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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RECORDAÇÕES AO ANOITECER / Maggie Shayne
RECORDAÇÕES AO ANOITECER / Maggie Shayne

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

     É porque não sou suficientemente boa para ele. Ou nisso ele acredita. Não é que não me deseje, porque os dois sabemos que ele me deseja. E por que não? Os homens mortais caem como estúpidos a meus pés, suplicando umas migalhas de atenção. Os imortais também, pelo menos os poucos que conheci. Mas então, por que o único homem ao qual desejo me rechaça? Por que finge indiferença quando vejo desejo em seus olhos? E por que me pede que me mantenha afastada dele, que deixe de distrai-lo com minhas visitas? Tampouco pode dizer-se que o esteja incomodando muito freqüentemente. Uma vez a cada cinqüenta anos mais ou menos, quando minhas fantasias já não são suficientes, quando meu desejo é muito forte para resisti-lo.

Embora essas visitas sirvam para mitigar um pouco minha inquietação, ele continua reafirmando-se em sua posição e me suplica que me afaste. Se pudesse, me afastaria para sempre.

Como fez meu pai.

Sei, não sou o que a maioria dos homens espera de uma mulher. Não tenho papas na língua, sou forte e há muito poucas coisas que temo neste mundo, e suspeito que também no outro. Mas não são minhas peculiaridades que fazem com que não me queiram os homem. Não, isso não pode ser, já que meu pai me rechaçou antes que eu tivesse oportunidade de demonstrar qualquer uma de minhas estranhas tendências. Rechaçou-me, simplesmente, porque era sua primogênita.

Um grande faraó egípcio, um bom rei do Nilo, esperava que os deuses o abençoassem dando-lhe um primogênito varão. Quando, em troca, nasci eu, considerou isso como um castigo por todos os seus pecados. Permitiram-me permanecer com minha mãe até os cinco anos. Teria sido mais misericordioso deixar que me devorassem os chacais. Mas não. Aos cinco anos me enviaram para viver entre as sacerdotisas do templo do Isis. Meus irmãos, quando chegaram, foram tratados como eu deveria ter sido tratada. Foram recebidos como príncipes. Seus nascimentos se celebraram durante meses e meses. Mas eu, a única dos irmãos que tinha sido destinada à imortalidade, fui ignorada.

Jurei então que jamais voltaria a me importar com os problemas de um homem, mas tenho descoberto que agora me importo. E não é que tenham que ver com isso meus sentimentos. Sou muito sábia para cair presa de tão estúpido romantismo. Não, não são romances o que quero. Só quero ele. Meu desejo por ele é algo tangível, como sei que também é o dele por mim. O que me incomoda é que ele o negue, que me olhe como se fora indigna dele.

Entretanto, desta vez conseguirei. Demonstrarei que sou a mais valente, a mais forte, a pessoa mais engenhosa que ele jamais conheceu.

Recolhi certa informação. Faz algum tempo, Roland teve um problema sério com outros dois imortais, ao voltar para os Estados Unidos. Os detalhes agora não nos importam. A questão é que, agora mesmo, o ser mais prezado por Roland é um menino chamado Jamison Bryant. É um dos escolhidos, quero dizer, um desses estranhos humanos que compartilham a mesma ascendência e o mesmo sangue que nós, os imortais. Um mortal que pode ser transformado. Jamison mantém uma relação especial com Roland. E admito que o invejo. Mas o menino corre um grave perigo, e também poderia corrê-lo Roland. E eu vou buscá-los não só para adverti-los, como também para protegê-los no caso de ser necessário.

Por favor, não interpretem mal meus motivos. Não corro a seu lado movida por nenhum rimbombante compromisso sentimental. Já deixei muito claro que meus sentimentos por Roland são de natureza física. E me dói ser desprezada. De modo que seria uma estupidez expor-se a sofrer mais. Não, eu isto faço unicamente para demonstrar meu valor. Roland compreenderá de uma vez por todas que Rhiannon não é uma simples mulher que possa ser ignorada como se fosse um móvel. Eu mereço seu afeto, da mesma forma que merecia o de meu pai. São eles os que se equivocam ao me desprezar.

Eles são os únicos equivocados.

Embora...

Há ocasiões em que eu começo a duvidar. Às vezes, quando recordo meu pai me amaldiçoando pelos corredores de palácio, pergunto-me se teria razão. Serei sua maldição? Não serei nada além de uma mão dos deuses utilizada para castigar um rei pecador? Afinal, como poderia estar meu pai enganado? Era um faraó! Só estava um degrau abaixo dos deuses.

E poderia ter razão Roland ao evitar meu contato? Talvez ele esteja vendo algo que eu não vejo… Talvez saiba que não sou digna de....

Não!

Eu sou Rhiannon, nascida Rhianikki, princesa do Egito e primogênita do faraó. Sou imortal, uma deusa entre os humanos, invejada pelas mulheres e adorada pelos homens. Poderia matá-los com a mesma facilidade com que dou boa noite.

Claro que poderia!

Sou digna dele... e pretendo demonstrá-lo.

Meu nome é Rhiannon. E esta é minha história.

 

 

 

 

Movia-se como uma sombra por aqueles becos estreitos. Odiava estar ali, caminhando entre eles. Alguns passavam tão perto dele que podia tocá-los. Sentia o calor de seus corpos, via o vapor de suas respirações no frio ar da noite. Percebia a pressão da sangue palpitando em suas veias e ouvia os rápidos e saudáveis batimentos do coração de seus corações. Sentia-se como um lobo caminhando sigilosamente entre cordeiros. Com sua força sobrenatural poderia matá-los a todos sem grande esforço. E assustava-se de saber que era capaz de algo assim.

Por um instante, nublaram sua visão turvas imagens de um longínquo passado. Um ambiente pesado e carregado de pó, o aroma de sangue e suor. Homens cansados como as folhas do outono sobre a úmida terra. Os cascos dos cavalos troando enquanto seus cavaleiros voavam em qualquer direção. Um homem, um menino na realidade, continuava respirando. O humilde escudeiro, com uma armadura maior que ele, permanecia sentado no meio daquela destruição. Seu cavalo chutava o chão e relinchava pedindo mais. Mas a única resposta era o silêncio. Um silêncio mortal.

Roland ainda podia ver o sangue que cobria sua espada e as lágrimas que deslizavam lentamente por seu rosto. Quando a fúria cega começou a desvanecer-se, deixou cair a espada. Com o estômago revolto, tirou o casco e a touca e os deixou cair ao chão. Olhou horrorizado aquela matança.

O menino não parecia alegrar-se de sua façanha. Não, e nem sequer se alegrou depois, quando foi nomeado cavaleiro pelo rei Luis VII, em agradecimento a seu heroísmo e seu valor. Não sentia nada, salvo a vergonha e a depressão provocadas pelo descobrimento de uma nova faceta de si mesmo.

Porque tinha matado.

Roland desprezou esses pensamentos. Aquele não era momento para arrependimentos nem lembranças. Recordou-se a si mesmo que, apesar de compará-los com cordeiros, alguns humanos eram capazes do engano e da traição. As experiências do passado tinham-lhe ensinado. E se era certo esse relatório que tinha recebido dos Estados Unidos, um desses humanos, um dos mais traiçoeiros, poderia estar a poucos metros dele.

Seu plano era singelo. Deslizaria por aquelas velhas ruas medievais de L'Ombre e se meteria em um botequim a que chamavam Requin. Ali escutaria e observaria com atenção. Escrutinaria as mentes dos humanos e encontraria o intruso, se realmente havia algum intruso para encontrar. Depois o enfrentaria.

O vento da noite se fez mais forte, arrastando com ele a fragrância das últimas rosas, da erva fresca e da fumaça e os vapores do álcool que saíam pela porta do botequim do qual naquele momento se aproximava. Deteve-se frente à porta aberta e o aroma se intensificou. Um punhado de turistas ébrios saiu cambaleante de seu interior. Roland retrocedeu, evitando assim que o olhassem, mas era uma precaução desnecessária. Nenhum deles lhe emprestava a menor atenção.

Roland encolheu os ombros. Ele não temia os humanos, e tampouco a muitos imortais. Mais que os humanos, o que devia temer era um encontro não desejado. Além disso, parecia-lhe sensato evitar qualquer contato. No momento que os humanos descobrissem que a existência dos vampiros não era unicamente parte da lenda e o folclore, o dano seria irreversível. Já não haveria paz. De modo que era melhor permanecer distante, continuar formando parte do mito daqueles irremediavelmente curiosos mortais.

Quando a porta voltou a abrir-se, Roland deslizou rapidamente no interior do botequim. Virou para o lado e dedicou alguns segundos a examiná-la. Havia mesas baixas e redondas distribuídas sem nenhuma ordem. A gente formava redemoinhos ao redor das mesas, de pé ou sentada, e falava sobre algo. O ar, carregado de fumaça, provocava-lhe ardência nos olhos e um ardor insuportável no nariz. O gorgolejo do álcool ao cair nos copos e o tinido dos gelos contra o cristal salpicavam de vez em quando o murmúrio das vozes.

E de repente, elevou-se uma risada feminina por cima de todas as demais. Uma risada meio rouca e sem reservas levantou-se por cima da fumaça que o rodeava para lhe acariciar os ouvidos. Roland desviou o olhar para a fonte daquele som, mas só viu um grupo de homens perto da barra. Imaginou imediatamente que ela era o centro daquele grupo.

Tentar abrir caminho entre seus admiradores era impensável. Roland não queria chamar a atenção. E, tampouco queria reiniciar sua relação com ela, retomar aquela lenta tortura. Ignorou o aborrecimento que lhe provocava pensar que qualquer daqueles humanos podia estar suficientemente perto dela para tocá-la. Não queria ser testemunha daquilo, ou das carícias que lhe fazim qualquer mortal bêbado.

Podia inteirar-se de muitas coisas escutando, e assim o fez. Sintonizou sua mente e seus ouvidos e se perguntou como faria para atraí-la naquele momento. Se por acaso queria alguma confirmação, em poucos segundos, deixou de ter dúvidas sobre a identidade da proprietária daquela risada.

—Quer outra, Rhiannon?

—Oui, cherié. E que tal um pouco de rock and roll?

Um coro de súplicas seguiu a figura esbelta e morena que se distanciava do grupo. Rhiannon sacudiu a cabeça. Movia-se com tal graça que parecia flutuar. O veludo negro de seu vestido balançando-se sobre seus pés intensificava aquela sensação. Roland não entendia como podia mover as pernas, tendo em conta que a saia grudava nela dos tornozelos até a parte superior de suas coxas. Para o que aquele objeto ocultava. Rhiannon poderia estar nua. O veludo parecia haver-se fundido com sua pele, pegava nos quadris, acariciava sua cintura e tomava seus seios com mãos possessivas. Os braços, compridos e magros, estavam nus, salvo pelos braceletes que os adornavam. As unhas eram largas e pintadas de cor vermelha sangue.

Roland continuou elevando o olhar enquanto Rhiannon cruzava o local, aparentemente alheia à sua presença. O decote daquele ridículo vestido consistia em duas tiras de veludo que formavam uma espécie de corda ao redor de seu pescoço. Entre ambos, resplandecia uma pele cremosa de uma suavidade quase etérea.

O olhar ardiloso do Roland não perdia um só detalhe, apreciando da suave curva de seus seios até a delicada linha que anunciava o decote. Ao redor do pescoço, Rhiannon levava um pendente de ônix com a forma da lua crescente. A lua descansava sobre a superfície de seu peito, no ponto mais baixo, quase acariciando a parte superior de seus seios.

O pescoço, de acetinada textura, estava parcialmente oculto por seu cabelo. Um cabelo tão negro e liso como o veludo do vestido, mas mais brilhante que o tecido. Rhiannon o tinha jogado a um lado, de maneira que ocultava uma parte de seu pescoço.

Na orelha direita levava um brinco de diamantes e ônix tão comprido que quase lhe acariciava o ombro. Devido à sua abundante cabeleira, Roland não podia dizer se usava outro brinco na outra orelha.

Rhiannon se deteve, inclinou-se para o homem do piano, sussurrou-lhe algo ao ouvido e posou a mão em seu ombro. Roland se esticou enquanto a besta que habitava em seu interior voltava a despertar como não o tinha feito desde há séculos. O pianista assentiu e tocou um novo acorde. Rhiannon voltou-se para a clientela e apoiou um braço no piano. E assim que cantou a primeira nota, fez-se um completo silêncio. Sua voz, uma voz profunda e suave como o mel, envolvia tudo.

Rhiannon cantava como se lhe estivesse rompendo o coração em cada nota, mas a voz nunca tremia nem perdia intensidade.

Tinha os mortais na palma da mão e estava desfrutando da cada segundo, pensou Roland em silêncio. E ele deveria dar meia volta e deixar que desse ela o espetáculo dessa maneira absurda. Mas enquanto cantava daquela forma tão sentida, Rhiannon olhou para ele. Apanhou seu olhar e se negou a soltá-la. Apesar de si mesmo, Roland percebia a pura beleza de sua voz. E embora não tivesse intenção de fazê-lo, deixou que seus olhos se deleitassem em cada detalhe de seu rosto.

Um oval perfeito e sem mácula que parecia ter sido esculpido por um artista. Um queixo pequeno e quase bicudo, uma mandíbula bem definida. Maçãs do rosto marcados e covinhas nas bochechas. Olhos amendoados e desenhados com o khol, que acentuava seu formato exótico. Suas pestanas eram tão escuras como as íris que rodeavam.

Quase contra sua vontade, Roland fixou o olhar naqueles lábios cheios que foram pronunciando cada uma das palavras da canção. Durante quantos anos tinha desejado aqueles lábios?

Não. A fruta daqueles lábios lhe estava proibida. Elevou o olhar de novo para seus olhos. Rhiannon continuava olhando-o como se a canção estivesse destinada apenas a seus ouvidos. Pouco a pouco, Roland foi dando-se conta de que estava despertando a curiosidade da clientela. Voltavam a cabeça para ver quem tinha conseguido captar a atenção da sempre evasiva Rhiannon. Roland tinha baixado a guarda de seu feitiço, da mesma maneira que qualquer daqueles estúpidos humanos e, em conseqüência, tinha esquecido o risco que para ele representava ser visto. Que Rhiannon fosse imprudente se quisesse, mas ele não ia arriscar-se. Porque havia muitas probabilidades de encontrar problemas se continuasse ali. A presença de Rhiannon sempre fazia surgir seus instintos mais básicos. E tinha a certeza de que ela o fazia deliberadamente. Embora estivesse a par do que ocorria, era provável que também Rhiannon mudasse de opinião.

Posou a mão no trinco da porta do botequim sem afastar o olhar do Rhiannon e a empurrou. Obrigou-se a sair no ar frio daquela noite outonal enquanto Rhiannon mantinha a nota final durante tanto tempo que para qualquer um deveria ter sido óbvio que não se tratava de uma mulher normal. Uns segundos depois, escutou-se um aplauso ensurdecedor.

 

Rhiannon sentia a ardência da bofetada emocional que acabava de receber. Seu aborrecimento crescia a toda velocidade, mas não o suficiente para evitar a dor que o acompanhava. Assim Roland era capaz de olhá-la tão meticulosamente e partir depois, não? Era capaz de ignorar o vestido que tinha escolhido com a única intenção de atrai-lo. Podia fingir que não tinha percebido a emoção com que impregnava cada nota, era capaz de fingir inclusive que não se fixou na canção que tinha escolhido. Muito bem, nesse caso, teria que tomar medidas mais drásticas para chamar sua atenção.

Separou-se do piano e disse a seus acompanhantes que lhe doía a cabeça e que ia embora. O pianista, Fraçois, inclinou a cabeça para a porta e Rhiannon saiu, detendo-se só para agarrar pelo braço o cliente mais bêbado do local e levá-lo com ela.

Apareceu na escuridão da rua e viu a silhueta de Roland afastando-se. Não o chamou. Não queria lhe suplicar um pouco tão simples como uma saudação depois de décadas de separação. Tinha uma idéia melhor.

Voltou-se de novo para o bêbado, olhou-o e o fez apoiar-se contra a parede do edifício.

Estudou-o durante uns segundos. Não era mau. Era sardento e ruivo, mas tinha um rosto bonito.

Agarrou-o pelo queixo e cravou o olhar naqueles olhos verdes nublados pelo álcool. Concentrou todas suas energias mentais em reclamá-lo e ganhar sua posterior colaboração. Quando baixou a cabeça para sua garganta, o homem estava disposto a lhe dar tudo o que tinha se o tivesse pedido. Rhiannon não percebia maldade alguma nele. De fato, parecia um bom homem, exceto por sua afeição ao álcool. Mas ela achava que todo mundo tinha direito a permitir-se algum vício. De fato, ela estava a ponto de ceder ao dela.

Entreabriu os lábios e pousou a boca bem no lugar em que a jugular palpitava embaixo da pele. Não queria fazer-lhe dano. Só queria chatear Roland. Sua voluntariosa vítima gemeu brandamente e deixou cair a cabeça para um lado. Rhiannon esteve quase a engasgar-se por culpa da risada. Alegrava-se de que pelo menos um deles encontrasse prazer no que lhe estava fazendo. Para ela, aquele ato tinha perdido o atrativo há séculos.

—Maldita seja, Rhianikki, solte-o!

Roland posou a mão em seu ombro e puxou-a bruscamente para separá-la da garganta do bêbado. O homem caiu ao chão quase inconsciente, embora não pela perda de sangue, mas sim pelo prazer que Rhiannon lhe tinha proporcionado.

—Poderia tê-lo matado — sussurrou Roland com dureza.

Rhianikki se permitiu elevar ligeiramente as comissuras dos lábios.

—Sempre disposto a pensar o pior de mim, não é verdade, benzinho? E agora me chamo Rhiannon. Rhianikki soa muito ... — fez um gesto com a mão—... egípcio.

Dirigiu ao homem que estava no chão um olhar fugaz.

—Já está bem, Paul. Já pode partir.

Liberou-o mentalmente e Paul se levantou vacilante. Olhou-os desconcertado.

—O que houve?

—Você bebeu muito Chablis, mon cher. Agora vamos, siga seu caminho.

Sem deixar de franzir o cenho, Paul retornou cambaleante ao botequim. Rhiannon voltou-se então para Roland.

—Vê ?

—O que está fazendo aqui?

—Nem sequer uma saudação? Não vai dizer que se alegra de ver que continuo respirando? Nada? Tornou-se muito mal educado, Roland.

—O que está fazendo aqui? —manteve um tom de voz impassível enquanto repetia a pergunta.

Rhiannon encolheu os ombros.

—Se por acaso quer sabê-lo, ouvi falar de certo agente da DIP, bastante desagradável, por certo, que o seguiu até aqui. Dizem que está já no povo. Estava preocupada com você, Roland. Vim te avisar.

Roland olhou para o chão e sacudiu lentamente a cabeça.

—Assim, sabendo que há um agente da Divisão de Investigações Paranormais no povo, faz alarde de sua presença da forma mais notória.

—Que melhor maneira de despistá-lo? Já sabe como são afeiçoados à busca de vampiros.

—Poderiam tê-la matado, Rhiannon.

—Assim você se teria livrado de mim.

—Isso não tem nenhuma graça.

—Pois tem uma estranha maneira de demonstrá-lo.

Roland lhe passou a mão pelo ombro. Rhiannon deslizou a mão por sua cintura e começaram a caminhar para o castelo de Roland.

—Procure ter mais cuidado —começou a dizer nesse tom paternal e absolutamente irritante—. Não sabe do que é capaz a DIP. Inventaram um sedativo que nos deixa completamente indefesos.

—Sei. E sei que você se salvou por pouco em Connecticut, quando estiveram quase levando Eric e Tamara.

Roland arqueou as sobrancelhas com expressão de estranheza.

—E como o soube?

—Segui-lhe o rastro, querido —sorriu—E durante anos, também estive seguindo a pista desse cientista, St. Claire. Reteve-me durante um tempo em seu laboratório, sabe?

Roland deu um coice, agarrou-a com força nos ombros e a fez voltar-se para ele.

—Meu Deus, não tinha nem idéia. Quando... como? —interrompeu-se e sacudiu a cabeça—. Fez-lhe mal?

Rhiannon sentiu um agradável calor em seu interior.

—Um dano terrível —confessou com um suspiro—. Mas não durou muito tempo. Tive que rasgar o pescoço de seu companheiro quando escapei.

Roland sacudiu a cabeça e fechou os olhos.

—Deveria ter me chamado. Eu teria ido...

—OH, não diga tolices, Roland. Nenhum humano pode pegar Rhianikki, a princesa do Nilo, filha do faraó, vampiresa imortal desde tempos imemoriais...

As gargalhadas do Roland foram completamente involuntárias, Rhiannon sabia, e se embebeu na beleza de seu sorriso, desejando poder provocar aquela risada mais freqüentemente. Às vezes, via algo escuro no olhar do Roland. Segredos que o atormentavam e que nunca tinha compartilhado.

Quando a risada cessou, Roland se voltou e começou a caminhar de novo.

—Conte-me como você soube que há um agente da DIP em L'Ombre.

—Desde que St. Claire me apanhou, estive por dentro da organização. Tenho espiões lá dentro que me mantêm informada.

—Então se tornou mais sensata do que pensava. Sabia, é obvio, que St. Claire está morto, não?

—Sim, mas não está seu protegido, Curtis Rogers.

Roland parou de novo.

—Isso é impossível. Tamara atirou nele quando estava tentando matar Eric.

—Sim, atirou. E o deixou, pensando que estava morto. Mas não estava. Encontraram-no pouco tempo depois e sobreviveu. É ele o que veio a França para te buscar, Roland. Quer vingar-se.

—De mim?

—De você, de Eric, de Tamara e do menino, eu acho.

Rhiannon viu-o empalidecer. Ela já sabia o tanto que apreciava aquele menino ao qual tinha resgatado dois anos atrás. Esse menino era um dos Escolhidos, um humano com um vínculo secreto com os imortais. A DIP sabia e tinha tentado utilizá-lo como isca para apanhá-los. Sem dúvida alguma, não vacilariam em fazê-lo outra vez. Sim, Rhiannon sabia, mas ver a reação de Roland frente àquela ameaça logo que sussurrada para o menino, fê-la recordar a intensidade de seu afeto. Sentiu o torvelinho que tinha causado em seu interior e posou a mão em seu braço para tranqüilizá-lo.

—Jamey —sussurrou Roland—. Esse canalha já o apanhou em uma ocasião. Esteve a ponto de matá-lo.

—Agora já sabe por que vim.

Roland arqueou as sobrancelhas com expressão interrogativa e Rhiannon acrescentou:

—Para lhe oferecer minha ajuda e para proteger o menino.

—Um gesto muito nobre de sua parte, mas desnecessário. Eu posso proteger Jamey. E não quero que você corra riscos. Seria muito melhor que fosse embora da França de uma vez por todas.

—Para sua paz mental, quer dizer?

Procurou seu rosto e soube, quando o viu baixar o olhar, que tinha tocado no ponto certo.

—Então não lhe sou tão indiferente como finge?

—Quando fui indiferente a ti, oh, deusa entre as mulheres?

Rhiannon quase sorriu.

—Bom, sua paz mental não é meu assunto. De fato, encontro certo gosto em lhe fazer perder o equilíbrio. E penso ficar, queira você ou não. Se não quiser me ajudar a vigiar o menino, procurarei a esse Rogers e o deixarei seco. Isso resolverá o problema.

—Rhiannon, certamente você está consciente que assassinar um agente da DIP só serviria para nos causar mais problemas —tomou ar nervoso— Matar de nada adianta.

         Rhiannon encolheu os ombros e o olhou através de suas largas pestanas. Como gostava de provocá-lo!

         —Nunca saberão que fomos nós. Vou esmagá-lo e o darei a meu gato —Roland fez uma careta e sacudiu a cabeça—. Possivelmente antes vou torturá-lo. O que parece? Posso lhe cravar estacas de bambu debaixo das unhas. Está acostumado a ser muito efetivo. Poderíamos saber dos segredos da DIP e...

         —Pelo amor de Deus! —gritou, agarrando-a pelos ombros com força, mas sua expressão horrorizada desapareceu assim que Rhiannon estalou em gargalhadas.

         Roland suspirou, sacudiu a cabeça e afastou os braços de seus ombros. Mas antes que tivesse retirado as mãos, Rhiannon o agarrou.

         —Não, Roland, não.

         Roland ficou completamente quieto. De seu rosto desapareceu toda expressão enquanto ela deslizava as mãos por sua cintura, atraía-o para si e apoiava a cabeça em seus sólidos ombros. Com um suspiro de relutante conformidade, Roland a reteve contra ele.

         Rhiannon fechou os olhos e se permitiu o prazer de senti-lo.

         —Senti sua falta, Roland —sussurrou. Ergueu o rosto ligeiramente para ele e acariciou-lhe o pescoço com os lábios—.E você também sentiu minha falta, embora não queira admiti-lo.

         Sentiu-o estremecer.

         —Admito-o, senti sua falta.

         —E me deseja — continuou Rhiannon, elevando a cabeça para poder olhá-lo nos olhos enquanto falava —, como jamais desejou outra mulher. Como jamais desejará. Desaprova tudo o que sou e tudo o que faço, mas me deseja, Roland. Sinto-o inclusive agora, neste simples abraço.

         — A sutileza nunca foi seu forte, Rhiannon — tomou-a nos braços para afastá-la e continuou caminhando sem tocá-la.

         — Nega-o?

         Roland sorriu lentamente.

         —Desejo passear debaixo da luz do sol, Rhiannon, mas se o fizesse, esse seria meu fim. O que se deseja não é necessariamente o que convém.

         Rhiannon franziu o cenho e inclinou a cabeça.

         — Odeio que fale com metáforas, parábolas ou como quer que chame a essas estúpidas palavras que utiliza.

         Roland negou com a cabeça.

         —Durante quanto tempo ficará por aqui?

         —Mudar de assunto não vai ajudá-lo a se sentir melhor, e sabe.

         —Era uma simples pergunta. Se não poder respondê-la...

         —Responda à minha e responderei à sua. Deseja-me?

         Roland franziu o cenho.

         —Como se pode ser tão estúpida para perguntar algo que já conhece a resposta?

         —Quero ouvir voce dizer isso —se interrompeu e o olhou nos olhos—Que me deseja.

         Roland deslizou lentamente os olhos por seu corpo. Ao final, assentiu.

         —Desejo-a, Rhiannon, mas não...

         Rhiannon o interrompeu elevando a mão.

         —Não diga nada mais, não estrague tudo.

         Roland mordeu o interior da bochecha para não rir e Rhiannon sentiu que começava a zangar-se.

         —Agora responda à minha pergunta, quanto tempo pensa em ficar ?

         —Bom, vim para proteger o menino. Suponho que ficarei até que a ameaça tenha desaparecido, e...

         —E? —Roland franziu o cenho e escrutinou seu rosto.

         Rhiannon tentou não sorrir enquanto lhe respondia.

         —E até que lhe tenha dado exatamente o que deseja, Roland.

 

         Roland sentia como se estivesse na prisão fortificada e como se Rhiannon fosse um dos revolucionários. Por um instante, teve a convicção de que não tivera oportunidade. Tentou recordar de seus defeitos. Rhiannon era uma mulher impulsiva, impetuosa e tão imprevisível como o tempo. Agia sem pensar nas conseqüências de seus atos. E antes ou depois, sua atitude ia custar-lhe caro. Diabos, na realidade já lhe havia custado caro. Roland tinha a sensação de que tinha tentado lhe tirar importância ao que tinha suportado à mãos do St. Claire. Mas ele sabia que era inútil pressioná-la para que lhe contasse algo mais. Se tivesse sabido o que ia ocorrer, ele mesmo teria matado a esse canalha anos atrás.

         Analisar os defeitos de Rhiannon lhe estava servindo de muito pouco. De fato, já estava enfraquecendo. Sua mera presença o fazia pensar em termos de represálias e assassinatos, obrigando-o a esforçar-se para dominar o lado mais violento de sua natureza. Estudou Rhiannon e sacudiu a cabeça lentamente.

         Possivelmente não conseguisse sufocar seu desejo fazendo uma lista de seus defeitos. Possivelmente o melhor fosse pensar em seus próprios defeitos. Inclusive melhor, deveria recordar-se no que se transformou por culpa de outra mulher que tinha desejado.

         —Está muito calado, Roland. São pouco aduladores seus pensamentos?

         —Sou um homem reservado, não tome como algo pessoal.

         —Está-me ocultando algo.

         Roland encolheu os ombros. Se Rhiannon estava decidida a continuar tentando-o, resistiria da melhor forma que pudesse. Tanto por seu bem como pelo dela. Manteria as distâncias. Não permitiria que Rhiannon desatasse a besta que havia nele. Rhiannon não tinha feito nada para merecer algo assim.

         E possivelmente, enquanto estivesse ali, poderia lhe ensinar a comportar-se com naturalidade e sensatez. Ensinaria as diferenças entre ser uma verdadeira dama e comportar-se como a menina indomável que era. Seria como transformar um cacto em uma rosa, pensou. Negava-se a pensar que aquelas mudanças também o beneficiariam. Porque ele jamais desejaria com a mesma intensidade uma rosa que a essa flor com espinhos que era Rhiannon.

         Não, disse a si mesmo. A lição seria para ela, para conseguir que exercitasse de vez em quando a virtude da prudência. Realmente, odiaria vê-la sofrer por culpa de sua natureza... como tinha sido para ele.

         Franziu o cenho e se perguntou quanto duraria sua visita. Nunca permanecia o tempo suficiente para fazer algo mais que desatar um torvelinho, esmurrar seus sentidos com sua vivaz natureza e depois partir. Era como uma tormenta do deserto, como um redemoinho do Nilo.

         — Roland, querido, está me ignorando.

         Estivera fazendo tudo, menos isso, embora jamais o admitisse. Em troca, baixou o olhar para ela e assentiu com dureza.

         — Exatamente.

         Rhiannon suspirou exasperada.

         — Suponho que se nega a falar de nossa relação.

         — Não temos nenhuma relação, Rhiannon.

         — Mas teremos que falar desse menino —continuava falando como se não a tivesse interrompido.

         Aquele era outro de seus irritantes costumes. Quando a gente falava com Rhiannon, tinha que dizer o que ela queria ouvir ou arriscar-se a ser ignorado.

         — O que acontece com o menino?

         —Onde está, Roland? Está a salvo?

         —A princípio, sua mãe e ele estiveram vivendo no castelo.

         —Nessa ruína?

         Roland se esticou.

         —Nesta casa, Rhiannon. É perfeitamente habitável.

         —Para um monge, é claro. Continue.

         Roland franziu o cenho, mas continuou falando. Não tinha vontade de meter-se em escaramuças verbais.

         —Então, Kathryn adoeceu.

         —Não sente saudades, esse lugar está cheio de correntes de ar.

         —Sofreu um câncer, Rhiannon. Morreu há oito meses.

         Rhiannon levou a mão à garganta e tomou ar.

         —Então o menino está sozinho?

         —Não de todo. Tem a mim, e está também com Frederick, é obvio.

         —Frederick? —Rhiannon inclinou ligeiramente a cabeça. - O que te encontrou dormindo nas ruas de Nova Iorque? Roland, pode confiar uma criança a esse homem?

         Roland assentiu sem reservas. Frederick era um pouco difícil de entender, mas tinha um coração de ouro.

         —Sim. Se não confiasse nele, não estaria em minha casa. Jamey necessita de alguém que esteja com ele quando sai do colégio e até ao anoitecer.

         Sem deixar de caminhar a seu lado, Rhiannon passou os dedos pela fronte, como teria feito uma adivinha cigana que estivesse preparando-se para ler o futuro de alguém.

         —Mmm, na certa o matriculou em um colégio particular.

         —Negou-se a ir para um colégio particular. Diz que não é um esnobe — Roland sacudiu a cabeça— Esse menino tem uma vontade de ferro .        Em qualquer caso, agora se chama James Ou'Brian.

         —E agora onde está? Deitado em seu castelo?

         —Tinha um jogo de futebol esta noite, embora imagino que a estas horas já deve estar chegando em casa — olhou para diante, fixando seus olhos nos altos muros de pedra cinza que rodeavam o castelo Courtemanche.

         —Também deu um carro a Frederick? Ele sabe dirigir?

         Roland franziu o cenho e seguiu a direção de seu olhar.

         —Maldita seja —agarrou Rhiannon do braço e puxou-a para que se escondesse detrás um dos arbustos que bordeavam a estrada.

         —O que está fazendo?

         —Chsss, Rhiannon —Roland se mexia lentamente. Aproximou-se da porta da taipa e olhou para o Cadillac que havia diante dela —. Esse carro não deveria estar ali.

         —Não há...? —Rhiannon mordeu o lábio e entrecerrou os olhos enquanto fixava o olhar no carro—. Não há alguém ao volante?

         Roland assentiu. Sua mente já tinha tentado escanear a daquele intruso, mas descobriu que não tinha acesso a ele. A maior parte dos humanos era tão acessível que ler sua mente era quase uma brincadeira. Aquele tinha fechado deliberadamente sua mente, Roland estava seguro. Com aquela escuridão, nem sequer com sua visão sobrenatural podia identificar claramente quem era. O nó que lhe deu no estômago era o único sinal que lhe indicava que Curtis Rogers ocupava aquele carro E que estava observando, esperando a chegada de Jamey.

         Rhiannon sussurrou.

         —Mas não sinto a presença do menino —sacudiu a cabeça frustrada—. Esse é Rogers?

         —Não sei, mas no caso de ser, vem procurando vingança e, portanto, Jamison está em perigo.

         —Crie que Rogers seria capaz de matar o menino só para lhe fazer mal?

         —Considero-o mais capaz de seqüestrá-lo para esperar que eu vá resgatá-lo. Mas enquanto isso, terá o menino e não vacilará na hora de lhe fazer provas e submetê-lo a experimentos para descobrir a relação entre Os Escolhidos e os imortais.

         —Sim, conheço a DIP e seus adoráveis experimentos.

         Roland a olhou de esguelha, sentindo-se de novo doente ao recordar que Rhiannon tinha ficado nas mãos da DIP. A verdade era que sentia necessidade de protegê-la da mesma maneira que se sentia obrigado a proteger a Jamison. Era absurdo, sabia. Rhiannon jamais precisaria ser protegida por ninguém. Mais ainda, como continuasse submetendo sua mente a tal torvelinho, não ia precisar ser protegida por ele, mas sim dele.

         —Onde está o menino? É tarde.

         Roland sacudiu a cabeça, tentando concentrar-se no assunto que tinham nas mãos.

         —Quando ganham, normalmente ficam depois para jantar. Às vezes chegam bastante tarde —enquanto falava, procurou mentalmente Jamey. Encontrou-o caminhando pela rua, completamente alheio à ameaça que o espreitava.

         O homem do carro também o viu, porque justo nesse momento abriu a porta e saiu. Jamey estava cada vez mais perto e antes que Roland pudesse decidir o que fazer a seguir, Rhiannon saiu correndo disparada para o homem.

         —Oh, meu Deus, por fim encontro alguém!

         O homem se voltou para ela com expressão receosa. Roland teve então uma visão perfeita de seu rosto. Curtis Rogers tinha mudado muito pouco durante os últimos dois anos. Seu cabelo loiro continuava caindo em uma franja comprida na testa. Seus olhos claros e suas sobrancelhas lhe faziam parecer um boneco de pano e Roland sabia que era exatamente isso. Mas com os recursos da DIP era um inimigo que não se podia ignorar.

         E justo naquele momento, Rhiannon estava se pondo a seu alcance.

         —Quem demônios é você?

         —Uma mulher que precisa de ajuda. Meu carro saiu da estrada. Estou caminhando uma eternidade, e... —continuou avançando, fingindo uma convincente claudicação —. Poderia me levar em seu carro?

         «Entre no carro dele, Rhiannon, e te tirarei as vísceras!». Roland lhe dirigiu claramente aquele pensamento. Acaso havia ficado louca? «Cale-se, Roland, está parecendo um idiota».

         Sorriu e deu um passo mais para Curtis.

         —Não pensa em me deixar sozinha, não é? Jamais lhe perdoaria se o fizesse.

         Sua voz se transformou em um ronrono e Roland sentiu que sua fúria aumentava. Rogers deslizou o olhar lentamente por seu corpo, sem deixar passar uma só curva, e prolongando-o durante um tempo excessivo no generoso decote do vestido.

         —Eu adoraria ajudá-la, mas tenho um assunto para me ocupar.

         Roland começou a sair de seu esconderijo. Já era suficiente. Se Rogers pensava em pôr um só dedo em cima dela ...

         «Não, querido! Jamie está muito perto. Nos cerque disimuladamente e intercepte o menino. Eu manterei este imbecil distraído».

         «Mas se ele perceber que você é imortal...», começou a lhe advertir Roland.

         A risada rouca e sensual do Rhiannon chegou até ele e fez com que Rogers arqueasse as sobrancelhas.

         «Olha-o, Roland, está muito ocupado para pensar que sou uma mulher». Como queria demonstrá-lo, aproximou-se do homem, elevou a mão e a deslizou pela lapela de sua jaqueta, ganhando com isso toda sua atenção.

         A bílis do ciúmes subiu até a garganta de Roland, substituindo o medo por ela que segundos antes a ocupava. Deslizou entre as árvores que ladeavam a estrada e voltou a sair quando os deixou atrás dele. Jamey estava só a uns metros de distância.

         —Jamison, sou eu, Roland. Venha aqui imediatamente.

         —O que está havendo?

         Roland franziu o cenho ao ver a ferida que Jamey tinha na bochecha esquerda e seu lábio ligeiramente inchado.

         —Que diabos aconteceu com você?

         Jamey encolheu os ombros com a despreocupação própria de um menino de quatorze anos.

         —O futebol é um esporte duro —olhou para a estrada—. Quem é esse?

         —Odeio ter que te assustar, Jamison, mas o homem que está no carro é...

         —Rogers! — Jamey reconheceu Curtis assim que o homem se moveu e tentou avançar para ele.

         Roland o agarrou pelos ombros.

         —O que acha que está fazendo?

         —Esse homem quase me matou. Quando lhe puser as mãos em cima...!

         — Cuide da sua linguagem, Jamison, cale-se e faça o que eu vou dizer. Não pode provocar uma briga com um adulto.

         — Sou muito maior que há dois anos. E sabe que o devo… seus olhos castanhos resplandeceram com absoluta ferocidade.

         Roland sentiu um calafrio. O caráter de Jamison lhe parecia familiar. Sua fúria, seu aborrecimento... Roland tinha conhecido todos aqueles sentimentos quando tinha sua idade. E quase o destruíram. Certamente, tinham destruído outros. A muitos outros.

         —É certo, Jamison, mas...

         Jamey deixou então de resistir.

         —Quem é essa? —abriu os olhos como pratos e Roland seguiu o curso de seu olhar para ver Rhiannon brincando com o cabelo de Curt Rogers.

         —É uma amiga minha, chama-se Rhiannon e está distraindo Rogers para que possa entrar no castelo sem que ele veja você.

         Jamey engoliu em seco.

         —É maravilhosa.

         Roland ficou olhando-a em silêncio. A luz da lua roçava a pele acetinada de seus ombros como uma carícia.

         —Sim —falou brandamente, mas logo reagiu—. Sim, e pelo visto, também ao Rogers ela parece…

         Rogers estava pousando a mão no ombro nu de Rhiannon e começou a deslizá-la lentamente por seu braço. Roland sentia a fúria lambendo suas veias como às vezes ocorria. Por um instante, apertou a mão como se quisesse agarrar o punho de uma faca. Imediatamente se recordou que já não necessitava disso.

         —Vamos, Jamey, antes que ela diga... —interrompeu-se antes de terminar aquele comentário.

         Jamey elevou o olhar para ele e depois olhou de novo para Rhiannon com expressão de havê-lo compreendido. Não disse nada, limitou-se a assentir e seguiu Roland entre as árvores. Deslizou o braço pelos ombros de Roland. Roland o imitou e saltaram juntos a taipa para aterrissar com um golpe surdo do outro lado. Jamey caiu para frente quando entrou em contato com o chão. Sacudiu a cabeça envergonhado, levantou-se e sacudiu o pó das calças.

         —Um destes dias, descobrirei o seu truque.

Roland ouviu a risada profunda de Rhiannon enchendo a noite.

         —Ela é... como você? —Jamey jamais teria utilizado a palavra vampiro, mas Roland era consciente de que ele sabia.

         Olhou-o e assentiu.

         —Não deveria estar aí com Curt Rogers —disse Jamey.

         —Tem toda a razão. Entre em casa e me espere no salão —disse Roland olhando para a entrada.

         —Não, já não sou mais criança e estou cansado que outros lutem minhas batalhas por mim.

         Roland quase soltou um grito, mas fechou os olhos e sacudiu a cabeça. Por um instante, poderia ter jurado que estava vendo-se si mesmo, discutindo com seu pai um dia antes de haver partido de casa para sempre. Quatorze anos, sim. Tinha bem essa idade. E só dois anos depois...    Bloqueou a lembrança daquele sangrento campo de batalha.

         —Aqui não se está lutando nenhuma batalha —disse com calma—. Por favor, entre no castelo para que eu possa ir procurar Rhiannon. Só Deus sabe em que problemas ela é capaz de meter-se.

         Jamey lhe deu um chute em uma pedra e passou a mão pelo cabelo.

         —Por que não nos deixa em paz?

         —Porque ainda respira.

         A voz de Rhiannon sobressaltou Jamey. Sacudiu a cabeça surpreso. Roland voltou-se lentamente e a observou aproximar-se. Tinha-a ouvido pousar atrás, após saltar a taipa.

         Um homem alto saiu então de entre as sombras, interpondo-se entre Rhiannon e Jamey. Rhiannon parou e arqueou as sobrancelhas.

         — Não há nada, Frederick, é uma amiga.

         Rhiannon fixou seu imperioso olhar nos olhos desconfiados de Frederick e deu outro passo adiante.

         — Não se lembra de mim, Freddy?

         Frederick franziu o cenho e inclinou a cabeça para um lado, evidentemente recordando uma versão diferente daquela mulher sempre encantadora. Roland deu um passo adiante, fechando o espaço que os separava, com Jamey a seu lado. Esperava que o alívio que tinha sentido ao vê-la sã e salva não se refletisse em seu rosto.

         — O que fizeram com Rogers?

         Rhiannon ignorou a pergunta de Roland.

         — Olá, Jamison. Ouvi falar muito de você.

         Estendeu-lhe a mão e Jamey a estreitou imediatamente. Depois, baixou o olhar como se não estivesse certo do que fazer.

         —Encantado de... te conhecer.

         —Rhiannon — insistiu Roland.

         Rhiannon olhou Roland nos olhos.

         —Tem medo que o tenha matado? Não estaríamos muito melhor se o tivesse feito?

         —Certamente, eu sim — respondeu Jamey brandamente.

         Roland sacudiu a cabeça.

         —Matar nunca é justificado, Jamison. A morte destrói tanto ao assassino como sua vítima. Mais, inclusive. Pelo menos a vítima ainda pode reivindicar sua alma. A do assassino vai destruindo-se lentamente.

         Rhiannon elevou os olhos ao céu e Jamey quase sorriu. Rhiannon o advertiu e lhe dirigiu um de seus devastadores sorrisos antes de voltar-se para Roland.

         —Bom, se tiver muito bom coração para matar esse homem, o que sugere? É óbvio que ele descobriu onde está Jamey. Não podemos nos limitar a esperar aqui sentados que ele venha e leve o menino.

         —Eu não sou um menino —replicou Jamey.

         —Acredito que Jamison deveria ir para os Estados Unidos uma temporada, passar algum tempo com Eric e Tamara —Roland olhou o menino para ver o que lhe parecia a idéia.

         Jamey arregalou os olhos para ouvi-lo e ergueu o queixo.

         —Não penso fugir.

         Rhiannon lhe dirigiu um olhar de aprovação. Jamey a sentiu e inclusive ergueu-se ligeiramente. Roland começava a ter a sensação de estar sobrando.

         —O que fez com Rogers? —voltou a lhe perguntar.

         —Cansei-me da estupidez de suas intenções. O imbecil tentou colocar a língua na minha orelha.

         Jamey se pôs a rir, sacudindo a cabeça: seus cachos negros se moviam ao ritmo de suas gargalhadas. Rhiannon lhe sorriu, mas Roland a olhou com o cenho franzido.

         —Rhiannon, não respondeu minha pergunta.

         Rhiannon encolheu delicadamente os ombros.

         —Monsieur Rogers está dormindo uma sesta. Acredito que ultimamente tem trabalhado muito.

         —Rhiannon...

         —Oh, Roland, só lhe dei um soco na cabeça. Sinceramente, nem sequer lhe vai ficar cicatriz.

         —Maravilhoso! —Roland ergueu as mãos para o céu—. Agora já saberá que fomos nós. Tentará seguir seus passos, como faz comigo. — Ele se enfurecia, porquê Rhiannon estava constantemente em situações de risco. Mas logo se deu conta de que Rhiannon poderia pressentir sua preocupação por ela, e se descobrisse quais eram seus verdadeiros sentimentos, jamais renunciaria seus intentos de sedução.

         —E o deixou convenientemente caído na porta principal, nos bloqueando a saída —acrescentou Roland, para dar mais severidade à sua queixa.

         Rhiannon descobriu Jamey olhando-a e piscou-lhe

         —De acordo, não o deixou caído na porta, verdade?

         —É obvio que não, não sou nenhuma estúpida — posou a mão no ombro de Jamey—.Vamos, prepare a mala. Esse adorável Cadillac nos está esperando.

         —Vamos onde?

         —Para minha casa. aluguei uma casa justo à saída do povoado. Rogers não te incomodará ali.

         —Não, Rhiannon. Jamey estará muito mais seguro em meu castelo.

Rhiannon ficou olhando-o durante longo momento. Parecia profundamente sumida em seus pensamentos.

         —De acordo. Então, logo voltarei.

         —Rhiannon, aonde...? — mas antes de que Roland tivesse terminado a frase, já se tinha ido.

Um segundo depois, Roland ouviu o carro de Curtis ronronando na distância e o viu perder-se em meio da noite.

 

         Rhiannon conduziu aquele magnífico carro durante comprido momento, passando a toda velocidade pela pequena cidade de L'Ombre e por suas sinuosas estradas até que, pouco a pouco, a estrada foi alargando-se e o tráfego se fez mais denso.

         Quando por fim se deteve com um ruído de rodas no aeroporto, tirou as chaves e correu para a parte traseira do carro para abrir o capô.

Rogers gemeu, agarrando a cabeça com as duas mãos enquanto se sentava. Olhou-a com os olhos entrecerrados, furioso, mas não tentou mover-se.

         —Leva uma seringa de injeção no bolso dianteiro da jaqueta — disse Rhiannon brandamente —. Tire-a.

         Rogers colocou a mão no bolso. Rhiannon o observou atentamente e quando viu que a mão esticava, agarrou-o antes que tivesse oportunidade de mover-se.

         —Não vou permitir-lhe um só movimento em falso. Roland me disse que essa droga realmente funciona —lhe tirou a mão de debaixo da jaqueta e agarrou a seringa de injeção—. Esta agulha é terrível. Embora suponha que é preferível aos métodos utilizados por St. Claire. Tirava-nos sangue até nos deixar muito fracos para lutar contra ele.

         Curtis abriu os olhos de repente, sem deixar de esfregáar a mão que Rhiannon lhe acabava de liberar.

         — É um deles, não?

         — A quem se refere, querido? A algum desses novatos aos que ele reteve? A um desses aos quais conseguiu tirar tanto sangue? Aos que assassinou? Não, não sou um desses. Absolutamente, como você mesmo pode ver.

         — É... Rhiannon. Você conseguiu escapar. E matou um dos melhores cientistas que teve a DIP...

         — Cientista? Eu diria que era um pervertido. Gozava infligindo dor.

Inclinou ligeiramente a cabeça para um lado, esforçando-se para que seu rosto não revelasse o que a lembrança daquela dor fazia em suas vísceras. Tinha sido torturada até a loucura. Para uma imortal tão velha como ela, a dor se magnificava de uma forma incrível. Sentia milhares de vezes mais profundamente que qualquer humano ou que um jovem vampiro.

         — Embora tenha que reconhecer que aquela noite o compreendi. Eu também gostei de fazê-lo sofrer —mantinha a voz fria, sem dar a seu tom nenhuma inflexão— E agora me diga, Curtis Rogers, essa droga foi provada antes em humanos? Pergunto-me, que efeito teria se fosse injetada em um humano, em você, por exemplo.

         O rosto de Curtis perdeu a cor e Rhiannon sentiu seu medo.

         — Essa droga não tem nenhum efeito nos humanos.

         Rhiannon inclinou a cabeça e soltou uma gargalhada.

         — Oh, vamos, que gracinha. Sabe que posso ler os pensamentos. Agora mesmo está muito assustado para ocultá-los, mas continua mentindo. Essa droga te mataria, não?

         Curtis negou com a cabeça.

         Rhiannon sustentou a seringa de injeção com a agulha para cima e pressionou o êmbolo, fazendo sair uma gotinha daquele líquido prateado. Curtis saiu correndo do carro, mas Rhiannon o agarrou pelo pescoço e apertou.

         —Sabe que não servirá de nada. Sou tão forte como vinte homens adultos. Poderia te matar sem usar nenhuma gota, Rogers. Como prefere que o faça? Você gostaria que me limitasse a te romper o pescoço? Seria mais rápido e o menos cruel. Ou poderia te injetar seu próprio invento.

Girou-o para olhá-lo no rosto e viu seu medo. Podia senti-lo, podia cheirá-lo. Sacudiu a cabeça lentamente.

         —Não, acho que esses métodos não são suficientemente poéticos para mim, Curtis, querido — apertou com força o êmbolo, lhe manchando a camisa com o líquido que continha a seringa de injeção e, uma vez a teve esvaziado, atirou-a de lado —. Acredito que possivelmente para você — apertou o pescoço dele e o aproximou ainda mais a ela—, os velhos métodos são os melhores.

         — Não! — sussurrou Curtis—. Pelo amor de Deus, não!

         Aproximou-o tanto dela que inclusive penetrou a pele de sua garganta e sorveu um pouco de sangue.

         — Oh, mon cher, está delicioso. Mas Roland me advertiu que não devia te matar. Só tentar te entreter até que seu avião... —mordeu os lábios, como se estivesse estado a ponto de deixar escapar através deles um importante secredo—. Não importa. Agora já está fora de seu alcance.

Soltou-o e Rogers cambaleou enquanto levava uma mão ao pescoço. Quando viu o sangue que manchava a mão, foi tal sua angústia que esteve a ponto de deprimir-se. Rhiannon poderia haver-se dado conta disso com seus olhos de mortal, mas encontrando-se em estado de vampiresa, sentia e lia cada um de seus pensamentos.

         — Como volta a incomodar ao menino, terei o prazer de terminar com você.

         Rogers desviou freneticamente o olhar para a direita e esquerda, como se estivesse procurando ajuda. Mas não havia ninguém que pudesse ajudá-lo.

         — Me pagará — disse, quando ficou suficientemente longe dela.

         — Sim, sei que tentará. Uma coisa mais e me partirei. Quero que saiba que o sabor de seu sangue em meus lábios me deixou com um grande apetite.

         — É um animal!

         Rhiannon sorriu lentamente.

         — Exato. Um predador, para ser mais preciso. E se voltar a se aproximar de Roland, vai virar minha presa. Acredite, se te ocorrer se vingar em Roland, sua experiência final não será nada prazenteira. Farei-lhe mal, Curtis Rogers. Farei-o se retorcer de dor.

         E partiu dali a toda velocidade, sabendo que, para a visão humana do Rogers, simplesmente devia haver-se desvanecido. Sabia que não iria ao castelo, pelo menos de momento. Acreditava havê-lo convencido de que Roland e o menino tinham tomado um avião com rumo desconhecido. De modo que, ao menos até amanhecer, estariam a salvo. Em qualquer caso, teria que tomar precauções. Rhiannon se dirigiu a toda velocidade para a casa que tinha alugado nos subúrbios de L'Ombre com intenção de ir procurar seu gato.

 

         Roland não tinha a menor ideia de onde tinha ido Rhiannon nem de quando pensava retornar. Assim era ela. Inconstante, volúvel e inquieta. E quase irresistível. Roland gemeu.. Não podia esquecer seu desejo nem sequer estando zangado.

         Quando a vira olhar para Jamey, teria jurado ter visto nela um carinho sincero. É obvio, era lógico que sentisse algo por aquele garoto. Era um dos Escolhidos. Um humano com os traços que todos os vampiros tinham quando eram humanos, a única combinação que lhes permitia transformar-se: a linha de transmissão, que remontava muito além de Vlad o Empalador, apesar do que diziam as teorias de Eric Marquand; e a posse de um antígeno sangüíneo conhecido como beladona. Um humano com essas duas condições, embora muitos deles não soubessem, tinha a sorte de ser imortal. Os vampiros os vigiavam de perto, especialmente as crianças. Como seres sobrenaturais, podiam sentir a presença de qualquer deles, como a algo que os ameaçasse. Mas raras vezes ficavam em contato com algum eleito. A maioria deles continuava vivendo sem saber nada de sua relação física com aquela sociedade que acreditavam mítica.

         A situação de Jamey era única. Para protegê-lo, a Roland não tinha ficado outra alternativa senão deixar as coisas na situação em que se encontravam. A DIP estava a par das características de Jamey. Sabiam de sua relação, não com um, mas com quatro vampiros. Concediam um grande valor a esse menino, cuja captura valeria para eles muito mais que seu próprio peso em ouro. Não parariam diante de nada para apanhá-lo, para encerrá-lo em um de seus diabólicos laboratórios e submeter seu frágil e jovem corpo a incontáveis e tortuosos experimentos enquanto esperavam a inevitável chegada de seus protetores.

         E com tudo aquilo em jogo, Rhiannon havia tornado a desaparecer.

         Mas ele a conhecia suficientemente bem, não? Por imprevisível que fosse, Rhiannon jamais tinha sido desleal. Sua despreocupação só era aplicável à sua própria segurança, não a de outros. Roland queria estar zangado com ela e, entretanto, só tirava o chapéu preocupado.

Assim que Jamey esteve instalado no moderno apartamento com Frederick, Rogers decidiu ir procurá-la. Claro que a incomodaria. Rhiannon gostava de fazer as coisas da sua maneira, sem interferências. Mas ele sentia que ela podia estar em perigo.

         Antes de dirigir-se para a porta, sentiu sua presença. Um segundo depois, foi consciente também de que o tinha envolto ao mesmo tempo uma assustadora sensação de alívio. Mas era ridículo. Na realidade não estava tão preocupado por ela.

         Rhiannon entrou no salão. A seu lado caminhava uma pantera brilhante e negra como o veludo de seu vestido. Os olhos verdes do felino resplandeciam como esmeraldas e, enquanto sustentava o olhar de Roland, ficou muito quieta e emitiu um gemido rouco.

         — Que diabos é isso?

         — Meu gato. Chama-se Pandora e te agradeceria se a tratasse com o respeito que se merece.

         — Rhiannon, pelo amor de Deus —Roland deu um passo adiante e ficou gelado quando a pantera se escondeu e ensinuou os dentes como se estivesse a ponto de atacar

         — Pandora, silêncio! —assim que recebeu aquela ordem, o animal relaxou e se endireitou prazerosamente, embora sem deixar de vigiar cada um dos movimentos de Roland—. Roland é um amigo —lhe disse Rhiannon—. Vamos, Roland, acaricie a cabeça dela, para que saiba que não vai fazer-lhe nenhum mal.

         Roland soltou uma maldição quase inaudível, mas sabia que Rhiannon adorava aquele animal. Embora só fora por uma vez, cederia. Aproximou-se um pouco mais da pantera e estirou a mão.

Com um movimento vertiginoso, Pandora lhe fez apartar a mão de um puxão.

         —Pandora!

         Rhiannon lhe deu um tapa no focinho, alargou a mão para tomar a de Roland e franziu o cenho ao ver o arranhão que lhe tinha feito a pantera.

         —Sinto muito, Roland. É muito protetora comigo, já vê, e como levantou a voz...

         Elevou a mão de Roland, a levou aos lábios e, como se ela mesma fosse um felino, deslizou a língua úmida por aquele arranhão que ia dos nódulos até os pulsos. Roland fechou os olhos ante o impacto erótico daquele gesto.

         — Vamos, querido —lhe sussurrou Rhiannon—.Demonstre a Pandora quão unidos estamos. Isso a tranqüilizará, eu sei. Vamos, me abrace. Só uma vez, só para tranqüilizá-la.

         — Rhiannon, não acredito que...

         — Por que me custa tanto ganhar cada uma de suas carícias? —sacudiu a cabeça e olhou a pantera que, uma vez mais, começou a grunhir—Suponho que não teme morrer por culpa de meus beijos, por tóxicos que possam chegar a ser. Nosso abraço acalmará Pandora. Ela manterá ao Rogers afastado do castelo enquanto descansamos de dia. Está bem treinada, asseguro-lhe. E agora, por favor, me abrace e me dê um beijo nos lábios. Pandora não necessitará nenhuma prova mais.

         Roland deu um passo adiante sem muita convicção. Deslizou os braços ao redor da esbelta cintura de Rhiannon e esta imediatamente pressionou os lábios contra os seus. Ondas de desejo começaram a correr por suas veias. Rhiannon lhe rodeou o pescoço com aqueles braços tão enganosamente frágeis. Sua essência era diferente a de qualquer humano. Uma exótica mistura de sangue sobrenatural correndo debaixo da pele e os sucos de sua excitação umedecendo seu interior, a henna que insistia em tingir o cabelo e o misterioso incenso que queimava com regularidade.

         Um homem mortal não notaria. E tampouco apreciaria a mudança sutil que se produziu em seus olhos negros. E sabê-lo assinalava o começo da intensa luxúria que só os imortais eram capazes de compreender. Uma luxúria que confinava com a violência. Fundia-se com a sede de sangue até que os dois amantes se convertiam em seres inseparáveis.

         Esticou os braços ao redor de Rhiannon até sentir seus seios pressionando-se contra seu peito. Os pequenos mamilos de Rhiannon, vinte vezes mais sensíveis que os de qualquer mulher mortal, acariciavam sua pele, inclusive através do vestido de veludo.

         Roland baixou o olhar para seu rosto, deleitando-se durante uns segundos em seus lábios entreabertos. Ainda podia distinguir o débil rastro de seu próprio sangue em sua língua. Lentamente, afundou-se naquela loucura que só Rhiannon era capaz de criar em seu interior. Baixou a cabeça até que seus lábios estiveram na altura do rosto dela e foi mordiscando-a até a distancia que separava seu nariz de seu lábio superior.

         Rhiannon emitiu um pequeno som, como um ronronar, e jogou a cabeça para trás para lhe oferecer os lábios. Incapaz de continuar dominando-se, Roland tomou sua boca com a mesma ansiedade com a que um homem faminto se lança a seu primeiro bocado de comida. Afundou as mãos em seu cabelo e deslizou a língua entre seus lábios. O sabor de Rhiannon era embriagador, um afrodisíaco.

         Rhiannon sentiu sua excitação. Pressionou os lábios contra os seus e murmurou seu nome em uma rouca exalação.

         Roland a apartou então dele. Sentia ele o rugido do desejo em seus ouvidos, mas não ia ceder.Não. Sabia que com Rhiannon podia perder a prudência. Podia ver-se completamente miserável pela paixão. Podia esquecer o que era realmente importante: o menino, que estava preparando-se para lutar contra algo que nem sequer um homem adulto seria capaz de suportar. Ou o cemitério no qual descansava sua mãe debaixo da fria terra. E seu pai e seus três irmãos. Todos eles o amavam. E ele lhes havia devolvido seu amor com ódio, traição e, finalmente, o abandono. Não, jamais poderia perdoar-se.

         E o mais importante de tudo era que não podia esquecer a besta que vivia em seu interior. Uma besta que espreitava nas profundidades de sua alma até quando era mortal.

         Rhiannon o fazia negligente. Fazia reviver o homem impulsivo e irresponsável que em outro tempo tinha sido. Aquele homem suficientemente estúpido para permitir que a besta escapasse.

         — Roland, meu bem, o que se passa? Não pare agora, temos que convencer Pandora...

         Roland se sacudiu mentalmente. O que sentia por Rhiannon só era luxúria. Ele não queria nenhuma companheira e, muito menos, uma cuja mera presença era uma ameaça para sua prudência.

         Sentiu o pesado corpo da pantera pressionando sua perna; primeiro com a cabeça e depois com o pescoço.

         — Acredito que a pantera já está convencida, Rhiannon —baixou a mão e acariciou a cabeça do felino. Este se arqueou ante seu contato e ronronou.

         — Pandora, é uma traidora! Disse-te que esperasse algum tempo antes de se mostrar amistosa!

         Roland arqueou as sobrancelhas.

         — Quer dizer que não precisávamos convencer ela de nada?

         —Às vezes tenho que recorrer a algo para conseguir alguma cooperação de sua parte, seu cabeçudo.

         —E a pantera?

         Rhiannon encolheu os ombros.

         —Ainda não a conheço muito. Só sei que pode ler em mim e que eu posso ler nela. Conectamos um nível físico que nenhum de nós pode compreender. Não preciso lhe falar, só lhe enviar mensagens. Não com palavras, mas com imagens. E ela me obedece sem questionar.

         — Então, ela me grunhiu porque você lhe disse que o fizesse?

         Rhiannon voltou a encolher os ombros, tentando, em vão, uma expressão inocente.

         — Só fará falta que lhe diga que proteja Jamey enquanto nós descansamos. Nenhum mortal porá o pé dentro do castelo enquanto estiver Pandora.

         — Suponho que para ela o menino poderia ser um pequeno aperitivo.

         — Jamais lhe faria nenhum dano.

         — Tem certeza?

         — Acha que eu arriscaria a vida de uma criança que tanto gosto?

         — Não, suponho que não.

         — Supõe — colocou a cabeleira por cima do ombro e se dirigiu a grandes passadas para uma escada de caracol com os degraus de pedra — Vamos, Pandora, vou apresentar te a seus novos amigos.

Enquanto Rhiannon subia as escadas, Roland tentava lhe ler o pensamento. Viu-a visualizar Jamey, Frederick e a pantera sendo acariciada pelas mãos daqueles mortais. Quis saber o motivo daquelas imagens, mas não perguntou.

         De momento, já tinha suficiente. Não ia perder o tempo perguntando-se pelas verdadeiras razões pelas quais Rhiannon queria ajudar o menino. Era sincera, sabia. Mas mesmo assim, desconcertava-o. Desde que conhecia Rhiannon, jamais a tinha acreditado capaz de sentir algo especial por um mortal. Sua sede de aventuras e de emoções constantes estava acima de todo o resto. Ele jamais compreenderia os riscos que ela era capaz de correr.

         Não. Faria melhor em analisar sua ridícula resposta à presença dela. Naturalmente, era uma mulher que o excitava. Que homem, mortal ou imortal, poderia permanecer indiferente às suas carícias, sua fragrância? Ele não resistia constantemente a seus avanços porque não a desejasse, mas precisamente o contrário. Desejava-a muito... fisicamente. E copular para satisfazer um desejo era rebaixar-se a um nível quase animal.

         E sabia que Rhiannon sairia de sua vida assim que conseguisse.

Além disso, estava o medo constante de perder o controle. Rhiannon despertava essa tendência nele como ninguém mais era capaz de fazê-lo.

Ao cabo de uns momentos de reflexão, Roland serenou e começou a subir também as escadas. Cruzou um corredor escuro e se deteve na porta do apartamento. Abriu-a ligeiramente e esteve a ponto de gritar diante do que viu.

Jamey estava caído no chão com a pantera em cima dele, posando as garras em seu peito. O menino sustentava a enorme cabeça do animal e a fazia mover para a direita e esquerda. A pantera emitia sons ameaçadores enquanto movia a cauda nervosa. Roland se esticou. Esteve a ponto de equilibrar-se sobre o felino, mas parou bruscamente ao dar-se conta de que Jamey não estava pedindo ajuda. Estava rindo!

         Ante os estupefatos olhos de Roland, Jamey afastou a pantera, que rodou sobre si mesma e permaneceu deitada de costas, olhando para o adolescente. Este se levantou e lhe acariciou a barriga vigorosamente enquanto a pantera arqueava o pescoço e emitia um ronrono.

         Roland olhou para Rhiannon, que permanecia ao lado de Frederick. Rhiannon lhe dirigiu um meio sorriso.

         — Só é um gato grande, vê? — cruzou a sala para colocar-se ao lado de Roland—. É curioso. Pensava que teria que apresentá-los, mas foi como se o tivesse reconhecido nada mais vê-lo —olhou a Frederick com intensidade —. Mas você terá que ter mais cuidado com ela, Frederick. É possível que com você não seja tão receptiva.

Frederick umedeceu os lábios e se moveu lentamente para diante. Sua claudicação era muito mais pronunciada que antes.

         —Pandora —chamou a pantera com sua voz de barítono, e se aproximou do tapete —. Pandora, venha aqui, gatinha.

         A pantera elevou o olhar, girou lentamente sobre as costas e permaneceu tombada no chão com as patas estendidas e a cabeça alta, igual a uma esfinge, olhando Frederick. Este ergueu os olhos para Rhiannon.

         —Posso acariciá-la?

         Rhiannon assentiu. Frederick alargou a mão e esteve acariciando a cabeça de Pandora até fazê-la ronronar. Frederick soltou uma gargalhada.

         —Obrigado por havê-la agradado.

         —Graças a você por confiar nela —respondeu Rhiannon—. Provavelmente          Rogers não volte a nos incomodar hoje. Tenho-lhe feito acreditar que tinham abandonado o país. Mesmo assim, Pandora vigiará se por acaso tentar algo. E amanhã de noite, teremos que procurar outro lugar no qual Jamey possa estar a salvo.

         —Não — Jamey se levantou e olhou com firmeza Rhiannon e Roland.

         Roland suspirou.

         —Sei que para você é difícil, Jamison, mas...

         —Não. É impossível. Amanhã não vou a parte alguma. Tenho um treinamento, e depois está essa partida tão importante. É um campeonato. Não podemos ir até que eu tenha terminado.

Roland abriu a boca para dizer algo, mas Rhiannon elevou a mão.

         —Joga futebol, verdade?

         —Treinei durante toda a temporada esperando esta partida. Não vou deixar que Curt Rogers me impeça de jogar. Já me tirou muitas coisas. Jogaremos no estádio coberto, debaixo da luz dos refletores. É a partida mais importante do ano.

         —Que horas será o jogo?

         —Às sete.

         Rhiannon pareceu pensar profundamente.

         —Às sete já é de noite, verdade?

         —Rhiannon —interveio Roland—, não podemos proteger o menino em um estádio abarrotado de espectadores. Nem te ocorra sugerir...

         —Para ele é muito importante, Roland.

         —Amanhã depois das aulas tenho que ir treinar. Se perder o treinamento, não poderei jogar a partida.

         —Não, nisso não podemos te ajudar — disse Rhiannon brandamente —. O treinamento é de dia, Jamey. Ali não podemos te proteger.

         —Posso me proteger sozinho.

         —É muito simples —continuou dizendo Rhiannon, como se o menino não houvesse dito nada—.Escreverei uma nota ao treinador lhe dizendo que você torceu o tornozelo e que se não repousar, não poderá jogar. Se necessitar uma nota do médico, a escreverei. E mandarei um cheque para seu departamento. Vê que fácil?

Jamey sorriu ligeiramente. Depois franziu o cenho.

         —Eu não deveria aceitar seu dinheiro...

         —Tolices. Tenho mais do que possa imaginar —olhou Jamey com os olhos resplandecentes de carinho — Além disso, já nem me lembro da última vez que vi um jogo de futebol. De modo que está decidido.

Caminhou para a porta; envolta naquele vestido de veludo negro, era a viva imagem da elegância.

         Roland a seguiu.

         Rhiannon parou no princípio da escada e se voltou para olhá-lo, desafiando-o a discutir com ela.

         —Não penso ir a esse jogo de futebol —advertiu Roland.

         —Bom, sentiremos sua falta, mas se isso é o que decidiu...

         —Jamey tampouco irá. É assumir um risco muito grande.

         Rhiannon elevou os olhos ao céu.

         —E o que é a vida sem riscos?

         —Eu a proíbo, Rhiannon.

         —Me proíba tudo o que quiser, mas Jamey e eu vamos a esse jogo.     E, me acredite, querido: nenhum mortal vai fazer lhe nenhum mal enquanto eu estiver por perto. Parece ter esquecido quem sou.

         —Haverá mais de cem mortais vendo a partida. Vão nos ver imediatamente. Reconhecerão. Não está em seu juízo perfeito?

         Rhiannon se limitou a voltar-se e continuou descendo a escada.

         —Da mesma forma que me reconheceram na outra noite no Requin? Roland, temos muitas formas de nos disfarçar. Um pouco de maquiagem sobre a pele, um par de lentes de contato se por acaso tem medo que reconheçam o brilho de seus olhos e um pouco de batom nos lábios. É ridiculamente fácil enganá-los. Além disso, são humano modernos. Não acreditariam o que somos embora o anunciássemos aos quatro ventos.

         —Isto é uma completa tolice —murmurou Roland.

Como podia ninguém dissimular sua natureza violenta? Como ia permitir Roland que as duas pessoas que mais desejava proteger ficassem em tal situação de risco?

         Rhiannon chegou ao pé da escada e esperou que Roland se unisse com ela.

         —Passou muito tempo vivendo como um ermitão, Roland. Nega-se até os prazeres mais singelos.

         —Tenho tudo o que necessito.

         —Tolices. Se pudesse ver alguns dos lugares nos que vivi... Mansões no campo, as suítes dos melhores hotéis. E tenho um apartamento maravilhoso em Nova Iorque. Vou ao balé, à ópera, ao teatro... Não há nenhum perigo, Roland, para nós não. Quem acredita que pode nos fazer mal?

         —A DIP, como muito bem sabe.

         —Ah, cometi um engano em toda minha existência e se aferra a ele como se não fosse capaz de esquecê-lo.

         —Quase pegaram Eric também. São coisas que podem ocorrer.

         —Eric é jovem, só tem duzentos anos, Roland. Você tem o triplo de seu poder e de sua força. Além disso, que sentido tem ser imortal se a gente tiver que viver assim? —assinalou a seu redor.

Roland suspirou. Era exaustivo discutir com ela.

         —Eu vivo aqui porque quero.

         —Não, acredito que te aferra ao passado por algum mal entendido sentido na lealdade para a família ou algo assim.

         —E eu acredito que você procura deliberadamente o perigo, como se você gostasse de desafiar a morte. Por que, Rhiannon?

Rhiannon fechou imediatamente seu rosto, que deixou de mostrar qualquer vestígio de emoção. Inclusive sua mente parecia haver-se fechado a ele.

         —Embora isso seja certo, jamais incluiria Jamey em meu desafio. Não arriscaria sua vida, Roland.

         —Por que não? O que é ele para você?

         —O importante é o que é para você. Sei o que sente. Sei a dor que sofre seu jovem coração. A perda de sua mãe... —pestanejou rapidamente, interrompeu-se, girou e caminhou para a porta.

         —Onde vai? —sua mente procurava a dela.

Tinha a sensação de ter sido testemunha de uma parte de Rhiannon que ninguém tinha conhecido jamais. Queria saber mais, queria identificar a fonte dessa dor que só tinha vislumbrado.

         —A minha guarida, é claro. Está quase amanhecendo.

         —Eu... pensava que ficaria aqui.

         —E dormir aqui? Suponho que terá algum ataúde poeirento armazenado em um de seus calabouços — sua voz gotejava cinismo.

Roland não respondeu.

         —Prefiro uma cama macia, Roland. E também os lençóis de seda aos sudários. Um travesseiro debaixo da cabeça, ar fresco e perfume de incenso.

         —Sim, você sonha muito bonito, mas onde fica o lugar?

         —Venha algum dia comigo e lhe mostrarei — e, fazendo sussurrar o vestido, deu meia volta, caminhou para a porta e desapareceu.

 

         Roland despertou quando era já completamente noite, sentindo fazer cócegas cada um de seus nervos. Rapidamente, desatou as complexas fechaduras de sua caixa e utilizou a mente para escanear a zona antes de abri-la. Saiu ao chão com facilidade, aterrissando sigilosamente no chão de pedra.

         Não tinha dormido bem. Freqüentemente, descobria-se no limite da consciência, enquanto dezenas de imagens povoavam sua mente.

         Estava preocupado, e não pela segurança de Jamey. Nas imagens aparecia principalmente Rhiannon. A formosa, desejável e imprudente Rhiannon. Acaso não tinha ele mais juízo que qualquer mortal? Não era capaz de distinguir o desejo, a vulgar luxúria, dos verdadeiros sentimentos? Não era capaz de eliminar a tentação de sua mente?

         Moveu-se através dos corredores dos calabouços às escuras. Teria sido capaz de fazê-lo inclusive se fosse cego. Conhecia cada centímetro daquele castelo, tinha sido seu lar durante a infância, sua maldição durante a adolescência e sua prisão de adulto. Converteu-se em um purgatório, no lugar em que estava pagando as penas por todos os pecados tinha cometido contra aquela família a que adorava.

         Segurou uma argola de ferro fixada sobre o que parecia ser uma pedra imóvel em uma das paredes, utilizando sua força de vampiro para movê-la. Nenhum mortal poderia tentar mover aquela pedra sem a ajuda de um explosivo ou um algo parecido. Roland deslizou por uma passagem secreta e se dirigiu para umas escadas de ferro. Cada um de seus passos ressoava na escuridão.

         Quando chegou à entrada de suas salas, abriu a porta que dava acesso ao interior de seu armário e entrou, apartando os cabides e os trajes que delas pendiam. Roupa que, é obvio, tinha colocado com cuidado para dissimular a entrada. Depois, escolheu um traje limpo e saiu do armário à casa.

Dirigiu-se diretamente a um antigo escritório e tomou um fósforo para acender uma lâmpada de azeite. Repetiu o ritual, acendendo algumas outras lamparinas até que a habitação ficou envolta em um resplendor dourado. Olhou ao seu redor e pensou que certamente Rhiannon franziria o cenho ao ver aquele lugar que ele considerava seu lar. As cortinas que cobriam as janelas tinham perdido a cor com o passar do tempo. Cheiravam a pó, a velho. Sua cor verde, outrora tão brilhante como as esmeraldas, tinha um tom apagado. As mesmas janelas, uma concessão à modernidade, estavam raiados e sujas. Olhar através delas era como olhar o mundo com os olhos de um homem velho. Mas ao fim e ao cabo, não era precisamente isso o castelo? Um homem velho que tinham deixado acabar-se.

Sim, Rhiannon odiaria aquelas habitações.

         Mas o que lhe importava o que Rhiannon pudesse pensar sobre nada?

Estava ali, nesse mesmo instante.

         Soube com surpreendente clareza. Estava ali, nos porões do castelo.   Sentiu aquela vibração no ar, a crepitante eletricidade que anunciava sempre sua presença. Apesar de si mesmo, Roland se lavou e se vestiu rapidamente. Não porque estivesse desejando vê-la outra vez. Absolutamente. Mas porquê queria vigiá-la. Porque só Deus sabia o que era capaz de fazer se a deixava sozinha.

         Seguindo a seus sentidos, foi cruzando sigilosamente os corredores até chegar ao final ao salão. Rhiannon não estava por ali. Sentiu também a presença de Jamey, de Frederick... e a da pantera. Mas não estavam no interior da casa, estavam no pátio.

         Através das pranchas da porta, viu-a em meio da escuridão. Surpreendê-lo era algo que Rhiannon fazia freqüentemente. Como era possível que não se acostumar?

         Viu-a correndo sobre aquela terra erma, com a lua iluminando seus passos enquanto corria com uma bola a seus pés. Ia embutida em uns jeans de cor negra que tinha colado à altura das coxas. Meias três-quartos brancas cobriam apenas seus tornozelos e nos pés usava tênis.

       Enquanto Roland permanecia absolutamente paralisado, Jamey correu para Rhiannon e lhe tirou a bola. Rhiannon tropeçou e caiu ao chão, levantando uma nuvem de pó ao redor. Roland correu para ela, mas parou quando a ouviu rir. Rhiannon se levantou e sacudiu o pó do traseiro.

         — Muito bem, Jamey! — riu de novo e afastou o cabelo da cara, mostrando uma mancha na bochecha—. Ensina-me outra vez, quero aprender a fazê-lo.

         Roland se esclareceu garganta e Rhiannon se voltou para ele.

         —Não faça essa cara, querido —ronronou—, não lhe vou fazer nenhum mal.

         Durante um momento de estupefação, Roland se deu conta de que estava mais preocupado que pudesse fazer mal ela. Era incrível! Tinha tido medo de que a mais poderosa imortal que conhecia sofresse algum dano jogando futebol com um adolescente. Que coisa estranha.

         —Procure não fazer, replicou, incapaz de admitir o que realmente sentia—. Amanhã de noite tem que jogar uma partida.

         — Isso significa que decidiu deixar de se opor? Roland assentiu a seu pesar. Rhiannon correu para ele e lhe rodeou o pescoço com os braços.

         —Mas com algumas condições, Rhiannon.

— Condições? —franziu o cenho, mostrando seu desgosto.

         —Durante a partida, se comportará com um mínimo de decoro.

— Ah, sim?

         —Tentará, por exemplo, não chamar a atenção. Será educada, falará baixo e será discreta.

         — E por que vou ter que sofrer essa transformação?

Roland suspirou. Só queria era evitar que fosse descoberta pelo Rogers ou por qualquer como ele. Por que tinha que ficar Rhiannon à defensiva?

         — Porque lhe estou pedindo isso, Rhiannon. E porque é o mais sensato. Rogers não é nenhum estúpido, e tampouco é o único agente da zona. Qualquer um que esteja a par da identidade de Jamey saberá o suficiente para buscá-lo durante esse jogo.

         Por uma vez, Rhiannon ficou ligeiramente boquiaberta. Assentiu de maneira quase imperceptível e Roland sentiu uma mescla de tristeza e alívio. Estava quase convencido de que Rhiannon tentaria discutir. Proteger Rhiannon ia representar um desafio maior que proteger Jamey, pensou sombrio.

 

         — Está preparada? —perguntou-lhe Roland na noite seguinte, uma hora antes de que começasse a partida.

         Estava perto da enorme chaminé do salão. Rhiannon fechou a porta, fazendo gemer as dobradiças, e cruzou o enorme e frio salão para reunir-se a ele.

         —Não estou certa. Não encontrei um espelho para ver meu aspecto.

         Roland teve que esforçar-se para dissimular um sorriso.

         —Um pouco realmente fastidioso para uma mulher tão vaidosa como você.

         Rhiannon lhe deu um olhar cintilante.

         —Tem razão. Deveria pintar meu retrato para que possa ver que aspecto tenho quando gostar.

         —Sabe que já não pinto.

         —Possivelmente está na hora de que comece a fazê-lo outra vez —olhou a seu redor—. Poderia utilizar este lugar. O que fez desses retratos que tinha pintado de sua família?

Roland sacudiu a cabeça. Aquele tema não estava aberto a discussão.

         —Responderei a sua primeira pergunta, Rhiannon: está estupenda.

         —Essa, meu querido Roland, não é absolutamente uma resposta —se colocou diante ele com os braços abertos—.Olhe, meu bem. Me descreva o que vê — esperou um momento. Roland deslizou o olhar sobre ela e tirou o chapéu, de formular um pensamento coerente.

—Eu te ajudarei —se ofereceu Rhiannon—. Começaremos por meu cabelo. Está bom?

—Como muito bem sabe, brilha como o cetim.

Percorreu-o lentamente com o olhar. Rhiannon o tinha jogado a um lado, deixando uma parte de seu pescoço a descoberto. Na parte esquerda, fizera uma trança diminuta, que chegava até sua cintura.

Ao descobrir o curso de seu olhar, Rhiannon tomou a trança entre seus dedos.

— Você gosta?

—Sim —umedeceu os lábios e tentou controlar-se—. Sim, está bem. Vamos?

—Mas ainda não terminou —se inclinou para diante—. O que me diz da blusa? É muito decotada?

Contra a vontade, seus olhos voaram para o decote daquela blusa de cetim de cor verde esmeralda. Seus seios cremosos apareciam pela parte inferior do decote. Roland sentiu que algo lhe retorcia no estômago.

— Sempre anda muito decotada —respondeu, tentando parecer sarcástico.

Rhiannon deu de ombros e trocou de pose. Naquela ocasião, pôs os braços cruzados.

— E a saia? É muito vulgar?

Era uma saia ajustada de veludo negro. Tinha botões na parte dianteira e, como se não a considerasse suficientemente atrevida, Rhiannon tinha deixado os dois últimos abertos.

—Possivelmente, simplesmente, suas pernas sejam muito longas —sugeriu.

—Estas meias são maravilhosas, não parece? — Inclinou-se sobre o joelho ao tempo que apoiava o pé em um tamborete—. São tão suaves... toque, Roland, e entenderá o que quero dizer — lhe segurou a mão e lhe fez pousar a palma em sua coxa.

Roland tragou saliva.

—Como mencionei antes, carece de qualquer tipo de sutilidade. Por que não me rasga a roupa diretamente e tenta me forçar? — afastou a mão, mais zangado com suas próprias respostas que com aquele intento infantil de sedução.

Viu a dor nos olhos de Rhiannon antes que esta tivesse oportunidade de ocultá-lo e se arrependeu de suas palavras. Certamente, Rhiannon não podia evitá-lo. Simplesmente, era assim.

—Sinto muito, Rhiannon.

—É claro que sente. Preferiria que me transformasse no que você considera uma verdadeira dama, que me sentasse em uma poltrona bordada e batesse as pestanas até que decidisse me tirar para dançar. Ha! —voltou-se de costas para ele—. Pensava ir com você ao jogo, mas acredito que irei com Frederick e com Jamey no carro. Aproveite o passeio, Roland. E pelo amor de Deus, antes de sair, ponha a roupa que te trouxe. Se pensar que ir a um jogo de futebol com esse traje não levantará suspeitas, será melhor que pense isso duas vezes.

Roland baixou o olhar para uma bolsa que Rhiannon tinha deixado perto da porta antes de cruzá-la.

Não aproveito o passeio. Descobriu além disso que não tinha um coração suficientemente duro para gostar de fazer mal a Rhiannon. Ele não pretendia ofendê-la, mas ela estava procurando, maldita fosse. Estava tendo que fazer uso da última gota de força de vontade para resistir às suas abertas insinuações. Mas render-se a elas seria, como pouco, uma insensatez.

Não, além disso, aquilo que crepitava entre eles era de natureza puramente física. Era desejo de uma potência assustadora, sim, mas isso o atribuía à sua condição de vampiros. Qualquer sentimento era mais intenso que os dos mortais. Simplesmente, sua natureza magnificava o desejo.

Com aquela explicação firmemente assentada em sua mente, utilizou sua velocidade sobrenatural para chegar ao estádio antes que Frederick. Ele preferia viajar por seus próprios meios a sentir-se sendo transportado por três toneladas de metal.

No estádio, sentiu que chamava muito mais a atenção com a roupa que Rhiannon lhe tinha escolhido, do que qualquer de seus trajes. O tecido dos jeans se ajustava a seu traseiro e às suas coxas com uma tremenda força. A cueca era negra; essa era a parte que menos lhe incomodava. Mas o desenho em cores de néon que levava no peito proclamando-o como admirador de um tal de Grateful Dead, quase o fazia perder a paciência. E tampouco tinha graça a caveira com os ossos cruzados.

Rhiannon, que permanecia sentada à sua esquerda, estava sendo algo menos discreta. Gritava para dar ânimos à equipe, sem falar nas obscenidades com as que premiava a equipe contrária. Não parava de mover-se. Inclinava-se para diante e para trás para ver melhor, para deleite dos rapazes que a rodeavam, notou Roland com uma onda de inexplicável aborrecimento.

Vários assentos diante deles, perto do banco no qual estava sentada a equipe, encontrava-se Frederick, quase tão animado como ela.

Jamey corria pelo campo de capim artificial com a bola entre os pés. Rhiannon se levantou ao vê-lo a ponto de fazer um gol.

Roland franziu o cenho. Supunha-se que essa era uma conduta discreta? Deus Santo, se nem ele nem os outros homens da zona eram capazes de apartar o olhar dela.

Roland se obrigou a fixar-se de novo no campo justo no momento em que um membro da equipe rival fazia Jamey cair. Conteve a respiração. Mas Jamey se levantou e recuperou a bola. Roland também se levantou.

Uns segundos depois, Jamey lançava a bola na trave, marcando um gol a uma velocidade impressionante. Roland aplaudiu com mais força que ninguém. Rhiannon soltou um assobio que provavelmente acabou com alguns ouvidos humanos. Roland a agarrou pelo braço. Ela o olhou com um sorriso.

—Está se esquecendo de se comportar.

—Você também —respondeu Rhiannon. Mas voltou a sentar-se.

 

A equipe de Jamey ganhou por uma pequena margem. Ao final da partida, Rhiannon estava esgotada. Frederick e ela foram andando até o estacionamento enquanto Roland esperava fora dos vestiários para acompanhar Jamey. Rhiannon estava segura de que nenhum membro da DIP tinha ido ao estádio e não tinha a mais mínima sensação de ameaça. Mesmo assim, permanecia vigilante e escaneava a mente de todo mundo com quem cruzava.

Frederick se meteu no carro e pôs o motor em marcha enquanto esperavam Roland e Jamey. Rhiannon permanecia perto da porta do motorista, com o braço apoiado no teto do carro. Pouco a pouco, outros começaram a partir, até que o estacionamento ficou deserto.

—A partida foi maravilhosa, não, Freddy?

Frederick assentiu com entusiasmo.

—Eu treinei muito com Jamey, embora não seja muito bom correndo.

Rhiannon franziu ligeiramente o cenho.

— Por culpa da perna? —Frederick voltou a assentir—. Se importa que lhe pergunte o que houve?

—Não, não me importa. Ocorreu quando estava na cidade, quando não tinha um lugar para viver, era inverno e suponho que fazia muito frio para dormir na rua...

— E dói muito?

—Oh, não, apenas me incomoda.

—Me alegro —olhou para o estádio—. Estão demorando muito.

—Talvez seja melhor buscá-los.

Rhiannon sentia na nuca o comichão do perigo, mas não era capaz de identificar de onde procedia.

—Acredito que você deveria esperar no carro. E feche as portas —acrescentou.

—Rhiannon, aconteceu algo ruim? — o medo enrouquecia a voz de Freddy—. Porque se ocorreu algo, vou com você.

—Não sei — respondeu com sinceridade—, mas acredito que é melhor que você espere aqui, se por acaso Jamey sair, ok?

Tentava parecer despreocupada e, por um momento, surpreendeu-se tentando tranqüilizar um mortal. Em qualquer caso, Freddy não era um ser humano normal. Quando viu que as portas do carro estavam fechadas, Rhiannon fez um gesto de ânimo com a cabeça e cruzou o estacionamento para dirigir-se à entrada do estádio.

O pressentimento era cada vez maior, e também seu medo por Roland e pelo menino. Acelerou seus passos, dobrou uma esquina e chegou à porta do estádio.

Um braço forte a agarrou então por trás, fazendo-a perder o equilíbrio.

Estúpido! Acaso acreditava aquele humano que ia poder enfrentá-la e ganhar?

Preparou-se para liberar-se e torcer o pescoço daquele estúpido, mas justo nesse momento uma intensa dor se abriu através de sua consciência. A navalha apenas lhe tinha roçado a cintura, mas mesmo assim, conseguiu paralisá-la. E quando sentiu que podia voltar a mover-se, foi a voz de um homem a que a deteve.

—Conheço seus pontos fracos, Rhiannon. A perda de sangue, a exposição ao sol. O contato direto com o fogo... e a dor —continuava sentindo a pressão daquele fio nas costelas—. A dor. Quanto mais forte, mais te debilita, e quanto maior é o vampiro, com mais intensidade a sente — aumentou a pressão da navalha e um fio de sangue começou a manchar a blusa de cetim à altura do abdômen.

Com os dentes apertados, Rhiannon se obrigou a perguntar:

— O que você quer?

 

Seu atacante lhe cravou a navalha e a retorceu ligeiramente. Rhiannon gritou, mas imediatamente mordeu o lábio. Não queria alertar Roland até que soubesse o que ia ter que enfrentar.

—O que quer? —repetiu.

Não era Curtis Rogers. Era um desconhecido. A primeira ferida, a do flanco, continuava sangrando. Sentia-se debilitar pouco a pouco. Um vampiro tão velho como Rhiannon necessitava muito muito pouco para morrer. Necessitava de ajuda. Odiava admiti-lo. Sempre tinha sido capaz de enfrentar a adversidade. Enfurecia-a que aquele humano tivesse identificado suas debilidades e as estivesse utilizando tão inteligentemente contra ela.

Os joelhos começaram a lhe tremer e se obrigou a mantê-los rígidos.

— Quem é você? E por que corteja desta forma a morte?

—A morte não, Rhiannon, a vida. A vida eterna. A imortalidade. Você a tem e eu a quero.

Aquele homem era um louco!

—Não sabe do que está falando. Não é... —interrompeu-se um instante e pestanejou—. Solte-me, tenho que me sentar.

—Se a soltar, pode reunir forças suficientes para me matar. E não é esse meu objetivo.

—Se morrer, tampouco terá oportunidade de conseguir o que quer.

—Não, mas há outros —apertou os dentes e pressionou a navalha.

As lágrimas nublavam a visão de Rhiannon.

—Me dê o que quero e a deixarei partir.

— E se me negar, me deixará morrer? Então escolho a morte.

—A morte não, Rhiannon. Algo muito pior. Esta noite o estádio estava cheio de agentes do DIP, esperando esse menino. Mas lhe considerariam uma recompensa muito melhor, não é? A vampiresa que assassinou um de seus melhores agentes há anos. Bastaria que desse um grito para que viessem correndo. E está muito fraca para lutar contra eles.

Rhiannon fechou os olhos e centrou seus pensamentos em Roland.

«Tire Jamey daqui. Tome cuidado. Estão nos vigiando...»

Antes que pudesse completar seu pensamento, aquele canalha retorceu a navalha e Rhiannon não foi capaz de reprimir um grito de dor.

— E então? Não vai me dar o que quero?

As pernas já não a sustentavam. Começou a ajoelhar-se, provocando, ao fazê-lo, que a navalha raspasse suas costelas e riscasse um caminho até sua garganta.

Nesse instante, o homem retrocedeu sem nenhuma razão aparente e caiu bruscamente ao chão.

—Acabo de pôr fim à sua vida, humano —era a voz de Roland e soava com uma raiva que Rhiannon nunca tinha conhecido.

— Aqui! —gritou o mortal com toda a força de seus pulmões—. Estão aqui, apressem-se!

—Isso não te salvará.

Roland levantou o homem agarrando-o pela parte dianteira da camisa e Rhiannon soube que ele ia destroçar-lhe a laringe. Jamais o tinha visto tão zangado. Tinha esquecido toda sua educação, sua cuidadosa alma. Rhiannon sentia em cada um de seus pensamentos, em cada linha de seu rosto. Seria capaz de matar aquele homem e não havia ninguém que pudesse pará-lo.

—Roland, venha para cá —conseguiu dizer—. Deveríamos partir. Pense... em Jamey.

Roland deu um murro no homem.

—Que venham. Logo desejarão haver-se mantido à distância.

Rhiannon tentou imprimir à voz toda a força que era capaz.

—Roland, por favor, estou sangrando...

Imediatamente, dissipou-se toda sua fúria, e Roland deixou o homem cair ao chão, virou-se rapidamente e levantou Rhiannon nos braços. Escrutinou seu rosto com os olhos transbordantes de medo. Rhiannon o sentiu esticar-se ao ser consciente da dimensão da hemorragia e da debilidade de seu corpo. Numa velocidade sobrenatural, saiu correndo, abandonando o estacionamento.

— Onde está Jamey?

—Tivemos que tirá-lo por uma janela. Havia agentes da DIP vigiando todas as saídas. Deixei-o no carro com Frederick. Estão bem.

Rhiannon suspirou, mas lhe foi terrivelmente doloroso.

—Estupendo.

—Está perdendo muita sangue —se interrompeu e a deixou no chão.

Aos poucos segundos, Rhiannon notou que Roland lhe rasgava a blusa bruscamente. E sentiu mais dor apesar da delicadeza com a qual Roland colocou um lenço sobre a ferida.

—Segure-o com força. E ignore a dor.

Rhiannon obedeceu, mas escapou um grito de sua garganta.

—Para você é fácil dizê-lo. É dez séculos mais jovem que eu.

 

—Com a idade vem a força —respondeu Roland com voz rouca, enquanto cuidava de uma ferida menor.

—E a debilidade. Sabe perfeitamente que sou muito mais vulnerável à dor, às perdas de sangue e ao fogo —jogou a cabeça para trás—. Não sei se chegarei ao amanhecer, Roland.

Roland voltou a levantá-la nos braços. Então, fez-lhe aconchegar o rosto contra seu pescoço.

—Sobreviverá, Rhiannon. Não permitirei que seja de outro modo. Só precisa é beber.

Rhiannon se esticou, sem estar muito segura do que pretendia lhe dizer. Roland pousou a mão atrás de sua cabeça e a aproximou lentamente de seu pescoço.

—Beba —voltou a lhe dizer.

E Rhiannon obedeceu.

 

Roland fechou os olhos enquanto Rhiannon movia os lábios contra seu pescoço. A luxúria do sangue revivia ante seu contato. O desejo sexual palpitava em seu interior até fazê-lo sentir-se muito fraco para lutar contra ele. Deus, desejava-a. E o que Rhiannon lhe estava fazendo naquele momento só servia para triplicar seu poderoso desejo. Lentamente, as restrições com as quais tinha tentado submeter aquele desejo, começavam a ruir ante aquele assalto.

—Já basta!

Não pretendia ser tão brusco. Rhiannon elevou imediatamente a cabeça. Roland viu a paixão que refletiam seus olhos, apesar da dor que os empanava.

—Se continuar bebendo, não terei forças para te levar para casa —mentiu em um tom muito mais suave.

—Me deixe no chão. Posso ir andando.

Roland se limitou a negar com a cabeça e começou a caminhar de novo para o castelo.

—Falei para me por no chão. Nunca necessitei que nenhum homem me ajudasse. Posso andar sozinha.

—Esta noite necessita da ajuda de um homem, Rhiannon. E como segue vivendo dessa forma tão imprudente, voltará a necessitá-la. E agora, queira ou não, precisa de mim, então, fique quieta em meus braços.

Rhiannon se aconchegou contra ele.

—Farei isso, mas só porque sei que me está levando nos braços porque você gosta. Você gosta de sentir meu corpo tão perto do seu. Quanto a minha necessidade de um homem, está completamente equivocado. Só estava esperando o momento certo para lhe arrancar a esse tipo a cabeça.

Roland rolou os olhos.

—Pensava que me ia agradecer por lhe ter salvado a vida. E o só o que consegui é que me odeie por eu ter dito que você necessitava de ajuda.

Rhiannon ficou calada uns instantes, considerando suas palavras.

—Certo, nesse caso, suponho que deveria ter agradecido. Mas não se atreva a me considerar inferior.

—Jamais o faria, Rhiannon.

—Essa é uma bela mentira.

—Por que diz isso? —perguntou Roland enquanto continuava avançando pelo bosque.

—Oh, que pergunta estúpida.

—Parece-me, Rhiannon, que ter sido apanhada pelos agentes da DIP a tornou decididamente louca.

Viu que Rhiannon abria os lábios para responder, mas de repente se interrompeu com o cenho franzido.

—Não sei se foi a DIP. Ou no caso de ser, o cara parecia mais preocupado com seus próprios interesses.

—A que se refere?

—Roland, esse homem tinha um conhecimento pouco freqüente sobre nós. Fez uma lista de nossas debilidades. Chamou-me por meu nome.

Roland deixou de caminhar e olhou para as escuras pedras do muro que rodeavam o castelo. Ouvia a violência do rio Tordu à sua esquerda enquanto corria a fundir-se nas mais tranqüilas águas do Loira. A sua direita, além dos bosques, um prado descia como um tapete verde até a estrada.   Mas os aromas da erva e do rio se misturavam à fragrância do cabelo e a pele de Rhiannon.

Roland se sacudiu mentalmente e afinou seus sentidos, procurando presenças estranhas.

—Roland, não está me escutando. Antes que me apanhasse, tinha escaneado o lugar e não tinha descoberto nenhum sinal, embora ele estivesse preparando a emboscada. É capaz de mascarar sua presença.

Roland assentiu.

—Só era questão de tempo que aprendessem a fazê-lo, Rhiannon. Isso não deveria te alarmar.

—Pediu-me que o transformasse.

Roland ficou paralisado. Um frio glacial lhe percorreu as costas.

—Isso é ridículo. Não poderia ser transformado a não ser que fosse um dos Escolhidos. Qualquer que trabalhe para a DIP sabe...

—E isso só pode significar que é um dos Escolhidos. Roland, deveríamos ter detectado sua presença. Esse homem, de algum jeito, conseguiu ativar suas habilidades psíquicas. É perigoso.

—Deveria havê-lo matado.

—Você quase o fez, Roland. Nunca o tinha visto assim.

—E por boas razões —baixou o olhar para ela. Desejava que Rhiannon não tivesse sido testemunha da violência que havia em seu interior. Mas já não tinha sentido negá-la—. Sou um homem muito violento, Rhiannon. dentro de mim há um demônio que se alimenta de sangue.

Rhiannon franziu o cenho.

—Conheço-o desde o primeiro momento de sua existência sobrenatural, Roland, e jamais vi esse demônio.

—Mantenho-o encerrado. Ou pelo menos, mantive-o até agora. Estava em mim muito antes, quando só era mortal.

—Foi um cavalheiro! Um cavalheiro famoso por sua coragem, seu valor e...

—São palavras bonitas para descrever um ser faminto de sangue. Tinha talento para a arte da batalha. Era um assassino com destreza, nada mais.

Rhiannon se esticou em seus braços.

—Equivoca-se. Esse demônio do qual fala não é mais que a vontade de viver. Esses tempos eram violentos, e só os violentos sobreviviam neles. Na batalha, um homem pode matar ou morrer. Você fez o que considerava necessário... —fez uma careta de dor e se aferrou a seu pescoço.

—Aperte o lenço com força, Rhiannon. Está sangrando outra vez —a segurou com força, correu até o muro e o saltou sem nenhuma dificuldade.

Aquele não era momento para recriminações ou confissões. Não quando a vida de Rhiannon estava abandonando lentamente seu corpo. Curiosamente, Roland tinha a sensação de que sua própria vitalidade também se estava esgotando.

Atravessou com ela o ermo jardim, passou diante da fonte que marcava seu centro e cruzou a porta da entrada. Deixou-a então no chão e fechou a porta.

A pantera grunhiu na escada, aproximou-se de Rhiannon e farejou delicadamente sua blusa manchada de sangue. O som lastimoso que escapou de sua garganta bem poderia ter sido um grunhido de alarme.

— Calma, gatinha, não vou morrer — Rhiannon lhe acariciou a cabeça com uma mão, enquanto continuava sustentando o lenço contra sua cintura com a outra.

Jamey desceu saltando as escadas, seguido por Frederick. O menino parou a uns metros de Rhiannon com o rosto convertido em uma máscara de granito imprópria para um menino de sua idade

Frederick deu um passo adiante, ajoelhou-se diante dela e lhe tirou o lenço antes de voltar a pressioná-lo contra a ferida.

—Está ruim. Precisa de pontos.

—Não será necessário —replicou Roland, esperando esconder o efeito que aquelas palavras tinham tido em seu equilíbrio. Pontos. A dor seria incrível. Frederick olhou outra vez e sacudiu a cabeça. —Não vai parar de sangrar.

Roland tragou com força. Frederick tinha sido médico no exército antes de sucumbir àquela enfermidade mental que o tinha transformado de novo em uma criança. Esse homem sabia muito sobre feridas. Mesmo assim, a idéia da dor...

—Só precisa descansar...

—Tolices —disse Rhiannon brandamente—. Posso descansar, mas o sonho regenerador só chega ao amanhecer. E duvido que possa resistir até lá, se continuar sangrando.

Para ouvir suas palavras, Roland se sentiu como se acabassem de lhe dar um murro no estômago. Olhou de novo Frederick.

—Acha que poderá fazê-lo?

Frederick abriu os olhos e sacudiu a cabeça. Era óbvio que a mera idéia o aterrava.

—Terá que me costurar você mesmo, Roland —a voz de Rhiannon era firme, mas Roland percebia a debilidade que se escondia em seu interior—Tem que haver uma agulha em alguma parte. E pode utilizar um fio de seda de minha blusa. De qualquer jeito, está perdido.

—Eu procurarei a agulha —disse Frederick brandamente.

voltou-se e subiu pelas escadas de pedra, apoiando-se contra a parede como se temesse cair. Roland voltou a levantar Rhiannon em braços e se dirigiu com ela para o corredor da ala oeste. A voz de Jamey, grave e tremente, deteve-o.

—Foi Rogers, não é?

Rhiannon elevou a cabeça enquanto Roland se voltava para o rosto furioso do jovem.

—Não, Jamison —disse—. Não foi Rogers, foi um homem que não tínhamos visto antes.

—Era da DIP?

—Não estou certa.

Jamey olhou então para Roland.

—Matou-o?

—Não.

—Mas poderia havê-lo feito —interveio Rhiannon rapidamente, como se quisesse defendê-lo—. Tive que insistir em que o deixasse antes que os outros descobrissem que estávamos ali.

—Matá-lo não teria resolvido nada, Jamison. Só nos teria causado mais problemas.

Jamey olhou Pandora e inclinou a cabeça. Depois, começou a caminhar pelo corredor com a pantera seguindo-o.

Roland franziu o cenho.

—Viu isso?

—Comunica-se com a minha gatinha.

E não parecia gostar da idéia.

Rhiannon apertou os dentes e fechou os olhos com força. Roland tremia as mãos enquanto tirava a agulha e fazia um nó no fio. Cortou-o com uma tesoura e se inclinou sobre ela outra vez.

Rhiannon permanecia deitada na cama de Roland. É obvio, aquela não era realmente sua cama, mas mantinha o quarto mobiliado para guardar as aparências.

Roland estava sentado aos pés da cama com o rosto sombrio. Jamey permanecia sentado no lado contrário. Depois da reação de Rhiannon, o menino lhe estava segurando a mão. Rhiannon a apertava com força cada vez que sentia uma pontada de dor, mas rapidamente lembrava que não devia amassar os ossos de um pobre mortal.

—A culpa foi minha, não deveria ter ido ao jogo.

—Fui eu que insistiu em que fosse, e não me arrependo nada —mordeu o lábio enquanto a agulha lhe atravessava a pele. Sentia gotas de um suor gelado perlando sua frente—. Você jogou maravilhosamente, Jamey. Adorei.

—Poderiam tê-la matado.

—Estando Roland perto, não corria nenhum perigo —um novo ponto e outra vez conteve a respiração—. É obvio, está acostumado a socorrer a mulheres indefesas.

—Não acredito que te possa considerar uma mulher indefesa, Rhiannon —replicou Roland.

—Foi cavalheiro, sabia? —tinha que dizer algo, algo, para distrair Jamey de sua amargura. E seu intento teve êxito, porque Jamey abriu os olhos de par em par. Por um momento, perdeu o aspecto de homem açoitado para adotar a expressão de um menino assombrado.

—Cavalheiro? Com espadas e tudo?

—Sim, foi nomeado cavalheiro de Luis VII por seu heroísmo, mas alguma vez quis me contar toda a história —fechou os olhos com força, lutando contra as lágrimas—. Por que não nos conta agora?

Roland olhou rapidamente Jamey.

—Sim, eu adoraria que o fizesse —acrescentou uma voz grave e profunda da porta.

Rhiannon elevou rapidamente o olhar e viu um homem alto e atraente acompanhado de uma mulher baixa com a cabeça coberta de cachos negros e com uns enormes olhos de gazela. Ambos eram imortais.

—Eric —Roland levantou imediatamente, deixando os instrumentos de tortura ao lado da cama.

Os dois homens se encontraram no centro da aposento e se abraçaram como se fossem irmãos. Jamey correu para a mulher, que o rodeou com os braços e começou a soluçar como uma ridícula humana.

Pela extremidade do olho, Rhiannon viu que Pandora se agachava e tirava os dentes, preparando-se para atacar a mulher que abraçava Jamey.

Não houve tempo de gritar uma advertência. Rhiannon saltou da cama e aterrissou sobre a pantera, aferrando-se com força a seu pescoço. Os pontos que tão meticulosamente acabavam de ser costurados por Roland se abriram, lhe provocando um grito de insuportável dor.

A mulher se afastou um momento de Jamey e se ajoelhou ao lado de Rhiannon. Pandora se liberou da débil sujeição de sua proprietária, mas Jamey a agarrou com força. Então Roland levantou-a nos braços e a deixou de novo na cama.

—Importaria-se de nos contar o que está acontecendo aqui? perguntou Eric.

Roland não o olhou. Apartou de Rhiannon o cabelo do seu rosto e lhe acariciou as costas.

—Tivemos um pequeno atrito com um membro da DIP. Explicarei isso mais tarde —procurou de novo a agulha e tentou usá-la sem éxito.Através das lágrimas, Rhiannon viu a violência com que lhe tremiam as mãos.

A mulher que acabava de chegar posou a mão em seu ombro.

—Deixe comigo.

Exalando um suspiro de inconfundível alívio, Roland lhe estendeu o instrumental e se levantou. A mulher se sentou ao lado de Rhiannon.

—Sou Támara —se apresentou.

—E eu Rhiannon E não quero voltar a ver essa agulha.

Tamara franziu o cenho e olhou para a ferida. —Não acredito que fique outra opção —voltou a cabeça rapidamente quando a pantera se levantou e lhe farejou a mão. Jamey continuava segurando-a pela coleira de diamantes.

—É Pandora, minha pantera — explicou Rhiannon, com a voz cada vez mais débil.

—O que está fazendo aqui? —perguntou Roland, dirigindo-se a Eric. Esta região está cheia de agentes da DIP.

—Sim, por isso viemos. Pensamos que necessitariam de reforços.

—Mas como soube?

Tamara mordeu o lábio e procedeu a costurar.

—Tenho uma amiga. Hilary Garner, que ainda trabalha para eles. Mantém-nos informados. Os agentes da DIP sabem que está nesta zona, mas não sabem nada do castelo, pelo menos por enquanto.

Rhiannon sacudiu a cabeça. Aquela mulher trabalhava rápido.

—Curtis Rogers sabe. Esteve me esperando na porta outra noite.

—Curtis está aqui? —Tamara empalideceu.

—Neste momento, não. Enviei-o para fora durante uma temporada.

—Se Rogers souber, guarda a informação para ele —respondeu Eric—. Estou certo de que quer vingar-se pessoalmente de nós.

Tamara elevou de repente o olhar para cruzá-la com a do Jamey, que estava no outro extremo do quarto.

—Já chega de falar de Curt e da DIP. Estou morrendo de vontade de ouvir sua história. Então Roland era um cavalheiro. Não desejaria que ele continuasse exalando esse cavalheiresco encanto?

Rhiannon olhou Támara com os olhos entrecerrados. Não gostava daquela forma tão evidente de paquerar.

— Sim, ele era um cavalheiro, e há pouco mais para contar.

—Duvido, Roland —insistiu Eric.

—Duvide o quanto quiser. Não posso contar mais.

A secura de seu tom era definitiva. Eric arqueou as sobrancelhas, mas assentiu.

—Como quiser.

         Tamara deu o último ponto ao Rhiannon, fez um nó e deixou a agulha a um lado. Rhiannon suspirou sonoramente.

—Menos mal que terminaste.

—Continue deitada até o amanhecer, Rhiannon. Se abrirem os pontos, terei que costurar outra vez.

         Rhiannon estava estupefata. Aquela novata a estava ameaçando? A ela? Rhiannon? Uma princesa egípcia?

         Depois, aquela joão-ninguém se voltou para Jamey e lhe piscou os olhos:

         —É tarde, Jamey, deveria ir para cama. Para surpresa de Rhiannon. Jamey não protestou.

         Eric acendeu a lareira. Rhiannon continuava na cama e Roland pensou que ela parecia até menor em meio dos lençóis. Não havia tornado a ver Tamara desde morte da mãe de Jamey, ocorrida oito meses atrás. Tamara e Kathryn Bryant eram amigas antes da transformação de Tamara, de modo que para esta tinha sido um duro golpe. Roland ainda distinguia a dor que refletiam seus olhos. Além de sua preocupação por Jamey.

         —Está tão diferente... tão cheio de fúria...

         —Principalmente dirigida contra a DIP e contra Curtis Rogers —explicou Roland—. Me preocupa. E ainda me preocupa mais deixar o menino sem nenhuma vigilância durante o dia.

         —Bom, no momento ao menos, esse problema nós podemos resolver.

         Roland franziu o cenho para ouvir Eric.

         —Que diabos quer dizer?

         —Estive experimentando uma droga nova. Uma espécie de anfetamina concentrada. Utilizando-a, sou capaz de permanecer alerta durante todo o dia.

         — Sob a luz do sol? —Roland estava assombrado. Conhecia a paixão de Eric pela química, mas jamais teria sonhado com algo assim.

         —Não, tenho que continuar protegido do sol.

         Rhiannon se ergueu ligeiramente na cama. Tamara, sempre atenta, aproximou-se para ajudá-la a sentar-se. Enquanto lhe colocava uns almofadões nas costas, acrescentou:

         —Mas tem efeitos secundários, Roland. Sem os benefícios do sono regenerador, Eric enfraquece, cansa e se mostra terrivelmente irritável.

         —Isso não importa —disse Roland rapidamente—. Se me der essa droga, poderei vigiar Jamey durante todo o dia.

         —Até que não haja uma solução melhor, eu cuidarei dele, Roland.

         Roland sacudiu a cabeça.

         —Não, é minha responsabilidade...

         —Podem fazê-lo os dois —interrompeu Tamara—. Podem fazer turnos, pelo amor de Deus.

         Rhiannon suspirou e sacudiu a cabeça.

         —Uma boa solução, mas temporária. Acho que estão passando por cima algo óbvio.

         —A que se refere, Rhiannon? —perguntou Roland.

         —Em algum lugar do planeta, este menino tem um pai, não?

         Roland se sentiu como se acabassem de lhe cravar uma adaga no coração.

         —Um... pai? —olhou Tamara com expressão interrogativa.

         —O marido de Kathryn a abandonou antes que Jamey nascesse. Nem sabe que tem um filho. Chama-se James. James Adam Knudson         — sacudiu a cabeça —. Não saberia por onde começar para buscá-lo.

         —Não acho que isso importa. Um homem que é capaz de abandonar uma esposa e a um filho, não tem nenhum direito sobre nenhum deles.

         Ninguém replicou. A ninguém ocorreu sugerir que Jamey poderia estar melhor com seu pai natural.

         Ao amanhecer, Eric levou a Tamara aos calabouços, a um dos lugares de descanso que Roland tinha preparado. Depois de discutir durante horas, Eric tinha aceito que Roland tomasse aquela droga e permanecesse acordado durante o dia. Tinha-lhe dado três frascos do líquido para que tomasse a cada quatro horas.

         Roland tomou o primeiro fazendo uma careta por ser amargo. Meteu o frasco vazio no bolso e subiu ver Jamey e Frederick. Pandora dormitava aos pés da cama do adolescente, que dormia também.

         Roland voltou para seus aposentos. Ainda faltava uma hora para amanhecer. Rhiannon continuava na cama mas, é obvio, levantou-se durante uns minutos. O suficiente para tomar emprestada uma de suas camisas brancas e para haver tirado a roupa. Naquele momento, permanecia deitada de lado, oferecendo-lhe uma visão perfeita de suas longas pernas.

         — Antes do amanhecer, eu a levarei para baixo.

         Rhiannon deitou-se de costas, fazendo uma careta de dor.

         — Não quero descansar em um calabouço.

         — Rhiannon, aqui não está segura. Será que o incidente de hoje não te ensinou nada?

         — Tolices, Roland. Este é um lugar perfeitamente seguro para descansar. Cerre as cortinas, feche a porta e pronto. Deixe-me dormir aqui esta noite. Prometo-lhe que não vou me acostumar e não farei nada para perturbar sua apreciada solidão.

         — Com tanta gente rondando pelo castelo, faz tempo que minha solidão foi para o inferno. E este, querida, é o único lugar no qual você vai descansar a partir de agora. Quero que esteja em num lugar em que eu possa garantir sua segurança.

         Rhiannon mordeu o lábio, pensativa.

         — O certo é que minha principal fonte de segurança é Pandora, que agora está protegendo Jamey. De modo que se voltasse para minha casa, estaria vulnerável. Sim, poderia considerar a possibilidade de ficar aqui...

         —Não há nada que considerar. Vai ficar, sim.

         —Há condições, Roland.

         —Condições?

         —A primeira é que dormirei aqui, na cama. E se estiver tão preocupado com meu bem-estar, pode dormir ao meu lado. No caso de que tentassem me atacar enquanto descanso, estou segura de que algum dos dois despertaria e poderia avisar Pandora. Além disso, se essa nova droga de Eric funcionar, algum de vocês estaria acordado em qualquer caso. E, bom, como eu não sou capaz de descansar em um lugar com este aspecto, terá que me permitir arrumá-lo um pouco.

         Franzindo o cenho, Roland se sentou na beira da cama.

         — Parece que se acumulam as condições. Suponho que não estará começando a se ver como a senhora do castelo.

         — Só tento estar confortável, Roland, nada mais —elevou um braço, apontando para os lados. —. Suponho que não se importará se eu tirar algumas dessas teias de aranha e um pouco de pó...

Conheço-a muito bem para acreditar que é só isso o que pretende .     Rhiannon deu de ombros.

—Bom, estava pensando que também ficariam bem umas cortinas novas. Afinal, temos que nos assegurar que não entre sol durante o dia.

         —Muito bem, cortinas novas e tirar o pó. Nada mais, ok?

         —E eu gostaria de acender a lareira — olhou-o nos olhos. A expressão que viu Roland neles deveria ter-lhe servido de advertência—. Eu gosto de me sentir cômoda e confortável, como quando você me levou nos braços através do bosque.

         —Está se aproveitando de sua situação, Rhiannon...

         —Oh, mas ainda não terminei — sentou-se cuidadosamente na cama e tomou-lhe a mão, riscando um desenho invisível com as unhas em sua palma—. Quero que me conte como foi sua vida antes de conhecê-lo. Quero saber como chegou a se transformar em um cavalheiro.

         —Esse não é um assunto que eu gosto de falar.

         Rhiannon o olhou tão intensamente que Roland se sentiu como se estivesse correndo as cortinas que velavam sua mente.

         —Roland, você está há muito tempo guardando esse passado só para si. E, com ele, uma grande dor. Tem distorcido os acontecimentos até o ponto de ver-se a si mesmo como um demônio. Não acha que uma opinião objetiva poderia ajudá-lo?

         Roland sentiu então a estranha necessidade de explicar-lhe tudo. Mas temia que até Rhiannon pudesse rechaçá-lo se lhe contasse sua história. Imediatamente, perguntou-se se isso não seria melhor. Deixar que visse os negrumes de sua alma. Possivelmente assim compreendesse por que se mantinha longe dela. Possivelmente assim decidisse que já não o desejava.

         De modo que tirou o chapéu a si mesmo sentado na cama, apoiando as costas no travesseiro e com as pernas estiradas sobre o colchão. Rhiannon se aninhou ao seu lado, apoiando a cabeça sobre suas coxas. Enquanto falava, Roland lhe acariciava o cabelo com ar ausente.

         —Eu era o menor de quatro irmãos e meus pais desejavam que entrasse em um monastério. Naquela época, não era muito o que o benjamim de uma família podia fazer. Me tornando monge, daria prestígio e influência à família.

         —Você, monge? —disse como se lhe parecesse ridículo.

         —Eu sentia o mesmo. Então, aos quatorze anos, fui embora de casa decidido a fazer as coisas à minha maneira. Não havia nada que desejasse mais que me converter em cavaleiro. E quando levava duas semanas lutando para sobreviver, encontrei um bebê, uma criança que ainda não tinha nem um ano. Estava sentado em uma manta, sobre a erva, enquanto sua mãe e suas damas recolhiam amoras. Nenhuma delas viu o lobo, mas eu sim.

         —Um lobo? —Rhiannon arregalou os olhos—. E o que fez?

         —A princípio o medo me paralisou. Depois, o bebê olhou para mim e me sorriu —Roland sacudiu a cabeça—. Não sei o que se apoderou de mim, mas tirei a faca, a única arma que tinha, e me equilibrei sobre o lobo justo no momento no que se dispunha a atacar ao menino. Virtualmente, destrocei-o.

         Rhiannon se sentou lentamente e olhou-o. A Roland surpreendeu vê-la pestanejar para apartar as lágrimas que nublavam seus olhos.

         —Matou o lobo, Roland?

         —Pelo visto sim, embora depois das primeiras dentadas, não recordo grande coisa —Rhiannon fechou os olhos e estremeceu—. Quando despertei de novo, estava em uma cama, sendo atendido por servos. O menino era o neto de um barão e filho de um cavalheiro, Sir Gareth de Blanc. Quando sarei, converteu-me em seu escudeiro. Durante dois anos, tratou-me como a um filho. Ensinou-me tudo o que sabia e me permitiu treinar com os cavalheiros.

         —E você, com sua firme determinação, aproveitou com vontade esses treinamentos.

         —Aprendi algumas das habilidades básicas.

         —Me conte todo o resto —era como uma menina pedindo um conto, pensou Roland, enquanto afundava os dedos em seu cabelo.

         —Em uma ocasião, estava viajando com Sir Gareth. Assistíamos a um torneio. É obvio, havia outros cavaleiros com seus correspondentes escudeiros conosco. Uma banda de cavaleiros leais a um dos mais acérrimos inimigos do pai de Gareth nos tinha preparado uma emboscada.

         Rhiannon não disse nada, mas elevou a mão até seu rosto, como se estivesse vendo a dor que provocava aquela lembrança.

         —Gareth e outros lutaram ferozmente e mataram a alguns dos emboscados, mas eram muitos mais que nós —sacudiu a cabeça lentamente—. Quando Gareth caiu... algo ocorreu dentro de mim. Não sei o que foi. Descobri-me tirando seu corpo do campo de batalha e me pondo sua cota de malha e seu elmo. Com seu último fôlego, Gareth me pôs sua espada entre as mãos e me mandou lutar.

         —Mas você era só um menino…

         —Naquela época, aos dezesseis anos um rapaz já era considerado um homem, Rhiannon. Pedi aos outros escudeiros que me ajudassem enquanto lhe tirava o peitilho e a armadura e vestia. Quando terminamos, lancei-me à batalha com uma força que até então desconhecia. Era o demônio que, após, compreendi tenho em meu interior. Encontrei o cavalo de meu senhor, um enorme animal treinado para a batalha, e o montei.

         —E lutou em seu lugar.

         —Mais que lutar. Estava enfurecido. Lembro poucas coisas do que ocorreu. Os sons, os gritos das quedas, meus próprios gritos de batalha... Era um possesso, Rhiannon. Quando a batalha terminou, eu era o único que estava vivo. Estava rodeado de homens mortos.

         Sacudiu a cabeça como se quisesse livrar-se daquela lembrança e olhou Rhiannon nos olhos. Surpreendeu-se ao ver uma lágrima correndo por sua face. E por alguma razão inexplicável, pressionou os lábios contra ela, absorvendo seu sabor salgado.

 

         —Nunca tinha contado a ninguém esta história, Rhiannon —sussurrou.

         —Nem eu o farei — prometeu ela—. O que houve depois?

         —Os escudeiros se dispersaram, mas não tanto que não tenham sido testemunhas da batalha. Quando voltamos ao castelo do pai de Gareth, contaram o que tinham visto. Trataram-me como a uma espécie de herói. Pouco depois, fui convocado à corte do rei Luis, que era segundo primo do pai do Gareth, o barão. Fui nomeado cavaleiro como recompensa ao que eles chamavam meu valor. Mas eu só desejava retornar com minha família e não voltar a experimentar de novo essa violência.

         —E o fez?

         Roland se obrigou a forçar um sorriso. Rhiannon começava a fechar os olhos.

         —Deixaremos essa parte da história para outra noite, Rhiannon. Agora tem que dormir. E sarar.

         —Você queria bem a esse Gareth. É normal que lutasse como o fez. Foi sua tristeza que te deu essa força, nenhum demônio.

         Roland fechou os olhos e desejou acreditar que era certo.

         —Descanse, Rhiannon. Falaremos quando despertar.

         Rhiannon voltou a deitar-se, apoiando a cabeça em seu regaço. Era estranho, pensou Roland, que se sentisse tão tranqüilo estando tão perto dela. E mais estranho ainda, que o peso de seu coração parecesse haver-se aliviado.

 

         Enquanto ia deslizando para o sonho, Rhiannon sentia a dura coxa de Roland sob a cabeça. E, por uma vez, não tinha vontade de seduzi-lo.      De fato, sentia-se mais perto de Roland do que nunca.

         Era um estranho giro dos acontecimentos, posto que ela sabia perfeitamente que seus sentimentos para ele eram de natureza puramente física.

         Mesmo assim, era agradável aquela proximidadde. Sentia-se bem com ela.

         E isso a preocupava. Estava decidida a lhe demonstrar que valia tanto como qualquer homem do planeta. Que podia ser tão fera, tão forte e tão valente como qualquer homem. Queria estar segura de que Roland não a repelisse pelos mesmos motivos pelos que a tinha repelido seu pai, porque não era suficientemente boa.

         Naquele momento, depois de ter conhecido sua generosidade sem limites e seu valor, deveria havê-lo tentado com mais força que nunca.

         Não seria fácil impressionar um homem tão valente. Um homem que, sendo um menino, enfrentou um lobo para salvar um bebê...         Aquilo era puro heroísmo.

         Antes que a escuridão nublasse completamente sua mente, Rhiannon experimentou a maravilhosa sensação das mãos de Roland emoldurando seu rosto e desenhando seus olhos. Sorriu... e dormiu.

         Roland a olhava enquanto dormia, mas de onde estava, não podia vê-la suficientemente bem. Apartou-se delicadamente dela e se levantou. De pé, ao lado da cama, podia contemplar plenamente seu rosto. Deus, era tão bela... de repente, sentiu-se sobressaltado pela necessidade de pintar seu retrato. Sentiu falta dos pincéis e a suavidade do óleo que estendia sobre o tecido.

         Mas era um pensamento absurdo. A pintura era um passatempo para os mortais. Algo que era preferível fazer à luz do sol.

         O que teria aquela mulher para despertar nele tais necessidades? Tinha gritado como uma maluca animando uma equipe de futebol essa mesma noite. Tinha-o feito vestir-se com jeans e uma camisa ridícula e o tinha levado a um estádio abarrotado de agentes da DIP.

         Sacudiu a cabeça. Aquela mulher era capaz de converter qualquer homem em seu escravo. Inclusive a ele.

         E soube, com plena certeza, quando, segundos depois, segurou-a pelos ombros e a deitou delicadamente de costas. Era tão perfeita... Queria vê-la, só vê-la. Embora não pudesse permitir o prazer de reproduzir sua imagem em um tecido.

         Alargou a mão para a parte dianteira da camisa e vacilou. Haveria algo mau em contemplá-la dessa forma enquanto ela descansava indefesa?

         Fechou os olhos. Não, estava seguro de que Rhiannon não protestaria.

         Desatou os botões que Rhiannon se incomodou em grampear e lenta, muito lentamente, abriu a camisa.

         Seu olhar percorreu a elegante curva de seu pescoço e os ossos de seu decote. Baixou depois para as pequenas protuberâncias de seus seios, perfeitamente arredondados e de um branco violáceo. Seus mamilos tinham a sutil cor da polpa do melão doce. Mas não podia pintá-los assim, pensou.   Se pretendia capturar sua imagem, antes deveria provocá-los sexualmente para que se erguessem, tentando qualquer homem a acariciá-los.

         Para tentá-lo como estavam tentando-o a ele. Desejava capturar um daqueles doces botões entre seus lábios e sugá-lo até endurecê-lo, até senti-lo palpitar contra sua língua.

         Engoliu em seco ante aquele novo arremesso de desejo e permitiu que seu olhar fosse ate seu ventre, para o escuro buraco de seu umbigo e a estreita curva de sua cintura. Até o triângulo de cachos negros. Deus, resplandeciam como o cetim. E ele desejava acariciá-los.

         Antes que pudesse fazer algo para impedi-lo, estava fazendo isso. Seus dedos descansavam sobre aquele ninho de seda. Sim, eram tão suaves como pareciam. Mais suaves inclusive. E embora Roland sabia que não deveria fazê-lo, baixou os dedos para entreabrir seus lábios secretos e procurar dentro deles. Quando sentiu a umidade que banhava seus dedos, fechou os olhos e gemeu. Caiu na cama, inclinando-se contra ela. A sutil essência de Rhiannon o fez estremecer. Afundou os dedos um pouco mais e retrocedeu.    Rhiannon tremeu e Roland elevou rapidamente o olhar.

         Rhiannon continuava deitada e completamente quieta. Mas seus mamilos permaneciam erguidos. Roland levou os dedos aos lábios e fechou os olhos involuntariamente enquanto sugava o sabor dela na ponta de seus dedos. Desejava-a. Mais que desejá-la, tinha que possui-la. Se não fisicamente, ao menos...

         Roland se separou da cama, mas continuou olhando-a. Tinha que capturar sua imagem em um quadro. Não havia outra maneira de livrar-se daquele desejo que o devorava.

         Durante as primeiras horas do amanhecer, detrás das cortinas e sob um teto coberto de teias de aranha, Roland esteve trabalhando com materiais que fazia muito tempo que não empregava. Os óleos eram novos. Não tinha sido capaz de resistir à vontade de comprá-los. Eram as pinturas mais modernas que tinha tido. Seu aroma era como uma droga e seus pincéis voavam sobre o tecido como se fossem uma prolongação de sua alma.

         Não tinha feito um esboço prévio. Não o necessitava. Quão único precisava era vê-la tombada na cama como uma oferenda aos deuses e permitir que sua imagem se transladasse desde seus olhos até suas mãos.

Trabalhava de forma febril, entregando-se completamente a aquele ato de criação. Movia o pincel com a mesma delicadeza com que teria acariciado sua pele.

         Até que começou para ouvir movimento no castelo. Jamey tinha levantado, e também Frederick. Naquele momento estavam descendo para o salão e de ali se dirigiriam à cozinha.

         Roland suspirou, lamentando ter que parar tão cedo. Tinha esquecido o prazer que podia encontrar em algo tão singelo. Tinha conseguido tão pouco... Nem as silhuetas nem as cores do tecido eram ainda reconhecíveis, mas sabia que iriam tomando forma ao longo das próximas sessões.

         Limpou os pincéis e guardou as pinturas. Deixou fora a tela para que secasse. Asseguraria-se de escondê-lo antes que Rhiannon despertasse aquela noite.

         Quando afinal retornou à cama, seu olhar vagou uma vez mais pelo corpo nu de Rhiannon.

         Estava excitado. Dolorosamente excitado. Fechou os olhos e tentou não pensar que podia despir-se, abraçá-la, saboreá-la e tocá-la e ela nunca saberia. Podia afundar-se em seu interior e podia desafogar-se naquela suculenta umidade sem que ela nunca soubesse.

         Inclinou-se para diante para fazer erguer-se seus mamilos uma vez mais. A resposta de Rhiannon foi imediata. Possivelmente até seria capaz de levá-la ao o clímax sem que ela estivesse consciente disso.

         A idéia era tentadora... muito tentadora. Roland se controlou mentalmente, compreendendo que, uma vez mais, a besta que levava em seu interior estava tentando apoderar-se dele. Utilizar Rhiannon desse modo seria uma violação. Seria imperdoável fazer amor com ela sem seu consentimento. Essa era sua forma de recompensá-la pelas alegrias que lhe tinha dado? Alegrias? Roland pestanejou, repetindo seus próprios pensamentos. Sim, era alegria o que tinha sentido durante aquelas breves horas que tinha passado pintando. E também era alegria o que havia sentido quando tinha visto Jamey jogando. Um absoluto prazer.

         Ele já não se acreditava capaz de albergar aquela classe de sentimentos.

         Olhou Rhiannon e sacudiu a cabeça. Quem teria imaginado que essa imprudente e descontrolada vampiresa pudesse lhe devolver o gosto pela vida?

         Fechou-lhe a camisa, abotoando-a. Depois, inclinou-se sobre ela e lhe deu um beijo nos lábios. Uns lábios úmidos, flexíveis e doces inclusive enquanto dormia. Deslizou a língua no interior de sua boca e só se deteve quando compreendeu que a loucura voltava a assaltá-lo.

         —Obrigado, Rhianikki, princesa do Nilo.

         Rhiannon não viu Roland quando despertou. Mas enrugou o nariz ao notar um aroma estranho na habitação. Farejou outra vez e franziu o cenho.        Cheirava um pouco a pintura.

         Incapaz de Identificar plenamente aquele aroma, levantou-se da cama sem pensar na ferida. Esticou-se ao lembrar-se, como se esperasse reviver aquela dor. Mas não o fez. E quando desabotoou a camisa, viu que a ferida tinha desaparecido sem deixar rastro. Só ficavam uns pontos diminutos.

         Abriu o armário e procurou em seu interior algo para usar. Não encontrou nada, mas decidiu não deixar-se abater. Aquela noite se encontrava muito bem.

 

         Depois da conversação da noite anterior, tinha decidido que Roland sofria um ridículo e prolongado estado de depressão e um severo complexo de culpa. Mas posto que por fim tinha aberto aquela dolorosa ferida, possivelmente fora capaz de sarar. E essa idéia a agradava. Odiava vê-lo atormentar-se por coisas ocorridas tantos anos atrás. Era uma perda de tempo e energia.

         A porta se abriu naquele momento e entrou Roland com uma licoreira de cristal cheia de um líquido cor carmesim.

         — O que é isso? —perguntou Rhiannon franzindo o cenho.

         —Nutrientes. Necessita disso depois do que ocorreu ontem à noite.

         —O que preciso é de uma garganta inocente.

         —Rhiannon, isso é um assassinato.

         —Então, continua disposto a pensar sempre o pior de mim —caminhou a grandes pernadas para ele—. Jamais os assassinei, só os saboreei. Um gole aqui, outro lá... — estava brincando, como sempre.

         Roland baixou o olhar para seus seios, enquanto Rhiannon dava um passo adiante para tomar a licoreira.

         —Mas se se lembrassem...

         —Bebia desses homens enquanto dormiam, Roland. A maior parte deles o recorda como um sonho erótico —encheu o copo e o levou aos lábios.

         — E as marcas que deixa em seu pescoço?

         —Não é necessário deixar marcas no pescoço. O sangue pode ser obtida de muitas partes, e algumas é difícil de examinar as de perto —deixou o copo e lambeu os lábios—. Quer que lhe mostre?

         —Não, Rhiannon, não quero. E te sugeriria que se alimentasse como o fazemos nós. Não quero levantar suspeitas havendo tantos agentes da DIP pelos arredores.

         Rhiannon deu um passo para ele e deslizou um dedo por seu pescoço.

         — Ou será que você não gosta de pensar que toco com meus lábios em outros homens?

         Roland a olhou nos olhos e lhe sustentou o olhar durante vários segundos. Rhiannon umedeceu os lábios.

         —Esta noite tive um sonho muito interessante.

         Roland desviou rapidamente o olhar.

         — Ah, sim?

         —Mmm. Não é algo que sonhe freqüentemente. Tenho um sonho muito profundo. Mas desta vez... senti coisas.

         — Que tipo de coisas?

         —Foi algo muito fugaz, uma carícia incrivelmente íntima. E, depois, um beijo delicioso.

         Roland se voltou.

         —Sim, um sonho muito estranho.

         —Possivelmente o que ocorre é que estou desejando que me ocorram essas coisas —se colocou detrás dele de maneira que, enquanto falava, seu fôlego lhe roçava a nuca—.Se você estivesse disposto a me fazer um favor, eu poderia dormir mais profundamente, Roland.

         —Sinto muito, Rhiannon, não creio que seja sensato.

         Assim ainda não o tinha impressionado o suficiente. Continuava pensando que ela não merecia sua atenção. Rhiannon o rodeou e se colocou frente a ele.

         —Minha ferida precisa de cuidados. Ajudará pelo menos nisso?

         Roland franziu o cenho preocupado e Rhiannon se afastou até a cama.

         — O que se passa, Rhiannon? Ainda não sarou?

         Rhiannon se sentou à beira da cama e se inclinou para diante; a camisa aberta deixava ao descoberto sua cintura, seus quadris e o bordo de um de seus seios.

         —Sim, sarou, mas eu gostaria que me tirasse os pontos.

         Roland fechou os olhos um instante. Quando voltou a abri-los, parecia haver-se convertido em um manequim. Procurou as tesouras na mesinha de noite, aproximou um tamborete da cama e se sentou. Posou as mãos em sua cintura e foi tocando lentamente com os dedos toda a zona. Rhiannon fechou os olhos.

         —Eu gosto que me toque.

         Roland apartou imediatamente a mão, tomou as tesouras e começou a lhe tirar cuidadosamente os pontos.

         —Inclusive quando estava adormecida eu gostava. Porque é loucura, não é, Roland? Não foi um sonho.

         Roland terminou o trabalho, guardou as tesouras e se levantou.

         —Vou ver como está a parte de baixo do castelo.

         —Acompanho-o.

         —Irei sozinho. Jamison está com Eric e com Tamara no salão. Pode pedir a ele que te consiga alguma roupa. Mais tarde, Eric e eu iremos procurar suas coisas em sua casa.

         —Sou perfeitamente capaz de ir procurar minhas coisas, Roland. Mais ainda, não estou disposta a ficar em um lugar no qual não me apreciam. Possivelmente amanhã durma em minha própria cama.

         Roland não disse nada; limitou-se a abandonar a habitação. Rhiannon tomou o copo que tinha deixado na bandeja e o atirou contra a parede.

         Ouviu uma gargalhada feminina; Tamara apareceu na porta justo quando Roland acabava de sair.

         — Parece-lhe engraçado que eu esteja zangada?

         —Não me rio de você, Rhiannon, não pense tolices. O que passa é que eu também tive vontade de atirar coisas em Eric em mais de uma ocasião.

         —É impossível que seja tão enervante como Roland —se aproximou da lareira e jogou um tronco.

         —Não queria fazer amor comigo e ambos sabíamos que tinha tanta vontade que estava ficando louco.

         Rhiannon se endireitou, mas não se voltou.

         — E que motivo tinha?

         —Pensava que me repugnaria quando me desse conta de como era realmente.

         — E te repugnou?

         —Apaixonei-me, isso sim. Custou-me algum tempo convencê-lo, mas ao final consegui. Não desista.

         Rhiannon se voltou para enfrentar aquela insignificância.

         —Acha que estou apaixonada por ele, verdade? Meu Deus, Támara, eu não sou tão estúpida para permitir que me ocorra algo assim.

         —É obvio que não. Então só está interessada em ter uma aventura?

         —Desejo-o. E não acredito que haja nada de mau nisso —franziu—. Exceto seu excesso de cabeça-dura.

         — Não lhe falou nada do motivo?

         —Só me disse alguma tolice sobre que o que alguém quer não é sempre o melhor para um. Mas eu sei qual é a verdadeira razão. Acredita que não valho o suficiente. Mas logo aprenderá.

         — Por que diz isso?

         —Porque é verdade —localizou a saia e a vestiu.

         —Isso é uma loucura. É a mulher mais atraente que vi em minha vida.

         Rhiannon se voltou para ela. Possivelmente Tamara não fosse tão odiosa como ao princípio lhe tinha parecido.

         —E você parece irremediavelmente contente.

         — Por que não estaria? Consegui viver a eternidade com o homem que amo.

         Rhiannon revirou os olhos .

         — É necessário que seja tão humana? —procurou os sapatos e os calçou —. Diga a Roland que voltarei para amanhecer.

         —Rhiannon, aonde vai?

         —A minha casa, procurar minha roupa.

         —Rhiannon, não deveria, não é seguro. Há agentes de...

         —Pior para eles se cruzarem comigo. Esta noite não estou de bom humor.

         Dirigiu-se para a porta, mas Tamara a agarrou por braço.

—Rhiannon, por favor, espera, devo lhe dizer algo.

—Então diga-o, tenho pressa.

—É... é sobre o homem que a fez prisioneira no laboratório de Connecticut.

—Daniel St. Claire?

Tamara assentiu.

—Sim. Ele... era meu tutor. Adotou-me depois que meus pais morreram —Tamara tragou saliva e Rhiannon franziu o cenho—. Com o tempo, inteirei-me de que suas mortes tinham sido planejadas. Ele só queria minha custódia para tentar atrair Eric. Sei o que lhe ocorreu... depois que ele morrera, li os arquivos. E também o que aconteceu aos outros que apanhou. Eu... Sinto muito.

Comovida pela honestidade da Tamara, Rhiannon alargou a mão para seus cabelos.

—Não tem nada que sentir, Tamara. Todas essas coisas ocorreram antes de você nascer. Teve sorte de sobreviver.

—Não sei se o teria conseguido sem Eric. Durante muito tempo, inclusive depois de que Eric tentasse me dizer a verdade, quis Daniel como a um pai. Espero...

—Que não a odeie por isso —terminou Rhiannon por ela, lhe lendo o pensamento—. Pode estar tranqüila, não o farei.

Tamara sorriu com os olhos cheios de lágrimas.

—Eu gostaria de ser sua amiga.

Rhiannon pestanejou com força, furiosa pelo ridículo nó que tinha na garganta.

—Nunca fui amiga de ninguém.

— Nem sequer de Roland?

Rhiannon soltou uma gargalhada.

—Muito menos dele. Nem sequer gosta.

—Acredito que nisso está enganada. Quando chegamos ontem à noite, parecia estar desesperado por vê-la sofrer.

—De verdade? —Rhiannon arqueou as sobrancelhas e sentiu algo ridiculamente quente em seu interior. Mas rapidamente se conteve— Veja só, nós aqui falando de homens como um par de adolescentes mortais. Nós estamos por cima dessas coisas, Támara, somos deusas entre as mulheres.

—Mas também somos mulheres.

Rhiannon franziu o cenho como se o estivesse considerando. Depois, sacudiu a cabeça.

—Tenho que ir. Esta noite tenho muitas coisas que fazer. Algumas compra, inclusive.

— Compras? Mas, Rhiannon, a DIP....

—Tolices. consegui de Roland permissão para limpar esta casa e trocar as cortinas. Também eu gostaria de comprar velas para que o candelabro possa estar aceso durante toda a noite. Porque dormir nesta habitação é como estar dormindo em uma tumba.

—Certamente. Isto parece cenário de um filme de terror ou um pouco parecido.

—Exatamente. E como tenho pressa, me vão fechar as lojas. Então, adeus.

Rhiannon correu para a porta traseira, saltou o muro e se dirigiu a toda velocidade à casa que tinha alugada. Embora não visse ninguém vigiando-a, tomou a precaução de dirigir-se à parte de trás, escalar o muro e entrar por uma das janelas do segundo piso.

         Preparou uma mala de roupa e guardou alguns objetos em uma maleta que iria procurar quando tivesse terminado suas compras. Procurou os cartões de crédito e se dispôs a levar a cabo outra das tarefas que tinha pendentes. Uma das mais importantes. Demonstraria a Roland o muito que ela valia antes de que a noite terminasse. Pegou o telefone e marcou um número que conhecia perfeitamente.

         O agente que tinha na França, Jacques Renot, era um homem no que podia confiar plenamente. Além disso, era um ex-agente da DIP que conhecia a maneira de acessar seus computadores.

         —Preciso saber o hotel no qual se aloja Curt Rogers em L'Ombre —se limitou a dizer assim que ergueu o telefone—. Poderá consegui isso para mim?

         —Oui. É possível que leve algum tempo, mas...

         —Chamarei você dentro de vinte minutos —e desligou.

         As compras não lhe levariam muito tempo. Afinal, sabia o que queria e o preço não era nenhum problema, de modo que, por que esbanjar o tempo? Tinha muitas coisas que fazer.

 

         —Disse que ia às compras.

         Roland estava a ponto de explodir. Compras! Por Deus, Rhiannon não só era imprudente, mas também estava completamente louca.

         — E por que demônios ninguém me tinha dito?

         Eric se interpôs entre Roland e Támara, como se quisesse proteger a última do aborrecimento de seu amigo

         —Estive te buscando durante duas horas, Roland. Não tinha a menor ideia de onde te encontrar e você ignorou minhas chamadas. Que outra coisa podia fazer?

         Roland se passou nervoso a mão pelo cabelo.

         —Temos que encontrá-la. Há agentes da DIP por todo o lugar.

         —Sinceramente, Roland, não sei por que está tão preocupado. Não acredito que vá fazer nada arriscado —replicou Támara

         — Ah! Não há nada que goste mais essa mulher, uma oportunidade. Se a conhecesse, você também estaria preocupada.

         Correu para a porta, mas Eric o agarrou pelo ombro.

         —Irei com você.

         Roland olhou para a janela e viu Frederick e Jamey pulando com a Pandora no pátio.

         — E deixar Tamara só vigiando Jamey?

         Tamara elevou a cabeça e jogou o cabelo atrás, com um gesto próprio de Rhiannon.

         —Não sou uma indefesa mortal —respondeu—. Posso cuidar de mim mesma.

         Eric mordeu o interior da bochecha tentando evitar um sorriso.

         —Acredito que está conversando muito com Rhiannon —disse Roland.

         —E eu acho que você não fala com ela o suficiente — alfinetou ela—. Ou isso, ou está completamente cego. Rhiannon acredita que você não gosta dela . Acredita que não a considera digna de você. E se fizer alguma loucura, provavelmente será porque está tentando te demonstrar que se engana.

         — De onde diabos tirou essas idéias? Rhiannon acredita que é suficientemente boa para Deus e o mundo.

         —O que importa não é o que ela pense, mas o que acredita que pensa você —como Roland se limitou a franzir o cenho e a sacudir a cabeça, espetou-lhe furiosa:

         _Tenho vontade de sacudi-lo!

         Eric a agarrou pelos ombros e a estreitou contra ele.

         —Calma, meu amor, poderia lhe fazer mal —elevou o olhar para Roland— Vá procurá-la. Eu me ocuparei de manter segura a casa.

         Roland abandonou o castelo, mas não podia evitar pensar nas palavras de Támara. Haveria alguma possibilidade de que Rhiannon sentisse que tinha que lhe demonstrar seu valor? Era ridículo, é obvio. Mas também Rhiannon lhe tinha reprovado que a visse como a um ser inferior...

         Mas aquele não era momento para preocupar-se com teorias e motivações.

         Dirigiu-se em primeiro lugar para a casa que Rhiannon lhe havia dito que alugava, justo aos subúrbios do povoado. Era indubitável que tinha estado ali. A blusa manchada de sangue e a camisa branca estavam no chão e as gotas que ficavam no interior da banheira anunciavam um uso recente.

         Havia uma mala em cima da cama, cheia de roupa. Roland assumiu que Rhiannon pensava levar ao castelo, mas se perguntou se não estaria dando muitas coisas por certas. A última vez que a tinha visto, Rhiannon estava furiosa com ele.

         Sacudiu a cabeça e registrou a casa minuciosamente. Viu uma caderneta e uma caneta perto do telefone e correu para eles. Evidentemente, Rhiannon tinha escrito algo naquela caderneta, mas tinha arrancado a folha. Roland umedeceu os lábios e, levantando a caderneta para a luz. Tentou identificar o que era. Não teve sorte. Zangado, voltou-se para olhar o conteúdo do cesto de papéis, e viu um pedaço de papel amarelo enrugado em cima de outros restos de lixo. Tirou-o e o alisou. Nele figurava uma direção e o número de uma casa. E, debaixo, alguém escrevera a palavra: «Rogers».

 

         Rhiannon viu a silhueta dos dois homens à luz dos abajures. Estavam sentados no salão de uma suíte do hotel. Rhiannon se agarrou ao batente da janela do décimo quinto piso e os observou enquanto os sons do tráfego e da atividade dos mortais alagavam a noite. Estava na janela do dormitório, mas podia vê-los claramente através da porta aberta. E, por uma vez, desejou ser mais velha, mais poderosa. Teria gostado de poder converter-se em um camundongo e entrar assim na casa. Tinha entendido que alguns o tinham conseguido, os mais velhos.

         Ela tinha a habilidade de deslumbrar os humanos. Poderia, possivelmente, lhes provocar um estado de catatonía e meter-se depois na habitação sem despertar nenhuma resposta por sua parte. Mas também era possível que seus esforços só conseguissem alertá-los. Porque o homem que estava com o Curtis Rogers era o mesmo que a tinha atacado à saída do jogo de futebol.

         Um calafrio lhe percorreu as costas quando estudou seu rosto. Era um homem de nariz proeminente, com uma sombra de barba e braços fortes. Parecia um desses lutadores profissionais aos que tinha visto na televisão.         Tinha o cabelo muito curto. Seus lábios eram grossos.

         Rhiannon escutou com atenção e ouviu um deles falando em voz baixa. Farejou e distinguiu o aroma do suor, da colônia de Curtis e de um uísque de bom preço.

         Em silêncio, deslizou no dormitório.

         — Então nos entendemos?

         Curtis se encolheu de ombros.

         —Não preciso entender nada. Se me ajudar a apanhar a um deles, poderá pôr você mesmo o preço.

         —Não um deles. Ela. É a mais velha, a mais poderosa. Quero que a ceda e que me deixe com ela durante o tempo que eu quiser.

         Curtis sacudiu a cabeça, levantou-se e cruzou a sala para tomar uma garrafa que continha um líquido ambarino.

         —Quer dormir com ela, não me engane. E diabos, não o culpo.

         O outro homem estendeu seu copo quando Curtis se aproximou.

         —Possivelmente, mas não é esse meu principal objetivo. Está seguro de que ficará completamente indefesa?

         —Absolutamente. Essa droga já foi provada e funciona —Curtis lhe encheu o copo e se afastou—. Lhe importa que lhe pergunte por que acredita que poderá apanhá-la quando todos os outros têm falhado?

         —Tenho certas habilidades. E conheço seus pontos débeis.

         —Nó também .

         —Eu sei como utilizá-los.

         —A verdade é que não posso dizer que tenha muita confiança. Mas se pode fazê-lo, asseguro-lhe que a deixarei completamente indefesa tantas vezes quantas quiser.

         Rhiannon estremeceu ante aquela imagem. Recordava muito bem a última vez que tinha estado indefesa em mãos da DIP.

         —Então me dirá onde está.

         Curtis vacilou um instante.

         —Além dela, há outros que me interessam. Ela é minha. Só minha, compreende?

         —Perfeitamente —o homem pôs-se a rir, fazendo Rhiannon estremecer —Tem planos especiais para ela, sem dúvida. E eu não ousaria intervir.

         —E tampouco pode dizer a ninguém. Se se inteirassem de onde está, todos os agentes da DIP rodeariam imediatamente sua casa. E jamais poderia lhe pôr as mãos em cima.

         O homem assentiu.

         —De acordo.

         Curtis exalou um longo e sonoro suspiro.

         —Vivem em um castelo chamado Chateau de Courtemanche, ao sul de L' Ombre.

         Rhiannon desejou poder matá-los nesse momento. Desgraçadamente, Roland jamais a perdoaria.

         —Poderia me ajudar ter uma amostra dessa droga.

         —Esqueça, amigo. Essa fórmula é secreta. Ninguém a tem, salvo eu, e assim vai continuar.

         Isso era o que ele se acreditava, pensou Rhiannon.

         —Ok, não preciso disso —o homem se levantou e se dirigiu para a porta.

         Curtis se voltou para uma mesa. Rhiannon procurou um ângulo que lhe permitisse vê-lo melhor. Curtis estava abrindo sua maleta, que estava cheio de tubos de cristal com plugues de borracha.

         A droga.

         — Não vai dizer-me como posso localizá-lo? Não sei seu nome sequer.

         O homem abriu a porta e parou.

         —Entrarei em contato com você se for necessário. Quanto a meu nome, de momento me chame Lucien.

         Saiu da casa deixando a porta totalmente aberta. Curtis correu a fechá-la sacudindo a cabeça. Fechou rapidamente a maleta e se meteu na habitação em que estava Rhiannon. A vampira se escondeu a toda velocidade debaixo da cama. Curtis se dirigiu então para o banheiro. Rhiannon saiu, tomou a maleta e, em questão de segundos, estava fora do edifício.

         Acabava de aterrissar no chão quando uns braços fortes a rodearam e a arrastaram até um beco escuro. Rhiannon tentou enfrentar-se, mas a força daquele homem era irresistível.

         — Que diabos acha que está fazendo? — Roland! —voltou-se em seus braços—. Me deste um susto de morte. Pensava que foi esse pedaço de carne que está tentando me apanhar.

         —Poderia havê-lo sido.

         —Quando se inteirar do que consegui, seguro que te passa o aborrecimento.

         —Não me importa o que tenha conseguido. Poderiam te haver matado ou capturado enquanto o tentava. Quando vais fazer me caso, Rhiannon?

         —Olhe isto, Roland. Seguro que te alegra.

Tendeu-lhe a maleta.

         —Aqui não —a agarrou por braço e começou a afastar-se pelo beco.

Rhiannon se liberou de sua mão. Doía-lhe terrivelmente que nem sequer queria ver o que tinha conseguido.

         —Tenho um carro esperando, um carro alugado.

         —Deixa-o onde está.

         —E um inferno, Roland. Tenho minhas compras dentro.

separou-se dele antes de que pudesse agarrá-la outra vez. Em questão de segundos, estava sentada depois do volante. E se surpreendeu quando a porta de passageiros se abriu e Roland se sentou a seu lado.

         —Sei que odeia os carros.

         —Pois esta noite vou montar em um.

         — Só para estar comigo?

         —Sim —Rhiannon esteve a ponto de sorrir—. Porque se te perder de vista, não sei o que outra tolice poderia chegar a fazer.

         Se a tivesse esbofeteado, não lhe teria doído mais, mas Rhiannon se negava a demonstrar-lhe Ligou o motor e se afastou do hotel. A maleta descansava entre ambos. Roland não olhou em seu interior e Rhiannon decidiu não se voltar para pedir que o fizesse.

         Rhiannon se deteve em frente da casa que tinha alugado, mas Roland a olhou com o cenho franzido.

         —Não pare, Rhiannon.

         —Tenho que ir procurar minha mala.

         —Então estaciona em outro site e voltaremos por ela. Não temos por que anunciar nossa presença.

         —Deixa de me dizer o que tenho que fazer.

         —Alguém terá que fazê-lo. Parece que por si mesma não é capaz de agir de modo responsável.

         Rhiannon saiu e fechou com força.

         —Já basta. Penso em ficar aqui. Não voltaria para esse castelo mofado mesmo que houvesse vinte homens da DIP me esperando aqui.

         Tirou a maleta do carro enquanto Roland saía pela porta contrária. Ela lhe atirou a maleta com força.

         —Dê isso a Eric. É o sedativo. Pensei que gostaria de analisá-lo para ver se pode encontrar um antídoto ou algo parecido.

         —Rhiannon, não seja ridícula.

         Deixou a maleta de novo no carro e rodeou o veículo. Quando chegou ao Rhiannon, agarrou-a pelo braço e a fez voltar-se para ele. Abriu então os olhos como pratos e a olhou com incredulidade.

         —Está chorando.

         —Não, não estou chorando.

         Roland sacudiu a cabeça lentamente.         .

         —Rhiannon, não pretendia te fazer mal...

         — Você? Me fazer mal? —soltou uma gargalhada—. Sou filha de um faraó, uma princesa do Egito. Os homens caem aos meus pés, tanto os mortais como os imortais. De acha que pode me importar o que pense de mim? —ardia-lhe a garganta—.Odeio-o, Roland de Courtemanche. Detesto-o e não voltará a ter oportunidade de me repelir nunca mais.

         Roland retornou sozinho ao castelo. Conduziu o carro pela singela razão de que não queria que a DIP o visse fora de casa do Rhiannon e compreendesse que ela estava em seu interior. Nem sequer estava seguro de que soubessem que aquela era sua casa, mas era bastante provável.

         Entrou no castelo pela porta principal, mas não havia ninguém. Subiu aos aposentos e se deteve na porta, incapaz, por um instante, de tomar ar.

 

         Frederick baixou o olhar da escada em que estava subido, tirando o pó a um dos candelabros de prata. Tamara deixou de limpar as janelas com um trapo úmido. Eric elevou o olhar da chaminé, aonde estava ajoelhado, varrendo as cinzas. E Jamey baixou a vassoura com a que estava ocupando-se das teias de aranha.

         — Onde está Rhiannon? —perguntou o menino.

         Roland baixou o olhar para o chão. A pantera se aproximou dele com uma pergunta similar no olhar.

         —Está na casa que alugou. Quer ficar lá.

         —Roland... —começou a dizer Támara em tom de advertência, mas Eric a deteve com um olhar e deu um passo adiante.

         — O que leva nessa maleta?

         —É a droga, o sedativo que utilizou Curtis contra você.

         — Como o ...?

         —Não fui eu, foi Rhiannon. Meteu-se na casa do Curtis e o levou.

         —Caramba, essa mulher tem fibra —comentou Jamey.

         — Fibra? —Roland o olhou com o cenho franzido—. Foi uma estupidez. Rogers estava nessa habitação com o mesmo homem que esteve a ponto de matá-la o outro dia.

         —E mesmo assim, ela entrou —insistiu Jamey—. Faz falta ter valor.

         —É uma imprudente.

         Tamara deixou no chão o trapo que estava utilizando e cruzou a habitação.

         —É valente, engenhosa e absolutamente bela. Eu gostaria de me parecer com ela.

         Eric olhou-a, ligeiramente alarmado.

         —Eu gosto de você assim como é, Tamara.

         —Rhiannon está muito segura de si. Deveria ter mais cuidado —continuou Roland enquanto se deixava cair em uma cadeira.

         —Rhiannon não está absolutamente segura de si mesmo. Roland, tornou a lhe fazer mal, verdade?

         —Támara, deixa-o em paz. Roland tem razão. Rhiannon corre muitos riscos.

         —Se qualquer de vcês tivesse feito o que ela fez hoje, estariam-lhes felicitando até ele amanhecer. Por que diabos não podem conceder o mesmo mérito a uma mulher?

         — Rhiannon conseguiu as cortinas novas? —perguntou Frederick do alto da escada.

         Roland ergueu a cabeça. Sentia a pesada carga da culpa sobre os ombros. Queria proteger Rhiannon e, em troca, só tinha conseguido lhe fazer mal.

         —Estão lá fora, no carro, acredito —olhou a seu redor e sacudiu a cabeça—. Levam toda a noite trabalhando, verdade?

         —Não nos agradeça —lhe espetou Tamara—. O temos feito é por ela, não por você —saiu correndo da habitação, com Jamey nos calcanhares.

         Frederick desceu coxeando da escada e se uniu a eles.

         Aos poucos minutos, Jamey retornava com o pacote que continha as cortinas novas e subia a escada para as pendurar. Frederick foi em sua ajuda, deixando antes no chão uma caixa com ao menos umas cem velas.

         Pouco depois, voltaram a sair para retornar com novos pacotes. E tinha passado já perto de meia hora quando Eric franziu o cenho e elevou o olhar.

         — Onde está Tamara?

         Frederick se limitou a encolher-se de ombros e saiu coxeando uma vez mais. Jamey o seguiu, mas Eric o agarrou por braço.

         —Jamison, me diga onde está.

         —Foi procurar Rhiannon. Não se zangue, Eric. Tem-me feito prometer que não diria uma só palavra.

         Eric esboçou uma careta e saiu. Esteve a ponto de tropeçar com Támara e Rhiannon. Roland tragou saliva; o alívio o invadiu ao vê-la ali, a salvo. Rhiannon olhou ao seu redor com mal dissimulada surpresa.

         —As cortinas são perfeitas, Rhiannon. São da cor do sol e suficientemente grossas para não deixar passar a luz. São maravilhosas.

         Támara apoiou a mão no braço de Rhiannon. —Támara, você me deu um susto de morte —Eric tomou-a entre os braços e a estreitou com força—. Da próxima vez que pense partir, me avise.

         — Por que iria fazê-lo? —elevou o queixo com ar desafiante, mas olhou Roland de soslaio.

         —Porque te quero. E se lhe ocorresse algo... —fechou os olhos com força e sacudiu a cabeça—, morreria.

         Tamara dirigiu a Roland um olhar penetrante como uma espada. Quando olhou Eric, sua expressão se suavizou.

         —Sei, e sinto te haver preocupado —beijou-o e Roland desviou o olhar.

         Frederick tinha subido à escada e estava colocando as velas. Támara se voltou para ele.

         —É tarde, Frederick, por que não deixa o resto para outra hora?

         Frederick assentiu e baixou lentamente. Rhiannon tomou a mala, cruzou as dobre portas do dormitório e a deixou na cama, onde começou a desfazê-la.

         Eric entrou atrás dela.

         —Conseguir essas drogas foi um golpe de mestre, Rhiannon. É possível que possa encontrar a forma de anular seu efeito.

         —Isso era o que esperava —disse ela—. Consegui alguma informação enquanto estava no hotel. O homem que me atacou não pertence a DIP. E se diz chamar Lucien.

         Roland estava totalmente pendente dela. Enquanto Támara surgia ao lado de Frederick e Jamey a sair da casa, entrou no quarto.

         Rhiannon não o olhou. Continuou esvaziando a mala.

         —Ninguém da DIP sabe que estamos neste castelo. Só sabem Curtis Rogers e esse tal Lucien. Lucien se ofereceu para me capturar em troca de... certos privilégios.

         — Que classe de privilégios? —Roland não era capaz de permanecer em silêncio nem um segundo mais.

         Rhiannon apenas lhe dirigiu um olhar.

         —Pediu a Curtis que me sedasse e depois o deixasse só com ele durante o tempo que quisesse. Quer ser transformado. Suponho que é só o que quer me forçar a fazer. Mas não penso lhe dar essa oportunidade.

         Roland caminhou para ela.

         — E por que você? Por que não quer mais nenhum de nós?

         —Disse que porque sou a mais velha, Roland —era a primeira vez que se dirigia a ele.

         Eric pousou a mão no ombro de Rhiannon.

         —Todos cuidaremos de você, Rhiannon. E, por essa mesma razão, esperamos que não corra riscos desnecessários.

         —Não vou esconder-me em uma esquina, esperando que venham me buscar. Quando terminar com eles, desejarão não ter ouvido nunca meu nome.

         Támara posou a mão no braço do Eric e assinalou com a cabeça para a porta. Eric dirigiu a Roland um olhar compassivo antes de sair. Uma vez a sós com Rhiannon, Roland não sabia o que dizer.

         —Eu... me alegro de que haja tornado.

         —Só estou aqui pela Támara. Está assustada por Jamey e me pediu que a ajudasse a protegê-lo.

         Roland assentiu. Rhiannon abriu uma gaveta vazia de uma cômoda.

         —É possível que cheirem a velho. Faz muito que não os uso.

         —Comprei ambientadores de madeira —colocou um deles na gaveta—.        Não há dito nada das cortinas, tanto lhe desgostam?

         —Em verdade, estou começando a me alegrar de que esteja arrumando a casa. Agora parece mais... cálida.

         —Então suponho que não se importará que ponha uma colcha e umas almofadas a jogo.

         Roland sacudiu a cabeça lentamente.

         —Não, não me importa —sentia que lhe pesavam as pálpebras. Procurou no interior da jaqueta e tirou um dos frascos que lhe tinha entregue   Eric no dia anterior.

         Rhiannon franziu o cenho.

         —Possivelmente não deveria... Parece cansado.

         —Rhiannon, você tem certeza que tem que me demonstrar algo?

         Rhiannon baixou o olhar imediatamente.

         —Não, Roland, já não.

         Disse-o de uma forma tão cortante que suas palavras impactaram em Roland com uma força pasmosa. Estava renunciando a persegui-lo? E por que isso o fazia sentir-se tão absolutamente triste?

         —Melhor, porque você nunca teve motivos para fazê-lo. Jamais pus em dúvida sua capacidade, Rhiannon. Você tem força, seu valor, a valentia com a que enfrenta o perigo.

         — Sendo uma mulher, quer dizer?

         —Não, não é isso o que quero dizer. O que quero dizer é que eu não gostaria de ter que me enfrentar nunca contigo.

         Rhiannon deixou uma camisola negra em cima de uma cadeira e Roland teve a boa seca quando compreendeu que, provavelmente, pretendia ficar. Não pôde evitar imaginar-la nua através daquele tecido translúcido.      Rhiannon tomou alguuns objetos mais e os levou a armário.

         De costas para Roland, sacudiu a cabeça.

         —Não te compreendo, Roland. Se não me considerar inferior, por que eu te desagrado tanto?

         —Não me desagrada. O que eu não gosto de são algumas coisas que faz.

         Rhiannon terminou de pendurar sua roupa e se voltou para ele,

         — Que coisas?

         —Coisas que a põem em perigo. Como cantar em um botequim, por exemplo.

         —Mas Roland, foi muito divertido. E tem que admitir que não foi mau.

         Roland fechou os olhos. Realmente, aquela mulher era era exasperante.

         —Tem uma voz de anjo.

         Rhiannon pareceu resplandecer ante aquele elogio.

         — De verdade?

         —De verdade. Conseguiu prender a atenção de todo o mundo.

         —A única atenção que me interessava era a tua.

         —Então poderia ter cantado para mim em privado —Rhiannon abriu a boca, mas Roland continuou falando—. Não é só cantar. São os outros riscos que corre. Como paquerar com o Rogers a outra noite. Ou se colocar em sua casa esta noite. É que não se dá conta de que me aborreço porque temo por você?

         Rhiannon o olhou tão atentamente que, por um instante, Roland concebeu a esperança de que o estivesse escutando.

         —Se tivesse vindo te cantar no castelo, teria-me escutado?

         Roland levou uma mão à frente.

         —Não ouviu uma só palavra do que te disse.

         —Claro que sim. Você não gosta de minhas aventuras, você não gosta de minha conduta. E, certamente, tampouco você gosta de como me visto.

         —Em público, Rhiannon, não seria ruim ser um pouco mais discreta, só por segurança.

         —Sabia. E o que quer, que me vista com um saco? Isso você gostaria? Ou que me agache para que não se note tanto minha altura? Ou possivelmente deveria começar cortando o cabelo? Porque certamente é meu traço mais chamativo —se afastou dele a grandes pernadas e começou a procurar freneticamente nas gavetas.

         Roland a agarrou pelos ombros e a fez voltar-se para ele.

         —Já basta.

         —Não. Aqui, em alguma parte, há umas tesouras. Inclusive poderei te deixar que faça as honras, Roland. Só...

         — Já basta! Sabe que não é isso o que quero.

         —Não, não sei. Não te compreendo absolutamente. Se me visto e me comporto como uma viúva triste, estaria mais contente comigo, Roland? Encontraria-me mais desejável?

         — Quer saber o quanto desejável que a acho? —Roland a fulminou com o olhar. A fúria se fundia com a paixão, anulando toda sua sensatez—. Quer saber quanto a desejo? —repetiu.

         Baixou o olhar papra os olhos chamejantes de Rhiannon e soube que já era muito tarde para lutar contra a besta que encerrava em seu interior.

 

         Havia algo em seus olhos; algo que deveria lhe haver advertido. Mas Rhiannon não podia dominar seu aborrecimento.

         —Já sei. Não me deseja absolutamente. Quer alguém com meu aspecto, mas que seja tímida e reservada. Acariciou-me quando estava dormindo, Roland. Quando meu corpo respondia, mas não minha mente —sacudiu a cabeça frustrada—. Não é a mim que deseja.

         Roland posou as mãos em seus ombros e as deslizou ao longo de seus braços. Cravou o olhar em seus olhos e lhe rodeou as mãos. Depois lhe fez pressionar a palma da mão contra seu sexo e a moveu lentamente para cima e para baixo, sobre sua sólida e palpitante ereção.

         —Está enganada —suas palavras eram apenas um grunhido.

         Rhiannon sentiu um estremecimento de absoluto desejo. Fechou os olhos ante sua força e, imediatamente, Roland devorou seus lábios. Pressionou para deslizar a língua no interior de sua boca e lhe lamber o paladar e os dentes. Rhiannon queria abraçá-lo, mas a força de seus braços o impedia. Em qualquer caso, conseguiu posar as mãos na parte traseira de sua calça e, em questão de segundos, pôde também rodear a sedosa e rígida evidência de seu desejo. Apertou-a, acariciou-a e deslizou o polegar sobre a ponta.

         Roland gemeu no interior de sua boca e lhe rasgou a blusa com um rápido movimento. Estava frenético, era um homem poseído, pensou Rhiannon enquanto Roland lhe arrancava o prendedor e se equilibrava sobre seus mamilos até fazer que lhe tremessem os joelhos. Ela afundou as mãos em seu cabelo, urgindo-o a continuar.

         Roland ficou então de joelhos e tirou a sua saia. Pressionou os lábios contra a parte dianteira de sua calcinha, fazendo-a sentir a umidade de seus beijos através do tecido. Um segundo depois, tinha-lhe esmigalhado o objeto e continuava beijando-a.

         Rhiannon não ia ser capaz de permanecer de pé durante muito tempo.          Sentia as pernas como se fossem gelatina.

         Roland lhe abriu as dobras de seu sexo e o lambeu riscando nele um caminho de fogo. Rhiannon caiu ao chão e Roland foi imediatamente atrás dela. Pressionando as mãos contra a parte interior de suas coxas, a fez abrir as pernas para enterrar entre elas a cabeça.

         Era uma tortura; uma tortura doce e suculenta. A boca de Roland a devorava, sua língua a assaltava, suas mãos se empregavam em abrir a porta de sua fortaleza e Roland aprofundava sem piedade sua invasão.

         Rhiannon gritou no momento no que a conquista foi completa: mas mesmo assim, o assédio continuou, derretendo-a até convertê-la em uma cativa trêmula. Quando Rhiannon tentou lhe fazer afastar a cabeça, Roland lhe agarrou as mãos e continuou saqueando-a até que o bastião de sua prudência desmoronou.

         Depois foi subindo por seu corpo. Rhiannon lhe baixou as calças com as mãos recém-liberadas e Roland afundou nela sem um segundo de vacilação.

         Seu tamanho e sua força a fizeram ofegar. A boca de Roland cobriu de novo a sua e repetiu com a língua os movimentos de seu corpo enquanto se fundia nela. Rhiannon lhe apertou os ombros para lhe indicar que devia tranqüilizar-se. Aquilo não era o que ela tinha imaginado. Aquela não era a forma de fazer amor que ansiava dele. Mas Roland se limitou a lhe segurar as mãos. E o ritmo de seus movimentos se fez ainda mais agressivo.

         E em poucos segundos, Rhiannon arqueava as costas em resposta a suas investidas, enquanto sua língua empreendia uma erótica dança. Roland continuava movendo-se cada vez com mais força, até que abandonou seus lábios para procurar seu pescoço. Rhiannon jogou a cabeça para trás; sabia que estava aproximando-se do climax e o esperava ansiosa.

         Soube que Roland também estava a ponto de chegar quando o sentiu erguer-se dentro dela e notou o quente palpitar de sua semente. Roland afundou os dentes em seu pescoço e gritou. Rhiannon gemeu envolta no climax e todo seu corpo tremeu no momento da liberação final.

         Seus músculos começaram então a relaxar-se. Roland continuava lhe mordendo o pescoço. Rhiannon sentia os movimentos de seus lábios e sabia que continuava bebendo dela. Sua essência fluía para ele e seu corpo começava a debilitar-se. A letargia que arrastava a seus sentidos era tentador, chamava-a a abraçá-lo. Mas seria algo fugaz, sabia. Roland se deteria em qualquer momento e ela voltaria a recuperar a cabeça.

         Mas Roland não parou. Continuava sugando e sugando, e o êxtase de Rhiannon começou a tingir-se de medo.

         Empurrou-o pelos ombros.

         —Roland...

         Roland elevou a cabeça com inapetência. Em seus olhos continuava brilhando a paixão.

         —É deliciosa —sussurrou.

         Rhiannon o olhou consusa. Sabia que deveria lhe sorrir, mas se sentia como se estivesse a ponto de chorar. Por que? Não era isso o que ela queria?

         Roland ergueu as calças, levantou-se e lhe estendeu a mão.

         —Vamos, está a ponto de amanhecer. Começa a senti-lo, não é?

         Rhiannon sentiu um nó na garganta. Roland nem sequer se despiu. Seus olhos estavam carregados de luxúria, mas vazios de qualquer outro sentimento.

         —Sim, suponho que sim.

         Permitiu que a ajudasse a levantar-se, mas seus joelhos se negavam a sustentá-la em pé e se apartou cambaleante dele. Apoiou-se em um dos braços do sofá, inclinando-se como se estivesse bêbada. O cabelo velava seu rosto como uma cortina negra.

         Roland a agarrou pelos ombros e a fez erguer-se e voltar-se para ele.

         — O que houve?

 

         Rhiannon elevou o queixo e viu sua expressão de desconcerto. Deus santo, ele nem sequer percebia...

         Roland semicerrou então os olhos e fixou o olhar na ferida que lhe tinha feito no pescoço. A cor abandonou imediatamente seu rosto. Rhiannon o ouviu amaldiçoar e se sentiu cair.

         Deus, ele já sabia que dominar o demônio que levava dentro era impossível. Mas haver o demonstrado a si mesmo dessa forma... Invocou mentalmente a Eric. Rhiannon não podia morrer. Quando recordava como a tinha absorvido, segundo a segundo, sabia que não tinha bebido tanto para matá-la. Mas poderia havê-lo feito se ela não o tivesse detido a tempo. Naquele momento seu cérebro era alheio a toda lógica. Só experimentava sensações. A sensação de possui-la, o climax e o sangue dela enchendo seu corpo tinham afastado qualquer vestígio de moralidade de sua mente e tinham liberado o monstro que espreitava em suas vísceras.

         Ouviu que a porta se abria, mas não se voltou. Em troca, tomou a mão do Rhiannon entre as suas e a levou aos lábios.

         —Sinto muito, Rhiannon. Deus, sinto muito...

         —Roland, o que...?

         Roland soltou a mão dela e se voltou para seu amigo. Mas Eric não o estava olhando. Tinha o olhar fixo no rosto pálido do Rhiannon e nas duas minúsculas feridas de seu pescoço.

         — Que diabos você fez?

         Roland entreabriu os lábios, mas foi incapaz de falar. Depois, foi afastado bruscamente por Eric, que se inclinou sobre o rosto pálido de Rhiannon. Roland se voltou. A vergonha o consumia.

         —Eu não pretendia... perdi o controle, Eric. estive a ponto de...

         Eric o agarrou pelo braço, tirou-o da sala e fechou a porta atrás dele.

         — Em que diabos estava pensando? Como pode se permitir... ?

         —Não sei, droga! —Roland baixou a cabeça e se levou a mão à frente—Está bem?

         —Estará muito fraca quando despertar e provavelmente não será fatal. Mas, em qualquer caso, acredito que neste momento está muito melhor que você —sacudiu a cabeça—.Conte o que houve, Roland. Isto não é próprio de você.

         —Oh, claro que é próprio de mim.

         —Não seja ridículo. É o homem mais controlado que conheço.

         —Ah, sim? —Roland se aproximou da lareira e aspirou o forte aroma da lenha.

         —Alguma vez se perguntou por que sou tão sério, por que me mantenho tão isolado?

         —Não sei a que se refere —Eric se aproximou dele.

         Roland o olhou e assinalou para o dormitório.

         —Isso é o que acontece quando perco o controle, Eric. O anseio de sangue, seja na batalha ou na paixão, domina tudo. Já ia sendo hora de que se inteirasse de que seu melhor amigo é um demônio.

         —Eu nunca o vi assim.

         —O que até agora viu de mim era um verniz. Hoje me conhece pela primeira vez. E possivelmente o melhor seja que te leve a sua garota e o menino e se afastem de mim o mais possível antes de que lhes termine contagiando a todos.

         —Não seja ridículo —Eric deixou cair a mão—. Seguiremos falando esta noite. O sol está quase nascendo. Deveria ir dormir.

         Roland sacudiu a cabeça.

         —Não é necessário. Tornei a tomar sua poção.

         Eric franziu o cenho.

         —Quando?

         —Faz uma hora, possivelmente menos. Por quê?

         —Roland, sente-se e escute —sem esperar a conformidade de Roland, Eric o empurrou para uma cadeira.

         Roland se sentou, mas não lhe importava o que Eric pudesse dizer. Nada podia alterar a verdade.

         —Não foi culpa sua —Eric quase gritava—. foi que essa droga. Se houver algum culpado disto, esse sou eu —aproximou uma cadeira a de Roland e se sentou—. Essa droga tem certa tendência a aumentar a agressividade. Ou pelo menos a tinha nos animais com os quais a experimentei. Como em mim não teve o mesmo efeito, assumi que os imortais foram imunes a ele. Evidentemente, foi um grande engano.

         —É um grande amigo, Eric, ao tentar se culpar de algo do que só é responsável minha verdadeira natureza.

         —Não, Roland. Use seu cérebro e escute. Deveria ter notado que os vampiros mais velhos seriam mais suscetíveis aos efeitos negativos que os jovens. Da mesma forma que são mais suscetíveis a outros elementos como a luz do sol ou a dor. Não compreende? Foi essa droga que provocou tudo isto.

         —Realmente, não é capaz de ver-me tal como sou. Se a droga teve algum efeito, foi o de debilitar minha escassa capacidade de controle. A besta que há em mim é minha coisa.

         —Se isso é o que pensa, é um grande estúpido.

         Roland se levantou.

         —Esta conversa não tem sentido. Va dormir antes de que o sol te siga reaquecendo o cérebro.

         —Estarei lá embaixo, mas ao igual a você, ingeri essa droga ao amanhecer. Tinha entendido que nos alternaríamos. E esta conversação claro que tem sentido, e se não fosse tão teimoso, saberia.

         Roland não podia seguir suportando a lógica de Eric. Dirigiu-se para o salão, mas seu amigo o seguiu. Aos pés das escadas de pedra, Roland se voltou.

         —Se quiser que nos alternemos para fazer guardas, adiante. Mas deixa de me perseguir, Eric. Preciso estar sozinho.

         Roland subiu rapidamente as escadas. Felizmente, Eric não se moveu.

Roland chegou ao segundo piso, à entrada do apartamento do Jamey, e continuou subindo até o terceiro, até aquelas habitações que não havia tornado a utilizar desde que era mortal. As escadas terminavam bruscamente em uma porta de madeira que Roland empurrou. Entrou na armería, um enorme sepulcro circular sem janelas. A grandes pernadas, dirigiu-se para uma escada de madeira. Quando chegou ao final da escada, empurrou uma trampilla que dava acesso à habitação da torre. Ali encontrou uns fósforos em cima a mesa e esfregou uma delas contra a rugosa parede. Acendeu então as velas para iluminar a habitação.

Ao igual à de abaixo, aquela era uma habitação circular. Nas paredes havia uma série de frestas das que os arqueiros podiam disparar aos intrusos quando o castelo era assediado.

         Roland se deteve um instante no centro da habitação e se voltou lentamente. Todos seus quadros permaneciam a seu redor. O passado do tempo tinha estragado aqueles que tinha pintado sendo só um adolescente. Mas estavam também os retratos que tinha feito muito tempo depois. Os rostos de sua mãe e de seu pai. E o olhar acusador de seu irmão.

Sobre um cavalete, o retrato sem terminar do Rhiannon.

         Roland tinha ido até ali para destroçá-lo, para destroçá-los todos. Pretendia fazê-los migalhas. Ele não era um pintor, não era um artista. Não tinha o coração de um poeta, a não ser o de um vilão. Que direito tinha a conservar aquelas lembranças de um humano com alma? Eram falsos, mentiras.

         Tirou uma adaga da capa que levava a cintura, levantou-o e caminhou a grandes pernadas para o retrato de Rhiannon.

         Mas algo o deteve. Não sabia o que, mas se tratava de uma força mais capitalista que seu aborrecimento. Olhou para a imagem, que naquele momento não era mais que uma mescla de cores e formas vagas. Mas nela viu Rhiannon, viu seus olhos amendoados buscando-o, cheios de luz e calor. E com um soluço estrangulado, deixou cair a adaga ao chão.

***

A cabeça lhe palpitava e seu estômago parecia ter vida própria pela forma em que se retorcia dentro dela. Mas se sentia ligeiramente mais forte que quando despertou pela primeira vez e tinha encontrado Támara atendendo-a. Tinham-lhe dado de comer e, pouco a pouco, estava começando a recuperar suas forças.

         —Onde está Roland? —viu que Támara esticava o rosto quando lhe fez a pergunta.

         —Não sei. Eric me disse que passou o dia na sala da torre e saiu ao anoitecer. Ainda não tornou —a olhou aos olhos—. Esperava que estivesse aqui quando despertasse?

         —Só era curiosidade.

         Támara lhe acariciou a mão.

         —Não se sinta decepcionada, Rhiannon. Eric me disse que ele estava destroçado pelo que ocorreu —franziu o cenho—E o merece.

         —Tolices, Támara, estou bem. E não me diga que você não desfruta com essas pequenas dentadas nos momentos gélidos da paixão.

         —Bom, sim, mas... —respondeu Támara ruborizada.

         —Eu gosto de pensar que era tal seu desejo por mim que não foi capaz de conter-se. Realmente, foi bom.

         —Eric acredita que a culpa foi da droga. E se sente fatal.

         Rhiannon inclinou a cabeça para um lado.

         —E acha que é possível?

         —OH, sim, Eric é um autêntico gênio em questões de química —olhou Rhiannon—. Foi ... bonito?

         Rhiannon quase sorriu. Possivelmente o teria feito se não continuasse sentindo aquele doloroso desejo no centro de seu peito para o que não encontrava explicação.

         —Estive a ponto de explodir—respondeu com franqueza—. Faz muito tempo que o desejo, sabe?

         —Então por que vejo tanta tristeza em seus olhos? —Rhiannon pestanejou e desviou o olhar— Vamos, Rhiannon, se não falar comigo, com quem vai falar?

         —Meu corpo ficou satisfeito.

         —Mas?

         —Mas foi quase como se Roland estivesse sozinho enquanto se inundava dentro de mim. Como se eu não estivesse ali...

         —Claro, você queria ternura, abraços, conversação... compreendo.

         —Ternura? De onde tirou essas idéias? Sinceramente acha que sou o tipo de mulher que precisa de ternura?

         Tamara sorriu.

         —Roland não demora para voltar. Dê-lhe tempo.

         Exasperada pelas tolices daquela mulher, Rhiannon apartou os lençóis e se levantou. Aproximou-se do armário e tirou um par de jeans de desenho e uma blusa de cor azul elétrica.

         —Vai sair, é? —perguntou-lhe Támara.

         Rhiannon assentiu.

         —Sim, e será inútil que me diga que fique descansando. Sou imortal. É certo que agora mesmo me sinto como se me pudesse derrubar ao mais ligeiro golpe de vento, mas me passasse —se ajoelhou para procurar um par de sapatos com os que lhe resultasse fácil caminhar.

         —Eric me há dito que Roland se dirigiu para os bosques, justo atrás do muro.

         Rhiannon se voltou.

         —Está me lendo o pensamento, não?

         —Não tenho por que fazê-lo. Sou uma mulher.

         Tinha descansado durante muito tempo, disse Rhiannon enquanto cruzava a pradaria. O frio e a brisa úmida banhavam seu rosto e a lua cheia lhe iluminava o caminho. Não tentaria invocar Roland, nem tampouco localizá-lo sintonizando seus sentidos. Tinha a sensação de que este tinha saído com a única intenção de evitá-la no caso de querer buscá-lo.

         Ao final da pradaria, saltou o muro e entrou na escuridão dos bosques decidida a encontrá-lo. Não tinha a menor ideia do que queria lhe dizer, mas sabia que queria lhe dizer algo Támara se equivocava sobre ternura, mas tinha razão em falar. Precisava falar com Roland desesperadamente.

         O aroma dos rios era mais forte à medida que se aproximava deles. Uma neblina chapeada se elevava à altura de seus joelhos e as folhas e as fumaças em decomposição davam à terra a textura de uma esponja.

         Rhiannon parou; inalava profundamente todos os aromas que a noite lhe oferecia. O enjôo ia cedendo por momentos.

         Aproximou-se de uma porta de ferro forjado com um C de intrincado desenho entre suas grades. A porta chiou quando a empurrou. O vento aumentou, sacudindo os ramos das árvores, que se abriam permitindo que a luz da lua banhasse aquele pequeno cemitério.

         Ali encontrou Roland abraçado a um obelisco com um emblema.

         —Então, me encontrou —disse Roland sem voltar-se.

         —Tinha que fazê-lo —deu um passo para ele.

         Rhiannon conhecia bem aquele emblema. Era o mesmo leão rampante que levava Roland em seu escudo quando o tinha conhecido séculos atrás, à beira da morte em um campo de batalha.

         —É um de seus parentes?

         —Meu pai —se endireitou e assinalou a cruz que tinha ao lado—.E minha mãe. Estremeço ao pensar o que diria minha mãe se pudesse ver no que me tornei.

         Rhiannon queria protestar, mas tinha a sensação de que era preferível deixá-lo para depois. Aproximou-se de outras três lápides idênticas às da mãe.

         Roland caminhou atrás dela e posou a mão sobre o orgulhoso cervo que tinha gravado na primeira.

         —Albert, o caçador —disse brandamente.

         Rhiannon podia sentir a dor que emanava de seu corpo enquanto se aproximava da seguinte lápide e tocava a um cavaleiro no lombos de um cavalo encabritado.

         —Eustace, o guerreiro —lhe disse.

         Depois olhou por volta da terceira, em que aparecia um navio em meio de um mar picado.

         —Pierre, o navegante. Meus irmãos, Rhiannon, as últimas vítimas de minha crueldade.

         —...

         —Queria ouvir o resto da história, verdade? —olhou-a com amargura—Se lembra do açougue em que acabei com os homens que mataram Sir Gareth?

         —Você era pouco mais que um menino e se deixou levar pela tristeza.

         Roland assentiu.

         —Sim, isso foi o que disse a outra vez. Mas, sem dúvida alguma, depois de haver experimentando em carne própria minha faceta mais violenta, terá trocado de opinião.

         —Eric acredita que tudo foi um efeito secundário dessa droga.

         —Eric prefere acreditar qualquer coisa à verdade —se voltou— Acha que poderá suportar o resto da história, Rhiannon, ou preferiria deixá-lo agora? Não tenho nem idéia de por que, mas algo me impulsiona a lhe contar isso Talvez precise ver seu rosto quando se der conta realmente de quem sou.

         —Sei quem é. E se me quer contar isso estou disposta a te escutar.

         —Espero que esteja segura, Rhiannon. Porque quando começar, terá que me escutar queira ou não.

         —Está tentando me assustar, Roland? Me afastar de você para que não tenha que liberar a dor ou exorcizar seus demônios?

         —Não é possível exorcizar esses demônios. Formam parte de mim. E se não estover assustada depois do que te fiz, é louca.

         —Então estou louca —Rhiannon passou por diante dele e se sentou em uma colina, com as costas apoiada no tronco de uma árvore—. Conte.

 

         Estava louca. Tinha que estar louca para ficar ali. Apesar dos remorsos que continuavam fluindo em sua mente, Roland era sexualmente consciente dela. Seu corpo desejava unir-se a ela uma vez mais, encontrar a gostosa liberação que tinha estado a ponto de fazer pedacinhos o gelo que cobria seu coração. Bastava-lhe olhar suas mãos para recordar acariciando sua ereção. E a vista de seus lábios provocava a lembrança do calor e a umidade que tinha encontrado atrás deles, o sabor de sua língua. Não levava nada debaixo da blusa de seda. E Roland tirou o chapéu perguntando-se se o roçar do tecido contra os mamilos os excitaria até fazê-los adquirir a dureza de uma pedra...

         —Roland —a voz de Rhiannon foi pouco mais que um suspiro.

Estendeu-lhe a mão e puxou-o para que se sentasse a seu lado.

         —Conte-me tudo — falou de novo.

         Roland assentiu.

         —Esta história não é nada agradável, Rhiannon —Roland tomou ar e se preparou para enfrentar-se às reações dela —. Depois da batalha que te falei, eu só queria retornar para casa, renunciar à espada e me afastar para sempre da violência. Mas quando cheguei, encontrei os inimigos de meu pai no castelo. O barão Rosbrook e seu clã se deram procuração dele —fechou os olhos ao recordá-lo.

         Rhiannon posou a mão em seu rosto.

         —E sua família?

         —Tinham-na assassinado.

         Mas aquelas palavras não podiam descrever como se havia sentido aquele dia. Tinha o aspecto de um homem, mas com os medos e o coração de um menino, tinha cruzado o pátio a tempo de ver como desprendiam seu pai da forca e arrojavam seu cadáver sobre um carro, em cima de outros cadáveres. Ficou paralisado, incapaz de acreditar que no que estava vendo enquanto o carro passava ante ele. Como um homem em transe, tinha seguido ao carro até que este se deteve ao final de um aterro. E, um a um, tinham arrojado todos os cadáveres de sua família.

         Começou a tremer como o tinha feito então. Queria afastar aquela lembrança, mas era incapaz de fazê-lo. Seus pais, seus irmãos, eram jogados no vazio como se fossem lixo.

         —Meu Deus, Roland —sussurrou Rhiannon—. Não tinha nem idéia. Sinto muito.

         —Eu também sinto, Rhiannon. Se tivesse estado em casa, poderia havê-lo evitado.

         —Como? Roland, era um menino, um menino que não tinha recebido nenhuma preparação como cavaleiro quando partiu. O que poderia ter feito, além de morrer você também?

         Roland sacudiu a cabeça enquanto batalhava contra as lágrimas.

         —Alguma vez saberei, não é? —conseguiu tragar o nó que tinha na garganta—. Desgraçadamente, tinha saído. Tinha sido treinado, tinha participado de batalhas e tinha cobrado fama como feroz lutadora graças à família Gareth. Antes não poderia ter feito nada, mas depois....

         —Se a morte do Gareth te enfureceu, ver assassinar a sua família foi muito pior.

         Roland assentiu, recordando aquela experiência.

         —Aconteceu em um instante. Passei do estado de choque a uma tristeza indescritível, e dali a uma raiva e a uma sede de vingança que estiveram a ponto de me deixar louco. Demorei semanas, mas consegui reunir um pequeno exército. Alguns eram amigos de meu pai, outros, a maioria, cavalheiros que estavam a soldo da família Gareth. Ajudaram-me por uma questão de honra. Eu tinha vingado a morte de Gareth e de seus cavaleiros, de modo que eles me ajudariam a vingar a minha família.

         —E?

         Roland a olhou nos olhos, desejando não ter que continuar.

         —Alguns dos Rosbrook conseguiram escapar, outros morreram. Até que só ficou um deles. Uma jovem que não era maior que eu.

         Viu que Rhiannon fechava os olhos e compreendeu que já estava antecipando o que ia contar a seguir.

         —Chamava-se Rebecca e tinha o rosto de um anjo. Cachos loiros e enormes olhos azuis. Era absolutamente inocente. Pedi que a levassem aos calabouços. Ao pouco tempo, arrependi-me, não queria que sofresse pelo que tinha feito seu pai e a mandei a uma das salas do terceiro piso. Pretendia devolver-lhe a seus parentes, mas não demorei para descobrir que não ficaria nenhum. Ela, é obvio, detestava-me pelo que tinha feito.

         —E o que foi feito dela, Roland?

         Roland tomou as mãos de Rhiannon e as cobriu com as suas. Escrutinou seu rosto, esperando a condenação que, estava seguro, logo apareceria.

         —Decidi que o melhor que podia fazer com ela era casá-la. Mantê-la no castelo e tentar emendar minhas falhas convertendo-a em minha esposa, compartilhando com ela minha riqueza e meu sobrenome.

         Rhiannon pestanejou.

         —Estava apaixonado por ela?

         —O amor é um sentimento que não sou capaz de sentir. Nem sequer o era então. Crê acaso que os animais sabem amar?

         Rhiannon entreabriu os lábios, mas os voltou a fechar.

         —O que disse ela de sua proposição?

         —Não foi uma proposição, mas uma ordem. Tinha que casar-se comigo se não quisesse voltar para sempre para os calabouços.

         —E o que escolheu?

         —Nenhuma das duas coisas. Atirou-se da torre.

         —Oh, Deus meu —Rhiannon fechou os olhos e Roland notou a umidade que aparecia em suas espessas pestanas.

         —Agora já sabe —baixou a cabeça e, um segundo depois, sentiu a mão do Rhiannon enredando-se em seu cabelo.

         O fato de que o tocasse depois do que lhe tinha contado o surpreendeu; e que o acariciasse com tanta ternura ia além de sua capacidade de compreensão.

         —Juro-lhe que não pretendia lhe fazer mal, Rhiannon. Simplesmente, perdi a cabeça. Permiti que minha natureza violenta se fizesse com o controle. Sinto-o muito mais do que possa imaginar.

         —Sei. E também sei que o sentiu depois de que essa garota se suicidara e, mais que provavelmente, também depois de cada uma das batalhas que liberou.

         Roland sacudiu a cabeça.

         —Converti-me em um mercenário, em um lutador a salário. Deixei o castelo em mãos de seus cuidadores. Não podia suportar estar aqui, com todos os enganos do passado me perseguindo em cada aposento.

         —Ah, mas agora está alterando a história, Roland. Porque eu soube de você muito antes que você me conhecesse. Sim, foi um cavaleiro mercenário, mas sempre lutava ao lado dos mais débeis e da justiça. Eu soube que foi um eleito; estava fascinada por você — Roland franziu o cenho como se não acreditasse—. É certo. Isso foi anos depois de que fosse nomeado cavaleiro, é obvio, e não sabia nada dos horrores que lhe tinham ocorrido em sua juventude. Tinha ouvido falar de seu valor e decidi te buscar. Durante algum tempo, estive-lhes seguindo e a seus homens.

         —Viu-me lutar?

         —Sim, na batalha de Lorraine, a meia-noite, para tentar liberar Lady a Claire. E também em Normatizam-día, quando ajudou os homens cansados no campo de batalha, fossem amigos ou inimigos. Sei que exagera quando fala de sua sede de sangue.

         —Rhiannon, por que nunca me tinha contado isso?

         Rhiannon encolheu os ombros.

         —Temia que risse de mim. Uma vampiresa encaprichada de um homem ao qual nem sequer conhecia. Queria estar com você inclusive então. Jamais tinha visto um homem tão forte, tão valente. Estava apaixonada por você, Roland. Depois, se inteirou de que Bryan, o filho de Gareth que tinha salvado sendo um bebê, necessitava-te e correu em sua ajuda.

         Roland assentiu.

         —Sim, seu castelo estava sendo sitiado e não podia resistir muito mais a seus atacantes. Enviou um mensageiro a me avisar.

         —E você foi ali sabendo de que não tinha muitos homens e além disso estavam cansados depois da última refrega. Com poucos mantimentos e sem ter reparado as armas, foi até lá. Avançava de noite, de modo que pude te seguir.

         —A proporção entre nossos inimigos e nós era de dez contra um.

         —E mesmo assim, atacou-os, mas só depois de ter liberado os homens que desejavam partir. Poucos o fizeram. A batalha foi a mais violenta que vi em minha vida, Roland. Estava muito assustada por ti. Conseguiu derrotar seus inimigos, mas caiu. Encontrei-te agonizando, a ponto de morrer, recorda-o?

         Roland assentiu. Recordava vividamente a primeira vez que a tinha visto. Uma dama misteriosamente bela com um vestido negro se inclinava sobre ele e lhe sussurrava que viveria, que não permitiria que morresse. Recordava suas lágrimas umedecendo seu rosto e ajudando-o a superar a dor.

         —É obvio que me lembro. Estava a ponto de morrer. E então você me transformou.

         —Sabendo que merecia esse presente. Que o merecia mais que qualquer um de nós, possivelmente. Mas está acontecendo a eternidade lamentando seus enganos e te condenando por sua natureza apaixonada.

         Roland se levantou e elevou o olhar para as estrelas.

         —Você o chama paixão. Eu o chamo demônio.

         Rhiannon estava de pé, a seu lado, antes de que Roland estivesse consciente de que se moveu. Tinha talento para isso, para mover-se sem fazer nenhum ruído, como se flutuasse. Colocou-se frente a ele e lhe emoldurou o rosto com as mãos.

         —Já é hora que esqueça o passado.

         O coração de Roland se contraiu dolorosamente em seu peito.

         —Não posso.

         —Sim, claro que pode. Há muitas coisas para você no presente. Muitas coisas que se está negando a si mesmo.

         —Não há nada, Rhiannon.

         —Há Jamey.

         Roland deixou escapar uma respiração entrecortada.

         —Sim, há Jamey. E estou começando a pensar que tinha razão. É possível que Jamey esteja melhor com seu pai biológico. Necessita uma vida normal, não uma vida cheia de perigos e de seres imortais.

         —Mas inclusive no caso que pudesse localizar seu pai, teria que continuar vigiando-o. E sempre existe a possibilidade... —mordeu o lábio inferior e os olhos se lhe encheram de repente de lágrimas—... a possibilidade de que seu pai não o queira —deixou cair os braços a ambos os lados de seu corpo e desviou o olhar.

         —Rhiannon, o que...?

         —E embora ficasse sem o menino, tem amigos. Eric e Tamara o adoram.

         —Eles têm o um ao outro.

         —E eu? —olhou-o enquanto tomava suas mãos—. Não me diga que não esqueceu toda sua dor quando fez amor comigo. Não me diga que não sentiu a mesma alegria de estar vivo que me fez sentir .

 

         Roland fechou os olhos.

         —Não fiz amor contigo. Praticamente a violei.

         —Possivelmente fará melhor da próxima vez.

         Roland ficou olhando fixamente os poços infinitos de seus olhos.

         —Não pode haver próxima vez, Rhiannon.

         —Claro que pode. E haverá - pressionou seus lábios entreabertos contra sua boca e deslizou a língua em seu interior.

         Reunindo até a última gota de seu vacilante controle, Roland se separou dela e deu meia volta.

         —Não.

         —Mas Roland, eu...

         —Não, Rhiannon. Ainda não preende, verdade? —passou as mãos nervoso pelo cabelo—. Em você há muitas coisas que me recordam o homem que eu era. A impulsividade, a paixão, sua maneira de rir do perigo... Maldita seja, Rhiannon! Nunca me resulta mais difícil controlar minha natureza que quando estou com você. Sua mera presença remove em minha alma as qualidades que constantemente luto por suprimir. Às vezes. Rhiannon, acredito que você é meu castigo. Minha maldição.

         Olhou-a então e parou. Viu uma dor nos olhos de Rhiannon como não tinha visto nunca. Mas mesmo assim, seus olhos permaneceram secos. Sem dizer uma só palavra, Rhiannon deu meia volta e se afastou para a porta de ferro forjado. Mas parou bruscamente no momento em que Eric apareceu detrás da porta, emergindo dentre a névoa como um fantasma.

         —Rhiannon, menos mal que a encontro. Roland está...?

         —Olá, Eric — chamou Roland.

         Deu um passo adiante sem apartar o olhar do rosto aflito de Rhiannon. Havia tornado a lhe fazer mal. Um mal muito grande naquela ocasião.

         —Me perdoe —se desculpou Rhiannon, e entrou na parte mais densa do bosque.

         Roland começou a caminhar atrás dela, mas Eric o impediu, posando a mão em seu ombro. Na distância, ouviu o Rhiannon vomitando violentamente. Roland apartou a mão ao Eric e voltou a caminhar atrás dela.

         —Maldito seja, Roland, me escute. Jamey se foi.

         Roland parou,. Uma mão gelada parecia estar pressionando seu peito.

         —Foi-se? O que quer dizer com se foi?

         —Foi-se, partiu —Eric procurou em seu bolso e tirou um pedaço de papel que estendeu a Roland— Encontramos isto em seu quarto.

         Roland olhou na direção em que Rhiannon saíra. Já não se ouvia nada. Tentou procurá-la com o pensamento, mas Rhiannon se fechou em sua mente.

         —Irei eu —disse Eric brandamente—. Leia essa maldita nota e depois nos veremos no castelo.

         Roland o observou partir. Continuando, alisou a nota e a abriu com dedos trementes.

         “Querida Tamara, tenho que partir.

         Por favor, não tentem me localizar. Agora sou um homem e posso cuidar de mim mesmo. Mas enquanto seguir com Roland, pensará que tem que tomar conta de mim. Tudo está se repetindo. Curtis vornou, a DIP está deixando todo mundo louco e tudo por minha culpa. Eu tive a culpa que machucassem Rhiannon no dia do jogo. E agora sei que também foi minha culpa o que sofreu ontem à noite. Ouvi você falando com Eric; não sei o que aconteceu, só sei que Roland lhe fez mal por culpa dessa estúpida droga que estava tomando para manter-se acordado. Se não tivesse sido por mim, não precisava tomá-la.

         Diga a Eric que deixe a química. Sempre está tentando trocar o que ele é, o que todos vocês são. Diga-lhe que acredito que são quase perfeitos. São melhores que todas as pessoas normais que conheci. Exceto minha mãe, claro.

         E não se preocupe por esses tipos que me estão procurando. Não sou um estúpido, sei me cuidar. Escreverei a vocês quando descobrir onde quero viver para que saibam que estou bem.

         Gosto de verdade de todos, mas especialmente de você, Tam. Sempre foi como uma irmã para mim. Sentirei sua falta, mas tenho que fazê-lo. Tente me compreender.

Sempre seu,

Jamey.”

 

         Roland fechou os olhos lentamente e enrugou a carta.

         —Maldita seja.

         Rhiannon se esticou ao sentir que alguém se aproximava, mas só era Eric. Engliu o nó que tinha na garganta e converteu seu rosto em uma inexpressiva máscara. Não queria que Eric visse seu coração feito em pedacinhos. Diria imediatamente a Roland. E ela preferia morrer a que Roland soubesse o mal que lhe tinha feito.

         Sua maldição. Possivelmente tivesse razão. Tinha sido a maldição de seu pai e agora, a de Roland. Tinha sido rechaçada pelos dois únicos homens pelos quais ansiava ser aceita. Repelida pelo homem que amava.

         Amava-o?

         Tolices. Ela não amava Roland. Não era tão boba para enredar seu coração em algo que só era atração física. Elevou o olhar para olhar a Eric.

         —Está bem? —perguntou-lhe ele.

         —Parece-lhe que não estou?

         —Estava vomitando, ouvi.

         —Só eram náuseas. Uma reação normal depois de... o que passou. Nada mais, asseguro-lhe.

         Eric entrecerrou os olhos e Rhiannon soube que não acreditava.

         —Bom, me diga o que houve. Não acredito que tenha vindo até aqui porque esteja preocupado por minha saúde.

         —Não, embora possivelmente deveria havê-lo feito —a agarrou por braço e escrutinou seu rosto com expressão preocupada—.Venha comigo, explicarei isso no caminho.

         Quando chegaram ao salão, Rhiannon já estava a par da gravidade da situação. E sua preocupação por Jamey agiu como uma barreira contra a dor.

         Tamara tinha os olhos irritados e o rosto molhado de lágrimas.      Frederick estava sentado no chão, com os joelhos tão perto do queixo que quase o tocavam, e parecia que também ele chorado.

         Rhiannon se aproximou de Támara e a estreitou em seus braços.

         —Não sofra tanto, encontraremos esse pintinho em pouco tempo.

         —Como? Nem sequer sabemos por onde começar.

         —A pantera também se foi —lamentou Frederick—. Deveria havê-lo vigiado melhor. Tudo foi minha culpa. O que ocorrerá se esses homens maus apanham Jamey? O que lhe farão?

         —Nenhum homem mau vai apanhar Jamey —o tranqüilizou Eric.

Tamara se endireitou.

         —Não foi sua culpa, Frederick. Supunha-se que todos tínhamos que cuidá-lo.

         —Sou um estúpido —disse Frederick brandamente—. Se não fosse tão tolo...

         Rhiannon se aproximou dele e o fez levantar-se.

         —Freddy, não é estúpido coisa nenhuma. Não quero que volte a dizer essa tolice. Jamey escapou de todos, acha que nós somos estúpidos?

         Frederick negou com a cabeça.

         —Tem razão. Não somos estúpidos e você tampouco. E agora, já chega de chorar e lamentar-se, não posso suportá-lo. E lhes estão esquecendo do mais importante.

         —Que é? —era a voz de Roland. Permanecia ao lado da porta e procurava os olhos de Rhiannon como se estivesse desesperado por conseguir sua ajuda.

         —Que sou Rhianikki, a filha do faraó, princesa do Egito. Fui uma sacerdotisa de Isis e conheço as palavras de Osiris. Senti arder a areia do deserto sob meus pés quando as pirâmides acabavam de ser construídas. Minha alma armazena a sabedoria de séculos e não há nada, nada, que não possa fazer.

         Observou a reação de Roland ante seu discurso, esperando encontrar o habitual cepticismo de seu rosto. Mas, em troca, acreditou detectar alívio. E, sem dúvida alguma, era esperança o que alagava os olhos de Támara.

         —O que deveríamos fazer, Rhiannon?

         —Nós não, Támara, mas você. É a que está mais unida a Jamey. Tinham um vínculo antes que Eric te transformasse.

         —Sim, mas...

         —Nada de mas. Só tem que fazer é se concentrar no menino. Busque-o com a mente.

         —Não posso, só o sinto quando está tentando aproximar-se de mim. Ou quando tem problemas.

         —Claro que pode. Só se necessita do poder da mente. Eu te ensinarei o caminho, Tamara —Rhiannon se voltou para Roland—. Necessitamos uma sala tranqüila, uma em que não haja auras externas.

         —As habitações do terceiro andar faz séculos que não se utilizam.

Rhiannon assentiu e se voltou para o Frederick, que necessitava, desesperadamente, fazer algo.

         —Freddy na habitação de Roland há uma cômoda ao lado da cama; ali encontrará duas velas especiais, um pacote de incenso e um recipiente de prata. Pode trazer isso para mim?

         Frederick se levantou para ir buscá-los.

         —Velas e incenso? —riu Eric—. Que tipo de tolice é essa? Deveríamos ir procurar o menino.

         —Faz o que queira, Eric. Saia para buscá-lo e tente aliviar seu coração. Mas estará perdendo o tempo. Antes temos que saber onde está.

Eric sacudiu a cabeça.

         —Não lhe tome como algo pessoal, Rhiannon. Sou um homem que acredita na ciência, não em abracadabras.

         —Sem dúvida alguma, também foi um humano que não acreditava na existência de uma raça de seres imortais que se alimentam de sangue.

         Eric baixou o olhar para o chão.

         —Eric, escute-a —disse Tamara brandamente—.Eu confio em você, Rhiannon. Diga o que tenho que fazer.

         Eric elevou os braços ao céu e se voltou para Roland.

         —Vai suportar isto?

         —A menos que tenha uma idéia melhor ou saiba por onde começar a procurar...

         Frederick retornou com o incenso e as velas. Rhiannon tomou e subiu com a Tamara a escada de pedra até chegar à habitação do terceiro piso. Roland e Eric as seguiram. Durante uns segundos, Rhiannon parou no meio da escuridão para examinar a habitação com sua visão sobrenatural. Continuando, colocou-se no centro, ajoelhou-se e esperou que Tamara se reunisse com ela.

         —Agora quero que se deite —disse enquanto colocava as velas e colocava um pouco de incenso no recipiente de prata.

         —Poderia procurar uns fósforos —se ofereceu Roland.

         —Silêncio! —ordenou Rhiannon em tom autoritário, e Roland não voltou a dizer mais nada.

         Rhiannon se deitou também de costas; à direita do ombro, tinha uma vela de cor vermelho-sangue. Perto da cintura, um prato de prata e uma pequena quantidade de incenso. Ao lado do quadril, colocou a segunda vela. A seu lado permanecia Támara.

         Rhiannon fechou os olhos.

         —Relaxe, Tamara. Fecha os olhos e afaste o medo de sua mente. Sinte como começa a abrandar o chão, inale suavemente, profundamente, e reserve a respiração nos pulmões. Absorve os nutrientes do ar antes de soltá-lo. Lentamente. Assim. Agora solte-o tudo, até que os pulmões fiquem completamente vazios. E agora, espera, espera... inale uma vez mais. Lentamente —mantinha a voz baixa, em um tom quase hipnótico—.É como se estivesse descendo, sente que afunda, não?

         —Sim.

         —Agora vamos procurar Jamey. Coloca sua imagem diante de seus olhos. Se rodeie da lembrança de sua fragrância. Se concentre em cada um dos seus cachos, no som de sua risada, no calor de seu contato. Assim o encontrará.

         Roland permanecia ao lado de Eric, apoiado contra a parede e observando aquele estranho ritual. Sim, tinha mimado em dar ao Rhiannon uma oportunidade, mas principalmente porque tinha medo de abrir a boca para protestar. Parecia feri-la cada vez que falava com ela. E, certamente, não porque fora essa sua intenção. O céu sabia que Rhiannon não o merecia. Tinha compartilhado com ela seu mais terrível segredo e Rhiannon, longe de lhe ter medo, tinha-lhe devotado consolo.

         Arrependia-se de lhe haver causado tanta dor, mas pelo menos, os sentimentos de Rhiannon para ele pareciam haver-se esfriado. E algum deles tinha que manter as distâncias se não queriam voltar sofrer.

         À medida que foram passando os minutos, até Roland começava a duvidar de sua eficácia. Estava ansioso por sair para procurar o garoto e preocupado pela possibilidade de que pudesse havê-lo apanhado a DIP. Mas de repente, as velas que havia entre as duas mulheres começaram a acender-se. Um segundo depois, o incenso começou a queimar.

 

         Não encontrou nada. Pelo menos nada do que queria. Rhiannon se sentou bruscamente e apagou as velas com os dedos. Massageou as têmporas e suspirou.

         Aquela tinha sido a casa de Rebecca. A habitação da jovem que se atirou pela janela tentando escapar de seu matrimônio com Roland. As imagens daquela adorável criatura fluíam na mente de Rhiannon, lhe impedindo de concentrar-se em Pandora. Havia algo que inquietava o espírito de Rebecca, algo que a incomodava. Não estava em paz.

         —Rhiannon?

         Rhiannon elevou o olhar para Roland.

         —Sinto-o — respondeu.

         —Está em um carro.

         A voz de Tamara os sobressaltou os três. Permanecia muito quieta, como se temesse que ao mover-se se apagassem as imagens de sua mente.

         —Está em um carro de cor negra. Leva uma bolsa azul no regaço, com um pouco de roupa e um pouco de dinheiro. E também as botas de futebol         —Detrás dizer aquela frase, fechou de novo os olhos.

         Eric deu um passo adiante, mas Rhiannon elevou a mão para detê-lo.

         —Tamara, quem conduz o carro?

         —É um homem muito grande, como um lutador. Tem o cabelo muito longo e o leva amarrado —franziu o cenho— E tem tatuada uma cobra no braço.

         —Lucien —sussurrou Roland.

         —Pode nos dizer em que direção conduz, Tamara?

         Tamara negou com a cabeça.

         —Há montanhas com neve nos picos —Tamara se levantou lentamente e Eric se aproximou dela para ajudá-la a levantar-se—. É o mesmo homem que atacou Rhiannon, verdade?

         Eric assentiu.

         Rhiannon jamais tinha visto tanta fúria no rosto de Tamara.

         —Se ele fizer algum mal a Jamey, mato-o —falava com calma, com a voz firme.

         Dirigiu-se para a porta e Eric correu atrás dela.

         —Olhe, nunca a tinha visto assim.

         —Eu sim —respondeu Roland brandamente—.Mas sempre em ocasiões nas quais o garoto estava ameaçado.

         Rhiannon se voltou para a porta e os observou partir. Estava a sós com Roland, compreendeu de repente. Tragou o nó que tinha na garganta.

         —Esta era sua habitação, verdade?

         Roland olhou a seu redor e assentiu.

         —Como soube?

         —Sinto sua presença. E não te odeia tanto como você crie, sabe?

         —Isso sim que não me posso acreditar isso.

         —Não me importa que o creia ou não. Simplesmente pensei que deveria sabê-lo se voltou para partir, mas Roland a agarrou por ombro.

         —Não pretendia te ferir com o que te disse no cemitério. Se o tiver feito, sinto muito.

         —É preciso mais que palavras para me causar dor. Agora temos que encontrar esse menino, Roland. E esta conversação nos está atrasando.

         Roland ia sentado no assento dianteiro do carro alugado do Rhiannon com um mapa no regaço. Dos quatro, ele era o que estava mais familiarizado com a zona e sabia que as únicas montanhas nevadas que se encontravam o suficientemente perto como para que Lucien as tivesse alcançado em nada de tempo estavam na direção em que nesse momento viajavam.

         Eric dirigia e Rhiannon e Tamara foram no assento de trás. Era tal a tensão que dentro se acumulava que o carro parecia reverberar. Ao final, foi Eric que rompeu o gelo.

         —Acredito que te devo uma desculpa, Rhiannon.

         —Por que?

         —Por não haver tomado a sério a meditação. Deveria havê-lo feito.

         —Não renuncie a seu ceticismo tão facilmente. Ainda não encontramos Jamey.

         —Mas vamos atrás dele. A sensação da Tamara foi muito forte para que seja um engano.

         Roland sacudiu a cabeça.

         —Admita, Eric. conseguiu te enganchar quando viu que as velas se acendiam.

         Eric sorriu e olhou Rhiannon.

         —Tem razão, foi uma cena muito convincente.

         —Um truque muito singelo para um imortal, Eric. Ensinarei a fazê-lo. Se quiser que te seja sincera, normalmente acendo as velas de uma forma muito mais normal, mas estava zangada e queria te dar um castigo.

         Roland olhou de esguelha a tempo de ver a expressão de surpresa de seu amigo.

         —É, funcionou —Eric franziu o cenho e colocou o espelho retrovisor para poder lhe ver o rosto—. Disse que me ensinará a fazê-lo?

         —Você já se familiarizou com a força física que acompanha a imortalidade, mas esse dom vem acompanhado também da força psíquica. O de acender as velas consiste somente em concentrar-se nas mechas. Ambas as forças têm um grande potencial e, combinadas, podemos conseguir proezas que nem sequer eu obtive. Mas ouvi dizer que alguns que o conseguiram.

         Roland inclinou a cabeça.

         —Há coisas que é preferível deixar em paz.

         —É obvio, como as cobras ou o vulcões em erupção. Mas não isto.

         Eric alargou seu sorriso.

         —E me diga, Rhiannon, de que proezas falas?

         —Uma é a capacidade de voar. Eu estou a ponto de consegui-la.          Agora mesmo sou capaz de permanecer no ar durante um mímico.

         Roland se voltou então para ela.

         —Pelo amor de Deus, Rhiannon! Não tinha a menor ideia de que estava brincando com essas tolices. Va se matar!

         Rhiannon entrecerró os olhos.

         —Se me matar, será meu problema —olhou de novo Eric—. A verdade é que os treinamentos são terríveis. Só sou capaz de me manter no ar uma vez cada noite e normalmente termino muito dolorida para fazer nada além de me deitar e esperar que sarem as feridas.

         —Está brincando com a sorte —acusou Roland—. Suponha que uma noite está muito ferida para sarar antes do amanhecer.

         —Suponho que nesse caso morreria, não?

         Estava tentando irritá-la, pensou Roland. Suas palavras estavam cheias de dor e amargura.

         —E a outra proeza? —atravessou Eric.

         —Ah, essa sim que te surpreenderá. Disseram-meo que há alguns que são capazes de adotar a forma que desejem. Há alguns que tomaram a forma de um corvo, de um lobo ou inclusive de um morcego.

         Roland notouentão que Rhiannon tinha sido capaz de capturar até a atenção deTamara.

         —Está de brincadeira —disse com os olhos arregalados - Morcego?

         —Bom, eu gosto de pensar que a pessoa que me contou tem senso de humor e era uma brincadeira. Porque, podendo converter-se um no que queira, a quem ocorreria adotar a forma de um morcego?

         —E quem é esse imortal com tantos talentos? —perguntou Eric.

         —Chama-se Damien. Dizem que é mais velho e mais poderoso que qualquer de nós. Mas eu jamais o buscaria. Não tenho vontade de me encontrar com ele.

         —Por que não? Eu adoraria falar com ele.

         Rhiannon baixou deliberadamente a voz, Roland estava seguro.

         —Lembra do truque que fiz com as velas? Pois se comenta que ele é capaz de fazer o mesmo com as pessoas, sejam mortais ou imortais.

         Tamara lhe deu uma cotovelada.

         —Está tentando nos assustar —olhou para Roland—. Nada disso é certo, não, Roland?

         Roland suspirou.

         —Por isso eu sei, tudo isso é verdade, embora eu nunca o tenha visto.

         Eric dirigiu a Roland um olhar acusador.

         —Por que nunca me falou disto?

         —Como te disse antes, há coisas que é preferível deixar em paz. Teria mesmo algum interesse em localizar esse homem que pode te reduzir a cinzas?

         —Sinceramente Roland, é tão... —Rhiannon se interrompeu em meio da frase e todo seu corpo pareceu esticar-se—. Pare o carro, Eric! Pare!

         Eric pisou no freio com força. As rodas chiaram sobre o pavimento enquanto tentava aproximar-se da sarjeta. Rhiannon estava fora do carro antes que tivesse chegado a detê-lo por completo. Como uma gazela, saltou a mureta e entrou no bosque.

         Roland correu atrás dela sem saber o que esperar. Sabia que Eric e Tamara corriam atrás dele, mas todo seu ser estava concentrado no Rhiannon. Havia sentido o golpe de seu impacto como se tivesse sido algo próprio, mas a vampiresa estava tão fechada a ele desde que tinham falado no cemitério que não tinha podido identificar o que lhe passava.

         Então a viu soluçando e tremendo no chão, rodeando com os braços um corpo sedoso e negro. Pandora não se movia. A pantera tinha os olhos fechados e uma das patas torcida. O sangue emanava de um corte próximo à orelha.

         Roland se ajoelhou e amparou Rhiannon. Eric e Tamara estavam também ali. O primeiro procedeu a examinar o animal enquanto Roland continuava sustentando Rhiannon entre seus braços.

         —Está viva —disse Eric suavemente, mas… não estou seguro de que possa salvá-la. Precisa de um veterinário.

         —Então procuraremos um —declarou Roland, esticando seus braços ao redor da tremente Rhiannon—.A uns dois quilômetros a leste há uma cidade. Não teremos que nos desviar muito —baixou a cabeça e pressionou os lábios de Rhiannon com um beijo—. Tudo sairá bem, Rhiannon, prometo-lhe.

         —Tem que ficar bem —elevou a cabeça para olhá-lo nos olhos e se separou dele.

         Tomou ar e se inclinou de novo sobre a pantera, deslizou ambos os braços sob seu corpo e a levantou. Continuando, voltou-se e começou a caminhar para o carro.

         Roland engoliu em seco. Tanto mal lhe tinha feito que nem sequer podia suportar seu consolo? Correu para adiantá-la e lhe abrir a porta do carro. Rhiannon o seguiu ao interior do veículo com o felino ainda em braços e o colocou no assento de trás, lhe fazendo apoiar a cabeça e os ombros em seu regaço. Roland fechou a porta com cuidado. Tamara se sentou diante, entre os dois homens.

         Enquanto Eric dirigia, Rhiannon sussurrava e acariciava a enorme cabeça de Pandora. Falava-lhe como se estivesse dirigindo-se a um ser humano.

         —Não me deixe agora, Pandora. Sabe que não tenho ninguém mais, só você. Se for, ficarei sozinha outra vez.

         Tamara se voltou em seu assento, com o rosto em lágrimas.

         —Gosto muito dela, verdade?

         Rhiannon sacudiu a cabeça energicamente. As mechas de cabelo encharcadas em lágrimas se pegavam contra suas faces.

         —Não seja ridícula —fungou e voltou a soluçar—. Sou imortal. Eu não acredito no amor —acariciou a cabeça de Pandora—. É só que... ela me queria tanto... tal e como sou, algo que ninguém…

         —Oh. Rhiannon...

         —Com ela nunca tive que demonstrar nada —Roland deu um coice para ouvir suas palavras—. Me aceitou de maneira incondicional, com absoluta devoção. Jamais lhe teria ocorrido me rechaçar como se não fora suficientemente boa para merecer sua atenção.

         —Rhiannon —interveio Roland—, ninguém considerou nunca que não seja digna de sua atenção.

         —Ah, não? De toda forma, você não foi o primeiro. Essa honra o merece o homem que me engendrou. Não pense que sua indiferença é tão importante, Roland. O mais importante faraó do Egito me desprezou muito antes que você o fizesse.

         Eric parou o carro em um posto de gasolina. Quando se aproximou dele empregado, baixou o vidro e lhe perguntou em francês se havia algum veterinário na localidade. Recebeu uma resposta afirmativa e Roland saiu do carro e pediu uma guia telefónica. Se era necessário, arrancaria aquele homem de seu sono.

         Enquanto esperava a que o veterinário respondesse o telefone, arreganhava-se a si mesmo mentalmente. Não sabia nada do passado do Rhiannon. Seu pai a havia desprezado. E com as mesmas palavras que lhe havia dito ele no cemitério. Não lhe teria causado mais dor, suspeitava, se tivesse pretendido feri-la deliberadamente. Parecia incapaz de respirar sequer sem fazê-la sofrer. E não sabia como podia reparar toda a dor que lhe tinha causado.

         Rhiannon se inclinou sobre a mesa daquela clínica que não era mais que uma das salas da casa do veterinário.

         —Deverá mantê-la sedada até que eu volte —lhe disse Rhiannon—. Nunca se sabe como pode reagir com os desconhecidos.

         —Oui, não correrei riscos, mademoiselle —esfregou a calva e ajustou as lentes—. Tratei a muitas espécies, mas nunca antes tinha visto uma pantera de mascote —se interrompeu, mas Rhiannon não lhe ofereceu nenhuma explicação—.Foi atropelada, não é?

         —Não sei. Encontrei-a no bosque neste estado —Rhiannon cravou o olhar nos olhos claros daquele mortal—. Se for capaz de salvá-la, construirei-lhe uma clínica nova. Um hospital inteiro se você quiser.

         O veterinário esboçou então um sorriso e ergueu a mão.

         —Adoro aos animais e, ao parecer, você compartilha essa paixão comigo, não é? Se estiver ao meu alcance, a salvarei sem necessidade que me prometa a lua — acariciou a sedosa pele de Pandora.

         —Acredito.

         Rhiannon soluçou e secou os olhos. Não tinha chorado tanto desde que os guardas a tinham tirado do palácio de seu pai para levá-la ao templo do Isis. Tinha cinco anos então. Sua idade daquele momento era quase incontável. E era ridículo o carinho que tinha chegado a tomar por aquela pantera.

         —Não sei quando poderei vir vê-la. Possivelmente demore uns dias.

         —Eu cuidarei dela, não tema.

         —Obrigado —mas não lhe parecia suficiente.

         Deixar a pantera ali era como abandonar um bebê. Rhiannon lutou contra as lágrimas enquanto se obrigava a partir. Jamison a necessitava, não devia esquecê-lo.

         Uma vez no carro, permaneceu sentada em um pétreo silêncio até que Tamara tomou-lhe a mão e a sustentou com firmeza.

         —Ela ficará bem.

         Rhiannon negou com a cabeça.

         —Mas Lucien não vai sair desta.

         —Acha que foi ele quem fez isto?

         —Pandora estava com Jamey. Agora Jamey está com Lucien e Pandora em uma maca. Sim, acredito que ele é o responsável. E quando o encontrar, desejará a morte —fechou os olhos e projetou seus pensamentos: «Ouve-me, Lucien? Vou atrás de você».

         Abriu os olhos surpreendida quando ouviu a réplica que ressoava em sua mente: «Estarei te esperando».

         —Logo amanhecerá. Temos que encontrar um refúgio.

         Tamara suspirou frustrada e Roland a compreendeu perfeitamente.

         —Não conseguiremos fazer nada pelo Jamey se terminarmos nos desfazendo ao sol, Tamara.

         —Sim.

         Eric continuou conduzindo, mas se desviou para uma estrada mais estreita, procurando um lugar seguro para que pudessem descansar os quatro. Ao cabo de um momento, apareceu um abrigo abandonado. Roland o assinalou.

         —Podemos conduzir até ali e deixar o carro na parte de trás, para que não se veja. Melhor ainda, podemos abrir a porta e colocá-lo dentro, o que te parece?

         —Que seria uma boa idéia. Por que não se aproxima de abri-lo e olha se há espaço suficiente?

         Roland obedeceu. O abrigo estava completamente vazio. Em seu interior só havia uns quantos montões de feno e umas ferramentas velhas. Roland apartou uma forca e um cântaro metálico para o leite e indicou a Eric que colocasse o carro.

         Assim que desligou o motor, Roland fechou a porta do estábulo.

         —Parece um lugar seguro —comentou Tamara.

         —Não podemos estar seguros de que não haja frestas que filtrem a luz, Tamara. Deveremos nos enterrar no feno enquanto dormimos.

         Tamara assentiu e se aproximou do Eric, que lhe aconteceu o braço pelos ombros e a estreitou contra ele. Tamara apoiou a cabeça em seu ombro e fechou os olhos.

         —O que se supõe que quer esse Lucien de Jamey? Ele não é um DIP —perguntou.

         —Quer a imortalidade, Tamara —lhe respondeu Rhiannon—. Quer que o transforme. E suponho que está utilizando a vida de Jamey para tentar negociar com ela.

         Tamara esboçou uma careta e se voltou nos braços de Eric. Roland sentiu que o estômago lhe revolvia. Seus braços desejavam abraçar Rhiannon da mesma forma, mas disse a si mesmo que era preferível guardar as distâncias. Por muito mal que sentisse. E por muito que desejasse apagar a dor que tinha causado.

         —Sabe que vamos buscá-lo —disse Rhiannon—. Tem umas capacidades psíquicas incríveis para um ser humano. Está-nos esperando.

         —Pelo menos manterá vivo Jamison até então —disse Roland, tentando consolar Tamara. Desgraçadamente, estava a ponto de lhe provocar uma inquietação muito maior—.Tamara, há algo que deveria te dizer sobre o Jamey.

         Tamara se voltou para ele com o cenho franzido.

         —O que é, Roland?

         Roland desviou o olhar. Provavelmente, Tamara o odiaria depois daquilo.

         —Comecei a procurar a seu pai.

         —Que você... mas por que? Não compreendo. Jamey não precisa dele. Tem a nós.

         —Sei o carinho que lhe tem, Tamara, mas temos que pensar no que é melhor para ele.

         —E o melhor é afastar o da gente que ele conhece e quer? Mandá-lo a viver com um estranho? Acha que isso é o melhor para ele?

         Eric acariciou seu rosto e se voltou para Roland.

         —Tamara, se você estivesse no lugar de Jamison, você não gostaria de saber pelo menos quem é seu pai, averiguar algo sobre ele?

         Tamara franziu o cenho e sacudiu a cabeça.

         —Ele abandonou o filho...

         —Nunca soube da existência do pequeno —respondeu Roland lentamente—, você mesma o disse. Merece ao menos sabê-lo. E Jamey tem direito que lhe demos todas as opções, para poder tomar assim uma decisão.

         —Se estiver farto de cuidá-lo, Roland, Eric e eu podemos cuidar dele.

         Rhiannon sacudiu a cabeça lentamente.

         —Tamara, enquanto esteja conosco, a DIP vai segui-lo. Nos vigiam de perto e somos facilmente reconhecíveis. Em uma família normal, Jamey pareceria como qualquer outro ser humano. Estaria a salvo.

         —Não posso acreditar no que estão dizendo. Especialmente você, Eric. Como pode me enganar desse modo?

         —Não, Tamara, eu só...

         —Não quero ouvir uma palavra mais! —separou-se de seu abraço e saiu do abrigo através de uma porta mais pequena para perder-se na noite.

         Eric apoiou a cabeça entre as mãos. Roland se sentia como se sempre tivesse que dizer a palavra errada no momento menos oportuno.

         —Sinto muito, Eric.

         Eric sacudiu a cabeça.

         —Não foi tua culpa. Com o tempo, será capaz de compreendê-lo. Agora será melhor que vá procurá-la.

         Assim o fez e Roland se voltou para Rhiannon.

         —Acha que fiz mal?

         Rhiannon suspirou.

         —Desde quando o honorável Roland do Courtemanche necessita a opinião da imprudente e autodestructiva Rhiannon do Egito?

         —Eu gostaria que seguíssemos sendo amigos, Rhiannon —cruzou o abrigo e se sentou a seu lado, no feno—.E embora a considere imprudente e auto-destrutiva, continuo apreciando sua opinião.

         —Ah, sim?

         —Sabe perfeitamente que sim.

         Rhiannon se ergueu e elevou o queixo.

         —Nesse caso, suponho que estará interessado em ouvir que te considero o maior estúpido que jamais nasceu.

         Roland franziu o cenho e estudou seu rosto perfeito, reconhecendo as sombras de tristeza que conservavam ainda seus olhos.

         —Por que?

         Rhiannon o olhou intensamente.

         —Jamais encontrá em outra o que poderia ter tido comigo.

         —Isso já sei.

         —Então é dez vezes mais parvo do que pensava —deu meia volta e começou a afastar-se dele.

         Roland posou a mão em seu ombro.

         —Não sabia que tinha sido desprezada por seu pai, Rhiannon. Não podia ter eleito pior minhas palavras quando te disse que foi uma maldição. Não sente saudades que te zangasse comigo—. Rhiannon, não pretendia te ferir. E só quero...

         Rhiannon voltou bruscamente a cabeça e o fulminou com o olhar.

         —Não me importa o que queira. E tampouco me interessa a interpretação que queira fazer de suas próprias palavras.

         —Rhiannon, se me permitisse explicar isso daria-te conta de que...

         —Já não importa —desviou de novo o olhar e seus olhos adquiriram uma frieza glacial—. Vou, Roland. Irei assim que o menino esteja a salvo e Pandora o suficientemente bem para viajar. E desta vez não voltarei a veê-lo nunca mais —esboçou um sorriso carregado de amargura—. Suponho que estará extremamente aliviado. Sua maldição logo desaparecerá.

 

         Roland se levantou antes que outros. Separou-se do feno e o sacudiu vigorosamente de suas roupas. Seu sonho tinha sido algo menos aprazível.

         Repetiu a si mesmo todas as razões para isso: o aborrecimento da Tamara com ele, o distanciamento que parecia ter provocado entre o Eric e ela; sua preocupação pelo menino, a pantera... Mas em realidade, não era nenhuma daquelas coisas a que tinha mantido a sua mente inquieta durante todo o dia. Em realidade, eram suas próprias palavras e a dor que lhe tinham causado a Rhiannon as que o perseguiam. Se ele tivesse sabido que seu pai a tinha rechaçado com essas mesmas palavras, jamais teria repetido algo tão devastador. Sim, era certo que precisava manter-se afastado de Rhiannon, mas jamais tinha querido lhe fazer sofrr.

         A verdade era que a queria. E muito mais do que nunca se atreveu a admitir. E quando suas visitas eram poucas e distantes, tinha-lhe resultado fácil negá-lo. Depois de sua volta, converteu-se em um pouco mais difícil, embora não impossível. Sua imprudência e sua natureza impulsiva lhe tinham permitido esconder-se depois da máscara da irritação e a desaprovação.

         Mas quando a tinha visto no bosque, reduzida a soluços e aferrando-se à pantera, tinha sido incapaz de continuar negando-o.

         Saiu fora do abrigo. O ar arrastava os aromas do próximo inverno, mas o céu estava sem nuvens. Enquanto caminhava, afastando do abrigo, tentava sintonizar seus sentidos para que detectassem qualquer presença estranha. Mas só se ouvia o canto harmônico dos grilos.

         Ele não queria que Rhiannon se fora.

         Tinha-o sabido no mesmo momento no que Rhiannon tinha expresso sua decisão. Havia se sentido terrivelmente só ao saber que não ia ver a outra vez. Era certo que Rhiannon não tinha sido uma presença constante em sua vida, mas ele sempre tinha sabido que estava ali. E sempre soubera que, no caso de que a invocasse, iria a ele; ou que, quando menos o esperasse, apresentaria-se sem prévio aviso.

         Fechou os olhos e apareceu o rosto do Rhiannon em sua mente. Parecia-lhe absolutamente impossível ser capaz de lhe fazer mal deliberadamente. Por um momento, considerou a possibilidade de que Eric tivesse razão. De que a brutalidade de sua conduta tivesse sido efeito das drogas.

         Mas sacudiu a cabeça bruscamente. Uma droga não mudava o que já sabia de si mesmo. Como podia pedir a Rhiannon que ficasse sabendo que sua presença só serviria para afastar o de qualquer esperança de recuperação?

         Se ao menos Rhiannon fosse capaz de alterar sua natureza selvagem... Ele poderia ajudá-la. E ela poderia ajudá-lo a ele. Se a pudesse convencer disso, então possivelmente...

         Não, Rhiannon nunca mudaria. Ele vivia temendo o anúncio de sua morte qualquer dia. E não tinha a menor duvida de que seria uma morte dramática e horrível.

         —Roland?

         Roland se voltou para aquela voz feminina.

         Tamara deu um passo adiante, com a cabeça encurvada, sem olhá-lo aos olhos. Deteve-se quando seus pés estavam já a ponto de tocar os de Roland, passou-lhe o braço pelo pescoço e o abraçou com força.

         —Sinto o que te disse ontem à noite. Sei o muito que quer ao Jamey.

         Roland lhe devolveu o abraço, encontrando consolo na cercania física de outro ser humano.

         —Não se preocupe, Tamara, estava nervosa. Todos estamos.

         Tamara baixou os braços, retrocedeu e o olhou por fim aos olhos.

         —Tenho muito medo por ele.

         —Não deixaremos que ninguém lhe faça nenhum dano.

Tamara assentiu rapidamente e fechou os olhos com força. Quando voltou a abri-los, procurou seu olhar.

         —E você? Sei que está ferido. Vejo-o em seus olhos —Roland desviou o olhar e sacudiu a cabeça—. Não me minta, Roland. Está sofrendo. E também Rhiannon.

         Roland voltou a olhá-la.

         —Falou com você disto?

         —É obvio que não. Nem sequer é capaz de admitir a si mesma que está ferida. Mas o está. E quando tudo isto terminar...

         —Quando tudo isto termine, Rhiannon seguirá seu caminho e eu o meu. Fazer qualquer outra coisa suporia.. . riscos que não quero nem considerar.

         Tamara sorriu ligeiramente e lhe acariciou com suavidade a bochecha.

         —Oh, Roland, como é possível que alguém tão sábio esteja tão cego? Nenhum risco é muito grande quando tem que ver com o amor.

         —Com o amor? —sacudiu a cabeça—. O amor não tem nada que ver com isto. Suas tendências românticas lhe estão fazendo perder o julgamento.

         —E sua teimosia lhe está fazendo perder isso.

         —Já está todo mundo preparado? —as palavras de Eric lhes chegaram acompanhadas pelo chiado da porta ao abrir-se.

         Roland olhou atrás dele e viu Rhiannon tirando algumas fibras de feno do cabelo. Rhiannon deu um passo adiante e abriu a porta do carro. Roland correu a seu encontro. Chegou até ela e lhe tirou uma fibra de erva da parte posterior da cabeça.

         —Ficava esta.

         Os olhos de Rhiannon, fixos naquele momento nos do Roland, pareciam tão enormes como insondáveis. Roland escrutinou aquelas profundidades de ébano em busca de algo que pudesse lhe indicar que poderiam ser amigos outra vez.

         Mas viu uma língua de fogo neles e sentiu que, em resposta, acendia-se uma fogueira em sua alma. Rhiannon ainda o desejava. E, que o céu o ajudasse, ele também a desejava. Rhiannon umedeceu os lábios, tragou saliva e por fim desviou o olhar.

         Enquanto se metia no carro, Roland fechou os olhos e amaldiçoou para si.

         —Sairá desta, amigo —lhe sussurrou Eric ao ouvido em tom de diversão—. Se é que não enlouquecerá antes.

         Roland o olhou com o cenho franzido e rodeou o carro para deslizar-se no assento de passageiros. Não lhe ocorreria sentar-se ao lado do Rhiannon, embora fora precisamente isso o que lhe estivesse demandando seu corpo. Precisava concentrar-se no Jamey. O resto de sua angústia esperaria até que o menino estivesse a salvo.

 

         Rhiannon se odiava a si mesma por continuar sentindo um desejo tão intenso por um homem que a tinha rechaçado uma e outra vez. Mesmo assim, tinha detectado algo em seus olhos, algo novo.

         Fechou os olhos e sacudiu a cabeça. Estava imaginando coisas, isso era tudo. A idéia de deixá-lo, de não voltar a vê-lo nunca mais, enchia-a de uma desolação tão absoluta que não sabia como ia poder suportá-lo.

         Quando tempo depois Eric deteve o carro em um posto de gasolina, Roland e Tamara saíram a estirar as pernas. Rhiannon viu que Ronald se dirigia para uma cabine. Apenas lhe tinha dirigido a palavra durante a viagem, mas havia sentido freqüentemente seu olhar sobre ela. E Roland não tinha desviado o olhar quando seus olhos se encontraram. Tinha contínuo olhando a de frente. Desgraçadamente, só o que Rhiannon tinha visto em seus olhos tinha sido arrependimento e confusão. Algo que não a tinha ajudado absolutamente.

         Nesse momento, Roland retornou ao interior do carro.

         —Chamei o veterinário. Disse que Pandora vai se recuperar.

         Rhiannon estava estupefata; o alívio que banhou sua alma ao ouvir aquelas palavras foi assustador.

         —Está bem? De verdade? Vai sarar?

         —É possível que fique uma claudicação permanente, mas se está recuperando muito bem e vão poder lhe salvar a perna.

         Rhiannon fechou os olhos e soltou todo o ar que continham seus pulmões. Quando os voltou a abrir, viu a expressão satisfeita do Roland.

         —Suponho que deveria te agradecer.

         Roland negou rapidamente com a cabeça.

         —Não me deve nada. Só queria ver desaparecer a preocupação de seus olhos.

         Rhiannon sentiu um nó na garganta.

         —Por que?

         —Por que? Preocupa-me, Rhiannon. Ver a dor em seus olhos me causa dor também.

         A repentina umidade que iluminou seus olhos desapareceu rapidamente baixo suas pálpebras. Rhiannon tomou ar e se obrigou a respirar tranqüilamente para não romper a soluçar. Estava dizendo Roland que a queria? Rhiannon se negava a perguntá-lo. Não queria lhe dar outra oportunidade de rechaçá-la.

         Mesmo assim, uma louca e infantil esperança aliviou seu coração, apesar de todos seus esforços por sufocá-la.

         Tamara retornou ao carro com o Eric e voltaram a ficar em marcha. Ao cabo de um tempo, quando estavam chegando a um diminuto povoado dos Alpes franceses, Tamara se aferrou com força à mão de Rhiannon e disse com ansiedade:

         —É este. Este é o povoado que vi.

         Eric se esticou depois do volante.

         —Tem certeza, Tamara?

         —Sim.

         Rhiannon umedeceu os lábios; começava a esquecer a dor e a experimentar a antecipação do enfrentamento que estava a ponto de chegar. Sentiu um ligeiro calafrio na nuca que a fez estremecer.

         —Deveríamos estacionar o carro —disse Roland com voz fria e serena—. Iremos a pé e procuraremos o carro do Lucien. Podemos perguntar aos habitantes do povo que nos encontremos por um carro negro e descrever Jamey e Lucien, no caso dos viram.

         —Ou, simplesmente, poderíamos tentar perguntar ao Lucien onde está. Ele também quer nos encontrar, estou segura.

         Roland se voltou para Rhiannon e cravou nela seu olhar.

         —Mas então estará avisado de nossa chegada.

         —Já está, Roland, sabe que estamos aqui.

         —Mas não sabe exatamente quando chegamos.

         —O momento exato não, mas sabe que chegaremos de noite. E também que esta é a noite mais provável, simplesmente, pela distância que tivemos que percorrer. O elemento surpresa não forma parte de nosso arsenal, Roland — umedeceu os lábios, pensando uma vez mais na perna retorcida da Pandora—, mas tampouco o necessitamos.

         —Rhiannon tem razão —disse Eric—. Acredito que deveríamos resolver este assunto esta mesma noite. Se começarmos a procurar, possivelmente não os encontremos antes do amanhecer. E então teríamos que nos ver obrigados a deixá-lo em suas mãos outro dia.

         Roland tomou ar, apertou os lábios e suspirou.

         —De acordo. E, posto que o tempo está essencial, adiante, Rhiannon. Estabeleça esse contato se puder.

         Rhiannon arqueou as sobrancelhas para ouvir aquele «se puder», mas fechou os olhos.

         «Chegou a hora, Lucien, onde está?»

         «Muito bem. Foram mais rápidos do que pensava. Há uma cabana a meia hora do monte Noir. Esperarei ali».

         Rhiannon franziu o cenho. Não gostava da confiança que emanava de suas palavras.

         «O menino está a salvo? Advirto-o que caso lhe tenho ocorrido algo, pagará-me isso».

         Esperou. Mas não obteve resposta. Concentrou de novo toda sua atenção e voltou a tentá-lo.

         «Lucien, esta conversação não terminou. Quero saber como está o menino».

         Mas tampouco então teve resposta. Rhiannon abriu os olhos e sacudiu a cabeça.

         —Está em uma cabana, a meio caminho de uma montanha chamada Noir. Um nome estranho.

 

         —Sei onde é —disse Roland—Vamos, teremos que ir a pé. Não há estradas que subam essa ladeira.

         Eric agarrou Roland do braço antes de que pudesse sair do carro.

         —Não queremos que nos surpreenda ele amanhecer, Roland. Crie que teremos tempo de chegar?

         Roland assentiu.

         —Com três horas será suficiente e ainda ficam perto de quatro.    Embora possivelmente seja melhor que alguns fiquem detrás, se por acaso não saímos vitoriosos.

         —Boa idéia —disse Rhiannon rapidamente—. Eric e você podem esperar aqui enquanto Tamara e eu vamos lhe dar uma lição a esse mortal.

         —Jamais permitiria que Tamara se enfrentasse ao perigo sem me ter a seu lado —repôs Eric—. E, desgraçadamente, ela sente o mesmo por mim —olhou para o Roland—. Não pode odiar a esse homem por querer te proteger, Rhiannon.

         —Sou perfeitamente capaz de me proteger a mim mesma. E também a ele, caso seja necessário. E se me conhecesse de verdade, saberia.

         —Imprudente que é e quão furiosa está pela pantera, temo que se colocaria sem vacilar em qualquer armadilha infernal que tenha preparado esse canalha.

         —Estando você aqui, me recordando a cada momento quão estúpida sou, acredito que é impossível que não seja precavida. Está-te preocupando com nada.

         —Preocupo-me com você! —Replicou furioso. Saiu do carro e fechou a porta de uma portada.

         Rhiannon também saiu, deu outra portada e enfrentou-o, tentando pensar uma réplica mordaz.

         Mas, de repente, Roland deslizou a mão por seu cabelo.

         —Fique perto de mim, Rhiannon. E tome cuidado, pelo amor de Deus, tenha muito cuidado.

         Uma vez mais, voltou a formar-se aquele estúpido nó na garganta. E se ouviu si mesma responder como uma menina obediente:

         —Terei, Roland.

         Um segundo depois, os quatro se dirigiam para a montanha. Uma escura forma que se elevava frente a eles como se fosse um deus furioso.

 

         A ascensão teria sido difícil para um mortal. Roland sofria ao pensar em Jamey, sendo forçado, possivelmente de uma forma brutal, a subir por aquela vertente inclinada. Devia estar esgotado ao chegar a seu destino. Gelado. E assustado. E causar pena pela sorte de Pandora. O pobre menino não tinha forma de saber que se recuperaria. Nem sequer que a tinham encontrado.

         Amaldiçoou-se a si mesmo por não ter procurado antes o pai do menino, mas depois voltou a concentrar-se no assunto que os ocupava: resgatar Jamison. E proteger Rhiannon. Porque era a que parecia haver-se convertido na obsessão de Lucien. Era ela a que tinha atacado e a única cuja sangue estava decidido a ver correr por suas veias. Ela era a única podia estabelecer contato psíquico com ele e a única que podia ouvir suas respostas. Aquele homem não era um ser humano normal.

         Em muito pouco tempo, subiram além de onde crescia a vegetação e começaram a caminhar sobre a rocha nua.

         Roland escorregou em uma ocasião, mas conseguiu não cair e estendeu a mão a Rhiannon para ajudá-la. O olhar que esta lhe dirigiu não foi de aborrecimento, mas sim de absoluta perplexidade. Por que a surpreenderia tanto que queria ajudá-la?

         Ao final, chegaram a uma zona em que terminava o pendente. Na distância, Roland viu uma coluna de fumaça subindo em meio da noite. Assinalou para ela e fixou o olhar em um grupo de pedras e um afloramento de rochas. A fumaça parecia sair de um lugar próximo a elas. E embora o terreno já não estivesse em descida, não soltou a mão de Rhiannon. Esperava que ela a que se separasse e, como não o fez, perguntou-se imediatamente por que.

         Correndo, atravessaram aquele terreno irregular e rochoso, rodearam o afloramento de rochas que lhes bloqueava o caminho e se encontraram frente a uma cabana feita com troncos de madeira, com cortinas nas pontas dos pés nas janelas; uma cabana de aspecto acolhedor. Inócuo. O esconderijo perfeito para ocultar a um autêntico diabo.

         Instintivamente, Roland estreitou a mão dela. Ela o imitou. Aquele intercâmbio teve lugar em menos de um segundo. Então se olharam um ao outro. Os olhos de ambos encerravam milhares de perguntas. Nenhum deles oferecia respostas.

         Roland tragou saliva. Soltou-lhe a mão e lhe passou o braço pelos ombros enquanto se aproximavam da cabana. Rhiannon não se afastou. Eric e Tamara caminharam atrás deles até que chegaram ante a porta do refúgio.

         —Estou segura de que não tem o sedativo —disse Rhiannon brandamente enquanto alargava a mão para o trinco de metal. Fechou a mão a seu redor e empurrou.

         A porta se moveu sem fazer um só ruído. Olhando ao redor com apreensão, Roland entrou antes que ela. O fogo ardia na lareira, crepitando de maneira inquietante. Só o que se distinguia na escuridão era a cabeça de Lucien, que permanecia sentado em uma poltrona macia.

         —Entre —disse sem voltar-se—. Rhiannon tem razão: não tenho o sedativo. E isto não é nenhuma armadilha, é só uma reunião. Uma reunião da qual espero que possamos nos beneficiar todos.

         Roland avançou um passo mais sem deixar de olhá-la. Tinha todos seus sentidos em alerta, tentando detectar outras presenças. Rhiannon caminhava a seu lado, mas seus olhos não se separavam de Lucien. Uns olhos cheios de ódio e de fúria. Roland a tocou no braço para tranqüilizá-la.

         Rhiannon deu um passo adiante, aferrou-se ao respaldo da poltrona e o empurrou bruscamente. Lucien caiu ao chão com os olhos abertos como pratos. Mas no momento que Rhiannon se abateu sobre ele, curvou ligeiramente os lábios.

         —Vou matar você, canalha —lhe disse lentamente—, e penso tomar meu tempo. Está preparado?

         —Não tenho nenhum lugar aonde ir.

         —Espere, Rhiannon —Roland baixou o olhar para o Lucien—. Lucien, onde está o menino?

         Lucien arqueou as sobrancelhas.

         —No momento em que eu disser isso, ela não terá nenhum motivo para não me assassinar. Seria um estúpido se me pusesse em tal situação de desvantagem, não acha?

         Rhiannon soltou sua mão, mas Roland a agarrou com firmeza. surpreendeu-se então ao ver Tamara dando um salto para diante, agarrando Lucien pelo peitilho da camisa e levantando-o do chão. Era impressionante ver uma mulher tão pequena exercendo tamanha força.

         —Vamos matar você de qualquer forma, assim não fica outra opção.

         Lucien voltou a arquear as sobrancelhas.

         —Que temperamentais são as mulheres imortais —deu um passo para trás e se alisou a camisa —. Tenho uma proposta a fazer, Tamara, o menos que pode fazer é escutar antes de tomar uma decisão.

         Eric se tinha desvanecido. Roland soube vagamente que estava escrutinando a cabana para descobrir qualquer outra possível presença, inclusive a de Jamey. Saiu então de uma sala.

         —Jamison não está aqui.

         —Não, não está aqui. E se quer saber onde está, terá que escutar o que tenho que dizer.

         —Será melhor que nos diga quanto antes onde está Jamey. Está a salvo?

         —O menino está em perfeito estado de saúde e provavelmente permanecerá assim... enquanto estejam dispostos a colaborar. Quanto ao lugar no qual se encontra, temo que é algo que ainda não posso revelar.

         Tamara deixou escapar uma respiração trêmula.

         —Nos diga o que quer, Lucien. Deixe de jogos.

         —Uma mulher que pensa como eu. Eu gosto de —Lucien passou por diante deles, agachou-se e recolheu a poltrona, rodeou-a, sentou-se e indicou aos outros que se sentassem perto dele.

         Rhiannon se sentou em uma cadeira de balanço situada ao lado do fogo, em frente de Lucien.

         —Todos sabemos o que quer, Lucien. O escuro dom. A imortalidade. Mas não acredito que seja consciente de quão estúpido resulta pedi-lo.

         —Por que é estúpido? —inclinou-se para diante—. Acaso não é a vida eterna o que todo ser humano deseja nas profundidades de sua alma? Não foi assim desde o começo dos tempos?

         —E sabe como se consegue essa mudança?

         —Sim, você tem que beber de mim e depois eu beberei de você. E quando nosso sangue se mesclar, serei um dos seus.

         —Você nunca será um dos nossos —lhe espetou Tamara.

Os olhos de Rhiannon pareciam penetrar o espaço que os separava.

         —E o que me deterá no caso de que comece a beber de você, estúpido? Poderia te matar.

         —Deixei uma carta em mãos de meu advogado em que dou a direção do menino. A carta está dirigida a Curtis Rogers, da DIP. Meu advogado tem instruções de enviar uma cópia ao Rogers amanhã à meia-noite — Rhiannon pestanejou e Lucien alargou seu sorriso—. Por outra parte, Rhiannon, se me transformar sem percalço algum, revelarei-te a localização do garoto, te dando tempo mais que de sobra para localizá-lo antes que eles.

         Pela primeira vez, Roland viu insegurança no olhar de Rhiannon. Esta interrompeu o contato visual com Lucien para olhar Roland.

         —Não confie nele, Rhiannon. Ele também poderia acabar com você. E terminaria debilitada pelo ato, sabe.

         —Um risco que terá que correr, querida, se quer salvar o menino. Por outra parte, sempre pode te negar e deixar que o menino se converta em objeto de estudo de um cientista sem escrúpulos —se inclinou para frente. Rhiannon não retrocedeu—.Tenho entendido que sabe por experiência própria o... incômodo que pode chegar a fazer sentir-se a um ser vivo.

         Tamara conteve a respiração. Roland fechou os olhos, sabendo que aquele laboratório devia ser um dos mais escuros pesadelos de Rhiannon.

         —E para que veja quão generoso posso chegar a ser —continuou Lucien— terá até manhã para pensar. Retorne amanhã ao pôr do sol. Se estiver de acordo, faremos o intercâmbio e você terá o menino antes que meu advogado tenha enviado o fax. Ou pode me matar, tentar encontrá-lo, fracassar e se arrepender durante o resto da eternidade. Você escolhe.

         —Parece que temos poucas opções.

         —E outra coisa, Rhiannon. Amanhã virá sozinha. Não confio nada neles. Ou vem sozinha ou não há trato.

         Roland se sentiu como se acabassem de lhe cravar uma adaga no peito.

         —Absolutamente não —disse em voz baixa—. Não o permitirei.

Rhiannon respondeu como se Roland não houvesse dito nada.

         —Espero que tenhamos tempo, Lucien. O dom da noite eterna não se transmite de uma maneira tão simples. É necessário todo um ritual.

         —Não me interessam seus rituais. Eu só quero o sangue.

         Rhiannon deu de ombros.

         —Bom, se não quiser ter toda a extensão da força, suponho que podemos substitui-lo com a meditação. ..

         Lucien franziu o cenho e umedeceu os lábios.

         —Quanto tempo dura esse... ritual?

         —Várias horas.

         Lucien inclinou a cabeça.

         —Não necessitará mais de trinta minutos para localizar o menino antes que o faça Rogers.

         Rhiannon arqueou as sobrancelhas. Roland pensou que possivelmente tinha sido ele o único que tinha visto o brilho de triunfo de seus olhos.

         —Então temos tempo suficiente.

         —Rhiannon, não pode fazê-lo! —gritou Tamara.

         —Posso e devo —disse Rhiannon brandamente—. Pense em Jamey —se voltou e olhou fixamente a Tamara—. Pense em Jamey.

         Tamara pestanejou e desviou o olhar.

         —Eu... farei.

         Rhiannon se levantou.

         —Até manhã à noite, então. Suponho que sabe que terá que estar em jejum. Nada de comer nem de beber. De outra maneira, não poderá cruzar a soleira. Morrerá antes de fazê-lo.

         Roland voltou a franzir o cenho. Era uma absoluta tolice.

         —E tampouco pode dormir em toda a noite —continuou, antes de cruzar a porta—. Se não estiver em boas condições, morrerá. Entendido?

         —Parece estar muito preocupada com um homem que despreza.

         —Mataria-o agora mesmo, Lucien. É a vida desse menino a que me preocupa. Se morrer antes de me dizer onde ele está, morrerá nas mãos desses demônios. E isso é algo que não posso permitir.

 

         Bem antes do amanhecer, encontraram refúgio em uma casa abandonada situada nos subúrbios do povoado. Utilizando algumas madeiras das janelas como combustível, Rhiannon acendeu uma velha lareira.

         —Corre muitos riscos para ser uma pessoa tão sensível ao fogo, Rhiannon. Certamente, essa lareira está em tão mal estado como o resto da casa.

         Já estava Roland arreganhando-a, como sempre.

         —Deixe de preocupar-se. Meu corpo não entrará em nenhum momento em contato com as chamas. E me assegurarei de deixá-lo bem apagado antes que possamos descansar.

         Eric e Tamara foram ao porão para descansar e, suspeitava Rhiannon, para poder acontecer algum tempo a sós. Rhiannon tentou dominar seu ciúme e concentrar-se em assuntos mais práticos. Francamente, teria gostado de ter algo mais suave e esponjoso com o que agasalhar-se. Já tinha sido suficientemente ruim dormir sobre o feno, e aqueles móveis desmantelados não tinham um aspecto muito melhor.

         —Rhiannon, já chegou o momento.

         —O momento?

         —O momento de me dizer o que pretende fazer com Lucien.

         —Para que possa me dizer o quão estúpido e arriscado que é? Obrigado, mas não. Eric, Tamara e você podem lhes dedicar a procurar o Jamey. Eu manterei ao Lucien ocupado até que encontrem o menino.

         —E todas essas tolices sobre o ritual?

         —Lucien anseia poder. É uma fraqueza desejar algo com tanta intensidade e eu vou utilizar essa debilidade contra ele. Se acreditar que um ritual pode lhe dar poder, tomarei parte nele.

         Sacudiu várias vezes as almofadas do velho sofá em que foram dormir. Como não viu sair nenhum inseto estranho, voltou-se e se sentou.

         Roland se sentou a seu lado.

         —E por que lhe aconselhou que não comesse nem bebesse nada?

         —A falta de comida e bebida debilita a mente. Queria lhe fazer jejuar antes de enfrentá-lo.

         —Antes de você enfrentar a ele de que maneira, Rhiannon? Diz isso como se fosses cercar uma batalha.

         Suspirando, Rhiannon se reclinou contra o sofá e se cruzou de braços.

         —Será uma espécie de batalha. Uma batalha mental — fechou os olhos e tentou visualizar seu precipitado plano— . Enquanto Lucien medita, entrarei nele, como tenho feito tantas vezes com outros seres humanos quando o necessitei. Assim o terei completamente baixo controle.

Roland tomou pelo queixo e a fez enfrentar-se a ele.

         —É perfeitamente consciente de que esse homem não é um ser humano normal. Suas habilidades psíquicas são fortes. É capaz de ocultar seus pensamentos.

         —Estará fraco e cansado. E eu estarei em plena forma, pronta para a briga. O incenso das velas o distrairá, enquanto me ajuda a me concentrar.

         Roland posou a mão em seu ombro.

         —Se funcionar, será capaz de tê-lo em seu poder, e então o que?

         Rhiannon resistiu à vontade de inclinar a cabeça para apoiar a bochecha em sua mão.

         —Então escrutinarei sua mente e me inteirarei de onde está Jamey. Repetirei a informação para vocês e assim poderão ir resgatá-lo.

         —Faz parecer muito simples.

         —Porque é.

         —E se der errado?

         —Isso não ocorrerá.

         —Poderia ocorrer, Rhiannon.

         —Não —alargou a mão e emoldurou seu rosto—. Só por uma vez, Roland, tente acreditar em mim. Olhe além de meus defeitos e aprenda a ver minha força. Eu posso fazer isto.

         —Nunca duvidei que sua força. Acredito em você, Rhiannon, isso sempre esteve fora de toda dúvida. Mas tenho medo...

         —De que fracasse e isso possa custar a vida de Jamey —baixou a mão e lhe fez apartar ao Roland a mão que tinha apoiado em seu ombro.

         —Não, pajarillo. O que temo é que salve ao Jamey e arrisque sua própria existência no processo —Roland se levantou bruscamente, tirou-a das mãos e a fez levantar-se—. Lucien esteve a ponto de te matar em uma ocasião, Rhiannon. E tenho a sensação de que isso é o que pretende também agora.

         —Só o que agora importa é recuperar Jamey.

         —Irei com você —disse Roland com voz rouca—. Serei testemunha de todo o intercâmbio, e se alta a mão contra você, eu o mato.

         —Não pode. Lucien disse que tenho que ir sozinha.

         —Ou vou com você ou não irá. Você decide, Rhiannon.

         Rhiannon suspirou e voltou a cabeça.

         —Por que tem que fazê-lo tudo tão difícil?

         Sentiu uma mão de ferro no ombro. Roland a fez voltar-se, estreitou-a contra seu peito e tomou-a pela cintura. A respiração de Roland banhou seu rosto no momento no que o elevou para ele. Quase imediatamente, Roland se apoderou de sua boca em um desumano beijo. Sua língua abriu caminho através de seus lábios e em questão de segundos, Rhiannon passou de ser uma surpreendida vítima a participar voluntariamente daquele beijo. Abriu a boca e começou uma sensual dança. Foram apropriando-se por turnos dos lábios do outro, sugando suas línguas, mordiscando seus lábios. Rhiannon lhe rodeou o pescoço com os braços. Roland a agarrou pelo traseiro e a fez pressionar seus quadris contra ele para esfregá-la contra sua crescente ereção.

         Quando Roland por fim abandonou seus lábios, Rhiannon sentiu o estremecimento que o sacudiu. Roland baixou o rosto até seu cabelo e moveu seus lábios contra ele.

         —Essa é a razão pela qual sou tão difícil. Porque este planeta, sem você, seria um lugar tão triste e vazio como esta casa.

         Rhiannon fechou os olhos, resistindo a doce agonia que aquelas palavras infligiam à sua alma. Podia sentir o retumbar ensurdecedor de seu coração contra seu peito, sua respiração em seu cabelo.

         —Mas você quer esse vazio. Quer apartar minha perturbadora presença de sua vida.

         —Não, Rhiannon, não é isso o que quero, mas é necessário. Não é você quem quero tirar de minha vida, mas o monstro que habita em mim. Como posso fazer com que o compreenda?

         —Não quero compreendê-lo. Só desejo você —elevou a cabeça para olhá-lo aos olhos—.Jurei que não voltaria a me arriscar a sofrer seu desprezo, mas aqui estou, me oferecendo outra vez. Quando Jamey estiver a salvo e eu me tenha ido, só terei a doce lembrança de suas carícias, de seus beijos. Mas me temo que a lembrança daquela única vez não será suficiente para me sustentar.

         Roland fechou os olhos e Rhiannon viu tremer seus lábios.

         —Me dê uma lembrança a mais, Roland. Não te pedirei nada mais, prometo-lhe isso. Faça amor comigo, agora.

         Roland abriu os olhos outra vez. O fogo que iluminava seu olhar fez arder o coração de Rhiannon. Mas baixou a cabeça, incapaz de seguir olhando-o enquanto se sentia rechaçada.

         —Continue —sussurrou— me diga que te deixe em paz. Me recorde que nenhuma dama diria as coisas que eu lhe digo. Me deixe sentir sua desaprovação uma vez mais. Possivelmente assim consiga compreender que não sou digna de você... —interrompeu-se bruscamente. Amor, tinha estado a ponto de falar de amor. O que lhe estava acontecendo?

         —Sinto muito, Rhiannon. Mas não é você, porém ser eu o que sou me torna indigno de você. Depois da maneira que perdi o controle o outro dia, nem sequer deveria me permitir este abraço —baixou a cabeça para a sua e roçou seu cabelo com os lábios enquanto falava—. Mas não posso te afastar de mim. Meu desejo anula toda minha vontade.

         Cobriu sua boca, apoiando as mãos a ambos os lados de sua cabeça. E a beijou como nunca a tinha beijado. Com delicadeza, lentamente. Cada toque de sua língua era uma tenra exploração, cada roçar de seus lábios, uma carícia.

         —Se dispa para mim, Rhiannon. Deixe-me vê-la vestida só com sua esplendorosa beleza.

         Rhiannon assentiu e elevou suas mãos trementes para a blusa. Roland mantinha seu olhar cativo enquanto ela ia desabotoando os botões um a um. Mas quando a blusa caiu ao chão e Rhiannon mostrou seus seios nus, Roland rompeu o contato visual com seus olhos para cravar o olhar em seu peito. Rhiannon não retrocedeu ante a intensidade de seu olhar. E sentiu que seus mamilos se endureciam como se já os tivesse acariciado.

         Roland tomou ar e baixou o olhar enquanto Rhiannon desabotoava as calças e se baixava a cremalheira. Sem vergonha nem vacilação, tirou as calças e as calcinhas ao mesmo tempo.

         Roland se aproximou dela, alargando o braço. Rhiannon retrocedeu rapidamente e quando Roland a olhou com expressão zombadora, sorriu.

         —Agora você.

         Roland lhe respondeu com outro sorriso; tirou a camisa a toda velocidade e a deixou cair ao chão.

         Rhiannon deixou que seu olhar vagasse livremente por seu peito, por aquele escuro arbusto de cabelo que parecia convidá-la a explorá-la com seus dedos, com seus lábios.

         —Sempre me encantou seu peito, tão largo, tão... —incapaz de resistir, aproximou-se dele e deslizou as mãos pela firme parede de seus músculos. Inclinou a cabeça contra ele e respirou sua essência—.E seus ombros —sussurrou—.E seus braços. Qualquer diria que é um fisiculturista.

         —O único peso que levantei em minha vida foi o da espada, como muito bem sabe.

         Rhiannon posou os lábios em seu ombro.

         —Nesse caso, me alegro de que o fizesse —riscou um caminho de beijos por seu pescoço, saboreando o gosto da pele dele e baixou as mãos para suas calças desabotoadas, insistindo para ele tirá-las também—. Rápido, Roland.

         Roland riu e foi desprendendo do resto de sua roupa. Depois, continuaram de pé, abraçados, pele contra pele. O pêlo do peito de Roland roçava os seios dela. Sua rígida ereção permanecia firme contra seu ventre. Rhiannon deslizou as mãos pela curva de suas costas e baixou até seu traseiro.

         Roland, com as mãos ao redor de sua cintura, beijou-a profunda e apaixonadamente. Como se fossem um só corpo, desceram ao chão. Rhiannon o empurrou brandamente até que Roland terminou de costas. Estirou-se sobre ele e lhe cobriu o pescoço e os ombros de beijos.      Moveu os lábios sobre seu peito e apanhou um dos mamilos com os dentes. Roland ofegou e fechou a mão ao redor de sua cabeça, sustentando-a com força contra ele. Rhiannon sugou então o mamilo e, com a língua, desenhou um caminho desde seu esterno até seu ventre.

         Roland estremecia em resposta a suas carícias. Sua respiração ia fazendo-se mais rápida enquanto Rhiannon continuava atormentando-o. E quando acariciou a ponta de sua ereção com a língua, grunhiu como se em seu interior acabasse de estalar um trovão distante. No momento em que Rhiannon fechou a mão a seu redor, elevou os quadris e afundou os dedos em sua cabeleira. Em questão de segundos, estava ofegando e tentando apartá-la. Mas Rhiannon insistiu em render culto ao coração de seu sexo com a boca até que seus ofegos se converteram em uma súplica impotente.

         Gritou seu nome com voz estrangulada e todo seu corpo ficou rígido enquanto era derramada sua essência em seu interior.

         Foi relaxando-se lentamente, embora continuasse estremecendo com suas carícias. Rhiannon elevou a cabeça e deslizou sobre seu corpo. Sustentando o olhar, umedeceu os lábios. Imediatamente, sentiu a pressão do sexo endurecido de Roland contra a coxa e se colocou sobre ele, preparada para recebê-lo.

         Roland a tomou pelos quadris e se afundou em seu interior. Rhiannon jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Roland a enchia por completo, e não só fisicamente.

         Sentiu as mãos de Roland nas costas, pressionando seus ombros e fazendo-a inclinar-se para poder capturar com a boca um de seus seios. Ele sugou o mamilo com delicadeza e foi aumentando a pressão de sua boca seguindo o ritmo das investidas de seu sexo.

         Rhiannon o sentia empurrando-a para o mesmo lugar ao que ela acabava de levá-lo. Elevava e baixava os quadris. Quando se estava aproximando, embalou a cabeça dele contra seu seio, sentindo o toque de seus dentes bem no momento em que o mundo parecia explodir a seu redor. Rhiannon tremeu com a força da liberação, inclusive quando Roland continuava movendo-se dentro dela, mantendo aquele ritmo frenético. Roland mordiscou e apertou seu mamilo até que a ouviu gritar de prazer.

         Tornou de novo para trás, olhando-a nos olhos e Rhiannon soube que não tinha completado a viagem com ela. Roland a estreitou contra seu peito e Rhiannon enterrou seu rosto em seu escuro pêlo enquanto continuava tremendo pelo prazer recebido.

         Estreitando-a com força, Roland girou no chão para colocá-la debaixo dele. Fez-lhe elevar a cabeça para lhe dar um beijo longo e profundo. Rhiannon ficou sem respiração e, de algum jeito, ainda sedenta dele. Roland pareceu dar-se conta, porque começou de novo a atormentá-la com aquele ritmo lento que estava a ponto de enlouquecê-la. Rhiannon parecia ter os terminais nervosos a descoberto, porque sentia tudo multiplicado por mil. O tamanho do membro de Roland, o sussurro de seu triângulo de pêlo fundindo-se com o dele, a fricção de seu peito contra o seu...

         Enquanto a fogueira do prazer voltava a abrasá-la, elevou as pernas para lhe rodear com elas a cintura. Roland respondeu lhe fazendo levantar os quadris para poder afundar-se mais profundamente nela. O ritmo de seus movimentos aumentava ao mesmo tempo em que o corpo de Rhiannon se esticava. Roland riscou com a língua um caminho que ia da boca dela até sua orelha e, uma vez ali, fechou os dentes sobre o lóbulo.

         Então foi Rhiannon a que ofegou indefesa enquanto Roland a fazia voar para alturas cada vez maiores. Mas foram os dois que deixaram escapar um grito de doce e angustiado gozo enquanto os fluidos de seus corpos se fundiam.

         Voltaram lentamente para a realidade. Rhiannon olhou a seu redor e olhou depois ao Roland aos olhos.

         —É uma sorte que Eric e Tamara não tenham aparecido por aqui.

         —Não o farão. Tenho a certeza de que agora mesmo estão escondidos em alguma parte, fazendo o mesmo que nós.

Rhiannon assentiu, invejando a aquele feliz casal. Para ela, aquela seria a última vez.

         —Deveríamos ir procurando um lugar para descansar antes do amanhecer.

         —Ainda falta uma hora, Rhiannon. E queria ocupá-la em fazer coisas mais interessantes.

         A dor de Rhiannon desapareceu.

         —Que coisas?

         —Deixe eu lhe mostrar…

 

         Quando o amanhecer chegou, refugiaram-se em um armário do segundo piso. Ainda nus, permaneceram abraçados naquele estreito espaço.

Rhiannon já estava adormecida. Sua cabeça descansava no ombro de Roland e sua sedosa cabeleria cobria seu peito como uma manta.

         Roland não tinha perdido o controle. Não se tinha convertido em nenhum instante em uma besta... Possivelmente ainda houvesse alguma esperança para ele, pensou, enfrentando a idéia que tinha estado aguilhoando-o desde o primeiro beijo. E já não sabia se teria forças para deixá-la partir.

         Havia algo mais que luxúria no que tinham compartilhado. Não amor, porque ele se sabia incapaz de tão terno sentimento. Embora tivesse acreditado capaz de amar em outro tempo...

         Pensou em Rebecca, tão jovem e inocente. Apaixonou-se por ela, mas seus atos e sua necessidade de controlá-la- tinham levado a suicidar-se. Seu amor, ou o que ele pensava que era amor, tinham-na envenenado.

Ocorreria o mesmo com Rhiannon?

         Baixou o olhar para ela, que dormia tranqüilamente em seus braços. Não, não podia fazer o mesmo a ela. Seria um crime tentar reprimir Rhiannon.

         Devia a ela sua liberdade, embora só isso. Afinal, era só o que se sentia capaz de lhe dar.

 

         Justo depois do entardecer, dirigiram-se os dois para aquela acolhedora cabana cujas paredes encerravam o maligno Lucien. Quem era aquele homem?, perguntava-se Rhiannon, e por que a tinha escolhido? Havia poucos vampiros mais velhos que ela, mas havia. Damien, por exemplo.

         Tropeçou com uma pedra e Roland a agarrou imediatamente.       Rhiannon se recostou agradecida contra ele. Logo, muito em breve, teria que deixá-lo.

         —Algo a preocupa.

         Rhiannon o olhou suspirando.

         —Estava pensando na Tamara —mentiu—. É uma novata em todos estes jogos mentais. Espero que seja capaz de localizar o garoto.

         Roland assentiu sem soltá-la.

         —Seria-nos de grande ajuda que também ele estivesse tentando localizá-la.

         —Acha que o fará?

         Roland apertou os lábios e sacudiu a cabeça.

         —Não, se acreditar que isso poderia a poria em perigo. Suspeito que esteve aprendendo a reservar seus pensamentos. De outra maneira, já o teríamos localizado. É um menino muito cabeça-dura.

         Rhiannon assentiu, pensando de novo em Tamara e Eric. Tinha-os deixado em uma clareira do bosque, com as velas e o incenso ardendo entre eles. A Tamara com os olhos fechados, procurando com os dedos da mente o menino que adorava. Se algo lhe ocorresse, Lucien morreria, isso era indisputável. Porque se Rhiannon ou Roland não acabassem com ele, faria-o Tamara. Apareceu em seus lábios um sorriso.

         —Tamara tem um lado escuro.

         —Acaso não o temos todos? —perguntou Roland.

         —Suponho que sim, mas nela está bem escondido. É igual à beladona. Formosa e de aspecto inofensivo, mas contém um néctar letal.

         —Eu não qualificaria Tamara como letal.

         —Todos podemos matar, Roland, se acreditam ter motivos para isso —umedeceu os lábios—. Essa idéia que tem de que é mais monstruoso que qualquer de nós é produto da ignorância ou do engano. Ainda não tenho claro de qual das duas coisas.

         Roland se deteve sobre seus passos e a olhou com o cenho franzido.

         —Está zangada comigo, Rhiannon?

         Rhiannon pestanejou. Tinha dado no prego. Estava zangada com ele. Furiosa, de fato. Porque por culpa daquela tolice, ela ia estar triste toda a eternidade. Mas deu de ombros e apontou:

         —A cabana está justo detrás dessas rochas. A partir de agora, deveria ir sozinha.

         —Avançarei com você um pouco mais.

         —Lucien poderia ver. Espere-me aqui, detrás dessas rochas. Assim que Lucien esteja seguro que estou sozinha, pode se aproximar. Mas tome cuidado, Roland.

         Roland escrutinou seu rosto.

         —Não posso acreditar nisso. Está emocionada com esse encontro! Está desejando!

         —Sempre gostei dos desafios —sabia que aquele argumento o enfureceria, mas gostava de fazê-lo, embora não entendesse por que.

         Baixou o olhar para seu traje. Pegos à pele, levava umas malhas e um body desse maravilhoso tecido chamada spandex. Entretanto, havia usado esses objetos tão modernos e práticas com um quimono de cetim azul que a cobrisse até os pés. Nesse momento, tinha-o preso à cintura enquanto caminhava. Roland lhe tinha emprestado seu casaco negro para dar o toque final. Era um casaco muito quente que além disso acrescentava um ar de magia a cada um de seus movimentos.

         Roland a olhou e assentiu com aprovação.

         —Uma autêntica feiticeira. Ele vai tremer de medo assim que te ver.

         —Não se precipite. Preciso me aproveitar de qualquer vantagem e, se minha roupa me ajudar a intimidá-lo, melhor.

         —Sei — agarrou-a pelos ombros com firmeza— Tome cuidado, Rhiannon. E assim que detectar alguma destreza, me chame.

         —Certo. Agora deixe-me ir, antes que perca o valor —se voltou e correu para a cabana.

 

         Rhiannon se deteve a alguns metros da porta da cabana, fechou os olhos e ordenou em silêncio seus pensamentos. Tinha que concentrar-se unicamente em Lucien. Mas antes que estivesse preparada, a porta se abriu e o objeto de seus pensamentos encheu a entrada.

         —Passe, Rhiannon. Confio em que tenha mantido sua palavra e tenha vindo sozinha.

         —É obvio. Acaso crê que arriscaria a vida do menino, ou que poderia ter tanto medo que necessitasse reforços? Não se engane, Lucien. Eu não temo a nenhum mortal.

         Lucien se apartou para deixá-la entrar na cabana.

         — Não? Nem sequer a Curtis Rogers?

         —A ele menos que a ninguém. Está debilitado, cegado por sua sede de vingança. Mataria-o com a facilidade com a que se mata uma mosca. Mas não está aqui, verdade?

         Lucien deu de ombros e fechou a porta. Rhiannon concentrou seus pensamentos na casa. Estava vazia. Deteve-se frente à lareira, deixando que o calor do fogo a envolvesse.

         —Hoje vestiu-se de maneira distinta. Isso tem algum significado?

         —Acreditava que sabia tudo sobre mim. Não é capaz de reconhecer a vestimenta de uma princesa egípcia?

         Estudou seu rosto. Lucien tinha as pálpebras ligeiramente inchadas e umas escuras olheiras.

         — Seguiu minhas instruções?

         —Sim. Nada de dormir, de comer nem de beber. A verdade é que agora estou sedento como uma duna.

         —Passará. Como está o menino?

         —Bem, e de momento a salvo. E não tenho nenhuma dúvida de que seus amigos o estão procurando.

         —Pense o que quiser.

         —Em qualquer caso, não o encontrarão —cruzou a sala até chegar a uma porta fechada e a abriu. Permaneceu a um lado e lhe fez um gesto convidando-a a passar.

         Rhiannon parou na porta e viu uma saleta, sem nenhum móvel, salvo uma mesa e um abajur de querosene em cima.

         Uma vez no interior, Rhiannon tirou uma bolsa de tecido do bolso interior do casaco. Lucien estava olhando de cada um de seus movimentos.

         — O que é isso?

         Rhiannon abriu a bolsa e tirou as velas, um pacote de incenso e um pires de prata. Colocou todos os objetos no chão, fazendo um pequeno círculo.

         —Nada do que deva ter medo, Lucien. Vê?

         Lucien se ajoelhou, tomou uma das velas e a farejou. Depois levantou o pacote de ervas e o examinou, tomando um pouco na mão.

         —Incenso —lhe indicou Rhiannon—. Se coloca no prato, no centro do círculo das velas.

         Lucien a olhou com receio e colocou o incenso onde lhe tinha indicado.

         — Quer que as acenda?

         Estava nervoso. Rhiannon o detectou no movimento constante de seus olhos.

         —Não, já nos encarregaremos disso quando chegar o momento. Agora, apague a luz, por favor, e depois sente-se com as pernas cruzadas no chão.

         Lucien fez o que lhe pedia. Rhiannon rodeou o círculo de velas e se sentou em frente a ele. Provou sua mente e a encontrou completamente fechada à sua.

         —Tem que se concentrar, Lucien. Em sua mente não tem que haver nada, salvo as velas. te concentre nas mechas. Não pense em nada mais. Imagina as chamas acendendo-se baixo sua ordem.

         Viu-o olhar fixamente a vela que tinha justo frente a ele. Rhiannon dirigiu o fluxo de seus próprios pensamentos para ali e, em menos de um segundo, acendeu-se a mecha. Lucien retrocedeu como se o tivessem esbofeteado.

         —Muito bem —ronronou Rhiannon—.Tem uma mente muito forte para ser humano. Mas não está suficientemente concentrado.

         Lucien fixou o olhar em outra vela e Rhiannon deixou que continuasse olhando-a durante um bom momento antes de acendê-la. Uma a uma, foi acendendo todas as velas enquanto Lucien ia baixando a guarda lentamente. Tinha os olhos totalmente abertos e seu olhar resplandecia sob a tênue luz das velas.

         —Agora o incenso. É um pouco mais difícil. Se concentre.

         Observou-o concentrar-se no prato do incenso, mas não o acendeu, mas sim tentou procurar o Jamey nas escuras profundidades de sua mente. E, por um momento, distinguiu ao menino convexo em um pequeno cama de armar, com uma manta branca em cima. Mas a imagem se desvaneceu rapidamente quando Lucien a olhou.

         —Não funciona.

         —Porque não se está concentrando, tente outra vez.

         Lucien obedeceu. E Rhiannon procurou de novo em sua mente. Naquela ocasião viu uma casa às escuras com uma janela quebrada e teias de aranha.

         Olhou o incenso e este começou a defumar. Tentou localizar a prisão de Jamey. Estava perto, mas não naquela cabana, a não ser em outra similar. Estaria nessa mesma montanha? Não, estava no povo.

         —Está tentando me enganar, não é? —perguntou de repente Lucien.

         Sabia que tinha estado farejando em sua mente.

         —Nossos pensamentos também têm que fundir-se, Lucien. Isto não funcionará se não cooperar.

         «Se entregue a mim», pediu-lhe em silêncio.

         —Tem que relaxar. Respire fundo. Assim — fez uma demonstração.

Lucien a imitou durante alguns minutos e começou a fechar os olhos lentamente.

         —Muito melhor. Agora não te concentre em nada. Tenta separar a mente de seu corpo. Imagine a ti mesmo como a um espírito.

         «Sua vontade é minha, Lucien. Não deseja nada, salvo me obedecer. Não tem pensamentos. Se renda a mim, Lucien, se renda».

         Lentamente, Lucien foi fechando os olhos e sua respiração foi fazendo-se mais funda. Deixou cair a cabeça para diante.

         « Onde está o menino?»

 

         O corpo inteiro de Roland estava dependente de Rhiannon. Esteve esperando até que já não foi capaz de suportá-lo. Então começou a caminhar para a cabana. Rodearia-a até localizar uma janela da qual pudesse ver o que estava ocorrendo.

         Sem deixar de pensar no Rhiannon, saiu de seu esconderijo entre as rochas. O disparo chegou em meio da escuridão. Algo acabava de atravessar seu peito.

         Elevou a mão para aquele objeto que tinha penetrado seu corpo e atirou dele, mas sua mente começava a lhe falhar. Uma negra sombra envolvia sua consciência enquanto baixava o olhar para o dardo empapado em sangue que acabava de tirar de seu peito.

         Caiu de joelhos, elevando o olhar. Curtis Rogers permanecia a poucos metros dele, com um sorriso diabólico no rosto. Maldito! Roland estava tão concentrado em Rhiannon que se esqueceu de escrutinar a zona em busca de outras presenças estranhas. Tinha falhado... tinha falhado com Rhiannon.

         Os pensamentos de Rhiannon foram bruscamente interrompidos. Algo lhe tinha ocorrido a Roland. Naquele momento de distração, Lucien rompeu o vínculo que tinha estabelecido Rhiannon com sua mente, sacudiu a cabeça e a fulminou com o olhar enquanto se levantava.

         —Sei o que está tentando fazer. Deveria haver imaginado que não podia confiar em nenhum de vós.

Rhiannon também se levantou.

         —Não me tente, Lucien, ou morrerá agora mesmo. me diga onde escondeste ao menino.

         —Em nenhum momento teve intenção de manter sua parte do trato, por que vou ter que manter eu a minha?

         —Porque morrerá se não o faz —rodeou as velas para aproximar-se dele, mas ficou paralisada ao ver que se abria uma porta de par em par e aparecia Curtis Rogers apontando-a com uma arma.

         — Você!

         —Voltamos a nos encontrar, princesa.

         Rhiannon só pôde dar um passo mais. O dardo se cravou em seu ombro e gritou presa de uma repentina dor. Fechou os olhos, consciente de que aquele dardo continha um sedativo e de que seu tempo tinha terminado. No segundo último de consciência, dirigiu- um pensamento a Tamara, lhe transmitindo tudo o que tinha ocorrido e lhe suplicando que encontrasse a maneira de salvar o menino e Roland.

         Mas antes de que ficasse inconsciente, Lucien lhe agarrou o rosto para que o olhasse.

         —Antes de que chegue a hora, há algo que deveria saber. O cientista que você matou há tantos anos, o companheiro de Daniel St. Claire, era meu pai. E não descansarei até que tenha visto como pagam todos vocês sua morte.

 

         Estava quase amanhecendo. Roland o sentia em cada célula de seu corpo, mas não podia mover-se.

         Conseguiu entreabrir os olhos; podia ver o horizonte iluminando-se lentamente. A cabana estava vazia. E sabia que levaram Rhiannon. Voltariam a submetê-la a aquelas cruéis torturas. Por sua culpa.

         Fez uma careta de dor ao pensar que Rhiannon estava em mãos do Rogers. Tinha que seguir vivo, embora só fora para liberá-la.

         Fazendo chiar os dentes pelo esforço, conseguiu arrastar-se para diante. Não podia esperar a que Eric fosse em sua ajuda. Poderia não haver tempo, e também era possível que seu amigo tivesse problemas. Uma vez mais, aferrou-se à terra e conseguiu avançar uns centímetros. A esse ritmo, não chegaria à porta da cabana antes do meio-dia. Mas mesmo assim, tinha que tentá-lo.

         Em meio de seu esforço, chegou até ele o som de uns passos. Voltou a cabeça e deixou escapar uma baforada de ar. A sua esquerda, o resplendor do amanhecer e, a sua direita, um lobo do tamanho de um São Bernardo. Se não o matava um, faria-o o outro. Já não ficavam forças para combater a nenhum inimigo.

         Mas o que era isso? O lobo não grunhia, e tampouco ensinava as presas. Em troca, deteve-se seu lado, baixou sua enorme cabeça para ele e o hociqueó de um modo completamente inofensivo.

         Ronald estava tão impactado, que não era capaz de fazer outra coisa que olhar ao lobo enquanto este o empurrava delicadamente. Não se deteve até que o braço e o ombro direito do Roland ficaram apoiados sobre as fortes costas do animal. Sem ter nem idéia do que estava ocorrendo, Roland tentou rodear com o outro braço o pescoço do animal. E no momento no que o conseguiu, o lobo começou a avançar em direção contrária à cabana, até chegar a uma pequena cova escavada na pedra. Logo que era visível do exterior.

         O animal o arrastou ao interior. Ali nunca chegaria o sol, suspeitava Roland. Soltou o enorme pescoço do animal e se deixou cair ao chão. O lobo permaneceu sobre ele, olhando-o aos olhos. Havia inteligência em seu olhar.

         —Não sei o que você é, lobo —recordou então as histórias de Rhiannon sobre a capacidade de alguns anciões para mudar de forma—, mas obrigado.

         Esperava que o animal desse meia volta e partisse. Mas, em troca, sentou-se a seu lado, a só uns centímetros dele e fechou os olhos. Roland não demorou para fazê-lo também. Seu último pensamento foi para Rhiannon. Onde estaria ela enquanto o sol se elevava no céu?

         Quando despertou, estava sozinho. Olhou a seu redor, perguntando-se se teria sonhado o incidente do lobo. Era de noite outra vez. Sentindo-se forte de novo, correu ao exterior da cova, pensando em Rhiannon e se dirigiu à cabana a grandes pernadas, em busca de qualquer possível pista.

         — Roland!

         O grito o deixou paralisado, mas quase imediatamente, soube que era do Eric. voltou-se para seu amigo e aceitou seu abraço.

         —Roland, o que passou? Estávamos loucos de preocupação.

         —Rogers. Disparou-me um de seus dardos.

         — E Rhiannon?

         —Eu... não sei.

         Eric agarrou Roland pelo braço e se aproximaram juntos da cabana. Eric abriu a porta de par em par e se dispuseram a registrá-la com métodos absolutamente delicados.

         Na habitação menor, Roland se deteve com o coração esmigalhado ao ver o círculo de velas e o recipiente para o incenso. Viu depois o dardo manchado de sangre no chão, em uma esquina. Com a voz enrouquecida pela dor, chamou Eric.

         —Levaram-na —sussurrou. —Nós a localizaremos. Roland assentiu e escrutinou o rosto de seu amigo. — Onde está Támara?

         —Levaram o garoto ao castelo, Roland. Já não correm nenhum perigo. Liberaram o Jamey ontem de noite. Ao parecer não o queriam ele, só Rhiannon, e assim que a tiveram, deixaram-no partir. Se necessitarem uma ceva para nos atrair, vão usar ela.

         Roland assentiu; aquela explicação tinha sentido.

         —Eu teria gostado de estar aqui para te ajudar, Roland, mas Jamison estava sozinho no bosque. Passamos a maior parte da noite tentando encontrá-lo. Eu não tinha nem idéia do que estava ocorrendo aqui, embora Támara, sim. Roland arqueou uma sobrancelha.

         — Como?

         —Rhiannon lhe transmitiu algo. Foi ela a que nos dirigiu para esse lado do bosque em particular. Depois já não soube nada mais. Sabia que tinha ocorrido alguma coisa, mas não o que —sacudiu a cabeça—. Estava condenadamente assustado por voc}e, Roland. Como pode escapar ao sol com esse sedativo no sangue?.

         Roland pensou de novo no lobo e na inteligência de seu olhar.

         —Não estou cert, mas isso agora não importa. Temos que encontrar Rhiannon.

 

         Quando Rhiannon despertou, encontrou o rosto do Lucien abatendo-se sobre ela com olhar lascivo.

         —Não se assuste, Rhiannon. São as drogas de Rogers que adebilitaram. Dei-lhe meia dose antes do amanhecer. E acredito que foi suficiente.

         O cérebro de Rhiannon começou a funcionar vagamente. Sentiu um ar úmido e carregado a seu redor, cheirava a água estancada e a excrementos de rato.

         —Rogers... disse-lhe que nunca te daria a droga.

         —Não lhe ficou outra opção. Na verdade acreditava que ia permitir que te levasse a um de seus laboratórios antes de ter conseguido o que quero? Rogers tinha tantas intenções de cumprir sua promessa como você.

         Rhiannon tentou erguer-se, mas descobriu que correntes de ferro tinham preso os tornozelos contra a parede. Também estava atada pelos pulsos.

         —Manterei você suficientemente fraca para que não possa se liberar, pode crer.

         Rhiannon o olhou, sentindo como ia crescendo o aborrecimento em seu interior.

         — O que foi feito de Roland?

         — Refere-se a seu amigo, que estava fora da cabana? Curtis lhe disparou com um dardo, também. E o deixou exposto ao sol. Provavelmente a estas alturas já estará morto.

         Suas palavras foram como uma chicotada para seu coração. Fechou os olhos, tentando conter as lágrimas.

         —OH, que comovedor —disse Lucien, agarrando-a pelo queixo—.E agora, a não ser que queira seguir seu caminho, vai me transformar.

E Jamey?

É obvio.

         Rhiannon estudou seu rosto, perguntando-se se estaria lhe dizendo a verdade. Despertou com a sensação de que Jamey estava a salvo. Teria sido um sonho, ou alguém tinha tentado tranqüilizá-la?

         —Posso te manter aqui de forma indefinida, Rhiannon. Tenho boa quantidade dessa droga e todo o tempo do mundo. Se a vida desse menino não é incentivo suficiente para te convencer, podemos tentar utilizar a dor como estímulo. Sei o muito que te desagrada.

         — E se me render? E se te iniciar no mundo da noite eterna? O que passará então? Tenho que acreditar que me libertará quando te ouvi admitir que só vive para ver-me morrer?

         —Supõe o que queira. Se fizer o que lhe disse, liberarei o menino. Se não, ambos morrerão. Você escolhe, Rhiannon. E agora, tenho mais coisas a fazer. Voltarei dentro de uma hora para saber o que decidiu —e sem mais, deixou-a.

         Rhiannon ouviu o retumbar de seus passos enquanto se afastava pelas escadas do calabouço. Sim, um calabouço. Aonde diabos a tinha levado? Se estava em um calabouço, estava também em um castelo e, portanto, eram muitas as possibilidades de que continuassem na França. Possivelmente estivessem no vale do Loire, onde havia milhares de castelos medievais, entre eles, o de Roland. Roland.

         Bastava-lhe pensar nele para que a dor atravessasse sua alma. Chamou-o mentalmente uma e outra vez, mas não obteve resposta.

         —Amo-o, Roland de Courtemanche, cavaleiro, barão e homem imortal. Amo tudo em você —sussurrou.

         Elevou a cabeça para o céu, como se estivesse rezando aos deuses—. Se posso voltar a estar com ele, juro que farei tudo o que ele quiser. Não voltarei a me pôr em perigo. Viverei prudentemente. Converterei-me na mulher séria e formal que ele deseja. Jamais sairei de seu lado, mas preciso de mais uma oportunidade!

         Suas palavras eram um grito esmigalhado; os soluços sacudiam seu corpo. Por isso ela sabia, não havia nenhuma possibilidade. Roland não tinha respondido seus gritos se desesperados. A tristeza a paralisava, mas mesmo assim, sabia que se Roland pudesse lhe pedir algo da tumba, suplicaria-lhe que fizesse o necessário para salvar Jamey. O último presente que podia lhe oferecer era a vida de Jamison. De modo que não ficava outra opção que fazer o que Lucien lhe pedia.

 

         Enquanto desciam pela montanha, os gritos de Rhiannon o alcançaram. Roland elevou a cabeça e o estômago lhe fechou em um punho ante a angústia que refletia sua voz.

         Eric o agarrou com força do ombro.

         —Não responda.

         — Está louco? Escute-a.

         —Sim, estou louco. E também Lucien. E se responder, estará nos esperando. Já tem muitas armas em seu arsenal. Essa droga, a vida de Rhiannon e a ajuda de Curt Rogers. Não podemos lhe avisar de que vamos para lá.

         Roland tragou saliva. Os gritos de Rhiannon continuavam perseguindo-o. Deus, até então, não tinha sido consciente do muito que Rhiannon o queria. amaldiçoou-se a si mesmo por lhe haver feito tanto dano e jurou sobre as tumbas de sua família que jamais, em toda a eternidade, voltaria a lhe fazer danifico, embora isso lhe custasse a vida.

         Continuaram avançando a toda velocidade até que Eric se deteve bruscamente.

         —Confundi-me ao enumerar a lista de vantagens de Lucien. Olhe —apontou para um íngreme aterro.

         Justo debaixo deles, estava o carro de Curtis Rogers destroçado. Roland dirigiu sua mente para ali e viu o corpo torrado e grotescamente retorcido de Rogers depois do volante.

         —Isso não foi um acidente —disse Roland brandamente—. Leva o selo de Lucien.

         —Nesse caso, Lucien não tem intenção de entregar Rhiannon a DIP quando o tiver transformado.

         —Não. Lucien pretende matá-la.

 

         Rodearam a fortaleza em ruínas em duas ocasiões, procurando guardas ou vigilantes, antes de saltar seus muros. Cruzaram o pátio, saltaram o fosso e rodearam a torre, procurando a maneira de entrar. Ambos guardavam cuidadosamente seus pensamentos; tinham ereto uma taipa de aço ao redor de suas mentes. Lucien não devia saber que se aproximavam.

         Chegaram por fim até uma pequena gruta em uma das paredes, uma janela que nunca tinha tido vidro. Roland deslizou através dela e olhou a seu redor enquanto esperava a que Eric o seguisse. O lugar estava em ruínas. As poucas paredes que ficavam estavam desmoronando-se e o chão estava cheios de enormes brechas. O interior do castelo estava negro como a boca do lobo, mas com sua penetrante visão, conseguiu avançar através dos decrépitos corredores com a mente posta no Rhiannon.

depois de atravessar inumeráveis corredores e passagens, chegaram ao pé de          Escadas de pedra que descendiam em espiral para o que parecia o centro da terra. À medida que baixavam, ia fazendo-se mais forte o aroma de umidade e a putrefação. O som da água, dos roedores e o eco de seus passos ressonava em seus ouvidos. Rhiannon estava ali, naquele inferno e, provavelmente morta.

         Teria feito ela sofrer, aquele canalha? Haveria-a meio doido?

         Como lhe tivesse feito algo, mataria-o, prometeu Roland. A besta se liberou e, primeira vez, dava as boas-vinda à sua presença.

         Eric lhe tocou o braço e inclinou a cabeça. Só então Roland distinguiu o som de vozes repetindo-se através daquele cavernoso inferno.

         —Está preparada então? —era a voz do Lucien.

         —Estou preparada, Lucien —a voz de Rhiannon soava débil, refletindo ele o estado de seu corpo e de sua mente.

         —Lembre-se, nada de truques. Se me ocorrer algo, o garoto morrerá, entendeu?

         —Sim. Mas já chegará minha hora, Lucien, e então, pagará-me isso.

         —Sabia que ficaria furiosa pela pantera, mas esse animal não me deixou outra opção. Quando a vi em frente de meu carro, a tentação foi muito grande. E pela reação do menino, qualquer um diria que matara seu melhor amigo.

         Roland avançou. Não podia vê-los, mas cada vez os ouvia melhor.

         —Não matou a pantera —replicou Rhiannon a seu inimigo— E quando o menino esteja a salvo outra vez, poderia te converter em um de seus almoços.

         —A pantera sobreviveu? Então por que está tão zangada?

 

         —Canalha! —Rhiannon respirava com dificuldade—. Sabe... sabe perfeitamente a causa de meu aborrecimento. O que fez a Pandora empalidece ao lado de, seus outros crimes —se interrompeu para tomar ar. Você... tirou-me o único homem que amei…

 

         Suas últimas palavras foram só um sussurro.

         Roland ficou paralisado quando aquelas palavras chegaram até ele em meio da escuridão. Fechou os olhos, invadido por uma terrível dor, e não voltou a mover-se até que a voz do Eric o urgiu a continuar.

         —Vingarei Roland, Lucien —ouviu-se sussurrar Rhiannon—, não duvide.

         —Não terei mais remedeio que me assegurar de que nunca tenha oportunidade de fazê-lo, Rhiannon. Qualquer diria que está desejando sua morte.

         —Tome cuidado —suas palavras eram apenas um suspiro—, porque não tenho nada que perder.

ouviu-se ruído de cadeias e depois um ofego estrangulado.

         —Sente a agulha, Rhiannon? Se em algum momento tenho a sensação de que está tentando me beber a sangue até me matar, o êmbolo se ativará.    E a dose poderia te matar em questão de segundos.

         Eric e Roland dobraram uma esquina e tiveram a imagem daquele pesadelo ante seus olhos, iluminada somente pela luz de uma tocha.

         Roland se equilibrou para ela, mas Eric o agarrou pelo braço.

         —Se o atacar agora, ele a matará —lhe sussurrou precipitadamente ao ouvido-. Temos que conseguir que à parte essa maldita agulha antes de tocá-lo.

         A visão de Rhiannon sofrendo daquela maneira o destroçava, mas sabia que seu amigo tinha razão. Olhou a seu redor. por cima de suas cabeças penduravam mais cadeias. Roland imaginou imediatamente com que tortuosos propósitos. Deu- uma cotovelada ao Eric e assinalou para ali.

         —Poderia subir até ali sem fazer ruído? —perguntou-lhe Eric.

         —Saberei em um instante. E você será capaz de manter ao Lucien distraído sem que custe ao Rhiannon a vida?

         —Isso espero.

         Roland tomou ar e saltou para cima. agarrou-se a uma protuberância de pedra e apoiou os pés em uma parte de madeira inserido na parede. Olhou para diante, viu o Eric observando-o e assentiu.

Eric saiu então de entre as sombras.

         —Perdoe-me, Lucien, mas acredito que esqueceu de dizer a Rhiannon algumas coisas.

         Lucien se girou e tirou o fazê-lo-a seringa de injeção que lhe tinha parecido Rhiannon, lhe arrancando um grito de dor.

         —Marquand, verdade? Rogers me falou de você —brandía a seringa de injeção como se fosse uma arma.

         —Antes de que o matasse, quer dizer?

         Roland esperou. Necessitava que houvesse mais espaço entre   Rhiannon e aquela agulha.

         Lucien olhou por cima do ombro para Rhiannon.

         —Cale-se, Marquand.

         —Tem medo de que descubra o bolo, verdade? Assim que saiba a verdade, deixará de mostrar-se disposta a colaborar, não é certo?

Roland assentiu em silêncio, mostrando sua aprovação. Se Rhiannon se inteirava de que Jamey estava a salvo, Lucien perderia, de modo que ia se ver obrigado a silenciar ao Eric.

         —Saber... o que? —Rhiannon elevou a cabeça lentamente, fixando seu olhar no Eric.

         —Que Jamey... —interrompeu-se, avançando para o Lucien.

         E, nesse momento, Roland saltou de onde estava, agarrando-se a uma das cadeias. soltou-se um segundo depois e caiu sobre as largas costas do Lucien. Ambos os homens caíram ao chão; Lucien aterrissou de barriga para baixo, com o Roland em cima dele.

         Ainda sustentava na mão a seringa de injeção, que movia em um vão intento de cravar em Roland. Roland se levantou e pressionou com o joelho no centro das costas de Lucien. Agarrou-lhe depois a mão e a apertou até sentir ranger seus ossos. Com um grito, Lucien soltou a seringa de injeção. Mas nem sequer então o soltou Roland.

         «Um pouco mais de pressão e poderei lhe romper as costas. Basta pressionar o joelho um pouco mais e...»

         —Roland?

         Roland elevou o olhar e viu o Rhiannon olhando-o como se acabasse de ver um fantasma. A besta que habitava em seu interior pareceu dissolver-se nesse instante. Esqueceu imediatamente sua sede de vingança; quão único ansiava era tê-la a ela. Sentir suas carícias, seus lábios baixo os seus, poder ver seu sorriso e aquele brilho peralta em seu olhar.

         Levantou-se sem dar nenhuma atenção a Lucien, sabendo que Eric se faria cargo daquele bastardo. A única coisa que lhe preocupava era ela.

         Chegou até o Rhiannon e a abraçou. OH, senti-la viva, senti-la respirar, sentir os fortes batimentos do coração de seu coração contra seu peito... Fez-lhe posar a cabeça no oco de seu pescoço e afundou os dedos em seu cabelo, convencido de que jamais a deixaria partir.

Rhiannon elevou a cabeça e o olhou com uma intensidade que Roland quase podia tocar.

         —Eu... pensava...

         —Sei —sussurrou ele—. Sei. Não me atrevia a te responder sabendo que Lucien tinha tanta força psíquica —soltou as algemas com as que Lucien a tinha preso—. Ele a maltratou?

         —Não havia... nada que pudesse me fazer... mais mal que... pensar que tinha te perdido.

         Seus olhos se encontraram e Roland se perguntou como era possível que até então não tivesse sabido ver o amor que refletiam os de Rhiannon.

         Sem saber o que dizer ante a intensidade daqueles sentimentos, Roland se ajoelhou para liberar também seus tornozelos. Quando acabou, levantou-a em braços sem nenhum esforço.

         Eric deixou Lucien a um lado e se aproximou deles.

         —Deveria tê-lo matado —sussurrou Roland.

         Eric arqueou uma sobrancelha e assinalou ao Lucien com a cabeça.

         —Adiante-se, meu amigo. Agora mesmo nem sequer pode resistir. Estou seguro de que a essa besta que diz que leva dentro não lhe suporia nenhuma moléstia agachar-se e lhe destroçar a laringe.

         Roland baixou o olhar para Lucien uma vez mais, e olhou depois à mulher que tinha entre seus braços. Não era capaz de matar um homem a sangue frio. Em uma batalha sim, mas não assim. Olhou Eric nos olhos e suspirou:

         —Suponho que isto encerra uma lição. Mas agora mesmo só quero é tirar Rhiannon daqui.

 

         Rhiannon descansava em seu delicado e inquebrável abraço, às vezes consciente, outras não. Apenas se inteirou de como chegaram até o castelo de Courtemanche até que entraram e ouviu os gritos de Támara, Jamison e Freddy.

         Um rouco grunhido lhe fez baixar a cabeça. Era Pandora, com a pata envolta em um estuque branco. Rhiannon acariciou a cabeça de seu mascote.

         —Pandora, minha gatinha, está em casa. Sim, sim. Eu também me alegro de te ver, amor —beijou o focinho do animal.

         —Recolhemo-la quando vínhamos para cá —disse Támara—. Queríamos que estivesse em casa para te dar boas-vindas —a jovem franziu o cenho com expressão preocupada—. Está bem?

         Rhiannon sorriu e assentiu, embora não podia encontrar-se pior. Ia sentindo-se cada vez mais fraca, como conseqüência dos fortes efeitos da droga.

         —Jamison, passei tanto medo por você...-

         Jamey baixou o olhar para o chão.

         —Sinto muito. Por minha culpa quase lhes matam... outra vez.

         Rhiannon sacudiu a cabeça, mas Roland deu meia volta para dirigir-se a suas habitações.

         —Já teremos tempo de falar mais tarde. Agora precisa descansar —e enquanto falava, procurou seu rosto.

Rhiannon procurou também o seu, intrigada pelas infinitas perguntas que via em seus olhos. Roland parecia temer algo. Um estado impróprio de alguém tão valente. Uns segundos depois, estava-a tombando e agasalhando na cama.

         —Roland —Rhiannon aproximou a mão a seu rosto—, tenho muitas coisas que te dizer.

         —Chss. Quero que descanse. Amanhã de noite voltará a ser a de sempre outra vez, prometo-lhe isso. Então falaremos.

         —A de sempre? —pestanejou brandamente, recordando a promessa que tinha feito a qualquer dos deuses que poderia ter estado escutando-a—. Não, Roland, nunca voltarei...

         —Descanse, meu bem —a interrompeu posando um dedo em seus lábios—. Já falaremos mais tarde.

         —Sim, já falaremos.

         Mas Rhiannon não voltou a ser a mesma quando se levantou na noite seguinte. Nem ao dia seguinte tampouco. Estava mais forte, sim, observou Roland dias depois no salão. E tinha desaparecido o véu que ocultava o brilho de seus olhos. Mas tampouco via o olhar travesso ou insinuante que esperava encontrar neles.

         —Acha que essa droga do Rogers poderia ter efeitos secundários? —perguntou ao Eric.

         —Por que pergunta?

         —Olhe para ela. Está tão calada... Parece quase tímida.E leva assim quase uma semana —enquanto falava, Roland olhou para Rhiannon que, sentada em uma das poltronas, parecia completamente absorta no fogo enquanto acariciava com ar ausente a cabeça da pantera.

         —Suponho que talvez está um pouco assustada.

         —Rhiannon nunca se assusta.

         —Chss, vai ouvir —sussurrou Támara, enquanto cruzava a habitação ao lado do Jamey—.E este não é momento para zangá-la. O pai de Jamey chegará em qualquer momento e não queremos que a surpreenda em um de seus arrebatamentos de indignação, verdade?

         —Agora mesmo pagaria por um desses arrebatamentos —murmurou Roland, mas se aproximou da chaminé junto ao grupo.

         —O salão está muito mais agradável, Rhiannon. Fez um trabalho assombroso.

         Rhiannon elevou o olhar, sorriu e continuou acariciando à pantera.

         —Sim —comentou Eric, seguindo o tema de conversação iniciado pela Támara—, todas essas luzes e abajures suavizam a dureza da pedra. E os tapetes e as cortinas são de um gosto delicioso, não está de acordo, Roland?.

Roland se limitou a assentir.

         —Mesmo assim, acredito que teria ficado melhor se lhe tivesse deixado pendurar algum de seus quadros —comentou Támara.

         Roland deu de ombros. Ele também acreditava. E, em realidade, negou-se porque acreditava que Rhiannon se zangaria e estaria discutindo com ele até que tivesse conseguido convencê-lo. Sentia falta de discutir com ela. Mas Rhiannon se limitou a assentir e não havia tornado a pedir-lhe outra vez.

         Olhou Rhiannon, que estava observando-o a sua vez.

         —É adorável, sim. E é uma pena que não possamos ficar muito mais aqui. Mas estando Lucien ainda vivo, será melhor que nos partamos —observou a força com a que Rhiannon apertava sua taça. Por fim, pensou—. Não me ocorre outra solução. E a você, Rhiannon?

Por um instante, o fogo voltou a resplandecer em seus olhos.

         —A solução —disse, elevando o queixo—, seria encontrar a esse verme covarde e... —pestanejou rapidamente e os olhou a todos eles. Depois, voltou a afundar-se na poltrona e sacudiu a cabeça—. O que você ditas me parecerá bem, Roland.

         Roland levou a mão à frente enquanto Támara e Eric intercambiavam um olhar de preocupação.

         Chamaram então à porta. Rhiannon se levantou com sua habitual elegância e agarrou ao Jamey do braço.

         —Sabe que Roland só faz isto por você.

         —Sei —Jamey se levou a mão ao bolso no que guardava a carta que lhe tinha escrito seu pai—. E não estou zangado. Acredito que... que preciso fazer isto.

         Rhiannon lhe acariciou o cabelo e depois o abraçou. Um segundo depois, enquanto Rhiannon ia abrir a porta, Támara fez o mesmo.

         O homem que a esperava fora era vários centímetros mais baixo que ela. Sua constituição física parecia o reflexo de uma vida fisicamente ativa, mas levava uns óculos redondos. O cabelo, de cor escura, levava-o muito cabelo. E tinha os olhos mais amáveis que Rhiannon tinha visto nunca. Uns olhos que apenas se fixaram na beleza que tinham frente a eles e resplandeceram de emoção ao localizar ao Jamey.

         Durante um comprido minuto, limitaram-se a olhar o um ao outro. Tinham intercambiado já umas quantas cartas e chamadas telefônicas, de maneira que não eram uns completos desconhecidos. James Knudson não tinha tentado convencer ao Jamey de que se convertesse em seu filho da noite para o dia. Em troca, tinha-o convidado a passar várias semanas em sua casa de Califórnia para que conhecesse sua madrasta e a seu irmão. E Jamey se mostrou de acordo.

         A Roland lhe fez um nó na garganta quando Jamey deu um passo adiante. deteve-se ante seu pai e este envolveu a seu filho em um feroz abraço. Quando se separaram, James Knudson se tirou os óculos e se pressionou a ponte do nariz com o polegar e o índice.

         Roland sentia saber que ia perder o menino. Mas era o melhor. Aquele homem era treinador de uma equipe de futebol universitário. Que mais podia desejar um menino, pelo amor de Deus?

         Jamey se voltou para Roland.

         —Papai, este é Roland. Salvou-me a vida... mais de uma vez —Jamey mordeu o lábio—.E estes são Eric, Támara e Rhiannon.

         James se esclareceu garganta, obviamente confundido pelo excêntrico do lugar e pela formal vestimenta que todos, salvo Támara, levavam. Deu um passo adiante e lhes estreitou a mão.

         —Sei o muito que todos vocês significam para... meu filho —ao último que saudou foi ao Roland—. Jamais poderei lhe demonstrar até que ponto lhe estou agradecido. Se não me tivesse procurado, jamais teria sabido que tinha um filho.

Roland assentiu com um nó na garganta. Támara deu um passo adiante e falou por ele.

         —Recorde que todos nós o queremos, senhor Knudson. A decisão de ficar com você deve ser inteiramente do Jamey.

         —Jamais me ocorreria forçá-lo. Eu também o quero —olhou ao Jamey aos olhos e voltou a abraçá-lo— .E agora sabe como me localizar se necessitar algo.

         —Sei —Jamey também o abraçou. Depois, soltou-o e se voltou para ao Roland—. Eu... né, vou jogar te de menos.

O coração do Roland tremia em seu peito.

         —Não, jovenzinho. Vou visitar você tão freqüentemente que não vai ter oportunidade de fazê-lo.

         Jamey se voltou então para a Pandora, inclinou-se sobre ela e lhe rodeou o pescoço com os braços. A pantera moveu a cauda e rodou no chão, empurrando ao Jamey com ela. Jamey se sentou rendo e Pandora lhe plantou a garra no joelho.

         —Cuida deles, Pandora.

         A pantera lhe assegurou com o olhar que assim o faria. Jamey se levantou então e se voltou para seu estupefato pai. Quando este conseguiu apartar os olhos da pantera, dirigiram-se os duas para a porta.

         —Estaremos pendentes de vocêr —lhe disse Rhiannon brandamente.

         —E se te encontra com alguma situação de perigo, nos avise —acrescentou Eric.

         —Rogers já não está, então ele não te perseguirá —sussurrou Támara.

         —E o amigo de Támara que é perito em ordenadores vai apagar te de todos os arquivos da DIP, para eles, será como se nunca tivesse existido —Roland se aproximou do Rhiannon enquanto falava, como se precisasse tê-la perto ante a dor da separação—. Agora poderá desfrutar da vida própria de um rapaz de quatorze anos.

         Jamey abriu a boca, mas voltou a fechá-la. Em vez de dizer nada, deu um passo adiante e abraçou ao Roland com força. voltou-se depois e caminhou rapidamente para a porta.

         —Já estou preparado.

         Pai e filho saíram de noite e a porta se fechou lentamente atrás deles. Eric abraçou a Támara e Roland desejou fazer o mesmo com o Rhiannon, mas vacilou. Esta não o tinha animado do incidente com o Lucien e Roland a conhecia suficientemente bem para saber que o teria feito no caso de que o desejasse.

 

         No meio do resplendor das velas, Roland deu os toques finais à tela que tinha diante dele.

         Fazia já uma semana que não havia tornado a ver aquela mulher. Rhiannon estava ali, sim, e não havia tornado a comentar nada de ir-se para sempre. Mas não era a verdadeira. Era uma sombra da vivaz e ligeiramente vaidosa princesa do Nilo. Roland queria que retornasse, tão selvagem, volúvel e imprevisível como sempre. A sentia falta de. O castelo inteiro lhe parecia vazio, como uma rumba, sem sua buliçosa presença enchendo os corredores.

         Seus olhos vagaram pela imagem da beleza que tinha ante ele. Seus pincéis tinham apanhado a textura de sua pele, o resplendor de seus olhos escuros e as ondas de seu cabelo de cetim. E a desejava como sempre, mais possivelmente. Mas Rhiannon parecia indiferente a ele.

         —Assim era isto o que estiveste fazendo aqui —a voz do Eric lhe chegou da trampilla que havia no centro da habitação, justo antes de que seu corpo o seguisse.

Eric se elevou, sacudiu-se o pó e, com os braços cruzados, observou a pintura.

         —Roland, é impressionante.

         —É Rhiannon, não poderia ser de outra maneira.

         Eric sorriu.

         —Já lhe disse que está locamente apaixonado por ela?

         Roland franziu o cenho.

         —Provavelmente riria de mim. Já sabe o que pensa, Rhiannon sobre os sentimentos humanos.

         —É possível que tenha trocado de opinião durante estas últimas semanas, meu amigo.

         —Não seria o único no que trocou.

         —E não te paraste a pensar que ao melhor só está cedendo a suas petições?

         —Que classe de tolice é essa? Eu nunca lhe pedi que se converta em um móvel.

         Eric deu de ombros e afundou as mãos nos bolsos.

         —Esteve lhe recordando constantemente o imprudente e quão impulsiva é. Você criticou sua necessidade de chamar a atenção lá onde vai. E, ao menos em minha presença, em mais de uma ocasião lhe pediste que se comportasse como uma dama. E agora se queixa porque está fazendo o que queria.

         Roland franziu o cenho e baixou o olhar ao chão.

         —De verdade crê que é isso o que está fazendo?

         Eric deu de ombros.

         —Neste momento não me ocorre nada melhor.

         —Nesse caso, o que posso fazer a respeito?

         Rhiannon sustentava uma almofada entre suas mãos, atirando em direções opostas até que o tecido cedeu e o cheio da almofada se pulverizou por toda parte. Soltou um grito e girou sobre si mesmo.

         —Ah, Rhiannon, está aqui. Onde se tinha metido todos estes dias?

         Rhiannon se voltou para Támara e se mordeu o lábio. Não sabia que houvesse testemunhas daquele desafogo de gênio.

         —Não sei do que está falando.

         —Ah! —Támara entrou no dormitório, agachou-se e tomou um punhado do cheio da almofada—. Então o que é isto? Está pensando em voltar a preencher tudas as almofadas da casa para impressioná-lo?

         —Eu não preciso impressionar ninguém.

         —É obvio que não. Mas não sabia se foi consciente disso. Durante quanto tempo crie que vais poder manter esta situação?

         Rhiannon se voltou para a Támara. Estava a ponto de lhe gritar algo, mas viu então a sabedoria que encerravam os olhos da jovem e respondeu:

         —Não muito mais. OH, Támara, eu não estou feita para ser total. E ainda por cima minha atitude tampouco teve o efeito desejado. Da noite que me trouxe para casa, Roland não tornou a me olhar.

         —OH, claro que lhe olhe. De todas formas, não acredito que vás encontrar nenhum consolo destroçando almofadas quando o que você gostaria de seria lhe partir para ele em dois.

Rhiannon suspirou. Estava a ponto de perder a paciência.

         —Dava o que vieste a me dizer de uma vez.

Támara sorriu.

         —Eric e eu vamos embora esta noite. Só vim me despedir.

         —Vão?

 

         —Oh, não se preocupe. Voltaremos logo. Mas quero estar perto de Jamey se por acaso me necessitar. E Roland e você precisam ficar a sós. Acredito que será a maneira de as coisas funcionarem.

         Rhiannon baixou o olhar para o chão.

         —Temo que não há nada que possa funcionar. Roland sabia que eu pretendia partir assim que o menino estivesse a salvo. Não mantive minha palavra e, sem dúvida alguma, deve perguntar-se por que.

         —Bom, antes que vá, siga meu conselho e fale com ele. E conte tudo, não guarda nada. Esclareça coisas de uma vez por todas entre vocês, Rhiannon. Se não o fizer, nunca lhe perdoará isso.

         Rhiannon pestanejou. Depois, abraçou a Támara com força.

         —Para ser tão jovem, é muito boa conselheira. Sentirei sua falta.

 

         Aquela noite se reuniram os quatro uma vez mais ao redor do fogo do salão. Roland observou Rhiannon e advertiu com satisfação que tinha voltado para seus olhos a faísca que antes os animava. Rhiannon se tinha posto o vestido de veludo negro da primeira noite e elevou sua taça, agarrando-a com aqueles dedos coroados por umas unhas pintadas de cor vermelha sangu.

         —A próxima vez que nos veremos será em um lugar diferente —disse Eric—. Sentirei falta deste castelo.

         —OH, não sei, é possível que Roland não queira renunciar a este lugar —replicou Támara, sorrindo divertida, como se soubesse algo que outros desconheciam.

         —Continua Támara, dava o que tenha que dizer.

         —Sim, Támara. Esta noite tem um olhar especial desde que tem feito essas chamadas de telefone para te assegurar de que podíamos voltar sem correr riscos aos Estados Unidos —disse Eric.

Támara se encolheu de ombros.

         —Falei com minha amiga Hilary, quão única continua com a DIP. Ao parecer, estão estudando o desaparecimento de um capitalista vidente suspeito de ter assassinado ao Curtis Rogers.

         —O que? —Roland agarrou com força sua taça.

         —O último que se soube dele é que estava na sala de urgências de um hospital de Paris com a boneca destroçada. Desapareceu do hospital em meio da noite e ninguém tornou ou seja nada dele.

Roland olhou ao Rhiannon de reojo e advertiu que também Eric e Támara a olhavam. Rhiannon deu um sorvo a sua beberagem e fingiu não notá-lo.

         —Rhiannon, o que sabe a respeito?

         —Não tenho a menor ideia do que está falando.

         —Rhiannon... —insistiu Roland.

         Rhiannon o fulminou com o olhar. Roland se sentiu aliviado por vê-la adotar de novo aquela atitude altiva que preferiu ignorar o tema. Por isso podia ver, ou Rhiannon tampouco sabia nada de Lucien, ou não pensava dizê-lo.

         Depois de despedir-se da Támara e do Eric, Roland fechou a porta e se voltou para o Rhiannon. Tinha chegado o momento, decidiu, de lhe dizer a verdade. Despiria sua alma ante ela de uma vez por todas, arriscaria-se ao ridículo, admitiria que tinha estado equivocado durante todo aquele tempo e lhe pediria perdão.

         Mas o que viu em seus olhos o parou em seco. A arrogante filha do faraó havia tornado. Rhiannon o fulminou com o olhar e começou a subir as escadas.

         —Venha comigo se quiser, Roland. Eu também estou pronta para ir, mas há algo que eu gostaria de falar contigo antes de partir.

         —Partir ? —Roland correu atrás dela.

         Quando viu que continuava subindo para a sala da torre, agradeceu às estrelas o que lhe tivesse ocorrido tampar o tecido antes de deixá-lo.

         —Vai, Rhiannon? Eu...

         —Não. Já te dei tempo mais que suficiente para dizer o que tinha que dizer. Agora me toca —subiu pela escada de madeira até a trampilla e saiu no centro da torre.

         Roland a seguiu. E quando saiu, viu-a apoiada contra um vazio da parede, que permitia ver de ali os campos e a confluência dos dois rios. O vento sacudia seu cabelo. Voltou-se para Roland, levou as mãos para o coque no que se recolheu o cabelo e foi tirando as presilhas e as atirando com gesto dramático para fora.

         Quando terminou de liberar sua cabeleira, dirigiu a Roland um olhar desafiante.

         —Aqui morre sua delicada dama.

         Graças a Deus, pensou Roland, mas não disse nada. Rhiannon se voltou de novo para ele.

         —Não posso partir daqui até que saiba a verdade, porque não voltarei a vê-lo para poder te dizer como morreu realmente sua adorada Rebecca.

         —Acreditava que tínhamos vindo a falar de você e de mim.

         Rhiannon umedeceu os lábios e desviou o olhar.

         —Oh, acredito que desse assunto já ficam poucas coisas que falar. Mas há muitas coisas que não sabe de Rebecca —tomou ar—. Me disse que nunca a tinha amado, mas já sabe que é impossível me mentir. Sou capaz de sentir o que sente... a maior parte das vezes. E sei o muito que a queria. A habitação em que estive meditando com Támara era a casa de Rebecca, e voltei para ela.

         Roland franziu o cenho.

         —Por que?

         —Porque sua aura continuava nessa casa. Por causa de seu sentimento de culpa, Roland, ela não foi capaz de encontrar a paz em todos estes séculos.

         Roland sacudiu a cabeça. Não sabia se queria continuar escutando-a.

         —Esta noite descansará por fim, porque vou dizer te o que me tem feito saber Rebecca nessa habitação.

Roland fechou os olhos.

         —Não quero falar da Rebecca. Aqui não...

         —Ela te amava, Roland.

         —Não, Rebecca me desprezava.

         —Desejava te odiar pelo que tinha feito, mas era apaixonada por ti. Subiu aqui, a esta torre, para decidir o que devia fazer. Estava atormentada pela culpa. Sentia que podia estar traindo seu pai mas, ao mesmo tempo, queria aceitar sua proposta de matrimônio.

         —Está mentindo. por que me diz essas coisas, Rhiannon? Para tentar me liberar do sentimento de culpa com o que cargo há anos? Não tem sentido. Sei perfeitamente o que lhe fiz.

         —Rebecca levava um crucifixo de ouro preso ao pescoço com um cordão de couro.

         Roland tomou ar e olhou ao Rhiannon aos olhos. Mas ela não o estava vendo ele, parecia olhar além de onde ele se encontrava. Elevou a mão e a fechou em um punho à altura a que levava Rebecca o crucifixo.

         —Como sabe?

         —Agradava ao seu pai e ela o adorava —abriu a mão e fixou nela o olhar—. Mas o cordão se rompeu e a cruz caiu.

         Roland franziu o cenho, incapaz de dizer nada. Rhiannon se voltou e se apoiou contra a parede.

         —Caiu por esse oco e ficou em uma saliencia de pedra. Rebecca a viu e tentou alcançá-la —apareceu ela também, tentando imitá-la.

         Roland agarrou Rhiannon pelos ombros, temendo que caísse. Rhiannon se voltou para ele com os olhos cheios de lágrimas.

         —Mas Rebecca era tão pequena como Tamara. Não havia nenhuma esperança de que a alcançasse. E caiu. Pobre inocente. Caiu, e a cruz contínua ali —se separou da greta e assinalou para baixo.

         Roland se inclinou sobre a greta estupefato. A princípio não viu nada. Depois, um brilho apanhou seu olhar. Ali, na beira de um saliente entre duas pedras, brilhava o pequeno crucifixo iluminado pela lua. Roland sacudiu a cabeça assombrado, enquanto uma pesada carga parecia desaparecer nesse momento de seus ombros.

         —Não tirou a própria vida —sussurrou.

         —Não, Roland. Foi um acidente —Rhiannon se voltou para a trampilla e começou a descer—, assim já pode continuar sua vida sem te sentir culpado. Este é meu presente de despedida.

         —Espere!

         Apesar de seu grito, Rhiannon continuou descehdo a escada. Roland se aproximou da trampilla, agarrou-a pelos ombros e a fez voltar-se para ele.

 

         —Disse que espere.

         —Por que?

         Roland sacudiu a cabeça.

         —Há coisas das quais temos que falar, Rhiannon. Sabe tão bem como eu.

         —Isso já não importa.

         —Por que?

         —Porque já não posso fazer nada mais para que me deseje. Passei anos tentando te demonstrar que mereço pena. Mas minhas demonstrações de força só serviam para que se zangasse comigo ainda mais.

         Roland curvou os lábios em um sorriso e alargou os braços para ela, mas Rhiannon o apartou.

         —Rhiannon, eu...

         —Não, me escute embora só seja por uma vez, Roland. Quando Lucien me meteu nesse buraco, disse-me que estava morto. E eu jurei aos deuses que me converteria na criatura total que você queria que fosse se lhe salvavam a vida. Pode acreditar nisso? Eu, Rhiannon, fazendo uma promessa para ter a oportunidade de agradar um homem.

         Roland fechou os olhos e sacudiu a cabeça lentamente, mas Rhiannon continuou.

         —Tentei cumprir minha promessa, Roland. Durante dias, estive sussurrando entre estas paredes como uma florecilla, e o que consegui? Que me fizesse menos caso que antes. Mas não teria servido de nada que me fizesse isso, porque cheguei à conclusão de que não posso trocar para te agradar, nem a ti nem a ninguém. Eu sou quem sou, Rhiannon, nascida Rhianikki, filha do Faraó, princesa do Egito, vampiresa e mulher imortal.

         Voltou-se e posou as mãos nos ombros de Roland.

 

         —Olhe, Roland, não o vê em meus olhos?

         Só   viu Roland em seus olhos um repentino fluir de lágrimas.

         —Amo-a —sussurrou Rhiannon—. Pode rastrear o mundo inteiro e jamais encontrará a ninguém que te ame como eu. É um sentimento contra o que lutei durante toda minha existência e, entretanto, permanece. Mas você escolheu rechaçar esse amor, como fez meu pai antes de você. É um estúpido, Roland, por me deixar assim, mas eu sou igualmente estúpida por me arrojar uma vez mais a seus pés antes de ir. Pisoteie meu coração e terminecom esta agonia de uma vez por todas. Pelo menos agora, já não tem nenhuma dúvida do que está perdendo.

         Roland mordeu os lábios. Não podia lhe gritar, embora a tentação era grande.

         Rhiannon, já terminou

         hiannon assentiu.

         —Sim. Manterei minha promessa e partirei.

         Não, ainda não. Acredito que ainda ficam umas quantas coisas por dizer. Vis escutar-e?

         —Não.

         —Pr que não?

         —Porque não quero agravar minha humilhação chorando como uma menina diante de você quando me rechaçar pela última vez.

         Roland suspirou e Rhiannon se afastou dele.

         —Pelo menos me escute, Rhiannon. Durante todo este tempo, nem com os riscos que correu nem com a imprudência que demonstrou estava tentando demonstrar nada .

         Rhiannon se voltou para ele e o fulminou com um olhar feroz.

         —Ah, não?

         —Não, e tampouco a seu pai. Só queria demonstrar algo a si mesma. O desprezo de seu pai, e depois o meu, têm-lhe feito se questionar seu próprio valor, Rhiannon.

         —Possivelmente...

         —Mas já não tem nenhuma dúvida. Seu heroísmo e seu valor são superiores aos de todos os cavaleiros que conheci. Jamais existiu nem existirá uma mulher como você, acredite.

         Rhiannon se apartou de novo dele.

         —Deixe-me partir. Não quero chorar diante de você.

         —Isso é o que vou conseguir se lhe digo que te amo? Te fazer chorar?

         Rhiannon tragou saliva e se voltou para ele com expressão de incredulidade.

         —Rhiannon, escute o que tenho que te dizer, por favor. Tentei combater meu amor por você da noite em que me encontrou meio morto no campo de batalha e me tomou entre os braços. Acreditava que tinha razões para isso. Dizia-me mesmo que meu amor era um veneno, que só te causaria tristeza. Incomodava-me sua forma de aparecer e desaparecer, me deixando com saudades, e me convenci mesmo de que não me importava se ficava um dia ou um mês em suas visitas. Mas me importava, morria por dentro cada vez que me deixava sozinho.

         Voltou-se para o tecido e tomou o lençol que o cobria.

         —Nesta última ocasião, jurei que reteria algo teu para sempre —tirou o tecido da tela e a ouviu conter a respiração.

         Olhou Rhiannon e a viu com o olhar fixo na imagem do tecido. A mão lhe tremia quando a levou aos lábios e as lágrimas rolaram por suas faces.

 

         —Essa... não posso ser eu.

         —É sua essência, Rhiannon, mas temo que troquei que opinião. Desta vez não deixarei que vá. Não me bastará com vê-la neste quadro. Quero te olhar nos olhos, e quero ver neles a vida que sempre vi. Não quero ver seus olhos apagados pelo esforço de reprimir sua verdadeira natureza. Cheguei a te amar tal e como é, Rhiannon. E lutarei com você durante toda a eternidade se tentar mudar.

         Ajoelhou-se a seus pés e levou a mão ao coração.

         —Fica para sempre comigo, deusa entre as mulheres. Seja minha companheira, minha amante, minha amiga. Não volte a me deixar sozinho.

         Rhiannon se ajoelhou em frente a ele e afundou as mãos em seu cabelo.

         —Adoro-o, Roland, mas não estou segura de que possa levar a vida de ermitão que você leva.

         —E eu jamais te pediria que o fizesse, Rhiannon. Minha condenação terminou. Você me deu as chaves da liberdade.

Rhiannon sorriu e voltou a aparecer o brilho perverso em seu olhar.

         —Diga-me isso outra vez.

         —Amo-a, Rhiannon. E seu pai estava completamente equivocado. Sabe? Você é um tesouro, um tesouro estranho e precioso, um tesouro que se pode procurar e encontrar, mas do qual ninguém pode apropriar-se. Só pode reter-se durante algum tempo.

         —Então me desafie, Roland. Me desafie ficar a seu lado durante muito tempo.

 

 

                                                                                                    Maggie Shayne

 

 

 

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