Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
R E C E P T Á C U L O
Depois da Tempestade vem a Bonança
Numa via pública de bastante afluência, postados frente a frente, dois homens, com todo o aspecto de clínicos, questionam com certo entusiasmo.
Um deles parece muito exaltado, ainda que procurando dominar-se; o outro apresenta-se calmo e intenta, com argumentos e subtis gestos, serenar o ânimo do companheiro. Embora com indiscrição, ouçamo-los:
— (...) Prova-me, com um só facto concreto, o procedimento que me atribuis para contigo — pede pausadamente o Dr. Aurélio.
— Tenho a certeza de que isso não é necessário; no entanto, atendendo à consideração em que sempre te tenho tido, vou expor-te o caso que me fez tomar conhecimento dessa vileza — responde energicamente o Dr. Dinis, acentuando bem a última palavra. — Mas exijo que me não interrompas! — faz uma pausa, suspira longamente e prossegue — Há dias apareceu-me lá no consultório uma cliente idosa; queixava-se de que não encontrava medicamentos que conseguissem atenuar-lhe o mal. Perguntei-lhe, então, que fizera a uma droga, que poucos dias antes lhe tinha receitado.
O homem gesticula nervosamente, manifestando repu-gnância e hesitação ao proferir estas palavras:
— A custo consegui que a velha me confessasse que ... que os deitara fora, porque tu a aconselhaste a pô-los de parte, alegando que eu nada percebia de medicina! — sorri ironicamente — E é tudo. Precisas de prova mais clara? Espero ter a paciência bastante para escutar o teu argumento, se o tens.
— Diz-me, — torna o outro — por favor: Essa senhora aparenta uns 75 anos, é quase completamente calva, tem uma mancha bem nítida na face direita e fala com dificuldade; é isso?
— Sim, bem vejo que a conheces; mas o que queres dizer com tais perguntas?
— Quero dizer — atalhou o outro bruscamente — que está tudo explicado.
— Como? Que dizes?!
— Fomos vítimas, simplesmente, de um equívoco, no fim de tudo: julguei eu que essa cliente me falava em “Dr. Dionísio”, no curandeiro! Esse nome é fácil de confundir-se com o teu, bem vês, na voz deficiente da pobre senhora...
O Dr. Dinis dá sinais de dúvida, bem evidentes; o amigo continua, rasgando o envelope de uma carta que acaba de tirar do bolso:
— Aqui tens, meu caro; como podes ver, trata-se de uma intimação ao Dionísio, para que abandone as suas ilícitas funções de médico, sob pena de ser denunciado às autoridades.
O colega toma a carta e lê-a arrebatadamente. Depois, num relance, reconhece a injustiça que fez ao amigo e lança-se-lhe nos braços.
Encontro Tardio
Era quase noite quando aquele bom homem saiu de casa, com o espírito ausente, sem sonhos para sonhar, pensando num passeio repousante, que lhe fizesse esquecer o bulício metropolitano e o peso e canseiras do trabalho, todo o dia enclausurado num edifício enorme e austero.
Os primeiros fumos dos casais já evolavam no ar e antevia-se uma serena noite enluarada. Do crepúsculo apenas sobejava uma poalha fina de tons roxos e o alegre tagarelar das avezinhas.
Vagueou pelos caminhos, que exalavam o tépido aroma dos silvados e da poeira, que alcatifava as pedras seculares.
Sentia-se contente e despreocupado, com a certeza de que ao regressar a casa o aguardava uma ceia quentinha e a satisfazer-lhe o paladar, bem como a amenidade de conversas familiares e o conforto de uma cama para o descanso merecido.
A calma daquela tardinha, no entanto, modificou-lhe os deliciosos pensamentos, porque, por entre estas conjecturas, avistou um mendigo sentado numa parede, com um semblante carregado de sofrimento e de desânimo.
Aparentava uns cinquenta anos. Talvez fosse um marido extremoso e pai de filhos, um desprotegido da vida, ou um homem sozinho sem o conforto de ninguém.
Metia dó! A barba crescida, quase descalço, coberto de trapos e negro chapéu na cabeça.
Aproximou-se dele, devagar, com delicadeza e dirigiu-lhe a palavra, acompanhada de gestos subtis:
“Por que está tão triste e permanece neste local, afastado de tudo e de todos?”
Apenas o silêncio permaneceu. Quase num sussurro, muito próximo, insistiu:
“Em que posso ser-lhe útil? Desejo fazer alguma coisa por si!”
O pobre levantou um pouco a cabeça e, repleto de amargura, de soslaio, falou para o interlocutor:
“Já não há nada a fazer por mim, porque caminho a passos largos para o único sossego que ambiciono. O mundo castigou-me sem eu merecer: tinha uma família que adorava e destruíram-ma; possuía largos bens e despojaram-
-me deles; gozava de excelente reputação e amesquinharam-me com vis calúnias; era um homem bom, com gosto por viver e transformaram-me em ruindade e a existência num inferno; vestia com decência e agora cubro-me de andrajos; desfrutava de mesa farta e fizeram-me conhecer a fome e a miséria. Tudo, portanto, se foi e nada resta, a não ser os desejos de que a Morte chegue depressa e me leve, para findarem tantos sofrimentos!”
“Pobre homem, sossegue o espírito, que a esperança é a última coisa a morrer. Venha daí comigo, porque na minha casa terá uma ceia, um leito para descansar, uma palavra amiga e alguma coisa se há-de arranjar para remediar e reconstruir a vida...”
Ele, então, olhou-o bem de frente, mas com um sorriso de imenso amargor, e retorquiu:
“Está tudo consumado, nada vale a pena, porque estou no limite das minhas forças e só a paz do cemitério pode arrumar o turbilhão das desgraças e dos dolorosos pensamentos!”
Todos tinham passado por ele, de olhar frio, indiferentes, sem um aceno de fraternidade ou de ofertas reconfortantes. Agora as palavras eram ocas, desbotadas, gastas e nada lhe diziam. Outrora, seria suficiente, para o redimir, o conforto de uma palavra amiga, o suave amanhecer de uma esperança...
Por isso, alquebrado, com lentidão, ergueu-se e caminhou, a cambalear, desaparecendo, ao longe, com o chapéu negro, como a sua desdita, e o fato roto e rasgado como a sua alma...
O Bonito
O Miguel tinha 9 anos, frequentava o 4.º ano de escolaridade, sendo um aluno brilhante e muito bem comportado. Em casa era acomodado, entendia-se bem com os dois irmãos, um pouco mais velhos, e gostava de ser prestável, quer em pequenas tarefas caseiras, quer na escola.
Os pais eram uns agricultores remediados, respirando--se um bom ambiente familiar.
Possuíam algum gado, um cão, dois ou três gatos, um capoeiro bem sortido, com diversas aves, e uma égua.
Ora, desde pequenino que o Miguel desejava satisfazer um lindo sonho: ter um cavalinho!
As coisas, porém, não corriam de feição, porque a égua já emprenhara umas quatro vezes e nunca vingou os filhos. E, cada vez que o pai o informava de que a égua alcançara e que, possivelmente, iria nascer um cavalinho, o filho recomeçava a alimentar o lindo sonho. Logo se imaginava a tratar do animalzinho; a pastá-lo nos campos, vendo-o comer a erva verde e tenra; a fazer-lhe imensas carícias; a brincar e a correr com ele; a prepará-lo para o montar e fazerem grandes jornadas...
Quem espera sempre alcança e o pequeno também acabou por ver o antigo sonho concretizado.
Uma vez mais a égua emprenhou, a gestação decorreu sem problemas e, numa certa manhã de Novembro, pariu um belo cavalinho!
O Miguel nem queria acreditar: era mesmo o exemplar dos seus sonhos, e parecia tê-lo já visto e com ele convivido. E é claro, sem perder tempo, começou a pôr em prática os projectos que sempre planeara: baptizou-o com o nome de “Bonito” — e que o era verdadeiramente; tratou dele com mil cuidados; divertiam-se como se fossem irmãos; bastava chamá-lo de longe, para que viesse em louca correria ao seu encontro. Depois, começou a montá-lo e a dar grandes passeios, ora a trote, ora a galope e ficava-se com a impressão de que apenas quando estava com o patrãozinho o animal se sentia mais alegre e satisfeito.
Este lindo sonho durou dois anos.
Uma noite, após a ceia, com muito jeito e comovido, o pai disse que era obrigado a vender o cavalinho, porque precisava de arranjar dinheiro para custear umas despesas domésticas, mas que, se Deus quisesse, não tardaria muito a nascer uma nova cria e que, entretanto, também as finanças se normalizariam e não haveria necessidade de vendê-la.
Foi um tremendo balde de água fria que despejaram sobre o miúdo, que ficou triste, com os pensamentos ausentes e sem palavras para proferir.
O pai efectuou a venda e o Miguel, a pouco e pouco, conformou-se com o sucedido, mas as imagens e vivências do seu querido companheiro, nunca mais se lhe varreram da memória.
Passados quatro anos, o Miguel acompanhou o pai a uma feira. E, quando vagueavam de um lado para o outro, observando as mercadorias expostas, de repente, e até lhe pareceu que delirava, viu um feirante montado no “Bonito”... Mas seria, de facto, o seu amigo?
Chegou-se a ele, ansioso, passou-lhe a mão pelo focinho e pronunciou, medroso e meigo:
“Bonito, Bonito!”
Foi um momento único na sua vida: o magnífico quadrúpede reconheceu-o de imediato, mirando-o com uns olhos de profunda ternura e parecia que expressava o mais puro e aberto sorriso...
O pai tudo observou e, sensibilizado e com doçura, disse ao filho:
— Vou tentar que o dono nos venda o “Bonito”...
A verdade é que celebrou o negócio e o Miguel regressou a casa, com uma alegria indescritível e com outro sonho que jamais pensara realizar-se, montando o seu soberbo cavalo!
Último Rufo
A guerra não poupa nem respeita ninguém. Desconhece os sentimentos mais puros e os direitos mais elementares e sagrados que a Humanidade consagra, mas que raramente se cumprem. Crianças, jovens, mulheres e idosos, sem o desejarem e nada terem contribuído para a situação, são impelidos para o palco das operações. A lei do mais forte oprime, amesquinha, obriga, sacrifica e destrói o mais fraco.
Deflagram guerras por uma ninharia e, às vezes, até se inventam, com a destruição de tudo por onde se passa e cometendo actos de autêntico vandalismo.
Por isso, naquela grande Nação africana, onde todos cobiçam as suas imensas riquezas, há largos anos se trava uma contenda fratricida e ambiciosa, que teima em não terminar, malgrado tantos e bem intencionados esforços.
Como em vezes incontáveis, um dia, uma hoste de homens de uma das facções beligerantes, armados até aos dentes e embuçados numa capa de rancor, entrou numa pequena e pacata povoação, arrebanhando os habitantes e impondo-lhes que os seguissem. Os que podiam manejar armas eram coagidos a fazê-lo. Aos restantes eram distribuídas tarefas, conforme as posses e aptidões.
Neste contexto, um rapazinho, franzino, com uns tenros oito anos de idade, foi incumbido de rufar um tambor, quando disso houvesse necessidade. Na sua inocência, muito embora se encontrasse bem longe da terra natal e apartado dos familiares e amigos, dava a impressão de que aquela escolha o satisfazia.
Na frente, aprumado, sem temor, convencido de que estava a desempenhar um papel relevante e que a sua presença era imprescindível, nunca teve hesitações, sendo o primeiro na marcha, rufando com força e cadência o instrumento já tão querido.
Todos admiravam a sua audácia e abnegação que, indiferente ao perigo e arrojado, lhes apontava e abria o caminho a seguir.
Num curto espaço de tempo adquiriu o certificado de bravo, de herói, de incentivador, de perseverante, de corajoso e leal. Era, portanto, um bom exemplo a imitar.
Numa noite, como em tantas ocasiões sucedera, teve lugar uma terrível emboscada inimiga ao acampamento, que, embora com vigias atentos, descansava das fadigas rotineiras. Travou-se renhido tiroteio, houve o tradicional saque e enorme debandada, sendo forçados pelos intrusos, os que sobreviveram, a acompanhá-los como reféns.
De manhã, logo que o belo dia principiou a iluminar a terra, abraçado ao seu tambor, encontraram o heroizinho estendido no chão, fuzilado por injusta bala perdida...
A Capelinha
As inúmeras aflições que o dia-a-dia acarreta fazem com que, de vez em quando, se pare um pouco para meditar... Também, em muitas dessas horas aflitivas se promete o Sol e a Lua e, ainda, noutras tantas ocasiões, é impossível cumprir o prometido. Se nos momentos difíceis fosse viável avaliar a extensão dos compromissos assumidos, por certo se não fariam. Mas, em todos os tempos houve e ainda vai havendo quem se esmere em ser fiel aos seus princípios e em honrar a palavra empenhada: e assim é que, realmente, se deve proceder.
Segundo reza a tradição popular (e já lá vão mais de dois séculos), em certa noite frigidíssima do começo de Janeiro, um garboso fidalgo ainda moço, regressando de uma visita a umas propriedades longínquas, tinha que atravessar um lugar montanhoso e desértico, para chegar à sua casa senhorial.
Quando estava prestes a alcançar o cume, viu-se rodeado por uma considerável alcateia de lobos esfaimados, que o perseguia.
Ensaiou várias formas de a dissuadir, mas tudo em vão, porque as feras cada vez fechavam mais o cerco e já investiam contra o possante cavalo que montava.
Tratava-se de um cavalheiro muito piedoso e, ciente da embaraçosa situação em que se encontrava, com sinceridade, rogou a intervenção do Senhor dos Aflitos, imagem que a família sempre venerou, e fez voto de Lhe erigir uma capelinha no cume daquele descampado.
De repente, uma força interior o reanimou e impeliu a esporear o cavalo, que desatou num galope alucinante, deixando cada vez mais afastados os lobos, que uivavam, corriam, mas jamais o alcançaram.
Chegado à mansão, salvo de todos os perigos, logo pensou na concretização da promessa: meses volvidos, bem no alto, pequena, humilde e airosa, lá estava levantada a capelinha, com um minúsculo altar, encimado por uma bela e expressiva imagem do Senhor dos Aflitos.
Não era tarefa fácil chegar-se ao inóspito local, mas os devotos começaram a afluir e, em curto espaço, o terreiro era estreito para acolher tantos peregrinos.
Hoje ainda é a mesma capelinha que alveja no cimo do cerro, sempre bem zelada, interior e exteriormente, porque não falta quem se esforce por mantê-la um brinquinho no decurso de todo o ano. Mas, sobretudo, sobressai o asseio e solenidade no dia da grande festividade, no domingo a seguir ao dia de Reis que, diz a tradição, é a data que celebra o milagre do favor concedido ao fidalgo!
A Herança
Ainda jovem, o casal emigrou para África, na mira de fazer fortuna. Fruto de persistente e árduo trabalho, ao fim de vinte anos tinha atingido os objectivos que o norteou. Os seis filhos, quatro rapazes e duas raparigas, foram nascendo, premiados com rios de ternura, felicidade e esmerada educação. Vivia muito bem aquela família, nada lhe faltando, porque tudo fazia para que assim sucedesse.
Certa noite, quente e enluarada, um grupo armado invadiu a propriedade, saqueando-a, destruindo tudo por onde passava e raptando todos os membros da família.
Os quatro rapazes — Martinho, Ismael, Tiago e Simão— — conseguiram evadir-se e, de refúgio em refúgio, alcançaram a povoação mais próxima, onde foram bem acolhidos.
Habituados a uma vida sem barreiras, conheceram toda a espécie de privações: visitou-os a fome, a amargura e a desolação; faltou-lhes amor, protecção, trabalho e um local para habitarem; sofreram com a miséria e o abandono.
Viveram peripécias incríveis e sem conta, até que, num rude Inverno, clandestinamente, no desconforto do porão de um barco de carga, desembarcaram em Lisboa. Tiveram trabalho garantido na construção civil. Aceitaram e foram morar num ínfimo casebre, muito velho e pobre, sem um mínimo de condições. Tornaram-se assíduos e excelentes operários, com uma remuneração muito baixa, que os não deixava sair da cepa torta.
Partilhavam as enxergas aos pares, os mais novos e os mais velhos. Entendiam-se bem, respeitavam-se e havia o espírito de entreajuda. Neste contexto decorreram meia dúzia de anos.
Um dia, com grande surpresa, foram convocados para comparecerem na Embaixada do seu país de origem, sendo-lhes comunicado que os pais e as duas irmãs tinham morrido e que eles eram herdeiros de uma fortuna considerável. Quando quisessem poderiam regressar e assumir a administração dos bens.
Estupefactos, voltaram ao casebre, cada um pensando em algo que aos outros não revelava e que era bem tenebroso. Fôra uma bela surpresa, verdadeiramente um sonho! Em voz alta arquitectavam planos para a inesperada situação. Sentiam-se felizes, porque, depois de enormes sacrifícios e desamparo da Sorte, a mesma Sorte lhes restituía o conforto e a abundância. Combinaram partir, sem mais delongas, para usufruírem da fortuna, que também ajudaram a realizar.
Tudo resolvido, voaram rumo ao rincão que lhes deu o ser e maravilharam-se ao revê-lo, não evitando o aparecimento de grossas e sentidas lágrimas de comoção.
Dedicadamente, velhos e fiéis serviçais tinham zelado pelas propriedades e, humildes e espantados, mas satisfeitos, entregaram tudo aos legítimos donos.
A habitação que encontraram era uma airosa e confortável mansão, dormindo dois em cada quarto, em magníficas camas, como dantes nas coçadas e andrajosas enxergas. Os seus corações, porém, tinham enegrecido e não se harmonizavam com este conforto exterior.
Os mais novos, Tiago e Simão, começaram a urdir um plano maquiavélico, com o intuito de liquidar Martinho e Ismael. Por isso, subornaram um criado, para que, numa noite, despejasse no quarto dos irmãos uma botija de gás venenoso, durante o sono, de forma a asfixiá-los. E, para não levantarem suspeitas, combinaram ir caçar para um montado bastante retirado.
Sabedores da jornada, os irmãos mais velhos contrataram um malfeitor para os seguir à distância e assassinar. E, do mesmo modo, para não serem incriminados, resolveram ir pescar para uma barragem, que distava uns duzentos quilómetros dali.
Já no local da caçada, Simão, à queima-roupa, premiu o gatilho da espingarda e disparou sobre o irmão, que teve morte imediata.
“Sou o mais novo e hei-de ser o único senhor da herança!”
Preparava-se para abandonar o ermo, quando um chuveiro de zagalotes o crivou e abateu.
No outro cenário, enquanto Ismael fingia que pescava, Martinho foi ao carro buscar o farnel, porque a fome já apertava, mas demorou-se por lá um bom bocado. Chegou junto do irmão, muito amável e bem disposto, convidando--o para merendar. Num relâmpago, sentiu-se agarrado por Ismael e precipitado nas águas frias e muito profundas da barragem.
Ao sabor de um turbilhão de pensamentos, por longo tempo, atento, verificou que Martinho não tornou à superfície.
Acendeu um cigarro, abriu a porta do automóvel, entrou e sentou-se ao volante. Um sorriso ténue e demoníaco era o escape para o nervosismo que o percorria.
“Eu sim, que sou o mais velho, é que tenho o direito de possuir a fortuna e administrá-la ao meu belo prazer. Ninguém me contrariará e não terei de prestar contas seja a quem for. Enfim, sou um herdeiro rico e hei-de ser um senhor!”
Lentamente, enfiou a chave na ignição, rodou-a e... uma brutal explosão, seguida de labaredas, reduziu a viatura e o condutor a um amontoado de sucata e de cinzas...
Castigo Suave
Estava muito bonito aquele fim de Maio, com um deslumbrante sol a aureolar a florida e odorífera Natureza. Inumeráveis botões e variadas flores enfeitavam o vale, o plaino e a serra. As aves pipilavam, despreocupadas: umas já com os ninhos feitos e outras atarefadas na sua meticulosa confecção. As árvores eram estupendos asseios de andores alcandorados e coloridos. Ainda outras, já exibiam minúsculos frutos, a pedir que as boas condições climatéricas os deixassem desenvolver e amadurar...
Um pouco distante das casas da pequena aldeia, numa propriedade isolada e num local quase ermo, uma cerejeira, copada e vaidosa, estava repleta de vistosas e rosadas cerejas, ditas de Santa Cruz, e que convidavam, mesmo os mais tímidos e pouco gulosos, a perderem a cabeça e realizar um assalto ao alheio!
Dois miúdos, com uns treze anos de idade, ao regressarem da escola, pelo fim da tardinha, depararam, estupefactos, com o soberbo espectáculo!
— Mas que belas cerejas! — desabafou o mais atrevido e guloso. E acrescentou, salivando, antecipadamente, a ingestão do precioso manjar: — Quem não sente desejos de trepar à fruteira e comer, à medida da barriga!?
— Não, não, porque praticaremos um roubo! — apressou-se a retorquir o amigo.
O outro, todavia, excitado, sem desistir do desafio, incitava:
— Aproveitemos a ocasião e subamos sem demora!
— Não, isso não, não contes comigo. Além do mais o dono pode aparecer de repente¼
— Àgora!, ele mora longe e nem sonha que nós subimos e que nos regalámos. Além disso, repara bem: a cerejeira está carregadinha até à coroa e a vergar com tamanho peso!
— Tudo isso está certo, mas é um roubo que vamos praticar e eu não alinho. — prosseguiu o outro, com firmeza.
— Pois se não queres arriscar uma aventura agradável e proveitosa, arrisco eu e vou-me fartar. Ora essa é que é essa! — rematou, como um furacão, o afoito rapaz.
E mais não disse: como um felino, trepou e sentou-se num ramo a satisfazer a gula.
— Caramba!, sobe, sobe! Olha que madurinhas, carnudas e gostosas! Deixa-te de ser medricas e não te faças de parvo: salta para cima e depressinha! Olha que eu não te apanho nenhumas: as que levar, vão no papo!
E, pensando apenas no prazer que lhe proporcionava a inesperada e consoladora aventura, galhofava cheio de delícias.
E, absorvido e sorridente, apanhava cerejas às mãos-cheias e comia, comia, baloiçando-se no frágil ramo em que se tinha empoleirado.
De súbito, porém, soltou um estridente e aflitivo grito: o ramo, embora ele fosse leve, com o peso e o balouçar, quebrou-se e, como um pára-quedas, desceu velozmente, estatelando o rapaz no chão.
Acorreu, pressuroso e preocupado, o companheiro. Ao vê-lo, porém, concluiu logo que o incidente não tinha passado de um susto. Todavia, sentenciou:
— Podia ser uma desgraça, companheiro!
— Mas não houve azar! — rematou o lambareiro — E tudo está bem quando acaba bem!
Tomaram o carreiro de regresso a casa e deixaram o local, desta feita, apressadamente.
Já um pouco distantes, caminhando em silêncio e cabisbaixos, de soslaio, remiravam a frondosa cerejeira e os magníficos frutos, sedutores, e cada qual, segundo ópticas diferentes, cismava e extraía impensadas hilações...
Covardia
Decorria o último quartel do século XIX.
João Mateus era o filho primogénito de uma família nobre e das mais abastadas daquela zona. Aluno finalista do curso de Medicina na Universidade de Coimbra, pautava-se por uma conduta irrepreensível. Era alto, bem parecido e um primoroso cavaleiro.
Certa vez, numa festa, conheceu uma bonita rapariga, rica proprietária de uma aldeia próxima, e sentiu atear-se o fogo da paixão.
Durante as férias, sempre que podia, aparelhava o puro e possante cavalo e partia para o encontro tão desejado.
Para manter acesa a chama do terno idílio, tinha de percorrer mais de uma légua, galgando montes desérticos e caminhos estreitos, íngremes, sinuosos e em péssimo estado, onde nunca aparecia vivalma. Ele era um moço arrojado, destemido, respeitado e respeitador, pelo que não conhecia inimigos.
Todavia, na vida, nem tudo são rosas delicadas e inofensivas. Aparecem, muitas vezes, os cardos, que ferem e que é preciso afastar com mil cautelas.
Ora, o ardente namorado, a macular-lhe a pureza e ternura do seu amor, tinha um rival.
Tratava-se de um morgado vizinho da donzela, de grande fortuna, com fama de zaragateiro, mau génio, manhoso e covarde, afeito a não ser contrariado e a levar avante a concretização de todos os vícios e vontades.
Sempre que encontrava um pretexto, abordava a moça, no intuito de convencê-la a romper com o estudante e aceitar-lhe as propostas amorosas. Ela, porém, delicadamente, sempre declinou os argumentos do morgado, com quem, aliás, não simpatizava.
Pelas férias do Natal, certa noite escura e fria, quando João Mateus regressava ao lar, depois de mais um encontro idílico de promessas, enleio, projectos e sonhos, num ermo, ao passar uma vereda estreita e funda, entre duas bouças de denso matagal, mãos ocultas e assassinas desfecharam-lhe violentas e certeiras pauladas na cabeça que, aturdido e desamparado, tombou sobre a laje de granito, gasta pelo tempo.
O cavalo, assustado, sem rédeas, desceu a galope pelos caminhos tortuosos, atravessou o largo que confrontava com os muros da quinta, entrou no terreiro da casa senhorial e, repetidas vezes, relinchou.
O respeitável senhor assomou à ampla varanda e certificou-se de que o animal, selado a rigor, chegara sozinho. Nunca tal havia sucedido. Apreensivo, desceu a larga escadaria e examinou-o com minúcia: verificou que estava salpicado de sangue ainda fresco. Logo concluiu que algo de muito grave impossibilitou o filho de regressar.
Sem hesitações, montou o nervoso quadrúpede e partiu em busca da verdade, que se lhe afigurava trágica.
O cavalo seguiu o trilho que estava habituado a percorrer e só parou no local da tragédia. O pai, de olhar patético, abraçou o filho, alagado numa poça de sangue.
A laje ainda lá está e as manchas avermelhadas que possui recordam ao viandeiro o triste acontecimento.
O Moinho
Quantas saudades do velho moinho e da cena que, numa inesquecível noite, lá vivi! Há que tempos isso foi: mais de quarenta anos! E, no entanto, ainda permanece bem viva na minha memória, como o êxtase de um lindo sonho, acabado de sonhar. Jesus, mas isso já vai tão longe e que coisas, entretanto, foram sucedendo no percurso dos anos!...
Era Agosto, lembro-me bem, um mês com noites amenas, pejadas de luar. Tínhamos completado catorze anos no Janeiro anterior (duas promissoras flores a desabrochar na despreocupada e ridente adolescência)! Eu gozava as merecidas férias, regressado do Porto, depois dos exames da 4.ª classe e admissão aos liceus. Ela já trabalhava na casa de uns moleiros, porque havia quatro, com uma vintena de moinhos, nesse lugar, ao fundo da Lageosa, que confina com Briteiros, para a moagem de milho e centeio e que, por troca ou venda, com burros bem carregados de taleigas, percorriam a terra e as aldeias limítrofes, levando as farinhas necessárias ao sustento das famílias e dos animais.
Mas, voltando ao intróito e ao evento que hoje, comovidamente, me ressalta ao pensamento, recordo que se tratava de uma bonita rapariga, simples, de longos cabelos, sedosos, sempre sorridente e com um suave timbre na voz. Naquele fim de tarde, já com a tépida noite a cair sobre a terra arfante e as primeiras estrelas a cintilar no céu, perto de um dos moinhos, encontrámo-nos. Conversámos largamente, sob a monótona musicalidade da mó de pedra, a aspergir loira farinha. E tudo era belo, infinitamente encantador, à nossa volta!
Nunca tinha experimentado tão agradáveis sensações e tudo era casto entre nós, como a alva espuma, que marulhava e saía das penas do rodízio, a girar, afanosamente, movido pela água desviada do rio Fêveras que, nascido em Pedralva, ali se precipita para o Ave, onde morre.
E nada perturbava o nosso doce enleio! Dissemos muito um ao outro, quase em surdina, receosos de tudo e até de que a própria noite nos escutasse... Tanto sonhámos, que tivemos a certeza da existência de um nobre sentimento a unir-nos.
Por entre o turbilhão das quentes e maviosas palavras que trocávamos, pedi-lhe um beijo, incontáveis vezes e, outras tantas, me foi negado. Não desisti, porque ansiava e carecia de sentir o calor e o paladar de algo para mim desconhecido. A recusa, porém, persistia...
Já era tarde e a lua ia alta, caiando tudo com raios de fagueiro luar. Tínhamos de separar-nos: eu, para subir estrada acima até à minha casa da Bouça, onde tive o berço; ela, recolhendo à habitação, onde duas mós não se cansavam de moer...
“Até amanhã, meu Amor” — tartamudeei eu, melancólico e emocionado.
“Até amanhã” — retorquiu ela, mansamente, como um gorjeio de rouxinol...
E, num ápice, me poisou na face um fugidio beijo e se esgueirou, como se tivesse cometido um sacrilégio...
Fiquei um instante só, sorvendo a doçura daquele inesperado presente, que era o primeiro beijo de amor da minha vida.
O Charik
Sempre gostei muito de animais, especialmente de cães, por julgá-los, na realidade, amigos verdadeiros e fiéis.
Na infância tive um pequenino, cuja raça desconhecia, chamado Bobi, e que morreu com quase um ano de idade, atropelado por uma bicicleta, provocando uma aparatosa queda ao ciclista.
Apelidaram-me e ainda me chamam o *Zé da Bouça*, porque tive o meu berço numa humilde casa de pedra rústica, alugada, numa extensa bouça, no lugar do Regueiro, rodeada de imenso arvoredo e verduras; mimada pelo mavioso canto de diversificadas aves, que sempre me deleitou; ornada por enormes tapetes de gipsofila na Primavera e por um festão multicolor de flores em cada estação do ano. Enfim, o paraíso que habitei até aos dezanove anos, data em que mudei para casa própria, que os meus pais construíram no lugar do Monte, resultado da emigração de meu pai para França, em 1965 (que em muito veio alterar para melhor a qualidade do viver do nosso lar), e da minha mãe ter sido sempre muito poupada e mulher de vida e de boas contas. Em jeito de graça, devido a esta mudança de residência, costumo dizer que passei da bouça para o monte!
O Bobi vinha sempre esperar-me ao princípio do carreiro, para me fazer companhia nesses cerca de duzentos metros que havia a palmilhar entre a estrada e a casa.
Aliás, era na janelinha do meu quarto que me debruçava e permanacia tempo sem-fim, extasiado, a escutar os rendilhados feitos de gorjeios e de trilados, despedidos das gargantas de prata dos rouxinóis, ora nos amieiros e salgueiros do Fêveras, o meu rio da pesca e de prolongados e saborosos banhos nos dias de calor, que passa lá ao fundo da Lageosa, com límpidas águas a marulhar, a caminho do Ave, ora no loureiro, suspenso à beira do tanque, pertinho de mim.
Quando casei e passei a residir em Freiriz, por ironia do Destino também assentei praça num lugar sossegado e no meio de enormes e velhos pinheirais, nunca deixando de ter um ou mais cães...
O episódio que vou narrar e que até podia ter tido um fim trágico, prende-se com a fidelidade e inteligência de um pastor alemão, que à época possuía, chamado Charik.
O meu filho mais velho, o João Pedro, nasceu em Março de 1978. Como eu e a mãe trabalhávamos em Braga, o menino ficava à guarda dos avós maternos que, diga-se em abono da verdade, gostavam tanto dele que foi como se lhes tivesse saído a sorte grande. Recordo-me que a avó, aquando do parto fez questão de acompanhar a filha no quarto do hospital de Vila Verde e queria ter sempre o bebé ao colo, alegando que a mãe até o podia abafar!
O avô vinha buscá-lo muito cedo, agasalhando-o debaixo da samarra forrada a lã; brincava com ele; levava-o para o eido, para o vigiar e ter sempre ao seu alcance, enquanto podava as videiras ou executava outros trabalhos, ou se deitavam numa manta de trapos debaixo das laranjeiras.
Infelizmente, morreu pouco depois, em 5 de Novembro de 1979, vítima de um enfarte do miocárdio, estando deitado na cama, a falar para o neto que, na salinha, à sua vista, dava gargalhadas, fazia piruetas e fingia esconder-se, no parque de rede.
Apesar dos seus tenros vinte meses sentiu imenso a falta do avô, assim como a partida da avó, quatro anos mais tarde, a 7 de Outubro de 1983.
O Charik era a perdição do João Pedro e vice-versa: metia-lhe a mão na boca; dava-lhe beijos e pendurava-se-lhe nas orelhas e no pescoço; corriam um atrás do outro; montava-o, como se de um cavalo se tratasse... Enfim, um autêntico circo! E é que o Charik não permitia que alguém tocasse em tudo o que ao parceiro pertencesse!
Dias após a morte do avô, pelo meio de uma tarde, a avó distraiu-se e o Pedro desapareceu com o inseparável amigo.
Caminhou ao Deus-dará, até que não soube voltar para casa. Ao dar pela sua falta, chamando menino e cão, só este aparecia e desaparecia, ninguém ligando ao caminho que ele indicava, investindo, a latir, abanando o rabo e com as orelhas muito guichas.
Correu o boato da desaparição do miúdo, juntou-se inúmera gente, procuraram uns por cada lado e já a noite descia e o Pedro sem dar sinal de vida.
Por fim, uma senhora, madrinha de baptismo da mãe, deu com ele à beira de um rego com bastante água corrente, sentado, molhado dos pés à cabeça e a tiritar de frio; a chupeta, de que muito gostava, na boca e a choramingar; muito fatigado pela longa caminhada, solidão e tempo de espera, a dormitar...
E afinal, o Charik, tinha indicado sempre o rumo certo, sem que alguém o entendesse e seguisse¼
Um Acto Heróico
Havia vários dias que, à tardinha, o Artur rumava para o espesso silvado, ao fundo do quintal, e colocava uma gaiola, com o disfarce para um pássaro cair na esparrela. Depois, pela manhã, mal os primeiros laivos de luz surgiam, corria cauteloso e expectante, para verificar se, mais uma vez, não fôra inútil a meticulosa tarefa. Tanta esperança e trabalho e, todavia, sempre gorados os intentos: achava a armadilha como a deixara!
Diz o nosso povo, e sabiamente, que “quem espera, sempre alcança”. E a verdade é que saber esperar é difícil, mas constitui uma grande virtude, porque todos gostam de ver realizados, de imediato, os projectos que arquitectam. No percurso da vida verificamos que não pode suceder tudo como ambicionamos, tendo que existir esforço e garra para atingir os fins a que nos propomos. E a vida só é bela se a soubermos viver, saboreando as conquistas, ou os nadas do dia-a-dia. Cada pequena batalha, ganha honestamente e fruto de constante empenhamento, deve ser motivo de efusiva alegria.
E o Artur, na sua tenra idade, embora bem no íntimo, como quaisquer crianças ou adultos, preferisse, na manhã seguinte à tardinha em que colocara o cacifo, encontrar o produto que tanto desejava, isto é, um dos melros que permanentemente ouvia assobiar tão bem ou, como compensação, um passarinho qualquer (e ele conhecia tantos e deliciava-se com os variados chilreios), habituou-se a aguardar, convicto de que a realização do lindo sonho chegaria alguma vez!
E chegou... E que surpresa!
Numa manhãzinha, coberta por denso nevoeiro, ao aproximar-se do sítio onde deixara a gaiola, ouviu sons de qualquer coisa que se debatia, renhidamente, para libertar-se. Reparou e nem queria acreditar: um melro dos velhos, pretinho e de bico amarelo, que tentava escapar-se, com as penas eriçadas e muitas já caídas, investindo com fortes bicadas contra a rede, com as unhas, frenéticas, a arranhar e, fincadas, para forçar e destruir as barreiras impeditivas da saída, silvando com fúria. Um cenário desolador, que lhe alterou por completo os muitos planos: assistia a uma luta insana, titânica, dramática pela vida, travada para recuperar a roubada liberdade...
E ainda, de repente, atónito, assistia a outro inesperado espectáculo comovente: no silvado, pertinho da prisão, quatro melrinhos, que mal sabiam voar, aos saltinhos e a piar com desespero, suplicavam pela solta do seu progenitor...
Sem dar conta, os olhos marejaram-se-lhe de grossas e sentidas lágrimas, lavando-lhe o rosto infantil e dolorido.
Não hesitou: de um salto, pegou na gaiola, abriu a portinha e restituiu a liberdade à presa, que lhe pertencia, pois representava o culminar de tantas ralações, esperanças e paciência...
Com a ternura e sentimento de uma criança da sua idade, agora feliz e deliciado, observava a saudável confraternização e fuga do reduzido bando.
Lentamente, inebriado pela boa acção que praticara, regressou ao conforto da casa e à salutar companhia da irmãzita e dos pais!
Extraviada
Mediana de estatura, modesta, trabalhadeira e simpática, era uma boa mulher. Enquanto pôde (e fê-lo até à velhice) olhava pela vida de casa, educava os sete filhos e era tecedeira. Como tantas da aldeia, ia bastante longe buscar as pesadas teias de algodão, que depois tecia num tear de madeira artesanal.
O marido era um humilde serrador e mestre deles (na terra e arredores conhecidos por *serrinhas*), que, de vez em quando, comprava uma partida de madeira, serrando-a de seguida, quase sempre no local de abate das árvores.
A dedicada esposa e extremosa mãe vivia pobremente, mas com limpeza e honestidade.
Pelos setenta anos, lentamente, começou a perder o tino. Os filhos eram obrigados a andar sempre com os olhos fixos nela, para minimizar as asneiras que, inconscientemente, praticava, mantendo-a bem ao seu alcance.
Ora, um certo dia, furtando-se à apertada vigilância, desapareceu de casa. Ao dar pela sua falta, preocupados, os familiares iniciaram uma busca por tudo quanto era sítio, juntando-se-lhes diversa gente. Percorreram-se bouças, campos, caminhos e carreiros, sem ser encontrado rasto algum da sua passagem. Deram-se inúmeros palpites, desenharam-se possíveis e até incríveis cenários, mas sempre em vão. Onde se embrenharia a malfadada?
Era imprevisível o desfecho e, malgrado baldados esforços e incontáveis tentativas, não havia jeito de achar-lhe o paradeiro.
Já dentro da noite, num lugar ermo, metida numa comprida mina, rasgada para chegar a uma nascente de água, que alimentava uma poça de rega, encontraram-na, de borco, com a boca mergulhada no reduzido veio corrente, segurando em uma das mãos a candeia ainda acesa, que a guiou no último percurso da terra e agora a iluminava para a prestação de contas ao Criador, o Deus em que sempre acreditara e servira ao longo da vida...
Na Levada
Naquele extenso campo, na levada do regato, um rapazito, com os seus treze anos, imensamente atento, segurava a comprida cana, cujo anzol, com uma minhoca a revesti-lo, tinha mergulhado na limpidez da água represada e teimava em não ludibriar o cardume de alguns peixes variados que, de vez em quando, vinham à superfície.
Há longo tempo que ali permanecia, concentrado, sem que alguma coisa caísse na esparrela. Próximo, todavia, um hábil profissional, homem de aspecto maduro e bondoso, cada vez que lançava o isco retirava para o cacifo um exemplar: ora uma boga, ora um escalo, ora uma truta... E o miú-do, observador, sem desistir, nada apanhava.
De repente, o semblante iluminou-se-lhe, cravando os olhos na ponta da cana, que vergava ao peso de grossa caça! Foi puxando, puxando, até enxergar o anzol a emergir, sustendo um enorme peixe, que se debatia para libertar-se da malha que o traíra. Fixara-se naquele prémio merecido e aguardado há muito. Que rica prenda, que belo espécime!
Devagar, mas com ânsia e o coração a bater apressadamente, continuou a puxar para si a cana, já a pensar na forma de acomodar o bicharoco. Era mesmo comprido, espalmado, reluzente como a prata e não cessava de dar esticões...
Num relance, sem que coisa alguma o fizesse prever, a boca do peixe rebentou, mergulhando este na levada, formando-se, na tona das águas, um sem-fim de bolhas: e nelas, o estupefacto menino, desejava vislumbrar o fruto da sua perseverança. Jamais o viu. Evadira-se e regressara ao seu habitat.
Então, profundamente comovida, a criança desatou num choro convulsivo, gemendo e soluçando. Ficara profundamente desapontada com o sucedido.
De tudo se apercebeu o companheiro de ofício que, chegando-se, pausada e carinhosamente, lhe fala, tentando consolá-lo:
“Não fiques triste, pequeno, por perderes esse peixe; toma os que quiseres do meu cacifo e seca tamanho pranto!”
“Eu não choro pelo facto de ficar sem o peixe que me caiu no anzol, mas sim por ter perdido o fruto de tanta paciência e passageira satisfação. Era meu, porque me sacrifiquei para alcançar um resultado consolador e, quando tudo tinha, sem nada fiquei...”
Retruca-lhe o simpático companheiro, deveras sensibilizado:
“Na Vida hás-de achar incontáveis momentos como este que, em lugar de te premiar, te farão verter amargas e co-piosas lágrimas, como as que agora te lavam a inocência do rosto...”
Um Tesouro Maldito
Recordo, como se fosse há pouco, aquela bonita sexta--feira, 3 de Maio de 1957, com incontáveis folhas e flores a ornamentarem o mais recôndito lugar. Havia sol, muito sol, a aureolar a terra com deslumbrantes raios luminosos. A passarada cabriolava nos arvoredos, pipilando despreocupadamente. A Primavera vestia-se com o seu fato mais esplendoroso, saudada pelos cantos de cucos, rolas, poupas, melros e tantas outras aves, que desempenhavam o seu papel na incomensurável orquestra da Natureza. Que belo Maio e que ridente dia!
Levantei-me muito cedo, como aliás era meu hábito na infância, sempre ansioso de partir para a escola. Nesse ano, frequentando a 3.ª classe, tinha aulas só da parte da tarde. E para essa data havia sido combinada a limpeza do jardim da nossa escola. Por isso, cada aluno muniu-se de um apetrecho, levando eu uma sachola pequena. Raparam-se as ervas, retiraram-se plantas, ramos, folhas e flores já murchas; nos canteiros, substituiu-se o que se arrancou e colocaram-se outras espécies. Fez-se uma rega geral, depois de tudo bem sachado e limpo. Ficou um brinco, na verdade, porque todos deram o seu melhor.
No recreio, um colega, às escondidas, mostrou-nos um pequenino cilindro amarelo, que depois soube tratar-se de um fulminante de dinamite. Diversos companheiros o quiseram negociar, mas eu fui o preferido, dando em troca um lápis de cor. Escondi-o bem escondido e fui perseguido até à tardinha, para mo tirarem. O destino, porém, estava traçado: o tesouro pertencia-me e dele haveria de colher os amargos louros!
Disseram-me que o reduzido objecto estoirava, provocando um raro espectáculo de cores, razão por que tentei fazê-lo explodir, com o auxílio de amigos e sempre às escondidas. Bem lhe arremessámos pedregulhos, mas teimou em não rebentar, acabando eu por recolher a casa, com a ideia fixa de concretizar o meu desejo.
A lareira crepitava e o pote fervia ruidosamente. Dois vizinhos, mais novos que eu, estavam pertinho de mim. O meu pai foi até à sala; a minha mãe segava as couves para o caldo; eu sentei-me num banquinho de madeira e fui-me chegando o mais possível para a labareda; atento a tudo, discretamente, retirei do bolso o fulminante, acomodei-o entre os dedos polegar, indicador e médio da mão esquerda e, com a direita, peguei numa caruma, que acendi e aproximei do cilindrinho... Ouviu-se uma tremenda explosão, todos desataram aos gritos e eu fui invadido, pela derradeira vez, por estranha luz que foi também a última que os meus olhos viram¼
No meu percurso, a cada instante, têm surgido rosas belas e rudes cardos, mas eu tenho caminhado e prossigo, com pé firme, tentando olvidar o Passado, vencer o Presente e rumar ao Futuro, guiado pela enorme e sólida tocha, que acendi quando era criança, que jamais esmoreceu e que me esforço por manter bem viva, a fim de iluminar as sendas que se me vão abrindo...
Dívida Saldada
O Francisco era ainda pequeno, com uns seis anos de idade e, numa tardinha do mês de Junho, quando regressava a casa com o pai, vindos do campo grande, que ficava na margem do ribeiro e corria ao fundo da aldeia, ao passar junto às “Alminhas” — uma bonita obra de arte em pedra rústica, que embelezava um lugar central onde transitava muita gente —, encontrou um médio cão rafeiro, na valeta da estrada, magrinho, maltratado, a gemer desesperadamente e, por certo, já sem esperanças de recuperação.
Ao vê-lo naquele mísero estado, com compaixão e sem hesitar, aproximou-se do padecente, fez-lhe uma leve carícia e falou-lhe mansamente. Parece que o pobrezinho compreendeu que tinha ali um amigo e protector, porque deixou de gemer e pôs-se a lamber, agradecido, a mãozinha que se lhe estendera num gesto infantil e fraternal.
Com rogos e argumentos convenceu o pai a que o deixasse levá-lo para casa, a fim de prestar-lhe os cuidados precisos. E de facto, tal entusiasmo e empenho observou no filho, que ele mesmo pegou no bicho ao colo e o transportou.
Tornaram-se, verdadeiramente, sinceros amigos. O Francisco preocupava-se em dar-lhe de comer e zelar para que nada lhe faltasse. E o cãozinho tudo reconhecia, porque, sempre que o deixavam, não largava o seu benfeitor. E até quando o menino esteve uns dias retido na cama, com febres altíssimas, o animal apenas sossegou no instante em que teve permissão para entrar no seu quarto e deitar-se no tapete ao lado da cama.
Sempre que tinha momentos em que a febre baixava havia lugar para a troca de mimos e aos pais deu a impressão que o filho recuperava mais depressa, sentindo pertinho a presença do cão.
Na parte mais alta do extenso quintal havia um grande e profundo tanque, com uma bica de água abundante e limpinha, sempre a cair, vinda entubada da nascente de uma bouça que possuíam no cimo de um monte.
Os pais bem o alertavam para os perigos que corria, indo, sozinho, brincar para o tanque. Mas era mesmo uma tentação: logo que surgia uma oportunidade lá estava o Francisco junto dele, com barquinhos de papel ou de cascas de pinheiro a boiarem e, quando o encontrava com pouquinha água, deliciava-se a dar uns largos mergulhos. E claro, o seu cãozinho nadava a seu lado como um profissional.
Certo dia de Agosto, pleno de sol por todos os recantos, resolveu o pequeno ir para junto do tanque, que estava quase a esbordar. Trepou para o lavadouro, onde a mãe costumava esfregar as roupas e trapos da casa e, quase de imediato, escorregando num bocado de sabão, caiu na água e foi ao fundo. Vinha à tona, tornava a afundar-se, batalhava com as mãos e com as pernas, gritava, mas não conseguia livrar-se daquela situação embaraçosa. Estava desesperado e não tinha quem lhe pudesse valer...
Mas estava a ser ingrato, já que alguém muito sofria: o amigo fiel!
Na confusão não o tinha na lembrança, porque também o não vira quando subiu para o lavadouro. Desta forma, pareceu-lhe, instantaneamente, tratar-se de um milagre quando viu o rafeiro, no centro do tanque, a nadar para ele, a cravar-lhe os dentes na camisa e a arrastá-lo para a borda, onde o rapaz se agarrou, salvando-se.
O Ramiro
Quem não conheceu o Ramiro, na segunda metade do século passado, na aldeia de origem, Lageosa, ou numas várias léguas em redor?!
Oriundo de uma família humilde e respeitada, bem parecido e alimentado, de estatura acima do mediano, desde pequeno que enveredou pela profissão de sapateiro, tornando-se, mais tarde, num empenhado e perfeito artista, ensinado pelo irmão Alfredo, que era dono de uma oficina, na frente com um terreirozinho, a que duas velhas e grandes oliveiras davam sombra, junto da estrada nacional.
Em criança foi vítima de uma doença grave e prolongada, talvez uma meningite, que lhe deixou sequelas profundas para o resto da vida.
Era um bom-serás, amigo de ajudar e bastante pretendido pelas moçoilas. Senhor de uma potente, harmoniosa e bela voz, cantava afinadinho, sendo muito alegre e jovial. Apreciava umas boas e copiosas pingas, que, imensas vezes, o faziam andar de gatas e dormir umas sonecas em locais impróprios e pouco confortáveis.
Casou e foi pai de três filhos, um rapaz e duas gémeas, tendo conhecido a felicidade e os fracos bafejos da Sorte.
Enviuvou cedo e não mais se consorciou, embora se badalasse (e ele assumia), que era pai de uma menina, filha de mãe solteira.
Depois que o irmão encerrou a oficina e emigrou para França, passou a alimentar a preguiça, dando tiros permanentes no trabalho e vivendo de habilidades.
Também acabou por ir parar a Toulouse, mas, após um período reduzido, certamente a rebentar com saudades, tendo recebido uns francos de salário, que lhe permitiram pagar a viagem de comboio, sem avisar os familiares, que o haviam chamado e acoitavam, desertou para Portugal, com os bolsos vazios como quando partira.
Não era voz corrente que praticasse o roubo, mas cultivava uma forma delicada para extorquir uns cobres das carteiras alheias, sempre que se lhe deparava uma ocasião e a necessidade a isso o obrigasse, utilizando uma bem elaborada e convincente persuasão e fiado paleio... Aliás, mentia desalmadamente, realizando-se um milagre quando se lhe apanhava uma verdade!
De qualquer maneira, nas arquitectadas e modestas burlas em que se envolvia, não era exigente, e muito menos violento, bastando-lhe algo que resolvesse problemas imediatos ou a curto prazo.
E então, poder-se-ia desfiar um rosário infindável de peripécias, que ilustravam o seu dia-a-dia: hoje, em Braga, amanhã, em Chaves, depois, em Lamego, no Porto, em Cabeceiras de Basto, em Coimbra, em Viana do Castelo...
Era, como se depreende, um Judeu errante, isto é, gostava de mudar de ares, pois não aguentava muito tempo no mesmo sítio, sem eira nem beira, conquanto possuísse casa própria no cimo da freguesia.
As queixas apareciam aos montes, mas as autoridades respondiam que nada podiam fazer, porque o Ramiro não roubara, apenas procedera habilmente...
(...) Constava que há tempos o seu paradeiro era no Porto.
Um certo dia, de táxi, apareceu na casa da irmã e madrinha e, ao despedir-se, abatido e com a cara lavada por sinceras lágrimas, vaticinou que estava convencido tratar-se da última digressão ao torrão natal.
De facto, volvido nem um mês, foi encontrado morto, de uma forma inesperada e em circunstâncias misteriosas, que nunca foram apuradas, sem quaisquer sinais de agressões, em Vila Nova de Gaia, debaixo de um autocarro...
Transportado para o Instituto de Medicina Legal da capital nortenha, foi reconhecido pelos filhos e levado a sepultar, com toda a dignidade, no cemitério de Sobreposta, onde repousa em jazigo de família.
Injustiça Remediada
Aquele pai, quando transpunha a soleira da confortável habitação, sempre mostrava um terno sorriso nos lábios e uma expressão de nítida felicidade, ao achar-se na companhia de quem lhe era muito querido. Nessa Primavera verdejante e cheia de sol por todos os recantos, contudo, havia alguns dias em que chegava e demonstrava fadiga, assim como uma acentuada tristeza nas faces, que começavam a enrugar-se, muito embora tentasse, subtilmente, disfarçar.
Numa tardinha, ao assomar à porta, os dois filhos, ainda jovens, que nunca o deixavam entrar em casa sem um beijo de infinita ternura e dedicação, perspicazes e em coro, apanhando-o desprevenido, desfecharam a pergunta:
— Pai, vens com uma cara tão triste e dolorida! Aconteceu alguma coisa grave?!
— Oh, não é nada, queridos filhos: deve ser a efusiva alegria de vos ver e o cansaço de mais um dia de árduo trabalho... — respondia, fazendo o possível por sorrir e esconder uma lágrima atrevida, que as pálpebras não puderam reter.
E logo, num esforço enorme e meigos gestos, rematou:
— Ide, por favor, avisar a mãe da minha chegada, sim?
E os pequenos partiram em barulhenta correria, esquecidos já da observação feita ao pai. Mas ele permaneceu no mesmo sítio, profundamente pensativo, indeciso e magoado.
E por quê? Eis a razão:
Trabalhava há dez anos numa empresa como engenheiro e ninguém lhe levava a palma: era pontual, metódico e esforçado, nem um só instante deixando de zelar pelos interesses patronais.
Um dia, porém, um colega que ele julgava amigo, tratou de tecer intrigas contra ele, com o fim de conseguir o seu posto de trabalho para um familiar. Tanto disse e redisse que o patrão se decidiu a demiti-lo.
Tomando conhecimento da notícia o engenheiro indignou-se:
— Sr. Director, como é possível acreditar-se que os dez anos de serviço que aqui prestei, sempre merecedor de confiança, foram apagados na sua memória? Como pode a vil calúnia e o argumento mesquinho usurpar o lugar que conquistei com o suor do meu rosto?
Após excessiva e dolorosa conversa, sem quaisquer promessas do interlocutor, foi para casa, onde, ao longo de alguns dias, sofreu sozinho os espinhos da ingratidão.
Como o azeite sobe à tona da água, também a verdade se sobrepõe à mentira. O empresário, impressionado com as palavras que tinha ouvido, investigou e conheceu a calúnia e os seus motivos.
Chamou o engenheiro, pediu-lhe desculpa pelo acto injusto que estavas prestes a cometer, rogou que lhe perdoasse e não lhe retirasse a estima que sempre os uniu.
Regresso
É sempre doloroso ver partir aqueles a quem muito queremos, mesmo que seja à procura de melhores condições de vida e, quando vão e não voltam, fica-nos uma mágoa e uma saudade permanentes. Contudo, se mesmo quando as esperanças de um regresso são escassas, mas este se concretiza, ainda que volvidos longos anos, então a alegria não tem limites.
Um casal bastante idoso de provincianos vivia na expectativa amarga de um milagre, já que o filho único, o Luisinho, havia partido para o Brasil, quando moço. Não tinha necessidade de emigrar, mas a ambição que o dominava guiou-o às Américas. No lar correram muitas lágrimas de pesar, brotaram imensas saudades e ânsias de notícias, que, infelizmente, nunca chegaram. E nesta esperança desesperada os pobres velhos aguardaram quarenta anos!
Ora, certo dia, quando a noite principiava a cobrir a terra de sombras, um homem, envelhecido pelos anos de trabalho duro e pelas intempéries do clima, roupas quase andrajosas e barbas brancas e compridas, apareceu no pátio da casa e pediu aos donos o favor de uma ceia e dormida, porque vinha de longe e a fadiga ia-se apoderando do corpo e do espírito.
— Entre, entre, homem de Deus, que faz muito frio. Sente-se um bocado, pois há sempre um naco de pão e um caldinho quente para saciar a fome. O senhor vem de muito longe?
— Na verdade, venho de muito longe — falou o recém--chegado, olhando, discretamente, mas impressionado, o rosto magro e triste da bondosa anciã. — Acabo de chegar do Brasil.
— Do Brasil?! — repetiu ela com vivacidade, para prosseguir com um tom de saudade. — É muito longe, eu sei! Há muito que o meu filho abalou para lá e nunca mais soube se é vivo ou se morreu! O meu Luisinho!
— Chamava-se, então, Luís, o seu filho? — inquiriu, sem a olhar.
— Chamava, sim, senhor, Luís da Silva; vocemecê não ouviu nunca falar dele, pois não?
E ele não pôde evitar que duas grossas lágrimas lhe lavassem o rosto, balbuciando, pausadamente, e com uma perturbação intensa:
— Perdão!, perdão! Eu sou esse filho, que há tanto esperam. Fui ingrato ao deixá-los e mais ainda por esquecê-los. A realidade, porém, é que a Sorte não me sorriu: trabalhei como um louco, sofri incontáveis privações e regresso mais pobre do que parti há quarenta anos...
— Mas tu és, deveras, o nosso Luís? És esse filho que sempre esperámos nos viesse fechar os olhos e suavizar a morte? E que importa nada teres, se eras a única coisa que nos faltava na velhice? Oh, filho, ainda bem que voltaste, ainda bem!
E deixou-se cair nos braços do filho, entre a dúvida e a alegria e com uma vontade férrea de nunca mais o deixar partir, nem que fosse para perto. Mesmo o velho pai, enfermo e cansado, se levantou do leito, para abraçar este filho quase pródigo.
Amor com Amor se Paga
O provérbio é a maneira mais simples e pura do povo se exprimir. Nele encontra regras de conduta para o dia-a-dia e para a resolução de problemas morais e materiais. O provérbio é, pois, para cada assunto, uma máxima da sabedoria popular. E tantos há, tão perfeitos e inteligentes, que dão origem a belos contos, cativantes lendas e a pequenas cenas quotidianas.
E, na verdade, o que ainda mais nos prende a atenção é a fidelidade com que se narram as contrariedades da vida. Sob aquele tema, quantas excelentes obras se não têm escrito? Quantos arrependimentos e reflexões se não têm proporcionado?
“Amor com amor se paga” é um lindo dito do povo e eu quero referir aqui um episódio vulgar, mas que bem ilustra tão nobre tema:
Era uma pequena e humilde aldeia minhota, atravessada por uma estrada estreita e de mau piso. Os veículos passavam apressados e as pessoas, atarefadas e carregando vários utensílios, dirigiam-se para os seus trabalhos, essencialmente para os campos. Na ocasião em que a afluência era maior, um automóvel deslocava-se rápido e despreocupado quando, de repente, um pobre homem rolou no alcatrão, violentamente sacudido. Todos acorreram ao local e deram o seu parecer, mas ninguém se dispôs a socorrê-lo. Sobejaram catadupas de palavras vãs e, pouco depois, a debandada. Somente um modesto agricultor se condoeu do abandono e do estado lastimável do transeunte, que se contorcia com dores. Carinhosamente e com cuidado levantou-o e transportou-o para a própria casa, ali próxima. Nela permaneceu três dias, com atenções de verdadeiro cristão. Ao sentir-se com forças e animado, o socorrido regressou ao seu lar e quis pagar a misericordiosa hospitalidade, que não foi aceite.
Decorridos cerca de dois anos, o benfeitor adoeceu gravemente, sendo obrigado a permanecer no leito por longo tempo. Desesperado e sem recursos, a família já não esperava outra coisa senão um triste desenlace. Por um bom sopro da sorte, aquele a quem um dia auxiliara teve conhecimento da delicada situação e, de imediato, resolveu visitá-lo, pois tinha bem presente o desinteressado apoio recebido. Depois de avaliar o seu estado foi buscar um médico, pagou-lhe, comprou os medicamentos e, delicada e subtilmente, deixou-lhe uma quantia em dinheiro, para que se tratasse convenientemente.
Logo que se viu restabelecido, o humilde homem procurou o amigo que o salvara, a fim de agradecer-lhe a boa acção praticada. Dirigiu-se-lhe nestes termos:
— Muito obrigado. Se não fosse a sua bondade não teria sobrevivido. Embora as minhas posses sejam escassas, queria devolver-lhe o dinheiro que comigo dispendeu.
— Amigo, não julgue tal: naquele dia em que fui atropelado, apenas o senhor se interessou pela minha sorte; hoje, não faço mais do que liquidar uma enorme dívida de gratidão e de solidariedade!
Aprendiz em Apuros
(Pequena comédia)
Pensava que já não existia este original, elaborado de 15 a 18 de Novembro de 1965, propositadamente para um programa de variedades no Instituto Branco Rodrigues, na Linha do Estoril (onde desempenhei o papel de advogado de acusação), escrito de parceria com o querido e saudoso companheiro José António Garcia que, afrontado por diversificados desgostos e com cerca de um quarteirão de Primaveras, pôs termo à vida.
Arrumava e destruía papéis quando se me deparou esta relíquia de nostálgicas lembranças de um período muito ditoso da minha adolescência. E não resisti ao impulso de incluí-la neste livrinho, quase decifrando o Braille e introduzindo no texto ligeiros acertos.
Figurantes
Os membros do tribunal são caracterizados a preceito; as restantes figuras, à vontade.
Cena
Salão de audiências judiciais, em que o palco representa a quadra da plataforma e a plateia as galerias.
Acesso franco por um dos lados; mesa do juiz, com uma máquina dactilográfica, na qual o próprio toma notas, e miudezas; mesas dos advogados de defesa e de acusação, com grossos volumes; lugar do réu; na metade esquerda do proscénio, o assento para as testemunhas.
Aprendiz em Apuros
Juiz: (...) E agora, cumpridas as primeiras formalidades, vamos ao processo. Serenidade, meus senhores! Tem a palavra o senhor advogado de acusação.
Adv. ac.: Meritíssimo juiz! Mediante provas de que disponho, afirmo que o réu é o autor do assalto ao prédio n.º 57, da avenida Vera Cruz.
Juiz: Fale a defesa.
Adv. def.: Perante este digníssimo tribunal tenho a declarar que não é legal a afirmação do meu colega contra o meu constituinte, uma vez que este não foi surpreendido em delito flagrante.
Juiz: A acusação queira apresentar as suas provas.
Adv. ac.: O réu foi encontrado junto à casa 57, quando lá chegou a brigada policial; interrogado, recusou-se a esclarecer a autoridade sobre o motivo que ali o trouxera.
Juiz: A defesa quer contestar algum ponto desta exposição?
Adv. def.: Sim. A alegação apresentada não pode constituir prova, uma vez que se baseia em hipóteses e não em factos.
Réu (aparte): Isto começa bem! Vamos ver se assim me salvo.
Adv. ac.: Não cederei nesse ponto; no entanto, suspendo-o por agora, e reclamo o depoimento de uma das minhas testemunhas.
Juiz: Consentido!
1.ª test.: Vi o réu a fazer gestos e a lançar olhares de inteligência em direcção às janelas do prédio em questão, na noite do assalto.
Juiz: A que horas?
1.ª test.: Seria... meia-noite e cinquenta... ou quarenta, talvez; não mais cedo.
Juiz: As investigações mostraram que o intruso se conservou na habitação, seguramente entre as 0 h. e 30 m. e a 1 h. da manhã. Por conseguinte, o acusado não poderá ter sido o participante mais activo no delito.
Réu: Muito bem, senhor Doutor!
Juiz: Silêncio! O réu poderá ainda ter sido um cúmplice, um elemento auxiliar; pode também tratar-se de um aprendiz de ladroagem, ainda inexperiente...
Queixoso: De qualquer modo, ele roubou-me! É um ladrão!
Réu: Alto lá! Por aprendiz não me importo tanto de passar; mas, por quem é, mestre não sou!
Juiz: Silêncio! Do contrário, terei que mandar evacuar a sala. No auto de queixa há uma referência a vestígios de pista do assaltante; o tribunal carece de uma elucidação mais concreta.
Adv. ac.: O essencial dessa matéria é que foi encontrada sobre o passeio, a cinco ou seis passos da entrada do edifício em causa, uma cigarreira pertencente ao réu.
Juiz: O réu tem alguma objecção a fazer?
Réu: Não; contra factos... Mas, dar a César o que é de César! Eu quero a minha cigarreira! É uma recordação...
Adv. def. (atalhando): O facto desse objecto ser, efectivamente, propriedade do meu constituinte não o compromete, dado que ele não nega que lhe pertence.
Réu (aparte): Isso mesmo! Dá-me vontade de o abraçar!
Juiz: A primeira testemunha pode sentar-se, mas fique. Senhor advogado de acusação, faça o favor de prosseguir.
Adv. ac.: Meritíssimo, peço licença para fazer uma pergunta directamente ao réu.
Juiz: Está autorizado.
Adv. ac. (ao réu): Senhor, porque se esquiva a justificar a sua presença aquando do... do incidente?
Réu: Não me esquivo, recuso-me. Deve Vossência saber que tenho liberdade para o fazer, visto que isso apenas poderá trazer desvantagem para a minha parte.
Adv. def.: O mesmo é dizer que oferecemos um valioso tento à parte oposta.
Juiz: Senhor advogado de defesa, guarde as intervenções para melhor oportunidade!
Réu (aparte): Ai, ai, que as advertências é que não são nada oportunas para o meu negócio!
Juiz: A acusação dê seguimento às suas exposições.
Adv. ac.: Previno o réu de que reconhecerá ainda, talvez tarde, o erro da sua mudez.
Juiz: Nada de exaltações! As ameaças em tribunal podem ser de sérias consequências, recordo; e a abstenção de justificar-se do réu, nas condições presentes, é a ele que dizem respeito.
Adv. ac. (confuso): Perdão, retiro a minha observação.
Réu (aparte): Covarde! Paciência... (Para o adv. ac.) Mas não lhe direi uma única palavra! Insiste porque lhe interessa!
Juiz: Calma, calma, senhores! Não vieram aqui para se ofenderem. Vamos adiante, nos devidos termos!
Adv. ac.: Tenho mais uma testemunha, que ainda não depôs.
Juiz: Pode depor agora.
2.ª test.: O réu é culpado!
Juiz: Isso não é depor, é sentenciar. Prove a culpabilidade que alardeia, se puder, mas não queira tomar decisões que só aos jurados competem.
Réu (aparte): Que juiz!
2.ª test.: Vou dizer o que sei: vê-se um indivíduo... misterioso, a rondar uma casa noites seguidas. Vem a verificar-se um roubo nessa casa; e pensa-se então: que andaria esse indivíduo a fazer, senão a estudar o plano do assalto?
Juiz: Nada de rodeios! Exponha, objectivamente, o que viu, em lugar de referir o que julga saber.
2.ª test.: Passo quase todas as noites pela avenida Vera Cruz. Desde há algum tempo atrás, vejo frequentemente o acusado nas vizinhanças do n.º 57, meio oculto na penumbra do arvoredo, o que me tem despertado vivamente a curiosidade. (Hesita) Bem, e é tudo.
Juiz: A defesa pretende debater esta declaração?
Adv. def.: Não. Salvo melhor parecer, é desnecessário: como se viu, o meu constituinte confirmou a veracidade das palavras ouvidas ultimamente. De resto, há muitos cidadãos para quem é uma delícia passear numa avenida arborizada, na tranquilidade das horas adiantadas da noite. Tenho dito.
Juiz: A segunda testemunha volte para o lugar. A sua exposição considera-se desprovida da consistência que se requer para constituir prova convincente, pelo que dispensa debate. Segundo a mesma, muito dificilmente o acusado poderia ser suspeito.
Réu: Muito obrigado, senhor doutor juiz!
Coro ac. (agitado): Como?! O quê?!
1.ª test.: Protesto! (Aparte) Não há dúvida: o dinheiro pode muito!
Juiz (imperioso, batendo com o martelo): Senhores! Silêncio total! Ou há respeito, ou a guarda se põe em acção. (Pausa) Bem, bem, vejo que não é necessário impor a ordem à lei da força. Saiba o réu e saibam todos: nunca nas minhas audiências prevaleceu uma lei que não fosse a do dever consciencioso!
Réu: Mas, senhor! Eu não quis agradecer um favor, mas sim a justiça que me era feita.
Juiz: O dever não pede gratidão. A sessão vai retomar o andamento. Serenidade e bom-senso para todos! O réu esteja à vontade; nada receie pelo desacato de há pouco, mas não se manifeste sem reflectir: o entusiasmo dos vinte anos precisa de ser refreado. A parte do queixoso tem mais qualquer coisa a acrescentar?
Adv. ac.: Sim. Há ainda outros pormenores que incriminam o presente suspeito, mas eu só os apresentaria como recurso extremo, o que não será necessário...
Juiz: Nem solicitado. Tem mais argumentos que deseja pôr em apreciação, faça-o sem evasivas.
Adv. ac.: Para resumir, direi que não serão indicados os tais pormenores, a menos que isso se revele imprescindível, porque são, na verdade, de somenos valia. Quanto ao mais, eu quero unicamente zelar pelos direitos do lesado. Como se pode conceber que o réu não seja culpado, se se não prova a sua inocência?
Adv. def.: Mas também não se prova a sua culpabilidade. Ele quer provar que está inocente, embora seja da sua vontade e conveniência não divulgar uma particularidade que seria para isso a prova cabal.
Juiz: Neste acto não há lugar para dissertações sobre os motivos do procedimento de quem quer que seja.
Queixoso: Além de ficar impune, queria então tudo ao seu bel-prazer, o grande vilão!
Réu: Mais devagar, amigo! Nem grande, nem pequeno!
Adv. ac.: É inadmissível ter-se o desplante de antepor as próprias conveniências ao bom sistema que é o facilitar--se a missão de uma entidade judicial!
Juiz: Senhor advogado, não pode sensurar aqui o modo de agir de outrém. Ao tribunal só interessa conhecer os factos, para assim poder julgar as atitudes. Alguma das partes deseja ainda pronunciar-se?
(Silêncio longo)
Réu: Eu desejo... mas não posso...
Juiz: Tem a liberdade de palavra, nos termos lícitos.
Réu: Mas não sou livre para dizer tudo o que quero, porque... porque isso implicaria com mais alguém! Aí está a dificuldade.
2.ª test.: Olá! Teremos quadrilha?
Juiz: Nada de juízos pretensiosos. As palavras do réu não o comprometem de forma a dar ensejo a uma certeza, mas sim a uma suposição sem fundamento sólido. O réu, caso queira passar ao manifesto aquilo que permaneceu até agora obscuro e cujo esclarecimento diz ser-lhe favorável, pode fazê-lo; todavia, se prefere ocultá-lo, reserve-se completamente, não use meias expressões. Tal omissão não lhe trará, no resumo do julgamento, benefício algum, deverá saber.
Réu (aparte e a meia voz): E agora esta, hein?! A princípio ia tudo tão bem encaminhado! É grave, é grave. Não posso falar; e, se fico calado, perco tudo. Bonito... Puseram-me entre a cruz e a caldeirinha. Valha-me Santo António! Valha-me S. Pancrácio! Valham-me os santos de uma vez! (Revolve-se)
Juiz (empunhando o maço): Dado que não é apresentado mais qualquer depoimento nem reivindicação, vai proceder-se à deliberação final, pelo que a audiência se dá por...
3.ª test. (irrompendo pela assistência): Alto! Alto! Espere, V. Ex.a, por favor! Eu desejo fazer um depoimento!
Juiz (suspendendo o maço na queda): Hum, hum! Terá que explicar porque razão não deu o seu nome a notificar aos oficiais de diligência.
3.ª test.: É simples: eu não tinha intenção de intervir; faço-o, porém, por pensar que isso é absolutamente necessário.
Juiz: A razão é aceitável. Mas terá ainda que identificar-se e legalizar a sua intervenção.
3.ª test. (exibindo o bilhete de identidade e dois outros papéis): Eis! Requer-se mais algum documento?
Juiz: Estes bastam. Será atendido, mas preste, antes, o seu juramento.
3.ª test. (solene): Prometo e juro sobre a minha Honra dizer a Verdade, toda a Verdade, só a Verdade.
Juiz: Pode dar o seu testemunho.
3.ª test.: Ilustre magistrado, respeitáveis senhores! Eu quis vir aqui para lançar luz no mistério que é a causa da presença do acusado perto do local do delito, presença cujos antecedentes o próprio não teve ânimo para revelar, como em breve se compreenderá.
Réu (a medo): Vê o que vais dizer!
3.ª test.: Senhor doutor juiz! Perdoará que eu tome a liberdade de dizer que habita um dos andares do prédio violado...
Juiz: Habito, é certo; é, todavia, uma circunstância sem relação com o caso debatido, pelo que...
3.ª test.: Um momento! Essa circunstância, muito para além de ter relação, é mesmo a chave do enigma. É que... é que... (Resoluto) é que o réu namorava a filha de vossa excelência!
(Tumulto geral)
Cai o pano rapidamente.
Consoada
Era uma humilde e pequena aldeia serrana, onde a civilização não tinha ainda chegado com os nefastos ruídos e a destruição do que de mais belo e repousante constitui a verdadeira existência das criaturas, plena de simplicidade, de paz, de harmonia, de fraternidade e de amor...
Lá, num tosco casebre de ruim acesso, pois apenas se podia ir a pé ou a cavalo, com quatro paredes levantadas, a suportar um telhado, que no período de calor tornava os cubículos num forno e, nos rudes meses de intempérie, deixava que a chuva tudo alagasse e que o vento ululante verrumasse os mais ínfimos buracos, orçando os oitenta anos, a pobre proprietária vivia há longo tempo em funda solidão e férrea esperança...
Casara, nasceram dois rapazes e gozou, por cerca de vinte Primaveras, uma felicidade que muitos invejaram. Depois, por intrigas e calúnias, prenderam-lhe o companheiro que, sem julgamento, por vergonha e saudade da família, morreu atrás das grades de uma cadeia. Os filhos, então, porque as condições de vida eram precárias, resolveram deixar o rincão natal em busca de melhor sorte noutras paragens, prometendo à progenitora que, tão cedo quanto possível, lhe viriam fazer companhia e proporcionar dias mais alegres e mais fartos.
A verdade, todavia, é que nunca mais deles ouviu referências!
A cada hora os tinha no pensamento e nas sinceras e intermináveis orações. Assim foi o tempo decorrendo e mais ela se habituou à solidão e à ideia de que, se calhar, morreria com a esperança de um reencontro com os dois entes queridos.
No meio deste viver havia uma data que ela, por excelência, nunca esquecia e em que adoptava, ano após ano, meticulosamente, a mesma prática: era a noite de Natal!
Nessa noite, sim, recordava o nascimento de Jesus em Belém, numa mísera gruta, e acreditava que o Pequenino viera ao Mundo, das entranhas de uma jovem Virgem, para salvar a Humanidade, para a todos trazer santa paz, para reconciliar as famílias, para que houvesse confraternização entre os povos, para que reinasse o Amor, muito Amor...
Lembrava-se sempre de que os filhos faziam um reduzido Presépio de musgo, com algumas figurinhas de barro, e que era o enlevo, ali pertinho da lareira crepitante, na noite de Consoada. E as batatas com bacalhau e couves. E as rabanadas e formigos. Mau grado tanta miséria e o peso dos anos, em cada 24 de Dezembro ela repetia o cerimonial e ficava horas esquecidas a mirar as iguarias, o Presépio, o canhoto a arder e os três pratos sobre a carcomida masseira, onde alvejava uma puída toalha de estopas de linho.
Três lugares postos, para quê? Ela ceava sempre sozinha e muito pouco! É que, bem no fundo do seu coração de mãe, fantasiava que, talvez numa qualquer noite de Natal, por entre coros de pastores e anjos, os seus rapazes aparecessem para juntos consoarem e comemorarem a solene data, como prémio e delícia dos tempos idos, que lhe po-voavam o espírito cansado¼
Quem poderá dizer que um dia?¼
As Prendas
A Natália e o Natalino eram duas crianças gémeas e nesse dia de Natal completavam doze anos. Viviam com os avós e eram amimados e queridos, talvez mais do que de filhos se tratasse. A mãe apenas a conheciam e veneravam através de fotografias, que se encontravam expostas nos lugares de maior destaque na casa.
Filha única, não conheceu privações, porque os pais viviam bem, procurando fazer-lhe todas as vontades e dar-lhe uma educação esmerada, que a preparasse para a vida. Ela, todavia, foi-se desviando desse trilho e levava uma vida desregrada, sem preconceitos e de contínuas noitadas até à exaustão.
Certa manhã, ainda sob a ressaca de mais uma noite de boémia e de prazer, acordou, nervosa, lívida, cabelos desalinhados e fundas olheiras. Parecia um pesadelo, mas era uma realidade: estava grávida!
Raivosa, contorceu-se no leito. Um turbilhão de pensamentos e de contradições lhe fervilhavam na cabeça estonteada. Era impossível, aquilo não lhe podia acontecer, porque estava no auge da juventude, com uns tenros dezassete anos. Precisava de fazer qualquer coisa, pois não desejava gerar um fruto de sensualidade, de amores ilícitos e de quem desconhecia o pai! Enclausurou-se no quarto, gemendo e chorando, copiosamente.
A mãe, posta ao corrente, lamentou aquela situação embaraçosa, embora a compreendesse, já que, ao fim e ao cabo, também se sentia culpada, por pactuar com os desvarios da filha.
Por isso, senhora de uma profunda educação cristã, foi explicando à jovem os perigos a que se sujeitava e, docilmente, aos poucos, convenceu-a a deixar vir ao mundo quem não tinha culpa dos erros cometidos.
Decorrido o tempo de gestação, na madrugada do dia 25 de Dezembro nasceu um casalinho, que os avós baptizaram com nomes alusivos à solenidade da data.
A jovem progenitora, por vergonha, desgosto ou levian-dade, um mês depois do parto, saiu de casa e nunca mais deu notícias. Envidaram-se todos os esforços para a localizar, mas perdeu-se-lhe o rasto.
Ficaram bem entregues, portanto, as crianças, ao cuidado e sincero afecto dos avós.
Nessa noite de Consoada, à volta da lareira, perto da qual colocaram um pequeno, mas bonito presépio e um pinheirinho com lâmpadas multicores, muitos enfeites e prendas penduradas, enquanto a avó dispunha na ampla mesa (onde se exibia uma antiga toalha bordada e de finas rendas, de alvo linho e que era uma relíquia herdada dos antepassados), os formigos, a aletria, as rabanadas, o bolo--rei, as nozes, os pinhões, as uvas passas e tantas outras iguarias que são um regalo para os olhos e para o paladar, dava-se início à narrativa do nascimento de Jesus que, agora, merecia os comentários dos netos. Estabeleciam-se diálogos e ficava-se com a impressão de se estar em presença de uma peça de teatro.
Desta vez foi o avô quem principiou:
“Há dois mil anos já, na cidade de Belém, veio ao mundo um Menino, a quem puseram o nome de Jesus. A Mãe era ainda muito jovem. O pai adoptivo, um humilde carpinteiro e homem bom, era bastante mais velho. Ela chamava-se Maria e ele José. Tiveram de efectuar uma longa viagem e Maria sentiu as dores do parto. O esposo procurou uma hospedaria por toda a parte, mas não arranjou lugar. Por isso, foram forçados a entrar numa gruta fria e escura, onde costumavam recolher os animais e, nesse desconforto, aproveitando uma manjedoura como berço e umas palhinhas para colchão, Maria deu à luz.
Entretanto, os pastores que nos arredores guardavam os rebanhos, chegaram para visitar e adorar Jesus, enquanto uma multidão de corpos celestes entoava hinos de júbilo e de contentamento.
Mais tarde, guiados por uma miraculosa e fulgente estrela, três Reis Magos, vindos do Oriente, vieram prostrar-se aos pés do Pequenino e, reverentes, renderam-Lhe homenagem e ofertaram ouro, incenso e mirra.
Esta Criança, que teve um nascimento e um berço tão pobres, é que veio a tornar-se num grande e nobre Rei espiritual...”
Atentamente, embora todos a soubessem ao pequeno pormenor, a história foi ouvida em silêncio.
“Nessa narrativa há tantos factos semelhantes ao percurso da nossa existência!”, comentaram, comovidos, os pequenos.
“Mas o mundo é mesmo assim, meus queridos”, acrescentou a avó.
“A nossa mãe também era muito jovem; nascemos a 25 de Dezembro; temos pais adoptivos, que são os queridos avós, que tanto nos amam e tudo fazem para que nada nos falte; estão sempre a oferecer-nos magníficos presentes, como os Reis Magos ao Menino; não sentimos a pobreza de Jesus, pois nascemos em boa casa e tivemos o conforto de uma cama; somos uns reis felizes, uma vez que habitamos num reino de ternura, dedicação e bem-estar...”
“Graças a Deus, graças a Deus!”, balbuciou a avó, sensibilizada.
“Por tudo o que foi dito e de todo o coração, aquilo que mais desejamos e hoje pedimos a Jesus Menino é que ampare os nossos avós e lhes proporcione muita saúde e longos anos de vida, para prosseguirem e levarem até ao fim a obra que há doze anos começaram. E também que, por caridade, um dia, como grata e rica prenda, faça com que a vossa filha e nossa mãe, que há muito partiu e de quem nada sabemos, regresse ao lar e preencha o seu lugar vazio e tão triste...”
Já perto da meia-noite, de repente, devagarinho, quase a medo, alguém bateu à porta.
“Não contamos com ninguém. A esta hora, rasgando o cerrado negrume e divino silêncio da noite e a suportar tamanho gelo, quem será que nos vem visitar?”, observou a avó, bastante admirada.
“Deve ser o Pai Natal que se atrasou e nos vem trazer a consoada!”, retorquiram, em coro, sorridentes, os netos.
Curiosos, todos se encaminharam para a entrada e, sem perguntar quem batia, o avô escancarou a porta...
Na frente deles, banhada pela luz intensa que irradiava do interior da casa, destacava-se uma mulher alta e magra, bem parecida, imóvel e com os olhos a jorrar lágrimas de comoção e de alegria, que, de imediato e estupefactos, todos reconheceram.
Ela, medrosa e tremente, mas decidida e quase inaudível, tartamudeou:
“Contava chegar mais cedo e cear convosco, mas não consegui, porque tive de realizar uma longa e cansativa viagem e os transportes não ajudaram. Venho trazer as prendas de Natal e de aniversário, pedir-lhes perdão e licença para ficar na vossa companhia, com a promessa de que jamais vos abandonarei!...”
O Presépio
O Ricardo tinha onze anos, frequentava o 6.º ano de escolaridade e morava num lugar de uma bonita aldeia minhota, habitando, com os pais, uma irmã de oito anos e os avós, uma casa soalheira e confortável, construída numa pequena e bela quinta, que o pai adquiriu com as economias de alguns anos de emigração. Excelente aluno, bom companheiro, disciplinado, atento, respeitador e solidário, por todos era estimado. Sabia conciliar as diversões com os deveres a cumprir e o tempo chegava-lhe para tudo. Ao invés, os amigos mais chegados, esqueciam as obrigações elementares, preferindo os jogos, as agradáveis brincadeiras, o comodismo e o descanso.
Certa vez, nos fins de Novembro, por uma tarde bastante fria, soprada por um leve gemer do vento outonal, quando brincavam, alegres e despreocupados, o Ricardo deu com os olhos num grande caixote de papelão, abandonado, ali perto, numa pequena e improvisada lixeira. Alertou os colegas e, sem demora, ávidos de curiosidade, precipitaram-se para o local e abriram-no. Depararam com um amontoado de cacos, tabuinhas, troncos mutilados, cabeças degoladas, braços, pernas, detritos de vária ordem, concluindo que se tratava dos restos de um presépio que, depois de desfeito, deitaram fora.
De imediato, o Ricardo foi assaltado por uma luminosa ideia: aproveitar os destroços, restaurar o que fosse possível e fazer ressurgir o antigo cenário. Revelou aos amigos os seus intentos, pedindo-lhes a opinião e ajuda para empreender a empresa que lhe fervilhava na mente:
— Encontra-se aqui quase tudo o que é preciso para realizarmos um lindo sonho. E se levássemos isto para o sequeiro da minha casa e aproveitássemos o que se puder, devolvendo as figuras ao fim para que foram criadas?
Todos, a uma só voz, excitados e com entusiasmo, votaram e aplaudiram a proposta.
— Boa ideia!, vamos a isso!...
— Quando tudo estiver pronto — prosseguiu o Ricardo — pedimos licença para montar o presépio na sede da Junta de Freguesia, a fim de que todos o possam visitar.
— Boa!, boa! Toda a gente vai ficar espantada com essa surpresa maravilhosa! — reforçaram os convivas.
Apoiado e contente, o líder inquiriu:
— Então quem vai ajudar-me a levar a cabo esta tarefa, aproveitando o que for possível deste monte de desperdí-cios?
Todos ficaram mudos. A intenção era muito nobre e extraordinária, mas trocar as sadias e reconfortantes diversões pelo trabalho não agradava a nenhum deles.
O Ricardo, decepcionado, mas resoluto, pediu ajuda à irmãzita e ao avô, lançando mãos à obra.
Colaram-se pernas, pés, braços, mãos, dedos, cabeças, orelhas, narizes, lábios, com pacientes e minuciosos retoques de barro e tinta; recuperou-se a manjedoura, o burrinho, o boizinho, os três Reis Magos, os pastores, um pequeno rebanho, os anjos, a estrela... Só da Sagrada Família (Nossa Senhora, S. José e o Menino Jesus) não apareceram vestígios. O avô alvitrou que talvez se tratasse de imagens de estimação, tendo-as os donos guardado para figurar noutros presépios. Portanto, a solução era moldá-las ou procurá--las nas casas da especialidade, a condizer com o material recuperado.
Delicadamente, o Ricardo informou os companheiros do andamento dos trabalhos e aludiu à recomendação do avô, para obterem as três figuras indispensáveis.
Cada um se foi desculpando com muitos afazeres. Por isso, mais uma vez, sem desânimo, o Ricardo ultrapassou o contratempo, arranjando o barro, amassando-o, moldando-o, cozendo-o, até surgirem os exemplares pretendidos que, depois de pintados, ficaram um primor e completaram o sortido de figuras necessárias para a ornamentação desejada.
Chegaram as férias e o Ricardo comunicou aos amigos que tudo estava pronto para iniciarem a montagem e que, como já só faltava uma semana para o dia do Nascimento, era urgente procurar e trazer serrim, musgo, ramos de azevinho, escolher pedrinhas para levantar a gruta, além de outras pequenas ninharias.
Ora, de novo, os colegas fingiram nada ouvir e, manhosos, em silêncio e devagarinho, se foram retirando.
Sem esmorecer, o persistente menino executou todos os trabalhos, de maneira que, ao fim da tarde do dia de Consoada, na sala nobre da sede da Junta de Freguesia, era digno de se contemplar um cenário incomparável, fruto de delicadeza, perseverança, ternura, esforço, dedicação, amor, muito amor...
Terminada a tradicional Missa do Galo, o pároco e toda a multidão se dirigiram para o sítio onde estava implantado o evento. Foi um espanto geral ao depararem com tão amorosa obra de arte. O padre António, dotado de requintado bom gosto, embevecido e com uma leve expressão de propositada malícia, inquiriu:
— Quem é que arquitectou e produziu este cenário de ternura, de harmonia e de encanto?...
Bem na frente destacava-se o grupo de amigos e o Ricardo, humilde, com um olhar cândido e imensamente feliz, respondeu:
— Fomos nós! — e apontava os companheiros que, ainda daquela vez, se acovardaram e nada retorquiram.
Sabedor de toda a história, num misto de solene seriedade e brando sorriso, o sacerdote proferiu:
— Eu sei que o único mentor deste admirável espectáculo é o Ricardo, porque os colegas, embora se tivessem comprometido, em nada contribuíram para a execução de tão delicado projecto. Por isso, o esmerado Ricardo é que é o merecedor dos nossos aplausos, agradecimentos e admiração.
Estalou uma frenética salva de palmas, a premiar o laborioso trabalho do pequeno herói, inundado por um manto de serenidade...
Ao som de uma suave e apropriada música de fundo (lembrando as legiões, inumeráveis, de todos os espíritos celestes, que entoaram oratórias magníficas, em harmonias nunca ouvidas, propagadas de um extremo ao outro, glorificando o Reizinho que acabava de chegar ao Mundo), como os pastores e os Reis Magos, reverentes, os visitantes desfilavam, a contemplar aquele presépio, repleto de uma afável doçura, com a fulgente estrelinha a descer sobre a gruta, onde o Menino Jesus sorria, deitado em loiras palhinhas, sob o terno olhar da ditosa Mãe e de S. José...
Consoada diferente
Há muito, muito tempo (contou-me a minha Avó materna, que da boca da sua, por certo, o ouvira já), um estudante de Medicina da Universidade de Coimbra, filho de uma nobre e abastada família minhota, resolveu fazer uma surpresa aos entes queridos, vindo passar com eles a quadra natalícia.
Já ao fim da tardinha do dia de Consoada, desembarcou na diligência. Mas, para chegar a casa, sem transportes, tinha pela frente uns quilómetros para palmilhar, desbravando caminhos sinuosos, desérticos e cobertos por extensos matagais e denso arvoredo.
O vento verrumava o mais ínfimo recanto, frio e gemente, soprado das alturas da serra, em cuja fralda estava implantada a ampla, soberba e confortável moradia.
Como não avisara, ninguém o aguardava e nunca imaginara deparar-se-lhe uma meteorologia assim. Se por um lado o cenário próprio da época o embevecia, por outro vedava-lhe a realização do projectado, uma vez que dificilmente chegaria a horas de confraternizar e trocar os presentes, que não se esquecera de comprar.
O breu da noite e leves flocos de branca neve principia-vam a tombar.
Olhava em todas as direcções e não vislumbrava o itinerário certo a percorrer. Vieram-lhe à lembrança narrados episódios da aparição de lobos esfaimados que, diversas vezes, provocaram apreciáveis estragos. E, bem no fundo, reflectia na hipótese de, solitário por aquelas veredas, ser também ele atacado por uma alcateia, servindo assim de consoada aos eleitos de S. Francisco de Assis que, como a todos os animais, ferozes ou não, considerava irmãos (e que pena os Homens não copiarem tão maravilhosa e humilde fraternidade!). Ele também meditou na possibilidade de se lembrar dele o Menino Jesus, que se preparava para nascer em milhões de presépios e de puros corações. No medo que o arrepiava da cabeça aos pés, ressurgia a esperança de um desfecho a seu contento.
A verdade é que não podia desperdiçar mais tempo: urgia prosseguir, ainda com a perspectiva, conquanto remota, de atingir a almejada mansão. E o escuro da noite e o tapete de neve alvacenta, que se adensavam cada vez mais assustadoramente? E sempre os maus presságios a lutar com a fé de que tudo acabaria da melhor forma!
Todavia, já começava a sentir-se fatigado física e moralmente, porque o caminho e distância andados tinham sido extenuantes...
Entretanto, cerrara-se de todo a noite e o manto de neve reluzia, servindo de alcatifa aos seus pés pisados pela dura marcha. Não queria desistir e não desistiria.
Num descampado, ao longe e quase em surdina, ouviu um rumor de chocalhos e enxergou, a tremeluzir, num determinado ponto e não longínquo, uma ténue claridade. Inundou-o, de novo, a confiança e a vontade férrea de vencer o surgido e prolongado contratempo.
Tomou a direcção da luminosidade promissora, mais convicto do que nunca de obter um abrigo, ao menos para pernoitar.
Por fim, imensamente débil mas radiante, alcançou o local redentor: chegara a uma pequena gruta, que servia de guarida a um velho pegureiro, responsável por um numeroso redil. Dois cães fiéis ladraram e romperam no seu encalço. De imediato, o dono se apercebeu e saiu a auscultar o que se passava. Ao ver que se tratava de um peregrino desorientado, assobiou pelos caninos e partiu ao encontro do pacífico intruso.
Levou-o para dentro da cabana e, paciente, acolhedor, benévolo (e se calhar agradecido aos Céus pela divina dádiva da inesperada e consoladora companhia para mais uma solitária noite de Consoada), fê-lo sentar bem perto do raizeiro de carvalho que, a um canto, crepitava, tudo iluminando e aquecendo.
— Ainda não ceei. — falou, em voz baixa, mas serena e alegre, o bondoso hospedeiro. — Vai consoar comigo e, quando amanhecer e assim o pretenda, recomeça a viagem, para abraçar os seus e comungar com eles o dia de Nascimento, pois depressa lá chegará, atendendo a que o separa uma escassa légua de caminho.
— Muito lhe agradeço, santo homem, pela magnífica recepção e agasalho que me oferece.
Sobre uma tosca pedra, a servir de mesa, o pastor estendeu um pedaço de briosa zarapilheira, onde, meticulosamente, foi depondo um prato, duas malgas, um pote de batatas cozidas com a tona, uma garrafa com vinho, broa, presunto, chouriço, queijo, nozes, figos e maçãs vermelhas pequeninas.
Ambos comeram com redobrado apetite, reconhecendo o hóspede que jamais lhe soubera tão bem uma refeição e muito menos uma Ceia de Natal!
Não faltou um copo de cevada quentinha e um gole de bagaço para brindar.
Depois, cerca da meia-noite, o venerando ancião desejou as boas-festas ao forasteiro e este, num nobre gesto, sincero e comovido, ofertou-lhe e obrigou-o a aceitar as prendas que destinava aos familiares, formulando, também, francos votos de um amoroso e feliz Natal...
Conversou por largo espaço e animadamente, reconfortado pelas delícias dos manjares ingeridos e pelo suave calor, aspergido pelo canhoto, transformado em brasa viva, sem lamentar a ausência na lauta Consoada familiar e rememorando as peripécias experimentadas naquela noite, que jamais se lhe varreria dos sentidos!
Finalmente, estendido numa puída enxerga de palha e coberto por grossas mantas de lã, adormeceu resignado e satisfeito. E, durante o sono reparador, teve um belo e fantástico sonho: sonhou com um enorme e bonito presépio, onde as figuras se movimentavam, com uma fulgente estrela a descer sobre a lapinha escura, que albergava a sagrada Família de Nazaré, e viu aproximarem-se os pastores e os Reis Magos, carregados de ricas prendas, para oferendar e, prostrados por terra, adorarem o Menino Jesus que, sorridente e indescritivelmente afável, o olhava, ao som da harmonia de um coro angélico de vozes argentinas que, de lés a lés e incessantemente, entoava:
“Glória a Deus, glória a Deus, lá nas Alturas
e reine a Paz por entre as Criaturas!!!”
Um Presente no Dia de Reis
Era um rapaz bem parecido e muito pobre, sem eira nem beira, embora com boas habilitações académicas e de fina educação. Não conhecera o pai, pois era filho de mãe solteira, tendo escutado rumores de que se tratara de um cavalheiro garboso e de muitos haveres, cuja família se opusera ao seu casamento e que sucumbiu de paixão pela mulher que o enternecia. A mãe, que tanto amava e de quem recebia igual e idolatrada correspondência, perdera-a quando adolescente, vítima de prolongada e dolorosa tuberculose. Órfão, com a sorte de Jó, na miséria e desgraça foi sobrevivendo, prosseguindo e completando os estudos numa instituição de caridade.
Apesar de simples, bom comportamento e educado, não havia jeito de arranjar quem lhe desse trabalho. Nunca, porém, esmoreceu. Ia gastando o interminável tempo a vaguear de lado para lado, procurando sempre não fazer mal e arranjar quem lhe fosse matando a fome. Quando se lhe deparava uma oportunidade para executar quaisquer tarefas, não se eximia e empenhava-se para ser agradável. Por isso, sempre ia aparecendo alguém que dele se compadecia.
Certa vez, por uma manhã bastante fria de Janeiro (dia de Reis, por sinal), ao atravessar um monte desértico, a reluzir com o gelo formado durante a noite e que o sol nascente de Inverno ainda não lograra derreter, encontrou uma velhinha, muito corcovada e de longos cabelos de arminho, que carregava um feixe de lenha. Aproximou-se dela, gentilmente, e, pegando-lhe no feixe, indagou onde desejava que lho levasse.
— Ainda moro um pouco distante, bom moço, mas muito te agradeço a preciosa ajuda.
E puseram-se a caminho: ela tomou a dianteira e ele seguia-a, contente por poder ser-lhe útil.
De facto, percorreram estreitos carreiros, tortuosos e rodeados por imenso arvoredo e denso matagal.
Nunca deixou de falar a bondosa anciã, até que, por fim, chegaram a um casebre pequeno, bem conservado e acolhedor. Descarregou a lenha e ambos entraram.
A um canto, uma rude pedra a servir de lareira e uma panela, sobre uma trempe, no brasume, fervia e exalava um cheirinho apetitoso.
— Deixei a preparar uma água com cebola e um pedacinho de unto, para agora fazer umas migas e matar o jejum. Vais também petiscar comigo, porque bem noto que trazes a barriga colada às costas!
Ele aceitou de boa mente e, numa masseira velha e carcomida pelo bicho, sobre uma toalha puída, mas limpinha, foram colocadas duas malgas a transbordar, fumegantes. Partiu duas boas fatias de broa, esmigalhando o miolo no caldo, mexido com perícia, servindo as côdeas de acompanhamento ao saboroso manjar.
— Graças a Deus, soube-me muito bem! — declarou o hóspede, consolado e aquecido por aquela dádiva inesperada e que, desde o desaparecimento da mãe, jamais tinha ingerido.
— Sinto enorme alegria por ver-te com essa disposição e contentamento. Almoçarás comigo e com a minha neta, que ficou de por cá aparecer, sobretudo atendendo a que hoje é um dia especial: dia dos santos Reis Magos e dela completar vinte e cinco anos.
O rapaz ficou atónito, porque julgava que àquela solidão não chegava vivalma para uns momentos de felicidade.
— A minha neta é órfã de pai e mãe como tu. Os entes que tanto adorávamos (os pais dela, cuja mãe era minha filha, assim como um irmão, também meu filho, de vinte anos, duas jóias estremecidas, que me roubaram, e o meu próprio marido, companheiro extremoso e a cada instante lembrado com profunda saudade) foram feitos prisioneiros de guerra, trucidados e mortos. Consegui evadir-me com a netinha e alguns bens, salvos da enorme fortuna que possuíamos. Retirei-me para este ermo por causa das perseguições que me moveram e apenas há escassos anos quedaram. Internei a menina num colégio da cidade, com uma mágoa infinita, mas consciente de que agia em seu abono, visitando-a sempre que as condições o permitiam e que hoje, felizmente, possui um curso superior e uma boa e desafogada empresa, tendo ainda recuperado bastante dos antigos bens.
Cada vez mais o moço ficava estupefacto.
— E a senhora isolou-se neste inóspito local e sente-se com coragem para viver aqui e separada da familiar mais chegada?
— Assim teve que ser até há pouco. Agora, todavia, já se não justifica tão penoso sacrifício e tenho tudo preparado para alterar a situação.
Ao fim da manhã saíram a esperar a visita tão desejada pelos dois.
Apareceu montada num soberbo cavalo, ao lado de outro que puxava uma vistosa e confortável sege. Dentro, uma senhora risonha e de meia-idade: era a dama de companhia.
Foi um momento patético, digno de ser observado, com lágrimas comovidas de sincero júbilo, quer da avó, quer da bonita rapariga, cenário que se repetia sempre que se viam, mesmo que os encontros sucedessem amiudadamente.
Seguiram-se as apresentações e os olhares dos dois desconhecidos cruzaram-se, fulminantemente, e entenderam-se para um enlace inevitável.
Regressados à casinha, usufruíram de um almoço principesco, suculento e animado, onde, mais e mais, se foi consolidando a doce atracção mútua, que os tornaria, muito em breve, imensamente ditosos.
Pela noitinha, partiram todos, de volta à cidade, para festejarem a tradicional ceia de Reis, celebrada numa magní-fica vivenda, propriedade e residência da neta.
Os presentes para ele dessa data foram excepcionais, talvez com maior significado que os simbólicos ouro, incenso e mirra, e tinham de permanecer imorredouros o resto da vida, pelo valor estimativo, qualidade, consolo e merecido prémio.
O casebre foi, a partir de então, não só mais estimado pela bondosa velhinha, mas também pelos recém-casados, que o conservaram, tornando-o num ninho de encantamento e de felizes lembranças amorosas!
José Fernandes da Silva
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