. O que você vê não é a noite, é a neblina do rio que corre embaixo. Está frio, hoje.
Tempo para ficar enjre as.cobertas e não para viajar. Você escolheu o dia certo. Agora que se safou desta, pode-se dizer que o acidente foi um achado. Nesse, você "deu um fim.
Diante do olhar enfurecido que lhê veio em resposta, a parteira insistiu, surpresa:
- Foi bom, mesmo! Para uma grande dama de sua condição, uma criança jamais é bem-vinda. Vamos, sei disso! Existem muitas que vêm.-pedir-me-para livrar-lhes do fruto. Para você, está feito. E sem muito problema, embora me tenha feito passar um bom medo.
E inquieta com o mutismo da cliente:
- Creia-me, daminha, não se deve lamentá-lo. Os filhos só fazem complicar a existência. Se não os amamos, eles atrapalham. Se os amamos, eles nos enfraquecem.
E concluiu, encolhendo os ombros:
- Ademais, que importa? Se isso a aborrece tanto, não lhe faltará a ocasião de fazer outro, bela como é!...
Angélica comprimia os maxilares até a dor.
O filho de Colin Paturel não nasceria. Agora se sentia de fato despojada de tudo.
De tudo! Um violento sentimento, próximo do ódio, começou a brotar e salvou-a do desespero. Era como uma torrente selvagem que ainda não houvesse escolhido um alvo, mas que lhe dava o gosto de lutar. Um desejo arrebatado de sobreviver para vingar-se, vingar-se de tudo! Pois, malgrado o que já sofrera, estava bastante lúcida para compreender que o perigo que lhe ameaçava a liberdade era grande. Breve, rodeada por militares armados, como o mais rebelde dos súditos, ela retomaria a viagem desejada pelo senhor do reino, e que a conduzia não se sabe para qual punição definitiva, para que cárcere...
CAPÍTULO II
Ultimato do rei a Angélica
Um chamado tremulo elevou-se na noite, flutuou um pouco e extinguiu-se, como- que extenuado.
"A coruja", pensou Angélica. "Procura uma presa..." O pássaro voltou a emitirseu pio de veludo, frágil e distante, que a bruma irisada de luar abafava.
Angélica soergueu-se num dos cotovelos. Junto ao colchão onde se achava estendida, colocado diretamente no piso, via luzir num lajedo de mármore negro e branco onde móveis se miravam.
No fundo da peça, penetrava pela janela aberta uma luz suave, leitosa, que ao se espalhar, crescendo na obscuridade, trazia ao quarto toda a magia de uma noite de primavera. Atraída por ela, a jovem ergueu-se, conseguiu manter-se em pé e avançou com o passo trôpego de uma alma errante na direção do raio prateado. Aprisionada em sua claridade, diante da lua poderosamente redonda que acabava de surgir, ela desfaleceu e teve que se apoiar ao umbral.
Diante dela, sob o céu noturno, um penhasco de sombra recortava um denso encapelamento imóvel de árvores com cimos frondosos, galhos que se projetavam em candelabros regiamente vestidos de folhas e troncos maciços cujascolunas, sustentando esse escuro templo, mostravam-se graças a uma abertura, uma clareira açoitada pela lua.
- Você! - suspirou ela.
De um carvalho próximo, o pio da coruja tornou a erguer-se,
subitamente nítido, cortante, parecendo trazer as saudações da região de Nieul.
- Você - repetiu -, você! Minha floresta! Meu bocage!
Soprava um vento brando, imperceptível e de incomparável ternura, em lentos movimentos que não se adivinhavam, senão por vezes, ao aroma mais acentuado de um espinheiro em flor.
Angélica aspirou o ar. Os pulmões dessecados reencontraram inebriados a umidade salvadora, que subia até ela em largos eflúvios, umedecidos pelo hálito de todas as fontes e o incenso das seivas novas.
A fraqueza deixou-a, e ela pôde afastar-se do apoio e olhar ao redor. Ao alto da alcova, numa moldura de madeira dourada, um jovem deus do Olimpo divertia-se entre as deusas. Ela estava no Plessis. Era de fato a mesma peça onde outrora - há muito tempo, tinha então dezesseis anos - Angélica, selvagenzinha curiosa, espiara os folguedos amorosos do Príncipe de Conde e a Duquesa de Beaufort.
Fora no mesmo lajedo negro e branco, em que se refletiam os belos móveis, que ela se vira prostrada como agora, dolorida, fraca e vencida,, enquanto nos corredores do castelo afastava-se o passo oscilante do belo Filipe, seu segundo esposo, que tão cruelmente acabava de celebrar sua noite de núpcias.
Ali abrigara os desgostos da segunda viuvez, antes de ceder, fascinada, à tentação de Versalhes.
Angélica tornou a encurvar-se na direção da cama e deitou-se, encontrando na rigidez do chão uma repousante voluptuosida-de. Ao envolver-se na coberta, como num albornoz, fê-lo à maneira animal de encolher-se que trouxera do deserto. Uma serenidade profunda substituía a angústia que não cessara de persegui-la na semi-inconsciência da doença.
"Em casa", pensou, libertada, "estou novamente em casa... Então, tudo é possível."
Quando ela despertou, o sol substituíra a lua, e uma voz plangente, a da criada Bárbara, desfiava as costumeiras lamentações:
- Aqui, cá está a pobre senhora... Ê sempre a mesma coisa! Mas se não é uma desgraça!... Por terra, como um cão! De nada adianta prender as cobertas a cada noite; ela encontra força suficiente para tirar o colchão, assim que me volto, e nele deitar-se como um animal ferido. "Se você soubesse como a terra é boa para dormir, Bárbara", ela me diz, "se soubesse como é boa!" Que lástima! Ela, que tanto amava a comodidade, que jamais tinha cobertas suficientes, tão friorenta que era! Ah! É inacreditável o que a gente da Barbaria conseguiu fazer dela em menos de um ano. Di-lo-ão ao rei, senhores!..: Minha senhora, tão bela, tão refinada! Não faz muito tempo, os senhores a viram em Versalhes. Olhem agora, se não é de arrancar lágrimas. Não poderia acreditar que fosse ela se não tivesse conservado o mesmo jeito de seguir a própria cabeça a despeito de tudo o que lhe digam! Selvagens como aqueles não merecem viver... O rei deveria castigá-los, senhores!...
Três pares de borzeguins e um par de botas acabavam de postar-se ao redor do catre de Angélica. Ela-sabia que os borzeguins de tacão vermelho e fivela em prata dourada pertenciam ao Sr. de Breteuil; mas os ostros lhe eram desconhecidos.
Ela ergueu os olhosrO"pande botas sustentava uma personagem ventruda, cingida por um çasacão azul de oficial, encimado por uma face rubicunda, bigoduda, e de cabelos vermelhos.
Os borzeguins de pêlo de castor, com fivelas de prata, austeros na medida certa e nos quais se plantavam panturrilhas secas e negras, já teriam revelado a personalidade de um devoto da corte, se Angélica não tivesse reconhecido de imediato, no proprietário, o Marquês de Solignac.
A quarta personagem, também de tacões vermelhos e fivelas de diamante, trazia erguido sobre uma grande gola de rendas um tanto em desuso um semblante rígido e magro de chefe militar, com uma mosca grisalha no queixo, que lhe acentuava a severidade. Foi este último quem, após se inclinar diante da jovem deitada a seus pés, tomou a palavra.
— Apresento-me, senhora. Sou o Marquês de Marillac, governador do Poitou e encarregado por Sua Majestade de trazer suas ordens e decisões com relação à sua pessoa.
— Pode falar mais alto, senhor - disse Angélica, acentuando sua fraqueza -, suas palavras não chegam-até mim.
O Sr. de Marillac teve, pois, que se ajoelhar para se fazer ouvir, e os comparsas viram-se na obrigação de imitá-lo. Por trás dos cílios semicerrados, Angélica saboreou o prazer de ver os quatro tipos grotescos de joelho em terra ao seu redor, e sua satisfação aumentou ao verificar que o rosto de Breteuil trazia ainda as marcas vermelhas e intumescidas que lhe haviam imprimido suas unhas.
Entrementes, o governador desenrolava um pergaminho após romper-lhe o lacre e pigarreava.
- "A Sra. du Plessis-Bellière, nosso súdito, que culpada de uma grave rebeldia para conosco despertou nossa ira. Nós, rei de França, vemo-nos obrigados a escrever estas linhas, a fim de lhe comunicar nossos sentimentos, que ela poderia pretender ignorar, a guiá-la na expressão de sua submissão.
"Senhora,
"Grande foi nossa dor quando, meses atrás, respondeu com ingratidão e desobediência aos favores com que nos havíamos comprazido em cumulá-la, à senhora e aos de sua família. Recebeu ordens de não deixar Paris e as ignorou. E, no entanto, sabedores de sua natureza impulsiva, não seriam essas ordens ditadas pelo desejo de preservá-la de si mesma e dos atos inconsiderados que poderia sentir-se tentada a cometer? A senhora os cometeu, lançou-se diante dos perigos e desilusões que desejávamos evitar-lhe, e por eles foi severamente punida. O apelo desesperado que fez chegar até nós pelo superior dos padres da Redenção, o Reverendo Padre de Valombreuse, quando de seu retorno do Marrocos, advertiu-nos da triste situação na qual seus erros a haviam lançado. Cativa dos berberes, começava a ter a medida de seus desvarios e, com â inconsciência habitual das pessoas de seu sexo, voltou-se para o soberano que injuriou, pedindo-lhe socorro.
"Em consideração ao grande nome que carrega e à amizade que nos unia ao Marechal du Plessis, e por piedade à senhora, enfim, que continua a ser um de nossos súditos bem-amados, não quisemos deixá-la carregar todo o peso do castigo, abandonando-a aos cruéis berberes, e respondemos a seu apelo.
"A senhora está hoje sã e salva no solo de França. Rejubilamo-nos com isso.
"E justo, no entanto, que nos peça perdão.
"Poderíamos ter-lhe imposto, na solidão de um claustro, algum tempo de necessária reflexão. A lembrança de seus sofrimentos fez-nos afastar a ideia. Sabedores de que o solo natal pode ser o melhor dos conselheiros, preferimos enviá-la para suas terras. A senhora não está em exílio. Nelas permanecerá até o dia em que, por decisão própria, tomará o caminho de Versalhes para protestar sua submissão. Na espera desse dia - que desejamos próximo -, um oficial designado pelo Sr. de Marillac, governador da província, estará encarregado de mantê-la sob vigilância..." O Sr. de Marillac interrompeu-se e ergueu os olhos, designando o gordo militar:
- Apresento-lhe, senhora, o Capitão Montadour, a quem pensei dever atribuir a honra de sua guarda.
O capitão tentava justamente passar de um joelho para o outro, dolorido com uma postura a que sua pançuda pessoa não estava habituada. Quase caiu, recuperou-se, a tempo e confirmou com voz de estentor que estava às ordens da Marquesa du Plessis.
Seu empenho foi vão. Angélica, ainda encolhida sob a coberta, mantinha as pálpebras fechadas e parecia dormir.
O Sr. de Marillac prosseguiu heroicamente a leitura:
- "Exporemos aqui os termos em que se deve proceder a submissão da Sra. du Plessis-BelMère. A turbulência dos membros de sua família, um dós quais chegou recentemente ao crime de lesa-majestade, é demasiado conhecida para que essa submissão não se revista de um clamor que obrigue à meditação os espíritos que deploráveis exemplos poderiam precipitar à rebelião.
"Tendo a Sra. du Plessis nos ofendido publicamente, a reparação deve ser pública.
"Ela dirigir-se-á à Versalhes em uma carruagem negra. A carruagem permanecerá do lado de fora dos gradis e não terá direito a adentrar o pátio principal.
"A Sra. du Plessis estará vestida modestamente e com cores sóbrias.
"Em presença de toda a corte, deverá postar-se diante do rei, ajoelhar-se, beijar-lhe a mão e renovar seu juramento de devoção e de vassalagem.
"Ademais, ser-lhe-á pedido que doe à coroa um de seus feudos da Touraine. Os pergaminhos e contratos de cessão deverão ser entregues a nosso camarista-mor durante a cerimonia, em sinal de homenagem e pedido de perdão.
"A partir de então, a Sra. du Plessis-Bellière deverá aplicar-se em servir a seu príncipe com uma fidelidade que desejamos sem sombra de dúvidas. Ela permanecerá em Versalhes, aceitará os títulos e honras que houvermos por bem conceder-lhe - o que, sabemo-lo, será mais penoso a seu orgulho que não receber nenhum cargo -, preencherá os cargos escrupulosamente e, em suma, deverá empenhar-se em servir ao rei com dedicação, seja em seu reino, em sua corte..."
- ...seja em sua cama - concluiu Angélica.
O Sr. de Marillac estremeceu. Havia alguns instantes estava persuadido da inanidade de tal discurso, dirigido a uma infeliz prostrada no semitorpor de uma doença sem esperança.
A interrupção de Angélica e o olhar de troça que se filtrava por entre suas pálpebras mostraram-lhe que eia ouvira muito bem, e que não estava tão abatida quanto desejava parecer. As faces apergaminhadas do governador rosaram-se, e ele disse secamente:
— Isso não está escrito na missiva de Sua Majestade.
— Mas está subentendido - retorquiu Angélica com suavidade. O Sr. de Marillac pigarreou e tartamudeou um pouco antes
de reencontrar o fio da leitura.
— "...seja onde praza a Sua Majestade enviá-la a seu serviço."
— Não poderia parar, senhor? Estou fatigada.
— Nós também - disse o gentil-homem, indignado. - Não vê então, senhora, em que posição nos obriga a proceder à leitura?
— Senhor, estou morrendo.
Uma expressão malévola e dulcorosa surgiu no rosto do gentil-homem.
— Aconselhá-la-ia a não continuar morrendo por tempo demasiado, senhora, pois não acredite que a indulgência de Sua Majestade para com sua pessoa seja eterna. E é de fato com essa advertência que conclui a missiva. Saiba, pois, senhora, que o rei, em sua bondade, concede-lhe vários meses de reflexão antes de considerá-la para sempre uma irredutível rebelde. Mas, passado o prazo, ele será inflexível. Estamos em maio, senhora. O rei a sabe doente, abatida. Ele está decidido a ter paciência, mas se aos primeiros dias de outubro a senhora não tiver realizado o que lhe foi imposto para que obtenha seu perdão, ele considerará sua abstenção como mostra de rebeldia.
— Que acontecerá, então?
O Sr. de Marillac tornou a desenrolar a carta do soberano.
- "A Sra. du Plessis será então detida e conduzida a uma for taleza ou convento de nossa escolha. Suas residências serão sela das; seus castelos, mansões e terras, vendidos. Como feudo e herdade permanecerão apenas o Castelo do Plessis e os domínios circundantes, para que sejam entregues a Carlos Henrique du Plessis, filho do marechal e nosso afilhado, a quem asseguraremos a tutela a partir de então."
— E meu filho Florimond? - perguntou Angélica, pálida.
— Não foi mencionado.
Houve um silêncio, em que Angélica sentiu pesar sobre ela os olhares satisfeitos daqueles homens que mal conhecia, a quem nada fizera, e que no entanto réjubilavam-se visivelmente com sua derrota, tão natural que é aos seres decaídos o desejo de ver abatida a beleza, e humilhado o que não quer rastejar.
Por muito tempo a Sra. du Plessis não endireitaria a orgulhosa cabecinha, não ergueria a barreira de seus olhos de esmeralda entre o rei e a influência que outros espíritos tentavam em vão ter sobre ele. Ela não reapareceria em Versalhes senão para suportar uma prova tão sofrida] que abateria sua soberba para sempre. Então perderia sua força indomável, seria igual àos outros, poderia tornar-se um dócil instrumento em mãos feitas para guiar os corações e seus destinos. Como haviam agido com habilidade ao recomendar que o rei fosse intransigente!
O Sr. de Solignac foi o primeiro a romper o silêncio com sua voz untuosa e;baixa. Ele não sofria com permanecer tanto tempo de joelhos, habituado que estava a intermináveis orações no segredo de seu' oratório, onde pedia a" Deus a força para prosseguir na obra esgotante e secreta de impor a lei divina a um mundo corrompido. Disse que o momento parecia escolhido para que a Sra. du Plessis-Bellière meditasse nos erros passados e tirasse proveito do tempo que a indulgência do rei lhe concedia para reunir as provas de um clamoroso arrependimento. O rei não a perdoaria para sempre se ela apresentasse como penhor a conversão de sua província, o Poitou?
- A senhora não ignora que a religião pretendida reformada vive seus últimos dias. Seus adeptos convertem-se em massa e tornam ao seio da Igreja-mãe, católica e apostólica. Alguns obstinados insistem, particularmente nesta região- retirada e selvagem de onde a senhora é originária e onde tem seus domínios. O Capitão Montadour, um de nossos mais zelosos convertedores, para cá enviado há vários meses, encontra grande dificuldade em persuadir os huguenotes de seus campos a abandonar suas infames crenças. Pensamos na senhora para ajudá-lo nessa santa obra, pois conhece os camponeses da região e sua língua. É sua susera-na. Dispõe de mais de um recurso para constranger seus servos huguenotes a abandonar as heresias criminosas. Veja, senhora, que nobre tarefa a aguarda e pense o quanto o rei que ofendeu ser-lhe-ia grato por ajudá-lo na obra de unificação de seu reino, por ele empreendida para a maior glória de Deus...
O que a leitura do Sr. de Marillac não obtivera, o discurso do Sr. de Solignac conseguiu. Angélica foi projetada para fora do fingido torpor e, sentando-se bruscamente, fixou-os, os olhos arregalados e ardentes no rosto emaciado.
- A cláusula de levar a conversão de minha província está incluída nas condições exigidas por Sua Majestade?
Um sorriso sarcástico descobriu os dentes amarelados do Sr. de Solignac.
- Não, senhora - retorquiu -, mas está subentendida.
Num mesmo movimento, os senhores de Marillac, Solignac e Breteuil inclinaram-se para ela. Montadour bem quisera fazer o mesmo, mas era impedido pelo ventre. Inclinou-se no entanto o quanto pôde. Uma outra preocupação, que não a de converter Angélica, congestionava-o. E que ele a descobria diabolicamente bela, aquela espécie de semimorta que chegara ao castelo alguns dias antes, quase cosida em sua mortalha!
Os quatro semblantes reunidos lembravam a Angélica os pesadelos que tivera por vezes no Mediterrâneo, quando seu espírito, liberto pelo sono, conduzia-a para as lembranças ainda recentes da corte de França e restituía-lhe a opressora atmosfera de Versalhes, feita de complôs e de ameaças, onde curiosamente se confundiam o temor dos envenenadores, com suas missivas negras em aposentos secretos, e as intrigas em meio às emanações de incenso e água benta dos propagadores fanáticos. Tudo o que afastara e rejeitara para sempre voltava a concretizar-se, recobrava forças, e ela sentia-lhe a virulência, o domínio sorrateiro e tenaz.
- Senhora - murmurou Marillac -, dê-nos provas de seu empenho e poupar-lhe-emos o pior. Saberemos despertar a clemência do rei para o seu caso. Podemos sugerir-lhe que atenue, por exemplo, o rigor da penitência que quer infligir-lhe. Talvez consigamos evitar a carruagem para fora dos gradis... o vestido escuro... as palavras de vassalagem...
Ele não era inábil. Sabia que para uma mulher como Angélica o pior achava-se, com efeito; muito mais nesses detalhes humilhantes que na doação de um de seus feudos à coroa. Esperavam suas promessas e sua adesão, já preparando as devidas instruções.
Mas ela recuou, altiva.
- Terminou, senhores?
O governador comprimiu os lábios.
- Não, não terminamos, senhora. Devo ainda entregar-lhe uma mensagem pessoal da parte de Sua Majestade. Ei-la.
Após romper o selo vermelho, Angélica reconheceu a escrita real.
"Bagatela, minha insuportável criança, minha inesquecível..."
As letras dançaram*rhe Hiarite dos olhos, e ela tombou a mão sem desejar ir adiante.
Os enviados do rei ergueram-se e já se retiravam. O Sr. de Ma-rillac lançou um olhar à forma estendida e encolheu os ombros. Daria a entender ao-rei que aquela mulher tinha a mente perturbada. Deitar-se assim no chão, quando fora a rainha de Versalhes! Era deplorável. Errara em ouvir Solignac e em envolver-se no caso. Nada de interessante a obter, nem para o rei, nem para ele, nem para a Companhia do Santo Sacramento. Era completamente evidente que ela morreria.
- Senhores!
Angélica chamava-os. Eles imobilizaram-se diante da porta. Ao erguer-se, a cabeleira em desalinho conferiu-lhe uma espécie de pálida auréola que lhe acentuava o reflexo um tanto esgazeado das pupilas.
— Senhores, digam ao rei que ele não tem o direito de ser bom para comigo.
— Que quer isso dizer, senhora? - perguntou Marillac, surpreso. - Julga-se indigna da bondade de "Sua Majestade?
— Não. Quero dizer que a bondade não cabe entre nós. Seu amor me insulta. Pois somos inimigos, não é fato? Entre nós não pode haver senão guerra!...
O governador ficou terroso. Uma vertigem acometeu-o à ideia de que teria de repetir tais palavras ao rei. Os três gentís-homens partiram, inquietos.
— Louca, a senhora é uma mulher louca! - exclamou Bárbara, precipitando-se para a cabeceira da ama. - Que loucura de tudo destruir a domina, infeliz! Lançar aquilo no rosto dos grandes senhores que o rei enviou para ajeitar tudo. Ah! Tem um belo modo de comprar seu perdão!
— Você escutava atrás da porta, 'Bárbara?
Bárbara prosseguia com ímpeto, dominada por uma santa cólera:
— Não lhe basta ser como um destroço, uma infeliz sem forças... Salvou sua vida por milagre e, agora que a tem, continua a brincar com ela como se fosse uma ninharia.
— Em minha ausência você adquiriu modos autoritários que não me convêm, Bárbara.
— Era preciso dêfender-me, ea nosso pequeno Carlos Henrique. A senhora plantou-nos aqui, com toda a polícia indo e vindo, fazendo perguntas, remexendo em papéis, abrindo móveis, aqueles policiais do diabo! Depois deixaram-nos tranquilos. Só restava aguardar. Acredita que é divertido esperar rezando o terço para vê-la retornar um belo dia mais magra, arranhada e selvagem que uma gata vagabunda? E agora os soldados estão no parque, o gordo capitão dita a lei sob seu teto, devora as provisões, atormenta suas criadas. Era mister aprender a gritar e defender-me, pois não?...
A veemência da companheira fiel sacudiu o ânimo de Angélica.
— Que você desejava então que eu fizesse? - murmurou com voz fraca.
— Vá até o rei - sussurrou Bárbara, recobrando a esperança. - Então tudo será como antes. A senhora tornará a ser a pessoa mais poderosa do reino, sua casa e seus filhos serão honrados em toda parte. Vá ao rei, senhora. Volte a Versalhes.
Ela espreitava, inclinada, sinais de derrota no semblante de Angélica. Mas sob as pálpebras pisadas o brilho dos olhos verdes voltou, implacável.
- Você não sabe o que diz, Bárbara. Ir até o rei! Para você, ingénua, nada pode haver melhor que viver na corte. Mas eu sei.
Não vivi ali? Viver na corte! Que escárnio! Ali perecer, isso sim.
De tédio, de desgosto, e finalmente pelo veneno de uma rival. Viver na corte! É como tentar bailar na areia movediça. Jamais poderia voltar a estar entre eles.
— O rei a ama! A senhora tem inteiro poder sobre ele.
— Ele não me ama. Ele me quer. Jamais pertencerei ao rei. É impossível. Escute, Bárbara. Há algo que você desconhece. O rei de França é todo-poderoso, mas eu me evadi do harém de Mulay Ismael... Você não pode imaginar o que isso significa. Mulher alguma jamais o conseguiu."É algo impossível, impensável!... Por que então não poderia frustrar os intentos do rei de França?
— É esse o seu propósito?
— Sim... creio eu... Penso que nada ríiais me resta a fazer.
— Ah! louca, louca mulher! Que Deus nos proteja - soluçou Bárbara, fugindo, o rosto entre as mãos.
CAPÍTULO III
Vigiada pelo Capitão Montadour, Angélica é mantida prisioneira
O Capitão Montadour comia na ampla sala de jantar do castelo. Angélica observava-o do umbral. Ele não comia, devorava. Os olhos parados no rosto sanguíneo, acentuado pelo bigode ruivo, consagrava-se à tarefa de consumir uma travessa inteira de verdelhas, colocada diante dele em meio a um número respeitável de panelas. Com mão hábil apanhava a verdelha, passava-a demoradamente na molheira e tragava-a num só bocado. Mastigava os ossos, sugava-os ruidosamente e enxugava as mãos no guardanapo preso à botoeira por uma das pontas como um plastrão.
- Chamam-no Gargântua - cochichou a criadinha que espiava o espetáculo atrás de Angélica.
O militar dava ordens aos criados como se fossem de sua própria casa. Como um deles não se apressasse o suficiente, tratou-o de imprestável e virou-lhe a travessa nas pernas.
Angélica retirou-se sem ruído.
Que o rei tivesse imposto semelhante porco sob seu teto ia além do entendimento. Ele sem dúvida ignorava a escolha feita após amadurecida reflexão pelo Sr. de Marillac. Não era por isso menos responsável pela humilhação que ela sofria. Fora o rei quem confiara àquelas criaturas as diligências para levar a Marquesa du Plessis a um acordo.
A medida que se encaminhava para a cura, Angélica adquiria consciência da dupla armadilha: estar a um tempo à mercê do rei e dos que, em segredo, tentavam dirigir o reino. Enquanto se conservara no retiro do quarto, a situação não lhe aparecera com nitidez. Ela ainda se arrastava até a janela buscando novas forças na contemplação da floresta próxima. A exuberância de folhagens, de frescor, de sombra, enchia-a, toda vez, de um grato entusiasmo. Dizia a si mesma que estava viva, que seus ossos não branqueavam em alguma pista do deserto e que um inacreditável milagre permitira-lhe rever sua terra. Enquanto padecia, os lábios secos e os pés em sangue,'nas pegadas de Colin Paturel, tantas vezes sonhara com os sítios sombrosos da floresta de Nieul, que agora que os reencontrava tudo lhe parecia simples e fácil.
Aos poucos cedera às instâncias de Bárbara, aceitara alimentar-se, deitar-se no leito. Certo dia, vestira-se. Bárbara encontrara numa arca um dos antigos vestidos, pois os mais recentes se haviam tornado muito largos.
Fora percorrendo a moradia que Angélica descobrira a outra face de seu retorno. Sentinelas guardavam as portas. Achavam-se nas áreas de serviços. -Outras acampavam junto aos gradis.
Ouvia-se a voz tonitruante de Montadour. Enquanto caminhava com o passo inseguro dos convalescentes, Angélica não estava muito certa de não ter caído em novo pesadelo. Os semblantes conhecidos dos serviçais surgiam-lhe como se vindos de um mundo antigo, abolido,, trazendo-lhe fragmentos de uma realidade dificilmente concebível.
Cada qual tinha vindo saudá-la em-seu pequeno salão e dizer-lhe da satisfação de vê-la recobrar a saúde: Lin Poiroux, o cozinheiro, e a mulher, gente da Touraine, de faces alegres, que servia no Plessis há quinze anos, desolados por viver entre aquele povo selvagem do Poitou, o antigo criado de Filipe, La Violette (ora, ela pensava ter posto o tipo na rua!), o guardador do canil, José, o de equipagem, Janicou, o cocheiro, Adriano, Malbrant Golpe de Espada, o escudeiro de cabelos brancos que parecia ter-se adaptado muito bem à vida do campo. Ele fumava seu cachimbo, ia dar tapinhas nos cavalos, e para justificar sua presença ensinava os rudimentos da esgrima e da equitação ao jovem Carlos Henrique. "Mas o menino não é dotado como o mais velho", dizia. "Ah! por que Florimond permanecia encerrado no colégio enquanto boas espadas se enferrujavam sem uso?" Só Malbrant, o mercenário, o ex-mosqueteiro que tantas coisas presenciara, parecia à vontade. Em todos os outros havia algo de inquietante, uma vaga censura. Haviam se sentido cruelmente abandonados durante sua ausência. Fizeram queixas. Os soldados atormentavam-nos, troçavam deles, tratavam-nos como a uma região conquistada. A criadagem toda ressentia-se profundamente da vergonha infligida a um feudo senhorial de albergar a tropa ao mesmo nível dos aldeões e camponeses. Angélica ouviu-os sem dizer palavra, os olhos verdes observando-os, e um leve sorriso estirou-lhe os lábios ainda pálidos.
- Por que não se defenderam, gente do Poitou que são? Não têm suas facas, machados, chicotes; seus porretes de boa madeira, e você, Lin Poiroux, seus espetos?
Os criados olharam-se, estupefatos. Os dentes de Malbrant Golpe de Espada descobriram-se num ricto alegre. Janicou, o homem dos cavalos, balbuciou:
— Decerto, senhora marquesa, apenas não ousávamos... São soldados do rei...
— A noite todos os gatos são pardos, diz um provérbio. Um soldado do rei pode ser surrado tanto quanto um campônio.
Eles balançaram a cabeça em silêncio, enquanto semicerravàm os olhos astutos. Tal linguagem, aqueles criados ainda achegados a sua origem camponesa compreendiam.
- Decerto, senhora marquesa - disse Janicou entre dentes -, se a senhora está de acordo, nós também.
E trocaram olhares entendidos.
Acertaram ao fiar-se em sua dama. Ela não os deixaria abater-se tão facilmente. Não davam muito tempo para que o gordo militar se safasse dali. Doravante, a vida nos campos seria dura para os soldados do rei.
. Como as crianças ou a gente simples habituada a acompanhar a sorte de um único senhor, o retorno da Marquesa du Plessis parecia marcar o fim de uma era inquietante em que seu destino estivera ameaçado.
Para Angélica, as coisas não eram tão simples. Sob uma aparência serena, tentava precisar a situação antes de agir. E quanto mais dela adquiria consciência, menos via que atitude tomar.
Refugiada num dos salões debaixo, ao qual tinha afeição, deixava o passado lançar uma ponte cambada e incerta sobre o presente.
Ali enfrentara aos dezesseis anos um irado Príncipe de Conde.
Naquela época aquele grande senhor vinha ao Poitou recrutar tropas contra Mazarino e a rainha-mãe e tramar o envenenamento do pequeno rei e de seu irmão.
Via-o erguendo sob a luz a ampola verde entregue pelo Monge Exili e calculando as possibilidades que o desaparecimento do jovem Luís XIV trariam para sua ambição.
Jogo de príncipes! Hoje Conde arrastava a gota a cada noite sob os lambris de Versalhes par^ jogar piquet com a rainha. O pequeno rei fora o mais forte.
Mas o odor acre dos complôs e da rebelião não rondava ainda o branco castelo que se refletia no lago na orla da floresta, no fundo de uma província distante?
Angélica olhava pela janela, notando, um canto malconserva-do do parque. A suntuosidade dos castanheiros, com as chamas róseas e altas de suas flores, não conseguia fazer esquecer a desordem do gramado aonde os.homens de Montadour levavam os cavalos a pastar. .A direita rebrilhava o lago. Dois cisnes precipitavam-se para -às margens. Sem dúvida acabavam de avistar Carlos Henrique,' que passeava com Bárbara e preparava-se para dar-lhes pão.
Angélica disse consigo que naquela atmosfera de pesadelo a beleza do pequeno Carlos Henrique não parecia real.
Bárbara trouxe-o-até ela. Ele contava perto de cinco anos. A dedicada governanta vestia-o sempre-de seda e cetim, como se devesse ser apresentado à corte na hora seguinte. Ele jamais sujava a vestimenta. Permaneceu diante de Angélica sem nada dizer, e foi em vão que ela tentou, com fala suave, obter-lhe algumas palavras.
— No entanto, é bastante esperto quando quer - disse Bárbara, amuada com o mutismo do pupilo. - Devia-se ouvi-lo quando o ponho na cama à noite e lhe passo o medalhão com seu retrato. Ele conversa com o medalhão, fala dele. Mas talvez não a reconheça, pois a senhora se tornou tão diferente do retrato!
— Você me acha muito mudada? - perguntou Angélica, inquieta a contragosto.
— A senhora está ainda mais bela que antes - disse Bárbara com uma espécie de rancor. - Pensando bem, isso não parece normal, pois quando se a contempla de bem perto não há motivo para tal. Seus cabelos estão em triste estado. E sua pele, uma lástima! Mas eis que há momentos em que aparenta vinte anos, não se sabe por quê. E outros em que são seus olhos que impressionam. Dir-se-ia que retornou do outro mundo.
— O que em parte é um fato.
— Mais bela? Não sei - repetiu a criada, balançando a touca branca. - Mas o que sei... o que sinto é que está ainda mais perigosa para os homens do que antes.
— Deixe, então, os homens tranquilos - disse Angélica, dando de ombros.
Ela olhou para as mãos.
- Minhas unhas ainda se quebram - disse -, não sei como tratá-las para devolver-lhes resistência.
E, suspirando, acariciou os cachos de seda loura do menino. Com seus olhos azuis imensos, cílios espessos, tez branca e rosa, faces firmes e rechonchudas, ele teria tentado os pintores flamengos. Sua beleza oprimia o coração de Angélica. Enquanto o olhava, ela não podia impedir-se de evocar Filipe, seu segundo marido, nem de recordar o terrível mal-entendido do destino que lhe enviara o mensageiro de Joffrey de Peyrac, quando acabava de se casar.
Na época, ela lutara como uma possessa para se fazer desposar pelo glacial Filipe, e assim cavara com as próprias mãos o fosso que a separara para sempre de seu primeiro amor. "Ah! por que você está sempre querendo forçar o destino?", perguntava-lhe Osman Ferradji.
Ela suspirou, desviando os olhos, e mergulhou em profundo devaneio. Após alguns instantes, o menino retirou-se lentamente. Ao menos por ele não precisava temer. Carlos Henrique du Plessis, filho do marechal, afilhado do rei, não seria despojado da herança pelos erros da mãe. No entanto, o mais velho, o orgulhoso Florimond, herdeiro legítimo dos opulentos condes de Toulouse, de mais alta linhagem e riqueza que todos os Plessis reunidos, não estaria com o destino tão ameaçado e obscuro como o de um bastardo?
Ela quisera encontrá-lo assim que chegara, e com muita dificuldade, a voz entrecortada de esgotamento, ditara uma carta a mestre Molines para seu irmão, o Reverendo Padre de Sancé. Ignorava que a missiva fora objeto da desconfiança do Capitão Montadour. Sendo a cultura do capitão bastante rudimentar, este fizera com que o intendente lhe lesse o conteúdo e, após pesar suas responsabilidades, expedira-a primeiro para o Sr. de Marillac. Assim mesmo a carta chegara a seu destino, pois hoje Angélica recebia a resposta do jesuíta,
Ali tomava conhecimento de que o" Revejendo Padre de Sancé tinha ordens do rei para manter o jovem Florimond de Morens no colégio até que Sua Majestade julgasse oportuno devolvê-lo à mãe. O Reverendo Padre de Sancé aprovava as ideias do soberano, preocupado em proteger o menor de seus súditos. Florimond não tinha de fato nada a ganhar voltando a estar sob a influência de uma mulher cuja conduta sé revelara tão ingrata como inconsiderada. Que ela provasse- arrependimento e recuperasse o favor do rei, e então poderia'rever o filho, para quem deixaria de ser um deplorável exemplo de rebeldia e irreflexão, ainda que o lugar de um garoto de doze anos fosse antes o colégio que a esteira de uma mãe que sempre se mostrara singularmente instável e volúvel. Ele entrava-na adolescência. O tio reconhecia que ele era bastante dotado para o estudo, mas preguiçoso, difícil de compreender apesar dos modos desenvoltos e, em suma, simulado. Com persistência, poder-se-ia fazer dele um bom oficial.
Raimundo de Sancé terminava a carta com palavras sibilinas que traíam seu amargor. Estava cansado, dizia, de carregar nos ombros o peso das faltas dos irmãos e de ser o único a salvar o nome Sancé de Monteloup do desfavor real. Em breve não lhe restaria senão sofrer ele mesmo com esse peso, embora fosse e quisesse permanecer um fiel súdito do rei. Mas como não atrair o descontentamento de Sua Majestade quando passava o ano tendo de interceder por culpados cuja persistência no erro só igualava uma inacreditável leviandade? Duras lições não haviam bastado para domar Angélica? Ele não a pusera sempre de sobreaviso, como fizera com Gontran, Dionísio, Alberto?... Ah! mas que importavam as admoestações, os avisos?... Seu sangue selvagem e indisciplinado falava sempre mais alto.
Um dia renunciaria a tomar o partido deles...
Essa resposta foi o que mais revoltou Angélica. Assim, negavam-lhe Florimond, e isso era indigno. Florimond, o órfão, não pertencia senão a ela. Somente a ela. Era um amigo, um companheiro. A prova única e viva de seu amor perdido.
Florimond e Cantor, seus dois primeiros filhos, tinham-lhe ficado mais próximos desde sua viagem ao Mediterrâneo. Parecia-Ihe que recuperava o amor de Cantor ao segui-lo em sua louca procura, partilhando o sonho secreto do pajenzinho. Tinham-se tornado um pouco cúmplices, ela e ele, o menino morto e sua mãe presos na mesma armadilha, e desde então ela o sentia menos ausente, menos "desaparecido".
Mas precisava de Florimond, o primogénito, nos traços de quem começava a ver reviver aquele outro semblante que o passado esfumava.
Releu a carta com furor impotente. Depois, os protestos do irmão retiveram-na. Por que queria mal a toda a família ao invés de considerar Angélica a única responsável por seus aborrecimentos, como de hábito? Em sua infância, quando ocorriam catástrofes, era sempre por culpa de Angélica. Mas desta vez ele falava no plural.
Ela refletiu. Uma frase do Sr. de Marillac voltou-lhe à memória: "a indisciplina de uma família, da qual vários membros ofenderam-me gravemente", ou algo assim. Não recordava os termos com exatidão, pois não se acautelara no momento. Só ao ligar a frase ao que dissera Raimundo começou a perguntar-se sobre alguma alusão a um fato que ignorava. Estava mergulhada nessas reflexões quando um criado veio dizer-lhe que o Barão de Sancé de Monteloup desejava vê-la.
CAPITULO IV
O trágico destino de Gontran, o artífice
O pai de Angélica, o Barão de Sancé, morrera no ano anterior, em meio ao inverno que precedera sua partida para Marselha. Assim, ao anunciarem" a vrsita, ela ergueu-se no canapé sem crer em seus ouvidos.;.0 homem de casaco castanho e grossos sapatos enlameados que transpôs os degraus da entrada tinha o mesmo porte de seu pai. Ela o viu chegar pela galeria e reconheceu o semblante taciturno e amuado dos rapazes de Sancé. Um de seus irmãos? Gontran?... Não, Dionísio.
— É você, Dionísio?
— Bom dia - disse ele.
Ela o deixara militar, e muito bem colocado, numa guarnição nos arredores de Paris. Encontrava-o agora um fidalgo de província, já com o caminhar pesado e o semblante inquieto do Barão Armand. Ele revirava um bilhete entre os dedos, com ar indeciso.
— Ocorre que recebi uma ordem do Sr. de Marillac, governador da província, solicitando-me que viesse visitá-la. Então, vim.
— Decididamente, não se age mais senão sob ordens nesta família. Que encantador!
— Cáspite! A situação é bem difícil!
— Que está se passando?
— E você quem pergunta, você que teve a polícia inteira do reino em seu encalço e que foi trazida sob escolta como uma criminosa? Toda a província o comenta.
— Está bem. Mas que ocorre além disso?
Dionísio sentou-se com ar abatido.
— Sim, é verdade. Você não está sabendo, e vou contar-lhe, pois foi para isso que o Sr. de Marillac me enviou, para que "os fatos a levem a fazer reflexões salutares". São os termos deje. Aí os tem.
— Mas a respeito de quê?
— Não se impaciente. Já o saberá. É horrível! A vergonha pesa sobre nossa família. Ah! Angélica, por que você teve de partir?
— Não teriam ousado hostilizar minha família apenas porque foi de meu agrado viajar sem pedir a autorização do rei.
— Não. Não foi diretamente por isso. Mas se você estivesse presente!... O caso ocorreu alguns meses após sua partida. Não se sabia muito bem por que você partira, mas o rei estava de terrível humor. De minha parte, não encarava a coisa muito tragicamente. Dizia comigo: "Angélica saiu-se bem de muitas outras. Se cometeu uma tolice, é bastante bela para repará-la". O que mais me aborrecia, confesso-lhe, é que não sabia onde encontrá-la para pedir-lhe um empréstimo. Justo à época, meti na cabeça comprar um cargo vago no regimento dos guardas de Versalhes. Contava com você para que me ajudasse com sua influência e... seu dinheiro. Como o caso estivesse muito adiantado, fui até Alberto, pois sabia que ele prosperara na corte de Monsieur. Minha inspiração foi boa. Encontrei Alberto mergulhado em ouro. Disse-me que Monsieur estava louco por ele e cumulava-o de favores: doações, cargos e até outorga dos benefícios de nossa grande Abadia de Nieul. Era uma ideia que tinha em mente havia tempo, aquele ambicioso! Com isso o astuto sentia-se a coberto da pobreza até o fim de seus dias. Bem podia adiantar-me algumas centenas de libras, a mim, pobre militar sem a cabeça e o talento para agradar aos homens. Ele não se fez de rogado, e eu pude comprar o cargo. Acantonei-me em Versalhes. Para nós, oficiais, era mais brilhante do que em Mélun, e mais rigoroso também. Era preciso estar sempre em manobras para comprazer ao rei. Mas havia as festas, a corte, o jogo. Havia também outras coisas menos agradáveis em que nos envolvemos amiúde por minha própria vontade: dominar as agitações dos pedreiros e artesãos... Executavam-se grandes obras em Versalhes, você se recorda?
— Recordo-me.
A voz monocórdia do rapaz recriava um cenário esquecido:
a luminosidade das pedras em blocos empilhados, rangendo sob as serras gigantes, o emaranhado de andaimes em torno das duas alas do palácio que era preciso aumentar, aquele zumbido de canteiro de obras que jamais se detinha, juntando-se aos passeadores galantes no fundo do parque. Gritos," sons de martelo, o ranger de carroças, o raspar das pás... Um-verdadeiro exército formigante de operários.
- Errou-se em recrutar muitos deles pela força, como para o exército. Confinaram-nos no lugar. Não se permitia que vissem as famílias, com receio de que não voltassem, se se relaxasse a disciplina. Muitos então estavam descontentes. A coisa agravou-se quando no verão o rei empreendeu a construção de um tanque de água junto à floresta, bem em frente à escadaria que domina o laranjal. O calor era terrível... Entraram em cena os mosquitos dos pântanos, as febres. Os homens morriam como moscas... Fomos requisitados para enterrá-los. E certo dia...
Dionísio descreveu á agitação que tomou conta dos escravos. Contramestres lançados do alto dos andaimes. Bandos em camisa de trabalho que invadiam os jardins com punções e martelo em punho. Os suíços selvagemente assassinados. Por sorte um regimento desfilava na Praça de Armas. Fez-se de imediato com que os soldados se dispusessem em ordem de batalha e subissem até o palácio. A rebelião levou duas horas para ser dominada. Duas horas sob o fragor dos mosquetes, do calor, dos gritos de ódio e de agonia. Rechaçados, barricados novamente nos andaimes, os míseros empurravam blocos de pedra, precipitando-ôs de uma altura de quatro andares, e os soldados morriam esmagados como percevejos. Mas os mosquetes eram certeiros. Logo os corpos juncavam a areia branca.
Dos balcões que davam para o sul, a Sra. de Montespan e suas damas olhavam, pasmas.
Por fim, os trabalhadores se renderam. No dia seguinte, ao alvorecer, os cabeças foram conduzidos à orla dos bosques, bem em frente ao palácio, junto ao tanque que"fora começado, para ali serem enforcados. E então, no momento em que lhe passavam a corda no pescoço, Dionísio o reconheceu: Gontran! Gon-tran, seu irmão! A fronte ensanguentada, o olhar bravio, as pobres vestes rasgadas, manchadas de tinta, as mãos calosas corroídas pelos ácidos, Gontran de Sancé de Monteloup, seu irmão artífice!
O jovem oficial gritara: "Ele não!", lançando-se diante do irmão e proeegendo-o com seu corpo. Não se podia cometer o sacrilégio: enforcar um Sancé de Monteloup!
Os homens pensaram que ele enlouquecera. Nos lábios de Gontran havia um sorriso trocista e cansado.
Procuraram o coronel. Com muita dificuldade, ofegando, Dionísio tentou explicar-lhe que o rebelde de punhos atados às costas tinha o seu nome e sua estirpe, era seu próprio irmão, nascido do mesmo pai e da mesma mãe, também irmão da Marquesa du Plessis-Bellière. O nome célebre, acrescido à semelhança evidente entre os dois irmãos, e talvez o porte arrogante, altivo, do condenado - um porte de nobre - convenceram o coronel e decidiram-no a adiar a execução. Não se podia, no entanto, transgredir as ordens de que antes do pôr-do-sol todos os cabeças pagassem por seu gesto insensato. Dionísio tinha até a noite para o perdão do rei.
Ele, obscuro oficial, ir até o rei! Ele não conhecia ninguém!
- Se você estivesse presente, Angélica. Dois meses antes você estava na corte, o rei não via senão por seu intermédio, você teria apenas que dizer uma palavra. Por quê, mas por que você desapareceu em plena ascensão, em plena glória? Ah!'se estivesse presente!
Ainda uma vez Dionísio pensara em Alberto, aquele que no momento parecia ter a fortuna mais segura. Tomaria muito tempo encontrar o jesuíta Raimundo, e mesmo os jesuítas, se grande é seu poder, não gostam de improvisações. Ora, o coronel dissera: ao pôr-do-sol. Dionísio galopara até Saint-Cloud a toda a brida. Monsieur estava caçando, e naturalmente o favorito o acompanhava... Dionísio galopara atrás da caçada, levando até o meio-dia para encontrar Alberto. Fora preciso convencer Monsieur a privar-se do companheiro por algumas horas, o que ainda tomara um certo tempo.
- Ele sabe adular Alberto com sorrisos, afagos, pior que uma mulher. Eu os via trocando olhares e brincando com os punhos de renda e pensava em Gontran ao pé da árvore. Alberto me desgosta, você o sabe, mas é preciso reconhecer que não foi covarde. Tudo o que podia fazer ele o fez. Em Versalhes, onde chegamos ao entardecer, bateu em todas as portas. Abordava todo mundo. Nada temia, fosse importunar, suplicar, adular ou receber recusas grosseiras. Mas era preciso esperar muito para ser atendido, ir aqui e acolá. Eu viu o sol se pôr... Por fim o Sr. de Brien-ne se dispôs a ouvir-nos. Ele ausentou-se um momento. Voltou em seguida, dizendo que talvez pudéssemos abordar a rei à saída do gabinete, onde recebia naquele dia os principais almotacéis de Paris. Aguardamos junto aos cortesãos no Salão da Guerra, no fim da Grande Galeria... você conhece?
- Conheço.
A porta se abre, o rei surge, grave, majestoso, enquanto à sua vista os murmúrios silenciam, as frontes se inclinam, as damas se curvam em reverências num roçagar de seda.
O jovem Alberto precipita-se de joelhos, pálido, dramático:
- Piedade, sire, piedade para meu irmão Gontran de Sancé!
O olhar do rei é sornbnó. Ele sabe quem são os dois jovens e por que ali estão como suplicantes. No entanto, pergunta:
- Que fez ele?
Eles baixam a cabeça.
- Encontrava-se -entre os homens que ontem se revoltaram e que durante algumas horas semearam a inquietação em seu palácio, sire.
O rei faz um momo de ironia:
— Um Sancé de Monteloup, um nobre de velha cepa entre os pedreiros! Que história me contam?
— Infelizmente é verdade, sire. Nosso irmão sempre foi dado a estranhas loucuras. A despeito do furor de nosso pai, que o deserdou, fez-se artífice para poder pintar.
— Estranha loucura, com efeito.
— Nossa família perdera-o de vista. Não foi senão no instante em que iam enforcá-lo que meu irmão Dionísio o reconheceu.
— E você transgrediu as ordens de execução? - perguntou o rei, voltando-se para o oficial.
— Sire... era meu irmão!
O rei permanece impassível. Todos sabem que fantasma passa e repassa entre os atores do drama, um nome que não se pronunciará, uma silhueta leve a altiva de mulher, triunfante, adorno de Versalhes, e que desapareceu, fugiu, deixando o rei consternado, ferido. Quando por fim ele fala, sua voz é surda:
- Senhores, pertencem a uma família turbulenta e soberba, que não nos felicitamos de ter entre nós. Trazem nas veias o sangue dos grandes feudais cheios de orgulho que tantas vezes agitaram nosso reino. Fazem parte daqueles que com demasiada frequência tendem a perguntar se é de dever obedecer ou não ao rei, decidindo, por vezes, que não. Conhecemos o homem a quem nos pedem para absolver. Um ser perigoso, ímpio, violento, que se rebaixou até os espíritos simples para melhor arrastá-
los ao mal e às desordens. Fizemos com que se colhessem informações a seu respeito. Quando lhe soubemos o nome e filiação, que pasmo! Um Sancé de Monteloup, dizem? Em que o provou?
Serviu em nossos exércitos? Pagou o imposto de sangue que todo homem de raça nobre deve ao reino? Não. Desdenhou a espada para tomar o pincel de pintor e o buril de artífice,
aviltando-se, rejeitando as responsabilidades que devia a seu nome e renegando seus antepassados ao aventurar-se com espíritos grosseiros, preferindo-os aos de sua casta. Pois foi o que declarou: que preferia tratar com um pedreiro a tratar com um príncipe. Se tivéssemos a certeza de que esse homem de destino inexplicável era um doente, um ser fraco, sofrendo de uma tara que o levasse a excessos, à vadiagem... Isso se encontra nas melhores famílias. Mas não... Nós o ouvimos... Quisemos ouvi-lo... Pareceu-nos inteligente, voluntarioso, animado por um estranho ódio... Reconhecemos o tom altivo, cheio de rancor que enfrentava o rei...
Luís XIV se interrompe. Malgrado o domínio de si mesmo, existe em sua expressão algo de indefinido que causa medo. Uma dor profunda. Os olhos acinzentados de Alberto de Sancé, que ao se arregalarem adquirem uma luminosidade esverdeada, recordam-lhe um outro olhar. Diz, então, com voz surda:
- Ele agiu como um louco. Deve pagar por sua loucura. Que morra sob o suplício infamante reservado aos miseráveis. Enforcado! Não sonhava levar a insolência a ponto de se fazer ouvir pelo Parlamento e induzi-lo a nos impor o ostracismo dos operários, como outrora Étienne Mareei impôs, pela força e pela rebelião, o ostracismo das corporações a nosso antepassado Carlos V?...
Tais palavras eram dirigidas aos almotacéis de Paris, que justo nesse dia apresentavam reivindicações populares às quais o rei não queria dar prosseguimento.
O rei passa, apoiando a mão no castãojie ouro da bengala de ébano.
O jovem Alberto de Sancé tivera então uma inspiração suprema.
- Sire - exclamou -, erga os olhos. Verá no teto de Versalhes a obra-prima de meu irmão artífice. Ele pintou para sua glória...
Um raio vermelho do sol poente vinha da janela, iluminando no alto o deus Marte em seu carro puxado pelos lobos.
O rei, imóvel, quedava-se pensativo. A expressão da beleza que amava devia tê-lo aproximado um instante do revoltoso de mãos calosas que d enfrentara, fazendo-o descobrir um mundo fugidio onde a nobrezaihumana adquiria outras perspectivas. E seu espírito prático censurou-o num repente por fazer desaparecer o operário capaz de tais maravilhas. Os verdadeiros artistas, os quais iam além das receitas ensinadas, eram raros. Por que o responsável pelas obras de Versalhes, o Sr. Perrault, não o advertira do talento daquele que acabavam de condenar sem julgamento? Em meio ao terror causado pela revolta, diante da cólera do rei, ninguém ousara interceder pelo incitador. Subitamente, disse Luís XIV:
- É preciso que se adie a execução. Queremos examinar o caso deste homem...
E voltando-se para o Sr. de Brienne ditou-lhe uma ordem de clemência. Os dois irmãos, ainda de joelhos, ouviram-no comentar:
- Ele deveria trabalhar nos ateliês do Sr. Le Brun.
Os irmãos correram pelos jardins escuros até o tanque de onde exalavam os miasmas mortais, na orla. do bosque onde giravam os enforcados.
Chegaram demasiado tarde. Gontran de Sancé de Monteloup estava morto no ramo de um carvalho, diante do palácio de Versalhes, falésia branca imutável no crepúsculo.
Ouvia-se o coaxar dos sapos.
Os dois irmãos despenduraram o corpo. Alberto buscou uma carruagem, seu criado e seu cocheiro. Ao alvorecer, a equipagem tomou a estrada do Poitou. Galoparam sem descanso sob o sol escaldante do verão, sob a claridade azulada das noites, devorados pela pressa de poder deitar na terra de seus antepassados aquele grande corpo abatido, de mãos agora inertes e estéreis, como se a terra da região pudesse curar-lhe as feridas, mitigar o amargo desgosto que permanecia expresso no rosto intumescido.
Gontran, o artífice! Gontran, o pintor! Que via duendes nos tachos de cobre de Monteloup, que esmagava cochonilhas vermelhas e terras amarelas para revestir as paredes e que se inebriava com o verde das folhas como se fossem um capitoso elixir.
Gontran e sua alma selvagem, secretamente soberba!
Chorando como crianças, Alberto e Dionísio enterraram-no junto à igreja da aldeia de Monteloup, no túmulo da família.
- Em seguida vim ao castelo - disse Dionísio. - Estava tudo morto, nenhum ruído na casa, nenhuma criança. Havia apenas na cozinha a babá Fantina com seus olhos de brasa, e tia Marta, sempre a mesma, gorda, corcunda, diante de sua eterna tapeçaria. Duas velhas fadas aos resmungos, debulhando ervilhas.
"Então, fiquei. Sabe o que nosso pai escreveu no testamento: 'A herança caberá ao filho que retomar a terra'... Por que não eu? Trouxe de volta os muares, procurei os arrendatários e depois me casei... Com Teresa de la Mailleraie. Sem dote, mas com bom nome, e gentil. Teremos um filho na época da colheita das maçãs.
"Aí o tem", concluiu o novo Barão de Monteloup, "o que o Sr. de Marillac desejava que lhe contasse. Não sobre meu casamento, quero dizer, mas sobre o caso de Gontran, para que você reflita e compreenda melhor o que deve ao rei, após tantas ofensas de sua parte e da parte de nossa família. Mas penso..."
Ele observou o semblante da irmã, também mais velha que ele, de quem sempre tivera certo medo, por sua beleza, audácia e pelo mistério de seus sucessivos desaparecimentos. Hoje, novamente voltava, e novamente diferente, estranha. A delgada ossatura do maxilar mostrava-se sob a linha afinada das faces. Ela estava pálida e rígida, atingida no âmago pela história que acabava de ouvir. Dionísio rejubilou-se e tremeu a um tempo.
Angélica seria sempre a mesma, pensou, mas não eram dias de paz os que se preparavam para ela.
- O Sr. de Marillac conhece-a bem pouco - murmurou. - É minha opinião que, se a queria submissa, cometeu um erro fazendo-a saber que um Monteloup foi enforcado em nome do rei.
CAPÍTULO V
Molines tenta convencer Angélica a fazer sua submissão
Molines, o intendente dos domínios, vinha vê-la todos os dias, desde que ela retornara. Com os livros de contas sob o braço, o ancião subia lentamente a grande aléia que de sua casa de tijolos e telhado de ardósia conduzia ao castelo.
Independente, quase senhor do castelo como outrora, burguês de fortuna e negócios próprios, mestre Molines não deixava de ser o devoto servidor dos Plessis-Bellière. Eram sua razão social, ao abrigo da qual conduzira seu próprio comércio ao longo de uma existência industriosa. Angélica, e mais ainda o Marquês Filipe, sempre ignoraram as exatas atividades de mestre Molines. O que sabiam é que se achava presente, sempre que dele se necessitava. Em Paris, quando os castelãos se encontravam na corte; no Plessis, quando o acaso ou os infortúnios traziam-nos de volta a suas terras.
Foi, pois, o semblante de traços severos e duros do intendente Molines, a que a velhice dava no entanto, aos poucos, uma expressão de antiga sabedoria, um dos primeiros a inclinar-se sobre a forma pálida que dois mosqueteiros desciam de uma carruagem, enquanto o Sr. de Breteuil bradava agitado aos criados que haviam acorrido:
- Trago-lhe a Sra. du Plessis. Ela está à morte. Não tem senão mais alguns dias...
Nenhuma emoção transparecera no rosto de Molines. Ele saudara Angélica com tanta impassibilidade como se ela acabasse de chegar de Versalhes para, numa breve estadia à época dos pagamentos dos rendeiros, negociar algum abate de árvores ou venda de domínios, a fim de pagar suas dívidas de jogo. E fora ao ouvi-lo anunciar com dignidade que aquele ano as colheitas seriam desastrosas, que ela começara a compreender onde se achava, a sentir a segurança da terra natal e dp passado penetrar-lhe os membros extenuados.
Ele não lhe fizera nenhuma feprimenda, nenhuma pergunta.
Tê-lo-iam autorizado as longas relações que os uniam e o papel particular que desempenhara outrora na educação das crianças de Monteloup.
Ele nada disse. Não fez nenhuma alusão aos transtornos e inquietações que a partida de Angélica lhe haviam causado e aos passos que dera, ativo e implacável, para salvar os negócios mais seguros, ameaçados por um vento devastador. O sopro da desgraça não anunciava, as primícias da ruína? Já se reuniam os ratos, os corvos, os vermes agitados que se sustentam dás fortunas instáveis. Molines piísera ordem em tudo, dera "garantias, fizera contratos de penhor. A Sra. du Plessis estava em viagem, dizia. Ela voltará. Nenhuma liquidação em vista.
Mas, e o rei?, perguntavam. E a cólera do rei?... Ninguém a ignorava. A Sra. du Plessis não seria detida, colocada na prisão?...
Molines encolhia os ombros e dava a entender que saberia cuidar do que era seu, e, como dera provas amiúde de sua vindita e de sua astúcia, a efervescência se acalmara. Aceitaram esperar. Assim, durante todo o longo ano em que a incerteza sobre o destino de Angélica atormentava os espíritos, o intendente segurara com mão de ferro a armadura social e financeira na qual repousava a fortuna da fugitiva marquesa e de seu herdeiro, o pequeno Carlos Henrique. Graças a ele, os serviçais haviam permanecido em seus lugares, tanto no castelo, como em Paris, na mansão da Rue du Beautreillis e na do Faubourg Saint-Antoine.
Agora Molines enviava missivas aos quatro ventos, anunciando o retorno da castelã. Não mencionava que ela estava sob guarda, lembrando apenas em quanta amizade era tida pelo rei, e que breve poderia lançar sobre os negócios o olhar pleno de autoridade e competência que atraíra a estima do Sr. Colbert. Isso para os comerciantes de Paris e os armadores do Havre, entre os quais Angélica possuía interesses.
Nos domínios, Molines prosseguia suas viagens de inspeção. Com a pontualidade de antigamente apresentava-se aos arrendatários e meeiros reclamando contas, fiscalizando culturas e trabalhos. Os protestantes tinham o mesmo direito a suas. visitas que os católicos. Eles mostravam-lhe então os soldados nas casas, comendo os queijos e os presuntos, e levando os cavalos a pastar na aveia recém-brotada. Eram os "convertedores" do Sr. de Marillac. Mestre Molines não fazia nenhum comentário. Limitava-se a lembrar aos arrendatários ps pagamentos e marcava os números nos livros.
"Que fazer, mestre Molines? Não é o senhor, como nós, da confissão de Calvino?", diziam os camponeses huguenotes, em pé diante dele, o grande chapéu negro na barriga, o olhar sombrio e fanático. "Devemos abjurar para preservar nossos bens ou aceitar a ruína?"
"Tenham paciência", respondia-lhes.
Também ele teve sua opulenta residência junto ao parque pilhada pelos dragões. Queimaram-lhe cem libras de velas e bateram em caçarolas durante dois dias e duas noites para impedi-lo de repousar: "Abjure, velha raposa, abjure..."
O fato ocorreu antes do retorno de Angélica. Quando Montadour instalou seu acantonamento e assumiu as funções de guardião de uma das mais belas mulheres do reino, e em não pertencendo a Sra. du Plessis à religião reformada, Marillac acreditou político dar ordens para que se deixasse sua gente em paz.
Liberado, Molines começou a comparecer pontualmente ao castelo, e Montadour, que o considerava um dos piores huguenotes do lugar por sua influência sobre os camponeses, gritava-lhe:
- Até quando seu credo, velho herético?
Na primeira vez em que viu Angélica sentada no salão do Príncipe de Conde, tendo enfim nas faces as cores da saúde, o intendente suspirou, baixando as pálidas pálpebras. Ela apostaria que, por um breve instante, ele dera graças a Deus. Aquilo era tão raro em seu comportamento, que em vez de se sentir comovida, ela ficou vagamente inquieta.
Nesse dia, pela primeira vez, Molines falou-lhe das desordens e da fome que ameaçavam a região desde que o Sr. de Marillac empreendera a conversão do Poitou.
— Nossa província deve servir de campo de experiência para os Propagadores, senhora. Se o método aplicado aos protestantes se revelar rápido e eficaz, será estendido a todo o reino. Malgrado o Edito de Nantes, o protestantismo será apagado da França.
- Que me importa? - disse Angélica, olhando pela janela aberta.
- Importa-lhe nisto... - replicou Molines secamente.
Abrindo mais uma vez os livros de contas, demonstrou-lhe sem esforço que seus domínios, em sua maior parte nas mãos competentes dos protestantes, já haviam sofrido graves prejuízos. Impedia-se que eles fossem aos campos, que tratassem do gado. Com os números, conseguiu comovê-la.
— É preciso protestar. Seus consistórios não podem lembrar junto às autoridades superiores os acordos do edito?
— A quem se dirigir? O próprio governador da província instiga tais abusos. Quanto ao rei!... O rei ouve quem o aconselha, quem o persuade... Aguardava seu retorno, Angélica, pois você muito poderá para fazer cessar tais desordens. Vá ao rei. E o único caminho que se abre para sua salvação, a da província e, quem sabe, a do reino.
Ali estava onde ele queria chegar.
Angélica fixou Molines com olhos trágicos, a boca cheia de palavras, a ponto de ela não poder pronunciá-las e seus lábios fechados tremerem. Ele apressou-se"em responder antes que ela falasse, pois havia vários dias, inclinado sobre aquele rosto enfermo, iniciara um diálogo silencioso e cortante.
Por mais que conhecesse aquela estranha filha do Poitou, de que lembrava a graça ligeira e infantil pelos fundos caminhos, e que lhe lançava um olhar a um tempo ousado e feroz quando o encontrava, jamais a sentira tão estranha como desde esse retorno. Ele não tinha certeza de se fazer entender. Então falava-lhe dura e sucintamente, como no dia em que ela estivera em sua casa para saber se devia desposar o Conde de Peyrac.
Hoje ele lhe dizia: "Vá ao rei".
Mas Angélica já repisara muitas vezes_as razões que ele adiantava e sacudia a cabeça em negativa.
- Sei do seu orgulho - insistia o intendente -, mas de seu bom senso também. Esqueça seus rancores. Você não apelou ao rei quando prisioneira dos berberes? E não respondeu ele a seu apelo? Você ainda pode tudo se for hábil. E mesmo reconquistar, sobre o espírito desse homem a quem enfrentou, um poder ainda maior, pois que durante longo tempo desejado.
Angélica continuava a dizer não. Revia Mezzo Morte, o almirante de Argel, com seu manto adamascado de ouro, ouvia-lhe o riso untuoso de invertido enquanto gritava: "Aquele que nomeia Jeffa-al-Khadun morreu de peste há três anos", e compreendia que começara a perder a esperança a partir desse instante. Também imaginava um corpo de enforcado girando na sombra do crepúsculo em Versalhes. E voltado para ela, melancólico e magnífico, seu segundo marido, Filipe du Plessis-Bellière, com o mesmo olhar da última noite, antes de ir lançar-se voluntariamente sob os canhões inimigos.
"Adeus, coração, minha vida.
Se temos que servir o rei,
Devemos, então, separar-nos..."
O rei tomara-lhe tudo.
Ela sacudia a cabeça, e os cabelos rebeldes, que compunha com dificuldade, tornavam-na próxima, malgrado o rosto cinzelado de rainha, da criança dos fundos caminhos que outrora opunha às perguntas do intendente Molines uma recusa altiva.
Por fim falou. Contou o que fora a viagem, a partida. Continuou a não apresentar os motivos, mas ao acaso das frases falou "dele".
- Não o encontrei, compreende, Molines? Ele talvez esteja realmente morto agora... de peste ou de outra coisa qualquer...
A morte é tão fácil no Mediterrâneo!...
Pareceu refletir e balançou a cabeça, retomando em tom mais baixo:
- ... As ressurreições também!... Que importa? Fracassei. Sou uma prisioneira.
A mão ainda diáfana, que ela desistira de adornar com os anéis, agora demasiado largos, passou-lhe diante dos olhos como se exorcizasse uma visão tenaz.
- Decerto não poderei esquecer o Islã. Tudo o que acabo de viver reflete-se à minha frente sem cessar. Dir-se-ia um desses tapetes do Oriente, de lãs multicores, nos quais é tão bom caminhar de pés descalços. Poderia consentir naquilo que o rei deseja de mim? Não. Poderia voltar a Versalhes? Não. Sinto náuseas só em imaginá-lo. Rebaixar-me ao nível dos mexericos de granja, das intrigas, dos complôs? Você não sabe o que me pede, Mo-lines. Não existe mais uma medida comum entre o que sou, o que sinto e a existência a que você"deseja devolver-me.
— No entanto, não tem escolha-senão entre a submissão e a revolta.
— Não desejo a submissão.
— Então a revolta? - perguntou, irónico. - Onde estão suas tropas? Onde estão suas armas?...
Angélica não pareceu atingida por seus sarcasmos.
— Há coisas que o rei teme, todo-poderoso que seja: a rivalidade dos grandes, a hostilidade das províncias.
— Tais coisas não atingem os reis senão depois de muito sangue derramado. .Ignoro seus intentos, mas a permanência junto aos berberes ter-lhe-i-a ensinado a desprezar a vida humana?
- Ao contrário. Parece-me que lhe compreendi o real valor.
Ela pôs-se a rir, atravessada por uma recordação.
- Mulay Ismael cortava de bom grado duas ou três cabeças toda manhã para ter apetite. A vida e a morte misturavam-se tão estreitamente: que a cada dia era preciso perguntar sobre o que, em verdade, era importante: viver ou morrer. Assim se aprende
a conhecer-se'.
O velho intendente inclinou várias vezes a cabeça. Sim, agora ela se conhecia, e era o que o desesperava. Enquanto uma mulher duvida de si própria, ainda é possível fazê-la mostrar-se razoável. Quando atingiu a maturidade, estando.de posse de si mesma, pode-se temer o pior, pois não obedece mais senão às suas próprias leis.
Ele sempre pressentira que os aspectos da personalidade de Angélica eram inúmeros e se apresentariam como vagas sucessivas, surgindo uma após outra dos repetidos embates em sua vida. Quisera reter a marcha do destino, o impulso irresistível que sem cessar levava a existência dela para mais longe, e ao qual ele se exasperava de ver Angélica abandonar-se com a flexibilidade das mulheres que não procuram tanto se definir, aceitando-se diferentes a cada dia.
Não teria podido permanecer em Versalhes, dizia consigo, impaciente, já que tudo conquistara?... À época ela era acessível, inteira, possessiva, mordendo os frutos do poder, da riqueza e do prazer. A vaga de sua misteriosa odisseia levara-a para além das aparências. Não mais se contentaria com ilusões..Sua força vinha de seu desprendimento, mas sua fraqueza nasceria de não mais poder amalgamar-se à sociedade acre e material que o rei de França construía sob sua férula.
- Como você me conhece bem, Molines! - disse ela, adivinhando-lhe os pensamentos com uma certeza que o fez estremecer.
"Deus sabe que poder extralúcido ela adquiriu naquelas terras selvagens e misteriosas", disse ele consigo, cada vez mais inquieto.
- É verdade, não deveria ter partido. Tudo então seria mais simples, e eu teria continuado a viver na corte com uma venda nos olhos. A corte. Viver na corte?... Faz-se tudo o que se deseja na corte, exceto viver. Talvez esteja envelhecendo, mas não poderia mais contentar-me com as bagatelas brilhantes que fazem tantas marionetes se agitar. Ah! Possuir um tamborete diante do rei... Que pináculo!... Estar sentada à mesa da rainha, jogando cartas, que prazer!... Paixões estéreis, tão pobres, e que no entanto acabam por invadi-lo e sufocar como serpentes, o jogo, o vinho, os adornos, as honrarias... Talvez, de resto, eu amasse a dança e a beleza dos jardins, mas eram pagas com servidão em demasia: os acordos covardes, a cobiça dos imbecis a quem se acaba por abandonar a carne... por tédio, os sorrisos que é preciso conceder a cancros repelentes, mais repelentes, por se adivinharem no fundo dos olhos dos que rodeiam, do que nas faces dos leprosos que vi no Oriente... Você acredita deveras, Molines, que eu ganharia minha vida ao preço de tantas dores, que eu mereceria o milagre de continuar vivendo, para me deixar escravizar novamente de modo tão vil? Não! Não! Então o deserto nada me teria ensinado...
Ao contemplá-la, ainda ferida, com as marcas do martírio pousadas como um véu sobre sua beleza, e deixando apenas entrever-lhe os traços purificados, o duro Molines sentia-se invadido a um tempo pelo respeito e pelo desalento. Malgrado as provações, o raciocínio de Angélica permanecia infalível, mas era de se deplorar que ela o usasse agora para pousar um olhar intransigente sobre as torpezas da época. Molines não pôde conter um suspiro. Na luta que empreendia, tentava menos convencê-la do que Salvá-la.
Ali estava uma catástrofe sem precedentes, iminente, na qual ele veria ruir tudo o que tornara sua vida bem-sucedida. Não apenas sua fortuna que, ele esperava, possuía origens intrincadas o bastante para que sempre pudesse salvar-lhe alguma coisa, porém outros elementos mais caros ao seu coração: o esplendor e a grandeza dos Plessis-Bellière, a-riqueza de sua província, a influência crescente, a cada ano, dos protestantes, a quem a terra devia os camponeses mais trabalhadores e os mais capazes.
Angélica, pela influência que adquirira sobre o rei todo-poderoso, representava o frágil pivô no qual repousava o equilíbrio das forças pacientemente edificadas., e que sua desafeição podia precipitar pela vertente da ruína.
- E quanto a seus-filhos? - perguntou ele.
A "jovem crispóu-se_| voltou, para a janela o olhar que amiúde parecia sorver na visão da floresta uma ajuda e uma resposta a seus temores. Suas pálpebras sombreadas batiam nervosamente,, enquanto o pensamento rejeitava, não sem esforço, o argumento de Molines.,
- Eu sei... Meus. filhos. Eles me arrastam para a submissão.
O peso de suas jovens vidas me paralisa.
Ele lançou-lhe um olhar irónico, fustigante.
- Que paradoxo, Molines, quando se pensa que a virtude se serve de meus filhos para levar-me ao leito do rei! Mas assim são as coisas nos tempos em que vivemos.
O intendente huguenote não mais protestou. Não podia contestar-lhe o perspicaz cinismo.
- Deus sabe que me bati por meus filhos quando eram pequenos e desarmados - retomou ela -, mas hoje não é mais assim. O Mediterrâneo tomou-me Cantor, o rei e os jesuítas
tomaram-me Florimond; e não tem ele, aliás, doze anos, idade em que um garoto bem-nascido começa a conduzir sozinho seu destino? A herança dos Plessis-Bellière acoberta Carlos Henrique. O rei jamais o destituirá dela. Não estou então livre para
dispor de minha pessoa?
A tez apergaminhada do intendente rosou-se sob ò efeito da cólera, e ele bateu nos joelhos com as mãos magras. Se para justificar sua loucura ela aplicava a lógica de antes, ele jamais teria êxito junto a ela.
— Está rejeitando sua responsabilidade para com seus filhos, a fim de estar livre para destruir sua existência - gritou.
— Livre sobretudo para não oferecer sacrifícios a quimeras repugnantes.
Ele mudou de tática.
— Mas afinal, Angélica, você parece considerar inelutável o sacrifício de sua virtude ao rei. Que lhe pediu ele de fato: fazer sua submissão pública diante da corte para que o retorno de seu favor não passe por um ato de fraqueza da parte do soberano. Salvaguardado o prestígio, parece-me que uma mulher, e uma mulher como você, dispõe de suficiente habilidade e astúcia para evitar...
— Com o rei? - perguntou ela, sacudida por um súbito calafrio. - Impossível! No ponto a que chegamos, ele não me considerará desobrigada, e eu mesma...
Ela juntava e separava as mãos febrilmente. Ele pensou que ela se tornara mais nervosa do que no passado. E em outro plano, mais serena. Mais vulnerável e mais inatacável.
Angélica tentou imaginar a comprida galeria por onde avançaria, vestida de negro, sob os olhares agudos e zombeteiros dos cortesãos, e o rei em pé, com o ar de majestade esmagadora tão natural em seu rosto marmóreo, em seus olhos sombrios. A genuflexão, as palavras de vassalagem, o beijo de servidão... Depois, quando se reencontrasse sozinha diante dele, e quando ele avançasse em sua direção como uma inimiga para o duelo que por todos os meios estava decidido a retomar, que poderia ela opor-lhe?
Não estaria nem mesmo de posse do orgulho tolo da juventude, essa armadura forjada de ignorância que amiúde pode fazer fracassar o poder dos sentidos.
Vivera experiências carnais em demasia para não sentir, em todas as suas variedades, as harmonias secretas do domínio amoroso, e sucumbiria ao sutil acordo que impele a mulher, esse ser ávido de jugo, para o homem que a venceu.
Tantas carícias masculinas, tanto desejo e luta ao redor de seu corpo, haviam-na modelado mulher até a medula, até torná-la apta a saborear uma deleitável humilhação.
Luís XIV, aquele tático dos espíritos, não poderia ignorá-lo.
Para ligar a si mesmo sua esplêndida rebelde, ele a marcaria com seu sinete em brasa, como os condenados do reino são marcados com a flor-de-lis.
Por pudor, não contou a íyíolines as visões que a assaltavam.
- O rei não é um imbecil - disse" ela com um riso desabusado. - É difícil explicar-lhe, Mdlines, mas não posso tornar a estar diante do rei, senão a coisa se fará... e não devo fazê-la. Você sabe por quê, Molines... O homem que eu amava, o senhor que me elegera sua dama... teria podido passar minha vida a seu lado... Ela não seria essa sucessão de dias marcados pela dor e pela espera vã, a alegria cortada pela raiz, a angústia, e súbito, após uma pueril e perigosa ilusão, o pior, ou seja, compreender que há coisas sem reparação. Morto ou vivo, ele caminhou por outra estrada que não a minha. Amou outras mulheres como amei a outros homens. Nós traímos um ao outro. O que estava apenas-em esboça, nossa-vida comum, foi sufocado para sempre, e a mão do rei conduziu essa destruição. Não posso perdoar. Não posso esquecer... Não devo, seria a suprema traição, a que me faria perder todas -as possibilidades.
- Que possibilidades? - atalhou ele.
Ela passou a mão na fronte, perturbada.
— Não sei... Uma esperança, que a despeito de tudo não quer morrer. E aliás... - Ela prosseguiu vivamente: - ... E aliás, você fala em meus interesses... Consistem eles em voltar a estender minha taça aos venenos da Montespan? Você não ignora que ela tentou assassinar-me, assim como a Florimond.
— Você é bastante forte, Angélica, e bastante hábil para enfrentá-la. Já se comenta que sua influência está muito abalada. O rei se aborrece com sua maldade. Dizem que ele se compraz em longos encontros com outra perigosa intrigante, a Sra. Scar-ron, infelizmente uma antiga reformada. Com o zelo das convertidas, ela o encorajaria a empreender uma luta estúpida e estéril contra seus antigos correligionários.
— A Sra. Scarron? - perguntou Angélica, estupefata. - Mas é a governanta de seus filhos.
— Decerto... O rei não se interessa menos por sua conversação, que tem seus encantos.
Angélica deu de ombros. Depois se lembrou de que a pobre Francisca pertencia à grande família dos Aubigné, e que todos os senhores que haviam em vão especulado sobre sua miséria para obter seus favores nomeavam-na com um misto de admiração e de rancor, "a Bela Hindu"... Lembrou-se também de que raramente surpreendera mestre Molines em flagrante delito de falar por falar. Ele insistia:
— Digo-o para fazê-la compreender que a Sra. de Montespan não é mais tão temível quanto se poderia crer. Você já frustrou-lhe os intentos, quando ela estava em seu zénite. Eliminá-la hoje seria uma brincadeira...
— Vender-se - murmurou Angélica -, comprar, conduzir essa luta feroz, subterrânea, que conheço em demasia... Basta. Prefiro uma outra - disse, os olhos subitamente faiscantes. - E se é preciso, em absoluto, combater, que seja em pleno dia, em minha terra... É a única coisa que me parece verdadeira em todo esse caos... Estar aqui. Isso me faz bem e mal a um tempo. Mal, porque avalio que fracassei. Bem, porque tinha uma necessidade infinita de rever minha terra. Sim, não teria podido deixar de retornar. É estranho... Parece-me que estava escrito que desde o dia em que pela primeira vez fui arrancada ao horizonte de Monteloup - você se lembra, Molines, quando eu tinha dezes-sete anos e os carros do Conde de Peyrac levaram-me para o sul -, eu deveria, após um longo périplo, retornar à região de minha infância para lançar minha última cartada...
As palavras que ela acabava de pronunciar fizeram-na deter-se, novamente perplexa, inquieta, e ela deixou Molines, subindo lentamente a escada da torrinha, de onde podia contemplar o horizonte. Estaria o pançudo Montadour - de quem por vezes avistava a silhueta grosseira projetando-se na areia do canteiro - imaginando que ela permaneceria entre as paredes do castelo toda a primavera e todo o verão, à espera do outono e dos enviados do rei encarregados de detê-la e de conduzi-la para uma outra prisão?
Se hoje ela nem sequer se aventurava a descer a seus próprios jardins, é porque sabia que, quando chegasse o dia, poderia correr à vontade para a floresta, e o gordo guardião de bigodes de fogo jamais saberia de nada, continuando a vigiar, importante, o domínio encantado de onde a princesa teria fugido.
Imbecil, que nada conhece da vida dos campos, ignorando que uma toca tem sempre duas saídas. Se fosse preciso, quando o dia chegasse, ela iria pedir asilo ao bocage.
Mas antes de ser uma proscrita, vestida de vegetação para melhor se dissimular aos olhos do caçador, ser-lhe-ia preciso jogar tudo na balança.
- Minha última cartada...
Conquistar ainda uma vez a liberdade revèlava-se mais árduo, senão mais impossível do que se evadir do harém de Mulay Ismael. Em tal empresa, a feminilidade servira-lhe de ajuda. Esgueirar-se na sombra^ confiar na noite, no silêncio, adotar a defesa dos animais frágeis que os confunde com a cor da terra, solicitar a aliança da natureza, eram astúcias que no caso presente não atingiriam seu objetiva.
Romper um poder tão denso e sólido como o do rei de França requeria explosão, estrépito, desafio, uma força máscula e feroz.
As trombetas de Jericó não bastariam. Nesse reino submetido a um único senhor, onde encontrar aquele que poderia empunhar o gládio da rebelião?
Restituída a seu mundo, à sua posição e a seus pares, a Sra. du Plessis-Bellière podia avaliar que não tinha amigos, que não lhe era dado esperar nenhuma cumplicidade por amizade ou paixão, ou, à sua falta, por uma ambição comum. Com quanta habilidade o jovem rei soubera polarizar todas as atenções! Não existe um entre aqueles orgulhosos gentís-homens que não se incline diante dele. Rememorou-lhes os nomes como os de fantasmas: Brienne, Cavois, Louvois, Saint-Aignan... Lauzun estava na prisão. Ali permaneceria anos, sairia envelhecido, sua alegria morta...
De pé, na estreita plataforma de merlões em pedra branca, Angélica interrogava o horizonte.
- Você me protegerá, minha província?
A luz do sol, a ardósia das torrinhas queimava com reflexos metálicos. Mas o vento dos pântanos trazia sopros úmidos, fazendo ranger os cata-ventos. No céu puro volteava um falcão de asas estendidas.
A floresta começava atrás do Plessis. A frente, havia a frondo-sidade do parque, depois a dos campos, e à esquerda, bem distantes, suspensos entre o céu e a terra, meio nuvem, meio sonho, despontavam os pântanos do Poitou.
De sua torrinha, Angélica não podia distinguir nenhum vestígio de vida, pois o bocage, com seus campos ocultos pela sombra das árvores, apresenta-se aos olhos que o contemplam'com o mesmo aspecto encrespado dos domos folhosos, laqueados de luz, que caracteriza a floresta. Propriedades cultivadas por meeiro encobertas pela abóbada dos castanheiros, aldeias tão perdidas que o som dos sinos não transpõe a espessa barreira de árvores. Nesse mesmo instante em que a vida campestre pulsava ativamente, não se via senão um deserto de verdura, com sulcos negros traindo as grandes falhas rochosas por onde correm os rios de águas frias: Vienne, Vendée, Sèvres...
Falésias rosa, feridas abertas na carne do solo, escavadas de grutas, onde a luz das tochas faz surgir silhuetas ocre ou negras sob o salitre, que se dizia pintadas pelos génios. O menino Gontran as conhecera. Sua irmã Angélica, fada daqueles lugares mágicos, lhes havia mostrado. Mas como queria contemplá-las sozinho, ele mandara embora a garotinha, e Angélica, cheia de rancor, guardara para si outras descobertas.
Da planície invisível, domínio do trigo, acesso para as invasões, chega a velha estrada romana. Sua serpente cinza com escamas feitas de largas lajes subia investindo contra a rústica fortaleza que no passado cercava a terra gaulesa dos píctones, oferecendo durante muito tempo um obstáculo às legiões dos Césares.
Ao norte, como um prolongamento da floresta de Nieul, as florestas de Fontevrault, de Scevolle, de Lancloítre, de Châtelle-rault, e entre Vienne e Creuse, as de La Guerche, de Chantemerle. A leste e ao sul os pântanos da Brume, de Charente, solidão de urzes, cortina de bosques inacessível, terras úmidas e lodosas...
Com que finalidade o destino a reconduzira ao cenário familiar de árvores e de água que lhe moldara a alma?
Para qual lição, que ela se recusava a entender?
Para a descoberta de qual verdade, que dela se escondia desde a infância nas dobras dessa terra antiga, desse golfo azulado, batido pelas sucessivas vagas das civilizações?
Dólmens, essas antigas mesas de pedra de símbolo ignorado, erigiam-se no seio das florestas; menires alinhavam-se nas charnecas; capelas escuras lavradas como urnas erguiam-se em todas as encruzilhadas em honra do santo local, nas cercanias das ruínas dos templos romanos, cujos deuses vinham combater.
Foram essas duas entidades impenetráveis, florestas e pântanos, que se opuseram aos estandartes enfunados das hordas árabes no ano de 732, e às cavalgadas do inglês famélico durante a Guerra dos Cem Anos.
Terra onde se eriçavam torreões negrost construídos por mágicos ou por cavaleiros, e abadia^ exorcizadas: Ligugé, Airvault, Nieul, Maillezais...
Terra das guerras religiosas. Não ficava longe o campo maldito de La Châtàigneraie, onde as tropas católicas degolaram em 1562 uma centena de homens, mulheres e crianças que se haviam reunido para o sermão dos protestantes. E para os lados de Par-thenay, ainda era lembrado o cavaleiro .protestante Puyvault, que fazia fricassês de orelhas de monges.
Terra também das revoltas e das pilhagens: Bruscambille. Dos Va-nu-pieds que*mass~acraram os cobradores de impostos à época de Richelieu, e dos habitantes dos pântanos que nos tempos de Mazarino "fugiam como enguias pêlos canais" e a quem os soldados do rei perseguiam em vão.
Em criança, Angélica estava certa de que todos os que chegavam de fora eram estrangeiros, quase inimigos, tendo em relação a eles uma inquieta desconfiança. Temia o que pudessem trazer para perturbar a ordem secreta e saborosa da terra de sua infância, conhecida apenas por ela e pelos seus.
Hoje o mesmo sentimento vinha impor-se. O horizonte que se estendia diante de seus olhos não podia traí-la a ponto de ceder passagem aos enviados do rei de França encarregados de detê-la.
Não eram muitos os soldados que montavam guarda ao pé do castelo, ralando distraidamente um pedaço de fumo para o cachimbo. Quando fosse dado o sinal, o Poitou encarregar-se-ia de suprimi-los, bem como àqueles que se reuniam para atormentar os protestantes. Estes já eram encontrados apunhalados nos fossos. As mulheres das aldeias de Morvay e de Melles, em vez de se dirigirem para a missa, haviam-nos acolhido com cinzas e poeira. Cegados por elas, tiveram que bater em retirada e voltar em estado miserável para o acantonamento no Plessis.
O Duque Samuel de La Morinière e seus dois irmãos, Hugo e Lancelote, grandes senhores huguenotes, haviam-se refugiado nas grutas da vau de Santis, após ter matado o tenente dos dragões que pretendia ocupar-lhes a moradia.
Assim começaram a ficar claras as inevitáveis conclusões das histórias da babá Fantina: "Como os soldados causassem grande dano, os habitantes locais refugiaram-se nos bosques", ou ainda: "Para subtrair-se à vingança do rei, o pobre cavaleiro refugiou-se nos pântanos, onde viveu dois anos alimentando-se de enguias e de cercetas..."
Com a noite, um chamado de trompa vogaria pelo bocage, não para anunciar um fim de caçada, mas para a troca de misteriosas mensagens entre o huguenote acuado e seus correligionários. Um deles, o Barão Isaac de Rambourg, habitava um velho castelo em ruínas, que perfilava o torreão negro contra o céu avermelhado, em uma colina não longe do Plessis. Uma trompa distante respondia a seu chamado, e embaixo, por vezes, se ouvia Monta-dour a praguejar, inquieto. Desde que o réprobo patriarca herético La Morinière fora para os bosques, as conversões vinham se tornando raras. Podia-se apostar alto que, apesar de os templos terem sido fechados e selados, aquelas borboletas noturnas da desgraça esgueirar-se-iam à noite sob as ramagens para entoar seus cânticos em lugares inacessíveis.
Montadour queria levar seus homens até a floresta para surpreendê-lo, mas eles temiam os dédalos sombrios. Em vão tentaram pagar caçadores católicos para servir como guias.
Uma visão obsedava Angélica: a de que um cavaleiro aparecesse a galope, batesse à porta do castelo, e que esse cavaleiro fosse o rei. E que a tomasse nos braços para lhe murmurar aquilo que não escreveu senão para uma única mulher: "Minha inesquecível"...
Mercê de Deus, já era passado o tempo em que o rei de França podia lançar-se sobre um cavalo e galopar a toda a brida para encontrar a bem-amada, como fizera outrora, quando apaixonado por Maria Mancini.
Prisioneiro, ele também, de seu esplendor, precisava aguardar que ela se submetesse, e era em vão que procurava junto ao Sr. de Breteuil uma razão para esperar:
- Ela virá, senhor?
O cortesão inclinava-se, dissimulando um sorriso malicioso.
— Sire, a Sra. du Plessis ainda se encontra muito abatida pelas terríveis fadigas da viagem.
— Não poderia ter-lhe confiado uma mensagem? Estará ainda nutrindo um cego rancor para com nossa pessoa?
— Infelizmente, sire, temo que sim.
O rei continha um suspiro, e seu.olhar se perdia nos confins resplandecentes da grande galeria:
Vê-la-ia um dia avançar, vencida, arrependida?
Ele duvidava. Um pressentimento dèvolvia-lhe a imagem de uma bela acorrentada no alto de uma torre, guardada por árvores negras e águas mortas.
CAPÍTULO VI
A feiticeira Melusina
Angélica corria sob as árvores. Tirara os sapatos e as meias, e o musgo fazia-lhe bem aos pés descalços. Por vezes detinha-se e escutava com uma expressão atenta e exaltada. Num lampejo reconhecia o caminho a seguir e precipitava-se novamente. A embriaguez da liberdade! Ela ria baixinho. Fora fácil descer à adega do castelo e encontrar entre os barris de vinho a portinhola para o subterrâneo que toda residência senhorial abriga em suas entranhas.
O subterrâneo do Plessis nada tinha em comum com a surpreendente passagem da Mansão do Beautreillis em Paris, a qual, partindo de um poço, podia levar, por seu caminho abobadado ligado aos esgotos, da velha Lutécia até os arrabaldes de Vincennes. O do Plessis era apenas uma toca fétida e úmida onde tivera que se arrastar de gatas. Ao emergir na mata, avistara o castelo por entre os ramos, com os soldados de casacão vermelho fazendo a ronda. Achava-se no entanto ao abrigo de seus olhares, e as sentinelas não poderiam suspeitar que aquela que estavam incumbidos de vigiar espiara-os a alguns passos dali, para depois distanciar-se lentamente, afastando os ramos entrelaçados do matagal.
Ao deixar o emaranhado compacto de arbustos, moitas, fram-boeseiros e roseiras-bravas que compunham sua orla, a floresta se ordenava, tornava-se vasta e verde catedral de pilares de carvalhos e de castanheiros.
As batidas do coração de Angélica atenuaram-se e, radiante com seu feito, ela pôs-se a correr aos saltos. Recuperava as forças. O duro aprendizado da caminhada pelas pistas do Marrocos fazia com que achasse infantil escalar os rochedos musgosos ou descer as sendas abruptas até os riachos atulhados de folhas negras. A floresta ora formava barrancos para se comunicar com um vale, ora se elevava para atingir um platô de baixa vegetação de urzes. Angélica movia-se com segurança nesse retalhamento de luz e sombra, de aridez e umidade dos bafios do júndo dos barrancos e de vibrantes perfumes quase meridionais, que se respiravam nas regiões altas, onde a ossatura da região perfurava com penhascos agudos uma terra fina, avermelhada de flores.
Angélica deteve-se novamente. Lá estava a Pedra das Fadas em sua clareira de carvalhos druídicos, dólmen imenso de longa mesa sobre quatro apoios que os séculos haviam fincado profundamente no solo. .
Ela contornou-o para se orientar. Agora tinha a certeza de que não se perderia. Aquela parte da floresta, com a Pedra das Fadas, a Garganta dos Lobos^ a Fonte de Troussepoil, a Encruzilhada dos Três Mochos, onde se ergue uma lanterna dos mortos, fora na infância o teatro dg suas explorações. Quando-aplicava o ouvido, podia distinguir, trazidos pelo vento, os golpes secos dos lenhadores da aldeia de Gerbier, que no verão instalavam-se entre as árvores com seus longos machados. E também havia, para o leste, os carvoeiros em suas choças enegrecidas, aonde ia por vezes comer queijo e buscar compridos pedaços de carvão de madeira para Goitran.
Mas ela abordava ao local pelos caminhos que partiam de Mon-teloup. Os atalhos na direção do Plessis eram-lhe menos familiares, embora amiúde tivesse rondado próximo ao domínio do sonho, procurando avistar o branco castelo e seu lago de que era hoje a proprietária.
Como fazia outrora nesse mesmo lugar, ela sacudiu os raminhos presos à saia de fustão, alisou os cabelos que o vento da corrida desatara e espalhou-os pelos ombros, sorrindo por sentir que ainda atribuía a mesma importância a esses rituais, aos quais por nada no mundo faltaria no passado. Depois, com passo cauteloso e como que mais lento, deixou-a clareira e começou a descer uma escada talhada na rocha, forrada de húmus e de argila. A visita que devia fazer necessitava certa solenidade. Angélica jamais conseguira pôr os pés descalços de selvagenzinha nesse atalho sem se ver presa de uma timidez pouco conforme a seu caráter. A tia Pulquéria não a teria reconhecido. Essa imagem perfeita de garotinha comportada ela não oferecia senão aos génios misteriosos da floresta.
O atalho precipitou-se em profundezas glaucas.. Mananciais espalharam-se pelo flanco da montanha, escoltados por altas dedaleiras vermelho-púrpura, e desapareceram por seu turno. Do espesso tapete de folhas não podiam brotar senão cogumelos, cujos domos viscosos, laranja ou suntuosamente violeta, iluminavam a vegetação sob as árvores como inquietantes lanternas de um local de trevas. Tudo estava presente: o medo, a emoção sagrada misturada à aversão, a curiosidade e a certeza de ter acesso ao outro mundo, o dos malefícios, que confere poder e autoridade. A encosta era tão penosa que Angélica via-se agora obrigada a agarrar-se às árvores. Os cabelos caíam-lhe nos olhos. Ela afastou-os com impaciência. Não mais se lembrava de que o local fosse tão distante e inacessível. Depois suspirou de alívio ao distinguir a outra claridade nascente, aquela que a luz do sol criava do outro lado da falésia através da transparência verde das folhagens. Sua mão tateou, buscando no musgo o apoio firme do rochedo, e ela se deixou escorregar, esfolando-se um pouco, para uma plataforma que avançava sobre o riacho, cujo murmúrio se fazia ouvir..
Ainda se segurando, ela se inclinou, ergueu com a outra mão uma cortina de hera e descobriu a abertura da gruta. Não mais se recordava da palavra a ser pronunciada. Tentou lembrar-se, mas em vão. No entanto, algo se movia no interior do rochedo. Ouviu-se um passo arrastado, uma mão descarnada deslizou na parede e o rosto de uma mulher velhíssima adivinhou-se na penumbra. De pele morena e murcha, parecia uma nêspera enrijecida, mas uma abundante cabeleira alva como neve estendia tufos de mechas mortas ao seu redor.
Seus olhos piscavam, examinando aquela que chegava.
Angélica perguntou em patoá:
— E você a feiticeira Melusina?
— Sou eu. Que quer, garota?
— Entregar-lhe isto.
Ela estendeu à velha um pacote contendo rapé, um pedaço de presunto, um saquinho de sal, outro de açúcar, um pedaço de banha e uma bolsa cheia de peças de ouro.
A velha examinou tudo com atenção, e depois, voltando o dorso encurvado de gato esquelético, entrou na gruta. Angélica acompanhou-a. Chegaram a uma sala redonda, forrada de areia, e fracamente iluminada por uma abertura mais elevada, oculta por espinhos. Por ali se escapava a fumaça de uma pequena fogueira em cujas brasas repousava um caldeirão de ferro fundido.
A jovem sentou-se em uma pedra plana e aguardou. Assim procedia quando vinha outrora consultar a feiticeira Melusina, que não era a mesma de hoje. A outra era ainda mais velha e mais trigueira, e morrera enforcada no galho de um carvalho, por obra de camponeses que a acusavam de ter imolado seus filhos. Quando se soube que uma nova feiticeira se introduzira nas grutas de Hauts-de-Mère, puseram-lhe, por hábito, ò nome de Melusina.
De onde vêm as feiticeiras das florestas? Que caminhos de desgraça e maldição conduzem-nas aos mesmos lugares para uma aliança com a lua, a coruja e as plantas? Dizia-se que aquela era a mais sábia e a mais perigosa que se conhecera na região. Contavam também que tratava a febre com caldo de víbora, a gota com sais de bichos-de^conta e a surdez com óleo de formiga, e que era igualmente capaz de encerrar um Demónio das primeiras legiões de Satã em uma avelã. Dando-se o fruto para que fosse trincado pelo-inimigo, vinha a alegria de vê-lo pular até o teto, e só uma peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade, em Gâtines, cujo relicário encerra um fio de cabelo e uma unha da Virgem, conseguiria livrá-lo "do sortilégio.
As jovens que haviam errado conheciam o caminho de seu refúgio, bem como aqueles que achavam muito demorado aguardar a morte natural de um velho tio com herança.
Angélica, que havia escutado todas essas tagarelices, olhava com interesse a estranha criatura.
— Que deseja, minha filha? - perguntou ela por fim, com voz grave e trémula. - Que a esclareça sobre seu destino? Que a ajude a conquistar o amor? Quer que lhe prepare tisanas que lhe devolvam a saúde abalada por suas longas viagens?
— Que sabe de minhas longas viagens? - murmurou Angélica.
— Vejo o espaço ao seu redor, e o sol escaldante. Dê-me sua mão para que leia seu futuro.
A jovem recusou-o.
- Vim para um pedido mais simples. Você, que conhece todos os hóspedes da floresta, poderia indicar-me onde se escondem os homens que por vezes se reúnem para orar e entoar cânticos com os camponeses das aldeias? Paira um perigo sobre eles. Queria adverti-los, mas ignoro o lugar de seus encontros.
A feiticeira alvoroçou-se. Soerguendo-se, agitou em amplos gestos os braços deformados.
— Por que você, filha da claridade, quer afastar do perigo esses homens das trevas? Deixe os corvos planarem sobre as doninhas.
— Sabe então onde habitam?
— Se o sei! Como poderia ignorá-lo, quando quebram os ramos das árvores, esmagam minhas plantas, destroem minhas raízes? Se isso continuar, não terei uma só pétala a secar, para minhas poções. Eles vêm cada vez em maior número, esgueiram-se como lobos, e quando se acham reunidos põem-se a cantar. Os animais têm medo, os pássaros se calam, os rochedos são abalados e eu sou obrigada a refugiar-me a distância, tanto esses cânticos me fazem mal, compreende, filha?... Por que esses homens vêm até a floresta?
— São perseguidos. Os soldados do rei estão em seu encalço.
— Há três chefes que os guiam. Três caçadores. O mais velho, e mais trigueiro, é rijo como o bronze. É o chefe de todos. Fala pouco, mas quando fala dir-se-ia que corta a garganta de uma corça com seu punhal. Faz sempre menção ao sangue e ao Eterno. Escute-me...
Ela se aproximou a ponto de roçar com o hálito o rosto de Angélica.
— Escute-me, pequena. Certa noite espiei por entre as árvores uma assembleia dessas pessoas. Tentei compreender o que ali faziam. O chefe falava em pé, sob um carvalho. Ele voltou os olhos em minha direção. Não sei se me viu. Mas fiquei sabendo que seus olhos eram de fogo, pois os meus puseram-se a arder, e tive que fugir, eu que olho face a face o javali e o lobo... Aí está seu poder. Aí está por que os outros acorrem à sua voz e estão prontos a obedecer-lhe. Ele tem uma grande barba. Parece o urso Troussepoil, que vinha lavar na fonte o pêlo ensanguentado, após devorar as meninas novas.
— É o Duque de La Morinière, um grande senhor protestante - disse Angélica, contendo o riso.
Isso nada dizia a Melusina. Ela o tinha por seu Troussepoil. No entanto, aos poucos seu humor mudou, e um sorriso acabou por esticar-lhe os lábios acinzentados sobre as gengivas desdentadas. Os dentes que restavam eram largos e sólidos, muito alvos, como se ela os tratasse, e lhe conferiam um aspecto singular.
- Por que não a levaria até ele? - disse de súbito. - A você ele não fará baixar os olhos. Você é bela, e ele...
Ela emitiu um longo riso escarninho.
- Macho é, macho continuará a ser - disse sentenciosamente.
Angélica não se via arrastando o austero Duque de La Morinière --- a quem chamavam o Patriarca - para os caminhos da perdição. Suas preocupações eram de outra ordem. E era preciso agir rápido.
- Irei, irei - disse Melusina entre dentes, parecendo divertir-se - Eu a conduzirei. Garota! Seu destino é tão terrível, tão violento, e tão belo!... Dê-me sua mão.
Que leu ali?... Ela repeliu a mão de Angélica com uma expressão alucinada, que fazia seus olhos acinzentados brilharem, mas onde subsistia não se sabe que. ardente malícia.
- Você veio... Trouxe-me sal e rapé. E minha irmã, garota. Ah! como são grandes os seus poderes!...
Assim falava a òútrÇfeiticeirá à menina Angélica, quando esta se sentava, um pouco;temerosa, nesse mesmo lugar. Tinham as mesmas palavras para- traduzir o espanto diante de tantas coisas inscritas à volta daquela cabeça jovem. O temor e o interesse das feiticeiras sempre encheram Angélica de um ingénuo orgulho. Dele extraía em criança a certeza de que um dia possuiria tudo o que se podia desejar: felicidade, beleza, riqueza... E hoje?... Hoje que sabia ser possível tudo possuir e não se sentir plena, que lhe despertavam as promessas de poder? Ela olhava a própria mão.
- Conte-me... Conte-me mais, Melusina. Triunfarei sobre o rei?... Escaparei à sua perseguição?... Reencontrarei o amor? Conte-me!
Mas era a feiticeira quem agora se furtava.
— Que poderia dizer que você já não saiba no fundo do coração?
— Não quer contar nada do que viu para não tirar-me a coragem?
— Vem, vem. O homem de barba negra deve estar esperando - escarneceu a outra.
Antes de se esgueirar para fora da gruta, ela buscou um saquinho e entregou-o a Angélica.
- São plantas. Toda noite, mergulhe-as em água bem quente, exponha-as à lua e beba, ao alvorecer, quando nasce o sol. Recobrará a força de seus membros e de sua carne, e seus seios se encherão como se tivessem leite. Não será o leite que irá enchê-los, mas o sangue de sua juventude...
Após emergir do barranco, elas caminharam uma atrás da outra. A feiticeira não seguia nenhum atalho. Reconhecia as pistas através de indícios invisíveis.
O céu escurecia por trás da ramagem.
Angélica pensou em seu guardião, Montadour. Notaria sua ausência? Era pouco provável. Toda manhã ele pedia para saudá-la. Era uma recomendação dos senhores de Marillac e de Solig-nac. Não importunar a prisioneira, mas não faltar a uma vigilância diária. Aparentemente, o gordo capitão não poderia achar algo melhor do que tornar mais frequentes tais obrigações. Mas a altivez de Angélica o constrangia. Seu olhar glacial sustava qualquer tentativa de conversa ou de gracejo. Ela o via então engolir seus desajeitados cumprimentos mastigando os bigodes vermelhos, e ele a deixava dizendo que partia no encalço do herético, o que constituía sua segunda missão. Toda tarde ele se alçava a seu robusto cavalo malhado e partia acompanhado de um grupo de cavaleiros, para assistir a algumas conversões nas aldeias vizinhas. Por vezes trazia um reformado particularmente recalcitrante, tratando dele pessoalmente, e então, nos fundos do castelo, soavam golpes e gritos roucos: "Abjura! Abjura!"
O Capitão Montadour enganava-se por completo se contava forçar a Marquesa du Plessis a admirá-lo por seu zelo à causa de Deus. Ela lhe tinha horror. Em vão tentava interessá-la em sua obra. Mas naquela manhã ela ouvira falar de certo pastor que viera de Génova e fora acolhido pelos castelões de Grandhier. E quando soube que graças a seus espiões Montadour poderia detê-lo ao anoitecer, ela aplicara o ouvido.
— Um pastor que veio de Génova? Com que objetivo?
— Para incitar esses ímpios à revolta. Felizmente fui avisado. Esta noite ele deve deixar a floresta, onde se entrevistou com o réprobo La Morinière. Estou à espreita junto ao Castelo de Grandhier. Talvez o duque o acompanhe. Detê-lo-ei também. Ah! O Sr. de Marillac acertou ao pôr-me à testa da empreitada. Creia-me, senhora, no próximo ano não haverá mais nenhum protestante no Poitou.
Ela fizera vir La Violette, o antigo criado de Filipe.
- Você, que pertence à religião reformada, sabe onde se escondem o Duque de La Morinière e seus irmãos? É preciso avisá-los de que vão ser emboscados.
O criado de nada sabia. Após alguma hesitação, disse que o duque por vezes lhe dava indicações através de um falcão ades-rado para levar mensagens. Ele próprio levava aos rebeldes protestantes as informações que conseguia obter dos soldados. Mas não havia muito a dizer. Montadour era menos tolo do que aparentava, e, malgrado sua facúndia, pouco dizia a respeito.
__ Por isso, senhora, ponho minha mão no fogo como os próprios soldados ignoram essa história de pastor protestante de que a senhora está a par. Só o saberãoaio último instante. Ele é sus-picaz e dissimulado.
Angélica enviara La Violette até Grandhier para prevenir os castelões. Mas estes ignoravam o local de encontro. Os proscritos mudavam de lugar com frequência. O Sr. de Grandhier tentara dirigir-se à floresta,- mas fora detido pelos dragões que patrulhavam sua residência como que por acaso.
Foi quando Angélica pensou na feiticeira Melusina.
- Irei e os encontrarei.
Há muito meditava ncssa~fuga bem nas barbas de Montadour. Esticar a corda que a ligava à estaca... A empresa parecia a ponto de ser bem-sucedida.
A feiticeira deteverse erguendo o ossudo indicador.
- Escute.
Do rebordo escuro de uma falésia, elevava-se através das folhas um som qué poderia ser confundido com as vagas do vento, mas que ao se tornar mais próximo nuançava-se em tristes melodias e longos apelos: os salmos.
Os protestantes achavam-se reunidos junto ao rio Vendée, no fundo da garganta conhecida como Garganta do Gigante, porque se dizia que Gargântua, de um golpe de ombros, fizera rolar os enormes rochedos que a atravancavam.
A luz avermelhada de uma fogueira cortava a sombra do crepúsculo que invadia o desfiladeiro. Mal se distinguiam as toucas brancas das mulheres ali a rezar, misturadas aos grandes chapéus de feltro negro dos camponeses huguenotes.
Um homem avançou para a parte clara da assembleia. Pela descrição que lhe fizera a feiticeira, Angélica reconheceu sem dificuldade o Duque Samuel. Era impressionante sua estatura de caçador barbudo. Luís XIV não se agradara dela quando o duque estivera em Versalhes com a intenção de desempenhar nas cabalas da corte o papel que o Almirante Coligny tivera no século passado. Caído em desgraça, vivia desde então em suas terras. Com suas altas botas até o meio das coxas, seu gibão negro, largo cinturão com uma adaga e o boldrié da espada, coberto com um daqueles chapéus em desuso, achatados e guarnecidos de plumas, a que os huguenotes da província tinham afeição, e que os fazia parecer-se com Calvino ou Lutero, conforme a largura da cintura, o Duque Samuel de La Morinière inspirava medo. Não parecia um homem do seu tempo, mas sobrevivente de uma época de costumes rudes, de violências, inimigo de refinamentos. Seu lugar era esse cenário selvagem de rochedos e de trevas, e, quando sua voz elevou-se, o eco das falésias devolveu-a ainda mais baixa, uma voz de bronze, pesada, áspera, que fez Angélica tremer.
- Meus irmãos, meus filhos, está chegando o dia em que, depois do silêncio, devemos erguer a cabeça e compreender que o serviço de Deus exige nossos atos... Abram o Livro dos Livros... Que encontram nele?... O Eterno avança como um herói. Excita seu ardor como um homem de guerra. Eleva a voz. Lança gritos. Manifesta sua força contra os inimigos. Por muito tempo guardei silêncio, calei-me, contive-me... Mas agora devastarei montanhas e colinas. Secarei a verdura... Eles recuarão, serão confundidos, aqueles que confiam nos ídolos esculpidos, os que dizem aos ídolos de ferro: sois nossos deuses...
Sua voz ecoava. Angélica sentiu um calafrio arrepiar-lhe a nuca. Quis voltar-se para a feiticeira, mas percebeu que esta se afastara sem ruído.
Por entre os cimos das árvores o céu era de nácar branco, mas na escuridão da Garganta do Gigante reinava uma intensa cólera.
Um grito fez-se ouvir.
— Que podemos contra os soldados do rei?
— Tudo. Somos mais numerosos que os soldados do rei e temos a ajuda de Deus.
— O rei é todo-poderoso!
— O rei está longe, e que pode ele contra uma província decidida a defender-se?
— Os católicos nos trairão.
— Os católicos também temem os dragões. Os impostos os esmagam, e, repito, eles são menos numerosos do que nós. As terras mais ricas estão em nossas mãos...
Bem próximo, uma coruja piou duas vezes.
Angélica sobressaltou-se. Parecia-lhe que se fazia um silêncio na Garganta dos Lobos. Quando olhou novamente deu com o olhar do senhor huguenote voltado em sua direção. As chamas comunicavam aos olhos extremamente fundos sob as sobrancelhas negras um brilho avermelhado, "Seu olhar de fogo", dizia a feiticeira. "Você pode sustentar esse olhar."
O pio da coruja voltou a elevar-se, aveludado e trágico. Sinal de alerta?... Advertência de uma presença perigosa ao redor dos predicantes?... Angélica mordeu os lábios. "É preciso", disse consigo. "Minha última cartada!"
Ela avançou, segurando-se nos ramos espinhosos, e desceu até os huguenotes reunidos.- . .
Quando se dirigia à Garganta do Gigante para salvar o pastor genovês, Angélica sabia; que estava escolhendo seu caminho e que não seria fácil voltar itrás.
Samuel de La- Morinière, o Patriarca, era o único que poderia destruir a fé monárquica no coração dos fiéis súditos protestantes.
La Morinière, o Patriarca, estava próximo dos cinquenta anos. Viúvo e pai de três filhas - o que lhe era bastante amargo - ,vivia em seus domínios com os irmãos, Hugo e Lancelote, igualmente casados e pais de numerosa prole.
A tribo vivia duramente sob a férula do patriarca, dividindo o tempo entre á oração e a caça. Já era*passado o tempo das festas nesse cenário suntuoso. Com La Morinière as mulheres falavam baixo e não conseguiam mais sorrir. As crianças, providas de numerosos professores, eram desde a mais tenra idade instruídas em grego, em latim e nas Sagradas Escrituras. Os garotos eram ensinados a manejar a adaga e o chuço.
Quando pela primeira vez encontrou Angélica - essa mulher surgida do crepúsculo com os cabelos de ouro à sombra de um capuz de pastora, pés descalços e linguajar apurado de grande dama -, teria La Morinière tido consciência de uma paixão semelhante, não formulada, de um rancor que não pedia senão para se metamorfosear em atos, tornando-a dócil .a suas sugestões?
CAPITULO VII
Samuel de La Morinière, chefe dos huguenotes perseguidos
O homem que tocava trompa ao anoitecer escapava no momento à perseguição de Montadour, talvez pelo fato de, situando-se o solar de Rambourg próximo ao Plessis, o capitão ter a certeza de poder abater, quando assim o desejasse, a pesada pata sobre aquele huguenote pálido e tremulo que assumia, não sem desespero, seu papel de perseguido.
Na juventude, Angélica e as irmãs haviam amiúde troçado daquele canhestro rapaz de pomo-de-adão proeminente, a quem encontravam nas assembleias das aldeias ou nas feiras dos burgos. Com a idade, o Barão de Rambourg ganhara um longo bigode triste, uma mulher sempre grávida e uma nuvem de huguenote-zinhos pálidos, que viviam nele pendurados. Ao contrário da maior parte de seus correligionários, era muito pobre. Os habitantes da região diziam que sua família estava amaldiçoada desde a nona geração, devido a um cavaleiro da família que tentara beijar uma fada adormecida em um castelo à beira do Sèvre. A maldição só fizera acentuar-se, como de justiça, depois que os Rambourg haviam abraçado a religião de Calvino. Isaac, o mais jovem da família, vivia ao abrigo de sua torre invadida pela hera, e seus talentos e tarefas resumiam-se em tocar trompa. Era surpreendente o sopro que podia brotar daquele magro torso. Toda a região o convidava para as caçadas, pois ele sabia conferir às notas diferentes chamados de amplas e magníficas ressonâncias, que punham os caçadores, as matilhas e a caça em transe.
Mas desde o ano anterior as reuniões estavam se tornando raras. Os fidalgotes católicos e protestantes viviam cada qual no seu canto, aguardando o fim das agitações provocadas pelossol-dados. O Barão de Rambourg tivera que atender às exortações do Duque de La Morinière, pois era muito difícil opor resistência às suas decisões.
Angélica compreendeu-o melhor ao divisar o chefe dos hugue-notes atravessando a charneca em sua' direção, com o grande manto negro flutuando ao vento. Ele era ainda mais impressionante visto contra o fundo azul-dourado do. céu do que nas trevas da Garganta do Gigante. Os irmãos vinham em sua companhia.
O local de encontro ha orla da floresta dominava a paisagem com sua falésia abrupta. Nessa banda de terra onde brotavam giestas houvera no passado um campo romano. Ali permanecia o pequeno templo dedicado a Vénus, meio em ruínas e florido de abróteas.
Na orla do golfo mald-ito-e da-perigosa floresta gaulesa, teriam os romanos suplicado â deusa que lhes preservasse a virilidade ameaçada pelos cruéis píctones, que não se poupavam em oferecer horríveis troféus.a seus próprios deuses? Das ruínas subsistia apenas um pórtico de pedra com duas colunas e um entablamento coberto de inscrições latinas, à sombra do qual Angélica se sentou.
O duque tomou lugar diante dela em um bloco quadrado. Os irmãos permaneteram à distância. O campo romano era um de seus pontos de encontro. Os camponeses huguenotes vinham esconder no templo víveres e armas destinados aos proscritos. Do local era possível vigiar a região sem o risco de um ataque.
O duque começou por agradecer-lhe mais uma vez pelo que ela fizera pelo pastor genovês. Seu gesto provava que a barreira das crenças podia ser transposta quando os espíritos ultrajados pela injustiça aliavam-se contra o poder de senhores tirânicos. Ele não ignorava o quanto ela devia sofrer por parte do rei. Não era, aliás, vigiada como uma prisioneira? Como fazia a Sra. du Plessis para encontrá-los? Ela explicou-lhe que utilizava um subterrâneo, e que Montadour não suspeitava de nada.
Era difícil não responder a uma pergunta do Duque de La Morinière. Seu tom imperioso forçava imediatamente o interlocutor a se explicar. Os olhos extremamente fundos sob espessas sobrancelhas negras fixavam com intensidade. Dir-se-iam dois pontos dourados cuja luz penetrante acabava por fatigar. Angélica desviou o olhar pensando na feiticeira que temia aquele sombrio servidor do Senhor.
Para encontrá-lo nesse dia, ela vestira um traje à altura de sua posição, um vestido de cetim escuro mas rico, e não fora tarefa fácil introduzir-se na estreita passagem que conduzia à floresta, com o corpete comprimindo-lhe a cintura e as pesadas pregas das três saias. O criado La Violette acompanhava-a carregando-lhe o manto. Permanecia imóvel, a alguns passos, como um respeitoso serviçal. Angélica desejava que a entrevista estivesse cercada de certa solenidade, para que pudesse falar ao duque de igual para igual.
Estava sentada sob um pórtico romano patinado pelos séculos, com os pés calçados de couro vermelho ultrapassando a fímbria do vestido cor de ameixa, enquanto os cabelos penteados com severidade se deixavam desfazer lentamente pelo vento. Ela ouvia aquela voz grave. Ouvia com o coração oprimido, atraída e no entanto inquieta. Parecia-lhe que um abismo se abria a seus pés. Seria preciso saltá-lo de pés juntos.
— Que deseja de mim, senhor?
— Que nos aliemos. Você é católica e eu, reformado, mas podemos fazer uma aliança. A aliança dos perseguidos, dos espíritos livres... Montadour está sob seu teto. Espione-o, dê-nos informações... E quanto a seus camponeses católicos...
Ele se debruçou, baixando o tom como que para melhor penetrá-la com sua vontade imperiosa.
- Faça-os compreender que estão do lado de nossos camponeses, gente do Poitou como eles; que o inimigo é o soldado do rei que vem pilhar-lhes a colheita... Lembre-lhes os cobradores de impostos, a talha, a capitação. Não estariam melhor apenas sob a jurisdição de seus senhores como no passado, em vez de trabalhar para um rei distante que lhes paga com exércitos estrangeiros para alimentar?
Enquanto ele assim falava, inclinado para ela, suas mãos com luvas de couro - luvas de falcoeiro - apoiavam-se nas coxas maciças, e ela agora não podia evitar-lhe o olhar. Ele lhe instilava sua crença profunda em uma aventura desesperada, uma espécie de sobressalto de agonia de um gigante para romper os laços que o atavam. Ela via aquele grande povo camponês do qual se originara erguer-se, estirar-se num esforço sobre-humano, para se arrancar ao afundamento mortal no qual a sujeição àquele que fora outrora apenas o senhor da lie de France o mantinha paralisado. O dinheiro recolhido nos campos do bocage era engolido nos prazeres de Versalhes, em guerras intermináveis nos confins da Lorena e da Picardia. Os grandes nomes do-Poitou, domesticados, apresentavam a camisa ou o castiçal ao rei, enquanto seus domínios eram abandonados nas mãos de intendentes desonestos. Outros viviam empobrecidos em terras que o fisco lhes arrancava aos pedaços, desdenhando esses nobres que não tinham sabido agradar ao rei. E hoje a ruína, a fome, a infiltrar-se como cobras pela região, pela mão de um exército enviado sem respeito a qualquer justiça e bom senso, reduzindo ao desespero os que fazem brotar o trigo, vigiam as pastagens, colhem as frutas, esses camponeses de mãos calosas, de grandes chapéus escuros, huguenotes ou católicos.
Ela sabia de tudo isso. Escutava com profunda atenção. O vento tornava-se mais rijo.íla estremeceu enquanto afastava uma mecha de cabelo que teimava em varrer-lhe o rosto. La Violette aproximou-se e estendeu-lhe o manto no qual ela se envolveu com um gesto arrebatado. Subitamente, torceu as mãos e ergueu para Samuel de La Morinière um olhar cortante:
- Sim, ajudá-lo-ei - gritou -, mas então... então é preciso que sua guerra seja franca e terrível. Que espera de simples preces entoadas nos barrancos?... É preciso que domine as aldeias, que ocupe as estradas, que faça da província um bastião fortificado antes que tenham tempo de enviar reforços. É preciso correr de sul a norte fechando todas as saídas... É preciso que as outras províncias sejam contaminadas: a Normandia, a Bretanha, Sain-tonge, o Berri... É preciso que um dia o rei trate com o senhor como com outro rei. Que esteja reduzido a aceitar suas condições...
O Duque de La Morinière foi sacudido por aquela veemência. Ele ergueu-se. Sua tez tornou-se rubra, e seus olhos lançaram faíscas. Não estava habituado a que uma mulher lhe falasse nesse tom. Mas conteve-se. Permaneceu um momento em silêncio mexendo nas pontas da longa barba. Acabava de descobrir que podia contar com a força selvagem dessa criatura que ele pensara ser insignificante como todas as mulheres. Mas ocorriam-lhe toda sorte de máximas que lhe repetia por vezes um de seus tios que servira junto a Richelieu, o qual utilizava muitas mulheres nos milhares de casos de espionagem ou política: "A força de uma mulher é o dobro da de um homem quando se trata de minar as fundações de uma cidade... Mesmo quando o proclamam bem alto, as mulheres jamais se reconhecem vencidas. É necessário ter luvas resistentes para manejar essa arma cortante, a astúcia de uma mulher, pois não conheço nada mais cortante..." Assim falava Richelieu.
Ele respirou profundamente.
- Senhora, suas palavras são justas. É verdade que esse é o único objetivo a ser atingido. E se não estamos dispostos a atingi-lo, é melhor depor imediatamente as armas... Tenha paciência. Ajude-nos. E isso um dia se realizará, eu lhe afianço!
CAPÍTULO VIII
Primícias da revolta
Houve então como que um recrudescimento de crimes e de escaramuças, e o-odiados dragões espalhou-se pela região como as mil ramificações deVuma fonte através da vegetação. Tudo começou com a descoberta, na Encruzilhada dos Três Corvos, de quatro dragões enforcados, portando cartazes onde se lia: Incendiário, Saqueador, Fome, Ruína. Os camaradas não ousaram ir despendurá-los, pois o local achava-se próximo da floresta onde agora se sabia que se escondíamos bandos protestantes. Os sinistros espectros escarlates ficaram por muito tempo a girar lentamente, lembrando a todos os passantes as ameaças que através deles se estendiam pela - província: incêndio, saques, fome, ruína... A densa folhagem de verão compunha um templo esmeralda, uma suntuosa capela, em cujo interior eles pareciam ainda mais mortos e mais hediondos.
Montadour, espumando de raiva, quis desferir um grande golpe. Torturou um protestante para fazê-lo revelar o refúgio dos La Mo-rinière e levando os homens mais resolutos penetrou na floresta. Ao cabo de algumas horas de marcha, o silêncio, a sombra, a incrível densidade das folhagens, o talhe anormal dos troncos, que baixavam sobre eles uma rede de galhos nodosos e estendiam-lhes raízes traiçoeiras sob as botas, venceram-lhes a coragem. O pio de uma coruja subitamente desperta^coricluiu a derrota.
- O sinal deles, capitão. Estão nas árvores. Irão cair sobre nós.
Os dragões retrocederam desordenadamente em busca de uma clareira, do céu aberto, de uma trilha. Enroscarafn-se no matagal, perderam-se, e, quando ao crepúsculo reconheceram a orla das árvores e descobriram os campos cultivados, o alívio foi tal que alguns caíram de joelhos e prometeram um círio ao santuário de Nossa Senhora mais próximo.
Mas, se tivessem chegado ao fim da expedição, retornariam de mãos vazias. Os chefes huguenotes haviam sido prevenidos.
Montadour não poderia estabelecer um paralelo entre seus fracassos e a amabilidade completamente nova que lhe testemunhava sua prisioneira. Ela, tão altiva e quase invisível, abordava-o agora, e ele ousara convidá-la para a "sua" mesa. Ele acreditava que ela estava enfastiada, e que seu próprio encanto, bem conhecido, assim como a galanteria de que até ali dera provas, estavam trazendo seus frutos. Redobrou as amabilidades. As grandes damas não acorrem ao primeiro toque. É preciso esforçar-se. Montadour descobria o encanto de uma longa conquista e sentia-se transformar em poeta. Se não fossem aqueles execrandos calvinistas a envenenar-lhe tão agradável dia! Ele escreveu ao Sr. de Marillac pedindo reforços. Não podia assumir a um tempo a guarda da Marquesa du Plessis-Bellière e uma obra de conversão que a cada dia adquiria maior amplidão. Envia-ram-lhe outro regimento, que devia acantonar-se na região de Saint-Maixent. O tenente que os comandava, o Sr. de Ronce, comunicou-lhe através de uma mensagem que não pudera tomar quartel no referido local, pois huguenotes armados ocupavam um velho castelo que dominava a estrada e o Sèvre. Deveriam apossar-se dele?
Montadour praguejou mais uma vez. Que pensar? Que os protestantes não queriam mais se deixar atemorizar? O tal Ronce de nada sabia. Montadour não teria senão que aparecer...
- Já me deixa, capitão? - perguntou Angélica sedutoramente.
Ela estava sentada à sua frente. Acabavam de trazer-lhe uma cesta com as primeiras cerejas da estação, e ela as comia com gula. Os dentes frescos tinham o brilho de um belo esmalte contra o esmalte vermelho das frutas.
Montadour decidiu que o Sr. de Ronce deveria sair-se sozinho do embaraço, retroceder um pouco para o norte, rumo a Parthe-nay. Ele já estava bastante ocupado, devido à hostilidade geral da população. Já se espalhavam pregos sob os cascos de seus cavalos. Camponeses são todos iguais, huguenotes ou católicos. Possuem terrinas cheias de escudos nos celeiros, mas nem por isso se sentem mais seguros. Por todo lado vêem brilhar os olhos de três inimigos ancestrais: o lobo, o soldado e o cobrador de impostos.
O incêndio de uma colheita protestante, alastrando-se por vezes até as culturas dos católicos, e o pânico os dominava. Não havia um entre aqueles campônios que consentisse em perder três espigas pelo triunfo de sua religião. Podiam-se colocar todos no mesmo saco, aquela gente do Poitou de olhos árabes que lhe mostrava o punho pelas costas.
- Envie-me os altercadores - disse Angélica. - Passar-lhes-ei um sermão.
Isso ocasionou algumas idas e vindas ao castelo. Angélica recebeu igualmente alguns de seus vizinhos dos domínios católicos. O Sr. du Croissec, que engordara ainda mais e que não demorou a partilhar seus projetos e a adotar suas diretivas, pois que saídas de uma boca que há anos ele adorava em segredo. O Sr. e a Sra. de Faymoron, os Mermenault, os Saint-Aubin, os Mazieres. Uma aparência de vida mundana criava-se entre a renegada e os solitários do bocage. Montadour contemplava as visitas com ar enternecido. Escreveu ao Sr. de Marillac dizendo que a Sra. du Plessis lhe prestava a mais dedicada ajuda em sua pesada tarefa, e os senhores do Santo Sacramento devem ter-se rejubilado em segredo.
O capitão encontrava cada vez mais dificuldade em arrancar-se à irradiação de. uma presença de que a cada dia descobria os atrativos. Bela nas roupas elegantes com que voltava a ter prazer de se adornar, Angélica recomeçara a reinar em sua casa.
Deveria o nova brilho de sua tez e"de seus cabelos à beberagem misteriosa preparada pela feiticeira? Uma força lúcida habitava agora seu corpo, uma paixão habitava sua alma. Ela reencontrava a inebriante impressão de ser invencível que amiúde a invadia no momento de empreender uma tarefa difícil. Decerto a impressão fora por vezes ilusória. Sob seus passos o solo era instável, a febre aumentava, a tempestade se precipitava como em julho se amontoavam por vezes as nuvens brilhantes no azul superaquecido do céu.
Era pleno verão. Colhia-se o feno. Com demasiada frequência os trabalhos eram abandonados. "Dragões arrastavam as mulheres pelos cabelos para levá-las à missa. Quando se recusavam, queimavam-lhes as plantas dos pés e a tropa lhes passava sobre o corpo..." Mas repetidas vezes os saqueadores e convertedores foram recebidos por camponeses armados com manguais.
A efervescência aumentava.
CAPITULO IX
Montadour procura penetrar no quarto de Angélica
O Duque de La Morinière correspondia-se com Angélica através de um falcão adestrado que La Violette recolhia no punho.
O pássaro trazia a mensagem. O encontro seria à noite, no campo romano, ou na Pedra das Fadas, em uma encruzilhada, junto a uma cruz ou uma lanterna dos mortos, próximo a uma fonte, em uma gruta... Angélica ia sozinha. Longe de atemorizá-la, esses passeios noturnos agradavam-lhe. Teria Montadour reconhecido sua elegante prisioneira nessa mulher de vasquinhas de fustão que deslizava do subterrâneo para as moitas ao surgir da lua?
Por breves momentos, o tempo do trajeto, Angélica saboreava a felicidade de caminhar na semi-obscuridade. Diamantes cintilavam nas mil folhas das faias, jorravam da plumagem dos castanheiros, e os carvalhos pareciam bordados de prata.
Jamais lhe perpassava o temor de encontrar esta ou aquela fera que a floresta ainda abrigava: javalis, lobos e por vezes, dizia-se, até ursos. A floresta atemorizava-a menos que a sociedade dos humanos, que trazem no coração feridas tão profundas, e parecia-Ihe então reencontrar a inocência que conhecera no deserto e de que sentia saudade.
Quando chegava ao local do encontro, a euforia abandonava-a. Com um misto de impaciência e apreensão, punha-se a espreitar a aproximação dos huguenotes. Ouvia-lhes os passos ao longe, no silêncio da folhagem atravessado por murmúrios, e via luzir entre as árvores as chamas avermelhadas dos archotes.
O Duque de La Morinière vinha acompanhado dos irmãos. Depois, cada vez mais amiúde, passou a vir só, o que a deixou inquieta.
Não se servia de archote quando estava sozinho. Também ele parecia enxergar na escuridão e conhecer os menores atalhos da floresta. E quando surgia, negra personagem de pesadas botas esmagando os raminhos secos, é atravessava uma clareira iluminada pela lua, ela não podia conter um calafrio, sobre cuja natureza se interrogava.
A voz do patriarca era áspera e muito baixa, quase cavernosa, e seus olhos chamejantes pareciam querer sondá-la até a alma. Ela lia neles um arrogante desprezo. Havia algo nesse homem que a perturbava. Mulay Ismael parecera-lhe menos temível. Era um senhor feroz; porém, como mulher, ela não o temia.
Mulay Ismael amava as mulheres e empenhava-se em domesticá-las. Era sensívej às suas armas, à beleza, à astúcia e à sedução. Uma pequena mão habilidosa podia impor respeito àquele leão do deserto.
O Duque de La Morinière, em compensação, dividia as mulheres em duas categorias: a das pecadoras e a" das virtuosas. Em Versalhes, ficaram célebres seus anátemas contra as belas tentadoras, e ele jamais deve ter-se dado conta de que sua mulher era feia e intratável. Viúvo, não tornara a casar-se. A vida austera, a caça, a penitência, ajudá-lo-iam a vencer o ardor do sangue?... Ele desprezava a mulher, esse objeto impuro, e devia deplorar o fato de vê-la com um papel na obra do Criador.
A sensibilidade de Angélica apreendia tais sentimentos, e ela se exasperava. Necessitava, no entanto, dessa força que lhe permitia erguer-se contra o rei. La Morinière iria até o fim. Entretanto, ela se sentia culpada diante de Deus e da Virgem por ter pactuado com o huguenote,
O antagonismo que havia entre eles irrompeu numa noite em que resvalavam por uma crista de colina para chegar ao pântano. Um pastor que viera de Niort, passando pelos canais aguardava o duque, e Angélica oferecera-se para guiá-lo. A floresta pareceu clarear, o luar intenso e pálido precipitou-se pela brecha aberta, e na súbita abertura eles viram luzir abaixo deles telhados de ametista e campanários translúcidos.
A seus pés erguia-se um relicário cinzelado em pura prata: monumento de sombra e de luzes, onde o festão de veludo negro de um claustro acompanhava o desenho branco de um pátio, cravejado ao centro por um poço lavrado. A Abadia de Nieul.
Angélica conteve a respiração. Maravilha!... Lá estava ela, serena, fechada sobre as preces murmurantes de seus monges. E voltaram a Angélica as recordações de uma noite que passara na abadia, em criança, do Irmão João, que a subtraíra aos modos suspeitos do gordo Irmão Tomás. Ele a levara até sua cela para que ela estivesse em segurança. Olhara-a com luminosa ternura: "Você se chama Angélica... Angélica, Filha dos Anjos!..." e mostrara-lhe marcas azuladas em sua carne lamentando-se: "Veja!... Veja o que me fez Satã!..."
Voltava-lhe o enfeitiçamento daquela noite mística.
A voz do Duque de La Morinière elevou-se, rancorosa.
- Malditos sejam esses monges lascivos e idólatras... Um dia o fogo do véu abater-se-á sobre essas paredes e não restará pedra sobre pedra... E a terra será purificada.
Angélica defrontou-o, fora de si.
- Cale-se, herético!... Herético!... Ah! odeio sua seita infame.
O eco devolveu-lhe o grito, e ela se sentiu subitamente aterrada, os nervos paralisados de cólera impotente e de ansiedade. O duque aproximara-se. Ela ouvia-lhe a surda respiração. Ele abateu o punho rude em seu ombro, cingindo-a como tenaz com seus dedos de couro. Sua garganta contraiu-se. Queria sacudir esse jugo e não podia. Ele estava a uma proximidade perigosa, ocultava-lhe a visão da luz, e a ela só restava permanecer imóvel, respirando até o atordoamento seu odor de guerreiro e de caçador.
- Que está dizendo? - sussurrou ele. - Você nos odeia? Pouco importa! Continuará assim mesmo a ajudar-nos.
Ele insistiu.
— Não nos trairá.
— Jamais traí a ninguém - respondeu, altiva, engolindo as lágrimas. Suas pernas tremiam. Temia desfalecer, apoiar-se nele. Retesou-se para escapar à mão que a magoava. - Deixe-me - disse ela com voz fraca -, você me dá medo.
Ele afrouxou os dedos e retirou a mão devagar.
Angélica voltou a caminhar, o coração batendo. Sentira medo. Dele, mas dela também. Medo de deslizar na sombra sem nome que a ramagem da floresta abre ao desejo. Com a aurora, que surgira cinzenta e depois se acobreara entre as árvores, chegaram ao acampamento dos carvoeiros. Angélica sentia frio e aconchegava-se na capa.
- Olá, aldeões! - gritou o duque. - Têm caldo, pão, queijo?
Na cabana enegrecida de um deles, sentaram-se em escabelos
bambos, diante da mesa onde a mulher colocou um boião de leite, juntando um prato de feijões pelando, guarnecido de toucinho e de cebolas. As crianças, seminuas e negras até os olhos, olhavam surpresas as duas personagens que comiam em silêncio, o homem de barba negra e a mulher de cabelos de ouro úmidos de orvalho caindo pelos ombros, que tinham visto surgir como fantasmas da noite pela bruma da aurora e atravessar o campo de cinzas.
Angélica lançava olhares furtivos ao Duque de La Morinière. Sentia certa atração por ele, sem dúvida por seus ombros fortes possuírem algo que lembrava Colin Paturel. Mas Colin Paturel era Adão, o homem- magnífico do paraíso perdido. O outro era o homem do pecado, um homem das trevas.
— Ele veio até a porta de seu quarto - cochichou-lhe Bertille, a criadinha, quando ela voltou ao Plessis.
— Quem?
- Gargântua! Ele bateu, chamou... Mas você não respondeu.
"E com razão" pensou ela.
O Capitão Montadõur voltou na-noite seguinte. Chamou:
- Marquesa! Marquesa!
Suas mãos vagueavam pelo painel fechado, e ela ouvia os botões de seu uniforme sobre o gordo ventre raspando a madeira.
Ouvia soerguida em um cotovelo. O desejo de Montadõur, respirando à noite atrás da porta, causava-lhe menos temor que embaraço.
Era ele quem no fundo começava a ter medo. Havia na verdade um estranho silêncio à noite, atrás daquela porta, e ele não estava longe de acreditar nas histórias dos criados de que ao anoitecer a senhora transformava-se em corça e corria pelos bosques...
As maças amadureceram. E súbito os três irmãos La Morinière galoparam através da província. E de Tiffauges, no norte, até Moncontour, no leste, o movimento de defesa dos protestantes adquiriu inesperada amplitude.
"Permaneça onde está", escreveu Marillac ao Capitão Montadour. "A região onde você se encontra constitui o foco da rebelião. Trate de deitar a mão nos chefes dos bandos."
E acrescentou num post-scriptum:
"Mantenha em estreita vigilância a pessoa a quem guarda. Verifiquei que a agitação só faz aumentar, e talvez ela não lhe seja estranha!"
Em seguida o governador da província pôs-se à testa dos lan-ceiros, no norte do Poitou. Quatro aldeias protestantes que haviam sustentado o cerco aos soldados que as ocupavam foram incendiadas. Os homens feridos foram enforcados. Os outros engrossaram as tropas recrutadas por La Morinière. As mulheres e as crianças foram reunidas e jogadas nas estradas após a proclamação de um edito a seu respeito: "Que fique a todos proibido, com relação às mulheres heréticas das aldeias de Noireterre, Pier-refitte, Quingé, Arbec, de oferecer-lhes conselho, conforto e ajuda, de recebê-las, alimentá-las, dar-lhes fogo e água, ou prestar-lhes algum ofício de humanidade".
Após o quê, as tropas do governador embrenharam-se no interior do Poitou, em perseguição aos bandos protestantes. Como haviam sido prevenidos de que os três irmãos La Morinière tinham conseguido reunir forças consideráveis, solicitaram o auxílio da milícia de Bressuire. A cidade, na maior parte protestante, forneceu poucos homens. O Sr. de Marillac soube quase de imediato que o pequeno exército de La Morinière lançara-se sobre Bressuire, desprovida de defensores, e espalhara-se pelas ruas desertas aos gritos de: "Cidade tomada! Cidade tomada!", pilhando as lojas de armas.
O Sr. de Marillac mostrou desdém em retomar a cidade. Ainda não desejava reconhecer que tais escaramuças assumiam um caráter de guerra religiosa, para não dizer de guerra civil. Passou pelo Plessis para consultar Montadour.
Dos contrafortes da floresta de Nieul, os resistentes hugueno-tes viram estender-se ao longo da estrada romana a serpente cinza do exército com sua malha cerrada de lanças.
As tropas retiraram-se no dia seguinte, deixando apenas alguns reforços aos dragões de Montadour. A hostilidade da população, mesmo a católica, que recusara o pão e o vinho aos soldados e os acolhera a pedradas, preocupava o governador. Não podia deixar aquela tropa toda no local sem correr o risco de uma sublevação mais considerável. Ele conduziu os soldados para além de Poitiers e partiu para Paris a fim de conversar com o Ministro Louvois sobre as medidas a serem tomadas.
CAPITULO X
A temível paixão do chefe huguenote -Angélica resiste a
ele - Os criados defendem-na contra o bestial Montadour
Angélica correu como louca, agarrando-se às moitas, desprendendo a manta com raiva, indiferente aos galhos que lhe fustigavam o rosto.
- Você quebrou as estátuas - gritou a Samuel de La Morinière, assim que o avistou.
Ele se postara junto à Pedra das Fadas, tão negro como uma obsidiana pré-hístórica, parecendo-lhe odiável, a própria imagem do mal. E quanto mais lhe inspirava terror, mais ela se tornava violenta.
- Foi você quem traiu. Enganou-me. Pediu a aliança dos católicos para destruí-los em seguida. E um homem sem honra.
Ela interrompeu-se, sufocada, a cabeça zunindo e a lua completamente redonda que pairava no alto dos carvalhos, à volta da clareira, pareceu-lhe dançar, saltar em todas as direções. Teve que se apoiar ao dólmen para não cair. O contato da pedra trouxe-a de volta a si.
- Você me bateu! - disse, sufocada.
Ele tirara a luva e a esbofeteara com a mão nua.
- Você me bateu!
Um sorriso cruel iluminou a barba negra do patriarca.
- Assim que se tratam as mulheres insolentes e fracas. Jamais qualquer delas ousou falar-me nesse tom.
A humilhação pôs Angélica fora de si. Ela soube encontrar a única flecha capaz de atingir o fanático.
- As mulheres!... Pode crer que preferem as homenagens de Satã às suas.
Imediatamente lamentou suas palavras diante do movimento que ele fez. Tomando-a pelos braços, pôs-se a sacudi-la com violência, bradando:
- Minhas homenagens! Minhas homenagens!... Quem fala em homenagens, vil criatura do pecado!... Criatura nefasta!... -
Apertava-a contra si com força demente, e seu hálito quente varria-lhe o rosto. Ela teve a explicação dos seus.medos. Devia ter inconscientemente pressentido que ele a mataria e que ela devia morrer por sua mão. Iria" estrangulá-la ou degolá-la. Ser-lhe-ia fácil nesse canto recuado dos bosques, e a pedra do sacrifício estava pronta.
Ela se debateu,-contudo^ furiosamente, magoando-se nas fivelas do cinturão e no tecido áspero do gibão, em seu esforço para desprender-se. A força do adversário su-bjugava-a pouco a pouco. O medo cedia a um outro sentimento, não isento do primitivo desejo da carne cega e ávida. A febre erótica que parecia ter-se apossado do homem paralisava-a em sua luta, amolecia-a apesar da vontade de escapar.
Ela se viu no, chão, a garganta rouca sob o fôlego entrecortado, os olhos magoados pela luz da lua, que a atingia em pleno rosto.
Seus gestos tornavam-se vagos.
Perdera a lembrança do que ele era... de quem ele era. A cabeça tombou-lhe para trás, e ela sentiu o frescor da terra sob os rins desnudos.
Mas quando ia abandonar-se, o cérebro subitamente povoado por loucas visões provocou-lhe alucinações em que se mesclavam os malefícios da clareira druídica e as predições da feiticeira.
Ela gritou.
Num sobressalto demente, desvencilhou-se, retorceu-se no chão e erguendo-se de um salto lançou-se por -entre as árvores.
Correu longo tempo, levada pelo medo. O instinto guiava-a pelos caminhos escuros que tantas vezes percorrera nos últimos meses. Não se perdeu. Detinha-se por vezes para chorar de ener-vamento, a fronte contra uma árvore. Tinha vontade de odiar a floresta, essa soberana impávida que recebe, indiferente, as preces dos monges, os salmos dos huguenotes perseguidos, os crimes dos caçadores furtivos, o acasalamento dos lobos e os ritos pagãos das feiticeiras.
Estava ferida como uma criança sem refúgio no mundo, ferida pela dor de viver. Ainda era plena noite quando chegou às cercanias do Castelo do Plessis.
Lançou por duas vezes o chamado da coruja, que as mãos juntas sobre os lábios recordaram com facilidade. Os serviçais velavam. A resposta veio do alto da torrinha.
Malbrant Golpe de Espada estava na adega, um toco de vela na mão, à entrada do subterrâneo.
- Esta existência não pode continuar, senhora - disse-lhe. - Correr à noite, pelos bosques, que loucura! Da próxima vez acompanhá-la-ei.
O velho escudeiro devia ter-lhe notado a desordem do traje e da cabeleira, e os vestígios de lágrimas em suas faces. Ela retesou-se, recompôs o rosto, enquanto procurava um lenço no bolso da manta.
- Sim, da próxima vez você me acompanhará, ou antes, La Violette, pois a floresta é úmida demais para suas dores. Embora não confie muito nesse indivíduo - acrescentou com um suspiro. - Em quem confiar? - murmurou.
Eles emergiram na moradia silenciosa. Ela esforçou-se por sorrir, desenvolta:
- O outro ogro está dormindo? - perguntou com um gesto na direção dos aposentos do Capitão Montadour.
No quarto, ela tirou os trajes rasgados e lavou-se demoradamente no quarto de banho contíguo. Tinha a impressão de que os braços do chefe huguenote ainda lhe abrasavam a espinha, e que suas mãos rudes e quentes estavam em sua pele.
Pegou a bilha de água fresca e inundou o corpo nu. Depois envolveu-se num penhoar e penteou os cabelos entremeados de raminhos.
Continuava a sentir-se horrivelmente dolorida. A ideia do que lhe ocorrera,à noite, na floresta, não a abandonava. Aquilo lhe recordava a provação amarga infligida por aquele louco histérico, D'Escrainville. "Acreditava, no entanto, ter conhecido o pior", disse consigo.
Ela voltou ao quarto e pousou a vela junto ao espelho. Inclinada sobre ele, examinou o rosto, lendo a transformação que se operara em algumas semanas. Recuperara a oval lisa das faces. Os olhos estavam menos fundos, os lábios jiovamente coloridos, rosa e brilhantes como a polpa'dos-morangos selvagens. Permanecia apenas sob as maçãs do rosto a sombra nova, um pouco trágica, modelada pela mão do sofrimento, conferindo a esse rosto, por muito tempo um rosto adolescente, a máscara altiva da maturidade.
Não mais favorita, mas rainha.
"E se o pior.ainda estivesse por ser-vivido?"
Ela quis atenuar o que ainda havia de selvagem em sua expressão. Que aparência teria esse novo semblante sob os cosméticos de Versalhes?
Abriu o toucador, dele tirando os cremes e pós que conservava em potes de .ônix.íTambém havia um pequeno cofre em madeira de sândalo incrustado de nácar, que ela atraiu para si e abriu maquinalmente... para ali contemplar, reunidas em algumas relíquias, as fases de sua vida incerta: uma pena do Poeta Pobre, o punhal de Rodoguno, o Egípcio, o ovo de madeira do pequeno Cantor, o colar das mulheres de Plessis-Bellière, aquele que não podiam envergar "sem logo pensar em guerra ou fronda"... Duas turquesas lado a lado, a do príncipe Bakhtiari e a de Os-man Ferradji... "Nada tema, Firuzé, pois as estrelas contam... a mais bela história do mundo... " Faltava um anel de ouro, o de seu primeiro casamento, que perdera quando vivia no Pátio dos Milagres, e que suspeitava ter-lhe sido roubado pelo vagabundo Nicolau, certa noite, durante o sono.
Fora um caminho duro, alternando claridades e abismos, desde que a vontade do rei fizera dela uma viúva sem nome, sem direitos e sem recursos. Tinha então apenas vinte anos. Mais tarde, depois do casamento com Filipe até a partida para Cândia, os anos que vivera no esplendor da corte podiam ser considerados como anos de paz. Sim, se considerasse sua vida triunfante, completa, de grande dama, com a mansão em Paris, os aposentos em Versalhes e a correria de festa em festa. Não, se rememorava as intrigas nas quais se vira envolvida e os espinhos que haviam espalhado sob seus pés. Mas ali ao menos seguia a ordem estabelecida, estava entre os poderosos do mundo.
O rompimento com o rei lançara-a de volta ao caos. Que lhe dizia ainda o grande mago Osman Ferradji?
— A força que o Criador pôs em você não permitirá que se detenha antes de atingir o lugar aonde deve ir.
— Que lugar é esse, Bei Osman?
— Ignoro-o. Mas enquanto não o atingir você devastará tudo a sua passagem, até sua própria vida...
Ela revèria Samuel de La Morinière. Pôs-se interiormente a injuriá-lo, irritada com a perturbação malsã que continuava a habitá-la, e que a dominaria ainda, quando se reencontrasse na presença dele. Aquele homem tinha pelo menos vinte anos mais do que ela. Era um herético sem alma, taciturno e cruel. Mas obsedava-a, e ela se interrogava a seu respeito, curiosa por saber se ele em verdade possuía o poder anormal que tão fortemente a assustara. Quando pensava em certos momentos da luta, a garganta se lhe contraía.
Ela pegou um pouco do creme rosa de um dos potes com a ponta dos dedos e começou a massagear levemente as fontes. O espelho, límpido como a água da floresta, devolvia-lhe a luminosidade de seus cabelos. Nele viu nascer uma forma imprecisa, qual pesadelo, titubeante, e que pouco a pouco se iluminou ao centro com uma luz avermelhada: o bigode do Capitão Mon-tadour.
Ele viera até o quarto nas pontas dos pés, girara a maçaneta da porta e, surpreso, vira-a ceder sem esforço. Com o temor sucedendo-se à sua primeira impressão de triunfo, um pouco ofegante, ele se inclinara, perscrutando a penumbra onde brilhava apenas uma vela. Avistara Angélica, em pé, diante do espelho.
Iria transformar-se em corça?
O longo penhoar transparente revelava-lhe as formas perfeitas. Os cabelos soltos compunham sobre os ombros uma capa de quentes reflexos. Ela inclinava um pouco a cabeça, e seus dedos faziam brotar deliciosas flores rosa em suas faces.
Então ele se aproximara.
Angélica voltou-se, atónita.
— Você?
— Não teve a bondade de deixar a porta aberta, minha bela?
Ele suava em bicas, e os olhos quase desapareciam por trás das bolas vermelhas das maçãs do rosto, tanto seu sorriso queria ser jovial. Para completar, fedia a vinho e trazia as mãos estendidas e trémulas.
- Vamos, minha linda, já não me fez enlanguescer o bastante? Deve estar demorando pára você também, não é fato?, jovem e bela como é. Não poderíamos, ambos, passar momentos agradáveis?
Ele era desajeitado e o sabia. Mas a língua pastosa engrolava o madrigal que desejava compor, e.ele se saía com "trivialidades" imperdoáveis.
Preferindo passar a uma ação mais brilhante, agarrou a jovem com uma braçada. Ela sentiu-se nauseada com a moleza daquele ventre e lançou-se para trás, virando-um pote de ônix, que se espatifou no lajedo. ,
Braços de homens, por todo lado braços de homens a estreitá-la: o rei, o soldado, .o huguenote, outros ainda, sempre, braços de homens, corpos de homens contra o seu...
Apanhou no cofre o punhal afilado de Rodoguno, o Egípcio, e empunhou-o à frente em defesa, no gesto rápido que lhe ensinara a Polaca.
- Afaste-se... ou o sangrarei como a um porco.
O capitão recuou dois passos, os olhos arregalados diante do inacreditável' espetáculb.
- Quê... como?... - balbuciou. Mas ela o faria!
Seu olhar incrédulo caminhava da lâmina faiscante para as pupilas não menos faiscantes daquela que a empunhava.
— Vamos! Vamos... houve um mal-entendido... - Depois voltou-se e divisou os serviçais concentrados no escuro do quarto, barrando a porta. Malbrant com a espada desembainhada, os lacaios, os criados, este com um bastão, aquele com uma faca, e até Lin Poiroux, o cozinheiro, com seu gorro branco, e seus ajudantes, todos armados de espetos e de suas melhores lardea-deiras.
— Podemos servir-lhe em algo, senhor-capitão? - perguntou o escudeiro com voz em que transparecia ameaça.
Montadour lançou o olhar à janela aberta e à porta. Que faziam todos ali com seus olhos selvagens?
- Safem-se daqui! - berrou.
- Não recebemos ordens senão de nossa ama - replicou Malbrarit, irónico.
La Violette deslizou lentamente ate a janela e iechou-a. Montadour não podia chamar por ninguém. Ele compreendeu que nada os impediria de assassiná-lo ali, com alguns golpes de chan-falho e de lardeadeira. Seus homens acampavam fora da casa, e não havia, aliás, senão quatro na propriedade, pois os outros haviam sido enviados a uma aldeia onde fora assinalada a presença de bandos protestantes.
Um suor frio molhou-lhe as fontes e correu por entre as dobras do pescoço congestionado. Num reflexo militar, levou a mão à espada, decidido a vender caro sua pele.
- Deixem-no passar - disse Angélica aos criados.
E acrescentou com um frio sorriso:
- O Capitão Montadour é meu hóspede... Se se comportar cortesmente, não lhe acontecerá desgraça alguma sob meu teto.
Ele saiu, desconfiado e transtornado. Fez com que os soldados entrassem no castelo. Não mais se sentia em segurança no fundo desse domínio perdido... Um ninho de salteadores sob as ordens de uma fêmea perigosa. Em que belo vespeiro fora se meter!
O silêncio do parque, com as corujas por ele passando, gelava-Ihe o coração. Ele pôs uma sentinela de vigia à porta de seu quarto.
CAPÍTULO XI
O retorno de Florimond e do Abade de Lesdiguière
Duas silhuetas adoiescentes.perfilavam-se, magras e vestidas de negro, no umbral ensotarado da porta.
— Florimond! --disse Angélica. Repetiu, atónita:'
— Florimond! Senhor Abade de Lesdiguière!
Eles avançaram.sorrindo. Florimond pôs um joelho em terra e beijou a mão da mãe. O mesmo fez o abade.
- Mas por quê?... Quem... Que aconteceu?... Seu tio dissera-me...
As perguntas atropelavam-se em seus lábios. A surpresa sucedia-se uma sensação de terror.
O abade explicou que soubera muito tarde do retorno da Sra. du Plessis à França. Ainda tinha algumas obrigações a cumprir para com o Marechal de La Force, junto a quem entrara de serviço como auxiliar de confessor, após a partida de Angélica. Assim que pudera, pusera-se a caminho, e de passagem detivera-se no colégio de Clermont para saber de Florimond. Ora, o Padre Raimundo de Sancé apressara-se a restituir-lhe o ex-aluno, feliz, dizia, por encontrar um companheiro de viagem para o sobrinho, pois este estava a ponto de pegar sozinho a estrada para o Poitou.
- Mas por quê?... Por quê? - repetia Angélica. - Meu irmão dissera-me que...
O abade baixou os longos cílios, confuso.
- Creio ter compreendido que Florimond não lhes causava satisfação e que o estavam mandando de volta - murmurou.
Os olhos de Angélica caminharam da fisionomia amável do jovem abade para a do filho. Mal o reconhecia. No entanto, era ele. Mas tão crescido, magro como um espeto sob a blusa negra de colegial. A cintura, cingida por um cinto de onde pendiam um chifre de tinta e um estojo de penas, era fina como a de uma mulher. Doze anos! Logo lhe chegaria ao ombro. A um movimento que fez para jogar para trás um anel dos longos cabelos que o incomodava - movimento cheio de desenvoltura, onde não entrava nenhum arrependimento -, ela compreendeu de onde vinha a perturbação que sentia ao vê-lo. Ele começava a se parecer cada vez mais com o pai. Dos traços infantis surgia, como de uma ganga, um perfil puro, uma face um pouco cava, lábios cheios e trocistas: o semblante de Joffrey de Peyrac, que se adivinhava outrora, apesar das cicatrizes. A cabeleira de Florimond, abundante, negra, parecia ter dobrado. E nas pupilas velava uma ironia alegre que desmentia seu porte calmo de bom aluno.
Que acontecia? Ela não o beijara, não o cingira contra o peito. Mas ele tampouco lhe saltara ao pescoço como antes.
— Estão cobertos de poeira - disse ela -, devem estar fatigados.
— Estafados, de fato - disse o abade. - Perdemo-nos e percorremos pelo menos vinte léguas a mais. Quisemos evitar os bandos armados de foices que percorrem a região. Para os lados de Champdeniers fomos detidos por huguenotes. Haviam implicado com meu hábito eclesiástico. Florimond acalmou-os ao pronunciar seu nome, e deixaram-nos passar. Depois fomos assaltados por vagabundos, que implicaram apenas com nossas bolsas. Felizmente, tinha minha espada... A província parece-me bastante agitada...
— Venham comer - insistiu ela, recobrando um pouco o controle.
Os criados mostraram-se solícitos, felizes por reencontrar o garoto que por longo tempo habitara o Plessis com o irmão Cantor. Rapidamente trouxeram uma colação de frutas e de laticínios.
- Talvez se espante por me ver carregar uma espada - retomou o abade, cuja voz preciosa e suave não lhe parecia inteiramente real -, mas o Sr. de La Force não suporta ver um gentil-homem sem espada, mesmo um padre. Ele obteve do arcebispo de Paris, para seus confessores de origem nobre, o direito de carregá-la.
Explicou ainda, enquanto manejava delicadamente a colher de prata dourada, que o marechal, quando em campanha, queria ouvir a missa todos os dias com a mesma pompa da capela do castelo. Isso por vezes criara situações pitorescas, com o confessor oficiando sob os muros de uma cidade sitiada, enquanto o fumo do incenso mesclava-se às volutas dos primeiros tiros de canhão. "A Arca Santa sob os muros de Jericó", dizia o marechal, encantado. Tal era o senhor a quem o Abade de Lesdiguière servira na ausência daquela que não mais pensava rever, e que hoje reencontrava com uma felicidade que não podia exprimir.
Enquanto os recém-chegados acabavam de se alimentar, Angélica afastou-se até a janela, para ler a missiva do Padre de San-cé, entregue pelo preceptor de seu filho. O jesuíta falava de Florimond. O menino não correspondia a seus esforços, dizia. Não gostava do trabalho intelectual e talvez, no fundo, lhe faltasse inteligência. Possuía o deplorável hábito de esconder-se para estudar os globos e instrumentos de astronomia na hora da lição de esgrima, ou de sair a cavalo quando o mestre de matemáticas apresentava-se na classe. Em suma, faltava-lhe a mais elementar disciplina escolar, e, o que era bastante desencorajador, não parecia preocupado com isso. A missiva terminava com esse relato pessimista, sem maiores explicações. Angélica pensou: "Sei o que isso quer dizer", e erguendo os olhos viu que a vegetação do parque amarelecia e que um bosquete de cerejeiras adquirira, em poucos dias, a tinta escura do sangue.
O outono chegara.
Aquelas palavras não eram senão pretexto. Florimond não podia ter deixado o colégio sem autorização do rei. Ela retornou, febril, até eles.
- Precisa partir imediatamente - disse ao abade. - Jamais deveria ter voltado, nem ter trazido Florimond.
A chegada de Malbrant Golpe de Espada interrompeu os protestos sobressaltados do pequeno eclesiástico.
- E então, filho? Que fez de sua boa espada? Enferrujou-se como ela aprendendo bobagens. Mas retomaremos os exercícios.
Veja, cá estão três lâminas entre as mais belas. Afiei-as para você. Sentia que não tardaria a voltar.
- Senhora, que diz? - murmurava o abade. - Não tem emprego para minhas aptidões? Posso continuar a dar lições de latim a Florimond e ensinar o alfabeto a seu filho mais jovem. Fui ordenado e direi a missa todos os dias em sua capela, darei confissão a seus serviçais...
A inconsciência dela espantava-o. Seus olhos ternos confessavam a adoração que ele lhe votava, as lágrimas que vertera em segredo, acreditando-a desaparecida para sempre, a alegria que o agitava por encontrá-la viva.
Ele não via até que ponto ela estava mudada, marcada, rodeada de um halo de desgraça?
Não sentia o perigo das desordens, a tensão na região? Ali mesmo, no castelo, não percebia a atmosfera de sensualidade, sangue e ódio?
- A missa! Está louco... Soldados emporcalham minha casa. Estou prisioneira, humilhada, e eu própria... eu própria estou amaldiçoada...
Sem perceber, ela falara o tempo todo em voz baixa, um tanto assustada, os olhos fixos nos olhos do jovem de rosto infantil, como se quisesse refugiar-se em sua candura. Uma grave paixão inundou os traços delicados do Abade de Lesdiguière.
- Mais uma razão para dizer a missa - falou com doçura.
Ele tomou uma das mãos de Angélica e estreitou-a com fervor, enquanto seus belos olhos se enchiam de infinita indulgência.
Ela desviou o olhar, subitamente fraca, e sacudiu a cabeça repetidas vezes, como se afastasse véus que a sufocassem. Depois cedeu:
- Pois bem! Fique... e diga sua missa, meu pequeno abade. Afinal, talvez todos lhe tirem proveito.
Foi a época dos retornos. Dois dias depois, Flipot voltou da Itália, após ensinar os rudimentos da gíria ao filho do senhor italiano que o comprara em Livorno. Levara seis meses percorrendo montes e vales, montado em uma mula. De seu serviço nos palácios trabalhados à beira do Adriático, ele trazia modos de valete de comédia, exuberante e volúvel. De suas peregrinações sob a neve pelas gargantas dos Alpes e pelas estradas empoeiradas dos campos franceses, guardava uma tez queimada e ombros mais largos. Tornara-se um homem de expressão astuta e zombeteira, belo rapaz, bem-falante, e que estaria em seu elemento junto aos vagabundos do Pont Neuf.
__ Não se sentiu tentado a voltar mais cedo a Paris? - perguntou-lhe Angélica.
— Lá estive, perguntando pela senhora. Quando me disseram que estava em suas terras, voltei adestrada!
— Por que não permaneceu em. Paris? - insistiu ela. - Esperto como é, podia encontrar uma boa colocação.
— Prefiro sua casa, senhora marquesa.
— Nada está seguro em minha casa, Flipot. O rei me tem em desfavor. Você é um garoto de Paris, ali estaria melhor.
- Para onde quer que.eu vá, senhora marquesa? - perguntou o antigo mion do Pátio dos Milagres com um momo de tristeza.
- A senhora é toda a família que tenho. Quase me serviu de mãe desde a Tour deJNesJe, quando me defendia contra os que me espancavam. Eu me conheço.-Se voltar ao Pont Neuf, recomeçarei a cortar bolsas.?.
— Espero que você tenha perdido esse mau hábito.
— Isso é outro assunto. Sou diplomado na matéria, preciso manter a forma. E depois, de que teria vivido durante toda a viagem? Se só se vive desse trabalho, ele logo se torna perigoso. Quando éramos fedelhos, havia um velho no Pátio dos Milagres, pai Hur-loot, creio eu,"que nos repetia todas as manhãs: "Minhas crianças, lembrem-se de que nasceram para ser enforcados". Aquilo não me dizia nada. Continua a não me dizer nada. Posso remediar-me de tempos em tempos, mas prefiro estar a seu serviço...
— Se assim é, ficarei com você de bom grado, Flipot, você e eu temos muitas lembranças em comum...
Na própria noite desse retorno, um mascate subiu até o castelo. Uma criada veio prevenir Angélica de que um homem a procurava da parte de "seu irmão Gontran". Ela sentiu-se empalidecer e fê-la repetir o nome várias vezes. O homem estava na cozinha, diante de um pacote aberto com a mercadoria exposta à cobiça das criadas: fitas, agulhas, imagens coloridas, medicamentos e também todo um conjunto de apetrechos de pintor.
- O senhor disse que veio da parte de meu irmão Gontran? -perguntou Angélica.
- Sim, senhora marquesa. Seu irmão, nosso confrade, encarregou-me de trazer-lhe algo que me confiou quando parti em viagem pela França. Ele me disse: "Quando passar pelo Poitou, vá até o Castelo do Plessis-Bellière, na região de Fontenay. Dirija-se à senhora do lugar e entregue-lhe isto da parte de seu irmão Gontran".
— Há quanto tempo não vê meu irmão?
— Há mais de um ano.
Estava tudo explicado. Enquanto narrava seu longo périplo pelas terras da Borgonha, da Provença, do Roussillon, as longas paradas nos Pireneus e na orla do oceano glauco, ele remexia em um alforje de couro, de onde tirou um rolo cuidadosamente envolvido num oleado.
Angélica pegou o objeto. Recomendou que o artífice fosse bem tratado e assegurou-lhe que poderia permanecer sob seu teto o quanto lhe aprouvesse.
No quarto, tirou do invólucro uma tela, que ao ser desenrolada revelou o retrato maravilhosamente vivo de seus três filhos. Cantor estava em primeiro plano com a guitarra, num traje verde da mesma cor de suas pupilas. O pintor soubera dar vida a sua fisionomia tão particular a um tempo sonhadora e divertida. Era ele, o menino desaparecido, e tal vitalidade emanava de seu ser, que não se podia acreditar que estivesse morto. "Viverei para sempre", parecia afirmar.
Florimond estava de vermelho. Gontran - com que presciência! - conferira-lhe o semblante adolescente que hoje possuía: finura, inteligência, paixão. A cabeleira negra punha uma mancha profunda na vivacidade do colorido da obra encantadora, acentuando os verdes, vermelhos, o rosa dos rostos infantis, o ouro sedoso dos cachos do pequeno Carlos Henrique. Ele estava entre os dois mais velhos, bebe ainda, vestido com longas roupas brancas, assemelhando-se a um anjo. Estendia as mãozinhas rechonchudas para tocar os braços de Cantor e Florimond, mas estes pareciam não percebê-lo. O hierático das atitudes um pouco rígidas tinha algo de simbólico que confrangeu o coração de Angélica, como se o pintor - ah! quem poderia um dia conhecer os profundos pressentimentos daquela alma de artista - quisesse destacar as diferentes origens das raças: os dois mais velhos, filhos do Conde de Peyrac, à frente, e como que iluminados por um raio de vida; o mais jovem, filho do Marechal Filipe du Ples-sis. um pouco recuado, deliciosamente belo, mas só.
Devido à impressão que a oprimia, Angélica ficou a examinar a imagem do menor. "Sei a quem se assemelha", pensou de súbito. "A minha irmã Madelon!" E no entanto era o retrato de Carlos Henrique. Sutilezas dos toques de um pincel inspirado, que conferia a uma visão imóvel as -nuanças moventes da vida. A mão que empunhara o pincel ítombara inerte. Morte. Vida. Destruição e perenidade. Esquecimento... Ressurreição...
Diante do quadro, Angélica acreditava ver, como as variações de um prisma, como sombras de nuvens passando sobre uma paisagem, as faces ora sombrias ora magníficas de sua vida, pressentindo que muitas.coisas -permaneciam-lhe ocultas.
Florimond não fizera nenhuma pergunta. Admitira sem comentários a presença dos soldados no parque e a do capitão na residência da mãe.
Desde a noite em qu$ os moradores do Plessis o haviam ameaçado, a atitude de Montadour tornara-se um misto de furor impotente, arrogância desenfreada e sombrias "meditações. Ele desaparecia por-dias-inteiros, deixando a guarda do castelo ao tenente, para correr atrás dos huguenotes. Mas estes dispersavam-se pelo bocage, e os cadáveres de dragões eram encontrados atravessados nos caminhos. Então Montadour enforcava o primeiro camponês que lhe caísse nas mãos, e que por vezes acontecia de ser um católico. Os insultos brotavam em sua presença.
Ele estava amiúde bêbado. Então seus temores obscuros, mesclados ao desejo lancinante que o obsedava, surgiam em acessos de cólera e resmungos, enquanto cambaleava pelo vestíbulo, brandindo a espada em gestos largos contra o mármore da rampa ou a madeira dourada dos quadros, de onde os antepassados dos Plessis-Bellière contemplavam com altiva consternação a agitação daquele bêbado pançudo. Quando estava em tal estado, seus homens afastavam-se. Ele sentia os olhos brilhantes dos criados espiando pelas fendas das portas e por vezes, em seu delírio, ouvia o riso sonoro do pequeno Carlos Henrique, a quem Bárbara mostrava o divertido espetáculo. Então explodia em imprecações. Haviam-no abandonado. Estava à mercê de um demónio e de uma feiticeira. Chorava a própria sorte, e a cólera lhe voltava:
- Puta! - rugia, o focinho erguido para o alto da escada, tentando em vão vencer os primeiros degraus -, sei que corre à noite pela floresta... procura seu macho...
Angélica sentia-se tranquila apenas em parte. Como podia ele saber? Quer dizer que ela corria à noite pela floresta. Os discursos do Capitão Montadour terminavam em confusas acusações que falavam de corça e de sortilégios... Um dia em que assim vociferava, ele sentiu violenta picada nas ancas e, ao se voltar, viu Florimond enfiar-lhe sem rodeios a espada nas partes carnudas.
- E a minha mãe que se dirige, capitão? - perguntou. - Se o for, deve apresentar-me os motivos.
Montadour praguejou e tentou defender-se contra a ágil espada. O olhar turvo não via senão uma espessa pelagem girando-lhe à volta. O lobo e a loba! A um talho na mão, ele largou a arma e gritou por socorro. Seus homens acorreram. Florimond fugiu, troçando com os dedos na ponta do nariz.
Medicado e desembriagado, Montadour jurou que exterminaria a todos. Mas era preciso aguardar por reforços. A situação era crítica para ele e os seus. Estavam incomunicáveis com o Sr. de Gormat, e as cartas que ele enviara ao Sr. de Marillac deviam ter sido interceptadas.
Exceto por essa intervenção, Florimond não pareceu ter tomado consciência muito nítida da situação. Trocava ferros com o escudeiro e o preceptor em intermináveis duelos, caçava esquilos e desaparecia horas inteiras, não se sabia onde. Galopava pelos corredores com Carlos Henrique nos ombros. Seu riso sonoro causava estranheza. Ele selava o cavalo, colocava Carlos Henrique na sela e partia para o campo sem se preocupar com a sentinela que tentava detê-lo e que o deixava sair por não saber exatamente quais as sanções para com aquele jovem senhor católico.
Certo dia, Angélica surpreendeu Florimond instalado a um canto do salão, com Carlos Henrique diante de si na atitude do aluno que está sendo interrogado. O mais velho depositava pós, que tirava de saquinhos cuidadosamente etiquetados, em pratos à sua frente.
— Qual é o nome desta matéria amarela?
— Enxofre.
— E desta acinzentada?
— Caliche ou salitre do Chile em cristais.
— Muito bem, senhor. Vejo que é atento. E este pó preto?
— É carvão de madeira que você peneirou na seda.
— Muito bem, mas não deve tratar seu professor de você!
Certa noite, que já ia avançada, ouviu-se uma detonação junto aos degraus da entrada e algo brilhante evolou-se na escuridão, voltando a cair no gramado com a forma de um feixe. Os soldados precipitaram-se para as armas aos gritos de "Alerta!" Mon-tadour estava ausente. Janelas abriram-se. Encontraram Florimond, o rosto e as mãos negros de fuligem, diante de um estranho engenho de sua fabricação, e Carlos Henrique em longa camisola gritando de entusiasmo diante do sucesso do foguete que seu "professor" construíra com tanto engenho.
Todos, inclusive os militares, puseram-se a rir. Angélica ria como não o fazia há jnúito tempo, com um riso que lhe aliviava o coração e lhe punha lágrimas nos olhos.
- Ah! fedelhos - Suspirou Bárbara -, é impossível estar-se tranquilo em sua companhia.
A maldição parecia afastar-se do castelo. As missas do Abade de Lesdiguière talvez tivessem parte nisso...
No dia seguinte, um falcão sobrevoou as torrinhas, e Florimond capturou-o como um perfeito falcoeiro. Acompanhado pelo abade, levou à mie a mensagem que encontrara fixada na pata da ave. Angélica enrubesceu ao pegar o estojo. Com um golpe seco de seu canivete fez saltar o folheto. A alta caligrafia de Samuel de La Morinière marcava um encontro na noite seguinte, na Pedra das Fadas... Ela cerrou os dentes. Na Pedra das Fadas. Insolente! Com que desprezo não a tratava, para ousar fazer-lhe tal indicação... Tal ordem! Considerava-a uma escrava?... Ela não iria! Não os ajudaria mais... Não poderia fazê-lo senão escapando ao patriarca. Mas reencontrar-se diante dele, na cumplicidade da floresta, dos perfumes outonais, da bruma dos rios, era impossível. Se ousasse tocá-la novamente, que faria? Seu medo seria ainda intenso o suficiente para dominar a estranha atração que a cena da outra noite deixara em suas veias? Em vão tentava distrair-se. Durante o sono, a presença tenebrosa debruçava-se sobre ela, fazendo-a despertar aos gemidos.
Estava dividida entre a floresta, a força escondida sob as árvores chamando-a como o bramido do cervo no fundo dos bosques, e a tentação de imobilizar-se, de não mais agir.
O outono chegara, e ela não fizera a submissão ao rei. Mas os emissários que ele enviaria para detê-la não mais poderiam franquear o círculo de ferro e de fogo que o patriarca tecera nos limites da província. Para além do parque onde seus filhos brincavam, havia mulheres espancadas, colheitas queimando, camponeses à espreita, prontos para tudo.
Florimond e o Abade de Lesdiguère olhavam-na. Aonde fosse sentia aqueles olhos puros interrogando-a. O rei soubera o que fazia ao enviar-lhe Florimond. "Os filhos sempre pesam", dizia a parteira, "se não os amamos, eles atrapalham; se os amamos, eles nos enfraquecem."
Vulnerabilidade de um coração atingido por golpes em demasia e que oscila. O Mediterrâneo marcara Angélica. Quando se acreditava endurecida, sua capacidade de sofrer decuplicara com o pensamento agora lúcido. Tudo no presente lhe fazia mal. Mas as forças desencadeadas arrastavam-na a contragosto. A trompa de Isaac de Rambourg chamava por ela na tarde acobreada, acima do arvoredo fulvo. Haviam combinado um código conforme a importância das mensagens. O halali era o pedido de socorro. O halaHL.
- Senhora, é preciso vir - suplicava La Violette, esfalfado por ter corrido até o solar vizinho. - As mulheres... As mulheres das aldeias protestantes de Gâtine... as que foram expulsas para as estradas, há vários dias sem socorro... elas refugiaram-se junto ao Sr. de Rambourg. Se Montadour o souber, estão perdidas. O Sr. de Rambourg pede conselho...
Angélica introduziu-se no subterrâneo. Chegou pelos bosques aos jardins herbosos que sobre a colina cercavam o Castelo de Rambourg. As mulheres, esgotadas, estavam sentadas no chão, no pátio ao pé do torreão, os filhos magros contra si. Tinham o olhar triste, as toucas brancas amarrotadas e sujas de poeira. Contavam à baronesa a caminhada sem rumo por entre a hostilidade das aldeias católicas, as quais os padres exortavam a respeitar o edito, prescrevendo que não lhes fosse dada ajuda alguma, nem mesmo um pedaço de pão. Elas nutriam-se à noite de rábanos dos campos e por muito tempo tinham vivido na orla dos bosques. Eram desalojadas por meio de cães. Patrulhas de soldados surgiam e assediavam-nas, permanecendo de vigia nas cercanias das aldeias de sua religião, para que o edito fosse respeitado.
Elas caminhavam com os filhos sob o sol implacável do verão e sob violentas tempestades. Por fim, haviam decidido ir a La Rochelle, antiga metrópole dos protestantes, ali ainda suficientemente numerosos para ignorar ó edito e acolhê-las. Durante alguns dias haviam atravessado uma região onde os bandos de Samuel de La Morinière eranvdonos da situação, e assim puderam repousar em fazendas de correligionários. Mas os camponeses estavam empobrecidos, os víveres eram raros. Fora preciso continuar. Ao chegar à região do rio Vendée, haviam encontrado os dragões vermelhos de Montadour. Espavoridas, refugiaram-se longe das estradas. Foram dar a um beco próximo à floresta intransponível e souberam que um dos piores torturadores dos protestantes.tinha ali seu quartel-general. Num supremo esforço haviam-se alçado- até, a moradia dos Rambourg, que lhes fora indicada.
Os filhos dos Rambourg, o nariz escorrendo, contemplavam boquiabertos as recém-chegadas. Angélica avistou Florimond junto ao mais velho, Natanael. A inquietação tornou-a ríspida.
- Que faz aqui? Por que se envolve neste assunto dos protestantes?
Florimond sorriu. Desde o colégio adquirira o hábito de não replicar a uma admoestação. Era exasperador. A Baronesa de Rambourg, no sétimo mês da nona gestação, distribuía às mulheres pedaços de pão duro e negro. Uma das filhas ajudava-a carregando a corbelha.
- Que devemos fazer, senhora? - perguntou a Angélica. - Não podemos manter as mulheres aqui, muito menos alimentá-las.
O Barão de Rambourg chegava, a trompa de caça ao ombro.
— Colocá-las de volta na estrada será sua perda. Antes que consigam chegar a Secondigny, contornando a floresta, Montadour as apanhará.
— Não - disse Angélica, após ter refletido. - E preciso que alcancem o Moinho des Ablettes, no pântano. Dali, barcos as conduzirão até o domínio do Sr. d'Aubigné, onde estarão abrigadas. Atravessando pouco a pouco as águas comhorteloas como guias, acabarão por chegar aos arredores de La Rochelle. Não terão percorrido mais que duas ou três léguas e terão feito toda a viagem longe das estradas transitadas.
— Mas e para atingir o Moinho des Ablettes?
— Cortarão direto pela floresta. Não são mais que duas ou três horas de caminhada.
O protestante mostrou-se insatisfeito.
- Quem as guiará?
Angélica baixou o olhar sobre as faces cansadas onde brilhavam as pupilas escuras das mulheres de sua província.
- Eu.
Ao saírem de entre as árvores, seus pés mergulharam num musgo esponjoso. Os pântanos começavam ali. Tinham a cor da campina, e eles teriam tentado avançar entre os amieiros e as faias se à margem uma cadeia de barcos a que chamam plates não traísse a presença das águas. Angélica trouxera três pequenos lacaios para ajudá-la a manobrar os batéis. Como garotos da região, mostraram-se pessimistas.
— Não será tão fácil embarcar, senhora marquesa. No Moinho des Ablettes, a margem é controlada pelo moleiro. Ele pede peagem a todos os que queiram passa pelo pântano e sempre humilha os reformados, pois detesta-os. Ele carrega a chave dos barcos. Até habitantes das aldeias dão longas voltas para não ter que passar por seu moinho.
— Não temos tempo. É nossa única saída. Encarregar-me-ei do moleiro - disse Angélica.
Partiram bem antes do final do dia, carregando lanternas que se acenderiam quando a escuridão invadisse os bosques. As crianças estavam fatigadas. O caminho pareceu longo. Quando chegaram ao Moinho des Ablettes, o sol já se havia posto. O canto dos sapos e das aves aquáticas verrumava a escuridão. O frescor de uma bruma impalpável subia do solo e sufocava, enquanto o contorno das árvores de raízes submersas esfumava-se aos poucos num fosco azulado.
A esquerda, ainda se distinguia o moinho, atarracado, mostrando os dentes da roda ao nível da água morta, florida de nenúfares.
- Permaneçam aqui - disse Angélica às mulheres, que se com primiam friorentamente.
As crianças tossiam e abriam olhos inquietos sobre o cenário esfumado.
Patinando um pouco, Angélica alcançou o moinho. Encontrou a ponte carcomida e, logo após, a familiar passarela sobre o canal. Sua mão encontrou a parede rugosa onde se prendiam campainhas.
A porta estava aberta. O moleiro contava seus escudos à luz de uma vela. Era um homem de-testa curta. A franja de espessos cabelos que lhe caía pelas sobrancelhas acentuava-lhe a expressão de tenacidade limitada. Vestido de cinza, como as pessoas de sua profissão, um chapéu redondo de pele de castor enfiado na cabeça, ele aparentava uma certa opulência. Trazia meias vermelhas e sapatos cam fivelas de aço. Comentava-se que aquele moleiro era muito rico, avaro e intolerante.
Angélica passeou o olhar pelos móveis rústicos, aveludados pela impalpável farinha. Sacos estavam empilhados a um canto e respirava-se o' odor dõ frumento. Ela sorriu ao ver que a decoração não mudara. Em seguida avançou, dizendo:
- Valentim, sou eu... Boa noite.
CAPITULO XII
Expedição nos pântanos
Os barcos avançavam pelo túnel escuro. A frente, o redondo amarelado das lanternas varava com dificuldade uma noite limitada pela abóbada compacta das árvores. O alto talhe de mestre Valentim era por vezes obrigado a se curvar. Com uma ordem em patoá, ele advertia os guias dos outros barcos. As mulheres não mais tinham medo. Percebia-se uma calma entre elas, e ouviam-se os risos abafados das crianças. Uma paz, há longos dias ignorada, insinuava-se no coração dos fugitivos: a paz dos pântanos inviolados. Não era sobre o pântano do Poitou que o bom rei Henrique IV escrevia'a sua amada: "Ali é possível quedar-se agradavelmente na paz, e em segurança na guerra"? Que inimigo perseguiria o adversário nesse lugar? Se assim o tivesse desejado, Montadour embarcaria alguns soldados nas barcaças para vê-los retornar transidos, enlameados, tendo virado em vão pelas regueiras, abordando uma margem para senti-la afundar sob as botas, dando voltas num labirinto de muralhas verdes ou douradas conforme a estação, por entre as grades fechadas da ramagem no inverno, para no fim se acharem de volta ao ponto de partida. Seriam felizes se retornassem; a imensa extensão poderia engoli-los para sempre em seu universo silencioso. Muitos cadáveres desconhecidos dormem no fundo das águas mortas, sob o veludo verde dos agriões...
Mestre Valentim, o moleiro, erguera-se ao ser interpelado por Angélica. Não parecera surpreso em vê-la. Sob seus traços duros ela reencontrava o garoto cabeçudo e taciturno que empurrava a pigouille, para conduzir a Srta. de Sancé a seu domínio dos pântanos e subtraí-la ciumentamente aos chamados estridentes do pastor Nicolau: "Angélica!... Angélica!..." O pastor corria pelos campos com o bordão, o cachorro e os carneiros atrás de si. Angélica e Valentim, ocultos pelos caniços, riam à socapa, para depois distanciar-se ainda mais, e os chamados morriam, abafados pela ramagem: amieiros, olmos, freixos, salgueiros e altos álamos...
Valentim colhia ramos de angélica, e eles os sugavam, aspirando-lhes o odor. "Para tar sua alma", dizia Valentim.
Ele não era tagarela como Nicolau. Facilmente enrubescia e via-se tomado de implacável cólera. Os protestantes, não se sabia por quê, instigavam-lhe ódio. Ele e Angélica iam espreitar junto às encruzilhadas as crianças huguenotes na volta da escola, lançando-lhes terços no rosto para ouvi-los gritar: "Ao diabo!" Tais recordações voltavam a Angélica, enquanto um tapete de lentilhas de águase rasgava sob a roda do moinho com um ruído de chuva fina.
Valentim continuava a não gostar dos protestantes, mas fora sensível aos escudos de ouro da Marquesa du Plessis-Bellière. Pegara as chaves e embarcara as mulheres e crianças nas barcaças.
A uma rajada maior de vento, adivinharam que o caminho de água se alargava. O primeiro barco tocou em terra firme. A lua saía das árvores num halo irisado revelando a moradia adormecida dos senhores d'Aubigné, rodeada de salgueiros em meio a um gramado de capim alto. O castelo ficava numa daquelas incontáveis ilhas do antigo golfo do Poitou, cujas rochas ao nível do solo eram outrora batidas pelo mar. No inverno, as águas continuavam a chegar ao limiar da escadaria de pedra. Castelo renascentista, edificado por um senhor seduzido pelo reflexo das pedras brancas naquele espelho insondável, e talvez, também, pela situação inacessível do local. A própria moradia para conjurados!
Os cães latiam...
Atendeu-se aos que chegavam, e a Srta. de Coesmes, prima do velho marquês, surgiu carregando alto um castiçal. Com ar severo, ouviu Angélica relatar o estado miserável das pobres mulheres, viúvas em sua maioria, a quem conduzira até ali na esperança de que delas se encarregassem, ajudando-as a alcançar La Rochelle. Ela não aprovava a ingerência de uma católica tão suspeita como a Sra. du Plessis nos assuntos dos reformados. Não eram por demais conhecidos os seus excessos na corte? Fê-la, no entanto, entrar e, enquanto as camponesas eram conduzidas às cozinhas, examinou o vestido de fustão que Angélica usava .sob uma manta em suas expedições noturnas, os sapatos sem salto e enlameados e o quadrado de cetim negro com que prendera os cabelos.
A solteirona comprimiu novamente os lábios, assumiu um ar de mártir resignada e preveniu a visitante:
- O Duque de La Morinière está aqui. Deseja vê-lo?
Angélica perturbou-se com a notícia. Sentiu-se enrubescer e disse que não desejava incomodar o duque.
— Ele chegou coberto de sangue - cochichou a Srta. de Coesmes, que apesar de tudo se deixava excitar por tantos acontecimentos. - Foi dominado numa escaramuça com os dragões do infame Montadour e refugiou-se nos pântanos. Parece que seu irmão Hugo tomou Pouzauges. O Sr. de La Morinière lamentava não poder encontrar-se com você.
— Se está ferido...
— Deixe-me preveni-lo.
Ela aguardou tremendo, mas retesou-se ao som do passo do patriarca huguenote nas lajes do patamar, e enquanto ele descia lançou-lhe um olhar ousado e severo.
Ele veio até ela. Um talho profundo sulcava-lhe a fronte. As carnes intumescidas ainda não haviam cicatrizado. Não lhe suavizava a aparência, essa ferida aberta. Ela o achou ainda maior, mais pesado e mais sombrio que nunca.
- Saudações, Angélica - disse, avançando um pouco a mão nua. - Manterá a aliança?
Angélica desviou os olhos daquele olhar. Fez um gesto na di-reção da cozinha, cujas portas entreabertas deixavam passar a luz do fogo e as vozes agora calmas das mulheres protestantes.
- Está vendo!
Ela não acreditara que o que ocorrera na Pedra das Fadas poderia impor-se-lhe a esse ponto e paralisá-la a um tempo de embaraço e de inquietação. Estaria sofrendo a influência de uma personalidade que alguns de seus contemporâneos declararam en-feitiçadora embora desagradável? Os irmãos, a esposa, as mulheres dos irmãos, as filhas, os sobrinhos, sua gente, os soldados, não conseguiam desobedecer-lhe. Ele não tinha senão que aparecer. "Tão próximo de um deus, havia nele algo de diabólico", assim escreveram sobre o grande senhor protestante, que ao ver chegada a sua vez erguera-se breve mas ferozmente diante de Luís XIV.
Ele não se desculpou. Estaria ofendido em seu desmesurado orgulho por ela não ter atendido a seus dois chamados?
- Pouzauges, Bressuire - disse, por fim. - Os burgueses estão conosco. Tomamos as armas das guarnições e armamos os bandos insurretos nos campos. As tropas que o Sr. de Marillac deixara no norte retiraram-se mais para leste e ocupamos de imediato suas posições em Gâtine. Estão cortados todos os socorros às tropas dos senhores de Gormat e de. Montadour, e eles ainda não o suspeitam,
Ela fitou-o com intensidade, o semblante iluminado.
— Será possível? Eu o ignorava.
— Como poderia .sabê-lo? -Você permanecia em silêncio.
— Então - murmurou Angélica a meia voz, como para si mesma -, o rei... o réi não pode mais alcançar-me...
— Em alguns dias sairei dos pântanos e expulsarei Montadour de seus domínios..
Ela sustentou o olhar.
— Agradecida, Sr. de La Morinière.
— Perdoado?
A palavra deve ter-lhe custado um esforço sobre-humano, pois sua fronte inchou e o sangue ressumou nas extremidades do corte.
— Não sei - disse ela voltando a cabeça. Caminhando para a porta, murmurou:
— Agora devo retornar ao Plessis.
Ele desceu as escadas a seu lado. Quando ela tomou a aléia para o desembarcadouro, apanhou-a pela cintura num movimento convulsivo e irresistível.
- Peço-lhe, Angélica, olhe-me.
- Cuidado - sussurrou ela, com um movimento em direção à escuridão, onde a aguardavam mestre Valentim e sua barca.
Ele impeliu-a para trás de um salgueiro e sob as leves folhagens enlaçou-a com os braços nodosos.
O mesmo reflexo de repugnância e de desejo fê-la-enrijecer-se contra ele. Sim, o amor com o patriarca devia ser algo de terrível, de inabitual. O corpo inteiro a traía. Ela estreitou os ombros do huguenote com as mãos crispadas, sem saber se o repelia ou nele se apoiava como num rochedo invencível de que sua existência ameaçada necessitava.
— Por quê? - perguntou, ofegante -, por que perturbar a aliança?
— Porque é preciso que você seja minha!
— Mas quem é você? - gemeu ela. -Já não compreendo mais nada. Não o apresentam como um homem de orações e de costumes austeros? Diziam que desprezava as mulheres!...
— As mulheres? Sim. Mas você... Era Vénus sob o pórtico romano. Eu compreendi... Ah! o véu que se rasgava... Esperar tanto tempo, toda uma vida, para compreender o que é a beleza de uma mulher.
— Mas que disse eu? Que fiz naquele dia? Não havíamos falado de sua luta por sua fé?...
— Naquele dia... o sol pairava sobre você, sobre sua pele, seus cabelos... Eu não sabia. Compreendi de súbito. A beleza de uma mulher.
Ele afastou-a um pouco.
- Causo medo a você também? As mulheres sempre me temeram. Far-lhe-ei uma confissão, Angélica, uma ferida que sangra em meu âmago. Minha esposa, quando eu entrava em seus aposentos, suplicava-me, por vezes de mãos juntas, que não tocasse nela. No entanto, serviu-me devotadamente e deu-me três filhas, mas não ignoro ter sido para ela objeto de horror. Por quê?
Ela o sabia. A ironia do destino ou da hereditariedade fizera desse descendente de uma raça em que talvez houvesse a contribuição de sangue mouro, desse protestante severo, um amante de compleição temível.
A revelação de Angélica deixara-o fulminado. Existia então uma outra face da vida, cuja graça podia ser-lhe acessível. E porque ela lhe parecera tão fraca e sem defesa, apesar da força de sua beleza, os demónios da luxúria se haviam desencadeado. Ele especulava sobre o domínio que possuía sobre ela. Temia-lhe o olhar, mas comandava. Era uma luta esgotante pelos sentimentos extremos que deles se haviam apossado. A cumplicidade da rebelião os isolava. Eram impelidos para a consumação de sua inquietante paixão, como para a necessidade de exterminar os soldados do rei ou de enfrentar o senhor do reino.
— Você será minha - repetiu com voz surda. - Você me pertencerá...
A mesma adjuração feita pelo rei. O mesmo imperioso comércio.
- Talvez, um dia... - balbuciou ela. - Não seja brutal.
- Não sou brutal - sua voz^quase tremia -, não fale como as outras mulheres que têm medo. Sei que você não terá medo. Esperarei. Farei o que quiser. Mas não mais recuse atender a meu chamado na Pedra das Fadas.
Sentada no fundo da barca forrada de palha, ela se sentia vazia, lânguida, como se de fato tivesse vivido essa posse impetuosa. Como seria' quando fila consentisse?... Angélica balançava a cabeça para afastar -imagens que lhe eram intoleráveis.
Uma noite na floresta, o caçador negro fazendo-a sua presa, afundando-á no musgo, oprimindo-â com seu enorme corpo desajeitado. Ela debatendo-se contra suas mãos, contra a espessura de sua barba até o instante mágico em que o despertar da carne removeria a angústia do domínio das delícias. Esquecimento total, arquejos," gritos...
Ela jogou a.cabeça para trás com uma expressão extenuada. Embora não chovesse, a névoa molhava-lhe os cabelos. Atrás do barco, um sulco de mármore negro subsistia um momento, apagando-se lentamente sob o fosco leitoso das minúsculas plantas que voltavam a se juntar.
A lua, como enorme pérola de irisações opalinas, vertia pela ramagem uma luz ténue, e a silhueta de mestre Valentim, em pé, atrás, a manejar a vara, era quase tão estranha como a dos olmos debruçados sobre o caminho de água.
O intenso perfume de hortelã revelava a proximidade da margem. Roçavam-na por vezes, ramos raspavam a madeira da barcaça, mas o moleiro não precisava de lanterna nesse dédalo. Angélica falou para escapar às próprias tentações.
— Lembra-se, mestre Valentim? Você já era o senhor do pântano quando me trazia para pescar enguias.
— Decerto.
— Ainda tem a cabana aonde abordávamos para cozinhar a sopa e nos banquetearmos?
— Ainda.
Angélica continuou a falar para evitar o silêncio.
— Certa vez caí na água. Você me apanhou coberta de algas, efui severamente castigada quando voltei a Monteloup. Proibiram-me de retornar ao pântano, e pouco depois fui enviada para o convento. Não mais nos vimos desde então.
— Decerto que sim. Nas bodas da filha do Pai Saulier.
— Ah! sim - recordou-se ela. - Você vestia um belo traje e um colete bordado - disse, rindo. - Conservava-se empertigado e não ousava dançar.
Ela reviu o celeiro onde dormira extenuada pelas farândolas e onde Valentim depois se introduzira. Ele pousara-lhe a mão no seio nascente. O gordo garoto, um pouco simples, fora o primeiro desejo a rondar a Marquesa dos Anjos. A importuna recordação deixou-a embaraçada.
— E depois - disse o moleiro em voz lenta, como se lhe acompanhasse o pensamento - fiquei doente. Meu pai me disse: "Isso o ensinará a acariciar as fadas". Ele me conduziu ao santuário de Nossa Senhora da Piedade para exorcismar-me.
— Por minha causa? - perguntou Angélica, impressionada.
- Tinha razão, não é mesmo? Você é uma fada.
Angélica não disse nem sim nem não. Ela se divertia, mas o tom de mestre Valentim conservava-se grave.
- Curei-me. Demorou, no entanto. Mais tarde casei-me. Arranjei criadas. E foi só. Não é fácil recuperar-se do mal das fadas.
O corpo não é tão atingido como o coração. Enlanguesce-se. E talvez a alma permaneça doente...
Ele se calou, e o ruído suave das algas que se afastavam encheu o silêncio, onde um sapo coaxou de súbito.
- Estamos chegando - disse o homem.
A barca tocou a margem. O cheiro dos bosques e da terra veio até eles. Mais atrás acostavam as outras barcas conduzidas pelos pequenos lacaios.
- Viria ao moinho para um copo de vinho, senhora marquesa?
- Não, obrigada, Valentim. O caminho ainda é longo.
Ele a acompanhou até a orla das árvores, o chapéu na mão.
- Ali, junto àquele velho carvalho, o pastor Nicolau a aguardava com morangos silvestres em uma folha.
Era surpreendente que o eco de uma voz pudesse fazer renascer seu coração de criança em seu corpo de mulher, que tantos destinos diferentes atravessara, e a imagem de um garotinho de cachos negros, olhos cintilantes, tendo numa das mãos o bordão e na outra os frutos perfumados, e',que a esperava à entrada de seus domínios: os prados e os bosques.
Ela afastou a visão que a vida" maculara:
- Sabe em que Nicolau se tornou?... Num bandido, enviado para as galeras do rei. Sabe como morreu? Numa revolta por ele conduzida. Um oficial fê-lo cair no mar.
E como o homem permanecesse em silêncio:
- Não se surpreende, mestre Valentim, que eu saiba tanto sobre Nicolau Merlot, há tantos anos desaparecido da região?
Ele balançou a cabeça:
- Não, palavra." Sojnente você pode conhecer o passado, assim como o futuro, não é verdade? Vamos, sabemos bem quem você é e de onde vem!...
CAPITULO XIII
"Vá ao rei", diz Molines - Angélica, vencida, escreve a Luís XIV
No Plessis, a voz de Montadour abalava as paredes. Angélica escutou-a da adega. "Terá notado minha ausência?", pensou, ímobilizando-se. Com cautela subiu até o vestíbulo.
- Abjure! Abjure!
Um ser dobrado em dois, os braços no rosto, emergiu do sa-. Ião desabando aos pés de Angélica, um camponês atordoado, a face tumefacta e ensanguentada.
- Senhora... - gemeu -, a senhora foi sempre boa para os reformados... Piedade!... Piedade!
Ela pousou-lhe a mão na cabeça grande e hirsuta, e ele se pôs a soluçar nas dobras de seu vestido como uma criança.
— Matá-los-ei a todos - disse Montadour surgindo na soleira. - Esmagá-los-ei como percevejos e exterminarei todos os católicos que lhes deram ajuda.
— Como podem tais coisas ocorrer sob o céu? - exclamou Angélica, indignada ao extremo. - Abjure! Abjure! Acreditar-se-ia estarmos em Miquenez. Você não vale mais que os mouros fanáticos que torturam os cristãos cativos na Barbaria.
O capitão deu de ombros. Era-lhe indiferente o destino dos cristãos cativos na Barbaria. Mal sabia de sua existência. Angélica murmurou em patoá ao homem prostrado:
- Pegue sua foice, camponês, e vá juntar-se aos bandos de La Morinière. Que todos os homens disponíveis o acompanhem.
Caminhe até a Encruzilhada dos Três Mochos. O duque lhes enviará ordens e armas, e dentro de dois dias, talvez menos, Montadour será expulso de suas terras... Estou a par dos preparativos.
- Se o diz, senhora marquesa - falou ele, reanimado, os olhos brilhantes de esperança.
E com sua astúcia camponesa tomando-a dianteira:
- Abjurarei, para ter paz e partir... Por dois dias apenas, e por seu serviço, o Senhor não pode levar isso em conta. Depois fá-
los-ei pagar por seu credo!...
Dois dias mais tarde, enquanto Montadour e seus homens partiam em patrulha, deixando apenas alguns soldados de guarda no castelo, viu-se um cavaleiro subir a aléia, curvado sobre o arção da sela. Era um-dragão ferido que tombou da. montaria no cascalho do jardim, mal tendo tempo de gritar aos camaradas: "Emboscada! Os bandos estão chegando!", antes de expirar.
Um rumor confuso brotou de sob os carvalhos e b Duque de La Morinière e seu irmão Lancelote surgiram de espada na mão, seguidos da tropa compacta de camponeses armados. Os soldados correram para os fundos em busca dos mosquetes. Enquanto corria, um deles atirou com a pistola, quase atingindo o duque. Os protestantes apanharam-nos e degolaram-nos selvagemente. Foram arrastados pelos pedregulhos até a esplanada da nobre residência do Poítou, que^haviam profanado, onde o Duque de La Morinière fez lançar os cadáveres aos pés de Angélica.
- Vá até o rei!
Molines segurava-a pelos punhos.
— Vá até o rei e faça sua submissão. Somente você pode deter essa carnificina.
— Deixe-me, mestre Molines - disse Angélica com suavidade.
Ela esfregou os punhos magoados. Tinha algo de insólito o silêncio novo que caíra sobre o castelo e o parque, onde não mais se ouvia o bufo dos cavalos nem se alteavam as vozes grosseiras dos dragões. Ele não trazia tranquilidade.
- Informaram-me que as tropas enviadas pelo ministro da Guerra, Louvois, dirigem-se para o Poitou. A repressão será terrível. Quando o Duque de La Morinière for aprisionado ou executado, tomarão como pretexto a sublevação esboçada para exterminar os protestantes... Quanto a você...
Angélica mantinha-se calada. Estava sentada diante da mesa marchetada, com uma percepção aguda do tempo que se escoava, hora após hora caindo pesada no claro dia de outono, cujo perfume de folhas mortas entrava pela janela, dia suspenso como que sobre um abismo, entre dois destinos, duas catástrofes irremediáveis.
- Os bandos do Sr. de La Morinière serão dizimados - retomou Molines. - É inútil pensar que o Poitou inteiro se levantará. Os católicos deixarão passar os exércitos porque sentirão medo e porque não gostam dos protestantes e lhes cobiçam os bens. E rever-se-ão, já se revêem, os horrores das guerras religiosas, as colheitas incendiadas, as crianças jogadas sobre as lanças... A província extenuada, aniquilada por longos anos, banida do reino... Aí tem você o que desejou, mulher orgulhosa e louca.
Ela lançou-lhe um olhar sombrio, enigmático, mas não disse palavra.
— Pois você o desejou - insistiu o intratável ancião. - Podia escolher, mas seguiu os desejos de sua natureza primitiva. Assimilou-se às forças de uma terra da qual sempre foi como que encarnação. E para você era fácil canalizar as aspirações dos La Morinière, esses brutos fanáticos, ou dos camponeses supersticiosos. Sua simples presença os põe em transe.
— E minha culpa se os homens não podem ver passar uma mulher sem se inflamar? Você está exagerando, Molines. Administrei estes domínios por muito tempo, e também aqui vivi, quando fiquei viúva do marechal, sem trazer nenhum transtorno à região.
— Você era então uma dama da corte... uma mulher como as outras... Não se dá conta do que hoje causa, do que um só de seus olhares provoca. Você trouxe do Oriente uma espécie de poder fascinante, de mistério, não sei... Mas ouço as histórias fantásticas que correm pelas cabanas, lembrando que você era outrora um duende, que a haviam visto aqui e acolá, em vários lugares a um tempo, que por onde passava as colheitas eram melhores, tudo isso porque arrastava às pilhagens camponesinhos preguiçosos que a seguiam em tudo, e porque agora, correndo pelos bosques à noite, você voltou para livrar o Poitou da miséria e dar-lhe prosperidade com seus poderes mágicos.
— Você fala como Valentim, o moleiro.
— E agora o moleiro - rangeu Molines -, esse avaro pobre de espírito... Outro ingénuo que arrastava aos dez anos a seus pequenos sabás na Pedra das Fadas! Temo que hoje os encantos não tenham perdido seu poder. Depois do moleiro, onde escolherá seus amantes, Sra. du Plessis?
- Molines, você está passando dos limites - disse Angélica, retesando-se com dignidade. -.
Mas em vez do acesso de raiva que ele «sperava, sua fisionomia suavizou-se, e um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
— Não, não tente despertar oçescrúpulos de minha consciência perversa evocando meu passado de garota desabusada. Eu era uma criança pura, Molines. E você o sabe muito bem. Vendeu-me virgem ao Conde de Peyrac e... disso você não duvidava, senão jamais teria feito o comércio. Oh! Molines, quisera jamais ter vivido! Reencontraras alegrias simples, o corpo em paz, o espírito deliciosamente leve. Mas não "se pode voltar à infância como se voltaao aprisco. É, aliás, o único lugar aonde jamais se pode voltar... Os buques de miosótis que Valentim colhia para mim, os morangos".silvestres de Nicolau, nossas danças à volta da Pedra das Fadas enquanto a lua se elevava entre as árvores, eram inocentes e de uma beleza sem par. Nada havia de mal em tudo isso. Mais tarde, porém, só consegui pôr os pés nesses vestígios para sujá-los de sangue, de morte e de desejos. Fui louca! Acreditava que minha terra me defenderia...
— A terra é fêmea. Eja serve aos que a protegem e a fecundam, e não aos que a entregam à desordem. Escute, minha filha...
— Não sou sua filha.
— Sim... um pouco... vá até o rei e a paz retornará.
— Você, um reformado, me pede que traia as pessoas de sua seita, a quem prometi apoio?
— Não se trata de trair, mas de salvá-los. Você está em seu domínio, mas já não pode contar os enforcados que balançam nos ramos de carvalho em toda a província. Mulheres choram de vergonha, violentadas por brutos sádicos. Crianças são abandonadas à crueldade deles e lançadas à fogueira. Em muitos locais as colheitas estão perdidas. A febre aumenta porque os soldados têm medo. Quando chegarem os socorros,.eles redobrarão as sevícias para vingar-se do medo. A perseguição será tão terrível como ignorada pelo resto do reino e pelo próprio rei. Será conduzida em surdina pelos hábeis companheiros do Santo Sacramento que o rei tem em seu séquito, e ele não verá desses vestígios sangrentos senão os nomes de convertidos em listas cada vez mais longas. Somente você pode salvá-los. Somente você pode falar ao rei, adverti-lo do que está sendo tramado contra seus súditos. A você ele escutará. Acreditará em você. Apenas em você.-Porque malgrado seus defeitos, sua indisciplina, você lhe inspirou uma desmesurada confiança. Também por isso ele a quer. Será todo-poderosa... Pode obter tudo dele... Ele se inclinou:
— Fará com que Montadour seja enforcado e com que o Sr. de Marillac perca o valimento. Libertará o rei da influência dos devotos intransigentes... e aos campos retornarão a calma, a justiça, o trabalho...
— Molines - gemeu ela -, você me constrange com uma terrível tentação! A pior...
Olhava-o como outrora, quando ele a convencera, para salvar a família, a desposar um gentil-homem desconhecido que diziam doente e diabólico.
- Você será todo-poderosa - repetiu ele. - Pense nos momentos que se seguirão à sua submissão. As palavras do rei... Você bem sabe que não serão cruéis.
"Bagatela, minha insuportável criança, minha inesquecível..."
A meia-luz de uma aurora em Versalhes, no fim de uma noite em que seus lábios se fechariam sobre gritos de revolta - e talvez os deixasse escapar, estridentes como os da criminosa sob o ferro em brasa que a marcará para sempre -, o rei inclinar-se-ia sobre ela.
Ainda estaria adormecida, o corpo saciado - ah! como conhecia essa frouxa e maravilhosa estagnação do ser, essa remissão infinita -, gozando, talvez, nas profundezas do sono, o luxo e o esplendor reencontrados. Semidesperta pelas carícias, ela se revolveria entre as rendas, inconscientemente lasciva e subitamente arregalando os olhos que refletiam a floresta. Ela o veria e cessaria de debater-se, e escutá-lo-ia por fim, depois de tantos anos de fuga, cativa... cativada... enquanto ele tornaria a dizer-lhe a meia voz, como uma ordem, como um chamado triunfante: "Angélica... você e eu juntos... somos invencíveis..."
Ela sacudiu a cabeça, desvairada.
- É horrível - gemeu. - É como se me pedísseis para morrer, para perder toda a esperança.
Parecia-lhe já ter vivido antes a cena com Molines, e ela reviu Osman Ferradji tentando convencê-la a entregar-se a Mulay Ismael. Mas ela não cedera a Mulay Ismael... E todos os judeus do mellah haviam sido massacrados", e os_escravos, empalados...
Assim, por toda parte havia senhores tirânicos e povos subjugados, maltratados por seus caprichos. Era a lei inelutável...
Fora, tombou uma chuva fina, que fez a floresta sussurrar, e ouviram-se de repente os gritos de Florimond e de Carlos Henrique, que fugiam sob o aguaceiro.
O intendente buscou na secretária uma folha de papel, uma pena e um tinteiro, colocando-os diante de Angélica.
— Escreva... Escreva ao rei. Partirei esta noite e levarei a carta.
— Que-lhe direi?:
— A verdade. Que vai até ele para proceder à sua submissão. Não por arrependimento pelo que fez, ou por remorso, mas porque à sua volta se torturam indevidamente seus súditos mais fiéis. Que você não pode acreditar que o façam por sua ordem. Que você somente irá a Versalhes quando retirarem os dragões do Sr. de Marillac da província e convocarem os do Ministro Louvois. Mas que farásua submissão, humildemente, nos termos desejados por Sua Majestade, porque reconhece sua justiça, bondade, paciência... '.
Ela se pôs a escrever febrilmente, logo absorvida pelo relatório contra os torturadores do Poitou. Contou todas as medidas vexatórias e cruéis que se tomaram contra eles, como um soldado ébrio torturara-os sob seu teto, nomeou Montadour, o Sr. de Marillac, o Sr. de Solignac e Louvois, deu informações precisas sobre a localização dos regimentos reais, falou na revolta crescente e inevitável dos camponeses, pediu piedade para eles, e, enquanto escrevia, tinha diante dos olhos a fisionomia do jovem rei, grave e atenta, no silêncio de seu gabinete de trabalho, à noite.
— Ele não pode tê-lo desejado - disse a Molines.
— Pode desejá-lo sem o saber. A conversão do Poitou lhe é importante para resgatar seus pecados. Ele tem os olhos e os ouvidos fechados. Forçá-lo-á a abri-los... Seu papel é bom.
Ela se sentiu esgotada mas calma ao concluir a missiva, que Molines secou e lacrou.
Angélica acompanhou-o até sua montaria. Ela já não sabia onde se encontrava. O silêncio dos campos tinha algo de suspeito. De quando em quando o vento trazia o cheiro de fumaça.
— Ainda colheitas queimando ou que acabam de queimar - disse Molines montando no cavalo. - Montadour e seus homens entrincheiraram-se nos arredores de Secondgny, incendiando tudo à sua passagem. Estão sendo contidos por Lancelote de La Mori-nière, mas se as tropas cederem... O patriarca deve ter voltado a Gâtine para fazer frente à chegada das tropas de Louvois.
— Você passará sem perigo, Molines?
— Trago comigo uma arma - disse ele, mostrando a coronha de uma pistola sob a capa.
Ele e o velho criado que o acompanhava montado numa mula se distanciaram.
Diante do castelo, Florimond empurrava pedregulhos, saltando em um pé. Vindo até Angélica, anunciou-lhe com a expressão animada de quem vai dar uma alegre notícia:
— Mãe, agora é preciso partir.
— Partir? Para onde?
— Longe, muito longe - disse o garoto apontando o horizonte -, para outra região. Não podemos permanecer aqui. Os soldados talvez voltem e não temos com que nos defender. Fui olhar os canhões no alto da muralha, são brinquedos e, ademais, estão enferrujados. E impossível fazê-los cuspir a mínima bala. Tentei recuperá-los, mas quase saltei junto com eles. Como vê, é preciso partir...
— Está louco. Onde buscou tais ideias?
— Olho à minha volta - disse o garoto dando de ombros. - Vejo a guerra, e creio que ainda mal começou.
— Estaria você com medo da guerra?
Ele enrubesceu, e ela leu em seus olhos negros uma expressão de espanto e desprezo.
- Não temo lutar, se é o que quer dizer, minha mãe, mas não sei contra quem é preciso lutar. Contra os protestantes que não querem converter-se em obediência ao rei? Ou contra os soldados do rei que vêm insultar-nos em nossa própria casa? Não sei.
Não é uma boa guerra. Por isso quero partir.
Ela o acreditava indiferente. Ele não lhe havia falado por tanto tempo desde que retornara.
— Não se preocupe, Florimond - disse. - Penso que as coisas arranjar-se-ão. Escute, acaso... - ela falava com dificuldade --- acaso agradar-lhe-ia retornar à corte?
— Por minha fé, não - disse o garoto espontaneamente. - Havia pessoas em demasia fazendo por se aproximar, querendo prejudicar-me porque o rei a amava. Agora querem prejudicar-me porque ele não mais a ama. Para mim, b*asta! Prefiro partir. E, ademais, aborreço-me nesta terra: Não gosto dela. Nada aqui me agrada. Não gosto senão de Carlps Henrique...
- E eu? - quase gritou ela, presa de sofrimento.
Eis que ele se vingava por ela o ter magoado há pouco e também, inconscientemente, por arrastá-lo a um.caminho sem saída.
"Deus sabe que lutei por meus filhos e que me sacrifiquei por eles. Ainda hoje, voltei a sacrificar-me,"
Sem dizer palavra, caminhou até a escada. O ato que acabara de realizar escrevendo a carta ao rei deixara-a com os nervos à flor da pele. Ficou sem coragem de abrandar-se para tranquilizar o filho. "É espantoso como os filhos nos escapam por entre os dedos", refletiu. "Pensa-se enfim conhecê-los, ter-lhes conquistado a amizade... E basta uma ausência..."
Antes da partida de Angélica para o Mediterrâneo, ele não teria reagido desse modo, não teria dela duvidado. Mas ele chegava à idade em que -se começa a se interrogar sobre o próprio destino. Se a experiência "no Islã marcara Angélica tão profundamente, por que o ano que Florimond passara junto aos jesuítas não podia também tê-lo transformado? A alma tem encruzilhadas... Não é possível fazê-la voltar para trás.
Ela ouviu Florimond correndo. Ele pousou a mão em seu braço e repetiu, insistente:
— Mãe, é preciso partir!
— Mas para onde quer ir, meu filho?
— Há muitos lugares para onde é possível ir. Combinei tudo sobre nossa partida com Natanael. Levarei Carlos Henrique.
— Natanael de Rambourg?
— Sim, é meu amigo. Estávamos sempre juntos quando eu morava no Plessis, antes de servir na corte."
— Você jamais me disse.
Ele ergueu as sobrancelhas com uma expressão ambígua. Havia muitas outras coisas que jamais lhe dissera.
— Se não quer vir, tanto pior! Mas levarei Carlos Henrique.
— Está dizendo disparates, Florimond. Carlos Henrique não pode abandonar este domínio, do qual é herdeiro. O castelo, o parque, os bosques, as terras pertencem-lhe e devem $er-lhe entregues na maioridade.
— E eu, que possuo?
Ela considerou-o, o coração oprimido. "Você não possui nada, meu filho, minha bela criança tão orgulhosa!..."
- Não possuo nada?
Sua expressão era interrogativa. Ele aguardava contra qualquer possibilidade. Cada segundo que sua mãe permanecia em silêncio deixava cair sobre ele o peso de um" veredicto de que já suspeitara.
— Terá o dinheiro de meus negócios...
— Mas onde estão meu nome, meus domínios, minha própria herança?
— Você bem o sabe... - começou ela.
Ele voltou-se bruscamente, o olhar distante.
- É justamente por isso que desejo partir.
Ela passou-lhe um braço à volta dos ombros, e eles entraram a passo lento no castelo. "Vou até o rei", pensou, "percorrerei a Grande Galeria, vestida de negro, sob os olhares trocistas e radiantes dos cortesãos, ajoelhar-me-ei... Entrgar-me-ei ao rei... Mas depois farei com que lhe devolvam seus títulos, sua herança... Pequei contra você, meu filho, querendo salvaguardar minha liberdade de mulher. Não havia saída..." Ela apertou-o contra si com mais força. Ele lançou-lhe um olhar perplexo, e pela primeira vez desde sua volta sorriram-se com ternura.
- Venha, vamos jogar uma partida de xadrez.
Era uma das paixões do garoto. Eles se instalaram junto à janela diante do grande tabuleiro de quadrados de mármore negro e branco que o rei Henrique II ofertara a um dos senhores do Plessis. As peças eram de marfim e de osso. Florimond as dispôs, os lábios comprimidos de atenção.
Pela janela, Angélica olhava a relva arruinada, as árvores exóticas que os dragões haviam abatido para fazer fogo, por vandalismo, pois o matagal ficava a dois passos dali.
Sua vida era semelhante a esse parque devastado. Ela não conseguira pôr ordem em sua existência. Paixões estranhas haviam-na assolado, e ela finalmente caía sob seu jugo. Ali, junto ao filho ainda frágil e sem nenhuma proteção, avaliou sua fraqueza Je mulher só, sem um senhor para defendê-la. No passado sentira-se capaz de fazer o que quer que fosse par triunfar. Hoje esse "que quer que fosse" deixava-lhe na boca um gosto de fel. Ela pesara as vaidades humanas. O Islã ensinara-lhe que só a realização do ser coloca-o em consonância com sua alma.
Ora, ela iria entregar-se ao rei.íLfm ato pior do que uma traição, para com ela, para com seu passado, para com o homem que não pudera esquecer...
- Se posso dar uma opinião, aconselhá-la-ia a jogar a rainha, minha mãe.
Angélica deu um sorriso pálido e jogou a rainha. Florimond meditou numa complicada manobra e* após ter jogado, ergueu os olhos.
— Bem sei que não é sua culpa - disse na voz suave que trouxera do colégio. - Não é fácil reencontrar-se, com tantos querendo prejudicá-la porque é bela. Mas creio ser necessário partir antes que seja tarde.
— Meu querido, como você mesmo disse, as coisas não são simples. Aonde queria que fôssemos? Acabo de fazer uma longa viagem, Florimond. Corri perigos terríveis e tive que voltar sem haver encontrado o que procurava...
— Mas eu o encontrarei - disse Florimond, veemente.
— Não seja pretensioso! É um defeito que custa caro, muito caro.
— Não a estou reconhecendo - disse ele, severo. - Seria você aquela a quem guiei no subterrâneo quando decidiu procurar meu pai?
Angélica irrompeu em risos.
— Oh! Florimond, amo sua força! No fundo você tem razão em repreender-me, mas veja...
— Se o soubesse, tê-la-ia acompanhado, em vez de me deixar encerrar naquele maldito colégio. Juntos, teríamos tido êxito.
— Pretensioso! - ela repetiu com ternura.
O Mediterrâneo cruel saltou-lhe aos olhos, os pequenos escravos vendidos, castrados, as tempestades, as batalhas, o perpétuo comércio de carne humana. Mercê de Deus, ela não levara Florimond na expedição. E quantas vezes não se repreendera pela inconsciência de ter confiado Cantor ao Duque de Vivonne para ir lutar contra os turcos...
— Você não se dá conta dos perigos e das dificuldades de tal viagem. É ainda muito jovem. É preciso comer todos os dias, encontrar um teto, cavalos descansados, sabe-se mais quê? E preciso dinheiro para pagar tudo isso.
— Tenho uma bolsa bem recheada com minhas economias.
— Deveras? E quando essa bolsa se esvaziar? Os homens são duros, Florimond. Não dão coisa alguma em troca de nada, lembre-se disso.
— Está bem - disse Florimond, visivelmente irritado -, compreendi. Não levarei Carlos Henrique porque ele, de fato, é demasiado jovem para enfrentar tantas dificuldades, e ademais tem sua herança. Não havia refletido nisso. Quanto a mim, quero encontrar meu pai e Cantor. Sei onde estão.
Angélica ficou espantada, uma peça do jogo na mão.
— Que está dizendo?
— Sim, eu o sei porque os vi em sonhos esta noite. Estão numa terra cheia de arcos-íris. E um lugar curioso. Por todo lado as nuvens se misturam, e ao se misturar fazem brotar todas as cores do prisma. E em meio a essa bruma colorida avistei meu pai. Eu o distinguia com dificuldade. Dir-se-ia um fantasma; não obstante, sabia que era ele. Quis ir ao encontro, mas a neblina fechava-se à minha volta. E de repente vi que eu estava com os pés na água. Era o mar. Nunca vi o mar, porém reconheci-o pelo movimento, pela espuma que voltava sem cessar, espirrando em meus pés. As vagas eram cada vez mais altas. Vi por fim uma onda enorme e, em sua crista, Cantor, rindo e gritando: "Venha, Florimond, se você soubesse como é divertido!"
Angélica ergueu-se e afastou a cadeira, sentindo um calafrio na espinha. Era como se as palavras de Florimond ilustrassem com uma certeza o que sempre rejeitava: a morte! A morte dos dois seres a quem amara, e que agora vagavam no país das sombras.
- Cala-se - murmurou -, faz-me ficar doente!
Ela refugiou-se no quarto, e sentou-se à secretária, a cabeça entre as mãos.
Pouco depois, a maçaneta girou suavemente e Florimond introduziu-se pela porta entreaberta.
- Eu refleti, minha mãe, e creio que devo embarcar naquele outro mar... Há outro mar além do Mediterrâneo. Aprendi-o com os jesuítas. E o oceano ocidental, a que chamam Atlântico, porque ele se estende sobre o antigo continente da Atlântida, que submergiu permitindo o encontro das águas do norte e do sul. Os árabes chamam-no de mar das Trevas, mas agora é sabido que ele conduz às índias Ocidentais. Talvez ali...
_ Florimond - disse ela, esgotada -, suplico-lhe, falaremos nisso mais tarde, mas agora deixe-me, senão... senão creio que serei obrigada a pregar-lhe um par de bofetadas.
O garoto partiu com um ar aborrecido, fechando a porta com brusquidão.
Por alguns instantes Angélica não soube o que fazer para evitar irromper em soluços; acabou por abrir uma gaveta, de onde tirou a carta do rei que não quisera- ler.
"... Minha inesquecível, não escute mais a loucura de seu coração. Volte para mim, Angélica. Na extrema aflição em que você se encontrava, enviou seu pedido de perdão através do Reverendo Padre de Valombreuse. Quisera ouvi-lo de seus lábios, para sentir-lhe a sinceridade. Você é tão temível, bela Angélica! Tantas forças inimigas das minhas dormem enrvocê. Virá pousar suas mãos nas minhas. Um rei só, eis o que sou, e que a aguarda. Todos os poderes ser-lhe-ão devolvidos, e não deixarei ninguém fazer-lhe sombra.-Nada terá a temer, pois sei que pode ser uma amiga franca, como também uma franca inimiga..."
Ele prosseguia no mesmo tom, e ela se mostrou sensível por ele não tentar lográ-la ou atraí-la sorrateiramente a uma armadilha. Ele dizia: "Será minha amante, e só por você hoje avalio o que essa palavra significa. Confio em sua lealdade, confie na minha... Fale-me, eu a escutarei. Obedeça-me, eu a obedecerei..."
Ela fechou os olhos, cansada e vencida. Agira bem ao ceder. Amanhã a injustiça seria combatida. Ela se aplicaria nisso com todas as forças...
Florimond vagava pela grande aléia, a funda na mão, tentando atingir os esquilos. Angélica penalizou-se dele e desceu para reconfortá-lo. Iria falar-lhe do rei, fazer brilhar diante de seus olhos os títulos que lhe devolveriam é"os cargos que obteria para ele.
Mas quando chegou aos jardins, Florimond havia desaparecido. Não avistou senão Carlos Henrique junto ao lago, contemplando os cisnes. Seu traje de cetim branco era tão resplendente como as plumas das belas aves, e a cabeleira, brilhante e loura como o salgueiro que se inclinava sobre sua cabeça.
Algo na atitude dos três cisnes, à espera diante da margem, inquietou Angélica. É sabido que esses animais são bastante cruéis e que podem arrastar uma criança à água e afogá-la. Ela se aproximou com presteza e tomou-o pela mão.
— Não fique tão perto da água, meu querido. Os cisnes são malvados.
— São malvados? - perguntou ele, erguendo para ela os olhos azuis. - Mas são tão belos, tão brancos...
A mão roliça na de Angélica era suave e confiante. Ele caminhava devagar ao seu lado e continuava a olhá-la. Ela sempre acreditara que ele se parecia com Filipe, mas era Gontran quem estava certo. Na carinha rosada erguida para ela, reconhecia algo que lhe lembrava Cantor, um momo, uma curva do queixo que marcara algumas crianças de Sancé: Josselino, Gontran, Dionísio, Ma-delon, João Maria...
"Mas você também é meu filho", pensou, "você também, querido garotinho."
Ela se sentou em um dos bancos de mármore e tomou-o nos joelhos. Enquanto lhe afagava os cabelos, perguntou-lhe se era bem-comportado, se brincara com Florimond e se já sabia montar num asno.
- Sim, minha mãe. Sim, minha mãe - respondeu ele com voz comovida e melodiosa.
Seria tolo? Não, sem dúvida. Seu olhar sombreado por cílios espessos tinha a expressão enigmática e não despojada de melancolia do pai. Não era como o fora Filipe: um pequeno senhor solitário na morada que devia herdar um dia? Ela apertou-o contra si. Pensou em Cantor, a quem tão pouco acarinhara, e que agora estava morto. A vida era passada nas intrigas violentas dos adultos, e ela já não tinha nem mesmo tempo para ser uma boa mãe! Outrora brincava com Florimond e Cantor, quando ainda eram pobres, na casinha de Franc-Bourgois. Mas desde então afastara amiúde Carlos Henrique, o que não fora bom, pois não podia negar o amor que Filipe lhe inspirara. Um amor distinto daquele que dedicara a seu primeiro esposo, mas assim mesmo amor, em que se haviam mesclado o desabrochar de um sonho adolescente, a embriaguez de uma conquista difícil e uma espécie de ligação fraternal nascida dos laços de infância e de sua província.
Ela pegou-lhe na face redonda com a mão em concha e beijou-o docemente repetidas vezes.
- Amo-o, meu filho, você sabe..-.
Ele permanecia imóvel como um pássaro cativo. Um sorriso maravilhado entreabria-lhe os lábios sobre os dentinhos brancos.
Florimond reapareceu entre as' árvores e aproximou-se saltando num pé.
— Sabe o que faremos amanhã, filho? - disse Angélica. - Vestiremos nossas mais velhas roupas de caçador e iremos, os três, ao bosque pescar caranguejos.
— Bravo! Bravíssimo! E viva la mamma! - gritou Florimond, a quem Flipot ensinava o italiano.
CAPITULO XIV
Dia feliz do outono
Foi um dia maravilhoso, em que pareceram abolir-se as amarguras do presente e as ameaças do futuro. A floresta fechou sobre eles a calma dourada de suas ramagens. O sol estava presente, refletido pelo ruivo dos carvalhos, o púrpura das faias, o cobre em feixe dos castanheiros. As castanhas caíam sobre o musgo, a casca exuberante mostrando o brilho perfeito e escuro do fruto. Carlos Henrique lançava exclamações diante de tal profusão e enchia os bolsos do calçãozinho rosa. Que diria Bárbara?... Malgrado as recomendações de Angélica, ela o vestira como para um passeio às Tulherias. De início, ele olhara preocupado o belo traje maculado de manchas esverdeadas. Vendo depois que Angélica não se importava, animou-se a tentar escalar as cepas das árvores: um paraíso abria-se diante dele, e pelas mãos de sua mãe! Ele sempre soubera que nela residia a felicidade total, e era por isso que contemplava tão longamente à noite o seu retrato.
Flipot e o Abade de Lesdiguière haviam-nos acompanhado. Angélica experimentava certo orgulho em sentir-se observada por Florimond e pelos moços, e em adivinhar-lhes a admiração mais e mais respeitosa à medida que os guiava pelos atalhos quase invisíveis e lhes revelava os segredos dos arroios. Para eles, que a haviam conhecido na corte, aquele era um aspecto tão inusitado de sua personalidade, que não sabiam o que pensar. Logo entraram no jogo, tomados pela paixão da pesca, e patinharam na água com entusiasmo, para espreitar, estendidos sobre o musgo, a lenta aproximação dos caranguejos na direção dos cestos imersos com iscas. Florimond estava um pouco envergonhado por não conseguir apanhá-los com a mão como o fez Angélica várias vezes. Ela riu de sua expressão de derrota, e seu coração inchou-se de alegria à ideia de que recuperava a estima de Florimond.
Ao atravessar, uma clareira, encontraram a feiticeira Melusina. A velha colhia cogumelos, escavando "o chão com os dedos curvos. As folhas de uma faia avermelhada desciam lentamente à sua volta, conduzidas pelo vento numa dança quase ritual, honrando o espírito maléfico da floresta encarnado nessa forma negra e corcunda aureolada de cabelos brancos, mais resplandecentes que a neve.
Angélica chamou-a:
- Ei! Melusina!
A velha ergueu-se para vê-los caminhar em sua direção, mas, em vez de se sentir cativada pela presença daquela em quem reconhecia poderes-próximos dos seus, uma expressão de horror varreu-lhe os traços e ela estendeu o magro braço à frente para detê-los.
- Vá embora! Vá;emborã! Você é uma mãe maldita!
Depois lançou-se etn fuga pelas moitas. Nesse meio tempo, começou a chovei' e o pequeno grupo foi refugiar-se sob a laje pro-tetora da Pedra das Fadas. No interior do túmulo megalítico, o chão forrado de folhas de pinho permitia que se sentassem em seco. No bloco que sustentava a extremidade pontiaguda da laje viam-se esculpidas"por uma tesoura secular espigas de trigo, símbolo de abundância.
Florimond ria na penumbra perfumada de resina e de urzes, dizendo que aquilo lhe recordava suas expedições nos subterrâneos, mas que geralmente o cheiro não era tão bom.
- Gosto dos subterrâneos - disse ele. - De conhecer o mistério da terra. De todas as rochas que se formam e se ordenam longe de nossos olhos. Certa vez, no colégio, fui até as adegas e cavei uma passagem com picareta. A rocha era aparente. Encontrei amostras excepcionais...
Ele se lançou em uma história extravagante, entremeada de nomes latinos e de fórmulas químicas sobre as amostras, com as quais quis experimentar misturas explosivas.
- Fiz explodir não sei quantas retortas no laboratório do colégio, e fui punido por isso. E no entanto, minha mãe, afirmo-lhe que estava à beira de uma invenção extraordinária que teria abalado a ciência. Eu a explicarei a você. Creio que só você pode compreendê-la...
— E dizer que os jesuítas estão convencidos de que ele não é inteligente - disse Angélica, tomando o Abade de Lesdiguière como testemunha. - E de se perguntar a que qualidades devem sua reputação de educadores.
— Florimond não é uma inteligência clássica, aí está o que os desconcerta.
— Se não são capazes de desenvolvê-la, seria motivo para sufocá-la? Enviá-lo-ei para estudar na Itália - disse ela a Florimond. - Na orla do Mediterrâneo, é possível atualizar-se em todas as ciências. As dos árabes, principalmente, corresponderão ao que procura. A palavra "alquimia" é árabe. E você descobrirá muitas coisas nos segredos vindos da China.
E pela primeira vez falou-lhe de sua viagem às ilhas do Levante.
Carlos Henrique descansava junto dela, no auge da felicidade. A chuva que tamborilava nas folhagens, o vento das borrascas, faziam nascer à volta um rumor marinho.
Em seguida, Angélica falou em sua desobediência ao rei.
- Sua Majestade proibira-me de deixar Paris, e você sabe como escapei. Agora tudo voltará à ordem. O rei me perdoa. Pede-me que volte à corte. Enviei Molines com uma mensagem de minha parte. Dentro em breve os soldados que nos insultaram e atormentaram serão castigados, e a calma será restabelecida.
Florimond escutou-a com atenção.
— Você não está mais em perigo? Nem Carlos Henrique?
— Não, asseguro-lhe - disse ela, tentando sacudir a tristeza que a contragosto lhe oprimia o coração.
Mas oferecia aos filhos a segurança a que tinham direito.
— Estou muito contente - disse ele com um suspiro de alívio.
— Você não quer mais partir?
— Não, não, pois você está dizendo que tudo se arranjará. Eles retornaram bem tarde. Bárbara já estava preocupada. Não
era bom passear na floresta naquela estação: podia-se topar com um lobo. Isso a deixava mortificada! E em que estado se encontrava a roupa de Carlos Henrique! O pobrezinho não se aguentava em pé. Não estava habituado a deitar-se a tal hora.
- Vamos, acalme-se - disse Angélica. - Seu querubim empanturrou-se de amoras e divertiu-se como um príncipe. Ele ainda tem tempo para dormir. A noite não acabou... Não. Ainda não acabara a horrível noite do Plessis.
CAPITULO XV
A horrível noite do Plessís
Quando ia despir-se, Angélica pensou ouvir o galope de um cavalo solitário-próximo ao castelo. Ela interrompeu os movimentos e aplicou o ouvido. Depois, amarrando o atilho do cor-pete, foi até o patamar, abriu uma das janelas e inclinou-se para fora. O galope se fez sonoro, cada vez mais rápido, e a silhueta indistinta de um cavaleiro mergulhou na escuridão da grande aléia, após contornar o lago.
"Quem será?...", pensou.
Fechou a janela, refletju um instante e dirigiu-se à escada para ir até as cozinhas, onde talvez velassem alguns criados.
Depois, mudando de ideia, tornou a subir os poucos degraus e foi até a porta do quarto de Florimond, entreabrindo-a suavemente:
- Você está dormindo?
Há pouco, antes de deixá-la, ele lhe desejara boa-noite e a apertara contra si, os olhos brilhando.
- Mamãe, oh, mamãe! Que belo dia! Como a amo!
Com o mesmo gesto encantador de abandono de outrora, ele pousara-lhe no ombro a farta grenha, entremeada de raminhos e de perfumes outonais, e ela beijara-lhe, rindo, a face marcada por um arranhão.
- Durma bem, meu filho. Você verá, tudo se arranjará.
Ela entrou, dirigindo-se ao leito. Não estava desfeito. Sobre o travesseiro de rendas, nenhum perfil de garotinho adormecido, vencido pela fadiga de um dia na floresta. Angélica olhou em torno, notando a ausência das roupas, da espada, da capa, e precipitou-se ao quarto vizinho, onde dormia o Abade de Lesdiguière.
- Onde está Florimond?
O jovem fixou-a aturdido, mal desperto.
— Mas... em seu quarto!...
— Não, não está lá. Rápido, levante-se, é preciso procurá-lo!
Despertaram Lin Poiroux e a mulher, que roncavam no reduto contíguo às cozinhas. Nada tinham visto ou ouvido, e já não passava, aliás, da meia-noite?
Angélica jogou um manto nos ombros, e acompanhada pelos serviçais, que rapidamente se haviam vestido, correu para as cavalariças. Um criadinho hirsuto cantarolava junto a uma lanterna, mordiscando pralinas. Tinha diante de si um saco cheio delas sobre um escabelo.
— Quem lhe deu isso? - gritou Angélica, adivinhando tudo.
— Messire Florimond.
— Acabou de ajudá-lo a selar o cavalo? Ele partiu?
— Sim, senhora.
— Imbecil! - gritou, esbofeteando-o. - Rápido, senhor abade, pegue seu cavalo e vá apanhá-lo.
O abade estava sem as botas e a capa. Correu até o castelo, enquanto Angélica atenazava o criadinho para que selasse outra montaria.
Enquanto ele se apressava, ela saiu e lançou-se para a grande aléia, procurando distinguir o galope distante. Mas o vento movia as folhas secas, e ela não ouvia nenhum outro ruído. Chamou:
- Florimond! Florimond!
Seu apelo extinguiu-se na noite úmida. Os bosques permaneceram surdos.
- Vá rápido - suplicou, assim que o abade voltou. - Quando tiver saído do parque, se quiser saber a direção que ele tomou, cole a orelha ao chão.
Ela permaneceu sozinha, indecisa, perguntando-se se não iria por sua vez selar um cavalo para procurar Florimond em outra direção.
Nesse momento, o som da trompa de Isaac de Rambourg elevou-se, amplo e triste. Os motivos do chamado se desenharam, notas de cobre vogando pela noite como bolhas de ar buscando passagem na água escura. O halali!
Ele se repetiu, cortante, voltou a repetir-se, repetir-se! O eco não tinha tempo de morrer. A floresta enchia-se de trágicas ressonâncias.
Angélica sentiu-se gelar. Pensou em Ftórimond, que talvez tivesse ido lá ao alto, ao encontro do amigo Natanael. Um cavaleiro que não ouvira aproximar-se surgiu no círculo de claridade formado por uma grande lanterna de ferro forjado diante do pórtico.
O abade ofegava:
— Os dragões estão chegando.
— Encontrou Florimond?
— Não, mas os soldados barraram-me o caminho e tive que retroceder. São muito numerosos, em formação cerrada. Mon-tadour os comanda." Estão subindo na direção do Castelo de Rambourg.
O halali continuava, desesperado, ensurdecedor, como se o homem que soprava a trompa estourasse as veias.
Angélica compreendeu o que estava ocorrendo. Os dragões do rei, cercados, deviam ter rompido as frágeis barreiras das tropas protestantes. Refluíam para a região que conheciam melhor, mas exasperavam-se, sabendo que se chocariam com a floresta ou o pântano.
- E preciso ir até lá - disse ela. - Os Rambourg precisam de ajuda.
Ainda pensava em Florimond, que com suas ideias tresloucadas enfiara-se naquele vespeiro.
Acompanhada pelo jovem eclesiástico, ela escalou a colina que dava acesso à residência dos protestantes. Luzes começavam a surgir por entre as árvores, bem como rumores confusos. Na metade do caminho, toparam com um grupo que se lamentava. Eram a sra. Rambourg, os filhos e as criadas.
— Sra. du Plessis, estamos correndo a refugiar-nos em sua casa. Os dragões chegaram com archotesrParecem ébrios, descontrolados. Puseram fogo nas áreas de serviço e creio que querem saquear-nos.
— Florimond não está com Natanael?
— Florimond? Como posso saber? Não sei onde está Natanael.
Ela gemeu, voltando-se para os filhos:
— Onde está Natanael? Onde está Rebeca? Pensei que lhe dava a mão, José...
— Estou dando a mão a Sara.
— Então a pobrezinha ficou lá em cima. É preciso voltar. E seu pai?...
A pobre mulher cambaleava, as mãos no ventre. Estava a alguns dias de dar à luz.
- Vá até minha casa - decidiu Angélica. - O senhor abade irá guiá-los. Irei até lá em cima ver o que acontece.
Ela chegou ao cimo do promontório, atrás do velho torreão, e imobilizou-se, escondida pela muralha. Às vociferações dos dragões, que haviam invadido o solar, respondiam os gritos terríveis de homens torturados e aqueles, mais agudos, das mulheres subjugadas pelos brutos. A trompa silenciara.
Angélica avançou com precaução ao longo da ala esquerda, conservando-se na sombra. Subitamente chocou-se com uma forma estendida e que parecia curiosamente paralisada pelo abraço de uma serpente de ouro. Era o Barão de Rambourg com sua trompa de caça atravessada nos ombros. Ao inclinar-se sobre ele, viu que um chuço o varava de lado a lado como uma caça atingida, massacrada pelos picadores.
Homens correram não longe dali. Angélica precipitou-se sob a cobertura das árvores. Dragões surgiam dançando como demónios vermelhos o bale da pilhagem, que recompensa e embriaga os exércitos desde que o homem se fez guerreiro.
Um grito rouco, promessa de gozo, saía-lhes das goelas, enquanto colocavam as longas alabardas contra a parede.
- Sobre as lanças! Sobre as lanças!
De uma janela mais alta, um pequeno objeto projetado com violência, uma boneca, rodou no vazio! Rebeca!...
Angélica cobriu o rosto com mãos.
Alucinada de pavor, deslizou pelo matagal e voltou ao Plessis.
Os serviçais reunidos no jardim olhavam na direção do torreão vizinho, empenachado de chamas.
- Encontrou Rebeca? - perguntou a Sra. de Rambourg. - E o barão?
Angélica esforçou-se por manter seus traços impassíveis.
— Eles estão... refugiados na floresta. Faremos o mesmo. Rápido, rapazes, apanhem mantos e víveres. Onde está Bárbara? Vão acordá-la! Que vista Carlos Henrique.
— Senhora - disse La Violette -, olhe para lá.
Ele lhe mostrava múltiplos pontos luminosos descendo até eles pelas árvores: os archotes dos dragões. „
— Vêm para cá... por Rambourg.
- Ei-los que chegam - gritou um criadinho.
No fundo da grande aléia carroçável, outros archotes floresciam em buques. Os dragões subiam até o castelo sem se apressar. Ouviam-se-lhes apenas as vozes, ainda distantes, apostro-fando-se.
- Entremos -na casa e fechemos todas as saídas - decidiu Angélica -, todas, vejam bem! - Eia verificou pessoalmente as trancas-da porta principal, os ferrolhos, as grandes folhas de madeira que fechavam as janelas do rés-do-chão. Muitas eram guarnecidas de grades. Só nãofinham proteção as duas janelas da fachada que ladeavam a porta de entrada.
- Peguem todas as suas armas e coloquem-se junto às janelas.
O Abade de Lesdiguière desembainhou calmamente a espada. Malbrant voltou com os braços carregados de mosquetes e de pistolas.
— De onde tirou tudo isso?
— Fiz uma- pequena provisão, diante das agitações na região.
— Obrigada, Malbrant, obrigada!
O escudeiro começou a distribuir mosquetes aos rapazes. Deu também pistolas às criadas, que apanhavam temerosas as pesadas coronhas.
- Se não se saírem bem com a pólvora, sempre poderão pegar a arma pelo cano e bater-lhes nos crânios, minhas pequenas.
A Sra. de Rambourg, que se refugiara no salão com os filhos em torno, acompanhava Angélica com o olhar, uma angústia no fundo dos olhos cavos.
— Que aconteceu à minha pequena Rebeca? E meu marido? Sabe de algo, não é mesmo, senhora. „ .;
— Senhora, peço-lhe, fique calma! Quer que ajude a deitar as crianças para que repousem? Não devemos assustá-las.
A Baronesa de Rambourg deixou-se cair de joelhos, as mãos juntas.
— Oh! meus filhos, rezemos. Agora sei. É chegado o dia de aflição do qual disse o Senhor: "Abandonarei os meus para pôr-lhes o coração à prova, entregá-los-ei aos maus".
— Senhora! Os dragões!...
Por uma janela entreaberta, os criados olhavam para fora, inquietos. No terrapleno avermelhado pelo clarão dos archotes, via-se Montadour esmagando com o traseiro seu pesado cavalo malhado. O capitão pareceu a Angélica ainda mais gordo e mais maciço do que dele tinha lembrança. A barba ruiva de oito dias acentuava-lhe o grosseiro da face. Parecia modelado em argila vermelha, em barro para tijolos malcozido.
Atrás dele alguns cavaleiros e a infantaria parados, uns com mosquetes, outros com alabardas, pareciam interrogar-se sobre a conduta a seguir.
Moradia fechada! Mas por trás dos vidros coloridos emoldurados em chumbo adivinhavam-se sombras à espreita.
- Abram, os de dentro! - bradou Montadour -, ou faço arrombar a porta.
Ninguém se moveu. Dragões vindos dos bosques pela colina de Rambourg juntavam-se aos primeiros. Estavam exaltados com a recordação de que haviam sido expulsos do local e de que menos de uma semana antes La Moriniere lançara naquela soleira os cadáveres de quatro de seus camaradas.
A um gesto do capitão, dois soldados avançaram, munidos de enormes machados. A casa foi abalada pelos primeiros golpes secos na madeira esculpida da porta. Uma das crianças Rambourg pôs-se a chorar, interrompendo-se em seguida, e um murmúrio de prece, que a mãe os fazia entoar, se elevou.
- Malbrant! - sussurrou Angélica.
O escudeiro ergueu lentamente a arma e deslizou o cano pela abertura da janela. O tiro partiu. Um dos soldados com machado rolou pela escadar"a. Um segundo tiro! O outro militar caiu por sua vez.
Os dragões lançaram um grito de ódio. Três homens precipitaram-se com mosquetes, a coronha erguida, e puseram-se a martelar a porta.
Malbrant recarregava a arma. Da outra janela, La Violette atirou uma, duas vezes. Dois homens caíram. Malbrant encarregou-se do terceiro.
- Para trás, imbecis! - urrou Montadour -, querem cair todos, um a um?
Os soldados recuaram como lobos esfomeados. A conveniente distância, Montadour alinhou os homens com mosquetes. Soou uma salva. As vidraças estilhaçaram-se, espalhando-se sobre o lajedo em fragmentos multicoloridos'. La Vjolette, que não se abaixara a tempo, tombou. O Abade de Lesdiguière apanhou a arma que caíra das mãos do criado eíretornou seu lugar junto à janela destruída. Pelas grades de chumbo retorcidas podiam-se ver as faces contraídas dos dragões aproximando-se. Mas aos oficiais era preciso conferenciar em busca de outra tática menos perigosa que a de arrombar a porta, tática que já lhes custara cinco homens.
Angélica arrastou-se- de joelhos até La Violette e puxou-o pelos ombros para um ângulo do vestíbulo. Ele estava ferido no peito, e na libré corh-as cores azul e junquilho dos Plessis-Bellière, o sangue punha unia larga mancha vermelha.
A jovem lançou-se às cozinhas, à procura de aguardente e de bandagens. Foi surpreendida pelo quadro de Dame Aurélia, a mulher do cozinheiro, junto ao fogão, vigiando atentamente o conteúdo de um caldeirão.
— Que faz aqui? Cozinha a sopa?
— Fervo óleo para jogar-lhes nas cabeças, como nos velhos tempos, senhor marquesa!
Era uma pena! o Castelo do Plessis não fora construído para resistir a um ataque como seus antepassados da Idade Média. Súbito, Dame Aurélia aplicou o ouvido:
- Estão atrás das janelas! Ouço-os bater, malditos!
Os soldados haviam, com efeito, contornado a casa e se voltavam para os pesados painéis de madeira das cozinhas. Pouco depois ressoaram os primeiros golpes de machado. Um dos criados alçou-se à pia, para ver se seria possível atingi-los pela bandeira da porta. Mas era difícil.
— Subam ao primeiro andar e atirem pelas janelas - recomendou Angélica aos três garotos com as pistolas.
— Tenho apenas minha besta - disse o velho António -, mas creia, senhora marquesa, ela é rija no trabalho. Vou transformar esses bandidos em almofadas de alfinetes.
Angélica voltou com um pano até La Violette. Pelo vestíbulo, cortinas de densa fumaça faziam os olhos arder. Ao ajoelhar-se, ela percebeu de imediato que seus esforços seriam inúteis. O criado estava morrendo.
— Se... senhora marquesa - balbuciou La Violette, a voz embargada de sangue -, queria dizer-lhe... A mais bela recordação de minha vida é a de tê-la tido em meus braços.
— Que está dizendo, pobre rapaz?... - "Ele delira", pensou.
— Sim, sim. Quando o marechal me enviou para raptá-la. Foi preciso tocá-la com meus braços, foi mesmo preciso apertar-lhe um pouco o pescoço... Depois a carreguei; e a contemplava... por isso é a mais bela recordação de minha vida, porque mulher... tão bela... como a senhora...
Sua voz diminuiu, e ele concluiu num sopro que conferia a suas palavras o valor de um segredo:
- ...não existe.
Ele ainda respirava imperceptivelmente. Ela tomou-lhe a mão.
- Perdôo-lhe pelo que fez naquela noite. Quer que chame o Abade de Lesdiguière para que lhe dê a bênção?
O homem sobressaltou-se numa última defesa:
- Não, não, quero morrer na minha religião.
- É verdade, esquecia-me, ele é protestante.
Ela acariciou-lhe a fronte rugosa.
- Pobre homem! Pobre humanidade atormentada. Bem! Agora vá... que Deus o receba.
La Violette estava morto. Havia uma criadinha ferida gemendo a um canto. O rosto de Malbrant Golpe de Espada estava negro de pólvora. Os criadinhos transportavam munições entre os dois andarei.
"E preciso fazer alguma coisa. Deter tudo isso", pensou Angélica.
- Capitão Montadour!
Sua voz clara vibrou na noite saturada de acre fumaça.
O capitão dos dragões recuou o cavalo para vê-la melhor. Reconheceu-a com um misto de temor e triunfo. Ela estava lá! Caíra na armadilha! Ele se vingava.
— Capitão, com que direito ousa assediar uma residência católica? Apelarei ao rei.
— Sua residência católica é um ninho de huguenotes. Entregue-nos a loba herética e sua ninhada, e deixá-la-emos em paz, à senhora e a seus filhos.
__ Que necessidade tem de ocupar-se com mulheres e crianças? Faria melhor em perseguir os bandos de La Morinière.
— Seu cúmplice! - berrou Montadour. - Pensa que não vi as coisas com clareza? A senhora nos-traiu, consagrou-se ao Diabo feiticeira! E enquanto eu combatia por sua religião, corria os bosques para vender-nos àqueles bandidos. Fiz com que um de seus admiradores falasse...
— Apelarei ao rei - gritou Angélica tão alto quanto ele -, e também o sr. de Marillac será prevenido sobre seu comportamento. Nas intrigas entre altas personagens, os servidores zelosos são sempre os primeiros a ser punidos... lembre-se disso!
Montadour hesitou um segundo. Havia verdade no que ela dizia. Já se debatendo em emboscadas, cortado de quaisquer ordens, com homens desencorajados e intratáveis, ele podia duvidar de que seria cumprime-ntado pela reviravolta na operação de conversão do Poitou. Mas seus soldados precisavam de mortes e de saques para recobrar confiança. E ele jamais reencontraria a oportunidade de possuí-la, essa mulher cuja visão atormentara-o por meses e que o tratara como um vulgar totó, a ele, Montadour! Depois veriam! Mas primeiro possuí-la, fazê-la gritar, humilhá-la!
- Enfurnem esse covil - estrondeou com um gesto largo.
E, erguido nos arreios", dirigiu a Angélica uma gargalhada veemente e grosseira, na qual ela percebeu seu ódio e seu desejo.
Ela recuou. Nada obteria parlamentando. Um odor de fumo, diferente do da pólvora, começou a brotar. Dame Aurélia gritou embaixo com sua voz aguda:
- Puseram fogo nos painéis...
A face maldesperta de Bárbara surgiu pela abertura de uma porta:
— Que algazarra é essa, senhora? Vão acordar meu pequeno!
— Os dragões querem pregar-nos uma partida. Rápido, apanhe Carlos Henrique, enrole-o numa coberta e desça com ele até a adega. Verá se o caminho está livre...
O subterrâneo! Era a última oportunidade. Fariam passar as crianças, as mulheres, e seria preciso pedir a Deus para que todos os dragões tivessem deixado o bosque onde desembocariam!
Ela voou até a adega, mas já quando deslizava entre os barris a horrível certeza se lhe impôs ao ouvir os golpes surdos e os ruídos de vozes para o lado da porta do subterrâneo. Haviam encontrado a saída, sem dúvida indicada pelo homem a quem haviam torturado.
Angélica, a lamparina na mão, ficou aparvalhada a contemplar o painel de madeira semi-apodrecido que já cedia sob os golpes como sob o avanço de uma tropa monstruosa.
Ela subiu e passou os ferrolhos na porta.
- Fique aqui - disse a Lin Poiroux, a quem avistou com o espeto - e fure todas as bestas fétidas que saírem desse buraco.
- Fogo! Fogo! - gritou, recuando, Dame Aurélia.
Feixes haviam sido amontoados contra a parede, os pesados painéis de madeira das janelas estalavam e a fumaça infiltrava-se por todas as saídas. Os garotos desceram ao primeiro andar. Não mais podiam ver os assaltantes, nem tinham mais munições.
Olhavam para Angélica, e em seus olhos nascia, pouco a pouco, o medo.
— Senhora! Senhora! Que devemos fazer?
— Ê preciso buscar socorro - disse alguém.
— Que socorro? - gritou ela.
Um canto elevou-se, pungente de tristeza:
- "Acolhe-nos em seu paraíso, Senhor Nós o servimos todo este longo dia..."
Eram seus criados huguenotes que cantavam, e as crianças Rambourg, comprimidas contra a mãe, enquanto curiosamente o temor que lhes convulsionava as pobres carinhas se apagava, dando lugar a uma serena esperança.
Os cabelos de Angélica se eriçaram.
- Não, não, não... - repetiu.
Mais uma vez subiu como louca até o alto, até a torrinha. Desembocou na estreita esplanada e voltou o olhar de um lado e de outro, vendo apenas a noite densa, impregnada do mesmo horrível odor de fogueira.
- Que socorro? Que socorro? - gritou novamente.
Nem mesmo sabia onde se encontravam as tropas de La Morinière.
No interior do castelo houve uma espécie de explosão.
Ela acreditou que uma parede desmoronava, mas era o urro demente de todas as bocas dos infelizes sitiados, ao surgir dos primeiros dragões.
Angélica desceu, inclinando-se sobre a rampa. O rés-do-chão era palco de horrível desordem. Gritos e mais gritos... dos criados que se batiam desesperadamente, das mulheres perseguidas, das crianças arrancadas umas às outras por mãos brutais... Bramidos dos soldados a quem Dame Aurélia aspergia à queima-roupa com seu óleo fervente. Súplicas da Baronesa de Rambourg, de joelhos no meio do salão, as mãos juntas estendidas.
Malbrant Golpe de Espada apanhara pelos pés uma cadeira de pesado espaldar e desancava todos os que se aproximavam. Gritos de violações, gritos de dor, gritos de agonia... e gritos do encarne: "Sobre as lanças!" Angélica viu um dos dragões subir os degraus com um dos garotinhos Rambourg ao braço. Ela se precipitou, chocando-se com um mosquete abandonado. A carga de pólvora estava ao lado junto com o isqueiro. Em estado de hipnose, apanhou a arma'£ preparou-a. Não sabia como se carregava um mosquete. No entanto, quando ergueu o pesado engenho e pressionou o gatilho, o soldado a quem mirava girou como marionete e tombou para trás com um buraco negro no lugar do rosto.
Ela se apoiou à balaustrada e continuou a atirar nos casacos vermelhos que tentavam subir, até o instante em que braços se abateram por detrás dela e a paralisaram.
Seus olhos registraram ainda três imagens. Viu Bárbara correndo, com Carlos Henrique apertado contra o peito. Viu o rosto inundado de lágrimas de Bertille, sua criada, nas mãos de três soldados com roupas odiosamente desabotoadas. Viu as janelas abertas para a noite, pelas quais corpos eram precipitados. Depois a consciência do que a rodeava desapareceu, dominada pelo sentimento primitivo de sua própria sorte. Jamais conhecera semelhante pavor animal, nem mesmo quando fora atada à coluna para ser torturada. A época, seu espírito dominava os seres, a vida, a morte. „ .
Nessa noite, ela não era senão um anelo desesperado, cego, para escapar ao que iria acontecer. E quanto mais se debatia, mais o pânico aumentava diante de sua impotência. Lembrava-se de quando os gentis-homens da Taberna da Máscara Vermelha haviam-na jogado sobre a mesa para violá-la. O cão Sorbonne viera em seu socorro.
Nessa noite não viria ninguém! Os demónios vingar-se-iam da mulher invencível, que demasiado amiúde lhes desmanchara as armadilhas. Saíam de todo lado com suas máscaras de chifres, librés vermelhas do inferno e mãos peludas. Nessa noite eles a destruiriam, a ela e ao filtro mágico que a preservava de macular-se. Com demasiada frequência transpusera as chamas do pecado sem se deixar consumir. Fariam dela uma criatura maculada como as outras. Nunca mais os desafiaria através da irradiação de seu encanto apaixonado.
Hálitos fétidos sobre sua boca altiva, focinhos odiosos contra seus lábios, cuja violação nauseante lhe sufocava os gritos, dedos como lesmas em sua pele, enquanto o tecido do vestido se rasgava.
Seu corpo estava escanchado, os tornozelos mantidos junto ao chão por punhos rijos como braceletes de ferro. A carne estava-lhes abandonada. Gritos obscenos explodiam em sua cabeça enquanto ela sufocava como uma afogada no fundo de uma água negra, sob a pressão de posses brutais.
Atentado pior que uma punhalada assassina. O corpo fugia-lhe para tornar-lhe objeto de vergonha. Dores insuportáveis invadiram-lhe todo o ser, submergindo-a numa lancinante e sombria tortura, até o instante misericordioso em que mergulhou na inconsciência.
CAPITULO XVI
Angélica carrega nos braços o filho degolado - Sua vingança
Angélica soergueu-ser Guardava na face o frio do lajedo onde estava deitada. A bruma da aurora mesclava-se aos bafios de fumaça, submergindo a decoração em torno. Aturdida, ela olhou para as mãos esfoladas e queimadas. Nem mesmo se dera conta de que isso ocorrera quando armara o mosquete. A memória lhe voltou. Quis lévantar-se e gemeu. Permaneceu de joelhos, apoiando-se nas "mãos, ofegante de dor. Os cabelos caíram-lhe no rosto pisado, e sua postura lembrava curiosamente sua queda nos caminhos pedregosos do Rif, quando as forças a abandonavam.
Ah! pensava ter escapado aos demónios, mulher invencível e demasiado bela! Mas os demónios alcançaram-na onde mais acreditava estar em segurança, na terra de sua infância, entre os seus. Ali a aguardava o pior. Só que você não mais se erguerá! Ainda não sabe de tudo. Ainda não conhece por inteiro a ferida incurável que essa noite lhe deixou, Angélica, orgulhosa Angélica. Podem rejubilar-se os corações mesquinhos!...
A mulher que se esforça para se levantar no dia desmaiado, e que se apoia à parede, lançando um olhar perdido à sua volta, jamais será a mesma que lutava, que esperava, que renascia sem cessar a cada nova empreitada, a cada novo amor, com o vigor insolente de uma bela planta que desabrocha com um mínimo de sol.
Sua mão tateava, buscando maquinalmente trazer sobre o corpo as roupas rasgadas. Uma queixa muda lhe veio com a recordação do que ocorrera. Odores e apalpadelas perseguiam-na. Seu corpo causava-lhe horror.
A sua volta havia formas estendidas. Entre elas dragões em seus uniformes vermelhos. Ela não viu que estavam mortos. O temor de que um deles despertasse fê-la precipitar-se para a escada. Começou a descer, os membros endurecidos. Viu Bárbara caída, atravessada nos degraus, o garoto nos braços.
Carlos Henrique dormia nos braços de Bárbara, morta. Uma louca alegria fez Angélica tremer. Ela se debruçou sobre ele sem crer em seus olhos. Ele dormia como somente uma criança pode dormir em meio a um mundo destruído, as pálpebras fechadas, os longos cílios sombreando as faces, os lábios num meio sorriso.
- Acorde - disse-lhe a meia voz -, acorde, Carlos Henrique.
Mas ele não acordava. Ela sacudiu-o docemente para que abrisse os olhos. Então a cabeça deslizou para trás, como a de uma pomba degolada, e ela viu-lhe no pescoço uma ferida aberta pela qual toda a sua vida se fora.
Angélica afastou, não sem dificuldade, os braços da criada morta e aconchegou o filho a si. Fez-lhe bem senti-lo assim pesado e abandonado em seu ombro.
Embaixo, atravessou sem ver o palco da carnificina, evitando os cadáveres como um obstáculo qualquer e saiu para os jardins.
O sol começava a empoar com cintilações a superfície do lago. Angélica andava sem nada sentir, nem o sofrimento de seu corpo, nem o peso do menino. Ela o contemplava.
— "O mais belo filho do homem..." Já não mais sabia onde ouvira tal frase.
— O mais belo...
Com angústia incrédula começou a perceber-lhe a imobilidade, a ausência, a brancura de cera da face redonda, tão íirial como a longa camisola que ele vestia.
- Meu anjo... Venha. Levá-lo-ei para muito longe... Partiremos juntos... Você ficará contente, não é mesmo? Brincarei com você...
O sol fazia brilhar os cabelos de seda dourada em seu ombro, e eles viviam, agitados pela brisa.
- Pobre garotinho?... Pobre pequeno senhor!...
Camponeses que se aproximavam cautelosamente pela grande aléia viram-na chegar até eles. Tomando-lhe o fardo das mãos, conduziram-na à casa do intendente Molines. Ela fora pilhada, mas os dragões não lhe haviam posto fogo. Trouxeram uma cadeira para o pátio e fizeram Angélica sentar-se. Ela não queria entrar na casa. Conseguiram fazer com qug bebesse um pouco de aguardente, e ela permaneceu ali, sem dizer palavra, as mãos nos joelhos.
Toda a região, tudo o que restava dos camponeses, dos arrendamentos e das aldeolas das redondezas subia para o Plessis. Os olhares erguiam-se com espanto para a lenta nuvem de fumaça que se arrastava acima das árvores. Toda a ala direita, das cozinhas, havia queimado. O incêndio se apagara, não se sabia bem como, evitando que os sobreviventes fossem consumidos pelo fogo. Reanimaram Malbrant Golpe de Espada, milagrosamente protegido pelos móveis atrás dos quais se entrincheirara, e três criadas, que não haviam sofrido senão as violências dos brutos. Elas choravam, o rosto apoiado ao cotovelo.
- Vamos, vamos - admoestavam as mulheres mais velhas -, não é preciso fazer uma tragédia. Quem não passou por isso uma ou duas vezes na vida? Não estão mortas, o que é o principal. Quanto ao resto: rápido se fez, rápido se esquece, é o que manda a razão...
Mais para orneio da manhã, Flipof mostrou seu nariz de esquilo. Conseguira escapar com um criadinho pela janela e esconder-se nos bosques.
Nos joelhos de Angélica estava apoiada uma cabeça ferida e frágeis ombros sacudidos por soluços. Era o Abade de Lesdiguière, a fronte cingida por uma bandagem ensanguentada.
- Oh! Senhora, senhora, é horrível! Eles me golpearam. Não pude defendê-la até o fim... nem ao pobre pequeno...
Deviam tê-lo poupado devido ao hábito de eclesiástico. Angélica repeliu-o com um calafrio de horror, não por ele, mas por ela.
— Sobretudo não me toque... não me_toque. Depois disse de súbito:
— Onde está Florimond?
- Não sei. Natanael também não foi encontrado em Rambourg...
Ela não pareceu compreender, voltando ao estado de torpor. Revia Florimond rindo com Carlos Henrique, enquanto Gon-tran lhes fazia o retrato.
- "Anjinho de sorriso de querubim. - Você é mimoso.
Pequeno fogo-fátuo cheio de malícia. - Você é mimoso."
— P bre senhora, está ficando louca - cochichou uma das mulheres que velavam junto dela.
— Não, está rezando, dizendo as litanias dos santos!...
— Que ruído é esse junto ao parque? - perguntou Angélica, saindo do entorpecimento.
— São as pás dos coveiros, senhora. Então fazendo sepulta-mentos.
— Quero ir até lá.
Ela se ergueu com dificuldade, sustida pelo Abade de Lesdi-guière. Na orla do bosque, junto aos gradis, já havia várias covas escavadas, com corpos em seu interior. Restavam apenas sobre a grama o cozinheiro Lin Poiroux e a mulher, Dame Aurélia, deixados para o final devido a sua corpulência.
- Colocamos ali o pequeno senhor - disse um dos camponeses, apontando uma elevação de musgo afastada. O túmulo já estava coberto de flores silvestres.
Diante da expressão petrificada de Angélica, o homem disse, como a desculpar-se:
— Era preciso fazer o que era mais urgente. Mais tarde será conduzido com honras à capela do Piessis. Mas a capela foi queimada...
— Ouçam-me - disse Angélica. - Ouçam-me...
Sua voz apagada firmou-se de repente, elevando-se até se tornar apaixonada:
- Camponeses, ouçam-me... - gritou. - Ouçam... Os soldados mataram o último dos Plessis-Bellière... o herdeiro do domínio. A raça está morta... A raça está perdida!... Eles o mataram. Mataram seu senhor. Já não têm mais senhor... Acabou-se... acabou-se para sempre... Não há mais senhores du Piessis... A linhagem extinguiu-se...
Os camponeses lançaram um grito dolente e sofrido, e as mulheres redobraram em soluços.
- Foram os soldados do rei que cometeram o crime. A tropa que é paga para maltratar os habitantes das províncias, para destruir as colheitas... Aproveitadores, vagabundos que sabem apenas enforcar, desonrar... Estrangeiros que comem nosso pão e matam nossos filhos... Deixarei seus crimes impunes?... Basta de bandidos que nos mantêm à sua mercê em nome do rei. O próprio rei fá-los-ia enforcar. Mas nós nos encarregaremos deles. Camponeses, não os deixarão sair da província, não é mesmo?... E preciso pegar em armas... é preciso partir à procura deles... E vingar nosso pequeno senhor...
O dia inteiro eles seguiram os dragões de.Montadour. Percebiam com facilidade os rastos das tropas, e ao final do dia sentiram-se invadidos por uma espécie de amarga alegria ao compreender que os soldados não haviam podido atravessar o rio e voltavam para o interior. Saber-se-iam perseguidos? Não, sem dúvida. Mas haviam encontrado as aldeias desertas, e a região silenciosa, envolvida em mistérios, começava a apavorá-los.
A noite chegou, depois a lua. Os camponeses avançaram pelos caminhos fundos. Não estavam cansados. O instinto advertia-os de que a saída da caça estava próxima. O tapete de folhas mortas abafava o ruído dos toscos tamancos, e aqueles seres pesados moviam-se de um modo suave e prudente, que lhes traía a origem de caçadores furtivos.
Angélica foi a primeira a ouvir o ruído das barbelas dos cavalos a pastar.
Com um sinal de parada, ela se içou pelo flanco da vala e olhou por entre as árvores. Na área que a lua branqueava, de terreno um pouco inclinado, os soldados dormiam uns contra os outros, estafados pela noite de orgia e por uma caminhada inquietante e sem saída. Uma sentinela cochilava junto às brasas de uma fogueira, cujo filete de fumo elevava-se preguiçosamente no céu constelado de estrelas.
Martin Genêt, um dos arrendatários, no comando dos camponeses, apreendeu rapidamente a situação. Ordens foram cochichadas em patoá, e sem mais ruído que o roçar das folhagens parte do grupo se dispersou. Pouco depois, do lado do pequeno vale, elevou-se o pio tremulo da coruja, respondido por outro chamado.
A sentinela moveu-se, ansiosa, esperou, depois voltou a sonhar.
Dos quatro cantos do campo, sombras lançavam-se furtivas e rápidas. Não houve um grito, apenas alguns grunhidos surdos de homens que despertavam e voltavam a adormecer.
No dia seguinte, o Tenente Gormat, que tentava ju'ntar-se a Montadour, chegou à região com um contingente de sessenta homens. Ele procurava os dragões, Encontrou-os no meio de um campo, degolados, em postura de sono. O trabalho fora feito a golpes de foice e de podadeira. Só se pôde reconhecer Montadour pelo ventre. A cabeça havia desaparecido.
Mais tarde, esse campo ficou sendo chamado de Campo dos Dragões. Ali nunca mais brotaram senão espinheiros e grama...
Assim teve início a grande revolta, do Poitou.
HONORINA
CAPITULO-XVII
A revolta do Poitou
Foi em vào-que o rei condenou o Sr. de Marillac e substituiu-o por Baville a testa da província.
A carta de intervenção trazida pelo velho intendente Molines - a quem o rei recebera pessoalmente assim que se apresentara em Versalhes - chegava demasiado tarde.
Enquanto Sua Majestade convocava Louvois, cúmplice de Marillac, tedioso-e hipócrita, para informar-se sobre a situação exa-ta e emitia ordens, o Poitou explodia.
Nem de longe Se duvidou que o ato determinante desse brusco incêndio fora o assassinato sórdido de um garotinho de cachos dourados. A situação logo se tornou bastante confusa, e por muito tempo imputou-se a destruição do Castelo do Plessis e o desaparecimento da marquesa e de seus filhos às pilhagens dos protestantes. Teria sido simples partir no encalço do herético. Mas as primeiras tropas que tentaram penetrar em Gâtine chocaram-se espantadas com católicos comandados por um certo Gordon de La Lande, velho nome em desfavor na corte, como o de todos os nobres que então viviam naquelas terras.
No entanto, ao sul do bocage, Samuel de La Morinière, o hu-guenote, retomava a ofensiva.
Os regimentos reais retiraram-se para uma linha que ia de Lou-dun a Niort, passando por Parthenay, enquanto o inverno deslizava com sua neblina malva por entre as árvores desfolhadas, e começava uma guerra de escaramuças atroz por sua selvageria, seu mistério e pelo temperamento irredutível daqueles a quem era preciso pacificar. Dir-se-ia tratar-se de sombras. Tudo configurava um local formigando de habitantes que jamais eram vistos, uma região fechada com aparência de deserto. Com quem parlamentar? Por que aquela súbita cólera? A quem odiavam? Ao rei, às tropas, aos arrecadadores de impostos?... Por que se batiam? Por questões religiosas de província, de comuna? Que objetivo se propunham a atingir aqueles camponios e fidalgotes intratáveis e subitamente furiosos?
No conselho do rei, era considerado,distinto erguer os braços ao céu e perder-se em conjeturas variadas. Na verdade, ninguém poderia dizer tudo o que se sabia, o que se sentia. Ninguém desejaria reconhecer o grito, o ronco surdo da caça acuada que desperta, ferida, no fundo da floresta e decide lutar até a morte, suprema convulsão de um povo que não se quer escravo.
No Poitou, o inverno se abria sobre a miséria. A experiência de conversão do Sr. de Marillac, trazendo a destruição das colheitas protestantes, precipitara na catástrofe um equilíbrio geral já instável, devido aos impostos esmagadores e a um mau ano anterior. Enquanto Montadour punha fogo ao trigo, no local onde os templos protestantes se erguiam ao lado de campanários católicos, os agentes do fisco haviam chegado a demolir as casas para vender as vigas. A guisa de talha apreenderam-se camas, roupas, animais usados na lavoura, e até os pães, redondas michas perfumadas, grandes como rodas, empilhadas nas estantes para os seis meses de inverno. Que importa um homem arruinado? Muitos, porém, significam uma aldeia que se abandona, miseráveis nas estradas quando chega o outono, seres lívidos, com medo da fome, querendo roubar àqueles que os roubaram.
Comboios a caminho de Nantes para abastecer o exército foram inteiramente pilhados pelos camponeses.
Ainda que o céu estivesse límpido, o sol, quente, e que tudo se pudesse esperar do verão, a desordem arruinara a última esperança, e a fome chegara.
Não foi senão pouco a pouco que se teve conhecimento do papel desempenhado por uma mulher nessa grande fogueira de ódio, e de como ela conseguira agrupar num só objetivo os protestantes e os católicos, os nobres, os camponeses e os burgueses das pequenas aldeias.
A lenda dessa mulher fazia sorrir algumas pessoas na corte.
Mas outras nela acreditavam! Não ia longe o tempo das belas mulheres da Fronda, e ninguém na França esquece ter saído de sua terra, no passado, uma mulher, Joana, que conduzia os cavaleiros ao combate. A outra não era uma camponesa, pois a nobreza a escutava. Pouco a pouco, os .fidalgos obscuros e de nomes prestigiosos, dos quais se troçava em Versalhes por serem mais pobres que mendigos, reuniram a sua gente, armando-a, não se sabe por que milagre.
Viu-se surgir toda espécie de armas, retiradas da panóplia acima da lareira: mosquetes, lanças e alabardas, arcabuzes de espoleta ou de mechas, lansquenettes, espada curta de dois gumes que lembrava os lansquenets, soldados de infantaria alemães das guerras religiosas, barbudos, emplumados, vestidos de ouropéis e terror das populações. Suas almas guerreiras passavam-se para aqueles que agora lhes empunhavam as espadas apanhadas nos campos após as batalhas. Viam-se até arcos e flechas de caçadores furtivos, armas -temíveis- quando os que as manejavam postavam-se, invisíveis, entre a folhagem de um carvalho, acima de um caminho fundo. E soldados do rei não tardaram'a lamentar a falta das couraças .de outrora.
Dizia-se que aquela mulher era bela e jovem, de onde seu poder sobre os chefes de guerra. Ela ia a cavalo, vestida de amazona e envolta num manto escuro com um largo capuz, que lhe abrigava os cabelos louros.
Todos os castelos da região, todos os solares, Angélica os visitou. Os mais altivos, sobre as colinas, com seus fossos de águas estagnadas, ou erguidos à beira da falésia, sobre o rio, em posição estratégica. Altos torreões que não defendiam mais nada, e onde ela encontrava famílias transidas juntos a um magro fogo; castelos Renascença criados para festas, com uma enfiada de imensos salões condenados. Neles ninguém mais entrava a não ser ratazanas. Eram frios em excesso. Os senhores do lugar eram demasiado pobres, ou então tinham um filho cortesão em Versalhes que dilapidava a herança. Solares de grossas pedras, mais confortáveis em sua simplicidade burguesa, onde se vivia modestamente com o desejo de se elevar sem consegui-lo jamais.
Para Angélica, era fácil encontrar a linguagem que aquela gente podia entender. Ela recordava-lhes os nomes, a glória de seus antepassados e suas humilhações presentes.
Os camponeses eram reunidos no pátio do castelo ou numa charneca afastada. E quando ela aparecia em seu cavalo, ou no alto de uma escada de pedras acinzentadas, silhueta altiva com seu manto escuro, e se punha a falar com voz distinta e calma, mas que alcançava longe no ar gelado, aqueles seres primitivos viam-se sacudidos por um estremecimento que os despertava para si mesmos e os punha subitamente atentos.
O que ela denunciava era tudo o que, havia longo tempo, cavava a ferida de seus corações taciturnos. Lembrava-lhes os dois anos terríveis de 1662 e de 1663, em que eles se haviam alimentado de feno e de grama, comido as cascas das árvores, os talos das couves, as raízes, chegando a moer as cascas das nozes com bolotas para juntar ao último punhado de centeio ou de aveia. Lembrava-lhes seus filhos mortos, o êxodo para as cidades - fora o ano em que Nicolau e os camponeses esfomeados haviam penetrado como lobos em Paris. Fora também o ano do grande carnaval de Paris, em que se havia visto o rei, seus irmãos e os príncipes resplandecentes de pedrarias.
No ano seguinte, quando eles começavam a pensar seus ferimentos, o Ministro Colbert restabelecera o imposto da gabela, aquele dito "para a panela e para o saleiro", e o "das salgas e do gado", o que queria dizer, a obrigação para todos de comprar "nos granéis", e a preço de ouro, o indispensável condimento...
Ao lembrar-lhes tais coisas, ela tocava num ponto sensível a toda a população do campo. Diante da avalancha de catástrofes que se anunciavam, os camponeses, inativos devido ao inverno, viam antes de tudo, em seu apelo à rebelião, a possibilidade de uma estação em que se teria um pretexto para não pagar impostos. Como estavam em revolta, poderiam jogar o meirinho no poço ou expulsá-lo a golpes de forcado. E que súbito alívio em poder guardar para si o pouco que se possuía!
Ela lhes dizia:
- Seus verdadeiros senhores são aqueles que aqui estão. Quando vocês têm fome, eles têm fome. Quantas vezes não lhes acontece pagar a dízima, a capitação, o décimo das colheitas, a talha das terras não-nobres que têm em seu feudo?... Eles o fazem para defendê-los de mãos demasiado rapaces.
— É verdade... é justo... - diziam os camponeses entre dentes.
— Sigam-nos. Eles lhes obterão a prosperidade sob uma nova justiça. É tempo de pôr fim a sua miséria.
Ela ainda citava números: os desperdícios que vira na corte, a venalidade dos cargos, os arranjos dos grandes financistas, todas as combinações que a cada ano constrangiam o Estado a vir buscar mais e mais dinheiro na fonte, ou* seja, na terrina do camponês.
Os Masson de La Guyonnière, os Gpílard d'Amboise, os Ches-bron de La Foulière, os Aubery d'As_premont, os Grosbois, os Guinefol e outros ainda de linhagem menos importante pegaram em armas.
Cidades que hesitavam, como Parthenay, Monterray, La Ro-che, foram constrangidas seja pela força, seja pela vitória das tropas protestantes., seja pela persuasão. Havia muitos burgueses com motivos de descontentamento com o rei. Angélica soube falar-lhes a linguagem dos escudos e- dos negócios. As reservas das cidades foram repartidas com vistas a um ano de fome. No entanto, tais diretivas e a pilhagem dos comboios militares não teriam bastado para salvar esse povo que se desterrava do reino, se os habitantes da costa atlântica não se alinhassem com seus irmãos do bocage.
Era uma região eminentemente protestante, e também a terra do sol, coração de um litígio agudo e quase secular entre o povo e a coroa. Um contrabandista de Sables, Ponce-le-Palud, arrastou consigo os de sua corporação. A partir de então, por praias desconhecidas, por pequenos rios clandestinos, os viveres penetraram no Poitou. O ouro pagava. Um burguês de Fontenay-le-Comte fizera com que os membros de sua corporação compreendessem que o ouro de nada serviria se se morresse de fome.
O reino de França mantinha o Poitou em observação. O inverno criava-lhe uma barreira tão rija como a rebelião. Aguardava-se que cedessem o frio e a bruma, a névoa e o gelo, para penetrar na região e contar os cadáveres. Mas os habitantes do Poitou não morriam.
Durante todos esse meses gelados, Angélica pouco permaneceu num mesmo lugar. Sua habitação era a habitação dos camponeses. Ia visitar aqueles de quem precisava, sentava-se junto à Jareira com brasão de um veiho castelo, ou diante do caldeirão de uma arrendatária, ou ainda nos fundos da loja de um comerciante próspero, influente no burgo. Não lhe desagradava falar com personagens tão diversas, e a prontidão com que era ouvida fortalecia-a em sua convicção. O fermento não pedia senão para levedar. Sentia-se que algo iria acontecer!
Mas sua verdadeira morada, seu lugar de eleição, continuava a ser o caminho fundo onde ressoavam os cascos de seu cavalo e os dos cavalos de sua escolta. Desta fazia parte o Barão de Crois-sec. Fora a ele que ela recorrera, antes de qualquer outra coisa, para pedir-lhe hospitalidade após o drama. Desde então, o gordo homem acompanhava-a por todo lado com alguns de seus serviçais.
Daqueles que seguiam Angélica, os protestantes tinham ido juntar-'se às tropas de La Morinière. Os outros, sob a direção do arrendatário Martin Genêt, formavam uma espécie de patrulha, em que cada qual permanecia em casa, mas pronto a juntar-se em armas ao mínimo sinal.
Ficavam permanentemente junto de Angélica os criados sobreviventes do Plessis: Alain, o palafreneiro, o ajudante de cozinha Camilo, o velho António e seu arcabuz, Flipot, o mion de Paris que não saberia o que fazer de si mesmo naqueles bosques, Mál-brant Golpe de Espada, resmungão mas feliz por reencontrar os rigores de uma campanha militar. O Abade de Lesdiguière, desde o início, mantinha-se a seu lado o tempo todo. No momento em que não a visse, corria à sua procura. Tinha medo do que se escondia por detrás daquele semblante liso e glacial e daquele olhar fixo. A angústia de pensar que ela tentasse destruir-se obsedava-o.
Nas etapas, ela caía por vezes num mutismo profundo, onde pareciam desaparecer todos os que a rodeavam. Sentava-se diante do fogo, em uma grande sala com armas nas paredes e tapeçarias. Era o cenário de sua infância. Fora, o vento bramia agitando as madeiras destruídas das janelas, e cata-ventos giravam no cimo de algumas torres pontiagudas. E amiúde juntava-se ao crepitar do fogo o martelar escondido das botas do Duque de La Morinière no lajedo. Ele caminhava de um lado para outro, e sua sombra imensa estremecia com o sobressalto das chamas. De quando em quando, detinha-se para lançar uma braçada de espinheiros na lareira. Aquela mulher tinha frio. Era preciso aquecê-la. Então retomava seu caminhar de animal enjaulado. Seu olhar fixava-se no perfil de Angélica, sentada e totalmente ausente, e na silhueta magra do Abade de Lesdiguière, um pouco afastado, sobre um escabelo, e cuja fronte inclinava-se, por vezes, de lassidão. O duque resmungava por entre-a barba palavras de raiva impotente.
Não era tanto com a presença,, do pequeno abade que ele se ressentia. O obstáculo que se erguia entre ele e essa mulher, a quem a cada dia desejava com mais demente ardor, era de uma outra ordem e de uma força bem mais invencível que a presença de um pajem delicado com olhos de garotinha. Afastá-lo-ia com uma bofetada, se não existisse outra coisa contra a qual nada podiam nem sua vontade implacável nem sua paixão.
Hoje ela lhe escapava para sempre.
Quando soubera do ataque ao Castelo do Plessis, ele voltara a marcha forçada para*.a região. Por vários dias procurara pela castelã desaparecida. Ele a havia reencontrado. A cólera de Samuel de La Morinière diante dos crimes dos soldados de Monta-dour mesclava-se um sentimento até então desconhecido para ele, à dor. O pensamento de que haviam aviltado aquela mulher punha-o louco. Enquanto a procurava, por diversas vezes sentira-se tentado a jogar-se sobre a espada para escapar ao tormento que lhe afligia o corpo e a alma. Não podia nem mesmo pronunciar o nome do Senhor, chamar por ele.
Certa tarde, sentado nos degraus de um cruzeiro, numa encruzilhada cheia de vento, sob as nuvens correndo no céu, o homem cruel sentira algo sangrar-lhe no coração e lágrimas em suas faces. Ele amava. A figura de Angélica cercou-se para ele de toda a irradiação de uma exaltante descoberta: o amor.
Ao reencontrá-la, estivera a ponto de cair de joelhos e beijar-lhe a orla do vestido. O olhar dela era tranquilo, com círculos escuros à volta dos olhos a acentuar-lhe o mistério. Sua beleza distante, e como que ferida, perturbou-o, atiçando uma febre que os sonhos não haviam feito senão crescer..
Assim que se achou sozinho com ela, quis tomá-la nos braços. Ela empalideceu e recuou, o rosto transfigurado de medo.
- Não se aproxime de mim, sobretudo não se aproxime de mim...
Tal temor deixou-o louco. Queria beijar os lábios que outros haviam ofendido, apagar os vestígios, fazê-la sua para purificá-la. Um delírio sem nome, em que se mesclavam o desespero, o amor exclusivo, o desejo de posse, invadiu-o, e ele ignorou-lhe a súplica, apertando-a contra si com paixão. Quando a viu contraída, mais branca que o mármore, os olhos fechados, ele se acalmou. Ela desfalecera. Tremulo, assustado, estendeu-a no lajedo.
O Abade de Lesdiguière acorreu, e de serafim transformou-se em arcanjo vingador.
- Miserável! Como ousou tocáJa?
Ele afastou de Angélica aquelas grossas mãos peludas, lutou com aquele Golias...
- Como ousou?... Não compreende?... Ela não pode mais suportar tal coisa... Não pode suportar que um homem a toque... Miserável!...
Fora necessário perto de uma hora para reanimá-la.
Ao acaso daqueles meses de guerrilhas, o Duque de La Mori-nière e Angélica se reencontravam na casa de seus partidários. Então aconteciam os longos serões, em que os hospedeiros vagamente amedrontados deixavam sozinhos o huguenote e a católica. Silêncio, ruído de passos, sobressaltos das chamas. Assim se escoavam as horas, no interior de um drama não-formulado e dilacerante.
Pelo mês de fevereiro, Angélica se achava de volta à região do Plessis. Ela não quis ir ver as ruínas de sua antiga morada e desceu até o Castelo de Guéménée du Croissec. O gordo barão parecia encontrar em seu devotamento inalterável à causa de Angélica uma justificação para sua existência de fidalgo de província celibatário. Ele se afadigara, naqueles quatro meses, mais do que em sua vida inteira. Sentia-se como o amigo seguro de Angélica, aquele com quem ela poderia contar para o que quer que sucedesse, e era verdade que ele não mais a incomodava. Os três La Morinière e outros chefes conjurados igualmente ali se reuniram para discutir a situação. Podia-se prever que, com a primavera, as tropas reais procederiam a uma ofensiva geral em todas as frentes. O norte estava bastante desprovido. Será que poderiam contar com os bretões, que não eram, aliás, senão bretões pela metade, por já st acharem do lado de cá do Loire?...
pouco depois, houve combates bastante violentos nos arredores. A região permanecia ponto de mira das tropas reais, pois fora dali que tudo partira. Deviam saber que a Rebelde do Poi-tou ali se encontrava. Sua cabeça estava posta a premio, embora lhe ignorassem o nome e a personalidade. O Campo dos Dragões estava próximo, e a recordação dele estimulava os militares à caçada. Angélica quase caiu numa«mboscada. Foi salva por Valentim, o moleiro, na casa de quem se refugiara com o Abade de Lesdiguière, que estava ferido. Para subtraí-la a eventuais buscas, Valentim conduziu-a para o fundo dos pântanos, onde ninguém poderia persegui-la.
CAPÍTULO XVIII
A bourcine de Valentim - Horrível revelação
Angélica permaneceu várias semanas na palhoça de Valentim. A cabana baixa, ao nível da água, com seu teto de colmo enegrecido como um gordo boné de pele, era confortável. Um reboco especial, segredo dos huttiers, feito de argila azulada, de palha e de estrume, recobria a parte interna das paredes com uma espécie de feltro, que absorvia a umidade e protegia contra o frio. Dentro, a temperatura era tépida e seca, e quando os pedaços de turfa queimavam na lareira com suas curtas chamas violeta, quase se esquecia, tão bom era o calor, a opressiva paisagem ao derredor, inundada de água.
A cabana possuía apenas uma sala baixa, com uma espécie de alpendre ao lado, metade estábulo, metade celeiro, onde se ouvia o tilintar da campainha de uma cabra, que Valentim trouxera de barcaça para os queijos e para o leite de cada dia. Havia também um tanque de pedra onde volteavam as negras enguias com que se fazia a bouillure, uma provisão de favas e de cebolas, pães numa tábua a meia altura e um barril de vinho tinto. O mobiliário era heteróclito. Se a cama, uma camada de fetos sobre uma prancha, era das mais toscas, mestre Valentim não esquecera de trazer para os fundos de seu pântano a boête da Virgem Maria, tão cara aos corações da Vendée. Dizia-se que a do moleiro do Moinho des Ablettes era a mais bela de todas. Era um estranho objeto, composto de um globo de vidro sob o qual se amontoavam, enquadrando um retrato da Virgem, flores de conchás ou de pérolas, rendas, fitas, berloques de pedras coloridas e escudos de ouro verdadeiros dispostos em forma de sol. Angélica, que já a conhecia, experimentava ao contemplá-la um curioso sentimento de retorno ao passado. Por um breve momento, o tempo suspenso a levou de volta à admiração beata da infância. Depois, bruscamente, voltava a ser ek mesma, com as feridas do corpo e da alma, os tormentos de adulto nela se agitando como as enguias do tanque. Uma ronda infernal, sombria e repugnante, a isso se reduziam seus pensamentos, comunicando-lhe por vezes uma vertigem quase física. Então apoiava-se à parede. Dir-se-ia um abismo a abrir-se sob seus pés. O subconsciente a advertia contra um terrível perigo, rondando a sua volta, ou então nela mesma. Depois, aquilo se acalmava e ela reencontrava uma certa quietude.
Ali não tinha vontade de fugir sem parar como em terra firme, onde se dava pressa em erguer sem cessar barreiras entre ela e o ostracismo do rei de França, cujo repúdio se tornara sua ideia fixa. Ali não se arriscava a ser encontrada pelos soldados do rei. Decidiu, então, aguardar um pouco. Sairia do pântano com a primavera, quando começassem as ofensivas. Então sua presença far-sé-ia necessária para encorajar os ânimos enfraquecidos, recordando a cada um o que estava em jogo.
Valentim trazia-lhe as notícias. A região estava calma. Em pé de guerra, mas calma. Prosseguia-se no recrutamento de tropas, e sobretudo na luta contra a fome. Preservados, porém, pela rebelião, os habitantes não tiveram que ver as magras reservas engolidas pelo poço sem fundo das requisições e impostos. Assim, a região subsistia. E as pessoas se felicitavam: "Tudo caminha melhor quando nos arranjamos entre nós". Saberiam defender uma liberdade tão necessária?... Para isso, também, cada qual se preparava.
Mestre Valentim vinha quase todos os dias. E no resto do tempo? Retornava ao moinho? Pescava, caçava nos caniços? Frequentemente, chegava com nassas cheias, ou aves de plumagem brilhante, a cabeça pendida, presas a um- bastão. Os habitantes da cabana falavam pouco. O abade, enfermo, dormia no alto, no depósito de feno. O ferimento no flanco fora curado com cataplasmas de ervas. Mas ele tinha febre amiúde. Era como uma sombra dolente e suave entre duas outras sombras, igualmente perdidas em devaneios. Três seres díspares: uma mulher bela e trágica, um moleiro taciturno, de espírito lento e bizarro, um abadezinho da corte, pálido e tremulo, encerrados no silêncio das águas mortas.
Angélica dormia na cama de fetos, coberta com uma pesada pele de carneiro. Dormia um sono total, sem sonhos, que não lhe era habitual. O drama não parecia ter-lhe marcado o físico. Se despertava, ouvia no exterior o ruído da chuva caindo sobre a superfície lisa do pântano, multiplicando ao infinito seu ténue roçagar. Ou então o coaxar das rãs, os gritos agudos dos ratos-d'água, o chamado dos pássaros noturnos, todos os sussurros da fauna aquática. E ela experimentava uma certa paz.
Quando Valentim se achava presente, ela o via também, à noite, sentado na poltrona de palha e madeira polida. Ele trazia os olhos abertos, e os reflexos azulados das chamas deslizavam por seus gordos traços, tristes e inexpressivos. Por um instante, uma luz nascia-lhe no fundo das órbitas. Angélica tinha a impressão de que ele a olhava. Então tornava a fechar os olhos e adormecia.
Mestre Valentim nada representava para ela além de uma presença familiar do passado que a servia. Ele cortava os pedaços de turfa para o fogo, ordenhava a cabra, punha o leite para coa-, lhar na caixa sob a pedra da lareira, preparava a sopa e o peixe, e flambava o vinho para que o molho da bouillure não ficasse amargo. Teria sido um cozinheiro digno de servir sob o grande Vatel. Trazia-lhe por vezes cestos cheios de brioches e de pães de queijo preparados com a mais fina farinha, pães da região que se comiam na Páscoa, e cuja casca deve ser escura e o interior, cor de ouro. Acontecia a Angélica de apossar-se deles com súbita avidez. Ela estava sempre com muita fome. Uma luz semelhante a um sorriso acendia-se nos olhos impassíveis do homem, enquanto ele a olhava plantar os dentes brancos na massa. Ela se detinha, sentindo um mal-estar, e saía, para escapar a esse olhar.
Ainda imperava o inverno, quando ela chegara à ilhota dos pântanos, e as terras inundadas ressuscitavam o estuário dos primeiros tempos, cuja lama salgada trazia ouriços-do-mar, moluscos, conchas fossilizadas. Certas aves marítimas ainda vinham, por vezes, fazer seus ninhos nos caniços. Os altos choupos, trazidos pelos holandeses ao tempo de Henrique IV, transformavam a paisagem marinha junto com os olmos, faias, freixos, minuciosamente desenhados com uma pena preta nos reflexos da água ou na leve bruma, de luminosidade translúcida de porcelana. Os corvos crocitavam, planando na paisagem desolada. De pé, em meio aos caniços, Angélica deixava o olhar perder-se no conjunto de galhos e pequenos ramos, de troncos que se projetavam sobre os próprios reflexos, compondo a. inextricável arquitetura do pântano. Essa água-forte em negrcre branco fascinava-lhe o coração desesperado, e de repente ela acreditava ver na neblina Florimond, Carlos Henrique e Cantor, três silhuetas perdidas passando de mãos dadas. Então gritava, torcendo os braços:
- Oh! meus filhos... meus filhos!
Ela gritava, sua voz se perdia na imensidão, até que o Abade de Lesdiguière, escorregando na lama, viesse tomá-la pelo braço para levá-la devagar de volta à casa.
"Você sacrificou seus filhos", dizia dentro dela uma voz surda. "Má!... Insensata!'.".. Jamais deveria ter deixado Versalhes, partir para os países do Oriente, que a perverteram. Devia ter feito a submissão ao rei. Devia ter dormido com o rei..." E ela se punha a soluçar pungentemente, chamando-os baixinho e pedindo-lhes perdão.
A primavera foi precoce e exuberante, cobrindo de esmeralda a vasta extensão, "transformando a paisagem desolada com uma ornamentação suntuosa e devolvendo aos agriões seu glauco mistério. Ninféias floresciam, com perfume de cera e de mel. As libélulas começavam a sulcar as águas com seu frágil vôo, buscando tufos de miosótis e de hortelã. Ouvia-se nos lagos a movimentação dos patos selvagens, das poupas coroadas, dos gordos gansos cinzentos, das garças cautelosas. Silenciosas barcas eram vistas a passar por trás das ramagens. O pântano, como o bocage, é um domínio de aparência deserta que esconde uma vida múltipla e agitada. Os huttiers, descendentes da raça dos colliberts, formavam uma república populosa e independente. "Nos pântanos há pessoas ruins, que não pagam imposto nem ao rei nem ao bispo", contava outrora a ama...
Era março, e o tempo mostrava-se excepcionalmente ameno.
- O inverno não foi cruel em demasia - disse Angélica certa noite a mestre Valentim. - Devemos acreditar que os génios estão conosco. Breve, devo retornar a minhas terras.
O moleiro colocava um pichei de vinho fumegante e canecas sobre a mesa. A refeição havia terminado. O Abade de Lesdi-guière subira para se deitar no molho de feno do celeiro. Era a hora em que Angélica e Valentim, diante da lareira, bebiam o vinho quente perfumado com ervas e canela. Valentim serviu-a e instalou-se em um escabelo, sorvendo, não sem ruído, a bebe-ragem. Ela o olhou como se o visse pela primeira vez e espantou-se com a espinha encurvada e possante, sob o gibão cinza, e os grosseiros sapatos de fivelas de metal. Nem burguês nem camponês. Mestre Valentim, o moleiro do Moinho des Ablettes. Um desconhecido que estivera sempre ali.
Ele olhou-a por cima da caneca. Seus olhos tinham uma cor cinzenta.
- Você vai partir?
Falava-lhe em patoá, no qual ela também lhe respondeu.
- Sim, é preciso que eu saiba onde estão os nossos. A guerra
chegará com o verão.
Ele bebeu ainda uma segunda caneca, uma terceira, respirando ruidosamente.
Depois pousou a caneca na mesa e colocou-se em pé, diante de Angélica, os braços pendidos, fixando-a atentamente.
Irritada com essa contemplação, ela estendeu-lhe o recipiente vazio.
- Ponha-o na mesa.
Ele obedeceu e voltou a olhá-la. Tinha um rosto bexigoso e rubro, e por trás dos lábios entreabertos ela lhe adivinhava os dentes estragados.
O ambiente solitário, que até então fora indiferente a Angélica, tornou-se nessa noite opressivo. Ela apertou, nervosa, os braços da cadeira onde se achava sentada.
- Vou dormir - murmurou.
E deu um passo à frente.
- Coloquei fetos frescos, bem frescos, colhidos sob as árvores, para que a cama seja mais macia.
Ele se inclinou e tomou-lhe a mão, enquanto a olhava atenta mente, numa súplica.
- Venha comigo sobre os fetos.
Angélica retirou a mão com presteza, como se ele a tivesse queimado.
- Que aconteceu com você? Está louco?
Ela se pôs em pé, examinando-o, ansiosa. O horror que ele lhe inspirava - que todo homem agora lhe inspirava - impediu-a de defender-se devidamente. O coração batia-lhe descontrolado na garganta. Se ele a tocasse, desfaleceria, como com o Duque de La Morinière. Ela se apavorava" ao pejisar no horrível espasmo que a sufocara naquele dia, enquanto a recordação da noite do Plessis precipitava-se em suarmemória, transtornando-a de pavor. Havia nos olhos do moleiro uma luz incerta e ardente que a deixou atemorizada.
- Valentim, não me toque!
Ele a dominava com seu alto talhe, um pouco curvo, o lábio pendido, como mesmo ar parvo de"outrora que a fazia rir.
- Por que não eu? - disse ele com esforço. - Eu, que a amo... que tive toda a vida tomada pelo amor que você me infundiu no coração... esperei muito por esta hora... pensava ser impossível, mas sei que agora será minha...
"Como Nicolau!", pensou ela, desnorteada. "Como Nicolau!..."
- Venho olhando-a, desde que aqui chegou, vendo-a engordar como uma bela ovelha fértil. Então a felicidade entrou em meu coração, pois compreendi que você não era uma fada... e que poderia acariciá-la sem que me lançasse um sortilégio...
Ela escutava sem compreender as palavras aberrantes que ele murmurava em seu patoá rouco, suave, apesar de tudo.
-Venha, minha querida, minha bela... venha sobre os fetos.
Ele se aproximou e abraçou-a, acariciando-lhe demoradamente o ombro com a mão.
Ela conseguiu dominar-se e com toda a força bateu-lhe no rosto com os punhos fechados.
- Deixe-me, camponês!
Valentim estremeceu e recuou com a afronta. Voltou a ser o moleiro des Ablettes, de quem a região temia o caráter duro e arrebatado.
- Como da outra vez - gritou -, como da outra vez no celeiro, na noite do Chaudaut. Você não mudou, mas pouco importa. Esta noite não tenho medo. Você não é uma fada. Você pagará. Será minha esta noite.
Ele disse essas últimas palavras com uma expressão resoluta e assustadora. Depois, voltando-se com passo pesado, ganhou a mesa e serviu-se de beber.
- Tenho tempo, mas lembre-se de que não se ofende impunemente mestre Valentim. Você me comeu o coração. Pagará por isso!
Ela pensou que era preciso tentar acalmar aquele furioso.
- Compreenda, Valentim - disse com voz exausta -, não o desprezo. Mas se fosse o rei eu o repeliria. Não posso suportar que um homem me toque. E como uma doença. Compreenda...
Valentim escutava-a atentamente, o olhar maldoso. Depois passou as costas da mão nos lábios molhados de vinho.
- Não é verdade. Você está mentindo. Há muitos outros nos braços de quem se revira rindo. Foi preciso que a tocasse, aquele que lhe colocou um mouflet no ventre.
A expressão era do sudoeste, mas empregada por vezes no norte. Angélica a conhecia.. Um mouflet! Um filho!...
— Que mouflet? - perguntou, olhando-o com tal incompreensão que ele fraquejou, desconcertado a contragosto.
— E essa agora! Aquele que está carregando. Foi por isso mesmo que compreendi que você não era uma fada. As fadas, ao que dizem, não podem ter filhos dos humanos. Foi um mágico que. me disse. As verdadeiras fadas não têm filhos.
— Que filho? - gritou ela com voz aguda e dissonante.
O abismo abria-se diante dela. Lá estava ele escancarado. A ameaça surgia de limbos inconscientes, inflava, impunha-se, enquanto na vertigem que tantas vezes tomara por um mal-estar ela reconhecia dentro de si o lento movimento de um ser a se revirar.
- Não pode dizer que não o sabia - disse o moleiro com voz distante, abafada. - Faz bem cinco ou seis luas que o carrega.
Cinco ou seis luas!... Era impossível! Não amara nenhum homem desde Colin Paturel. Não se dera a ninguém...
Cinco ou seis luas!... O outono!... A noite vermelha do Ples-sis, tiros, sangue, incêndio, soluços de crianças desvairadas, gritos de mulher, o espetaculo insustentável dos dragões com os calções abertos... Luta e dor, humilhação enlouquecedora, e cinco luas mais tarde, a terrível verdade.
Ela deu um grito dilacerante de animal ferido:
- Não, não! Isso não!
Ela nada percebera nos meses em que cavalgara pelo Poitou, centrada num único objetivo e alheada de si mesma. Queria esquecer seu corpo, e não se interrogava sobre suas anomalias, que acreditava serem devidas ao terrível choque e à fadiga das viagens. Agora se recordava, e a evidência lá estava. O fruto monstruoso se desenvolvia, esticava-lhe a roupa sob o corpete. Sua cintura havia perdido a esbeltez. Diante de" sua expressão demente, Valentim pareceu desconcertado. Reinou o silêncio, no qual se puderam ouvir diante da casa os saltos vivos de um peixinho para fora da água calma.
- Que importância tem isso? - retomou o moleiro. - Você está ainda mais bela...
Ele voltou até ela. Angélica furtava-se às suas mãos estendidas, refugiando-se nos cantos escuros, horripilada e incapaz de gritar. Ele conseguiu apanhá-la e tomou-a nos braços.
Nesse momento, um golpe violento abalou a porta, a tranque-ta de madeira saltou,-e a alta estatura de Samuel de La Moriniere inclinou-se, penetrando na cabana. Ele olhou em torno e deu um urro ao descobrir o" casal.
Desde que Angélica desaparecera, ele se via devorado pelo medo. Disseram-lhe que ela era prisioneira do moleiro maldito, que a retinha nos pântanos com seus encantamentos. Já bastava de superstições grosseiras! Ainda assim, aquele moleiro papista era uma personagem equívoca, perigosa. Por que aquela grande dama o acompanhara? Por que não regressava? Não mais se contendo, ele se fizera guiar até ela sem preveni-la.
Chegava e encontrava-a nos braços daquele bruto tacanho.
- Cortar-lhe-ei a garganta, campônio - rugiu, desembainhando a adaga.
Mestre Valentim escapou ao golpe por pouco. Abaixando-se, correu a refugiar-se no outro canto da peça. O furor e a decepção conferiam-lhe uma máscara tão assustadora quanto a do huguenote.
— Não a terá - disse, ofegante, com sua voz grave. - Ela é minha.
— Animal! Porco! Far-lhe-ei vomitar as tripas.
O moleiro era tão alto e corpulento como o senhor protestante. Mas estava desarmado. Ele começou a deslizar atrás da mesa, os olhos fixos no recém-chegado, que fremindo de louco ciúme espreitava um instante de descuido para degolá-lo. A claridade do fogo diminuíra, mergulhando os cantos da sala na escuridão.
Valentim procurava alcançar o machado, invisível atrás da ucha.
Angélica precipitou-se para a escada que levava ao celeiro, escorregou no feno, e inclinada sobre o pequeno Lesdiguiere, que dormia profundamente, sacudiu-o com toda a força:
- Abade!... Estão se batendo... Estão se batendo por minha causa.
O jovem, maldesperto, considerava com espanto, à luz da velha lanterna que pendia das vigas, aquela mulher de pupilas dilatadas e dentes batendo.
Ele estendeu a mão:
- Nada tema, senhora, estou aqui.
Embaixo, ouviu-se um mugido inumano e o baque surdo de um corpo desmoronando.
— Escute...
— Nada tema - repetiu.
Ele pegou a espada a seu lado, depois deslizou pela escada, atrás de Angélica. Viram, a face contra o chão, o corpo fulminado do patriarca huguenote. O crânio estourara, abrindo uma ferida vermelha e escancarada na grenha hirsuta.
Junto à mesa, Valentim bebia no pichei de vinho. O machado ensanguentado estava pousado perto dele. Seu traje cinza mostrava respingos. Seus olhos eram os de um louco.
CAPITULO XIX
Crimes nos pântanos
Ele viu Angélica é.pousou a bilha na mesa com um "ah!" de satisfação. .
- É sempre preciso combater os dragões para conquistar a princesa - disse com voz engrolada. - O dragão veio e o matei...
Pronto, está feito. Agora a mereço!... Você não me escapará mais.
Ele caminhava para ela com passo cambaleante, tão ébrio pelo vinho como pela violência e pelo desejo exacerbados. Com um movimento ágil, o abade, a quem ele não vira, deslizou para junto de Angélica e tolocou-se diante dela, a espada erguida.
- Para trás, moleiro - disse errrtom calmo.
A aparição do frágil eclesiástico deixou o homem confuso. Mas ele logo se recuperou. A veemência de suas paixões não mais lhe permitia escutar as palavras da razão.
— Afaste-se da frente, abade - resmungou -, isto não lhe diz respeito. Você é um inocente. Afaste-se.
— Deixe esta mulher em paz.
— Ela me pertence.
— Ela não pertence senão a Deus. Recue você, deixa esta casa. Não se arrisque a condenar sua alma pela eternidade.
— Basta de sermões, abade, deixe-me passar.
— Em nome do Cristo e da Virgem Maria, ordeno-lhe que recue.
— Esmagá-lo-ei como a um percevejo.
O fogo semi-apagado punha uma faísca na extremidade da espada estendida.
- Não avance, moleiro - murmurou o abade -, não avance, eu lhe rogo.
Valentim arremessou-se sobre ele. Angélica cobriu o rosto com as mãos.
O moleiro recuou, as mãos apertando o flanco, indo desmoronar contra a pedra da lareira. De repente, pôs-se a urrar:
- Absolva-me, abade!... Absolva-me!... Vou morrer!... Não quero morrer em pecado mortal... Salve-me do inferno, vou morrer...
Seus gritos inumanos enchiam a palhoça. Depois diminuíram, entrecortados por lamentações e soluços de agonia, aos quais misturavam-se as preces murmuradas do padre, ajoelhado junto ao moribundo.
Por fim, não houve mais que o silêncio.
Angélica não conseguia mover-se. O abade teve que arrastar sozinho os dois corpos para fora e içá-los na barcaça, para levá-los um pouco mais longe e lançá-los na água tenebrosa.
Quando voltou, a jovem não se havia movido. Ele fechou a porta com cuidado e dirigiu-se até a lareira para empilhar a turfa e a lenha e avivar a chama. Depois amparou Angélica pelo braço.
- Sente-se, senhora - disse a meia voz -, aqueça-se.
E quando ela mostrou recuperar-se um pouco:
- O homem que conduziu o duque até aqui fugiu. Surpreendi o barulho da pigouille. Era um collibert. Ele não falará.
Ela foi agitada por um estremeção.
— E horrível! E horrível!
— Sim, é horrível... os dois homens mortos...
— Não, não é isso que é horrível. Foi o que ele me disse antes. Ela olhou-o fixamente.
— Disse-me que eu esperava um filho! O jovem baixou a cabeça, enrubescendo. Angélica sacudiu-o pelo ombro com raiva.
— Você o sabia e não me disse nada.
— Mas, senhora - balbuciou ele -, eu pensava...
— Louca... Como pude esperar tanto tempo sem compreender... Ela realmente tinha a impressão de que iria perder a razão. O
Abade de Lesdiguière quis tomar-lhe a mão, mas ela se furtou, por sentir a coisa inominável mexer-se dentro dela. Era pior do que se sentir devorada viva por uma besta imunda.
Ela se debatia, arrancava os cabelos, queria lançar-se no pântano, enquanto ele lhe dirigia súplicas e a segurava. Ela o repelia, perdida em horripilante delírio, no qual em vão procurava encontrar a voz doce e grave que lhe falava de Deus, de vida, de preces e que lhe murmurava, chorando, palavras de amor.
Por fim se acalmou, e seus traços recobraram pouco a pouco a calma dos últimos dias. O abade a observava, inquieto, pois sentia que ela tomara uma decisão irrevogável, mas ela se esforçou por lhe sorrir.
- Vá dormir, meu pequeno, já não aguenta mais.
Sua mão acariciou com pena os cabelos castanhos que emolduravam o fino rosto adolescente de olhos muito belos, onde podia ler uma ardente expressão de dor e de adoração.
— Tudo o que a atinge, senhora, é um calvário para meu coração.
— Eu sei, pobre-pequeno.
Ela apertou-o contra o peito, encontrando conforto em senti-lo junto a si, porque era-puro, e -a amava, e era tudo de suave que lhe restava no mundo.
- Meu pobre anjo da guarda... Vá dormir.
Ele beijou-lhe a mão e afastou-se a contragosto, inquieto, mas de tal modo esgotado que ela o ouviu chocar-se contra as barras da escada e cair pesadamente na cama.
Então ela permaneceu imóvel como uma estátua, por várias horas. Depois, quando a aurora se insinuou-, ergueu-se sem ruído, envolveu-se na manta e saiu da cabana. A barcaça do moleiro estava junto à soleira, presa por uma corrente a um anel fixo na parede de taipa. Ela desprendeu-a e, pegando o remo de madeira que manejaria melhor que a vara, impeliu a embarcação pelo caminho verde do canal. A luz ainda era imprecisa. A barcaça passava em meio ao vozerio dos pássaros selvagens que despertavam.
Angélica pensou no pequeno abade. Ele acordaria e chamaria por ela, desesperado. Mas não poderia vir ao seu encontro e impedi-la de fazer o que desejava. Havia uma iole no celeiro. Ser-lhe-ia possível, em último caso, servir-se dela para chegar aos buttiers do pântano.
O sol surgiu no horizonte e transformou num véu dourado a bruma clara e ténue. O calor aumentava"! Angélica perdeu-se um pouco pelos canais cor de absinto e pérola. Mas, pelo meio da manhã, ela abordava às terras secas.
CAPITULO XX
Noite de dor na Pedra das Fadas - Angélica aceita
as consequências da violação de que foi vítima
-Você o fará, Melusina, você o fará ou a amaldiçoarei.
Angélica crispava as mãos nos ombros ossudos da velha, o olhar terrível defrontando o da feiticeira. Eram como duas harpias em combate, e quem as tivesse percebido na penumbra da gruta, com as cabeleiras esparsas e os olhos fulgurantes, teria fugido apavorado.
— Minha maldição é mais forte que a sua - disse Melusina num chiado.
— Não, porque morta serei mais forte que você. Dedicar-me-ei a despojá-la de todos os seus poderes, pois morrerei se me recusar o remédio. Enfiarei um punhal no ventre para matá-lo.
— Está bem - disse a velha, cedendo de súbito. - Agora solte-me.
Ela sacudiu o velho dorso dolorido sob os farrapos em pano de saco. Mais um inverno passado em seu antro úmido reforçara a sutil transformação que de ser humano a conduzia ao reino vegetal, conferindo-lhe ao corpo o aspecto de um velho tronco gretado, aos cabelos, o das plantas lenhosas ou de fios tecidos pelas aranhas, ao olhar, o da raposa sob a mata cerrada.
Coxeou até o caldeirão, examinando a água fervente com desconfiança, e depois, como se tomasse uma decisão, pôs-se a lançar em seu interior um número incalculável de ervas, folhas e pós.
— Aquilo que falei, foi pensando em você. É tarde demais. Está na sexta lua. Se beber o remédio, corre o risco de morrer.
— Pouco importa! Devo livrar-me disso.
— Você é mesmo uma mula... Bem! Morrerá, mas não será minha a culpa. Nao me atormentará no outro mundo.
— Prometo-o.
— Não seria bom que eu causasse sua morte - resmungou a velha -, pois está destinada a viver muito. Não é bom forçar o destino, que decidiu pela vida e não pela morte... Você é sólida e vigorosa. Talvez resista. Farei sortilégios para que a sorte esteja a seu lado. Depois de beber, irá estender-se na Pedra das Fadas. O lugar é protegido. Os génios a assistirão.
A poção só ficou pronta com o crepúsculo- Melusina encheu uma pequena tigela com uma decocção enegrecida e deu-a a Angélica, que a engoliu-, resoluta, até a última gota. O sabor não era mau. Ela suspirou profundamente de alívio, apesar da apreensão pelas horas que viriam.-Mas depois estaria livre. O mal estaria extirpado. Era preciso ter a coragem de enfrentar a provação. Ela se ergueu para se dirigir à clareira da Pedra das Fadas. A feiticeira murmurou múltiplos encantamentos e colocou-lhe na mão uma espécie de noz.
- Se sofrer demais, coma uma ou duas. A dor se acalmará. E, quando a criança sair, "deixará seu corpo na pedra dos druidas. Colherá visco e o cobrirá com ele...
Angélica pôs-se a caminhar por um atalho em que a erva nova atravessava por todo lado as folhas mortas. Talos frágeis na aparência, mas cujo vigor vencia o peso do húmus. Tudo era verde e trémulo. Ela chegou à colina, e o dólmen lá estava, como um tubarão encalhado na sombra cor de ardósia da noite. Seus passos fizeram as folhas estalar, e ela reconheceu o odor dos carvalhos, postados como fidalgos ao redor da clareira, com os sócios poderosos cobertos de musgo e os vastos candelabros dos ramos entrelaçados. Ela se estendeu na pedra amornada pelo sol, que naquele dia fora tão quente como no verão. Seu corpo ainda estava calmo. Abandonando os braços perpendicularmente ao corpo, bebeu com os olhos a beleza do céu ainda claro onde tremia uma minúscula estrela.
Ali, naquela clareira, ela vinha dançar com as crianças da região. Elas cantavam refrões bizarros e proibidos, para fazer surgir as fadas e duendes que sonhavam ver, mesmo que fosse uma única vez. Ela ouvia-lhes as vozes estridentes e o barulho dos pequenos tamancos sobre as bolotas ou as urzes secas.
Filie, filoches
Ren ne voidoches...
Depois gritavam, excitadas: "Ali, eu vi... um duende! Ele escalava o carvalho. Era uma ratazana! Era um duende..."
A noite veio substituir as últimas luzes do dia. A lua elevou-se por trás dos troncos, vermelha de início, depois amarela e loura, para jorrar por fim, sobre a clareira, em sua candura prateada.
Angélica contorcia-se sobre a pedra acinzentada. A dor apossara-se de suas entranhas e não lhe dava descanso.
Ela ofegava, perguntando-se a cada vez se teria coragem para suportar um novo ataque de dor.
- É preciso que isso acabe! - repetia.
Mas não acabava. O suor corria-lhe pelas fontes, e a luz da lua magoava-lhe os olhos cheios de lágrimas. O astro atravessava o céu com lentidão infinita, arrastando com ele um suplício interminável. Ela acabou por gritar, tensa e machucada, enquanto o movimento dos galhos animava espectros que se inclinavam sobre ela. Este tronco negro era Nicolau, o bandido, o outro era Valentim com o machado, e este que avançava quebrando os ramos era o huguenote trigueiro, barbudo, de olhos feito duas velas acesas e crânio aberto como uma granada explodida.
Agora via os irmãos duendes subindo e descendo pelos troncos a uma velocidade vertiginosa, junto com gatos negros cujas garras deixavam rastos fosforescentes, e as corujas e morcegos, velhos companheiros de sabá, voejando-lhe em torno da cabeça. Ela tremia de febre. A um espasmo mais intolerável, lembrou-se das nozes dadas pela feiticeira, que havia guardado no bolso. Comeu uma, e pouco depois o sofrimento diminuiu. A dor ainda estava presente, mas distante, sufocada. Ela continuou a comer as nozes com avidez, temendo a volta do sofrimento cru e atroz, e docemente deixou-se deslizar num sono próximo da morte.
Quando despertou, a floresta não mais se mostrava ameaçadora. Um pássaro cantava na ponta de um galho, sob um céu cinza-nérola matizado de rosa.
"Acabou", pensou Angélica, "e estou salva."
Esgotada, não fez de início nenhum movimento. Por fim se ergueu, o corpo parecendo-lhe de chumbo. Permaneceu sentada, apoiando-se nos braços, enquantoolhava-agradecida o cenário agora calmo ao seu redor. Seus pensamentos eram vagos, mas alegres. "Você está livre. Foi libertada."
Mas não havia nenhum vestígio do drama. Os génios haviam-no apagado.
Aos poucos Angélica recobrava a consciência. Havia algo que não entendia.
- Que aconteceu?
A resposta lhe foi dada por um leve estremecimento, e ela compreendeu com espanto e decepção.
- Nada aconteceu. Sofri em vão! Maldição! Maldição!
O opróbrio não se desprendera. Ela socou a si mesma e bateu a cabeça contra a pedra numa espécie de ataque de loucura. Descendo o dólmen, correu até a gruta de Melusina, a quem quase estrangulou em seu furor.
- Dê-me mais remédio...
Para salvar sua mísera existência, a feiticeira encontrou argumentos de alta diplomacia.
- Por que deseja livrar-se de seu fruto já que todo mundo viu seu pecado? Espere duas ou três luas... Espere a sua hora!... A criança acabará por sair, quer queira, quer não... E sem a sua morte. Volte aqui. Ajudá-la-ei... Depois fará o que quiser. Jogá-la-á no Vendée, do alto da Garganta do Gigante, em sacrifício, ou então na soleira de uma porta na cidade...
Angélica acabou por escutá-la.
- Não terei coragem de esperar por mais tempo - gemeu. Mas sabia que a feiticeira tinha razão.
Ela deixou a floresta e juntou-se aos dois irmãos do Duque de La Morinière, no Castelo de Ronçay, próximo a Bressuire.
Disse-lhes que o patriarca estava morto, mas que deviam prosseguir com sua obra. Era difícil interrogá-la sobre as circunstâncias da morte do grande senhor protestante. A atitude de Angélica gelava os mais ousados. Sua maternidade era agora aparente, e ela não procurava dissimulá-la. Havia nela algo que sustava os comentários. Os dois irmãos de La Morinière não deixaram de lhe testemunhar a maior deferência. Acreditavam que a criança era de Samuel de La Morinière.
Ela reencontrou também o Abade de Lesdiguière. Eles não fizeram alusão a nada, e o jovem eclesiástico retomou seu lugar na escolta que acompanhava a Rebelde do Poitou.
Com a primavera, um mesmo frémito sacudia a natureza e parecia espalhar-se entre os homens. O tempo dos combates estava próximo. As escaramuças multiplicavam-se, uma era de lutas se abria.
Uma mulher infatigável galopava pela província, seguida por seus fiéis.
Dizia-se que, onde ela se apresentasse, a vitória seria dada aos correligionários.
Em meados de julho ela quis retornar à região de Nieul e, chegando ao local, desapareceu por alguns dias.
Seus companheiros e seus serviçais procuraram-na de início e perguntaram a seu respeito; depois se calaram, com o mesmo súbito pensamento, compreendendo por. que ela se afastara.
Angustiados, agruparam-se em torno do fogo e aguardaram sua volta. Ela retornaria, pálida sem dúvida, e mudada, com o mesmo olhar enigmático no fundo das verdes pupilas. E não se ousaria olhar-lhe a cintura, subitamente adelgaçada.
Eles não abandonaram a clareira onde ela os havia deixado. Era preciso que os reencontrasse com facilidade. Infelizmente nada podiam fazer por ela. Nada podiam fazer por sua dor e por sua agonia no fundo dos bosques. Eram homens, e ela era uma mulher. Era bela, orgulhosa e de alta linhagem, mas fora atingida pela maldição das mulheres. Não ousavam pensar nela, sozinha na floresta, e sentiam-se envergonhados de ser machos.
CAPÍTULO XXI
Parto na floresta - Uma "gazoute"
Angélica havia galopado como uma furiosa até os confins da floresta de Nieul. Deixou a montaria num arrendamento onde havia uma mulher que a venerava e subiu para os bosques. Esfalfava-se, agarrandó-se às moitas para apressar a marcha. Sob as árvores, sentiu-se melhor, mas ainda tinha um longo caminho a percorrer. O medo a atenazava. Acreditou que jamais conseguiria descer o atalho da falésia que conduzia à morada de Melu-sina, e veio desmoronar como um animal ferido na areia da gruta.
A feiticeira ergueu-a e estendeu-a numa cama de fetos, e afagou-lhe os cabelos molhados de suor como uma velha mãe preocupada.
Fê-la beber um licor calmante e colocou-lhe emplastros que lhe trouxeram alívio. A criança veio logo âo mundo. Angélica ergueu-se, olhando horrorizada aquele ser nascido de um crime. Contava vê-lo desfigurado, enfermo; uma criança concebida em tais condições não podia ser sã. Assim, deu um grito de pavor:
- Oh! Melusina, olhe... É um monstro... Ele não tem sexo...
A feiticeira lançou-lhe um olhar assustado por trás das mechas brancas...
- Ora essa! É uma gazoute!...
Angélica jogou-se para trás, presa de incontrolável riso.
- Oh! como sou tola, não havia pensado nisso. Oh! não... uma gazoute!... Uma menina! Oh! não havia pensado nisso. Não estou habituada... só concebi meninos... Sim, três meninos... três filhos... E agora não os tenho mais. Nem um ao menos!... Uma filha!... Oh! é muito engraçado...
Seu riso transformou-se em incoercíveis soluços, castigando-a como uma tempestade. Quase de imediato, adormeceu em meio às lágrimas, num sono profundo, a cabeleira clara e espalhada dando-lhe um ar inocente.
Ao despertar, continuou a sentir a paz que experimentara no sono. Uma paz física, mas que lhe entorpecia a alma atormentada. Erguida num cotovelo, olhou para a entrada da gruta e viu então algo encantador: destacando-se no painel verde das folhagens, uma corça pastava, em companhia do filhote. As redondezas da gruta da feiticeira deviam ser-lhe familiares, pois ela não mostrava o frémito inquieto dos animais que sentem a proximidade dos humanos. Angélica permaneceu um longo momento a observá-los, retendo o fôlego, e quando os graciosos animais desapareceram deitou-se novamente com um suspiro. Ficava-se em paz junto a Melusina. Ela compreendia como um coração de mulher, magoado por golpes em demasia, podia encontrar na solidão dos bosques o único remédio, e ali refugiar-se definitivamente. Era assim que se fazia uma feiticeira da floresta.
Com a noite, um outro ruído despertou Angélica, e ela se levantou de imediato, tomada de ansiedade. Era um grito não animal, frágil e estrangulado.
- Ela tem sede! - disse a feiticeira, dirigindo-se ao fundo da gruta para buscar algo. Voltou com um pacote informe envolto num trapo vermelho, de onde escapava o grito.
Angélica olhou a feiticeira com pavor incrédulo.
— Como? Está viva!... Mas pensei que ela não havia gritado ao nascer.
— De fato. Mas agora grita. Tem sede... - E Melusina fez menção de estender a criança para o seio da jovem mãe.
Angélica recuou com todo o seu ser. Suas pupilas chamejaram.
- Não - gritou enfurecida -, não, isso nunca!... Ela tem meu sangue, mas não terá meu leite... Meu leite é para os filhos nobres, não para a bastarda de um soldado. Afaste-a daqui, Melusina!... Afaste-a da minha vista... Dá-lhe água, qualquer coisa para fazê-la calar-se, mas não a aproxime de mim... Amanhã levá-la-ei à aldeia...
Durante a noite, Angélica pôs-se a falar. Não estava completamente adormecida. Falava num semi-sono. Contava o que vira no Plessis, na noite em que os dragões a haviam estendido no chão e cortado a garganta de seu filho mais novo. O que vira ao atravessar a morada devastada com a criança morta junto ao peito. Visões inscritas para sempre em sua retina, e que não podia esquecer.
- Sim, sim, eu me lembro - resmungava a feiticeira, agachada junto ao fogo. - Quando a encontrei na clareira, no outono, vi o sinal da morte acima do menino louro...
No dia seguinte, ela se levantou. Tinha pressa em concluir a última etapa de sua libertação. Os gritos da criança deixavam-na louca.
Ela calçou os sapatos, prendeu os cabelos sob o fichu de cetim
reto e lançou o manto aos ombros.
- Dê-ma - disse com voz firme.
Melusina estendeu-lhe a recém-nascida, que esganiçava, embru-hada no trapo vermelho. Angélica apanhou-a e caminhou com passo firme para a entrada da caverna.
Melusina alcançou-a.;
— Escute-me, filha, ouça meus conselhos. Retinha-a pelo braço com a garra escura de sua mão.
— Ouça-me, filha... Não se deve fazê-la morrer.
— Não - disse Angélica com esforço -, não o farei, fique tranquila.
— Porque ela tem um sinal. Olhe.
Com insistência obrigou Angélica a abaixar os olhos e a descobrir no ombro minúsculo uma marca escura em forma de estrela.
- As crianças marcadas com esse sinal são protegidas pelas divindades dos astros...
Angélica, os lábios comprimidos, afastou-a para passar. Melusina agarrou-a de novo.
— Posso mesmo dizer-lhe o nome desse sinal tão raro... é o sinal de Netuno.
— Netuno?...
— O mar! - disse a feiticeira, enquanto seus olhos brilhavam com uma estranha fosforescência.
A jovem deu de ombros e se desprendeu. Apesar da fraqueza, chegou sem dificuldade ao cimo da colina, tal a vontade de acabar com aquilo. Atravessou a clareira da Pedra das Fadas e seguiu à direita, a fim de ganhar a saída da floresta de Nieul pela encruzilhada da lanterna dos mortos, conhecida como Lanterna Pomba, devido ao pássaro branco esculpido em seu cimo. A estrada que conduzia a Fontenay-le-Comte pas: sava não longe dali.
Após caminhar duas horas, Angélica teve que deter-se na cabana do tamanqueiro. Estava esgotada e sentia um suor de fraqueza nas fontes. O tamanqueiro talvez a reconhecesse, mas não importava, pois era surdo-mudo, e passava o ano todo ali, com o filho de dez anos, igualmente surdo-mudo.
Angélica pediu uma tigela de leite e uma micha de pão.
Molhou um pouco de miolo de pão no leite e passou-o por entre os lábios da criança, cujos gritos se acalmaram. Tomou também, com dificuldade, alguns goles de leite. Após ter repousado, partiu, e logo alcançou a estrada. Passou uma carreta, e ela pediu que o condutor a levasse. Ele não ia a Fontenay-le-Comte, mas disse que a deixaria a uma légua da cidade.
Próximo ao fim da viagem, a criança voltou a chorar.
— Dê-lhe de beber - disse o camponês, irritado.
— Não tenho leite - respondeu ela, secamente.
Ele deixou-a no lugar combinado, indicando-lhe com a ponta do chicote as muralhas e os campanários distantes da cidade.
Fontenay-le-Comte estava nas mãos dos correligionários. Mas Angélica não se preocupava com que reconhecessem na camponesa que vinha até a cidade para ali abandonar o filho aquela a quem chamavam a Rebelde do Poitou, e cujas decisões tinham sido lei junto aos grandes burgueses de Fontenay, quando ela ali fora no Natal. Esperaria a noite para penetrar no local.
A cabeça redonda da recém-nascida pesava-lhe no braço como chumbo. Angélica avançava com dificuldade. Tinha os nervos à flor da pele, atormentada pelo desejo de interromper aquele choro lancinante, aquela vida. Pelo desejo de suprimir, de apagar tudo o que acontecera. Ela se deteve, assustada consigo mesma.
- Deveria rezar - disse consigo.
Mas já não podia mais. Deus era um ser desaparecido, e ela se perguntava, por vezes, se não O odiava, a Ele também.
Ela retomou a caminhada para a cidade azulada pelo crepúsculo.
Ao pé das muralhas, hesitou longo tempo, espreitando como um animal do bosque, assustado com a animação citadina.
Quando viu as pessoas da ronda preparando-se para fechar as portas, decidiu-se e deslizou para a cidade pela poterna da Torre do Trigo. Nas ruelas estreitas, os habitantes ainda se achavam entregues a suas ocupações. Respirava-se com prazer o ar perfumado da bela primavera, que tão rápido chegara, como recompensa por tantos sacrifícios. As pessoas não mostravam pressa em voltar a casa e interpelavam-se alegremente à soleira das lojas.
Angélica sabia que o Bureau des Enfants Assistes localizava-se na Place du Pilori, próximo ao Hotel de Ville. O número de crianças assistidas era tão grande que os conventos não bastavam para recolhê-las, e no tempo do Sr. Vicente obras civis haviam sido realizadas. A Couche de Fontenay era um antigo entreposto de grãos da Idade Média transformado em-orfanato. A fachada de vigotas aparentes era ornamentada comestátuas de madeira. Angélica não ousou aproximar-se e afastou-se, embaraçada por atrair os olhares das comadres devido aos gritos da criança. Ela vagou pelas ruelas vizinhas, aguardando a noite profunda e deserta. Com isso descobriu na parte posterior do edifício aquilo que procurava: a "roda".
A caridade pública colocara-a numa ruela escura, onde não havia circulação, para poupar a vergonha das infelizes que se aproximassem. Não.havia outra luz além de uma pequena lamparina a óleo ao lado de uma estatueta do Menino Jesus, acima da roda. No interior havia um pouco de palha. Angélica ali depôs a criança. Depois puxou a corrente de um sino colocado à direita, o qual ressoou demoradamente.
Ela recuou e conservou-se do outro lado da ruela, escondida pelas trevas, tremendo como uma vara. Parecia-lhe que os gritos da criança alvoroçariam toda a vizinhança.
Por fim, algo rangeu atrás do batente. A roda pôs-se em movimento e pouco a pouco os vagidos do recém-nascido tornaram-se surdos e se extinguiram. Angélica abandonou-se contra a parede. Estava a ponto de desfalecer. Experimentava sobretudo um alívio inexprimível, mas também uma angústia imensa que a transportava para muitos anos atrás. Esse episódio, de sua vida lembrara-Ihe de modo pungente a atmosfera sórdida do Pátio dos Milagres, que ela jurara nunca mais reviver. Não era a vida senão uma ronda infernal que o reconduz de um ponto ao outro?
Ela deixou a ruela com passo lento, esforçando-se por endireitar a cabeça. Era preciso esquecer. Era preciso escapar à solidão das mulheres martirizadas pelo pecado nas ruas da cidade, escapar ao anonimato com que ele a cobria.
Ela açulava o próprio orgulho: "Você é Angélica du Plessis-Bellière, é aquela que mantém a província em revolta contra o rei".
CAPITULO XXII
Santo Honório intervém
A Capela Saint-Honoré, edificada para trazer a tranquilidade aos viajantes, era á ifhagem dos lugares que protegia: escura como uma caverna, maciça como um carvalho, revestida de uma exuberância animal è silvestre pela movimentação das estátuas que ornavam a fachada, onde se viam, sob os campanários eriçados com moitas de espinhos, personagens de longas barbas e olhos de caramujo estrangulando monstros apocalípticos.
Ficava no alto de uma longa estrada, deserta e inquietante, por entre a vegetação baixa, nos confins de Gâtine e do bocage.
Foi ali que Angélica reuniu os principais chefes conjurados, para acertar as diretivas da campanha de verão. Mais uma vez conseguiu convencer católicos e protestantes a calar as querelas dogmáticas em nome de um bem mais alto. A vitória só poderia ser obtida com o entendimento.
Permaneceram três dias no alto de Gâtine, acendendo fogueiras à noite, ao redor da capela, e dormindo sob os carvalhos, no calor crepitante. Santo Honório, carregando a cabeça nas mãos, parecia abençoá-los, e os católicos viam em sua proteção augúrios felizes para seus combates.
Santo Honório fora um bravo mercad_or_ de bois do século XIII, assassinado por ladrões. O Berri, de onde era originário, e o Poitou, onde lhe haviam cortado a garganta, disputaram por muito tempo suas relíquias. O Poitou conseguira ficar com a cabeça do santo mercador.
Os homens mergulharam as armas na água benta da fonte, que manava de uma rocha para uma pia de pedra.
Angélica ali vinha sub-repticiamente molhar o véu para refrescar a fronte abrasada. A febre martelava-lhe as fontes e dava-lhe ao olhar um brilho anormal. Apesar da medicação da feiticeira, recuperava-se mal do parto clandestino.
Logo que voltou de Fontenay-le-Comte, ela quis partir para Gâtine. Queria negar o que sucedera, mas a natureza lá estava para recordar-lhe a maldição de Eva com que Deus marcara seu corpo.
Sofria sobretudo i noite. No abandono do sono, a superexci-tação da guerra e da vingança deixava-a, e ela reencontrava num plano atrás de seu ser um mal-estar desesperador, voltando a ouvir os vagidos de uma criança recém-nascida.
Uma noite, Santo Honório apareceu-lhe carregando a cabeça nas mãos: "Que fez você da criança?", perguntou. "Vá procurá-la antes que morra..."
Angélica despertou em meio às urzes. Santo Honório continuava no portal da capela. A aurora despertava. Fazia frio, e no entanto ela estava inundada de suor. Tinha o corpo inteiro dolorido. Ela se levantou, indo até a fonte para beber e refrescar-se:
- Quando meu leite secar, deixarei de pensar na criança - disse consigo.
Mais para o meio da manhã, os vigias anunciaram uma equipagem que subia a estrada em ziguezague. Até o momento tinham visto passar somente um cavaleiro, mercador sem dúvida, bastante assustado com o local deserto, e que se pusera a galope assim que distinguira entre os troncos silhuetas suspeitas.
Os correligionários dispersaram-se sob as árvores, mas os vestígios do acampamento eram demasiado evidentes, e Angélica enviou Martin Genêt e alguns camponeses para deter a equipagem assim que chegasse ao cimo da encosta. Era preciso acautelar-se com os viajantes que, ao passar de uma região a outra, poderiam não ter escrúpulos em assinalar, em troca de ouro, os movimentos dos rebeldes aos soldados reais acantonados nas redondezas.
Ela ouviu as gargalhadas dos homens diante do carro parado, e como a discussão se prolongasse aproximou-se para colher informações.
Era uma lastimável carroça, puxada por um não menos mísero rocim. O cocheiro, um velho homem desdentado, tremia tanto de medo que não podia pronunciar uma só palavra.
Sob o toldo esfarrapado, descobriram-se, em meio a um odor fétido, três gordas mulheres, vermelhas e suadas, e um amontoado de bebes àgitando-se ria palha suja como uma ninhada de coelhos.
— Senhores, não nos façam mal - suplicavam as mulheres, ajoelhadas.
— Para onde estão indo?
— Para Poitiers... Quisemos passar por Párthenay porque nos disseram que havia soldados por Saint-Maixant. Então nós, pobres mulheres, ficamos com medo daqueles lascivos e quisemos dar a volta por uma estrada, tranquila... sé soubéssemos...
— De onde vêm?
— De Fontenay-le-Comte.
E tranquilizada ao perceber entre eles uma mulher, a mais gorda explicou, falante:
— Somos as amas-de-leite da Couche de Fontenay, o Bureau des Enfants Assistes, e fomos enviadas para conduzir todos estes a Poitiers, pois há um excesso deles em nosso estabelecimento. Somos pessoas dignas, senhora... juramentadas... sim, senhora...
— Deixerrio-las passar - disse Malbrant Golpe de Espada -, elas não têm, senão seu leite para dar e, por minha fé, a se acreditar na petizáda, já não o devem ter sobrando para todo mundo.
— Pode mesmo dizê-lo, bom senhor - exclamou a ama gargalhando. - Eles não têm imaginação, os que colocam três para vinte fedelhos. Pelo menos a metade deles terá que ser alimentada com miolo...
Ela apontou uma tigela com pão mergulhado em água e vinho.
- Sem contar os que ficarão na estrada. Ali já está um, quase morto. Precisamos parar nâ próxima aldeia para que o cura o enterre.
Ela colocou-lhes sob os olhos uma espécie de coelho esfolado, inerte, embrulhado num trapo vermelho.
- Veja se não é a própria miséria," meus bons senhores!
Eles contraíram o rosto com repugnância.
- Está bem! Podem ir. Mas saibam calar-se quando estiverem na planície. Não falem sobre o que viram na montanha.
Elas se confundiram em chorosas promessas.
— Ao chicote, cocheiro - gritou Malbrant, dando uma palmada no flanco ossudo do pobre cavalo.
— Não, esperem.
O sangue fugira do rosto de Angélica. Desde o instante em "que a mulher dissera: "Estamos vindo de Fontenay-le-Comte", ela soubera por que Santo Honório aparecera-lhe naquela noite. Mas estava como que paralisada. Seus movimentos tinham a lentidão dos pesadelos.
Inclinou-se, no entanto, e apanhou a criança que a ama lhe adiantara, envolta no farrapo vermelho.
— Vão-se, agora.
— Que quer fazer com isso, minha bela? Se lhe digo que está quase morta.
— Vão-se - repetiu com um olhar tão duro que as boas mulheres recuaram e ficaram quietas.
Angélica afastou-se, muito tesa. Próximo à fonte, as pernas traíram-na e ela teve que sentar-se no rebordo de pedra.
A mão de alguém pousou em seu ombro. Duas pupilas escuras, cheias de ardente gravidade, procuravam as suas. O Abade de Lesdiguière a havia seguido. Inclinava-se para ela, sustentava-a, envolvia-a com sua viva compaixão, tentando ler-lhe nos olhos.
- É sua filha, não é mesmo?
Ela fez um sinal imperceptível, transtornado mas afirmativo.
— Tem certeza?
— Reconheci-a pelo sinal no ombro... e por este trapo vermelho.
— Antes de... abandoná-la, a senhora a batizou?
— Não.
— Tê-lo-ão feito no orfanato?... Há tanta negligência e corações ímpios em nossos dias. E preciso batizá-la, senhora.
— Ela já está morta...
— Ainda não. Como quer chamá-la?
- Que me importa?
Ele olhou em torno.
- Santo Honório a devolveu à senhora. Chamá-la-emos Honorina.
Ele mergulhou a mão na fonte, para apanhar a água, que fez correr pela fronte da criança, enquanto murmurava as palavras e as preces rituais. E porque tais palavras dirigiam-se à criatura miserável que ela concebera na infâmia, elas a atingiram com surda violência, e Angélica ficou petrificada.
- Você é uma luz, Honorina, neste mundo de trevas onde foi chamada para viver... que seus olhos se abram a tudo o que é belo, a tudo o que é bom......
- Não, não - gritou -, não sou sua m|e. Não podem pedir-me tal coisa...
Olhava com desespero o Abade de Lesdiguière inclinado sobre ela, lendo a condenação naquele olhar puro.
— Não despreze a vida conferida -pelo Criador.
— Não me peça isso.
— Somente a senhora pode salvá-la. E sua mãe.
— Não, isso não.
Ela via sua própria dor refletir-se nos olhos castanhos que a adjuravam.
- Ah! Deus! - exclamou o abade. - Por que criou o mundo?
Ele correu a lançar-se a soleira da capela, e ela o ouviu rezar em voz alta, a fronte, contra a porta.
Nos braços de Angélica, a criança fez um movimento imperceptível. Então ela agarrou-a junto ao peito.
CAPITULO XXIII
Angélica suplica ao Abade de Lesdiguière que a deixe
Os cavalos bufavam sob as árvores, à saída do desfiladeiro. As folhas mortas estalavam sob seus cascos. Eles repeliam aquela maré leve e dourada que inundava a ravina como uma onda. Um céu azul-esverdeado se avistava por entre os galhos desfolhados. As últimas folhas tombavam, em lentos movimentos evanescentes.
Angélica colheu sobre a manta uma estrela alaranjada que acabava de roçar por ela e contemplou, sonhadora, a pequena obra-prima da natureza, de elegantes nervuras. Mais um outono. Um novo inverno a anunciar-se. A tepidez do sol não iludia. Os ventos ásperos se adivinhavam na distância enevoada cujos ouros e amarelos empalideciam, cedendo lugar aos malva e cinza de novembro.
Ela voltou a atenção para o Abade de Lesdiguière, que cavalgava a seu lado.
- Já se viu coisa mais ridícula, abade? Um chefe de guerra transformado em ama-de-leite, e o confessor das tropas assumindo o papel de embaladeira...
O jovem deu uma gargalhada e lançou-lhe um olhar apaixonado:
- Que importa! Nem por isso a senhora deixou de conduzir suas tropas à vitória. De modo que podemos acreditar que a criança seja nosso talismã.
Ele contemplou com orgulho Honorina, adormecida em seu braço, abrigada no manto negro de eclesiástico. Fora esse o único berço de Honorina. O arção de um cavalo e braços de homens que a passavam um ao outro, até a etapa, quando a mãe se afastava para alimentá-la. Ao lhe dar seu leite, Angélica devolvera-lhe a vida. Sua consciência ficara em paz. O sacrifício não era por isso menos cruel, e a humilhação era cada vez mais amarga.
Ela deixava, pois, às pessoas de seu' séquito o cuidado de carregar o incomodo animalzinho de quem a sorte não quisera livrá-la. Do cavalo do Abade de Lesdiguière ao de Malbrant Golpe de Espada, passando pelas montarias de Flipot ou dò velho António, Honorina experimentava todos os trotes e todos os galopes. Nem mesmo o bravo e gordo Barão du Croissec deixava de lhe oferecer, per vezes, o conforto de seu amplo regaço. Mas, em compensação, onde quer que se achasse, com o cair da noite punha-se a chorar e só se acalmava nos braços de Angélica. Forçoso era então à jovem mantê-la junto de si.
- É ridículo - repetiu ela. - Pergunto-me como pude, em tais circunstâncias, continuar a me fazer obedecer por nossos partidários.
- Sua ascendência sobre todos é tão grande, senhora! E os su cessos obtidos não conseguiram senão confirmar a confiança que têm em sua pessoa. O semblante de Angélica ensombrou-se:
— Os sucessos? A vitória? Não devemos felicitar-nos em demasia. Nada está ainda resolvido. As tropas reais não puderam forçar a defesa do Poitou, mas continuamos cercados. E o inverno se anuncia. A maior parte da terra está inculta, as colheitas são insuficientes. A fome trará o desalento. É com isso que o rei conta.
— Faça-os compreender que, se pudermos esperar até o próximo verão, nossa causa estará salva. O rei tampouco pode manter em seu flanco uma província inteira em rebelião. A marcha económica do país está subvertida. Ser-lhe-á preciso negociar ou dominar a rebelião pelo sangue. Ora, estamos protegidos pelas florestas. Os soldados do rei não ousam nela penetrar...
— Você fala em estratégia, meu pequeno abade, e isso me ím-, pressiona um pouco. Que diriam seus superiores eclesiásticos se o ouvissem?
- Lembrar-se-iam de que tenho nas veias o sangue do velho Lesdiguière, o grande huguenote do Delfinado que esteve durante tanto tempo em revolta contra a autoridade real. Malgrado a conversão de minha família, meu nome não deixava de inspirar desconfiança a meus mestres quando estava no seminário. Quem sabe não estivessem certos?
Ele voltou a rir alegremente. Os cabelos dançavam-lhe com a brisa nas faces crestadas. O manto, o chapéu com fivelas de prata, o peitilho, estavam gastos devido à poeira e- às intempéries.
Seu cavalo, assustado com uma raiz de árvore, deu um salto e adiantou-se. Angélica considerou-o um momento, depois alcançou-o.
- Caro abade - disse gravemente -, escute-me. Não deve ficar comigo. Faço mal em arrastá-lo a uma aventura que não quadra com sua vocação, nem com sua linhagem. Volte para os seus. O bispo de Condom o protegia e tinha em grande conta suas qualidades. Encontrará para você um cargo mais elevado na corte. A não ser que o Sr. de La Force o retome a seu serviço. Devem ignorar que me seguiu... Mas você não falará...
O jovem transtornou-se sob a violência da emoção.
— Está me expulsando, senhora?
— Não, minha criança... E você bem o sabe. Mas esta existência é culposa... e seu lugar não é entre os condenados.
— Por que não o seria? - murmurou. - Senhora, se seus escrúpulos a persuadiram de que o que me retém a seu lado é somente meu devotamento a sua pessoaj gostaria de tranquilizá-la. Ainda que minha vida lhe seja... dedicada, há também outra coisa. Sinto... sinto que é a senhora quem tem razão. Também eu vivi na corte. Como hoje não a escutariam os que têm fome e sede de justiça? E eu me recordo e meu coração me repete que é a senhora quem tem razão.
Angélica cerrou os dentes, e seus dedos crisparam-se nas rédeas da montaria.
- Não busque desculpas para os meus atos - disse com rispidez. - Nada existe em mim de perdoável. Sou apenas uma mu
lher rancorosa e miserável. E que não vê saída para o seu rancor...
Ele ergueu para ela os grandes olhos, cheios de terror.
— Não teme a danaçâo?
— Tais palavras não têm mais sentido para mim. Sei apenas de uma coisa: sem o grande fogo de rancor que trago no fundo do coração, não poderia suportar a vida. Pensar em combates e na derrota dos inimigos é a única coisa que me encoraja a sobreviver e, mesmo, que me alegra. E diante da expressão aflita do abade:
- Por que horrorizar-se com meu destino, abade? Estar entre os lambris de Versalhes e as honrarias era o que não me convinha. Sempre fui uma criatura indócil e rústica, votada aos pés descalços e aos espinheiros do caminho. Quando eu era criança, meu irmão Gontran, aquele a quem o rei enforcou, fez o meu retrato colocando-me como chefe de salteadores. Ele sempre teve tais presciências... Já vivi entre os bandidos e os ladrões de Paris. Nunca ouviu nosso Flipot rememorar os tempos em que
me encontrava com o Grande Coesré, rei dos tunantes? Corri todas as estradas, todos os caminhos, conheci todas as privações, todas as prisões... Arrastei-me de joelhos, esfolada, em andrajos, pelas estradas do Riff.. Assim é meu destino, e não me agrada permanecer debaixo de um teto. Nada-me salvará, agora o sei... Não fique triste, meu pequeno abade. E deixe-me...
E acrescentou baixinho:
- Trago a infelicidade aos que me amam...
Ele não respondeu. Ela o viu bater os longos cílios precipitadamente na curva do perfil, os lábios tremendo.
Os cavalos desceram um caminho pedregoso, no flanco de uma colina selvagem.
O castelo dos Gordon de La Grange acabava de surgir, flanqueado por quatro torres, no escrínio acastanhado de um parque.
Os viajantes não precisaram dar o sinal de chegada. Era impossível uma emboscada naquela habitação afastada, perdida no fundo do bocage.
Ali era possível esquecer as zonas devastadas pela guerra, as aldeias incendiadas, os ferozes combates pelas charnecas, ou as emboscadas, ainda mais temíveis, no fundo das gargantas estreitas. Combates sem perdão. As aldeias a caminho da província haviam sido abandonadas. No interior, os camponeses haviam passado o verão com uma das mãos no cabo do arado, e a outra no mosquete. Para o fim de setembro, um regimento das tropas reais avançara bastante no coração da região, devastando tudo à sua passagem. Os habitantes pareciam evanescer-se diante dele. Não encontrou muita gente para enforcar, mas queimou tudo, aldeotas, burgos, colheitas, e já se falava em Versalhes na rendição iminente dos campônios aterrorizados quando a tropa, chegando aos arredores de Pouzauges, pareceu escamotéar-se. Não chegava mais nenhuma notícia. A região inteira fechara-se sobre os soldados como enorme tenaz.
Alguns sobreviventes, que de bosque em bosque conseguiram ganhar o Loire e atravessá-lo, falaram com horror das sombras que os haviam atacado à noite, das foices luzidias que trabalhavam para a morte, dos corpos que se precipitavam dos galhos no momento mais inesperado, enquanto os facões afiados plantavam-se entre as omoplatas antes que eles tivessem tempo de dar um grito. Haviam sido todos dizimados, apesar das armas e dos oficiais. O Poitou os devorara um atrás do outro, inexoravelmente.
A consternação passou a reinar. Após a desastrosa campanha, as tropas e o alto comando permaneceram na expectativa. Com a chegada do inverno, mostrava-se vão encorajar os militares a tentar outras expedições. E cada qual voltou a seu acantonamento.
Angélica permaneceu três meses no Castelo de La Grange. Ela ali recebeu alguns chefes dos conjurados, bem como burgomes1 três, que vinham confiar-lhe suas ansiedades. Cada qual estava reduzido ao mínimo para viver. Com o comércio paralisado, já começavam a murmurar. Por felicidade, o inverno não foi rigoroso em demasia.
Em meados de março, Angélica retomou as cavalgadas pela província. Parara de amamentar a filha e desejava deixá-la no castelo com uma criada de confiança que a ela se afeiçoara. Mas o abade dissuadiu-a.
— Não a abandone. Longe da senhora, ela morrerá.
— Virei buscá-la mais tarde, quando os acontecimentos...
— Não - disse ele, olhando-a nos olhos -, não virá buscá-la.
— É vida para uma criança tão nova arrastar-se desse modo por todo lado?
— Essa vida lhe convém porque a senhora, sua mãe, está presente...
Envolveu, ele próprio, Honorina em uma coberta quente e, apertando-a ao peito com ciúme, subiu na cela.
Foi por essa época que Angélica sentiu a dúvida insinuar-se ao contemplar a filha, como o temor de uma ameaça não-formulada, o medo de uma suspeita que aos poucos se tornava certeza.
Eles se encontravam em uma zona perigosa, na qual as tropas reais por vezes se aventuravam. Para não cair numa armadilha, Angélica e sua escolta refugiavam-se nas grutas que perfuram com mil esconderijos as falésias do vale do Sèvres. As camponesas das aldeias vizinhas tinham por habito ali reunir-se, ao entardecer, para fiar e tricotar. Buscavam tais locais devido à temperatura amena que dispensava de se acender o fogo. Após o jantar, para eles se dirigiam, a roca ao lado, munida de estopa e de cânhamo, e com um pequeno braseiro para os pés, bem abastecido.
Indicaram a.Angélica os mais espaçosos desses quartos naturais, onde o pequeno grupo repousava ao abrigo do frescor penetrante das primeiras noites de primavera.
Plantada nas paredes da gruta, uma "lioube" munida de uma vela primitiva, feita de um talo de verbasco impregnado de óleo de noz, oferecia uma claridade tranquilizante.
Angélica olhava a criança, que rolava no chão e tentava arrastar-se. Estava com dez meses e parecia robusta. Seria a luz avermelhada do archote que lhe dava aos cabelos nascentes, de curtos cachos, um tal-refléxo de cobre?... Ela possuía, em contraste, olhos negros, estreitos; que s.e erguiam para as fontes quando ria. As maçãs do rosto pareciam então encobri-los completamente, e sua expressão... sua expressão não parecia desconhecida a Angélica, lembrava-lhe uma outra fisionomia, mais caricatural, obscena.
Ela recuou com tanta violência que seu crânio chocou-se contra a parede rochosa e ela ficou entontecida.
Montadour! Sua carantonha de porco ruivo!...
O suor porejou-lhe as fontes. Não era possível...
O ódio que uma mãe pode ter pelo filho bastardo é com muita frequência o reflexo do ódio inspirado por aquele que a engendrou. Para Angélica, colocar um nome no rosto do criminoso era pior que o desconhecido. Ela teria amado o filho de Colin Paturel. Mas o pensamento de partilhar, ela, Angélica de Sancé, a responsabilidade de um ser humano com um soldado da pior espécie dava-lhe a impressão de uma cumplicidade viscosa, repugnante, de um aviltamento ao qual a sorte queria constrangê-la. Jamais poderia consentir nisso. A vida não era senão uma comédia monstruosa, detestável, conduzida por um deus cego e sádico. O Abade de Lesdiguière acorreu ao seu grito.
- Afaste-a - disse Angélica, ofegante -, afaste-a de minha vista. Seria capaz de matá-la...
A meia-noite, os ecos da caverna ainda ressoavam com o choro de Honorina. Estendida no leito de feno, Angélica revirava-se exasperada:
- Naturalmente, "eles" se esqueceram de dar-lhe sua folha de feto.
Honorina não conseguia adormecer sem sua folha de feto, seu brinquedo preferido, cujos recortes pareciam encantá-la.
Por fim, Angélica não mais se conteve. Ganhou a sala principal, onde, reunidos ao redor do fogo, o abade, o escudeiro, os criados e o barão haviam esgotado o seu repertório. Com um esmagador olhar de desprezo, tomou-lhes o bebe, que se calou por milagre, e levou-o para seu compartimento na caverna. Naturalmente a pequena estava molhada, gelada, o nariz escorrendo. Angélica friccionou-a com a mão estendida, envolveu-a em seu xale de lã e aninhou-a no feno até os olhos. Depois saiu para a orla do bosque, colhendo um feto, ao qual arrancou alguns fo-líolos na parte baixa do talo. Honorina apoderou-se dele com mão autoritária e olhou, extasiada, a haste aveludada, que proje-tava nas paredes da gruta sombras imensas de animal pré-histórico. Acalmada, levou o polegar à boca e lançou para Angélica, com o canto dos olhinhos puxados, um olhar de intensa satisfação.
"Você me conhece", parecia dizer, "com você estou tranquila."
- Sim, eu a conheço... - murmurou Angélica - Sim, nada podemos contra isso... nem uma nem a outra, não é mesmo?
Apoiada no cotovelo, a face nas mãos, examinava-a com aguda atenção. A beatitude espalhada pelos traços da criança aliviava a opressão dolorosa em seu coração.
Nem passado nem futuro. A hora silenciosa no seio da terra. E mais do que palavras, vinham-lhe imagens, como sombras doces e fugitivas, para tranquilizá-la.
- Você não é filha de ninguém... É a garotinha da floresta... somente a garotinha da floresta. Cabelos vermelhos como a folha do outono... Pupilas negras como a amora das moitas... Pele branca... nacarada, como a areia das grutas... é a encarnação dos bosques... um fogo-fátuo... um duende... apenas isso... não é filha de ninguém... Durma... durma em paz...
CAPITULO XXIV
O amor do jovem eclesiástico - Escaramuça com as tropas reais
O Abade de Lesdiguière saiu do bosque, as mãos cheias de cogumelos.
- Guloseimas para você, Honorina.
Ela caminhou para ele vacilando. Completara um ano no verão, enquanto os soldados do rei cercavam o arrendamento onde Angélica e os seus se haviam refugiado.
Encerrados como lebres na toca, estavam a ponto de render-se, quando Hugo de La Morinière e seus protestantes os libertaram. Angélica só pudera sair da propriedade passando por cima de corpos. Honorina tossia com a fumaça. O cheiro da pólvora e dos incêndios fazia parte de sua existência assim como o estampido das detonações, o sangue e o suor no mais profundo dos bosques.
Ela dera os primeiros passos em Parthenay, no dia em que o sino tocava a rebate na pequena cidade assediada. Os atacantes haviam sido repelidos, mas a cidade, esgotada por privações em demasia, permanecia exangue. Angélica não encontrara Honorina no compartimento em que a deixara, sentada em uma cadeira. Ela estava na rua. Fora assim que souberam que já andava e que até descia escadas.
Ela dissera a primeira palavra no dia em que Lancelote de La Morinière morrera durante violento combate nas charnecas de Machecoul... E a primeira palavra de Honorina atingira Angélica no coração como a bala de um mosquete. Ela dissera "sangue" ao descobrir uma papoula. E franzia comicamente o nariz com caretas de sofrimento, como vira os homens fazerem.
Repetia com orgulho "sangue... sangue", mostrando a flor. Aquele fora o leitmotiv da noite. Angélica pensou que iria enlouquecer.
Com a rudeza dos combates de verão, o cansaço a atingia e o medo nela se insinuara. O rei não abandonava a luta, mas o Poitou oscilava. Hugo de La íftoriniè-re, privado de seus dois irmãos, era como que um corpo serh cabeça. Jamais fora capaz de pensar por si mesmo. Com o desaparecimento de Lancelote, o qual lhe insuflava sua fé em Angélica, sua desconfiança puritana para com as mulheres voltava à tona. E Samuel não mais ali estava para fortaleeer-lhe"o orgulho de vassalo que se erguia contra o rei. O fim do verão permitiria que se evitassem desastres iminentes. Logrado por uma resistência tão encarniçada, o comando militar perguntava-se que medidas tomar. O rei era partidário de deixar que os rebeldes se cansassem e se desagregassem pela-fome, pela miséria "e pela falta de munições. Os ministros queriam o emprego de forças esmagadoras, com. o próprio rei à testa das tropas, e uma repressão tão sangrenta que pudesse servir de exemplo a todas as outras províncias. Não se devia esquecer que a Aquitania^a Provença, a Bretanha se agitavam, nem que jamais se estava seguro das últimas Gonquistas: Picardia, Roussil-lon, etc...
Angélica ignorava tais hesitações. Poderia suspeitá-lo, mas era-lhe difícil convencer sem provas as tropas combalidas. No entanto, era a única que ainda lembrava não existir escolha entre a luta e a servidão. Assim, após as convulsões do verão na agitação dos dias tórridos, ela se refugiara no fundo das gargantas de Mervent com o Sr. de La Grange e seus homens. Acamparam no fundo da floresta de Nieul. Eles recobravam forças, pensavam os ferimentos...
O Abade de Lesdiguière recolhera alguns gravetos e, acendendo-os com um isqueiro de pedra, cozinhava para Honorina os cogumelos que acabara de descobrir. O fuzil, que não mais o deixava, achava-se sobre o capim, e ele recomendou que a criança não tocasse nele. Ela fez uma mímica que provava que há longo tempo aprendera a desconfiar daquele objeto fumegante e detonante.
Sentada a alguns passos sobre um rochedo coberto de musgo, Angélica os observava.
O abade vestia um grosseiro colete de pele de carneiro. Substituíra o chapéu redondo com fivela de prata pelo chapéu imenso e desbotado dos camponeses da região. Não tinha mais o peitilho, e o colarinho da camisa esfarrapada estava aberto sobre seu peito jovem e queimado de sol, onde cintilava o ouro de uma cruz, presa a um pedaço de fita descolorida. Assim, do pequeno preceptor civilizado, refinado até a ponta das unhas, ela fizera aquele homem dos bosques! Não poderia compará-lo ao adolescente de Versalhes ou de Saint-Cloud, que suportava com urba-nidade tocante os sarcasmos das mulheres zombeteiras e suas olhadelas provocantes, e que curvava com tanta graça a perna para saudar a todos aqueles grandes senhores de costumes corrompidos. Seus ombros se haviam alargado e percebia-se melhor seu talhe desenvolvido. Ele perdera toda a fragilidade. Permanecia apenas, na fisionomia crestada, seu doce olhar de corça. Que idade poderia ter? Vinte anos? Vinte e dois?...
Chamou-o de súbito, e ele veio até ela com a solicitude habitual, cheio de deferência, que recriava para ela o luxo de sua casa de outrora, com seus numerosos serviçais.
— Senhora?...
— Senhor abade, supliquei-lhe muitas vezes que partisse, que nos deixasse. Agora é preciso fazê-lo. Estamos acuados. Não sei para que catástrofe caminhamos. Retorne para junto dos seus... Suplico-lhe, faça-o por mim. Não suportaria ser a responsável por sua queda...
Como em todas as vezes que abordara o assunto, ele empalideceu e levou a mão ao coração.
— Isso me é impossível, senhora. Não posso viver longe da senhora, separado da senhora...
— Mas por quê?
Ele fixou-a com ardor. Seu olhar era mais eloquente que quaisquer palavras. Ela não se sentiu magoada com ele, apenas comovida até as lágrimas. Desviou os olhos, angustiada.
- Não, minha cara criança - suplicou baixinho -, não, não deve... eu sou...
Ele deteve-a com um gesto.
— Sei quem a senhora é... É aquela a quem adoro... aquela a quem amo com um amor que me fez compreender como é pos-' sível... esquecer Deus pelos lábios de uma mulher.
— Não fale desse modo!
E como ela lhe estendesse a mão,- ele tomou-a na sua. Ela não ousou retirá-la, tanto a surpreendia aquela mão por seu frescor e virilidade.
— Deixe-me fazer-lhe... uma única vez... uma confissão - disse com voz sufocada. - A senhora encheu minha vida de um sentimento terrestre e vivificante, que não posso lamentar. Sua presença encantou meu ser, e cada uma de suas palavras...
— Você conhece, no entanto, minhas faltas...
— Tornaram-jia mais querida a meus olhos, porque mais fraca, mais humana. Ah! quisera... tomá-la em meus braços e defendê-la de seus inimigos e de si mesma... Protegê-la com toda a minha força...
A força que ele reivindicava dele emanava, ali tenso na sombra do crepúsculo, com a imperiosa violência da juventude. E, pela primeira vez desde longos meses, ela se mostrou sensível a essa corrente de vida, densa, penetrante, que parecia querer atraí-la e arrancá-la ao atoleiro de seu desespero.
Sabia que ele se afastava à noite, pelos bosques, para cair de joelhos e rezar demoradamente. Mas por quanto tempo o amor a Deus e aquele que votara a uma mulher maldita poderiam partilhar seu coração?
Incapaz de falar, Angélica retirou a mão e aconchegou frioren-tamente o manto.
— Nada tema de minha parte - disse ele com suavidade. - Tê-la-ia adorado... se a senhora se dignasse a lançar-me um olhar. A um sinal seu, ter-me-ia perdido em seu regaço... com volup-tuosidade. Que minhas palavras não a ofendam, senhora. Sou seu muito humilde servidor... Sei que a barreira que me separa da senhora representa o mais intransponível dos obstáculos.
— Sua vocação?
— Não... a senhora mesma. Esse horror que tem aos homens e a seu desejo desde que... Tal obstáculo, não seria eu, em minha ignorância, quem poderia vencê-lo...
— Cale-se... Não sabe o que diz...
- De fato...
A dor conferia-lhe a máscara de um homem de traços endurecidos.
- Eu sei... Destruíram-na... com males em demasia. E a doença de sua alma comunicou-se a seu corpo... Se os fatos tivessem sido outros, arrastar-me-ia de joelhos... para suplicar-lhe que me amasse... Deixe-me dizê-lo, suplico-lhe. Já faz muitos anos que a sigo a toda parte, e sua presença tornou-se-me mais indispensável que o ar que respiro... Se não se tivesse tornado tão... vulnerável, as coisas teriam sido diferentes...
Ele se calou.
- Mas não são diferentes - retomou baixinho. - Então, assim é melhor. Devido a esse obstáculo, vejo-me obrigado a permanecer do lado de Deus. Não serei seu amante... Esse sonho...
Ele pareceu fazer um esforço sobre-humano.
- Ao menos a salvarei...
Seus olhos magníficos recobravam sua luminosidade ideal:
- Eu a salvarei... farei mais pela senhora do que todos aqueles que a tiveram nos braços. Devolver-lhe-ei tudo o que perdeu: a alma, o coração, a feminilidade, tudo o que lhe tomaram... Por ora, nada posso fazer, mas morrerei pela senhora, e nesse dia, quando houver penetrado na luz de Deus, obterei o poder de salvá-la. No dia de minha morte... Ah! que venha logo, esse dia...
Ele juntou as mãos no peito com fervor:
- Ah! Morte! Apresse-se... para que me permita libertá-la!...
Eles não escutaram o chamado da coruja. Subitamente surgiu na entrada da garganta um cavaleiro com grande gola de rendas, penacho ao vento, e, atrás dele, homens de casaco vermelho, armados de lanças.
Angélica deu um salto na direção de Honorina. O abade apanhou o mosquete e cobriu-lhe a retirada, enquanto ela se precipitava para as árvores e se içava no flanco da falésia, a criança nas costas, agarrada ao pescoço. A queda de fragmentos de rocha revelava a fuga dos partidários, que se dispersavam o mais alto possível pela encosta de húmus escorregadia.
O oficial foi o primeiro a se recuperar da surpresa:
- Cá estão - gritou. - Caímos no antro desses bandidos! Aos lobos, rapazes!
Os soldados apearam e lançaram-se, por sua vez, ao assédio da montanha.
Angélica e os companheiros, ofegantes, espreitavam sua aproximação.
— Estão subindo...
— Esperem um instante... Subamos um.pouco mais... Assim que os soldados atingiram o local mais abrupto, quase
a pique, ela gritou:
- Os calhaus! Os rochedos!...
Um estrondo surdo encheu o tenebroso desfiladeiro. Projeta-dos pelos camponeses, pedras enormes, pedaços de rocha rolavam, ceifando à sua passagem os soldados pendurados em postura instável. Atingidos em plena fronte, no peito, eles se soltavam, escorregavam, caíam atabalhoadamente.
Com a ajuda dos ombros, os camponeses arrancavam dos alvéolos de argila as bojas de granito suspensas há séculos sobre o precipício. Elas oscilavam pesadamente, depois rolavam cada vez mais depressa, fazendo vibrar os troncos de árvore contra os quais se chocavam, e acabando por esmagar como percevejos os soldados agrupados ao pé da falésia.
O oficial ordenou o toque de reunir, e os cavaleiros prudentemente começaram a recuar, amparando os feridos e abandonando seus mortos. • '
O solainda cobria os uniformes com reflexos púrpura. Angélica observava-os, debruçada por entre os ramos. Reconheceu o oficial. Era o Sr. de Brienne, um daqueles que no passado, em Versalhes, fazia-lhe tão galantemente a corte. O fato de vê-lo ali fê-la avaliar o caminho que percorrera desde sua efémera glória em Versalhes, e o fosso - ainda mais profundo que esse vale - que a separava para sempre daquele mundo.
Debruçando-se, gritou com voz zombeteira, que ressoou longamente:
- Saudações, Sr. de Brienne. Envie a Sua Majestade lembranças de Bagatela!...
Quando fizeram chegar tais palavras ao rei, ele empalideceu. Fechou-se em seu gabinete de trabalho e ali permaneceu várias horas sozinho, o rosto entre as mãos. Depois fez vir o ministro da Guerra e recomendou-lhe que colocasse tudo em ação para abafar a revolta do Poitou antes da primavera seguinte.
CAPÍTULO XXV
Tudo é posto em ação para abater o Poitou - Perseguida
pelos soldados, Angélica bate à porta da Abadia de Nieul
Entre os regimentos que o rei enviou ao Poitou em 1673, estava o 1o Regimento de Auvergne, comandado pelo Sr. de Riom, e cinco das mais gloriosas companhias das Ardennes. O rei ouvira muitos comentários sobre o terror supersticioso dos soldados diante das ciladas da floresta do Poitou. Os que hoje enviava, naturais de Auvergne e das Ardennes, ele os escolhera entre homens dos bosques, habituados desde a infância à sombra e à maldição das árvores, aos javalis, aos lobos, aos rochedos, acostumados a ler pistas invisíveis, todos filhos de tamanqueiros, de lenhado-res ou de carvoeiros. Não vinham mais vestidos de vermelho como os dragões, mas de negro, e seus uniformes lembravam os sinistros espanhóis com seus capacetes de aço, de cimo cortante, e botas justas até o alto das coxas. Trariam com eles cães de caça, dogues musculosos e ferozes.
Por muito tempo, o arquejo dos altos tambores elevou-se pelos campos desertos e atemorizados.
O terror, através deles, penetrava no Poitou.
Três mil soldados de infantaria, mil e quinhentos cavaleiros, dois mil ajudantes de cavalaria, intendência e artilharia. Canhões para todas as cidades...
O rei dissera: antes da primavera.
O inverno não deteria a guerra.
Na primavera, não restava senão um baluarte insubmisso: aquele Je onde partira a revolta, região circunscrita entre La Châtaig-neraie e os pântanos, onde se haviam reunido os últimos conjurados.
Primavera cruel! O frio continuava, e ainda em fins de março a terra gelada recusava qualquer clemência. -
Pela janela estreita da casa do arrendamento, Angélica espreitava o retorno de Flipot. Ele entrou, magro como um lobo vagabundo. Mas a fome, o frio, a existência de animal acuado, nada vencia seu bom humor.
- Consegui encontrar-me com eles - disse. - Acreditavam-na morta ou capturada. Disse-lhes como pôde escapar, em plena noite, do Castelo de Fougeroux. Quando se pensa que vieram até ali para procurá-la! Certamente fomos traídos, vendidos. Agora há traidores por todo lado.
Lançou um olhar de esguelha para a camponesa e seu velho pai, sentados diante da lareira, passou a manga sob o nariz avermelhado e prosseguiu, baixando a voz:
— Vi o abade, Malbrant Golpe de Espada, o barão, Martin Ge-nêt. Estão todos de acordo. É preciso deixar a região. Agora é a caça ao homem, como dizem eles, ou antes, à mulher. À senhora, marquesa. Sua cabeça foi posta a prémio. Por quinhentas libras estão certos de encontrar alguém-que a venda. As pessoas têm tanta fome e tanto medo! Eis então o que foi decidido. Esta noite, iremos até a Lanterna da Pomba, e de lá, quando estivermos todos reunidos, ganharemos os pântanos pela floresta, e depois a costa. Ponce-le-Palud, que ainda não foi preso, nos dará assistência, escondendo-nos... ou embarcando-nos.
— Embarcando-nos - repetiu Angélica.
A palavra consumava sua derrota. Durante aquele terrível inverno, ela havia perdido pouco a pouco o sentido da luta que conduzia. Salvar a própria vida, perseguidos que eram de lugar em lugar, e ainda encontrar-se vivos à noite passara a ser seu único e esgotante objetivo. Não havia outra saída além da fuga.
- Não combinei de nos encontrarmos aqui - cochichou Flipot - porque essa gente não me inspira confiança. Sabem quem e e como, por todo lado, a responsabilizam por suas "desgraças.
Os camponeses murmuravam, lançando-lhes olhares sombrios.
Angélica já não ousava aproximar-se do magro fogo com a filha, de tal modo sentia pesar sobre ela o rancor daqueles infelizes.
O marido da camponesa morrera batendo-se contra o rei. Os soldados lhes haviam tomado tudo à sua passagem, pão, gado, grãos, levando com eles a filha mais velha. Ignorava-se o que lhe sucedera.
No fundo da peça, onde se achava um amplo leito, quatro pálidas carinhas emergiam das cobertas rasgadas. As crianças eram mantidas no leito o dia inteiro, para que se aquecessem e sentissem menos fome.
Alguns instantes depois, tendo trocado sinais com a nora, o velho pai levantou-se, vestiu o casacão e pegou o machado, dizendo que ia cortar lenha no bosquete.
- Ele pode ter ido prevenir os soldados - murmurou Flipot.
- Talvez fosse melhor safar-nos imediatamente.
Angélica foi da mesma opinião. A camponesa procurava, inexplicavelmente, retê-la. Angélica apressou a partida. Apanhou na cozinha um pedaço de pão e queijo para Honorina. A mulher cobriu-a de invectivas.
- Vá! Vá! Parta para bem longe. Já me indispôs o bastante com os duendes, você e sua criança maldita. Não mais os ouço roendo na parede desde que vocês chegaram a nossa casa. Que será de nós se os duendes nos abandonarem?
O desaparecimento dos génios familiares parecia-lhe mais dramático do que todas as provações que a haviam oprimido.
Angélica pegou a estrada numa magra mula, cujas forças só lhe permitiam caminhar a passo lento. Flipot conduzia-a pela brida. Atravessaram aldeias incendiadas, com pobres enforcados nos galhos de olmos das praças.
Anoitecia quando chegaram à Lanterna da Pomba. Estava acesa. As lanternas dos mortos são os faróis do bocage. Longos círios de pedra sobre sócios em degraus são erguidos nas encruzilhadas para guiar os viajantes noturnos perdidos na escuridão opaca dos caminhos fundos. Também estão ali para reunir as almas errantes e impedi-las de atormentar os vivos adormecidos. Apesar da falta de óleo e de gordura no fim daquele inverno, mãos piedosas tentavam conservá-las acesas. O tamanqueiro vizinho da Lanterna da Pomba vinha todas as noites com o isqueiro para acender a mecha de cânhamo protegida por um pequeno campanário trabalhado. Angélica apeou e sentou-se nos degraus de pedra musgosa.
- Não há ninguém - disse. - Corremos o risco de congelar se tivermos que esperar aqui, com a pequena, por várias horas, Flipot, pegue a mula e vá ao encontro dos outros. Diga-lhes que se apressem ou que encontrem um celeiro para passar a noite.
Flipot distanciou-se, e o som cansado dos cascos da mula na terra endurecida ressoou por muito tempo noar cristalino. As árvores, endurecidas pelo gelo, estalavam com um ruído furtivo de vidro estilhaçado. O frio, mais e mais intenso, tinha algo de penetrante, de incisivo, que varava o corpo. Angélica, imóvel, sentia-se transida até' a medula. Seu hálito condensava-se num vapor gelado. A face de Honorina, encolhida sob sua manta, não tinha mais calor. A luz vaga da lanterna revelava o olhar da criança, seus olhos negros e atentos como os de um esquilo espreitando a noite. Os braços de Angélica não bastavam para aquecê-la. As mãozinhas, que apertavam o pão e o queijo, estavam vermelhas de frio. Angélica lembrou-se das palavras da camponesa.
- "A criança maldita"... Então é assim que a chamam!
Os lábios tremiam-lhe de cólera.
- Por que se intrometem nisso, esses campônios? Só a mim cabe saber se é maldita ou não...
Mais uma vez, com os dedos entorpecidos, ajeitou o xale ao redor da menina.
Ela aplicava o ouvido, esperando o tempo todo perceber um galope distante. Mas foi o roçar e o estalar de pequenos ramos que lhe chamaram a atenção.
- Quem vem lá? - perguntou em voz alta.
Tentava distinguir o que se movia na vegetação baixa. Súbito, ouviu-se um longo uivo, e ela se pôs de pé, o coração gelado. Os lobos!... Devia ter suspeitado de que viriam!...
A ousadia das feras esfomeadas, que o inverno prolongado fazia sair dos bosques, colocara-os várias vezes em má situação nos últimos meses, a ela e aos seus. Os bandos não hesitavam em perseguir até mesmo as tropas a cavalo. Rodavam próximo às fogueiras dos acampamentos, o que obrigava a lançar-lhes archotes.
A luz da lanterna dos mortos não seria suficiente para afastá-los. Angélica tinha uma pistola na cintura. Poderia assustá-los, mas não por muito tempo. .
Pensou na cabana do tamanqueiro, um pouco mais acima. Precisava chegar até lá enquanto os lobos ainda não estavam muito próximos e ainda restava uma vaga luminosidade vinda do céu, de um azul surpreendentemente clarificado pelo gelo. Pôs-se a caminho, consciente de estar sendo seguida e dos saltos abafados dos lobos no matagal.
Podia ver agora, quando se voltava, suas pupilas fosforescentes. Sem diminuir o passo, abaixou-se, apanhou pedras e lançou-as na direção deles, como o faria com cães enraivecidos. Antes de tudo era preciso evitar escorregar e cair. Ela deu um suspiro de alívio ao adivinhar, pela janela avermelhada, a palhoça comprimida entre as árvores. Teve que abalar fortemente a porta antes que o surdo-mudo se decidisse a abrir. Através de sinais, Angélica explicou-lhe que estava sendo seguida pelos lobos e que era preciso fechar bem a porta. Para tranquilizar o pobre-diabo e seu filho enfermo, que a olhavam atemorizados, pôs uma peça de ouro na mesa, tudo o que restava do que o Barão du Croissec lhe adiantara ultimamente. Nesses tempos de escassez, um presunto teria surtido mais efeito. No entanto, as mãos do tamanqueiro, enegrecidas pela seiva de madeira nova, pegaram a peça e reviraram-na demoradamente antes de deslizá-la para a cintura.
Angélica foi sentar-se diante da lareira. Ali, ao menos, fazia calor. O garoto surdo-mudo lançou sobre as brasas um punhado de cavacos, e Angélica colocou os pezinhos de Honorina diante das chamas, esfregando-os suavemente para devolver-lhe a circulação. Aquecida, a criança recobrou as cores e pôs-se a comer o queijo, enquanto examinava com seu habitual olhar sagaz o novo cenário. Interessavam-lhe particularmente os tamancos dependurados nas traves. Angélica permanecia alerta, esperando ouvir os tiros de mosquete dos companheiros, que, ao chegar ao local do encontro, compreenderiam que ela tivera que fugir devido aos lobos. Então iria para a soleira da palhoça e daria um tiro de pistola. Mas nada escutava. Cansada de esperar, acabou por estender-se com Honorina no estrado que o tamanqueiro lhe indicou. A cama de cavacos era confortável. Ela recusou a coberta duvidosa, mas aceitou a grosseira pele de carneiro.
Sentia-se estranhamente calma e pôde mesmo dormir algumas horas, sem sonhar. Há muito cessara de se deter no passado, no que poderia ter sido ou não, e nas peripécias dramáticas que conseguira acumular em uma existência relativamente curta. Como procurara os aborrecimentos e os dramas! Quisera viver contra a lei e contra o que lhe fora ensinado. Seu primeiro marido não pagara caro o mesmo crime? Longe de fazer-disso uma lição, ela continuara a erguer-se contra as forças estabelecidas. Não mais se surpreendia com ser vítima, coího fizera durante muito tempo. A luta para viver tornara-se-lhe uma segunda natureza, e do mundo privilegiado, civilizado, passara para aquele dos animais selvagens, que devem, a cada dia, ganhar a existência e defender-se de mil perigos.
Por volta da meia-noite; despertou e viu o tamanqueiro espiar pela janela estreita. Foi até ele e avistou os lobos a rodar na clareira. O maior deles sehtou-se e uivou repetidamente. No estábulo, a cabra balia puxando a correia.
Angélica voltou a dekar-se junto de Honorina. Arrumou com dedo suave os anéis ruivos que caíam na testa do bebé e contemplou-lhe a paz do rosto adormecido. O lúgubre presságio do lobo a uivar confirmava os pressentimentos de seu coração: "Agora é o começo do fim", disse consigo.
Havia nevado" pela manhã. Uma leve camada de flocos forrava a paisagem em torno. A neve viera com passo aveludado roubar as primeiras esperanças -da primavera. A região condenada recusava-se a reviver.
Angélica procurou em vão, por toda a palhoça, um pedaço de papel e uma pena. Acabou por apanhar um pedaço de pano, usando carvão para escrever. As explicações sobre o local do arrendamento dos Fayet, até onde o filho do tamanqueiro deveria ir, pediram um pouco mais de paciência.
Por fim o garoto se distanciou na neve, apertando ao peito a mensagem, na qual Angélica tentava avisar o Abade de Lesdi-guière sobre o local onde se abrigara.
Ele só retornou no dia seguinte. Explicou-lhe por sinais que vira um de seus companheiros, e que estes marcavam um encontro na Pedra das Fadas, da qual o tamanqueiro fez um desenho bastante feliz na madeira da mesa.
Por que não tinha vindo até ali? Por que o abade não confiara uma missiva ao pequeno surdo-mudo? Não conseguindo explicar-se melhor com eles, ela decidiu ir à clareira do dólmen. Era bem| provável que a estivessem esperando.
Partiu, então, lamentando não estar vestida com um traje masculino, pois as saias embaraçavam-na na neve. Felizmente eram! saias de camponesa, suficientemente curtas nos tornozelos.
Ao chegar aos limites do Vale dos Lobos, hesitou diante dos montes de neve acumulada. Passar pela crista da colina faria com que se atrasasse. Decidiu transpor o barranco, mas Honorina a atrapalharia. Instalou a criança sob uma árvore, cuja ramagem cerrada mantivera o chão seco à sua volta, amarrou-a ao tronco com sua echarpe e recomendou-lhe que se comportasse. O abade e Flipot logo viriam buscá-la. Honorina já estava a isso acostumada. Ocorrera-lhe amiúde esperar, assim, na retaguarda pelo fim de uma escaramuça ou de um reconhecimento.
Angélica transpôs o barranco penosamente. Caiu por diversas vezes, mergulhando na neve até a cintura. Ao atingir o topo, acreditou ver silhuetas humanas movendo-se à esquerda, e, pensando nos companheiros, estava a ponto de chamá-los, quando o grito estrangulou-se em sua garganta.
Soldados saíam do bosque. Não a tinham visto e seguiam pela orla das árvores, no flanco direito do pequeno vale. Negros e magros, com os capacetes luzidios e as lanças erguidas contra o céu acinzentado, tinham o andar cruel e furtivo dos lobos.
Paralisada de terror, Angélica aguardou que desaparecessem para voltar a se mover. De onde vinham aqueles soldados? Que faziam naquelas paragens remotas da floresta? Que procuravam?
Com passo lento, arrastou-se até a Pedra das Fadas. A angústia impedia-a de respirar. No limite da clareira, viu que chegara demasiado tarde. Enforcados balançavam-se nos ramos dos carvalhos à volta do dólmen. O primeiro que reconheceu foi Flipot...
Pobre Flipot! Ainda ontem vivo! Não pudera afastá-lo de seu destino. Nascido para ser enforcado, morrera enforcado.
Então reconheceu-os um a um: o Abade de Lesdiguière, Mal-brant Golpe de Espada, Martin Genêt, o palafreneiro Alain, o Barão du Croissec... Aqueles enforcados de rosto familiar povoavam a clareira com sua presença quase viva, e por pouco ela lhes teria dito: "Cá estão enfim... meus amigos".
Ela teve que se apoiar a uma árvore.
- Maldito seja, rei da França - murmurou -, maldito seja!...
Permaneceu ali, abatida, sem poder crer em seus olhos. Em que emboscada haviam caído? Quem os vendera? Os soldados de há pouco? Sem dúvida haviam dirigido a horrível execução!
A louca esperança de que ainda não estivessem mortos, e de que pudesse reanimar um deles, fê-la alçar-se à pedra para tentar desprender o Abade de Lesdiguière. Foi bem-sucedida, e o corpo deslizou molemente para o chão. Apesar do frio, ainda não estava rígido. Ajoelhada junto dele, procurou ouvir-lhe as batidas do coração, um sinal de vida. Mas a morte fizera seu trabalho. Angélica segurava-o junto ao peito"e beijava-lhe a fronte pura:
- Oh! meu anjo da guarda!... Criança querida!... Está morto... Morto por mim... Sem você, que me acontecerá?...
Contemplava com pesa"r aqueles olhosparados e tão belos que não mais a viam. Suavemente fechou-lhe as pálpebras e a boca tumefacta...
Um grito frágil, vibrando no ar gelado, fê-la erguer-se. Honorina!
Angélica arrancou-se ao torpor no qual mergulhara. Era preciso socorrer a menina...
Honorina continuava sob a árvore. Não chorava, mas tinha o narizinha" vermelho como uma baga de azevinho. Agitou as mãos demonstrando alegria em ver a mãe.
Angélica desamárrou-a- e tomou-a nos braços. Nesse instante, sentiu um olhar sobre si e, ao voltar-se, viu do outro lado do Vale dos Lobos um soldado a observá-la...
Ao movimento que ela fez para fugir, o homem lançou um grito gutural.
Angélica acabou de subir o talude e lançou-se sob a cobertura das árvores. Pôs-se a caminhar sempre em frente, enfiando pelos atalhos, um após outro. A pesada saia encharcada embaraçava-lhe a caminhada, mas ela ia depressa, levada pelo terror.
A distância trazia-lhe o eco de sonoros latidos. Teriam os soldados se lançado em sua perseguição?... com os dogues? Ela ofegava, os braços entorpecidos com o peso da criança.
Agora não podia mais duvidar: estava sendo perseguida. Os latidos aproximavam-se, e ela distinguia os chamados ruidosos da soldadesca. Ainda deviam trazer os cães amarrados. O rastro da mulher permanecia visível na neve úmida. Em vão tentara obliquar à direita, à esquerda, com artifícios de animal perseguido; eles a reecontravam sem dificuldade e aproximavam-se inexoravelmente.
Escureceu. O céu cor de chumbo parecia abaixar-se com a noite. Angélica sentiu nas faces o ligeiro roçar dos primeiros flocos de neve que começavam a esvoaçar. Depois, eles se fizeram mais compactos, mais espessos, e em pouco tempo ela só pôde avançar em meio a uma cortina móvel e opaca que a sufocava. Mas a neve ao menos apagava-lhe o rastro...
A perseguição pareceu, com efeito, tornar-se mais lenta. Ela já não mais distinguia os latidos dos cães. Nem mais um ruído. Avançava em meio a um silêncio sepulcral, habitado apenas pela queda rápida da neve. Seu rosto inundado estava como que paralisado pelo frio. Por diversas vezes chocou-se rudemente contra as árvores.
Por fim se deteve. Anoitecera completamente. Ela ignorava onde se encontrava. A neve cobria-a com suavidade. Sentiu-se tentada a sentar-se, mesmo que fosse por um pequeno instante. Mas não se levantaria.
A menina mexeu-se levemente contra ela.
- Não tenha medo - disse Angélica a meia voz, movendo os lábios com dificuldade -, não tenha medo, sabe que conheço a floresta...
Novamente o latido dos cães! Não desistiam. Angélica partiu. Escorregou e recuperou-se a tempo. O chão lhe faltara. Devia estar na beira de uma falésia ou de uma encosta abrupta. Sentiu um espaço vazio com a noite que inesperadamente se abria, desprendendo-se do sufocamento das árvores.
Como permanecesse imóvel, chegaram até ela os sons abafados de um sino. O tinir escandido falava-lhe de asilo.
Louca de esperança, começou a descer a encosta com precaução e breve adivinhava, acima de si, as altas muralhas da Abadia de Nieul. Ela se pendurou à corrente do portal. Tendo saído do pesadelo opressivo e glacial, já se sentia melhor ao abrigo do pórtico.
A mão de alguém fez deslizar o postigo, uma voz se fez ouvir:
— Louvado seja Deus! Que deseja?
— Perdi-me com minha filha na floresta. Dê-me asilo.
— Não recebemos mulheres na abadia. Caminhe mais cinquenta passos à esquerda e encontrará uma hospedaria que a acolherá.
— Não... há soldados perseguindo-me. Necessito do abrigo de suas paredes.
— Vá à hospedaria - repetiu a voz.
Iam fechar o postigo. Ela gritou, fora de si:
- Sou a irmã de seu beneficiado, Alberto de Sancé de Monteloup. Pelo amor de Deus, abra... abra.
Uma hesitação adivinhou-se no interlocutor. O postigo estalou. Pouco depois, ela ouviu o ranger das chaves e os ferrolhos sendo puxados. Lançou-se pela abertura como a imagem viva da tempestade, com um turbilhão de neve atrásde si.
Dois pequenos monges de cabelos brancos olhavam-na com ar perplexo.
- Fechem a porta - suplicou -, fechem-na bem, e sobretudo não a abram, se os soldados baterem.
Eles obedeceram, e Angélica não respirou enquanto não viu a grossa barra de madeira atravessar-se no batente.
— Disse ser a irmã dd-beneficiado da abadia, o Sr. de Sancé? - perguntou um dos monges.
— Sim, é verdade.
— Aguarde ali - disse, indicando-lhe uma espécie de parlatório, onde brilhava um grosso círio numa tocheira de cobre. O frio era pouco menos intenso sob as abóbadas de pedra que no exterior.
Angélica batia .os dentes; e todos os seus membros tremiam. já não mais sentia os braços rígidos em torno de Honorina, que tiritava.
Por fim avistou dois outros monges vindo pelo claustro. Um deles carregava uma lamparina a óleo. Envergavam o hábito branco dos superiores. Entraram no parlatório e detiveram-se diante dela. O mais jovem aproximou-se, erguendo a lâmpada para melhor iluminar o mísero rosto da visitante.
— Sim, é ela mesma - disse, por fim -, é ela mesma, minha irmã Angélica de Sancé...
— Alberto - murmurou Angélica.
CAPITULO XXVI
Asilo! Asilo!
O sino do portal vibrou violentamente, e o monge porteiro veio avisar que uma tropa de homens armados pedia para ser recebida na abadia.
— Não abram - suplicou Angélica -, senão estou perdida. E a mim que perseguem.
— A rebelde do Poitou - disse Alberto a meia voz.
Ela lançou-lhe um olhar assustado. A falta de humanidade era-lhe demasiado familiar para que visse naqueles monges de olhos frios outra coisa além de inimigos. Iriam entregar a condenada.
Ela deslizou de joelhos, os olhos erguidos para o rosto marmóreo do abade, e seus lábios repetiram com ardor o velho grito medieval que por tantos séculos sustara à soleira das igrejas a cruel caçada feita pelo homem.
- Asilo!... Asilo!...
Ele moveu a mão num gesto tranquilizador e distanciou-se como um fantasma em seu hábito branco, até a abóbada do pórtico.
Pouco depois, retornou. Devia ter enviado os soldados à hospedaria. Fatigados com a perseguição pela neve, não estavam em estado de assediar a sólida abadia que resistira a muitas guerras. Haviam-se afastado sem insistir, ainda mais que o irmão porteiro lhes gritara, à guisa de encorajamento, que o albergueiro possuía barricas de bom vinho de Charentes, o que era raro naqueles tempos agitados.
O silêncio voltou a reinar no interior do mosteiro. Angélica continuava de joelhos, completamente esgotada. Foi Alberto quem se debruçou para pegar a coisinha tremula, de olhos negros e vivos como um animal dos bosques, que ela apertava contra si.
- Levante-se, senhora.
O abade estendia-lhe a mão. Mão magra, mas de vigor incomum. Ela se ergueu.
- Há poucas comodidades na abadia para recebê-la, senhora.
Sua voz era baixa, monocórdiíe como que desencarnada, uma voz habituada a salmodiar.
- Não posso propor-lhe senão dois locais mais ou menos confortáveis: as cozinhas, para restaurar-se, o estábulo, para dormir.
No rosto de Angélica, marmóreo pelo frio, devia ter surgido uma expressão de êxtase à menção dos modestos locais, pois algo que se assemelhava a um sorriso aflorou no semblante do superior,
- Vá em paz- - concluiu. - Seu irmão conduzirá.
Diante do vasto fogo das cozinhas, a pesada saia encharcada fumegando à sua volta, Angélica esfregou os pezinhos gelados de Honorina e fê-la engolir uma pequena tigela de leite quente. Depois despiu-a e envolveu-a numa quente coberta. Os irmãos conversos, em hábitos negros, serviam-na no silêncio que a norma ordenava. Não se ouvia senão o som suave de suas sandálias e o crepitar do fogo, ao qual haviam "juntado dois grossos feixes de lenha. As roupas de Angélica logo ficaram secas, mas ela recusou qualquer alimento, tão exausta estava.
Caiu no feno e no sono, como um desmaio. Foram as mãos de Alberto que deitaram a pequena Honorina numa manjedoura, berço rústico guarnecido de palha e feno. Antes de afastar-se, ele colocou mais feno ao redor da irmã adormecida. ' Fora, a neve continuava a cair suavemente. Branco manto sobre a abadia, sobre a floresta imóvel, branca mortalha sobre os enforcados da Pedra das Fadas...
CAPÍTULO XXVII
A abadia de Nieul - A passagem para o infinito
Angélica despertou no meio da noite. Um sino tocava. As vacas, deitadas nas baias por trás do tabique, moviam-se, por vezes, resfolegando. No fundo, como um puro coro de anjos, vogava o lento salmodiar de um canto gregoriano.
Ela estendeu a mão e teve um sobressalto. Tocara em algo que queimava. Levou um momento para compreender que era a fronte de Honorina. A luz amarela da grande lanterna que desprendeu de perto da porta, inclinou-se sobre a criança e viu que estava vermelha, o fôlego curto e acelerado.
Por três dias permaneceu imóvel à cabeceira da pequena. O irmão enfermeiro vinha amiúde. Tinha cabelos brancos e olhos com o violeta fanado das flores que apanhava na floresta para as tisanas.
— Se ela morrer - dizia Angélica, furiosa -, matarei com minhas próprias mãos os soldados que nos perseguiram.
— Vamos, vamos, faria melhor em orar à Virgem, que é mãe, como você - respondia o irmão suavemente.
Certa manhã, ela despertou e viu Honorina sentada, brincando compenetradamente com uma espiga de milho. Radiante, chamou o irmão converso, que ordenhava as vacas algumas baias adiante...
- Irmão Anselmo! Venha ver!... Creio que está curada.
O gordo irmão Anselmo e os dois fradinhos que o auxiliavam cercaram Honorina. Ela emagrecera, grandes olheiras marcavam-lhe os olhos, mas tinha um ar perfeitamente lúcido e interessado. Aceitou o leite que lhe apresentaram e as congratulações com uma dignidade de rainha indulgente para com pajens excitados.
- Este pequeno Jesus não nos deixará - disse Frei Anselmo, com júbilo.
E acrescentou asperamente, dirigindo-se a Angélica:
- Agradeça ao Senhor e louve'-o, mulher ímpia! Desde que aqui está, não a vi fazer o sinil-da-cruz uma única vez!
Alberto de Sancé veio visitar a irmã, trazendo na mão uma maleta de couro vermelho com arabescos dourados a ferro. Era curioso que aos olhos de Angélica o burel monacal conviesse menos ao irmão que os cetins delicados do seu tempo de cortesão. Hoje ela se dava conta de que o pálido e magro rosto sempre parecera estar destinado ao despojamento. A coroa de cabelos ao redor do crânio raspado assentava-lhe melhor que a peruca. As pregas do hábito, as amplas mangas, sublinhavam-lhe os gestos medidos, que outrora, por vezes, a irritavam.
No passado, ele aparentava uma astúcia malsã. Essa astúcia transformara-se em serenidade, em paciência. .O aspecto doentio de sua tez, muito branca entre os bem-nutridos da corte, não era ali mais do que transparência ascética.
- Recorda-se, Angélica, do que lhe repetia amiúde? - perguntou. - "Umdia chegarei à Abadia de Nieul." Eis que consegui meus objetivos.
Ao considerar a longa e frágil silhueta, marcada pelas flagelações, na qual bem poucos teriam reconhecido o antigo favorito de Monsieur, irmão do rei, ela pensou: "Parece-me que a Abadia de Nieul é que veio a você".
Não falaram no fato que provocara uma mudança tão radical na vida do jovem, naquele dilaceramento, naquela aflição que após o enterro de seu irmão Gontran arrastara-o pelos caminhos, em altos soluços e enxugando os olhos com os punhos de renda, a ele, o favorito, o corrompido, enquanto o perfume dos espinheiros em flor devolvia-lhe sua infância. Nem na_ caminhada inconsciente que o levara até a porta da Abadia de Nieul. Em pequeno, Alberto de Sancé vinha, amiúde, à abadia, para aprender o latim. Fora naquelas horas de estudo que o encanto da abadia s'e depositara num canto de seu coração, como uma indefectível e sutil nostalgia que os prazeres do Palais Royal e de Saint-Cloud jamais puderam apagar. Naquele dia, ele puxara a corrente e o portal se abrira...
- Encontram-se coisas curiosas nos celeiros das abadias - disse ele a Angélica. - Nem sempre reinou a austeridade em seus séculos de existência. Permanecem vestígios... Nosso abade pensou que você podia precisar de certos objetos e encarregou-me de entregar-lhe isto.
Ao ser aberto, o cofre de ouro revelou em seu interior um estojo de toalete com peças em escamas e ouro.
Quando ficou sozinha, Angélica agachou-se no feno e penteou demoradamente os cabelos, tendo numa das mãos um espelho redondo, límpido como água sob o sol, e na outra uma rica escova, pesada e de toque suave. Honorina, inclinada sobre a manjedoura, reclamava sua parte, fascinada. Angélica passou-lhe uma escova menor e uma calçadeira de sapatos em escamas e ouro.
Que Sra. de Richeville sensual e mística teria deixado entre aquelas paredes esses frívolos objetos?
O antigo superior da abadia, cujos olhos azuis faziam desfalecer no passado a Condessa de Richeville, era um epicurista, tão guloso de exegese quanto de satisfações menos etéreas. E Angélica acreditou divisar, no fundo de um celeiro, os restos do alto leito de baldaquino que os monges armavam quando se anunciava a bela retirante.
Seu sucessor varrera do mosteiro aqueles costumes libertinos. Comentava-se que era duro, intratável.
Contudo, Angélica pediu para ser por ele recebida a fim de agradecer-lhe. Readquirira figura humana, e não lhe desagradava que o superior pudesse verificar que ela não era apenas a lastimável criatura a quem estendera a mão para que se levantasse.
Suas roupas, que lavara e passara, vestiam-na sem elegância, mas ela deixara solta sobre os ombros a cabeleira renovada, seu único adorno. Inclinada sobre o espelho, estudava-lhe o brilho, inquieta. Que eram aqueles longos rastros de sol em meio à quente tonalidade dos cachos senão mechas recentes de cabelo branco? Haviam embranquecido de repente, sem grisalhar. Ela não tinha senão trinta e três anos, mas podia prever o dia próximo em que seu rosto liso, ornado ainda com toda a graça da juventude, estaria coroado com uma branca auréola. A velhice tocava-a com sua mão de neve, e no entanto ela não vivera! Pois enquanto o coração de uma mulher não é feliz, sua vida é uma espera...
Ela seguiu pelo claustro é, após subir uma escada de degraus gastos por muitas procissões, continuou por uma galeria aberta que lembrava as casas árabes fechadas ao redor de um pátio. Por entre as aberturas em arco perfeito sustentado por grossos pilares, ela avistava o pátio onde Frei Anselmo tirava água do poço, com Honorina a seus calcanhares.
Os corredores estavam desertos. O som de seus passos lembravam-lhe a orgulhosa Sra. de Richeville passando com uma mantilha negra ha cabeça diante da menina admirada.
O abade aguardava-a na ampla biblioteca de paredes forradas com inestimáveis tesouros. Os raríssimos incunábulos dos primeiros tempos daimprensa,Os milhares de livros com todas as formas e espessuras, brilhavam com seu dourado esmaecido na penumbra da sala fria mas perfumadacom o odor dos couros preciosos, dos pergaminhos, das tintas, do ébano das estantes com imensos missais abertos, trabalhados com iluminuras.
Ele estava sentado sob um vitral, em uma cátedra gótica, e a rigidez daquela estátua branca tornava mais impressionante a intensa vida do olhar, que parecia negro, e que se revelava apenas escuro como o aço ou o bronze, sem idade, como o de muitos ascetas. Os cabelos continuavam pretos, mas a pele estava como que mumificada e esticada sobre os ossos. A expressão da boca fina, severa, gelou Angélica, colocando-a na defensiva. Após ter-se ajoelhado diante dele, ela ergueu-se e sentou-se em um tamborete. As mãos escondidas nas longas mangas do burel, ele a observava com extrema atenção, e ela se viu obrigada a falar primeiro, a fim de romper um silêncio que a enchia de mal-estar.
- Meu padre, devo mil vezes agradecer-lhe por ter me acolhido. Se os soldados me pusessem a mão, estaria perdida... A sorte que me esperava...
Ele inclinou-se levemente.
- Eu sei. Sua cabeça está posta a premio... E a Rebelde do Poitou.
Alguma coisa em seu tom de voz irritou Angélica, e a hostilidade latente que sentia com relação a ele explodiu:
- Condenaria minha conduta? - perguntou, altiva. - Com que direito? Que pode saber, no fundo de seu mosteiro, das agitações do mundo e das razoes que podem levar uma mulher a pegar em armas para defender sua liberdade?
Ela o enfrentava. Seria inoportuno ao religioso lembrar-lhe a submissão das mulheres. Ela lhe lançaria ao rosto as exigências do rei.
- Sei o suficiente para ver transparecer em seus olhos a face do Maligno.
Ela riu com mordacidade.
— E bem o género de histórias fantásticas que deveria esperar ouvir neste lugar. Breve me dirá que estou possuída pelo Demónio.
— Existe em seu coração um único sentimento que não seja ódio?
E como ela se calasse ele retomou com sua voz monótona e envolvente:
- O Maligno é o ódio. O Maligno é aquele que não mais compreende o amor. E a outra face, a face contrária, sem mescla, poder-se-ia dizer, do amor: o ódio... A flor venenosa que ele se compraz em fazer proliferar. Os corações nobres estão mais inclinados para ela do que os outros. Ignora que o Maligno se alimenta de sangue, de dores e derrotas?
Uma inesperada expressão de sofrimento quase físico varreu-lhe os traços, e ele exclamou com tristeza infinita:
- Você usou do poder de sua beleza sobre os homens para arrastá-los ao ódio, aos crimes e à revolta!... E no entanto se chamava Angélica... Filha dos Anjos!...
Foi então que ela o reconheceu:
- Irmão João!... Irmão João!... Oh! não foi o senhor que outrora... certa noite, me conduziu ao abrigo de sua cela... Oh! É o senhor! O senhor mesmo! Estou reconhecendo seus olhos tão brilhantes!
Ele assentiu em silêncio. Revia a garotinha de cabelos luminosos que aureolavam um delicioso semblante inocente como o de uma criança, já refinado como o de uma mulher, e cujos olhos cor de primavera examinavam-no com curiosidade.
- Criança pura - murmurou -, em que você se tornou?
Algo se partiu no coração de Angélica:
- Fizeram-me sofrer - balbuciou -, oh! se soubesse, Irmão João, como a vida me fez sofrer!
Ele voltou o olhar para o imenso crucifixo na parede em frente.
- E a Ele, o que não fizeram?
Nessa noite, ela não conseguiu dormir. A paz da abadia rasgava, como no passado, seu véu enganador e revelava a presença do Espírito das Trevas. O tilintar suave do sino, pontuando as horas noturnas, as matinas, lembrava a luta eterna. Os monges com suas lamparinas caminhavam pelos claustros até a capela. "Orem, orem, ó monges", pensava ela. "E necessário, enquanto as trevas reinarem sobre a terra adormecida..."
Ali o Espírito do Mal mostrava sua face ameaçadora. Quando ela fechava os olhos, imaginava ouvir sangue a jorrar. Então estendia a mão para tocar a mãozinha de Honorina adormecida. A criança parecia ser o único amparo suficientemente forte contra seus medos, até que-aqúela noite interminável tivesse fim. Somente com a aurora,-ao cantar do galo,, conseguiu adormecer.
No entanto, não se' confessava vencida e pediu para rever o abade:
— Que teria feito sem o ódio? - perguntou. - Se não tivesse ódio a me sustentar, teria morrido de desespero, ter-me-ia destruído, mergulhadcna loucura. O espírito de vingança que me domina é como a armadura que me permite permanecer viva e lúcida, creia-me.
— Não duvido. Há momentos na vida em que não podemos subsistir sem um socorro espiritual, uma força superior à nossa. O espírito humano é tão pouco resistente! Na felicidade, ainda pode bastar-se, mas na dor, é-lhe necessário voltar-se para Deus ou para o Demónio...
— Não subestima então a necessidade do sentimento no qual mergulhei?
— Jamais subestimaria o poder e a força espiritual de Lúcifer. Conheço-o em demasia.
— Ah! O senhor. Continua a perder-se- em visões grosseiras. Não compreende o que acontece na terra.
Ela caminhava de um lado para outro, soberba, com os cabelos nos ombros, o queixo erguido, os olhos brilhantes, indiferente, aliás, à própria aparência, tal a intensidade com que sua luta interior lhe concentrava as forças.
O abade, mais imóvel e impassível que uma estátua, acompanhava-a com o olhar, e, ao vê-la ir e vir, distendia os lábios com fina ironia.
— Você negará em vão estar possuída pelo Demónio, minha filha. A olhos menos avisados sua simples agitação já pediria algumas gotas de água benta.
— O senhor me exaspera! - ela gritou. - Estou nervosa porque desejo desculpar-me e porque perdi o hábito de refletir sobre tais questões. Quem lhe prova que o desejo de vingança que reprova, e que me fez erguer-me em armas contra uma tirania desmedida, não esteja mais próximo do espírito de justiça desejado por Cristo do que do mal destruidor?
Ele pareceu ponderar o argumento.
- Você não é um adversário fácil - anuiu. - Fale então... Explique-se.
Era-lhe difícil falar após ter-se calado por tanto tempo. As palavras atropelavam-se em seus lábios, as frases saíam entrecortadas e como que arrancadas do peito, numa desordem que a exasperava: o rei, a fogueira, os devotos, Colin Paturel e o Sr. de Breteuil, os pobres do submundo de Paris, o filho degolado, os protestantes, a corrupção, os impostos...
Que poderia ele compreender disso tudo? Nada. Só lhe restavam os sermões. De vez em quando ela afastava os cabelos, que devido à veemência lhe caíam no rosto. Não podia parar de caminhar e de falar. Por vezes apoiava-se com ambas as mãos nos braços da cátedra, inclinando-se sobre ele para melhor lançar-lhe sua verdade.
- O senhor me condena pelo sangue derramado por minhas ordens. Mas aquele que foi derramado em nome de Deus é menos vermelho, menos criminoso? .
Ele respondeu à sua cólera e a seu rancor com um semblante pétreo, um olhar bruscamente apagado e impenetrável.
- Sim, sei o que está pensando - retomou ela, febril. - O sangue das crianças protestantes jogadas sobre as lanças é impuro, evidentemente; em compensação, os desejos de um rei são sagrados, os sofrimentos do povo, justos e justificados, e mesmo merecidos. Tinham que nascer miseráveis... Obedecer aos grandes, esmagar os fracos... essa é a lei...
Estava literalmente esgotada de tanto falar, vazia, a fronte suada...
Ele levantou-se, lembrando-se de que se anunciavam as completas. Ela viu-o distanciar-se fio claustro, as mãos nas mangas, como um longo círio, sob sua capucha. Ele nada compreendera. Permanecia mergulhado em sua própria serenidade.
No entanto, Angélica dormiu melhor nessa noite, e ao despertar sentiu-se aliviada de um enorme peso.
O abade mandou chamá-la. Estaria preparando uma repreensão ou um sermão consolador? Ela sentia-se contente em cruzar ferros. Entrou, a fronte abaixada, e surpreendeu-se ao vê-lo dar uma gargalhada.
— Parece-me que se prepara para atacar, senhora. Serei, então, um inimigo tão perigoso para que a Rebelde do Poitou erga as mãos contra mim?
— Não me chame pòr esse nome, suplico-lhe - respondeu, embaraçada.
— Pensei que você sentia orgulho dele.
Ela desviou os olhos, subitamente morta de cansaço. Não seria a mais forte.
- Não me arrependo de nada - disse -, jamais me arrependerei do que fiz.
— Mas causa medo a si mesma. Angélica mordeu o lábio inferior.
— Não pode compreender o que sinto, meu padre.
— É possível. Mas vejo seu tormento e sobretudo a auréola sombria que a cerca...
— Uma aura? - perguntou, pensativa... - Os santos muçulmanos falam nela... Minha aura é tão sombria, padre?
— Você treme à simples ideia de debruçar-se sobre si mesma. Que teme tanto ver?
Ela fitou-o. Não podia desviar os olhos daquelas pupilas, brilhantes como mercúrio, que a penetravam até a alma.
- Liberte-se - insistiu ele. - Senão'jamais poderá reviver.
— Reviver! Reviver! Para que reviver? Não quero reviver. Gritava, patética, as mãos na garganta, como se sufocasse.
— Que deseja que eu faça com a vida... vomito-a, odeio-a... ela tomou-me tudo... fez de mim esta mulher que... sim, é verdade, que me amedronta. Deixou-se cair, esgotada, no tamborete.
— O senhor não pode compreender, mas morreria de bom grado.
— E absolutamente falso. Você não pode ter o gosto da morte.
— Oh! sim, garanto-lhe.
— É um reflexo do cansaço. Mas o gosto da morte, o sabor da morte, eles vêm para aqueles que se realizaram na vida, quer tenha sido curta ou longa, para os que viveram o que desejavam viver. É o canto do velho Simeão: "Meus olhos contemplaram o Redentor; agora só me falta morrer". Mas enquanto um ser não se realizou, enquantou vagou longe de seu objetivo e só conheceu a derrota... não pode desejar morrer... O esquecimento, o sono, o nada, sim... Cansaço de viver? Isso não é a morte. A morte, esse tesouro que Deus nos confia junto com a existência, essa promessa inefável...
Angélica pensou no Abade de Lesdiguière, em seu jovem rosto iluminado: "O morte, apresse-se!" Pensou em Colin Paturel, tantas vezes entregue aos carrascos, e no que ela própria experimentara, atada à coluna, diante dos olhos cruéis de Mulay Ismael. Poderia então ter morrido, pois sentia que caminhava para o esplendor. Mas não hoje.
- Tem razão - disse com medo repentino -, não posso morrer agora, seria perder.
Ele riu.
- Agradam-me os sobressaltos de sua vitalidade. De fato, você deve viver... Morrer na derrota, que ridículo!... o pior...
Ela lutava. Temia erguer os olhos para ele e receber o impacto de seu olhar sombrio.
— O senhor me erpreita como a uma presa.
— Queria vê-la libertada, para que pudesse reviver.
— Mas libertada de quê? - gritou, exasperada.
— Dessa coisa escondida que a impede de ter amizade pela vida e por si mesma.
— Jamais poderia perdoar.
— Não é isso o que lhe é pedido.
Angélica debatia-se cons-go mesma. Ele a via respirar precipitadamente e sentia-se torturado com a angústia que transtornava aquele belo rosto.
Como, por que, em que dia viera ajoelhar-se junto dele? Ela crispava as mãos no burel branco, e seus olhos, de pálida transparência, dilatavam-se com o esforço que impunha a si mesma.
- Escute-me, Irmão João, escute-me. O senhor ouviu falar do massacre no Campo dos Dragões? -
Ele assentiu com a cabeça.
— Fui eu quem o ordenou.
— Nós o sabemos.
— Isso não é tudo... Escute... Trouxeram-me a cabeça de Mon-tadour, e isso me deu... um terrível prazer. Quisera lavar as mãos naquele sangue.
O religioso fechou os olhos. - Desde essa noite - sussurrou Angélica - é que tenho medo de mim mesma e evito debruçar-me sobre minha própria pessoa.
- Você foi possuída-pela atração do abismo do inferno. Quer que essa lembrança se apague para sempre?
— Com toda a minha alma. Ela olhou-o com esperança.
— O senhor poderia apagá-la?
— Teria você perdido toda a fé da infância para duvidar disso?
— Deus sabe de tudo, que importa o que lhe diria em confissão?
- Deus sabe de tudo, mas sem a confissão e o arrependimento, nem ele próprio pode apagar seu pecado. Nisso consiste a liberdade humana.
Ele a havia vencido.
Absolvida, ela experimentava uma impressão de convalescença. Olhou para as mãos abertas.
— E o sangue em minhas mãos, apagar-se-á também?
— Não se trata de voltar atrás, nem de escapar às consequências de seus atos, mas de reviver. Durante anos você não foi senão ódio; doravante, não seja senão amor. É esse o preço de sua ressurreição.
Ela deu uma risada desencantada.
— Tal programa não é bom para mim. Minha luta não acabou.
— É uma atitude interior.
Ela ironizou a própria emoção, sacudindo a cabeleira em desafio.
- Quanta história por uma cabeça cortada! Mulay Ismael sacrificava duas ou três por dia, para ser agradável a Deus. O senhor está vendo que é bem difícil definir o Bem e o Mal quando se viaja.
A reflexão pareceu divertir imensamente o abade. Seu sorriso tinha o brilho de um raio de sol sobre a neve. Da máscara rígida, terrivelmente severa, ele fazia um semblante acolhedor, de surpreendente juventude.
Em repouso, parecia frio, talhado em pedra. A impressão era de que nada poderia suavizar esse rigor, e no entanto, durante a conversação, seus traços exprimiam constantemente inúmeras paixões: alegria, dor, cólera, simpatia. Quando nele pensava, ela o via austero e impenetrável. Na realidade, tinha o rosto mais mutável que se pudesse imaginar, e sempre alerta.
Ele a intimidara tão profundamente de início, que ela demorou a perceber essa qualidade e a aquecer-se com o calor da vida que dele brotava.
Em resposta à referência a Mulay Ismael, ele disse:
— O Mal é o que você sente como prejudicial a sua saúde moral. O Bem é o que satisfaz seu critério pessoal de justiça.
— É minha vez de perguntar-lhe, padre, se seu raciocínio não seria um pouquinho herético.
— Não me permito expô-lo senão para aqueles que podem ouvi-lo.
- Tem tão grande confiança em mim?
Ele considerou-a demoradamente.
- Sim, pois seu destino não é comum. Você deverá debater-se fora dos caminhos já traçados.
Ele perguntava-lhe muito sobre o Islã. Aquilo que ela apreendera dos costumes muçulmanos, de sua fé intensa e obstinada, apaixonava-o, e ela não temia revelar-lhe sua admiração e nostalgia com relação a eles.
Folhearam grandes livros, que em meio a iluminuras traziam relatos da história das invasões árabes, do estudo e da explicação da mensagem de Maomé pelos padres da Igreja. Eram horas inesquecíveis e fora do tempo as que Angélica passava diante das estantes, enquanto ele virava as páginas com a mão tão longa, magra e diáfana, que parecia feminina, A força de copiar e de meditar sobre os primitivos, ele dava a impressão de ter deles adquirido a graça desencarnada.
Numa tarde em que o aguardava, Angélica descobriu em uma iluminura um semblante de anjo de olhos verdes que lhe pareceu familiar e que se repetia pelo missal. Anjo de olhar triste ou cintilante, de pálpebras baixas sob a cabeleira iluminada, sorridente ou sério.
- Não foi o Irmão João, noviço da Abadia de Nieul, quem ilustrou este livro no passado? -' perguntou, sorrindo, quando o abade entrou.
Ele olhou as imagens e sorriu também.
- Como poderia esquecer a filha da noite, a extraordinária poesia que dela se desprendia? Frescor, beleza, paixão de viver, todos esses tesouros nela estavam e vertiam de seus olhos. Tenho a impressão de que Deus a enviara ao mosteiro para lembrar-me a beleza da Criação.
- E agora estou velha e decadente.
O abade riu abertamente.
— Onde foi buscar semelhantes tolices? Como tão bela boca ousa proferir palavras tão amargas? Você é jovem! Oh! como você é jovem! - repetiu, olhando-a com ardor. - Você conservou a exuberância da vida, o que é quase um milagre. Decerto viveu muito. No entanto, afirmo-lhe, sua verdadeira vida está à sua frente.
— Tenho cabelos brancos.
— Um adorno a mais - disse em tom zombeteiro.
Pela primeira vez desde longos meses, ela tomou consciência de si mesma, através dos olhos que a fitavam. Sentiu o vigor de seu corpo, a resistência aumentada com o ar dos bosques, com as cavalgadas. A cintura estava menos fina, os ombros mais robustos, mas ela recobrara a carnação rosa e dourada das mulheres do Poitou; e as olheiras, que traíam tantas lágrimas derramadas, aumentavam-lhe o patético do olhar, acentuando-lhe o brilho.
Angélica tinha se tornado de tal modo indiferente a sua aparência física, que se sentiu quase embaraçada ao se redescobrir de repente. Maquinalmente, trouxe para"o peito as abas do manto.
- O senhor tenta em vão encorajar-me - disse, sacudindo a cabeça. - Não pode compreender. Tenho um ar vivo... mas me sinto tão... atingida...
- Uma grave enfermidade não se cura em um dia.
Ele dirigiu-se à cátedra abacial com seu passo lento, parecendo deslizar no lajedo, e, sentando-se, considerou-a pensativamente.
— No entanto, a cura está em curso. Quanta diferença já não se mostra em você desde a noite em que buscou refúgio na abadia com sua filha? Seja paciente. Volte-se para a luz e não para as trevas e terá a alma e o corpo curados.
— O corpo? Mas não estou doente.
— Você teme e odeia o homem. Aí está sua doença. Sua anomalia, eu diria, da qual é preciso curar-se. Ela lhe sufocará a alma, pois você foi feita para o amor.
Angélica, por um momento estupefata, explodiu com súbito furor.
- De que está falando? - gritou com voz aguda. - Que tem a ver com isso? Que sabe dos tormentos de uma mulher perseguida pelo desejo dos homens? Do horror que pode acabar por ter a eles e a si mesma? Das desgraças que o amor implica? E, depois, vocês não são os primeiros a erigir o espectro da luxúria, gritando: penitência?
Ele sorria, sem parecer comovido com sua veemência.
— Por que está sorrindo?
— Porque quanto mais a contemplo, mais vejo que você foi feita para dormir nos braços de um homem.
A imagem perturbou-a e acalmou-a a um tempo. Ele continuou, sereno.
— Não estou falando no plural. Disse: um homem. Você é carnal em demasia para permanecer alheia ao amor. Busque a cura para aquele que deve vir, aquele...
— Sim, o esposo que a virgem casta espera com uma lâmpada na mão. Exatamente o meu caso...
Ela pensou com infinito sofrimento: "O esposo!... Eu o conheci. Ele me completava, mas arrancaram-no de meus braços".
- É para o futuro que você deve voltar o olhar. Saiba reconhecer aquele que vier. E prepare-se para recebê-lo. Está decidida a carregar para sempre na alma a vergonha por seus pecados? Não. Então mostre mais orgulho para com seu corpo. Ele tem menos valor. Não cultive, pois, a lembrança de sua vergonha. A primavera sempre volta depois do inverno. O sangue, a carne, se renovam. Sua saúde parece boa...
Ela se sentia embaraçada e reconfortada a um tempo com o fato de ele ter ousado falar-lhe tão francamente do mal secreto que a corroía.
— Não será fácil - disse. - Vê-se bem que não foi o senhor quem...
— Cabeça teimosa... Aprenda a desviar-se daquilo que a prejudica. Aí está o primeiro sol depois de muitos dias. Pegue na mão de sua filha e vá passear corri ela nos jardins, enquanto medita na esperança.
Ela não estava muito certa de desejar o futuro que ele lhe anunciava.
Existiria no mundo um homem capaz de novamente cativá-la? A ferida era demasiado profunda. No entanto, quando refle-tia sobre o instinto que lhe fazia voltar para o abade de Nieul um coração sedento de apoio, era obrigada a confessar que muitas coisas começàvarrr a ceder dentro dela. Ele a atraíra com a paciência de um criador de pássaros. Mas o encanto de sua personalidade viril, consumida pelas penitências, tivera o seu papel. Sim, ele tinha razão. Como ela continuava a. ser mulher?...
— Que terá ocorrido comigo na abadia? - perguntou. - Tenho por vezes a sensação de estar perdida, suspensa nos ares.
— Você foi projetada no que os matemáticos chamam de "passagem para o'infinito":..
— Que quer dizer com isso?
— Nas matemáticas, aprende-se que nem todas as soluções de um problema são necessariamente mensuráveis, isto é, decorrentes uma da outra, e traduzindo-se por um resultado positivo. Um caso simples: não sabemos se a solução de uma equação matemática é "mais" ou "menos". Ou por outra, se se ganhou ou se se perdeu. A simples extração da raiz quadrada propõe um problema filosófico considerável: qual é a raiz de um número negativo? Diante da vertigem, da sensação de impossibilidade de nossa mente, tranqúilizamo-nos declarando que é um "imaginário" ou uma linha trigonométrica. Ora, isso é admitir não mais saber o que acontece, pois significa que passamos para um outro plano de estrutura física. Diremos, para comodidade da mente, que "passamos por uma solução de continuidade" ou "passagem para o infinito". Está compreendendo?
— Creio que sim. Sinto essa espécie de desaparecimento momentâneo do problema.
— Que profundo abismo é esse infinito, mesmo que não seja pura matemática! Pois também está presente no cotidiano. E quando nossa mente não mais enxerga uma solução "plana", a passagem para o infinito, ou o irracional, ou o supranormal impõem-se por si mesmos. Deles emergimos para a corrente habitual da vida, mas a solução já foi, em verdade, encontrada...
— Poderia reafirmar-me, apesar de tudo? Há tantas contradições em minha vida!
— Você é daquelas mulheres que necessitam combater para se sentirem elas mesmas e para - oh!, sim, isso existe - permanecer jovens e belas. Contentar-lhe-ia uma vida comum, fazendo tapeçaria, ou mesmo uma existência frívola?
— Já não sei mais! Às vezes parece-me que fui feita para uma felicidade simples, rústica: um homem para amar, crianças ao redor da mesa, para quem faria doces. Todas as mulheres guardam essa imagem num canto do coração, mesmo as mais decaídas, as mais mundanas. E também como toda mulher tive gosto pela riqueza, pelos prazeres que ela proporciona: os adornos, a admiração dos homens... Mas logo vi que não me sentia, se não à vontade, ao menos contente... Aquilo não me convinha. Ao passo que amei profundamente o papel de chefe de guerra. O senhor me dirá: uma mulher não foi feita para fazer correr sangue, é contra a natureza. Mas amo a guerra. Estaria mentindo se o negasse. A aventura, a batalha, a expectativa da vitória, a reunião de forças dispersas num objetivo; e mesmo o medo, a angústia, a esperança de salvar uma situação desesperada, tudo isso me era conveniente. Sofri nestes dois anos, porém jamais me aborreci.
— Dizem, de fato, que para o homem, e sobretudo para a mulher, essa é uma das condições essenciais da felicidade: não se aborrecer.
— Não o escandalizam minhas confissões? Como explica tais contradições?
— Um ser humano é capaz de tantas coisas! Elas compõem a trama da aventura de sua vida, onde se enredam o bem e o mal, a revolta e a submissão, a suavidade e a violência.
E murmurou:
- "Há tempo para tudo, tempo para todas as coisas sob o céu, tempo de nascer, tempo de morrer... tempo de matar e tempo de curar, tempo de chorar e tempo de rir, tempo de se lamentar e tempo de dançar... tempo de abraçar e tempo sem abraços... tempo de calar e tempo de falar, tempo de odiar e tempo de amar..."
— Quem disse tais palavras?
— Um dos grandes sábios da Bíblia: o Eclesiastes!
— Não houve então apenas... coisas sórdidas e detestáveis... em minha revolta?
— Decerto que não.
A fisionomia de Angélica iluminou-se.
— Sua indulgência é mais reconfortante que sua severidade. O senhor foi tão duro comigo de início...
— Queria assustá-la, para arrancá-la ao abatimento. Queria também fazê-la falar. Felicito-me por tê-lo conseguido. O coração aferrolhado se corrompe.
Ele refletiu profundamente^ o queixo na mão, como se mergulhado num árduo problema.
— Você deveria deixar esta terra - disse, por fim.
— Quer dizer que devo morrer? - exclamou ela, assustada.
— Não, cem vezes não, alma querida. Você, que é a própria vida!... Quero dizer esta região, a província de nossa infância e também... este reino onde tem a cabeça a prémio. Deixar este mundo atormentado, que com sua cultura cristã, ainda recente, não consegue libertar-se do primeiro conflito: Deus e Satã. Você não foi absolutamente feita para esses debates místicos. Está muito perto da natureza. Sua retidão, seu equilíbrio, não podem satisfazer-se com sentimentos extremos e, em certa medida, an-tinaturais. Você coloca num plano totalmente diferente os valores que lhe são importantes; estará, portanto, sempre em desacordo com os que a rodeiam. Você é um pouco... imagino, como a primeira mulher criada por Deus, maravilhada com os frutos do Éden... Deveria partir para outro local.
— Para onde?
— Não sei. Construir um novo mundo, mais terreno, mais'tolerante...
Ele ergueu os olhos para a janela.
- A neve desapareceu, o sol brilha. A primavera chegou, você o notou?
O azul do céu inscrevia-se na curva do arco romano, e em seu rebordo arrulhavam duas rolas.
— Tomei informações. Os soldados deixaram a região. A província está calma, se não pacificada. Você poderia sem problemas chegar a Maillezais, nos pântanos, e depois à costa. Tem cúmplices com quem se encontrar?
— Está dizendo que devo partir? - sussurrou.
— E chegada a hora.
Ela via o mundo hostil que a esperava à porta da abadia, onde teria que avançar, solitária e espionada, com a filha bastarda nos braços.
Deslizou de joelhos junto dele.
— Não me expulse. Aqui, estou bem. Este é o asilo de Deus.
— O mundo inteiro é asilo de Deus para os que crêem em sua misericórdia.
Ela fechou os olhos, e dos longos cílios correram-lhe lágrimas em sulcos brilhantes pelas faces. Ele via à sua volta o halo negro da desgraça. Ainda não estava fora de perigo, mas a certeza da vitória já transparecia. Era sua obrigação lançá-la de volta ao mundo.
Ele estendeu o braço, e ela sentiu nos cabelos a pressão infinitamente suave de sua mão descarnada:
- Coragem, alma querida, e que Deus a abençoe.
No dia seguinte o irmão porteiro veio ao seu encontro. Selara uma mula a seu pedido. Ela mandá-la-ia de volta pelos monges de Maillezais. Ele carregara o animal com dois cestos contendo víveres e uma coberta. Angélica cobriu cuidadosamente a cabeça da filha. Se não podia dissimular a cor dos próprios olhos, podia ao menos ocultar a dos cabelos da menina; não ignorava a descrição feita aos que a procuravam: uma mulher de olhos verdes com uma criança ruiva nos braços. Era bem de acordo com sua sorte que Honorina também tivesse um traço singular.
Por um momento, a mão no pescoço da mula, ela hesitou. Não poderia saudar o abade uma última vez? Nem a seu irmão?
O porteiro sacudiu a cabeça. Ia começar a Semana Santa. O mosteiro já estava em retiro.
Era verdade que um silêncio mais profundo que o habitual pesava sobre a abadia. Os homens consagrados reuniam-se para a terrível peregrinação dos dias que antecediam a Páscoa. A mulher devia afastar-se.
Algo arrancou-se ainda do coração de Angélica e sangrou dolorosamente. Mas não seria esse sofrimento, e sua capacidade de suportá-lo, um sinal de sua ressurreição?
Ela se instalou na montaria, acolheu Hoflorina contra si, e enveredou pelo pórtico.
Enquanto subia o atalho que conduzia à floresta, chegou-lhe o pesado som do portal que se fechava, e quase imediatamente ouviram-se três badaladas sonoras.
Quantas portas já não se haviam fechado por trás dela, barrando as saídas, como batedores diante da caça perseguida! A cada vez, as possibilidades deescapar a seu destino diminuíam, e breve só lhe restaria Um único caminho: ó seu. Qual seria ele? Ainda o ignorava. Podia apenas pressenti-lo. Começava a compreender que catástrofes e-obstáculos intransponíveis haviam-na desviado de seus próprios caprichos para reconduzi-la severamente a um único objetivo, invisível, mas que era o seu.
Ainda uma vez, uma última vez, atravessava a floresta. Não ousava enfrentar as estradas em pleno dia. Pela floresta, e depois pelo pântano, chegaria à Abadia de Maillezais sem problemas.
Quando chegou às cercanias do Vale dos Lobos, o sol estava a pino sobre o pequeno vale. Angélica se deteve, presa de uma inacreditável sensação de milagre.
Duas semanas antes, nesse mesmo local, ela escorregara na neve, sufocada pelo frio cortante, sentindo na carne toda a crueldade do árido inverno. Hoje, o valezinho estava aveludado de verde, o riacho que transpusera, adormecido sob o gelo, saltava com a graça de um cabrito novo, as violetas adornavam a orla das árvores. O cuco cantava anunciando o calor, o desabrochar da primavera.
Angélica ficou com os olhos embaçados diante de tais maravilhas. Com que então a natureza e a vida podem ter dessas surpresas clementes. De um inverno longo e rigoroso, jorrava com força decuplicada a riqueza das folhagens e das flores; de um crime odioso, do horror sem nome, nascera aquela flor da graça, redonda, branca, coroada de chamas, serena, que dormia em seu seio: Honorina.
Os corvos negros haviam cessado seus círculos sinistros sobre a Clareira das Fadas. Dir-se-ia que a morte jamais frequentara aqueles lugares.
O Abade de Lesdiguière, o Abade de Nieul! Tinham sido necessários dois arcanjos para tirá-la do abismo onde caíra. Duas puras figuras de religiosos não tinham sido demais para apagar a lembrança maléfica do monge Bécher.
Ela pensou que fora justo e necessário para si mesma viver até esse dia...
CAPITULO XXVHI
A emboscada dos mercadores - Marcada com a flor-de-lis
No dia seguinte elâ chegou a Maillezais, a soberba abadia construída em uma ilhar em meio aos salgueiros e às águas mortas. A noite, tinha-se a impressão de ouvir as vagas que no século XII chocavam-se com as fundações da abadia. Vida dormente e bucólica, a dos monges, que pescavam enguias e rãs e se preocupavam menos com o breviário do que com a sesta, mantendo a tradição de Rabelais, que entre aquelas paredes escrevera o seu Gargântua. Estava longe a atmosfera ardente de Nieul. Os monges temiam os protestantes. Pois dali até a costa os protestantes predominavam.
As tropas do rei restabeleciam a ordem pouco a pouco. Recomendada pelo Abade de Nieul, "um santíssimo homem", dizia o Prior de Maillezais suspirando, Angélica foi bem recebida e obteve um guia para conduzi-la às imediações de Sables d'01onne.
Com Honorina às costas, ela descia por um caminho de areia e lama sob os arcos de carvalhos-anões e de aveleiras. Havia chovido. O ar purificado tinha um odor estranho. Ela se deteve, colhendo avelãs, que partiu com os dentes^.para Honorina. As pétalas de uma roseira-brava molhada de chuva desfolharam-se sobre sua mão.
Um ruído inusitado elevou-se por trás das sebes.
Era a última etapa.
O ruído se amplificava. Angélica avançou cautelosamente, desconfiada e fascinada, e por fim avistou o mar.
Não mais o Mediterrâneo, azul e dourado, mas o oceano, o mar das trevas, o abismo dos atlantes...
Ele se elevava, cinza, azul e verde, no horizonte, que se confundia com o céu, em meio à bruma.
Avançando um pouco mais, Angélica divisou a praia violeta recortada pela água prateada, e o tabuleiro das salinas, os cones brancos de sal que um súbito crepúsculo tingia de rosa-suave.
A esquerda havia uma palhoça. Ali deveria encontrar Ponce-le-Palud, o contrabandista protestante, um dos primeiros correligionários.
Mas Ponce-le-Palud fora capturado na véspera e executado, sob a dupla acusação de contrabando de sal e de rebeldia contra o rei.
Os últimos companheiros sobreviviam, escondidos nos magros bosques da orla, vivendo de rapinagem. Angélica negociou com eles a possibilidade de embarcar para a Bretanha. Ali talvez pudesse viver escondida por um bom tempo. O mais urgente era escapar às patrulhas.
As populações costeiras fiéis ao rei, ou que haviam retornado para seu lado, não se acanhavam de vender a uns e outros, para obter, com seu zelo, o favor real. Os vencidos não têm aliados. Pouco à vontade entre esses protestantes amargos, que sabiam de seu fracasso e da miséria a que se via reduzida, Angélica se inquietava. Tinha pressa de apenas uma coisa: embarcar! Só o mar lhe parecia seguro, o cúmplice acolhedor.
No terceiro dia, homens macilentos e esfarrapados acorreram aos bosques gritando que um comboio de mercadores aproximava-se, vindo de Marans, com um carregamento de trigo e de vinho. Há meses que isso não acontecia. Todos os outros, alvoroçados, reuniram as armas disponíveis, chanfalhos, espadas, porretes, pois não havia mais pólvora nem balas para os mosquetes.
— Não façam isso, suplico-lhes - implorou Angélica. - Chamarão a atenção da polícia. Por pouco que se procure nesses bosques...
— E preciso viver - resmungou o chefe.
Já se ouviam entre as árvores espalhadas os chocalhos das mulas e o ranger das carroças. Em seguida elevaram-se gritos e o tinir de armas.
Angélica não sabia a que santo apelar. No entanto, era preciso impedir que aqueles homens acuados se entregassem a atos de
banditismo que atrairiam a seu refúgio soldados e guardas alfandegários. Infelizmente conhecia-os há pouco tempo e não tinha
influência sobre eles. Sequer falava seu patoá. Ela amarrou Honorina ao pé de uma árvore e correu para. o local da batalha. Se
fosse possível poupar vidas humanas, entendesse com os mercadores...
Mas estes, em vez de se apavorar, desde o início do assalto haviam se decidido por bater-se sem trégua. Serviam-se de pistolas,
entrincheirados atrás das carroças. Numerosos feridos juncavam a estrada.
Angélica esgueirou-se até o chefe dos contrabandistas, atrás de uma moita.
- Bata em retirada - instou Angélica com ele.
- Agora é tarde. Precisamos da mercadoria e sobretudo de suas peles, para que não falem..:
' Ele deu um salto na direção de uma das carroças. Um tiro de pistola deteve-o e ele tombou. Em seguida houve um momento de extrema confusão. Sentindo os bandidos desmoralizados, os quatro mercadores saíram de seus abrigos, correndo-lhes atrás. Manejando os bastões com um vigor inesperado em pacíficos comerciantes, quebraràm-lhes os ombros, fazendo os crânios estalarem. Angélica recebeu violento golpe na- nuca. Com a visão turva, ainda teve tempo de ver aquele que a golpeava. Vestido de negro - eram sem dúvida protestantes -, bastante corpulento, tinha olhos claros onde não havia cólera e sim determinação. I Santo Honório, o mercador, devia parecer-se com ele. Um segundo golpe nas fontes fê-la perder os sentidos.
Voltou a si em meio a uma reminiscência distante e terrível. Florimond estava nas mãos do Grande Coesre e Cantor fora raptado pelos ciganos. Ela corria no encalço deles junto com a Polalaca, pela estrada enlameada de Chareton, após ter escapado da Itemível prisão do Châtelet. Então abriu os olhos.
Estava presa, sozinha, sobre uma enxerga apodrecida.
O impacto da situação deixou-a inerte. Não teve sequer forças para maldizer os contrabandistas imprudentes, o destino desastroso, sua falta de sorte. Em poucas horas estaria no mar, pois acabara de acertar a passagem para a costabretã. Abandonou-se ao devaneio, sem mesmo se perguntar para qual burgo havia si. do arrastada, Les Sables ou Talmont. Nem se a tinham reconhecido, ou quais sanções a aguardavam. Doía-lhe a nuca, e ela sentia-se cansada, doente. Permaneceu assim, prostrada, até o instante em que um lampejo fê-la soerguer-se no catre: Honorina!
Viu-se tomada por um pesadelo.
Que teria acontecido à menina, depois da desastrosa empreitada? Angélica deixara-a amarrada a uma árvore. Os contrabandistas que haviam escapado tê-la-iam notado? Tê-la-iam tomado a seu encargo? E se ninguém houvesse percebido o bebé?... Se a pequena continuasse na floresta?... A clareira ficava longe da estrada. Poder-se-ia esperar que seus gritos fossem ouvidos?
Um suor frio inundou Angélica. A tarde caía. Por trás da grade do respiradouro, uma luminosidade avermelhada denunciava o crepúsculo.
Angélica bateu na porta do compartimento, mas ninguém apareceu ou respondeu a seu chamado. Ela voltou à seteira e agarrou-se às barras. A abertura ficava ao nível do chão. Um vago rumor indicava que o mar não devia estar longe. Tornou a chamar: em vão. A noite avançava, indiferente aos prisioneiros emparedados vivos, que, até a manhã, nada mais devem esperar de seus semelhantes.
Ela teve um momento de vazio, de ausência, no qual girou em círculos, gritando como uma condenada. Um ligeiro ruído fê-la recobrar a razão. Era um barulho de passos no exterior. Angélica voltou a colar-se ao frio metal enferrujado das barras da janela. Os passos aproximavam-se. Dois sapatos surgiram na outra extremidade da abertura.
- Por amor dos céus, você que passa... detenha-se! Escute-me - gritou Angélica.
Os sapatos imobilizaram-se.
- Pelo amor de Deus - repetiu com ardor -, compadeça-se de minha súplica.
Ninguém respondia, mas os sapatos não se moviam.
- Minha menina está nos bosques - retomou -, estará perdida se ninguém socorrê-la. Perecerá de fome e de frio. Será devorada pelas raposas... Você que passa, compadeça-se dela.
Era preciso indicar o local. Ela não sabia os nomes dos lugares nessa região desconhecida.
- Não fica longe da estrada onde os bandidos atacaram os mercadores de trigo...
"Teria sido ontem ou hoje?", perguntou-se, numa súbita vertigem.
- Afastando-se da estrada por um atalho, há um marco - acabava de lembrar-se desse pormenor. - Sim, seguindo por esse
atalho encontra-se uma clareira... Ela está ali, "amarrada a uma arvore... Minha menina, ainda não tem dois anos...
Os pés voltaram a caminhar. O passante retomava seu passeio. Teria apenas aplicado o ouvido às divagações que saíam daquele
buraco? "Que louca acorrentada", diria ele... "Há toda espécie de mulheres nas prisões.
Ela despertou de um sono nauseante, em que não cessara de ouvir o choro da filha, para se encontrar diante de um carcereiro de dois policiais, que lhe ordenaram rudemente que se levantasse e os seguisse.
Fizeram-na subir escadas de pedraem caracol, antes de introduzi-la numa sala abobadada, com paredes que ressumavam e estavam roídas pelo sal. Um braseiro mantinha um leve calor. Mas não estava ali apenas para amenizar a temperatura de uma cripta medieval. Angélica compreendeu-o ao descobrir a silhueta robusta jde um homem cujos braços nus saíam de uma malha escarlate, iclinado sobre o braseiro, revirava com cuidado uma longa haste de ferro entre as brasas.
No fundo da peça, sob uma espécie de dossel azul com flores-ie-lis bastante descorado, um juiz com longa toga negra e peruca de rolos conversava com um dos mercadores, justamente o jue golpeara Angélica.
Falavam tranquilamente e não se deram ao trabalho de interromper o diálogo, quando os policiais, após introduzir Angélica, lançaram-na de joelhos diante do carrasco, começando a tirar-lhe o manto e a parte de cima do corpete.
Angélica se debateu aos gritos, como uma possessa. Mas pu-Inhos sólidos a seguraram, e ela ouviu as costas do vestido estalarem. Uma luminosidade vermelha pareceu tremular diante de iseus olhos, e avançar, avançar...
Ela urrou como uma demente.
Um odor de carne queimada subia-lhe às narinas. Estava tão dominada pelo desejo de escapar às mãos que a dominavam, que
nada sentia. Não foi senão quando a soltaram, que a atroz ferid no ombro se lhe tornou perceptível.
- Rapaz! - falou entre dentes um dos policiais ao companheiro. - Seria preciso um regimento para segurá-la! Que fúria!
A dor da queimadura irradiava-se pela cabeça de Angélica, c braço esquerdo, até a ponta das unhas. Ela continuava de joe lhos e gemia debilmente. O carrasco guardava o instrumento de tortura, um longo cabo com uma flor-de-lis fundida na extremidade, enegrecido pelas inúmeras execuções.
O juiz e o mercador continuavam a conversar. Suas palavras ressoavam sob as abóbadas.
— Não partilho seu pessimismo - dizia o juiz. - Nossa situação é ainda bastante estável, e não é verdade que o rei queira o fim dos protestantes do reino. Ao contrário, ele aprecia a honestidade, a frugalidade de nossos correligionários. Veja, aqui mesmo, em Sables, os católicos são em tão pequeno número, que somos três juízes reformados para um único católico. E como este último está sempre caçando patos, a maior parte das vezes somos nós que resolvemos as diferenças entre os católicos.
— Não impede que no Poítou... Asseguro-lhe que vi coisas que me impressionaram consideravelmente...
— Os acontecimentos do Poitou?... Simples, embora deplorável provocação, reconheço-o. Mais uma vez nossos irmãos se deixaram arrastar pela ambição de fidalgos excitados como os La Morinière.
O juiz desceu os degraus do estrado, aproximando-se de Angélica, ainda prostrada de joelhos.
- E então, minha filha, retirará um ensinamento do que acaba de acontecer? Correr os bosques com salteadores e contrabandistas não quadra com uma pessoa de boa reputação. De hoje em diante, aonde for estará sob o controle da justiça do rei. Você foi marcada com a flor-de-lis. Cada qual saberá que passou pelas mãos do carrasco e que não está entre as pessoas recomendáveis.
Espero que isso a torne propensa a um pouco mais de prudência e de discernimento no comércio de seus encantos...
Ela mantinha os olhos obstinadamente baixos. Como não fora reconhecida, não queria dar-lhes a oportunidade de examiná-los muito de perto. Não registrara nenhuma das palavras pronunciadas, a não ser: "Foi marcada com a flor-de-lis".
Sentia-a profundamente mergulhada em sua carne, a marca infamante que a tornava para sempre condenada pelo rei. Juntava-se ao rebanho das mulheres marginalizadas: prostitutas, criminosas, ladras...
No momento, pouco lhe importava aquilo tudo. Nada tinha importância, exceto a necessidade de sair daqy.ela prisão e de saber o que acontecera com Honorina. -
Deixou que o juiz derramasse sobre ela longas admoestações bastante próximas de um sermão pastoral, para enfim aplicar o ouvido à conclusão:
- Considerando que lhe devo indulgência, pois você faz parte da religião reformada, não a reterei entre estas paredes... Mas devo velar pela salvação de sua alma, e colocá-la em estado de não mais incorrer em erro. Não posso fazermelhor do que confiá-la a famílias cujo exemplo edificante a reconduza ao caminho do bem e dos deveres para com Deus. Mestre Gabriel Berne, aqui presente, disse-me que procurava'uma criada para cuidar de sua casa e de seus filhos. Ele propõe tomá-la a seu serviço, praticando com isso o perdão dos pecados recomendado por Cristo.
Levante-se, vista-se e siga-o.
Angélica não precisou ouvir duas vezes.
Na ruela onde se acotovelavam pescadores, vendedoras de mariscos, trabalhadores das salinas de volta da praia, os imensos ancinhos ao ombro, ela espreitava a oportunidade de escapar ao mercador que lhe conseguira a liberdade, mas a quem de modo algum tinha a intenção de seguir docilmente, como lhe recomendara o juiz. Mestre Gabriel devia adivinhar-lhe os pensamentos, pois segurava-a firmemente pelo braço. Ela se lembrou de que ele tinha o punho vigoroso e sabia manejar o bastão. Possuía um ar plácido e altivo a um tempo.
No Albergue do Belo Sal, ele mostrou-lhe seu quarto.
- Partiremos amanhã com o nascer do sol. Moro em La Rochelle, mas devo visitar clientes no caminho, de modo que estaremos em casa ao anoitecer. Devo informar-me sobre sua boa vontade em permanecer a meu serviço, pois me coloquei como fiador junto ao juiz de que você não tentaria fugir de minha casa para retomar sua vida desregrada.
Ele aguardava uma resposta. Ela deveria protestar boa fé e tranquilizá-lo. Não podia, diante daquele olhar franco, honesto. Rebelou-se, ao contrário, levada por seu mau génio e disse num impulso:
— Não conte com isso. Nada poderá manter-me sob seu serviço.
— Nem mesmo isto?
Ele apontou-lhe o leito elevado, como as camas camponesas, sobre uma arca com gavetas. Ela não compreendeu.
- Aproxime-se - disse ele, com certo ar de troça.
Ela deu dois passos e imobilízou-se. Acabava de perceber sobre o travesseiro a mancha flamejante de uma cabeleira ruiva. Coberta até o queixo, o polegar na boca, Honorina dormia profundamente.
Angélica acreditou que sonhava, e que essa última visão juntava-se ao rosário de loucuras no qual se debatia. Lançou um olhar incrédulo a Mestre Gabriel. Depois seus olhos abaixaram-se, fixando-se nos sapatos do mercador.
— Era o senhor! - sussurrou.
— Sim, era eu. Passava na outra noite pelo pátio da prisão, onde fora ver o juiz, quando uma voz me deteve. Uma voz de mulher suplicava-me que lhe salvasse a filha. Peguei meu cavalo e, ainda que não me agradasse retornar ao local onde fomos agredidos, fui até lá. Tive a sorte de chegar antes do anoitecer. Encontrei a menina ao pé da árvore. Devia ter adormecido depois de muito chorar e gritar. Mas não sentira muito frio. Envolvi-a em minha capa e trouxe-a até aqui. Uma criada, a meu pedido, encarregou-se de alimentá-la.
Angélica tinha a impressão de nunca ter conhecido sensação mais exaltante de libertação. Toda a vida parecia simples, agora que o horrível peso lhe fora tirado do coração. Todos os milagres eram possíveis, pois esse milagre acontecera. Os homens eram bons, o mundo era belo...
- Seja bendito - disse com voz comovida. - Mestre Gabriel, jamais esquecerei o que fez por mim e por minha filha. Pode contar com minha dedicação. Sou sua criada.
Angélica revoltava-se contra o destino. Não era a vida senão uma ronda infernal que a reconduzia de um ponto a outro? Uma comédia monstruosa, detestável, conduzida por um deus cego e sádico?
"Trago a infelicidade aos que me amam...",confessara amargamente ao Abade de Lesdiguière, entre um combate e outro ao lado de revoltosos e saqueadores.
Existiria no mundo um homem capaz de novamente cativá-la? Angélica já não sabia mais! À procura do inatingível marido, o Conde Joffrey de Peyrac, já vivera entre os bandidos e os ladrões de Paris. Correra todas as estradas, todos os caminhos, conhecera todas as privações, todas as prisões... arrastara-se de joelhos, esfolada, em andrajos, entre rostos hostis.
Um ser humano é capaz de tantas coisas!
No próximo volume, Angélica, Clandestina... Maldita, a indomável Marquesa dos Anjos reunirá forças, entre os protestantes encurralados no atribulado porto de La Rochelle, preparando-se para mais uma aventura inédita. Deverá deixar aquela terra, procurar o Mundo Novo, do outro lado do abismo.
Anne e Serge Golon
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