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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REDIMIDA / P. C. Cast e Kristin Cast
REDIMIDA / P. C. Cast e Kristin Cast

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Nunca me senti tão sombria assim.
Nem mesmo quando fui estilhaçada e presa no Mundo do Além e minha alma começou a se fragmentar. Naquela época, eu estava quebrada, destruída e prestes a me perder para sempre. Eu me sentia sombria por dentro, mas as pessoas que mais me amavam foram faróis lindos e brilhantes de esperança, e eu fui capaz de encontrar força em sua luz. Consegui sair da escuridão.
Desta vez, eu não tinha nenhuma esperança. Não conseguia encontrar uma luz. Eu merecia continuar perdida, despedaçada. Desta vez, eu não merecia ser salva.
O Detetive Marx me levou para a delegacia do condado de Tulsa em vez de me jogar numa cela com o resto dos criminosos presos há pouco tempo. Na viagem aparentemente interminável da Morada da Noite até o grande prédio de pedra marrom do Departamento de Polícia da First Street ele conversou comigo, explicando que tinha feito uma ligação e mexido uns pauzinhos para que eu ficasse em uma cela especial até que o meu advogado tomasse as devidas providências sobre minha acusação, e então eu poderia ser solta sob fiança. Ele alternava o olhar entre a estrada e o meu reflexo no espelho retrovisor. Meu olhar encontrou o dele. Não precisei de mais do que um olhar de relance para ler a expressão em seu rosto.
Ele sabia que eu não tinha a menor chance de conseguir sair sob fiança.
– Eu não preciso de um advogado – disse eu. – E não quero fiança.
– Zoey, você não está pensando direito. Espere um pouco. Acredite em mim, você vai precisar de um advogado. E, se puder sair sob fiança, será o melhor para você.
– Mas não seria o melhor para Tulsa. Ninguém vai deixar um monstro à solta. – Minha voz soou estável e indiferente, mas por dentro eu estava gritando.
– Você não é um monstro – assegurou-me Marx.
– Você viu aqueles dois homens que eu matei?
Ele me lançou um olhar pelo retrovisor de novo e assentiu. Eu podia ver que seus lábios estavam pressionados, formando uma linha, como se estivesse se segurando para não dizer algo. Por algum motivo, seu olhar ainda era bondoso. Eu não conseguia retribuir aquele olhar.
Olhando pela janela, eu disse:
– Então, você sabe o que eu sou. Você pode me chamar de monstro, de assassina, de vampira novata e perigosa... É tudo a mesma coisa. Eu mereço ser presa. Eu mereço o que vai acontecer comigo.
Então, ele desistiu de conversar, e eu fiquei satisfeita.

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Uma cerca de ferro preta cercava o estacionamento da delegacia de polícia, e Marx seguiu até um portão nos fundos onde precisava esperar para ser identificado antes de um enorme portão se abrir. Então, ele estacionou e me conduziu, algemada, por uma porta nos fundos e por uma grande e agitada sala toda dividida em cubículos. Quando entramos, policiais conversavam e telefones tocavam. Assim que perceberam que Marx estava comigo, foi como se tudo tivesse sido desligado. As conversas cessaram e todos nos fitaram como idiotas.
Fixei o olhar em um ponto na parede bem na minha frente e me concentrei para não permitir que os gritos dentro de mim ecoassem.
Tivemos de atravessar toda a sala. Então passamos por uma porta que levava a uma daquelas salas como as do seriado Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais , em que a incrível Mariska Hargitay interroga os bandidos.
Fiquei sobressaltada ao perceber que o que eu fizera me transformara em um dos bandidos.
Havia uma porta no canto da sala que levava a um pequeno corredor. Marx virou à esquerda e parou para passar seu crachá de identificação, e uma porta de aço muito grossa se abriu. Do outro lado, o corredor logo acabava. Havia outra porta de metal à nossa direita, que estava aberta. A parte de baixo era sólida, mas, na altura dos ombros, as grades começavam. Grades pretas e grossas. Foi onde o Detetive Marx parou. Olhei para dentro. O lugar era uma tumba. De repente, senti dificuldade para respirar, e meus olhos desviaram do lugar horrível para encontrar o rosto familiar de Marx.
– Com o poder que você tem, imagino que consiga fugir daqui – ele falou baixinho, como se alguém pudesse estar nos escutando.
– Eu deixei a pedra da vidência na Morada da Noite. Foi isso que me deu o poder para matar aqueles dois homens.
– Então, você não os matou sozinha?
– Eu fiquei furiosa e despejei toda a minha fúria neles. A pedra da vidência só me deu o estímulo. Detetive Marx, a culpa foi minha. Ponto final.
Tentei soar durona e certa do que estava falando, mas a minha voz saiu suave e trêmula.
– Você consegue fugir daqui, Zoey?
– Para ser honesta, eu não sei, mas prometo que não vou tentar. – Respirei fundo e soltei todo o ar de uma vez, dizendo a ele a mais absoluta verdade. – Por causa do que eu fiz, meu lugar é aqui, e independentemente do que aconteça comigo, eu mereço.
– Bem, eu prometo que ninguém vai conseguir incomodá-la aqui. Você estará segura – garantiu ele, gentil. – Eu mesmo me certifiquei disso. Então, o que vier a acontecer, não será porque levou uma surra de linchadores.
– Obrigada.
Minha voz estava fraca, mas consegui pronunciar as palavras.
Ele tirou de mim as algemas.
Eu não tinha conseguido me mexer ainda.
– Você precisa entrar na cela agora.
Consegui fazer com que meus pés se mexessem. Quando eu estava dentro da cela, virei-me e, pouco antes de ele fechar a porta, eu disse:
– Não quero ver ninguém. Especialmente se for da Morada da Noite.
– Tem certeza?
– Tenho.
– Você entende o que está dizendo, não entende? – perguntou ele.
Eu assenti.
– Eu sei o que acontece com uma novata que não fica perto de vampiros.
– Então, basicamente, você está dando a sua própria sentença.
Ele não formulou como uma pergunta, mas eu respondi mesmo assim.
– O que eu estou fazendo é me responsabilizar pelos meus atos.
Ele hesitou, e pareceu que havia mais alguma coisa que desejava dizer, mas Marx apenas deu de ombros, suspirou e concordou:
– Certo, então. Boa sorte, Zoey. Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto.
A porta se fechou como que selando um caixão.
Não havia janela, nenhuma luz exterior exceto a do corredor que espreitava por entre as barras da porta. No fundo da cela havia uma cama: um colchão fino em cima de placa de alguma coisa dura grudada na parede. Havia um vaso sanitário de alumínio saindo do meio de uma parede paralela, não muito longe da cama. Não tinha tampa. O chão era de concreto preto. As paredes eram cinza. Sentindo-me como se estivesse em um pesadelo, andei até a cama.
Seis passos. Esse era o comprimento da cela. Seis passos.
Fui até a parede lateral e caminhei pela cela. Cinco passos. Tinha cinco passos de largura.
Eu estava certa. Se não contasse a distância para o teto, eu estava trancada em uma tumba do tamanho de um caixão.
Sentei-me na cama, puxei os joelhos até embaixo do queixo e abracei-os. Meu corpo tremia, tremia e tremia.
Eu ia morrer.
Eu não consegui me lembrar se Oklahoma tinha pena de morte. Como se eu tivesse realmente prestado atenção às aulas de História enquanto o Treinador Fitz passava um filme atrás do outro. Mas, de qualquer forma, isso não importava. Eu deixara a Morada da Noite. Sozinha. Sem nenhum vampiro. Nem mesmo o Detetive Marx sabia o que isso significava. Era só uma questão de tempo até meu corpo começar a rejeitar a Transformação.
Como se eu tivesse rebobinado um filme em minha mente, imagens de novatas morrendo apareceram na tela dos meus olhos fechados: Elliot, Stevie, Rae, Stark, Erin...
Apertei meus olhos ainda mais.
Acontece rápido. Rápido mesmo , prometi para mim mesma.
Então, outra cena de morte surgiu nas minhas lembranças. Dois homens – mendigos, insolentes, mas vivos, até que não consegui controlar o meu temperamento. Eu me lembrava de como atirara a minha raiva contra eles... de como eles bateram contra o paredão de pedra ao lado da pequena gruta de Woodward Park... de como ficaram deitados lá, dobrados, quebrados...
Mas eles estavam se mexendo! Eu não achei que os tivesse matado! Não tinha a intenção de matá-los! Fora realmente um terrível acidente! Minha mente gritava.
– Não! – falei com firmeza para a parte egoísta de mim que queria inventar desculpas e fugir das consequências. – As pessoas têm convulsões quando estão morrendo. Eles estão mortos porque eu os matei. Não vai compensar o que fiz, mas mereço morrer.
Eu me encolhi embaixo do áspero cobertor cinza e fitei a parede. Ignorei a bandeja com o jantar que enfiaram por uma abertura na porta. Eu não estava com fome, mas independentemente do que houvesse na bandeja, definitivamente não me apeteceria.
E, por alguma razão, a refeição ruim fez com que eu me lembrasse da última vez em que senti um cheiro maravilhoso de comida: o psaguetti [*] da Morada da Noite, cercada de amigos.
Mas eu estava estressada demais com o problema Aurox/Heath/Stark e nem apreciei o psaguetti de verdade. Assim como não apreciei os meus amigos. Nem Stark. Não mesmo.
Eu não tinha parado para pensar como era sortuda por dois caras tão incríveis me amarem. Em vez disso, eu ficara irada e frustrada.
Pensei em Aphrodite. Lembrei-me de como ela falou com Shaylin sobre me vigiar. Lembrei-me de como entrei furiosa e despejei o poder da minha fúria acumulada através da pedra da vidência.
A lembrança fez com que eu me encolhesse de vergonha.
Aphrodite estava absolutamente certa. Eu precisava ser vigiada. Ela sequer teve a chance de conversar comigo. E, quando tentou, droga, eu não fui nem um pouco razoável.
Eu me encolhi de novo quando me lembrei de como cheguei perto de despejar a minha raiva contra Aphrodite.
– Aiminhadeusa ! Se eu tivesse feito isso, teria matado a minha amiga – disse para as palmas das minhas mãos enquanto cobria o rosto de vergonha.
Não importava que a pedra da vidência, de alguma forma, mesmo sem eu pedir, tivesse aumentado meus poderes. Tive muitos avisos. Todas aquelas vezes em que me irritava e a pedra ficava cada vez mais quente. Por que não parei e refleti sobre o que estava acontecendo? Por que não pedi a ajuda de alguém? Cheguei a pedir conselhos a Lenobia sobre namorados. Conselho sobre namorados! Devia ter perguntado sobre como controlar raiva!
Mas eu não pedia ajuda para nada, exceto para a única coisa em que a minha visão afunilada estava focada: em mim mesma.
Eu era uma vadia egocêntrica.
Eu merecia estar onde estava. Eu merecia as consequências.
As luzes do corredor se apagaram. Não fazia ideia de que horas eram. Parecia ter se passado anos, e não apenas meses, desde que eu fora humana – uma adolescente normal que tinha que ir para a cama muito cedo nos dias de aula.
Eu desejava, com todas as minhas forças, poder chamar o Super­-Homem e pedir que ele voasse na direção contrária em volta da Terra para fazer o tempo voltar para ontem. Então, eu estaria em casa, na Morada da Noite, com meus amigos. Eu me jogaria nos braços de Stark e diria a ele o quanto o amo e sou grata por tê-lo. Diria que sinto muito pela confusão com Aurox/Heath, e que sairíamos dessa – nós, as duas pessoas e meia envolvidas –, mas que eu desfrutaria de todo o amor que me cercava, independentemente de qualquer coisa. Depois, me livraria da maldita pedra da vidência, procuraria Aphrodite e entregaria a ela para que fosse mantida em segurança, como se ela fosse o meu Frodo.
Mas era tarde demais para desejos. Voltar no tempo era só uma fantasia. O Super-Homem não era real.
Não dormi. Era noite, e a noite se tornara o meu dia. Neste momento, eu deveria estar na escola com meus amigos, vivendo a minha vida, tendo um “dia” normal (para mim), em vez de estar aqui, encolhida. Eu deveria ter sido mais esperta. Mais forte. Deveria ter sido qualquer coisa, menos uma pirralha egoísta.
Horas depois, ouvi a portinhola se abrir de novo, e quando me virei, vi que alguém levara a minha bandeja intocada. Bom. Talvez o cheiro também fosse embora.
Eu precisava fazer xixi, mas não queria. Não queria usar o vaso sem tampa que saía da parede no meio da cela. Olhei para os cantos das paredes, no ponto de encontro com o teto. Câmeras.
Era legal guardas verem prisioneiros fazerem xixi?
As regras regulares se aplicavam a mim? Quero dizer, eu nunca ouvira falar de um novato ou vampiro ser julgado por um tribunal humano nem ir para uma prisão humana.
Não preciso me preocupar com isso. Vou me afogar no meu próprio sangue antes de ir a julgamento.
Por mais estranho que possa parecer, esse pensamento era um conforto, e quando a luz do corredor se acendeu, caí num sono agitado e sem sonho.
Para mim, pareceu que dez segundos depois, a portinhola se abriu de novo e outra bandeja de alumínio foi empurrada para dentro da minha cela. O barulho me fez acordar assustada, mas ainda estava grogue, ainda tentando voltar a dormir – até que o cheiro de ovos e bacon me deixou com água na boca. Há quanto tempo eu não comia? Nossa, me sentia péssima. Ainda sem enxergar direito, andei os seis passos até a porta, pegando a bandeja e levando com cuidado para a minha cama desarrumada.
Os ovos estavam mexidos e supermolhados. O bacon, duro como um pedaço de pau. Havia café, uma caixa de leite e uma torrada pura.
Eu daria praticamente qualquer coisa por uma tigela de cereal Count Chocula e uma lata de refrigerante.
Dei uma garfada nos ovos, mas estavam tão salgados que quase engasguei.
Mas, em vez engasgar, comecei a tossir. Naquela tosse terrível, senti alguma coisa metálica, pegajosa, quente e estranhamente maravilhosa.
Era o meu próprio sangue.
O medo tomou conta de mim, deixando-me fraca, tonta e nauseada. Está acontecendo tão rápido? Eu não estou pronta! Não estou pronta!
Tentando limpar a minha garganta, tentando respirar, cuspi os ovos, ignorei o tingimento rosado no amarelo gorduroso, coloquei a bandeja no chão e me encolhi na cama, passando os braços em volta de mim mesma e esperando por mais tosse e sangue – muito mais sangue. Minhas mãos estavam tremendo quando enxuguei meus lábios.
Eu estava com tanto medo!
Não fique , disse para mim mesma enquanto tentava prender uma tosse terrível. Logo você verá Nyx. E Jack. E talvez até Dragon e Anastasia.
E mamãe!
Mãe... de repente, desejei a presença de minha mãe com todas as forças do meu ser.
– Eu gostaria de não estar sozinha – sussurrei com uma voz grave, a boca grudada no colchão fino e duro.
Escutei a porta se abrindo, mas não me virei. Não queria ver a expressão horrorizada de um estranho. Fechei os olhos bem apertados e tentei fingir que estava na fazenda de lavanda da Vovó, dormindo no meu quarto lá. Tentei fingir que o cheiro dos ovos com bacon era da comida dela, e que a minha tosse era apenas uma gripe que me impedia de ir à escola.
E eu estava fazendo isso! Ah, obrigada, Nyx! De repente, juro que consegui sentir os aromas que sempre se espalhavam na casa da Vovó, lavanda e capim. Isso me deu a coragem para falar logo, antes que a minha voz ficasse sufocada pelo sangue, para quem quer que estivesse ali:
– Tudo bem. Isso é o que acontece com alguns novatos. Por favor, vá embora e me deixe em paz.
– Ah, Zoey Passarinha, minha preciosa u-we-tsi-a-ge-ya , a esta altura você já deveria saber que eu nunca vou deixá-la sozinha.
[*] Modo como as crianças dos Estados Unidos às vezes pronunciam spaghetti erroneamente. (N.T.)

2
Zoey
Achei que ela fosse parte da minha alucinação agonizante, parada ali na porta da cela, usando uma camisa de linho roxa e jeans gastos, com uma cesta de piquenique pendurada no braço. Mas assim que me virei para encará-la, ela correu até mim, sentando-se na beirada da cama e me envolvendo em seus braços e nos cheiros da minha infância.
– Vovó! Eu sinto muito! Sinto muito! – Soluçava em seu ombro.
– Shhh, u-we-tsi-a-ge-ya , estou aqui. – Ela passava a mão em círculos nas minhas costas.
A minha tosse amenizou temporariamente, então eu disse logo:
– Eu sei que estou sendo egoísta, mas estou tão feliz que esteja aqui. Eu não quero morrer sozinha.
Vovó se afastou de mim o suficiente para me pegar pelos ombros e me sacudir.
– Zoey Redbird, você não vai morrer.
Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu as ignorei e enxuguei o canto da minha boca, estendendo meus dedos trêmulos para que ela pudesse ver o sangue.
Ela mal olhou para a prova que eu estava tentando lhe mostrar. Em vez disso, abriu a cesta de piquenique, tirou um guardanapo xadrez vermelho e branco e começou a enxugar as minhas lágrimas e meu nariz, exatamente como fazia quando eu era apenas uma menininha.
– Vovó, eu sei que você me ama mais do que qualquer pessoa no mundo – comecei, tentando (sem sucesso) não chorar. – Mas você não pode impedir que meu corpo rejeite a Transformação.
– Você está certa, u-we-tsi-a-ge-ya , eu não posso. Mas eles podem. – Ela apontou para a porta atrás de mim.
Virei-me e vi Thanatos e Lenobia, Stevie Rae, Darius e Stark – meu Stark –, todos apertados na porta. Stevie Rae estava chorando tão alto que não sei como não havia escutado antes.
Stark também estava chorando, mas em silêncio.
– Mas eu disse para não virem atrás de mim! Eu disse que mereço enfrentar as consequências. – Chorava tanto quanto Stevie Rae agora.
– Então, viva e enfrente as consequências! E eu estarei bem aqui, o mais perto possível de você para passar pela coisa toda! – Stark atirou as palavras em mim.
– Eu não posso. Já comecei a rejeitar a Transformação – contei soluçando.
– Menina, a sua avó falou a verdade. A não ser que a rejeição do seu corpo já esteja determinada, nossa presença vai impedi-la – afirmou Thanatos.
– Você não vai morrer! Eu não vou deixar! – gritou Stark aos prantos, e começou a entrar na minha cela.
– Espere aí, rapaz! Eu disse que só um de cada vez pode entrar na cela. – Um cara com uniforme policial veio de trás do meu grupo de amigos e se colocou entre eles e a minha cela. – O Detetive Marx me disse que eu deveria permitir a entrada de vocês, vampiros, no prédio se aparecessem, mas não vou quebrar as regras e deixar mais de um visitante por vez. A avó é da família. O resto de vocês pode esperar na sala de interrogatório. – Ele lançou um olhar sério para a minha avó. – A senhora tem quinze minutos. – Então, bateu a porta.
– Quinze minutos. – Vovó emitiu um ruído de descontentamento. – Isso não é uma visita apropriada. Esse é o tempo de cozinhar um ovo. Que rapaz sem coração. Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo. Zoey Passarinha, assoe o nariz e fique de pé. Você precisa de uma boa defumação. Ah, os cavalheiros que revistaram a cesta fizeram uma bagunça.
Ela já estava mexendo dentro da cesta de piquenique sem fundo, por isso precisei segurar suas mãos nas minhas para que parasse e prestasse a atenção em mim.
– Vovó, eu amo você. Você sabe, não sabe?
– Claro, u-we-tsi-a-ge-ya. E eu amo você, de todo o coração. É por isso que preciso te defumar. Gostaria que tivesse uma banheira aqui, ou mesmo uma pia, para ajudar ainda mais na purificação. Mas a defumação vai ter que ser o suficiente. Trabalhei a noite toda e finalmente escolhi defumar você com essa concha de ostra que nós duas pegamos quando seguimos o Rio Mississipi até o Golfo no verão em que você completou dez anos. Lembra?
– Claro que lembro, Vovó, mas...
– Bom. Moí e misturei sálvia, cedro e lavanda. Combinados, eles formam um poderoso defumador para purificação emocional e física. – Ela estava derramando as ervas secas de uma bolsinha de veludo preta para a concha de ostra. – Eu também trouxe uma pena de águia e minha peça favorita de turquesa. Sei que eles podem tentar tirar de você, mas vamos tentar esconder dentro do colchão. Vai servir para protegê-la enquanto...
– Vovó, por favor, pare – interrompi. Encontrando o seu olhar sem nem piscar, eu disse: – Eu matei aqueles dois homens. Não mereço ser purificada nem protegida. Mereço o que estava acontecendo comigo antes de todos vocês aparecerem.
Minha intenção não era ser tão fria, mas minhas palavras fizeram com que ela hesitasse. Então, suavizei a minha voz, mas não a minha decisão.
– Os vampiros podem ter evitado que me afogasse no meu próprio sangue, mas isso não muda o fato de que eu fiz uma coisa terrível, uma coisa pela qual preciso ser punida.
Ela parou de preparar a minha defumação e seus olhos penetrantes encontraram os meus.
– Diga-me, u-we-tsi-a-ge-ya , por que você matou aqueles homens?
Balancei a cabeça e afastei o cabelo despenteado do meu rosto.
– Eu não sabia que os tinha matado até o Detetive Marx aparecer na Morada da Noite. Eu só sabia que eles tinham me enfurecido. Estavam perambulando por Woodward Park atrás de pessoas, principalmente garotas, amedrontando-as para que lhes dessem dinheiro. – Parei e meneei a cabeça de novo. – Mas isso não torna o que eu fiz aceitável. Quando dessem conta do que eu era, me deixariam em paz.
– E iam seguir até encontrar outra vítima.
– Provavelmente, mas não iam matar. Eles eram mendigos, não serial killers.
– Então, me conte o que aconteceu. Como você os matou?
– Descontei minha raiva neles. Da mesma forma que tinha feito com Shaylin mais cedo, atirando-a no chão. Só que eu fiquei ainda mais furiosa no parque. De algum jeito, a pedra da vidência exacerbou os meus sentimentos e me deu o poder de atacar todos eles.
– Mas você não matou Shaylin – considerou Vovó, sendo lógica. – Eu vi a menina na Morada da Noite um pouco antes de vir para cá. Ela me pareceu bem viva.
– Não, eu não a matei. Não dessa vez. Quem sabe o que poderia ter acontecido se eu não tivesse ido embora e seguido para o parque, e descontado a minha fúria naqueles dois homens? Vovó, eu estava descontrolada. Eu era um monstro.
– Zoey, você fez uma coisa monstruosa. Mas isso não faz de você um monstro. Você se entregou. Desistiu da pedra da vidência. Permitiu que a prendessem. Esses não são os atos de um monstro.
– Mas, Vovó, eu matei dois homens! – Senti meus olhos marejarem de novo.
– E agora você vai ter que enfrentar as consequências dos seus atos. Mas isso não significa que você deva desistir e causar ainda mais sofrimento para as pessoas que amam você.
Mordi meus lábios.
– Meu intuito é assumir minhas responsabilidades para não machucar mais ninguém, principalmente as pessoas que eu amo.
– Zoey Passarinha, não sei por que essa coisa terrível aconteceu. Eu não acredito que você seja uma assassina. – Ela ergueu a mão para que não a interrompesse quando tentei falar. – Sim, eu tenho consciência de que os dois homens estão mortos, e que você parece ser responsável pela morte deles. Ainda assim, você mesma admite que a pedra da vidência teve um papel decisivo no acidente, o que significa que a magia antiga está em ação.
– É verdade, eu estava usando a pedra – admiti.
– Ou ela estava usando você – contradisse ela.
– De qualquer forma, os resultados são os mesmos.
– Para os dois homens. Mas não necessariamente para você, u-we-tsi-a-ge-ya. Agora, fique de pé na minha frente. Você precisa que a sua mente seja clareada e seu espírito purificado para que possa analisar exatamente o que a trouxe para esta cela. Veja, não estou aqui para ajudá-la a se esconder do que fez. Estou aqui para que possa verdadeiramente encarar o que aconteceu.
Como sempre, Vovó era a voz da razão e do amor incondicional. Fiquei de pé e me permiti o breve conforto de vê-la pegar a concha com uma das mãos enquanto, com a outra, colocava um pequeno pedaço arredondado de carvão em cima da mistura de ervas e acendia. Conforme faiscava, ela disse:
– Respire fundo três vezes, u-we-tsi-a-ge-ya . E, a cada vez que o fizer, solte a energia tóxica que anuvia a sua mente e escurece o seu espírito. Visualize, Zoey Passarinha. Qual é a cor?
– Um verde asqueroso – respondi, pensando na coisa nojenta que saiu do meu nariz da última vez em que tive sinusite.
– Excelente. Expire e visualize que está se livrando disso junto com a sua respiração.
O carvão parara de faiscar e estava ficando cinza nas beiradas. Vovó pegou a bolsinha de veludo preta e começou a salpicar as ervas sobre o carvão dizendo:
– Eu lhe agradeço, espírito da sálvia branca, por sua força, sua pureza, seu poder. – Uma fumaça branca começou a subir da concha de ostra. – Eu agradeço a você, espírito do cedro, por sua divina natureza, por sua capacidade de criar uma ponte entre este Mundo e o Mundo do Além.
Mais fumaça subia, e eu inspirava e expirava.
– E, como sempre, agradeço ao espírito da lavanda, por sua natureza apaziguadora, por sua capacidade de nos permitir liberar a nossa raiva e alcançar a paz. – Então, Vovó começou a andar em volta de mim em sentido horário, batendo os seus pés em um ritmo pulsante, ancestral, que parecia eletrificar a fumaça aromatizada e impulsioná-la para dentro do meu corpo, conforme ela abanava em volta de mim com a pena de águia. Sem perder um passo de sua dança, a voz de Vovó se pareou aos seus movimentos, ecoando através do sangue dela para o meu. – Saia o que é tóxico, que é verde como bile. Entre a fumaça doce, prateada e pura.
Concentrei-me enquanto ela se movia à minha volta, entrando no ritual com a mesma facilidade que fizera por toda a minha infância.
– Inale a cura. Inale a purificação. Inale a calma. A bile verde embora irá. Substituída pela prata e pela claridade – cantava Vovó.
Levantei as mãos, guiando a fumaça em volta da minha cabeça, concentrando-me na purificação prateada.
– O-s-da – continuou Vovó, repetindo logo depois em nossa língua: – Bom, você está recuperando o seu centro.
Entrei em um estado sonolento, de transe, levada pela fumaça e pelo canto da Vovó. Pisquei, como se estivesse emergindo de um mergulho profundo, e meus olhos se arregalaram de surpresa. Claramente visível através da fumaça havia uma luz prateada brilhante que, como uma bolha, nos envolvia, a mim e a Vovó.
– Isso é o que você está projetando agora, Zoey Passarinha. Isso tomou o lugar das Trevas que estavam dentro de você.
Respirei fundo de novo, sentindo uma leveza surpreendente em meu peito. O aperto terrível que estivera ali desde que comecei a tossir sumiu. A sensação de desespero que estava dentro de mim também desapareceu...
Por quanto tempo? , perguntei-me. Agora que tinha ido embora, eu percebia o quanto aquilo era opressor.
Vovó tinha parado na minha frente. Colocou a concha de ostra entre nossos pés e segurou as minhas mãos.
– Eu não sei de tudo. Não tenho as respostas que você procura. Não posso fazer nada além de purificar e curar a sua mente e o seu espírito. Não posso tirá-la deste lugar nem mudar o passado que a trouxe para cá. Só posso amá-la e lembrá-la desta regrinha segundo a qual tentei viver a minha vida: não posso controlar os outros. Só posso controlar a mim mesma e as minhas reações aos outros. E, quando tudo o mais dá errado, eu escolho a bondade. Mostro compaixão. Então, se fiz escolhas ruins, pelo menos não causei danos ao meu espírito.
– Eu fracassei nisso, Vovó.
– Fracassei... isso é passado, e você deve deixar esse fracasso no passado, que é onde ele deve ficar. Aprenda com os seus erros e siga em frente. Não fracasse de novo, u-we-tsi-a-ge-ya. Isso significa que se você precisar enfrentar o julgamento e for para a prisão por causa dessa coisa terrível que aconteceu, então você fará isso falando a verdade e agindo com compaixão, assim como faria uma Grande Sacerdotisa da sua Deusa.
– Eu deveria afastar as pessoas que me amam. – Não disse isso como uma pergunta, mas Vovó me respondeu mesmo assim.
– Afastar as pessoas que a amam e se interessam verdadeiramente por você seria a ação infantil, e não de uma Grande Sacerdotisa.
– Vó, você acha que Nyx ainda quer que eu seja uma Grande Sacerdotisa?
Vovó sorriu.
– Acho, mas a minha opinião não é importante. O que você acha da sua Deusa, Zoey? Você acha que ela é tão volúvel que a amaria e depois a descartaria tão facilmente?
– Não estou questionando Nyx, e sim a mim mesma – admiti.
– Então, deve olhar para si mesma. Manter-se firme no seu centro. – Ela pegou a pedra turquesa que retirara da cesta de piquenique mais cedo e colocou-a em minha mão. – Você usou a pedra da vidência para concentrar seus poderes, querendo ou não. Agora, acredito que tenha que encontrar um foco dentro de você. Assim como a turquesa tem seu próprio poder protetor, você deve encontrar o seu próprio, dentro de si. Desta vez, não procure raiva, Zoey Passarinha. Procure compaixão e amor.
– Sempre amor – terminei por ela, pegando a pedra na minha mão e sentindo a sua maciez.
– Segure-se ao seu verdadeiro eu como está segurando esta pedra, e lembre-se de que sempre vou acreditar que você é mais forte, mais sábia e mais bondosa do que pensa ser.
Coloquei os braços em volta dela e abracei-a com força.
– Eu amo você, Vovó. Sempre amarei.
– Assim como eu sempre amarei você.
– Acabou o tempo! – A voz do guarda fez com que eu, relutantemente, soltasse Vovó. – Ei, o que está acontecendo aqui? O que vocês estavam queimando?
Vovó virou-se para ele, sorriu, e com sua voz mais doce, disse:
– Nada com o que você precise se preocupar, querido. Apenas um pouco de limpeza e purificação. Você gosta de biscoitos com gotas de chocolate? Tenho um ingrediente secreto que faz com que os meus fiquem irresistíveis, e, por acaso, tenho uma dúzia aqui na minha cesta. – Dando um tapinha no braço dele, ela acompanhou-o pela porta, levantando um prato de papel cheio de biscoitos de sua cesta mágica e piscando para mim por sobre o ombro. – Agora, querido, por que não arranja um café para acompanhar esses biscoitos enquanto chama o jovem e generoso vampiro chamado Stark para entrar e visitar a minha neta?
Stark!
Sentei-me na cama, endireitando minhas roupas nervosamente e tentando pentear o meu cabelo superdoido com os dedos. E, então, ele estava na porta, e me esqueci da aparência. Eu me esqueci de tudo, exceto de como estava feliz em vê-lo.
– Posso entrar? – perguntou ele, hesitante.
Assenti.
Não esperei que ele desse aqueles seis passos até mim. Não podia esperar nem mais um segundo. Assim que ele se aproximou, atirei-me em seus braços e enterrei meu rosto em seu ombro.
– Eu sinto muito! Não me odeie... por favor, não me odeie!
– Como eu poderia odiar você? – Ele me abraçou com tanta força que era difícil respirar, mas não liguei. – Você é a minha rainha, a minha Grande Sacerdotisa e meu amor... meu único amor. – Ele se afastou de mim apenas o suficiente para me olhar diretamente nos olhos. – Você não pode se suicidar. Eu não conseguiria sobreviver a isso, Zoey. Juro que não.
Havia círculos escuros embaixo de seus olhos, e suas tatuagens vermelhas de vampiro pareciam especialmente brilhantes contra a pele anormalmente pálida. Parecia que ele tinha envelhecido uma década em um dia.
Odiei vê-lo com aparência cansada e doentia. Odiei ser a causa disso.
Encontrei seu olhar e falei com toda gentileza e compaixão dentro de mim:
– Isso foi um erro. Não o cometerei de novo. Desculpe-me ter feito você passar por tudo isso. – Apontei para a cela.
Ele tocou meu rosto com gentileza, quase reverência.
– Para onde você for, eu vou. Nós fizemos um juramento para esta vida e além, Zoey Redbird. E tudo isso é suportável se tivermos um ao outro. Nós ainda temos um ao outro?
– Temos sim.
Eu o beijei, longa e apaixonadamente. Achei que eu o estivesse confortando, mas percebi que seu toque, seu beijo e seu amor é que estavam me confortando.
Foi naquele momento que realmente compreendi o quanto amo Stark.
– Está vendo? – perguntou ele, cobrindo meu rosto de beijos e enxugando as lágrimas que escorriam. – Está tudo melhor agora. Tudo vai ficar bem.
Eu não quis falar para ele que não tinha tanta certeza de que algum dia as coisas voltariam a ficar bem. Isso não seria compaixão. Em vez disso, levei-o até a minha cama estreita e dura. Nós nos sentamos e eu me aconcheguei nele, repousando em seu braço.
– Nós vamos nos revezar para ficar aqui de modo que você não volte a rejeitar a Transformação. De hoje em diante, sempre haverá um vampiro do lado de fora desta porta – Stark começou a explicar baixinho enquanto me abraçava bem apertado. – Vão colocar uma cama portátil no corredor.
– Mesmo? Você vai ficar assim tão perto de mim?
– Vou, o Detetive Marx fez com que permitissem que eu ficasse. Ele é um cara muito legal. Ele disse ao chefe de polícia que não permitir que um vampiro fique com você seria a mesma coisa que dar uma lâmina de barbear a um prisioneiro humano e depois fazer vista grossa para o que ele fizesse depois. Ele disse que isso era desumano e que, ao se entregar, você tinha os mesmos direitos que qualquer outro humano.
– Isso foi legal da parte dele. – De repente, percebi que horas deviam ser, meio-dia pelo menos. – Espere, você não devia estar aqui. Está claro lá fora. – Sentei-me e comecei a procurar queimaduras em seu corpo.
Ele sorriu.
– Estou bem. Stevie Rae também. Viemos para cá na parte de trás da van da escola, aquela sem janelas.
Assenti e sorri.
– A van de Chester the Molester. [*]
– Isso, é assim que eu me locomovo agora. – O sorriso dele ficou presunçoso. – Marx deixou que estacionássemos na garagem coberta ao lado da delegacia. Nenhum raio de sol tocou em nós.
– Tome cuidado, ok?
Ele ergueu as sobrancelhas.
– É sério isso? Você está me mandando tomar cuidado?
– Estou pedindo, na verdade – corrigi, lembrando-me de ser generosa.
Ele riu e me abraçou.
– Zoey Redbird, você está toda desarrumada, mas continua linda, e eu amo você.
– Eu também amo você.
Logo ele me soltou e seu rosto assumiu uma expressão mais séria.
– Tudo bem, quero que você me conte tudo. Já sei que você ficou furiosa com dois humanos e lançou algum tipo de poder neles, mas eu preciso de detalhes.
– Stark, será que não podemos simplesmente... – comecei, não querendo desperdiçar um segundo do meu tempo com ele para falar do terrível erro que cometi.
Ele me cortou.
– Não podemos simplesmente ignorar. Zoey, você pode ser um monte de coisas, mas assassina não é uma delas.
– Joguei dois caras contra o muro, e eles estão mortos. Isso me torna uma assassina, Stark.
– Veja bem, acho que eu tenho um problema com isso. Acho que isso torna a sua pedra da vidência uma assassina. Foi por isso que você a entregou para Aphrodite, não foi? Porque foi o que canalizou a sua fúria para aqueles dois caras.
Estava prestes a abrir a boca para tentar explicar para ele o que eu mesma não compreendia, mas o som de passos no corredor me interrompeu. O guarda, com rosto vermelho e olhos arregalados, apareceu na porta.
– Vamos, vamos! Saia. Agora! – ordenou ele para Stark, apontando freneticamente para ele. – Um dos seus vampiros pode ficar, mas tem que ser aqui no corredor. O resto de vocês tem que dar o fora daqui... voltar para o lugar de vocês.
– Espere, não faz nem cinco minutos, muito menos quinze – argumentou Stark.
– Não posso fazer nada a respeito. Tem alguma coisa acontecendo no presídio. Uma emergência no centro da cidade.
Segui Stark até a porta, sentindo como se um cubo de gelo estivesse descendo pela minha espinha.
– Onde no centro da cidade? O que está acontecendo? – perguntei.
– Está um inferno no Mayo Hotel, e eles precisam de todos os policiais da cidade lá.
A porta da cela se fechou, permitindo que eu e Stark nos víssemos por entre as grades.
– Neferet – disse Stark.
– Ah, droga – respondi, concordando.
[*] “Chester the Molester” era uma tirinha de autoria de Dwaine B. Tinsley e publicada pela revista Hustler por 13 anos. A história gira em torno de um homem, Chester, interessado em molestar sexualmente mulheres e adolescentes. (N.T.)

3
Neferet
Era o meio da manhã de um domingo preguiçoso quando Neferet ordenou aos seus filamentos de Trevas que se abrissem para que pudesse ser levada da espessa nuvem de sangue e morte para a calçada em frente ao Mayo. Ela endireitou seu terninho Armani e jogou o cabelo castanho para trás. Neferet estava pronta para seu retorno triunfal à cobertura que a esperava com seus mármores, pedras e veludos no topo do prédio. Abriu a porta vintage de latão e vidro e parou assim que a atravessou, suspirando feliz para o vasto salão de baile que se abria à sua frente, resplandecente com seu mármore branco, colunas estatuárias, ornamentos grandiosos da década de 1920, e uma escadaria dupla que se curvava até a pista de dança com a graça do sorriso satisfeito de uma deusa.
Suas sobrancelhas castanhas se arquearam. Seu olhar cor de esmeralda se tornou mais penetrante. Neferet observou à sua volta com interesse renovado.
– Este realmente é um prédio requintado o suficiente para ser o templo de uma deusa. – Neferet sorriu. – Meu templo. Minha casa.
– Srta. Neferet! É realmente a senhora? Estávamos tão preocupados que alguma coisa tivesse acontecido quando destruíram a sua cobertura.
Neferet desviou o olhar do grande salão para a jovem que sorria para ela por trás do balcão da recepção.
– Meu templo. Minha casa. Meus súditos . – Ela sabia o que deveria fazer. Por que demorara tanto para pensar nisso? Possivelmente porque nunca absorvera tantas mortes ao mesmo tempo como acontecera poucos momentos antes de chegar ao Mayo. Assim como suas fiéis gavinhas, Neferet estava pulsando com poder, e esse poder tornava seu pensamento focado e claro.
– Isso, é exatamente assim que deve ser. Todos os humanos neste prédio devem me adorar.
– Desculpe-me, madame. Não entendi o que quis dizer.
– Ah, você vai entender. Em breve, entenderá. – O sorriso radiante da recepcionista começara a se apagar. Com um movimento sobrenatural, Neferet deslizou até ela. Viu o nome da garota no crachá dourado. – Sim, minha querida Kylee. Logo você me entenderá completamente. Mas, primeiro, você vai me dizer quantos hóspedes há neste momento no hotel.
– Sinto muito, madame – desculpou-se Kylee, parecendo totalmente constrangida. – Não posso fornecer essa informação. Talvez se a senhorita me disser do que precisa...
Neferet se inclinou, passando a mão pelo lindo balcão de mármore, interrompendo-a e capturando o olhar da garota.
– Você não me questionará. Você jamais me questionará. Fará exatamente o que eu mandar.
– Eu... Eu sinto muito, madame. Não quis ofendê-la, mas as informações sobre os hóspedes do hotel são confidenciais. Nós... Nós temos muito cuidado com a nossa p-política de privacidade – gaguejou ela, as mãos trêmulas de nervoso enquanto agarrava a corrente de ouro com um crucifixo junto ao pescoço.
Mesmo se Neferet não fosse vidente, perceberia a extensão do medo da garota – o que não impressionava a Deusa nem um pouco.
– Excelente! Agora que você vai seguir as minhas ordens, espero que seja ainda mais cuidadosa com privacidade, a minha privacidade.
– Desculpe, madame, a senhora está dizendo que comprou o Mayo Hotel? – A confusão de Kylee se intensificava junto com seu medo.
– Ah, muito melhor do que isso, e muito mais permanente. Decidi transformar este prédio encantador no meu primeiro Templo. Mas eu já não ordenei que você nunca me questionasse? – Neferet suspirou e emitiu um som de desaprovação. – Kylee, você vai ter que se esforçar mais no futuro. Mas não precisa preocupar essa sua cabecinha loura. Sou uma deusa bondosa. Pretendo lhe oferecer a ajuda de que precisar para que seja minha súdita perfeita.
Enquanto Kylee arfava como um peixe fora d’água, Neferet virou-se de costas para ela e encarou o mar de gavinhas que, embora não fossem vistas pela idiota da Kylee, espalhavam-se pelo piso de mármore e subiam carinhosamente por suas pernas.
– Filhos, vocês se alimentaram muito bem. Agora, está na hora de me pagarem pela minha generosidade. – Eles se retorceram, excitados, um ninho de víboras, e Neferet sorriu carinhosamente para elas. – Sim, eu lhes dei a minha palavra. Que foi só o começo do nosso banquete. Mas vocês precisam trabalhar em troca de comida. Eu me recuso a ter filhos vagabundos. – Ela deu uma gargalhada afetada. – Agora, um de vocês deve possuir esta humana. Não! Não a matem. – Neferet esclareceu, quando uma dúzia de gavinhas começou a se arrastar exaltadamente na direção de Kylee. – Sigam a minha mente até a dela. Usem minha trilha até seus pensamentos e desejos mais profundos, e fiquem lá, envolvam sua vontade e apertem. Mas não o suficiente para matá-la ou roubar o que se passa por sua razão. Não quero um Templo cheio de idiotas. Quero um Templo cheio de súditos obedientes. Possuam-na para que eu tenha certeza de sua obediência!
Neferet se virou para encarar a garota, cujo rosto perdera a cor de forma tão drástica que seus olhos castanhos pareciam hematomas.
– Srta. Neferet, por favor, não me machuque! – implorou ela, começando a chorar.
– Kylee, minha querida, minha primeira súdita humana, isso é realmente para o seu bem. O livre-arbítrio é um fardo terrível. Eu tinha livre-arbítrio quando era uma garota, pouco mais nova do que você; ainda assim, estava presa a uma vida de abuso que eu não tinha escolhido. É muito comum isso acontecer com humanos. Olhe para si própria: o emprego subalterno, a roupa precária. Você não quer mais da vida?
– Q-quero – respondeu Kylee.
– Bem, então temos um trato. Se eu tirar o seu livre-arbítrio, também vou afastar de você os terrores inesperados que a vida pode trazer. – Neferet fitou dentro dos olhos arregalados da garota e perfurou sua mente. Estava concentrada demais em Kylee para baixar o olhar, mas sabia que uma fiel e forte gavinha a obedecera e estava subindo pelo corpo da garota. Embora não conseguisse ver o que estava rastejando por suas pernas, Kylee certamente podia sentir. Abriu a boca e começou a gritar. – Acabem com o terror dela e entrem nela! – ordenou Neferet, e a gavinha entrou pela boca aberta.
Kylee começou a engasgar convulsivamente, e apenas o domínio de Neferet em sua mente evitou que desmaiasse.
– Tão humana. Tão fraca – murmurou a Deusa enquanto sondava a mente da garota, sentindo a familiar presença das Trevas seguindo. Quando encontrou o centro da vontade de Kylee, sua alma, sua consciência, Neferet ordenou: – Envolvam-na! – Com seu sentido extra, presente que recebera de outra Deusa mais de um século antes, Neferet testemunhou as Trevas aprisionarem a vontade de Kylee.
A garota caiu, seu corpo se contorcendo em espasmos.
– Lembrem-se bem da trilha que acabei de mostrar para vocês, filhos. Kylee é apenas a primeira de muitas. – Neferet bateu uma palma. – Levante-se, Kylee. Arrume-se, minha querida. A sua vida acaba de se tornar muito mais , e eu tenho outras ordens que você deve cumprir.
Kylee ficou de pé, como se fosse uma marionete manipulada por cordas.
– Isso, assim está muito melhor. Agora, me diga quantos hóspedes há no hotel, e lembre-se, nada mais daqueles gritos irritantes.
– Sim, madame – respondeu Kylee de forma instantânea e mecânica.
O sorriso de Neferet voltou. Ela estava transbordando poder! Os humanos deviam adorá-la – com a débil força de vontade deles e mentes facilmente manipuláveis, não tinham a menor chance.
– E pare de me chamar de madame. Quero que me chame de Deusa.
– Sim, Deusa – repetiu Kylee automaticamente, sua voz totalmente desprovida de emoção. Então, começou a digitar no teclado enquanto fitava, sem expressão, a tela do computador. – No momento, temos 72 hóspedes, Deusa.
– Muito bem, Kylee. E quantos moradores há?
– Cinquenta.
Com um dedo longo, Neferet levantou o queixo de Kylee para que ela a fitasse de novo.
– Cinquenta o quê?
Kylee estremeceu, tal qual um cavalo espantando insetos, mas seu olhar permaneceu aberto, inexpressivo, e ela se corrigiu imediatamente, dizendo:
– Cinquenta, Deusa.
– Muito bem, Kylee. Vou me recolher à minha cobertura. Lembre-se, este prédio agora é o meu Templo, e eu insisto em proteger a minha privacidade, assim como meu divino corpo. Entendeu?
– Sim, Deusa.
– Você compreende que isso significa que, se alguém vier me procurar, você dirá que tem certeza absoluta de que eu não estou aqui, e o mandará embora?
– Compreendo, Deusa.
– Kylee, você foi muito útil. Vou permitir que tenha uma vida longa o suficiente para me adorar adequadamente.
– Obrigada, Deusa.
– De nada, querida.
Neferet começou a deslizar na direção do elevador. Levantou a mão, chamando.
– Venham, meus filhos. Tenho a sensação de que vamos precisar redecorar.
Inchadas e pulsando com o sangue com o qual tinham acabado de se alimentar, as gavinhas das Trevas seguiram ansiosamente sua ama.
– Exatamente como pensei. Deixaram em ruínas! Isso é inaceitável. – Neferet andou em volta das cadeiras reviradas dos tapetes manchados da sala de estar que costumava ser uma cobertura meticulosa e luxuosamente decorada. – Sangue velho! Esta sala está fedendo a sangue. Limpem! – mandou ela. As gavinhas obedeceram, embora mais lentamente do que quando a refeição que ela oferecia era fresca. – Não sejam tão exigentes. Parte desse sangue é de Kalona. Mesmo velho, sangue imortal tem poder. – Isso pareceu animar as gavinhas e elas passaram a rastejar com mais entusiasmo.
Enquanto trabalhavam, Neferet dirigiu-se até a adega, apenas para encontrá-la vazia. Não restava uma garrafa sequer do escuro e caro cabernet que ela tanto adorava.
–Isso é o que acontece quando não estou aqui para ficar de olho naqueles humanos preguiçosos. Eles negligenciam suas tarefas. Estou sem vinho, e minha cobertura mais parece um matadouro!
O olhar irritado de Neferet foi de encontro à grande quantidade espalhada de poeira turquesa, vinda da jaula das Trevas, na qual suas gavinhas prenderam a entediantemente teimosa Sylvia Redbird.
– E aquilo! Sumam com aquele pó azul horrível. Macula toda a beleza do piso de ônix, ainda mais do que aqueles tapetes persas manchados.
Várias gavinhas tentaram obedecer à sua ordem, mas se esquivaram assustadas das partículas azuis, como se estas ainda tivessem o poder de afastá-las. A mais ousada delas seguiu pela pedra empoeirada, então estremeceu e se contraiu, sua carne escorregadia e emborrachada soltando fumaça e um líquido escuro e fétido. Neferet franziu a testa, acenando para a gavinha. Com uma unha afiada, ela perfurou a pele da palma de sua mão.
– Venha, alimente-se de mim e cure-se – murmurou ela, apreciando o toque gelado e doloroso da boca da gavinha, acariciando-a enquanto ela se alimentava, estremecendo sob seu toque.
– Isso nunca vai dar certo. Arrumar a bagunça deixada por humanos é muita humilhação para meus leais filhos. Súditos humanos devem limpar bagunças humanas, é disso que preciso, cumprindo as minhas ordens, facilitando o meu trabalho. E, felizmente, temos mais de cem deles sob este mesmo teto. Todos eles, exceto a tão útil Kylee, ainda não sabem o quanto ficarão assoberbados em breve. Hum... qual seria a melhor maneira de iniciar meus novos súditos?
Neferet sacudiu o braço para afastar a gavinha faminta.
– Não seja tão gulosa. Já está curada.
A gavinha se afastou. Neferet passou a mão pelo seu longo e esbelto pescoço, pensando. Precisava avaliar o melhor passo a dar, e precisava agir rápido.
Não deixara ninguém vivo na Church Boston Avenue, apenas centenas de corpos mutilados e sem sangue.
– As autoridades irão primeiro para a Morada da Noite, é claro. Thanatos insistirá que ninguém do seu rebanho impecável faria uma coisa daquelas. A velha vai jogar a culpa em mim. Acreditando nela ou não, mesmo a incompetente polícia local acabará vindo me procurar aqui. – Neferet tamborilou suas unhas longas e pontiagudas no balcão de mármore preto de sua adega vazia. Não tinha muito tempo ao seu dispor, a não ser que optasse por se esconder.
– Não, nunca mais vou me esconder. Sou uma Deusa, uma imortal, com o dom de comandar as Trevas. Nyx nunca me compreendeu. Kalona nunca me compreendeu. Ninguém jamais me compreendeu. Mas agora eu vou obrigá-los a me entender. Vou fazê-los entenderem! Os moradores de Tulsa é que devem se esconder de mim, e não o contrário.
Ela tinha de ser rápida e decisiva, antes que a polícia chegasse e tentasse, sem sucesso, prendê-la – ou antes que o seu banquete na igreja chegasse aos noticiários e começasse a assustar os hóspedes do Mayo Hotel: os seus futuros súditos.
Neferet encontrou um controle remoto e ligou a enorme televisão de tela plana que, por sorte, tinha saído intacta da batalha. Sintonizou no canal local, colocou no mudo e começou a andar de um lado para o outro, pensando em voz alta e mantendo os olhos grudados na tela.
– É uma pena que eu não possa enjaular os seres humanos como eu fiz com aquela velha e soltá-los quando eu precisasse de sua adoração ou de seus serviços. Isso seria tão mais fácil para eles e, o mais importante no final das contas, para mim. Eu apostaria muito no fato de que nenhum deles resistiria tanto quanto Sylvia Redbird. Os humanos comuns nunca poderiam entrar ou sair da jaula das Trevas criadas por vocês, meus queridos. E, pelo que vi até agora, os meus humanos são excessivamente normais. – Neferet parou abruptamente. – Os meus súditos são humanos normais. E eu me tornei tão mais do que uma humana comum ou uma vampira.
Distraída, Neferet acariciou uma gavinha que se enrolara em seu braço.
– É uma pena que eu não possa enjaular os humanos aqui. Eu os estaria protegendo, permitindo que eles troquem o tédio de suas vidas pela satisfação de me adorar, assim como fiz com Kylee. – Ela acariciava a gavinha, enquanto esta estremecia de prazer. – Eu não preciso enjaulá-los. Eu preciso tratá-los com carinho!
Abrindo os braços, ela sorriu para os seus servos das Trevas, que eram perfeitamente lindos e aterrorizantes.
– Tenho uma resposta para o nosso dilema, meus filhos! A jaula que criamos para aprisionar Redbird era fraca, uma tentativa patética de aprisionamento. Aprendi tantas coisas desde aquela noite! Consegui tanto poder... Nós conseguimos tanto poder. Não vamos enjaular as pessoas, como se eu fosse uma carcereira em vez de uma deusa. Meus filhos, vamos cobrir todas as paredes do meu Templo com as suas tramas mágicas e invioláveis para que os meus novos súditos possam me adorar sem qualquer empecilho. E isso será apenas o começo. À medida que eu absorver cada vez mais poder, por que não encapsular toda a cidade? Eu sei disso agora... Conheço o meu destino. Começo o meu reinado como Deusa das Trevas ao tornar Tulsa o meu Olimpo! Só que isso não será apenas um mito fraco contado como histórias banais de crianças para crianças. Isso será realidade: o Mundo das Trevas do Além veio para a Terra! E, nesse mundo, não haverá inocentes sendo abusados por predadores. Todos estarão sob a minha proteção. Eu tenho o destino deles nas minhas mãos, e eles só precisam se preocupar com o meu bem-estar. Ah, como eles vão me adorar!
Em volta dela, as gavinhas se contorceram em resposta à animação dela. Ela sorriu e acariciou as que estavam mais próximas.
– Sim, sim, eu sei. Será glorioso, mas o que preciso primeiro, meus filhos, é do serviço de quarto. Vamos convocar os meus novos servos. Alguns deles vão limpar e arrumar os meus aposentos da maneira correta. Outros vão reabastecer a adega. Todos vão me obedecer sem me questionar. Preparem-se. Chegou a hora de Neferet, a Deusa das Trevas!
Foi mais fácil do que ela mesma imaginara. Os humanos não eram apenas ridiculamente fáceis de serem controlados, mas também tão indefesos contra a infestação de uma única gavinha das Trevas quanto a pequena Kylee. Ela estava absolutamente certa. Eles precisavam dela para comandar a vida deles, assim como um bebê precisa da mãe.
O único problema no seu plano era que Neferet não tinha acesso a um número infinito de gavinhas. Apenas as mais leais, as suas verdadeiras filhas, continuaram ao seu lado depois que fora despedaçada.
Por um breve instante, considerou chamar mais filamentos de Trevas, mas logo rejeitou tal pensamento. Ela não recompensaria a traição – e os filamentos que a abandonaram no momento da necessidade a traíram no nível mais profundo.
Neferet tomou um gole do seu cabernet favorito em uma taça de cristal e andou pela cobertura, contando os humanos que se dedicavam à limpeza e à arrumação da bagunça que Zoey e seus amigos tinham deixado para trás. Seis. Havia quatro mulheres da equipe de limpeza e dois homens do serviço de quarto. Neferet sorriu. Na verdade, eles não passavam de garotos – ambos louros e ansiosos por atender aos seus pedidos de serviço de quarto. Saindo do seu elevador, suas expressões denunciaram os seus pensamentos de forma tão clara que ela nem precisou esquadrinhar suas mentes. Eles a desejavam. Muito. Obviamente esperavam que ela quisesse um pouco de sangue e sexo com vinho. Tolos! Agora eles se moviam mecanicamente, atendendo aos comandos que ela dava sem reclamar, sem preocupações e sem olhares galanteadores irritantes. Estavam exatamente como ela preferia os seus homens humanos: silenciosos, obedientes e jovens.
– Cavalheiros, a vida é gloriosa, não acham?
As duas cabeças louras se voltaram para ela.
– Sim, Deusa – responderam em uníssono, como sempre.
Neferet sorriu.
– Como costumo dizer, o livre-arbítrio é um peso terrível. Não precisam agradecer por eu ter aliviado vocês de tal peso. – Então, ela ordenou: – Voltem ao trabalho.
– Obrigado, Deusa. Sim, Deusa – repetiram eles, obedecendo-a.
Então, ela já tinha usado seis filamentos. Não, sete, contando a pequena Kylee, da recepção. Neferet lançou um olhar contemplativo para o ninho de gavinhas onde elas se reuniram para absorver o que restara do sangue seco de Kalona. Quantas havia? Tentou contar, mas era impossível. Elas se moviam muito e com rapidez, além de se fundirem umas às outras e depois se separarem quando desejassem. Parecia haver muitas delas, porém. E todas tinham crescido, engordado e estavam mais fortes depois de terem se fartado.
Eu preciso me certificar de que continuem bem alimentadas. Elas não podem definhar – pois isso significaria que o meu absoluto poder sobre os humanos também enfraqueceria.
Resoluta, Neferet discou zero para falar com a recepcionista.
– Recepção, como posso ajudá-la, Neferet? – respondeu a voz insolente de Kylee ao primeiro toque.
– Kylee, quando eu ligar, o modo correto de atender ao telefone é dizendo “Como posso servi-la, minha Deusa?”.
A voz de Kylee ficou sem expressão ou emoção e ela repetiu:
– Como posso servi-la, minha Deusa?
– Muito bem, Kylee. Você com certeza aprende rápido. Eu preciso saber quantos funcionários estão trabalhando aqui no meu Templo hoje.
– Seis faxineiras, dois carregadores, quatro membros do serviço de quarto e eu. Rachel deveria estar aqui na recepção comigo, mas está de licença médica.
– Pobre Rachel. Mas isso me deixa com treze funcionários ao meu dispor. É claro que isso não inclui o restaurante. Ele está aberto hoje?
– Está. Nós abrimos para o brunch até as duas horas da tarde aos domingos.
Kylee fez uma pausa para contar:
– O chef, um ajudante de cozinha, o bartender , que também é o gerente, e três garçonetes.
– Totalizando vinte. Eis o que quero de você, Kylee. Feche o restaurante imediatamente, mas não permita que os funcionários vão embora. Diga a eles que houve uma mudança na gerência do hotel e que o novo dono pediu uma reunião de funcionários.
– Farei como me pede, Deusa, mas os Snyder não são donos do restaurante.
– Quem são os Snyder?
– A família que comprou e reformou o Mayo em 2001. Eles são os donos do prédio.
– Corrigindo, Kylee, querida, eles eram os donos do prédio que era conhecido como Mayo Hotel. Eu controlo o Templo em que ele se tornou. Não importa. Isso logo ficará claro. Tudo de que preciso é que você reúna todos os funcionários do restaurante e do hotel e peça-lhes que venham até a cobertura daqui a trinta minutos. Depois, eu vou mudar o título da reunião de funcionários para o que ela realmente é: uma oportunidade de adorar a sua Deusa. Isso não soa muito mais agradável do que reunião de funcionários?
– Sim, Deusa – respondeu Kylee.
– Excelente. Vejo você e o resto dos meus súditos daqui a meia hora.
– Deusa, eu não posso deixar a recepção sozinha. O que acontecerá se alguém quiser se hospedar ou deixar o hotel?
– A resposta é simples, Kylee. Tranque as portas para que ninguém possa entrar ou sair do meu Templo. Tranque tudo e venha até mim com as chaves.
– Sim, Deusa.
Neferet teria de encontrar outro lugar para receber os súditos. A sua cobertura era íntima demais para tantos humanos. No entanto, teria de se virar por um tempo. Ela se posicionou diante das portas de vidro colorido que haviam sido quebradas e agora foram substituídas pelos garotos louros. Ela desligara as luzes elétricas berrantes e ordenara que as faxineiras trouxessem velas para os seus aposentos. Castiçais, suportes e velas de promessa cobriam a prateleira de granito, a cornija da lareira, a mesa de centro de mármore no estilo art déco e a grande mesa de jantar de madeira. Ela também ordenara que as lanternas que ficavam ao lado das portas tivessem as lâmpadas fortes retiradas e fossem substituídas por luzes bruxuleantes e quentes de velas brancas. Ela fez uma observação mental para pedir que um dos seus servos fosse comprar mais velas – muitas e muitas velas.
O olhar de Neferet passeou pela cobertura, e ela ficou satisfeita. Tudo parecia tão melhor, e estava apreciando a sua segunda garrafa de cabernet, pensando em quanto apreciaria mais tarde, quando um – ou uma – entre seus súditos se oferecesse para misturar o próprio sangue no vinho.
Neferet tinha se vestido com esmero, satisfeita ao ver que suas roupas ficaram intactas enquanto estivera ausente. Escolheu um vestido de seda dourada que se ajustava ao corpo como se acariciasse a sua pele. Como sempre, Neferet deixou o cabelo ruivo solto, em ondas brilhantes que desciam pelas costas até a cintura. Não usou nenhum adorno com um símbolo de qualquer outra deusa. Jamais voltaria a usar imagens adornadas em prata – ela arrancara o último daqueles filamentos de si.
Tinha um novo símbolo, no qual vinha pensando cuidadosamente, e mal podia esperar até que um dos seus súditos fosse encomendar a peça na joalheria de Moody e a “surpreendesse” com um rubi de seis quilates no formato de uma lágrima perfeita. Ela seria efusiva nos agradecimentos e sempre o usaria preso a uma grossa gargantilha de ouro.
Seria realmente bom ser a Deusa das Trevas – A Deusa de Tulsa –, a Deusa do Caos.
Ouviu o barulho do elevador.
– Meus filhos, venham até mim! – Os filamentos de Trevas se apressaram em sua direção, cercando-a, pousando sobre os seus pés descalços com um frescor reconfortante. – Ah, e súditos, vocês podem voltar à minha presença – disse ela por sobre os ombros na direção do local para onde ordenara que aguardassem até que tivessem novas ordens.
Eles passaram por ela no instante em que as portas do elevador se abriram e Kylee levou o restante dos funcionários para a cobertura.
– Bem-vindos! – Neferet ergueu a taça e os braços. – Vocês são abençoados por estarem diante de mim.
A maior parte do grupo pareceu confusa. Duas mulheres, vestidas como garçonetes, murmuraram perguntas uma para a outra. Os olhos afiados de Neferet as notou. Um dos homens, o que usava um chapéu idiota de chef, perguntou:
– Você poderia nos dizer o que está acontecendo aqui? Tivemos que fechar o restaurante e obrigar os nossos clientes a ir embora, mesmo que eles ainda não tivessem terminando o seu brunch. Posso afirmar para você que, com certeza, temos alguns ex- clientes muito putos da vida.
– Qual é o seu nome? – quis saber Neferet, mantendo o tom de voz agradável.
– Tony Witherby, mas a maioria das pessoas me chama de chef.
– Bem, Tony, eu não sou a maioria das pessoas. Veja bem, a maioria das pessoas me chama de Deusa.
Ele soltou uma gargalhada debochada.
– Você só pode estar brincando, né? Tipo, eu estou vendo as suas tatuagens e sei que você é uma vampira e tudo o mais, mas vampiras não são deusas.
Neferet ficou satisfeita ao ver Kylee se afastar do chef como se não quisesse ser contaminada por sua desobediência. Kylee estava realmente se tornando uma excelente súdita.
Neferet não desperdiçou sequer um olhar para o chef. Em vez disso, sorriu para os seus filhos alvoroçados.
– Tão ansiosos – comentou ela em um tom leve de reprovação. Ela se abaixou para acariciar uma gavinha particularmente precoce que se enrolara por sua perna quase na altura de sua coxa. – Você vai ser perfeita.
– Tudo bem, você vai ter que nos dizer o que está acontecendo ou eu vou ligar para o dono do restaurante – ameaçou o chef. Quando ela continuou a ignorá-lo, ele começou a gritar: – Isso é realmente ridíc...
– Pegue-o! – comandou Neferet para a gavinha. – E permitam que a vejam.
A gavinha ficou visível enquanto voava na direção do chef. Ela era tão grande que rapidamente o envolveu pela cintura grossa, movendo-se rapidamente para cima.
– Que merda é essa?! Solte-me! – gritou o chef, jogando-se para trás e batendo na gavinha com ambas as mãos, impotente.
Neferet achou que ele parecia uma menininha com medo de aranha.
Um homem bonito e negro vestido como mensageiro se aproximou para ajudar o chef.
– Fique onde está ou o seu destino será o mesmo do dele! – avisou Neferet.
O homem parou onde estava.
– Nããããão!
Os gritos do chef beiravam à histeria, e Neferet ficou aliviada ao ver que bem nesse momento a gavinha subiu pelo pescoço dele e invadiu sua boca, fazendo com que se abrisse de uma maneira quase impossível. Isso causou a rachadura e o sangramento dos cantos dos lábios, antes que todo o grosso comprimento do filamento desaparecesse dentro do corpo do humano. O chef caiu do chão.
– É tão deprimente quando um homem adulto age como uma menininha assustada, vocês não acham?
Os humanos que ainda não tinham sido possuídos por seus filhos olharam para ela com um misto de horror e descrença. Outra mulher, uma das faxineiras que não atendera ao chamado anterior de Neferet, estava rezando em espanhol, agarrada ao crucifixo pendurado em uma gargantilha de prata de aparência barata. Todo o grupo, exceto pelo equivocado Tony, estava se afastando, como um rebanho, na direção das portas do elevador.
– Nada disso – declarou Neferet com voz suave. – Vocês não podem partir antes de receber minha permissão.
– Você também vai nos matar? – perguntou uma das mulheres, segurando a mão da amiga e tremendo de forma espasmódica.
– Matar vocês? É claro que não. Tony não está morto. – Ela dirigiu-se então ao chef caído no chão. – Tony, meu querido, levante-se e diga para os outros que você está perfeitamente bem.
De forma estranha, Tony se levantou, virou-se para Neferet. Então, sem expressão no seu rosto rosado e manchado de sangue, declarou:
– Estou perfeitamente bem.
– Você se esqueceu de dizer uma coisinha – disse Neferet.
O corpo de Tony se retorceu em espasmos como se ele tivesse levado um choque por dentro, e ele se apressou a repetir:
– Estou perfeitamente bem, Deusa.
– Viram só? É exatamente como eu disse. Qual é o seu nome, querida? – perguntou ela para a mulher trêmula.
– Elinor.
– Que nome adorável. Não se veem mais nomes como esse hoje em dia, o que é uma pena. Para onde todas as Elinors e Elisabeths, Gertrudes, Gladys e Phyllis foram? Não, não precisa me responder. Elas foram substituídas por Haileys, Kaylees, Madisons e Jordans. Eu odeio nomes modernos. Sabe, Elinor, eu preciso agradecê-la. O seu nome de bom gosto fez com que eu tomasse uma decisão sobre vocês, meus novos súditos. Vou renomear qualquer um de vocês que possua um nome muito chamativo. – Neferet lançou um olhar para Kylee. – Exceto você, Kylee. Eu gosto muito do seu crachá dourado para mudar o seu nome.
– Deusa? – sussurrou Elinor em tom de pergunta.
– Pois não, minha querida.
– Nós agora estamos trabalhando para a senhora?
– Ah, é muito melhor do que isso. Vocês vão me adorar agora. Vocês vinte serão as primeiras testemunhas do meu reinado como Deusa das Trevas. Cada um de vocês terá um papel especial e muito importante para cumprir enquanto me adoram e atendem a cada uma das minhas necessidades. Vocês vão me oferecer presentes e sacrifícios e, em troca, tirarei o exaustivo livre-arbítrio que obviamente tem lhes reprimido e deprimido a vida. Por que outro motivo vocês estariam trabalhando em tarefas tão servis e sem sentido?
– Eu não estou entendendo o que está acontecendo – choramingou Elinor.
– Logo... logo a sua confusão acabará. Não se preocupe, doce Elinor, só dói um pouquinho. – Neferet ergueu o braço. – Meus filhos... – começou ela.
– Espere! – O mensageiro que quis ajudar Tony deu um passo para a frente e lançou um olhar inflexível para Neferet. – A senhora disse que se tentássemos ajudar o chef, nosso destino seria o mesmo do dele. Eu não ajudei. Ninguém mais ajudou. Então, de acordo com a sua própria palavra, não vai mandar essas coisas rastejantes nos atacar.
– E qual é o seu nome?
– Judson. – Ele fez uma pausa e acrescentou: – Deusa.
– Judson é um nome antigo do sul, sabia?
– Não, eu... Eu, não. Eu não sabia. – Ele fez outra pausa. – Deusa.
– Bem, é isso então. Eu também não vou trocar o seu nome. E quanto ao que eu disse antes? Eu menti. Peguem-nos! – Ordenou.
Felizmente, os seus filhos tinham antecipado os seus desejos e moveram-se rapidamente, de modo que os gritos irritantes logo cessaram.

4
Neferet
Neferet liberou seus novos súditos, cada qual tendo iniciado sua adoração por meio da possessão de um de seus filhos, e ordenou-lhes que chamassem os hóspedes e residentes do hotel e os reunissem no grande salão do hotel.
Decidira que deveria estabelecer o lugar das oferendas no salão principal, o qual era cercado por colunas de mármore, tinha pé-direito alto e o teto ornado com lindos candelabros no estilo art déco , e escadaria dupla e ampla em curva com balaústres de ferro forjado que contavam com uma grande plataforma entre o térreo – onde os súditos ficariam – e o passeio superior, onde apenas os seus adoradores mais próximos, aqueles que cuidavam dos seus desejos, seriam permitidos. Os outros ficariam presos nos próprios quartos ou no porão, o qual Kylee fora gentil em lhes mostrar. Ou, se eles provassem ser um estorvo excessivo e ela não quisesse gastar uma gavinha para possuí-los, eles se tornariam alimento para seus filhos.
É claro que ela só se alimentaria dos súditos que despertassem o seu interesse.
Kylee recebera a tarefa de encontrar uma cadeira que servisse de trono até que pudesse encomendar um que fosse entalhado para ela.
– Você precisa encontrar um artesão talentoso para criar exatamente o que eu quero. A madeira deve ser tingida de sangue vermelho profundo de búfalo – orientou ela, enquanto escolhia a colocação com cuidado. – E eu não quero nada daqueles assentos duros e pobres ao gosto dos velhos do Conselho Supremo. Almofadas de veludo dourado. É sobre elas que vou me sentar.
Neferet permitiu que duas das faxineiras mais atraentes a envolvessem num vestido luxuoso em tom púrpura real, e tinha acabado de decidir que não usaria sapato – ficaria descalça, como condiz a uma Deusa recém-nascida. Retornou à sua sala para encher novamente a taça de vinho, irritada por não haver lá nenhum humano ansioso por ajudá-la. Ela já estava esperando, impacientemente, que convidados e residentes estivessem rodeados por seus servos obedientes para que pudesse fazer a sua entrada triunfante no salão.
– Até mesmo para uma Deusa, é tão difícil encontrar empregados de qualidade. Mas eu vou deixar esse erro passar. Eles são só vinte. Devem estar bem ocupados reunindo os humanos no meu salão de oferendas. Mas vou deixar passar somente esta vez.
Estava bebericando o líquido vermelho, apreciando o sabor do sangue do bonito mensageiro que tinha tão graciosamente oferecido um pedaço da sua carne para dar mais sabor ao seu vinho, quando a televisão chamou a sua atenção. Havia uma legenda de notícias na parte inferior da imagem onde se lia ASSASSINATOS EM TULSA, e a âncora, Chera Kimiko, estava falando com uma expressão sombria.
Encantada, Neferet apertou o botão de mudo na televisão, esperando reviver os detalhes deliciosos do seu banquete. No entanto, em vez da Church Boston Avenue, a tela mostrou uma imagem do Woodward Park, em um estado terrível de desgaste. Então, a câmera mudou, e as sobrancelhas de Neferet se ergueram enquanto se concentravam em um paredão de pedra ao lado de uma gruta que, até recentemente, fora o seu santuário. Ela aumentou o volume, impaciente, a tempo de ouvir Kimiko dizendo de forma tão séria:
– Este é o local onde ocorreu o terrível assassinato de dois homens, cujos corpos foram descobertos por bombeiros na manhã de ontem. Conforme informamos anteriormente, a violenta tempestade que criou ventos de quase 120 km/hora foi acompanhada por raios mortais. Os raios que caem sobre a região de Tulsa já foram responsáveis por cinco mortes hoje, além de dez pessoas hospitalizadas em estado grave. Mas a morte desses dois homens aparentemente não tem relação com as tempestades. Adam Paluka está ao vivo com o detetive Kevin Marx e vamos até ele para mais detalhes. Adam?
A cena mudou do parque destruído pela tempestade para um detetive sentado atrás de uma mesa em um escritório de aparência comum. Neferet o reconheceu como o policial que fora irritantemente compreensivo com Zoey Redbird no passado. Ela fez uma careta enquanto assistia à entrevista.
– Detetive Marx, o senhor poderia nos explicar essas duas mortes adicionais em Woodward Park, e responder se o senhor realmente excluiu a possibilidade de as mortes terem sido caudadas pela tempestade?
– Os corpos dos dois homens, ambos na casa dos quarenta anos, foram descobertos na manhã de ontem. A causa da morte foi a mesma para os dois homens: contusão e hemorragia.
Neferet sorriu, decidindo que aquele era um excelente aquecimento para a carnificina que eles logo descobririam.
– E é verdade que o senhor prendeu alguém que confessou ter cometido os crimes?
Neferet ergueu as sobrancelhas.
– Confessou os assassinatos? Está presa? Isso é impossível.
– Sim, é muito triste ter de informar que uma jovem novata, a quem conheço pessoalmente, se apresentou por livre e espontânea vontade para confessar que assassinou os dois homens.
– Uma novata! – explodiu Neferet levantando-se da chaise e gritando com a tela da televisão.
– O senhor pode informar o nome de tal novata?
– Zoey Redbird .
Neferet gritou, pegou um dos abajures elétricos que tinha tirado da tomada e o atirou contra o aparelho de televisão.
– Aquela garota tola e fraca acredita que matou aqueles dois homens? Eu os encontrei a poucos metros do meu santuário, e seu sangue serviu para me alimentar para que pudesse ir ao grande banquete na Boston Avenue Church. Zoey Redbird matando dois homens adultos? Que grande bobagem! Ela não tem o ímpeto necessário para matar ninguém! E realmente confessou o assassinato? Aquela garota é uma idiota ainda maior do que eu imaginei.
Neferet jogou a cabeça para trás e sua gargalhada debochada ecoou pela cobertura.
Neferet assumira a sua posição no meio da graciosa escadaria dupla do salão principal do Mayo Hotel. Adorava a ironia de estar no mesmo lugar onde tantos humanos iludidos fizeram seus votos matrimoniais.
– Um pacote de macarrão tem validade maior do que a maioria dos casamentos humanos, sabia?
Ela sorriu para a multidão reunida sobre o piso de mármore preto e branco. Havia ordenado que diminuíssem as luzes e que grandes candelabros fossem posicionados e acesos em cada um dos lados. Sabia que sua beleza era divina, complementada pelo brilho de seu vestido à carícia da luz das velas.
Ordenou que metade dos seus vinte súditos a cercasse, embora sem entrar na plataforma em que se encontrava. Os outros dez humanos possuídos estavam posicionados na entrada do seu Templo. Ela dera a eles apenas uma ordem: ninguém poderia entrar ou sair.
Seus filhos das Trevas se contorciam à sua volta, invisíveis para os humanos que a olhavam boquiabertos, mas reconfortantes para ela com sua avidez familiar.
– Ah, vocês estão certos em não responder. Essa pergunta realmente não é uma forma digna de uma Deusa se dirigir pela primeira vez aos seus escolhidos. Permitam que eu comece de novo.
Neferet se posicionou na frente do seu trono, abriu os braços em um gesto amplo e começou:
– Atenção! Eu sou Neferet, a Deusa das Trevas, a Rainha de Tsi Sgili. Transformei este hotel no meu Templo das Trevas, e vocês, poucos afortunados, serão meus súditos fiéis, os meus escolhidos. Em troca, recompensarei sua adoração removendo as preocupações do mundo comum de vocês. Não mais precisarão trabalhar em empregos sem sentido. Não precisarão voltar para casamentos tediosos nem para filhos mal-agradecidos. De hoje em diante, até a sua morte, seu único objetivo será me adorar. Regozijem-se, humanos!
Seu discurso foi seguido por um longo momento de silêncio absoluto e, então, a multidão começou a se agitar nervosamente, aos sussurros.
Neferet aguardou pelo que sabia que viria a seguir, e isso manteve o sorriso no seu rosto. Gostava muito de ensinar lições de vida aos humanos.
Conforme previsto, Neferet não precisou esperar muito tempo. Uma mulher deu um passo à frente. Era alta e tinha cabelo castanho – devia estar no final da meia-idade, embora estivesse bem conservada e parecesse estar em forma, como uma mulher que se exercita diligentemente para se manter jovem. Usava um vestido de bom gosto e corte meticuloso em um tom bonito de verde-esmeralda.
– Onde você comprou esse vestido adorável? – perguntou Neferet à humana antes que ela tivesse a chance de dizer qualquer coisa.
A mulher piscou, obviamente surpresa com a pergunta, mas respondeu:
– É um Halston. Comprei na Miss Jackson’s.
– Kylee – chamou Neferet, olhando para o lugar em que a garota se encontrava aos pés da escadaria, com uma aparência serena de um robô. – Anote. Vou precisar que você vá até a Miss Jackson’s e escolha diversos vestidos para mim. Certifique-se de incluir modelos Halston.
– Sim, Deusa – entoou Kylee, sem emoção.
Neferet franziu o cenho, olhando para Kylee. Será que realmente queria que aquela garota escolhesse os seus trajes? Ela não devia ter mais do que vinte anos e se o seu corte de cabelo fosse uma indicação do seu senso de moda, seria realmente um desastre...
– Tudo bem, você tem que explicar o que realmente está acontecendo aqui. Eu não tenho tempo para isso. – Recuperando-se da sua surpresa, a mulher com o vestido verde-esmeralda interrompeu os pensamentos de Neferet, batendo com o pé no chão para demonstrar sua impaciência. – Eu tenho um jantar marcado no Summit Club, e pegar um avião para Nova York logo em seguida.
– Já expliquei a situação para vocês – disse Neferet. – Agora eu sou a sua Deusa. Você não vai jantar no Summit Club nem vai voltar para Nova York. A não ser que eu mande que você faça alguma coisa para mim. O seu único trabalho é me adorar. Em troca, eu acabarei com as suas angústias e preocupações mundanas. Qual é o tamanho desse vestido? Trinta e oito ou quarenta?
– Sério? Essa é uma piada de muito mau gosto. Frank Snyder está por trás disso, não é? Frank? – A mulher ignorou Neferet e chamou pelo homem, procurando ao seu redor, como se esperasse que ele fosse aparecer. – Ela está vestida como uma diva de cinema. Deixe-me adivinhar: ela vai cantar “Smoke gets in your eyes” pelo meu aniversário, não é? Como é que você encontrou uma vampira para contratar? Ou será que essas tatuagens foram pintadas?
A mulher girara em torno de si e novamente encarava Neferet, olhando para ela como se estivesse considerando apagar suas tatuagens.
Neferet se deu conta de que sua paciência chegara ao fim.
– Escolhidos, permitam que esta seja uma lição para vocês. Eu não sou uma piada. Eu sou a sua Deusa. Poderosa, possessiva, imortal e onisciente. Eu sou praticamente destituída de paciência, nunca aturo tolos. – Neferet se inclinou para a frente e pousou a mão no balaústre de ferro. Encontrou o olhar da mulher e invadiu a sua mente desprotegida. – Então, o seu nome é Nancy, e hoje é o seu aniversário. – O sorriso de Neferet era felino. – E você está fazendo cinquenta e três anos, embora diga aos amigos que tem quarenta e cinco.
O corpo da mulher estremeceu e ela arfou, chocada com a violação, mas impotente para resistir.
– Como você sabe disso? E como se atreve?
Neferet fez um som alto de admoestação, meneando a cabeça.
– Uma vida de tantas privações em nome da beleza. Será que ninguém lhe explicou que, não importa o que faça, você é humana e os humanos envelhecem? Nancy, você deveria ter comido mais massa, bebido mais vinho, dormido com o filho caçula do seu vizinho mais do que duas vezes e deixado o seu odioso marido quando ele teve o primeiro caso vinte anos atrás. E, Nancy, eu sei dessas coisas porque eu sou uma Deusa. Eu me atrevo a dizer essas coisas porque eu sou a sua Deusa, embora você, obviamente, não me mereça.
As pessoas em volta de Nancy se mexeram, como se quisessem se afastar dela, mas ainda estavam com expressões pasmadas e confusas de descrença em seus rostos bovinos.
– Seria inteligente se afastarem de Nancy. Eu sei que o meu Templo conta com instalações de lavanderia, mas não há motivo para mancharem desnecessariamente as suas roupas. – As pessoas mais próximas de Nancy se afastaram mais dela. Neferet sorriu, encorajando-os enquanto pegava uma das gavinhas que envolviam os seus pés descalços. Era satisfatoriamente pesada e grossa, e a sua pele gelada e emborrachada pulsava contra o seu corpo enquanto envolvia o seu braço. – Mate Nancy. Faça-a sofrer. Ela encheu a própria vida de sofrimento, então o sofrimento na morte deve ser um conforto para ela. – Neferet disse aquilo com carinho para seu filho. – Permita que seja visto.
Ela atirou a criatura em Nancy. A entidade tornou-se visível no ar. A multidão arfou e exclamou, mas logo começou a gritar quando a gavinha se enrolou no pescoço de Nancy e começou lentamente a cortar sua carne até arrancar a cabeça da mulher.
A multidão se descongelou e, gritando em pânico, seguiu em direção à saída.
– Eu não lhes dei permissão para sair! – Cheia de poder imortal, a voz de Neferet ecoou pelo amplo salão. – Meus filhos, permitam que meu povo veja vocês.
O ninho de Trevas ao seu redor se ondulou e se tornou visível, mas poucas pessoas notaram. Estavam ocupadas demais olhando, horrorizadas, para as cabeças negras das gavinhas, que haviam possuído a equipe e que, ao comando de Neferet, tornaram-se visíveis dentro das bocas escancaradas de cada um dos humanos robôs que guardavam as saídas.
Neferet fez outra nota mental – ela tinha de se certificar de recompensar os filhos que se ofereceram para a tediosa tarefa de possuir a equipe. Eles estavam sendo tão obedientes e compreensivos. Um outro banquete logo teria de ser providenciado para eles.
Sentiu um feixe de poder deslizar pelo seu corpo e voltou sua atenção para Nancy, cuja cabeça já estava separada do corpo. Havia tanto sangue, porém, que a gavinha não conseguia se alimentar rápido o suficiente. Neferet suspirou. O piso de mármore reluzente ia ficar manchado. Será que tinha de fazer tudo?
– Alimentem-se dela rapidamente! – ordenou aos filhos mais próximos. – Não tolerarei bagunça no meu Templo. – Então, suspirou mais uma vez e voltou sua atenção para o público em pânico. – Vocês estão começando muito mal! – exclamou ela. – Em troca de uma vida repleta de um novo objetivo, tudo o que peço em troca é a sua obediência e adoração. Nancy não me deu nada disso e vejam o que aconteceu com ela. Que isso sirva de lição para cada um de vocês.
– O que são essas criaturas? – perguntou um homem baixo e gordo, obviamente tentando controlar o medo enquanto acariciava o braço de uma mulher igualmente baixa e gorda e que enterrara o rosto no seu casaco enquanto soluçava.
– Estes são os meus filhos, formados por Trevas, e leais somente a mim.
– Por que eles estão dentro da boca daquelas pessoas? – quis saber ele.
– Porque aquelas pessoas fazem parte da minha equipe de trabalho e elas também devem ser leais apenas a mim. A possessão é muito mais eficiente do que cortar as suas cabeças. Agora, vocês viram como tudo será muito mais simples se vocês fizerem o que eu mandar?
– Mas isso é loucura! – gritou um homem no fundo do salão. – Você não pode esperar que nós fiquemos aqui e a adoremos, não é? Nós temos as nossas vidas, nossas famílias. Pessoas que sentirão a nossa falta.
– Tenho certeza de que sentirão mesmo, mas como eles são pessoas , e não imortais, isso não me preocupa. Mas se vocês forem muito, muito, mas muito bons mesmo, eu talvez lhes dê permissão para trazer a suas famílias para se juntarem a vocês.
– Você não pode fazer isso – disse uma mulher aos soluços. – A polícia vai nos salvar.
Neferet deu uma gargalhada.
– Ah, eu espero que sim. Estou ansiosa por este confronto. Garanto a vocês que o Departamento de Polícia de Tulsa não sairá vitorioso.
– E agora? O que nós vamos fazer? Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – berrou outra mulher.
– Façam com que ela se cale! – ordenou a Deusa, e uma gavinha voou em direção à mulher, envolvendo seu rosto e tapando sua boca. Ela caiu no chão enquanto se contorcia.
Neferet soltou um longo suspiro de alívio quando não apenas os gritos da mulher cessaram, mas todo o grupo em pânico também se calou. Ela passou a mão pelo vestido perfeitamente ajustado ao seu corpo e, usando um tom calmo para os súditos apavorados, falou:
– Vocês devem aprender estas lições agora. – Ela fez um gesto com os dedos longos como se estivesse marcando itens em uma lista. – Eu não tolero histeria. Não tolero deslealdade. Também não sou muito chegada a homens brancos de meia-idade. Agora, eu preciso de sessenta voluntários para resolver negócios muito importantes na cobertura.
Ninguém se mexeu. Ninguém a olhou nos olhos. Neferet suspirou novamente e acrescentou:
– Eu não vou usar nenhum dos voluntários como alimento.
Uma jovem ergueu a mão trêmula.
– Sim, querida. Qual é a sua pergunta? – concedeu a Deusa.
– Você vai dizer para essas cobras entrarem nas nossas bocas?
Neferet sorriu docemente para a garota.
– Não, eu não vou fazer isso.
– Ent... Então, eu sou uma voluntária.
– Muito bem! – elogiou Neferet. – E qual é o seu nome?
– Staci.
– Não, eu vou chamá-la Gladys, que é um nome muito mais digno, você não acha?
A jovem logo concordou com a cabeça.
– Então, Gladys, fique do lado esquerdo do salão de oferendas. Agora, eu quero mais cinquenta e nove pessoas tão entusiasmadas quanto Gladys para se juntarem a ela.
Quando ninguém mais se mexeu, Neferet usou um tom de raiva e gritou:
– Agora!
Como se tivessem sido atingidos por um chicote, um grupo de humanos se sobressaltou e se juntou à primeira voluntária.
– Kylee, conte quantos humanos há e me informe quando houver sessenta.
Cada vez mais impaciente, Neferet esperou. Por fim, Kylee declarou:
– Temos sessenta voluntários, Deusa.
– Muito bem. Seja uma fofa, Kylee, e leve-os até a minha cobertura. Faça com que esperem na varanda pelas minhas ordens. Ah, e abra várias caixas de champanhe. Seja generosa. Meus voluntários devem ser recompensados.
Parecendo confusos, mas aliviados, os sessenta humanos entraram nos elevadores. Neferet voltou a sua atenção para os adoradores restantes. Eles a olhavam como se esperassem que uma guilhotina estivesse prestes a descer sobre as suas cabeças.
– Seria muito mais fácil usar a possessão em todos vocês. Instruir humanos dos tempos modernos a como adorar uma Deusa será uma tarefa extremamente tediosa – murmurou ela para si mesma, enquanto batia com os dedos no balaústre.
Uma mulher que estava próxima o suficiente para ouvi-la deu vários passos em direção à escadaria e, então, atraindo o olhar da Deusa, fez uma reverência profunda e elegante. Neferet ergueu as sobrancelhas. Analisou a mulher que se mantinha em reverência, com a cabeça respeitosamente curvada. Era mais velha do que Nancy, mas não muito. E embora estivesse bem-vestida, com um terninho bem cortado e caro, parecia ter a própria idade.
– Pode se levantar – permitiu Neferet por fim.
– Eu agradeço, Deusa. Será que a senhora me daria permissão para que eu me apresentasse?
– Vá em frente – concedeu, bastante intrigada.
– Eu sou Lynette Witherspoon, dona da Everlasting Expressions. Gostaria de lhe oferecer os meus serviços.
– Lynette. Sim, o seu nome não me ofende. Você pode mantê-lo. E o que é exatamente a Everlasting Expressions?
– É a minha empresa. Ofereço serviços de planejamento de eventos, coordenação e decoração para uma clientela seleta – explicou a súdita.
Neferet apreciou o orgulho e a confiança na sua voz.
– E o que você propõe para mim?
– Tudo – respondeu Lynette com voz firme. Ela olhou em volta do salão para as pessoas reunidas atrás dela, antes de lançar um olhar sincero para Neferet. – Creio que a adoração de uma Deusa seja um evento constante da maior importância, que deve ser dirigido com bom gosto e sem percalços. Se me der a sua permissão, garanto que a sua adoração será uma sucessão de eventos espetaculares.
– Interessante... – refletiu a Deusa. – Lynette, você não se importa se eu vislumbrar suas reais intenções, não é? – Embora tenha dito aquilo em tom de pergunta, Neferet não esperou pela resposta da súdita. No entanto, invadiu a mente da mulher de maneira mais gentil do que fizera com Nancy.
O que descobriu lhe fez sorrir.
– Lynette, você é uma oportunista.
– S-sou – confirmou ela, um pouco trêmula, depois que a Deusa saiu da sua mente.
– E você odeia os homens. – O sorriso dela se abriu mais.
– Eu não tenho poderes, então posso apenas imaginar, mas acredito que a senhora compreenda esse ódio – respondeu a mulher.
– Eu gosto de você, Lynette. Permitirei que gerencie o planejamento da minha adoração.
Lynette fez outra reverência profunda.
– Eu lhe agradeço, Deusa.
– E qual será a sua primeira ação? – Neferet sentia uma curiosidade quase incontrolável sobre as intenções daquela humana incomum.
– Bem – começou ela, batendo com a mão no seu coque e analisando as pessoas que estavam em silêncio atrás dela –, todos os eventos começam com duas coisas: roupas adequadas e decoração correta.
– Só tenho uma exigência: deslumbre-me – ordenou a Deusa.
– Sim, Deusa – respondeu a mulher em tom respeitoso.
– E quanto a vocês, meus súditos – disse Neferet, dirigindo-se para o seu rebanho –, façam tudo o que Lynette mandar. – Neferet dirigiu o olhar para Lynette e acrescentou: – Desde que ela não mande que tentem sair do meu Templo.
– Eu não pensaria uma coisa dessas, Deusa – apressou-se a humana em responder.
– Ah, minha querida, você pensou nisso. Você só se deu conta de como isso seria imprudente.
Lynette curvou a cabeça.
– Touché , Deusa.
– Agora, deixarei vocês, meus súditos, nas mãos capazes de Lynette. Vou para a minha cobertura me preparar para...
A saída de Neferet foi interrompida pelo mensageiro alto, Judson, chamando de seu posto em frente das portas fechadas e acorrentadas do Mayo Hotel.
– Deusa! A polícia está aqui!

5
Lynette
– Socorro! Polícia! Ela está nos mantendo presos aqui! – Uma garota que Lynette reconheceu como sendo a dama de honra do casamento espetacularmente caro da noite anterior começou a gritar, desvencilhando-se da equipe possuída, esmurrando o grosso vidro das portas dianteiras.
– Por que será que eu sempre tenho que fazer tudo? Equipe, todos vocês, exceto Judson, levem esses humanos para o porão!
A voz de Neferet estava cheia de veneno, e a equipe do hotel reagiu como se tivesse levado um choque elétrico. Começaram a reunir o grupo de pessoas aterrorizadas em direção à saída de emergência. A vampira flutuou pela escadaria e pelo piso do salão, passando tão próxima de Lynette que o vestido púrpura encostou nos seus pés. Lynette se afastou, tentando se esconder nas sombras e evitar ser levada com o resto do rebanho, mas Neferet falou com ela:
– Você, venha comigo. Eu não quero que você perca o evento que eu estou planejando.
– Como desejar, Deusa.
Lynette se empertigou, controlou o medo e seguiu a vampira. Não importava o que acontecesse, ela não ia terminar seus dias como aqueles pobres otários da equipe do hotel com aquelas cobras nojentas da vampira saindo pela boca. E também não faria nada idiota para acabar tendo a cabeça decepada. Ela sobrevivera a uma mãe alcoólatra e abusiva e à infância pobre para construir um império para si. Tinha dinheiro e status social. Dirigia uma Mercedes-Benz S-Class e era proprietária de uma casa de quase seiscentos metros quadrados em Eight Acres, o condomínio mais caro e exclusivo no centro de Tulsa. Passava as férias na França e só viajava de primeira classe. Ela poderia muito bem sobreviver a uma vampira doida com delírios de imortalidade e sedenta por poder, e ainda encontraria uma maneira de sair lucrando com a situação.
Neferet chegou até a garota que berrava.
– Você não é uma súdita adequada! – Com uma força sobrenatural, ela agarrou um punhado do cabelo louro tingido da garota e puxou sua cabeça para trás até que Lynette tivesse certeza de que o pescoço se partiria. Então, apontou para a boca aberta da garota. – Possuam-na!
Lynette queria afastar o olhar, mas não conseguiu. A cobra negra mergulhou na boca da dama de honra. Os olhos dela se reviraram de forma que só dava para ver a parte branca, o corpo totalmente inerte. Ela só não caiu no chão porque Neferet a segurava pelos cabelos.
– O seu nome será Mabel. Quando eu mandar, você virá de boa vontade até mim – rosnou a Deusa, erguendo o rosto da garota inconsciente até que ficasse a um dedo de distância do dela.
Um ligeiro piscar de olhos. Como se a vampira tivesse ligado um botão, o terror no rosto da garota desapareceu, deixando apenas uma expressão vidrada, mas atenta, em seus olhos.
– Sim, Deusa – entoou ela sem qualquer emoção.
Aquelas cobras horríveis têm total controle de quem quer que possuam , pensou Lynette. Não a mim , prometeu para si mesma. Não farão isso comigo. Eu prefiro morrer a terminar assim!
Neferet soltou a garota. Ela cambaleou como se estivesse desequilibrada, mas conseguiu manter-se de pé. A vampira passou a mão pelo cabelo perfeito e tirou alguma migalha invisível do seu ombro. Então, encarou Lynette.
– Você sabe o que vai acontecer se me decepcionar e acabar não se mostrando uma súdita adequada.
Lynette não afastou o olhar dos olhos verdes-esmeralda de Neferet. Mergulhou em uma reverência profunda que a vampira tanto apreciara antes.
– Eu não a decepcionarei, Deusa.
Sentiu o deslizar doentio de Neferet entrando em sua mente e concentrou os pensamentos nos fatos – ela não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa que levasse a vampira a se voltar contra ela.
– Logo, logo, você acreditará que eu sou uma Deusa, e que o seu destino é me servir. – Antes que Lynette tivesse a chance de comentar, Neferet virou de costas, ordenando: – Judson, desacorrente a porta da frente. Lynette, venha comigo. Meus filhos, não permitam que sejam vistos, mas prestem atenção em mim!
Com um som que trazia à mente de Lynette a recordação de antigas fortunas e opulência, as portas duplas e austeras de latão e de vidro se abriram e Neferet saiu, com Lynette logo atrás, tão perto que conseguia sentir o frio horripilante que emanava das cobras invisíveis.
Havia dois carros do Departamento de Polícia de Tulsa e um carro de passeio parados na pequena entrada circular diretamente em frente ao hotel. Quatro policiais uniformizados conversavam com um homem alto de roupas comuns que estava, obviamente, no comando, o que significava que ele era algum tipo de detetive. Com o aparecimento de Neferet, o grupo rapidamente voltou sua atenção para a bonita vampira. O detetive fez sinal com a cabeça para os outros, que deram alguns passos para trás e se posicionaram atrás dele, enquanto, com a expressão séria, começou a se aproximar de Neferet.
– Não, eu quero que você permaneça perto dos carros – declarou Neferet.
Ela estava próxima às portas, em pé sob o toldo de ferro, marca registrada da entrada do Mayo. Deu um pequeno passo para o lado e envolveu o ombro de Lynette com o braço e a empurrou. Lynette não precisava ser vidente para compreender o que a vampira queria que fizesse. Sem hesitar, deu um passo para a frente e se colocou entre Neferet e a polícia. A mão de Neferet se manteve em seu ombro, e ela sentia as unhas duras e afiadas da vampira pressionadas contra a pele do seu pescoço, bem acima da artéria que ali pulsava forte e rápido.
Lynette ficou completamente parada.
O homem alto hesitou apenas por um momento, embora aquele instante tenha parecido durar uma eternidade para Lynette. Então, os policiais deram vários passos para trás.
– Isso, assim está bem melhor. – Lynette detectou o sorriso na voz de Neferet. – Agora podemos conversar de maneira mais educada. Detetive Marx, que gentil da sua parte vir me visitar. Está uma tarde adorável, não acha? É como se a tempestade de ontem tivesse limpado a cidade.
Neferet falava em um tom afável, mantendo a mão descansando sobre o ombro de Lynette.
– Neferet, eu tenho que fazer algumas perguntas a você. Será que não prefere vir para a delegacia comigo em vez de ser interrogada aqui?
O suspiro de Neferet demonstrou uma decepção exagerada.
– Então, não podemos ser corteses um com o outro socialmente?
– Você sabe muito bem que, em circunstâncias normais, não tenho o menor problema com cortesia. Nós dois já trabalhamos juntos de forma amigável antes. Mas o que aconteceu ontem em Tulsa foi bem além do normal, e eu não tenho tempo para cortesia. – Ele fez uma pausa antes de gesticular em direção à Lynette. – E acho bem irônico você estar reclamando sobre questões de cortesia quando tem uma refém bem diante de si.
A pressão da unha de Neferet sumiu imediatamente, e a vampira afastou a mão do pescoço de Lynette, fazendo um carinho íntimo em seu rosto.
– Detetive, você não poderia estar mais enganado. Lynette, você é minha refém?
– Não, Deusa – respondeu ela, meneando a cabeça e esforçando-se para agir como se aquilo fosse algo corriqueiro, servir como escudo-humano de uma vampira psicótica. – Eu sou uma súdita por livre e espontânea vontade.
– Aí está. Viu? Está tudo bem. Lynette só está aqui porque ela me adora. Mas por que você, detetive Marx, está aqui? As perguntas que o trazem têm a ver com Woodward Park ou com a Boston Avenue Church?
Lynette viu os olhos do detetive se estreitarem.
– O que você sabe sobre Boston Avenue Church?
Neferet deu uma gargalhada.
– Tudo! Pode perguntar qualquer coisa. Você quer saber por quanto tempo aquele projeto de pastor gritou antes de eu matá-lo? Ou por que a esposa do conselheiro estava sem o seu lindo terninho branco Armani, o qual, coincidentemente, era do meu tamanho, quando você encontrou o seu corpo drenado e sem vida do lado de fora do seu santuário? Veja bem, é muito difícil remover manchas de sangue de um tecido de qualidade.
Enquanto a vampira falava, Lynette observava a mudança nos policiais. Primeiro, os seus rostos denunciaram que eles estavam em choque e, depois, sacaram suas armas, enojados e zangados.
A arma do detetive apontou para o seu ombro direito.
– Lynette – disse ele. – Caminhe diretamente para nós e mantenha as mãos onde possamos vê-las.
Lynette sabia que não importava nem um pouco o fato de Neferet não estar tocando nela.
– Não, obrigada – respondeu ela, conseguindo, de alguma forma, evitar que a voz saísse trêmula. – Estou bem aqui com a Deusa.
– Mas do que é que você está falando? – explodiu um dos policiais. – Ela é uma porra de uma vampira que assassinou um monte de fiéis numa igreja! Ela não é uma merda de uma deusa.
– Lynette, eu não gosto de pessoas desbocadas. E você? – quis saber Neferet.
Prendendo a respiração, deu a única resposta que poderia. Meneou a cabeça e disse:
– Não, eu não gosto.
Neferet inclinou a cabeça para o lado e analisou o policial que tinha falado. Lynette viu o corpo dele se retorcer.
– Policial Jamison, será que palavrões permeiam sua mente enquanto tem fantasias com a sua enteada de dez anos de idade? E quando você a observa dormindo e admite para si mesmo que daqui a alguns dias você vai transformar seus desejos em realidade?
O policial empalideceu.
– Isso é uma porra de uma mentira! – exclamou.
– Mais profanação. “Parece-me que o lorde faz protestos demasiados” [*] – declarou Neferet. Então, ela se voltou para Lynette em tom conspiratório. – É uma citação, mas acho perfeitamente adequada à situação, você não acha?
– Acho – concordou Lynette, observando o policial de perto.
O homem estava rubro e parecia prestes a explodir a qualquer momento – e Lynette se deu conta de que Neferet não o estava provocando nem inventando nada daquilo. Ela deslizara pela mente dele e revelara o seu segredinho sujo.
– Sua vaca filha da puta! – berrou o policial Jamison.
– Já chega! – ordenou o detetive Marx, dirigindo-se ao homem uniformizado.
Então, sua atenção se voltou para Lynette e Neferet, falando de maneira clara e calma que fez Lynette desejar poder correr da loucura da vampira e direto para a proteção dele.
– Lynette, se você escolher ficar com Neferet, então vai fazer companhia a ela numa cela de cadeia. Neferet, você está presa pelo assassinato de toda a congregação da Boston Avenue Church.
A risada de Neferet foi seca e cruel.
– Você nem consegue fazer a acusação contra mim de forma correta, detetive.
– Você acabou de confessar esses assassinatos! – exclamou Marx.
Ele perdeu o tom profissional e objetivo que mantivera até aquele momento. Com um terrível aperto no estômago, Lynette se deu conta da verdade inacreditável – Neferet massacrara toda uma igreja cheia de inocentes.
Teve de segurar as mãos em frente de si para evitar que tremessem.
– Você tem uma mente tão decepcionantemente tacanha, detetive Marx. O que eu fiz naquela igreja não foi assassinato, foi sacrifício, e foi glorioso! Queria que você estivesse lá como testemunha, mas se estivesse lá , não estaria aqui para testemunhar o início do meu reinado. Ah, mas eu estou divagando. As suas acusações estão incorretas porque estão incompletas. Você se esqueceu de acrescentar o lanchinho que fiz com o seu prefeito algumas noites antes.
A expressão no rosto do detetive Marx era uma máscara de ódio.
– Meus instintos avisaram que os vampiros da Morada da Noite estavam dizendo a verdade sobre você ser a responsável pela morte do prefeito.
– Pelo menos uma vez, os seus instintos estavam corretos. Mas permita que eu continue com a minha confissão. É uma pena que não havia ninguém em Woodward Park para testemunhar minha saída triunfal de meu agradável recanto, enquanto eu descobria dois homens deliciosamente confusos praticamente implorando para que eu drenasse seu sangue.
Os olhos do detetive se arregalaram e Neferet zombou:
– Eu não sei o que é mais inacreditável, aquela energúmena da Zoey Redbird ter criado a ilusão de que matara os homens para logo em seguida correr pateticamente para você e se entregar, ou você realmente ter acreditado que aquela insípida tivesse coragem o suficiente para matar alguém. De qualquer modo, a situação não é muito favorável para suas habilidades de dedução.
Lynette viu que os policiais uniformizados, até mesmo Jamison, empalideceram diante da admissão direta de culpa de Neferet, mas o rosto do detetive Marx endureceu, formando linhas de teimosia.
– Neferet, permitirei que faça uma ligação para o Conselho Supremo, mas você deve se entregar agora e se preparar para arcar com as consequências dos seus atos.
– O Conselho Supremo tem ainda menos jurisdição sobre mim do que você – declarou Neferet. – Eu não sou vampira. Eu sou a Deusa das Trevas, Rainha de Tsi Sgili. E não vou nunca mais me curvar diante de qualquer autoridade. Você, Tulsa e o resto do mundo vão me adorar, é meu direito divino. Observem e aprendam. Mabel, venha até aqui.
A garota obedeceu imediatamente. Caminhou pelas portas que Judson abrira para ela e ficou ao lado de Neferet.
– Mais reféns não ajudarão você a se livrar disso! – exclamou o detetive Marx.
– Eu disse: observem e aprendam, humanos! Eu não tenho reféns, apenas súditos obedientes. Agora, observem o seu futuro!
Neferet abriu os braços para a garota que chamava Mabel. Lynette teve de dar um passo para o lado enquanto Mabel se apressava, de boa vontade, para abraçá-la.
– Se eu sou a sua Deusa, sacrifique-se por mim.
Com uma curiosidade mórbida, Lynette observou, perguntando-se o que a garota estaria disposta a fazer. Ela só teve segundos para pensar.
– A senhora é minha Deusa – afirmou a garota de forma mecânica e, então, começou a arranhar o próprio pescoço fazendo com que o sangue escorresse pelos ferimentos.
– Agora, sim, este é o comportamento esperado de uma súdita adequada. – Neferet se inclinou para beber o sangue da oferta. A garota arfou e estremeceu, mas, em vez de tentar escapar, ela exclamou com uma voz cheia de êxtase:
– Obrigada, Deusa
– Que delicadeza a sua – elogiou Neferet, seus lábios a centímetros do pescoço de Mabel. Antes de começar a se alimentar do sangue dela, Neferet ordenou: – Proteja-nos!
Instantes depois, houve um barulho ensurdecedor de tiros. Lynette se jogou no chão, encolhendo-se e colocando o braço sobre a cabeça numa vã tentativa de se proteger.
Ouviu uma lamúria de dor e, então, os policiais começaram a gritar. Tremendo violentamente, Lynette espiou por entre os braços. Neferet estava se alimentando da garota, ignorando o caos que acontecia diante deles.
Aparentemente, os tiros destinados a Neferet – e à própria Lynette – ricochetearam em algum escudo conjurado pela vampira e atingiram diretamente o corpo do policial desbocado.
– Ai, meu Deus – sussurrou Lynette.
– Será que você não quer dizer “ai, minha Deusa ”? – Neferet, com os lábios vermelhos do sangue da garota, sorriu para ela.
– Sim, é o que quero dizer – respondeu ela, sentindo-se tonta.
Neferet soltou a garota e Mabel caiu pesadamente no chão. Então, ela estendeu a mão para Lynette, que a pegou, e se levantou, trêmula.
– Não tema, não permitirei que eles a machuquem. Não permitirei que machuquem qualquer pessoa que seja leal a mim – afirmou.
A vampira voltou sua atenção para os policiais. Eles arrastaram o corpo cravejado de balas de Jamison para trás dos carros, onde o restante dos homens estava agachado. Lynette ouvia o som da estática dos rádios enquanto chamavam uma ambulância e pediam reforços.
– Você entendeu agora, detetive Marx? Aprendeu a sua lição?
– Aprendemos que você é uma assassina! – exclamou ele. – Ainda não terminamos. Este não é o fim.
– Pelo menos uma vez você está certo. Ainda não terminei aqui. Esse é só o começo. Observe e aprenda. Observe e aprenda – repetiu ela. – Ah, olhe para cima! Meus filhos, venham comigo!
Dando os braços para Lynette, entraram novamente no Mayo Hotel.
– Judson, acorrente as portas novamente.
– Sim, Deusa. Mas isso não os manterá lá fora por muito tempo.
– Eu sei disso! Limite-se a fazer o que eu ordenei. Como sempre, terei de tomar conta dos detalhes sozinha.
– Sim, Deusa.
– Lynette, gostaria que você se juntasse a mim na minha cobertura. Um evento espetacular está prestes a acontecer lá.
– Sim, Deusa – respondeu Lynette, entrando no elevador com ela.
O sorriso de Neferet era confiante.
– Você está quase acreditando que eu sou divina.
Lynette não respondeu. O que poderia dizer que Neferet não pudesse retorquir esquadrinhando a sua mente e descobrindo a verdade? Então, novamente, deu a única resposta possível:
– Estou aqui para servi-la.
– E assim será.
As portas se abriram para a cobertura.
– Kylee, Lynette está um pouco pálida, sirva para ela uma taça do melhor vinho e leve até a varanda.
Neferet passou por Kylee, com Lynette seguindo logo atrás, e abriu as portas para se juntar às sessenta pessoas que estavam reunidas em grupos amedrontados na varanda. Muitos estavam próximos à balaustrada que emoldurava a ampla extensão das portas para o lado de fora; pela expressão nos seus rostos, ficou claro que tinham ouvido os tiros e viram o que acontecera lá em baixo.
– Espere aqui, Lynette, e tome o seu vinho. Isso vai trazer um pouco de cor de volta ao seu rosto. Não posso permitir que a minha súdita favorita fique com uma aparência abatida e doentia – declarou Neferet.
Então, ela caminhou até o parapeito de pedra, fazendo com que as pessoas mais próximas a ela se afastassem, assustadas.
– Já que a educação moderna é de péssima qualidade, sinto que é meu dever, como a sua Deusa, dizer isto a vocês – ela fez uma pausa e apontou para as pedras esculpidas –: o nome disso é balaustrada. Os suportes grossos e com espaçamento uniforme, aqui e aqui – ela apontou novamente –, chamam-se balaústres. É uma feliz coincidência que haja exatamente sessenta balaústres espaçados em torno da varanda da cobertura do meu Templo. Eu quero que cada um de vocês escolha um balaústre e se posicione diretamente em frente a ele.
– Você... Você não vai nos obrigar a pular, não é? – quis saber uma velha aterrorizada.
– Não, Vovó – respondeu Neferet com a voz calorosa. – Isso não faria nenhum sentido. Será que vocês não viram como eu protegi Lynette contra as balas mortais que a polícia atirou contra ela?
Seguiu-se um longo silêncio e alguém disse:
– Mas você comeu aquela outra garota.
– Mabel foi desobediente. Será que vocês querem o mesmo destino que ela teve?
Suas palavras tiveram um efeito instantâneo sobre as pessoas, que se espalharam, cada qual assumindo uma posição em frente a um balaústre.
– Excelente! Kylee, sirva mais champanhe enquanto eu tenho uma conversa em particular com os meus filhos das Trevas.
Lynette apreciava vinho tinto caro e costumava degustá-lo, bebendo-o devagar. Mas não naquele momento. Ela bebeu ruidosamente, pegando a garrafa da mão de Kylee quando a garota robótica passou por ela para buscar mais champanhe. Lynette sentiu-se grata pela sensação surreal e destacada que o álcool lhe provocava enquanto observava a vampira se mover para um canto sombrio da varanda, bem longe do parapeito, e se curvava para conversar com o que parecia ser absolutamente nada.
Lynette sabia que não era o caso. E, com certeza, apenas um segundo ou dois depois, o ar em volta dos pés da vampira se ondulou, como correntes de ar quente se erguendo do asfalto abrasado de uma estrada, e as cobras de Neferet ficaram visíveis. Lynette ficou satisfeita que a vampira estivesse distraída com os seus “filhos”, pois não conseguia evitar o estremecimento de nojo. Lynette se lembrou de um velho filme de faroeste ao qual assistiu quando criança. Nele, os cowboys tinham que levar o gado e, enquanto cruzavam o rio, um jovem caiu do cavalo, pousando no meio de um enorme ninho de cobras aquáticas para ser morto por elas, embora não rápido o suficiente. Parecia que Neferet estava no centro do ninho, só que as suas cobras eram maiores, mais negras e até mais perigosas do que qualquer uma das cobras do velho oeste.
O que será que elas eram? Com certeza, Lynette não sabia muitas coisas sobre vampiros. Mesmo que fosse capaz de aceitar fazer negócios com eles – já que eram reconhecidamente ricos –, jamais fora contratada por um. Estava longe de ser uma perita em vampiros, mas tinha certeza de que ouvira falar alguma coisa sobre essas criaturas mortíferas semelhantes a cobras. Seus familiares deveriam ser gatos, meu Deus, e não répteis.
Lynette se serviu de mais vinho e tomou um longo gole em sua taça, sentindo-se aliviada por seu rosto estar quente. Bom, o calor deixaria o seu rosto “corado” de novo. Lynette não tinha dúvidas de que a vampira seria capaz de matá-la se lhe desse na telha. Disfarçadamente, apertou o próprio rosto para se certificar de estar completamente corada.
Como ela ia sair daquela confusão? Nem estava mais se preocupando em lucrar com aquilo. Só queria escapar sem ser caçada pelos filhos de uma vampira insana.
– Excelente! – Neferet se empertigou, voltando sua atenção para as sessenta pessoas, cada uma diante de um balaústre na cobertura. – Agora que os meus filhos compreendem os meus desejos, estou pronta para compartilhá-los com vocês, meus leais súditos. – Ela se colocou no centro da varanda para que pudesse ser vista e ouvida por todos. – Kylee, chega de champanhe por ora. Fique ao lado de Lynette.
Kylee, é claro, fez conforme foi ordenada.
Lynette lançou uns olhares de esguelha para a garota. A sua boca estava fechada, ela não conseguia ver qualquer sinal da infestação da cobra, mas a garota estava claramente no piloto automático. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. O rosto não tinha expressão. Dessa vez, Lynette conseguiu evitar um estremecimento de asco. Quem poderia saber o que aquela coisa ao seu lado poderia contar para a vampira?
– Bem, eu tenho uma pergunta para vocês, uma a que qualquer um pode responder. Qual é a sua maior preocupação neste momento? – perguntou Neferet para as pessoas.
Lynette achou estranha sua capacidade de parecer uma pessoa tão normal, até boa. Era tudo fachada, mas uma fachada muito boa.
Ninguém respondeu à sua pergunta, e Neferet deu um sorriso caloroso e encorajador, dizendo:
– Ah, vamos lá! Eu sou a sua Deusa. É o meu dever e um prazer ouvir as suas preocupações. E, como meus súditos, é o seu dever compartilhá-las comigo. Por favor, não me obriguem a forçá-los a cumprir com as suas obrigações.
Um homem resolveu responder:
– A minha maior preocupação é que eu não quero ser morto... Ou coisa pior – declarou ele, lançando um olhar nervoso e rápido para o ninho das trevas que cercava e se contorcia em torno da vampira.
– Muito bom! Ótima resposta. Mais alguém tem a mesma preocupação?
Neferet parecia realmente se preocupar e até mesmo Lynette sentiu que sua cabeça assentia junto com a dos outros.
– Perfeito! – exclamou Neferet. – Eu sabia que a segurança seria a principal preocupação de todos. Agora, vejam bem, eu não estou admoestando vocês, nem estou zangada, mas a sua principal preocupação deveria ser cuidar de mim e me adorar. – Várias pessoas começaram a protestar, obviamente temendo o que a vampira faria em seguida, mas Neferet ergueu a mão e, com um gesto régio calou a todos. – Não, não, eu compreendo. De verdade. E é por isso que vou deixar bem claro que ninguém pode ferir os meus súditos, de modo que fiquem livres para me adorar.
Lynette achou irônico que Neferet tenha feito tal pronunciamento enquanto sirenes soavam cada vez mais próximas lá embaixo.
– Para assegurar aos meus súditos de que eles estão seguros, precisarei da ajuda de vocês. Façam exatamente o que eu mandar, e prometo que o meu Templo será impenetrável a qualquer um que nos queira ferir.
Lynette deu um suspiro suave. Pena que ninguém disse o que todos estavam pensando: não é com o mundo exterior que estamos preocupados – é com você! Mas, é claro, ninguém disse nada disso. Era a Neferet que todos temiam.
– O que precisam fazer é bem simples. Primeiro, cada um de vocês deve se virar de modo a olhar para o lado de fora da cobertura. – De forma lenta e relutante, as sessenta pessoas fizeram como ela ordenou, e agora estavam de costas para Neferet. – Agora, ergam os braços, fechem os olhos, limpem suas mentes e respirem fundo junto comigo. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. Inspirem. Expirem. – Lynette ouviu as pessoas respirando com ela. – Quero que se concentrem na minha voz e não pensem em mais nada.
Neferet fez uma pausa para olhar em volta e ver se todos estavam nos devidos lugares. Quando os seus olhos encontraram os de Lynette, seus lábios carnudos se abriram em um sorriso cruel.
O estômago de Lynette se contraiu e ela temeu que fosse vomitar todo o vinho que consumira.
O olhar de Neferet se afastou dela e pousou nas cobras que se contorciam em torno dos seus pés.
– Meus filhos, chegou a hora! – As palavras que disse a seguir foram entoadas em um ritmo musical que era supreendentemente tranquilizador, de forma quase hipnótica.
Em um ataque rápido, promovam a defunção
para que aqueles lá embaixo conheçam a minha ira.
O poder é farto, consuma seu quinhão
Para mim uma perfeita jaula assim se cria.
Lynette conseguia sentir o poder crescendo a cada verso que a vampira entoava, e ela, assim como as outras sessenta pessoas que estavam congeladas com os braços erguidos, não poderia fazer nada, a não ser esperar pelo que aconteceria a seguir.
Para que este mundo eu possa reedificar
meu Templo deve ser divinal – poderoso.
Para a Deusa, somente sua lealdade deve imperar
E para Tulsa ofereçam um divino canto majestoso.
Pelo tempo que ainda vivesse, Lynette jamais seria capaz de apagar da memória a visão do que aconteceu em seguida. Com as palavras “divino canto majestoso”, Neferet ergueu os braços e, como se aquele fosse o sinal pelo qual estavam esperando, as cobras dispararam em direção às costas das pessoas despreparadas. Lynette prendeu a respiração, esperando que as serpentes subissem por suas pernas e as possuíssem, mas suas expectativas não poderiam estar mais erradas. Em vez de possuir as pessoas, as cobras – como se formassem um único ser – atingiram-nas todas no meio das costas, atravessando-as com tanta força que o sangue e as tripas explodiram como uma chuva vermelha fluindo com as gavinhas sobre a balaustrada de pedra. Sem acreditar, Lynette assistiu às criaturas descerem pelas laterais do Mayo Hotel, lavando-o com negrume e sangue, como se estivessem desenrolando uma cortina escura e gotejante.
Um som chamou sua atenção de volta à Neferet. Entorpecida, viu que a vampira ainda tinha os braços erguidos. Sua cabeça estava inclinada para trás e seu corpo estremecia em espasmos enquanto ela gemia num êxtase terrível. Lynette tinha certeza de que vira um brilho sombrio emanando e se expandindo em volta dela. De repente, compreendeu. É a morte das pessoas . De alguma forma ela está se alimentando de suas almas, assim como as suas criaturas se alimentam dos seus corpos.
E elas estavam se alimentando das pessoas que tinham acabado de morrer – todas as cobras que permaneceram na cobertura. Lynette sentiu que balançava a cabeça. Havia tantas delas. Muitas ainda.
Lynette ainda meneava a cabeça e observava as criaturas que se agitavam por entre os mortos, grudando neles como sanguessugas gigantescas, drenando tudo o que restava nos corpos inertes, quando o braço de Neferet baixou. Ela arrumou o vestido e, sem lançar um olhar sequer para nenhum dos sessenta voluntários, virou-se, sorrindo, aproximando-se de Lynette.
– Kylee, jogue os corpos pela balaustrada quando os meus filhos acabarem de se alimentar. Ah, e chame Judson e os outros membros de minha equipe. Eles não precisam mais proteger as portas. Estamos todos seguros. Nada poderá penetrar o véu das Trevas. Ninguém poderá entrar nem sair do meu Templo sem minha permissão. Então, mande que a equipe avise aos súditos restantes de que eles não precisarão mais ficar naquele porão sombrio. Eles podem voltar para os seus quartos sem medo. Eu já me certifiquei de que todos estejam protegidos. Contanto que me adorem. Já chegou a hora de começarem a me adorar.
– Sim, Deusa – respondeu Kylee, desaparecendo pela porta da cobertura.
Os olhos verdes-esmeralda de Neferet encontraram os de Lynette.
– O que você achou do meu evento?
Lynette engoliu o enjoo que lhe subia pela garganta e ameaçava engasgá-la. Respondeu então com a mais pura honestidade:
– Eu jamais vi nada como aquilo.
– “Eu jamais vi nada como aquilo”, o quê? – perguntou Neferet, cheia de expectativa.
– Eu jamais vi nada como aquilo, Deusa – completou Lynette, curvando-se em uma reverência profunda e trêmula.
– E agora você realmente acredita nisso. Encantador! Levante-se, Lynette, minha querida, e sirva uma taça de vinho para nós, enquanto discutimos os tipos de evento de adoração que você planeja para mim.
Lynette se levantou e fez exatamente o que a Deusa mandou.
[*] Esta frase faz referência à obra Hamlet , de William Shakespeare. No caso, “The lady doth protest too much, methinks” (Parece-me que a dama faz protestos demasiados). Essa expressão indica uma situação em que a insistência na defesa de determinado argumento ou ponto de vista pode ser indício de que há uma mentira sendo ocultada pelo emissor. (N.E.)

6
Detetive Marx
Desde aquela noite escura e com muita neve em que Zoey Redbird o chamara até a velha estação, onde ela e um adolescente tinham escapado por pouco de serem assassinados, o detetive Marx tivera questionamentos em relação a Neferet, que, na época, era a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. A vampira parecera estranha para ele. Zoey obviamente ficara desconfiada dela quando ele levara os dois novatos de volta para a Morada da Noite, e Neferet a recebera de maneira calorosa e aparentemente sincera. Zoey assumira uma postura defensiva. Até dera um show para mostrar a nova tatuagem com a qual a Deusa tinha lhe presenteado naquela noite, o que, aos olhos treinados do detetive, indicava que a novata fora bem-sucedida em dizer à vampira mais poderosa e proeminente da escola que ficasse longe dela.
Marx achou que deveria ter ficado do lado da vampira e questionado a veracidade da novata. Em vez disso, Marx sentiu uma comichão sob a pele quando estava perto da Neferet, a mesma comichão que já lhe salvara nas ruas mais vezes do que poderia contar. Gostava de Zoey. Não sentia nenhuma comichão quando estava perto dela. De Neferet, porém, ele não tinha gostado nada.
Marx perguntara à sua irmã, que fora Marcada quase duas décadas antes, sobre Neferet. Anne fora surpreendentemente curta e grossa na sua resposta: Neferet é uma poderosa Grande Sacerdotisa. Fique longe dela. Quando pedira mais detalhes, Anne encerrara completamente a conversa. Chegara até a evitar as suas ligações por quase uma semana. Aquilo fora mais do que estranho. Ele e Anne eram gêmeos e se mantiveram próximos mesmo depois de ela ter sido Marcada e passado pela Transformação. Atualmente, ela dava aulas de Feitiços e Rituais na Morada da Noite de São Francisco. Marx passava as férias lá pelo menos uma vez por ano e ficara hospedado várias vezes no alojamento da escola como seu convidado. Anne costumava ser direta e honesta com ele sobre o seu mundo de vampiros. Sabia que poderia confiar no irmão. Mas bastou uma menção à Neferet, e Anne erguera um muro entre eles.
Marx odiara aquilo, odiara não ter a confiança da irmã. Então, nunca mais voltou a fazer perguntas sobre Neferet.
Nem mesmo quando a Grande Sacerdotisa deixara a Morada da Noite de Tulsa e dera uma entrevista coletiva condenando os vampiros atuais em geral e os da sua Morada em particular.
Nem mesmo quando Neferet desaparecera depois que a sua cobertura fora destruída.
Nem mesmo quando a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, Thanatos, acusara Neferet de ter assassinado o Prefeito LaFont.
Nem mesmo quando recebera uma pista anônima pelo Disque Denúncia dizendo ter visto uma vampira nua que se encaixava com a descrição de Neferet entrando na Boston Avenue Church.
Os últimos vinte e poucos minutos o fizeram mudar de ideia sobre não questionar a irmã.
– Aqui! Policial ferido aqui!
Marx acenou para a ambulância que chegara no bloqueio atrás do qual ele e os outros policiais estavam agachados. Lançou um olhar para Jamison. O cara estava obviamente condenado. As seis balas que ricochetearam no escudo invisível que Neferet erguera tinham, convenientemente, lhe atingido em todas as partes não protegidas pelo seu colete à prova de balas. Como ela conseguira fazer aquilo? Marx acrescentou mais uma pergunta à longa lista de perguntas que, com certeza, faria à irmã.
Mais carros oficiais do que ele poderia contar chegaram, parando no meio das ruas que cercavam o Mayo. Os policiais que não estavam dando cobertura para Marx apressavam-se em evacuar os prédios adjacentes. Marx enviara uma mensagem pelo rádio dizendo que um policial fora atingido, além de estar acontecendo uma situação grave envolvendo reféns.
Foi com uma mistura de alívio e tristeza que viu o chefe de polícia Connors liderando a equipe da SWAT. O chefe não era conhecido pelas habilidades diplomáticas.
– Detetive, faça um resumo rápido da situação – pediu ele.
– Neferet confessou os crimes na Boston Avenue. Ela está lá dentro do hotel com reféns. Ela tem controle sobre eles. Não sei se é por feitiço ou se apenas ela os deixou tão apavorados a ponto de estarem dispostos a fazer qualquer coisa por ela. Mas você não vai acreditar nas coisas terríveis a que ela está obrigando essas pessoas fazerem.
– Depois de ver o que ela fez na Boston Avenue, acho difícil ficar surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer – declarou o chefe de polícia em tom sombrio.
– Está vendo aquele corpo ali? Aquela garota dilacerou a própria garganta para Neferet enquanto dizia “obrigada, Deusa”. – Marx fez um gesto indicando a carcaça ensanguentada que costumava ser uma jovem.
– Alguma ideia de quantas pessoas estão lá dentro com ela?
Marx meneou a cabeça.
– Deve ter umas cem, mas é apenas um chute. Ela fechou o restaurante e trancou o prédio. Pelo que entendi, ela não vai deixar ninguém sair.
– Bem, ela vai ter que nos deixar entrar.
– Chefe, acho melhor conseguirmos algumas informações sobre a situação dos reféns. Não queremos uma repetição do que aconteceu na igreja. Ela massacrou aquelas pessoas, mas os corpos não parecem com nada do que já vi vampiros fazerem antes. Eles foram estraçalhados, comidos e drenados. O poder de Neferet não se parece em nada com o que já tenhamos lidado antes.
– É, eu vi. – O chefe de polícia meneou a cabeça. – Mas como uma porra de uma vampira conseguiu fazer algo assim? Eu ouvi dizer que uma Grande Sacerdotisa pode entrar na mente das pessoas. Controlá-las e até mesmo apagar lembranças. E sei que são fisicamente fortes, mas não tão fortes quanto os seus guerreiros. Mas a carnificina na igreja... – Ele balançou a cabeça. – Eu nunca ouvi falar em nada parecido com aquilo. E quanto a você? A sua irmã não é vampira?
– É sim, e eu vou dar uma ligada pra ela. Mas tem outra coisa que você precisa saber. Neferet não está dizendo que é uma vampira. Ela afirma ser uma deusa, para ser mais específico, a Deusa das Trevas e a Rainha de Tsi Sgili, seja lá o que for isso. Ela disse que transformou o Mayo no seu Templo e que quer que Tulsa a adore.
O chefe de polícia deu um grunhido.
– Porra nenhuma. Assim que avaliarmos a situação dos reféns, a gente vai entrar. Vamos ver o que o nosso atirador de elite com a sua arma de cinquenta calibres vai causar nas suas ilusões de divindade.
Marx acenou com a cabeça em concordância, mas sentiu a familiar comichão de aviso sob a pele, dando-lhe uma sensação ruim sobre como as coisas de desenrolariam.
– Esses malditos vampiros perderam a porra da cabeça ultimamente. Primeiro o assassinato do prefeito, então aqueles dois homens no parque, a carnificina na igreja e agora isso. Estou achando que precisamos fazer mais do que apenas colocar a Morada da Noite em confinamento. Acho que devemos expulsá-los de Tulsa!
– Chefe, sobre aqueles dois homens no parque. – Marx franziu as sobrancelhas. Sabia que os sentimentos contra os vampiros estavam em alta, mas ele detestava ouvir esse tipo de merda racista saindo pela boca do chefe da polícia.
– O quê? Você não prendeu aquela novata que confessou os assassinatos? Merda, ela talvez tenha matado LaFont também!
– Na verdade, chefe, Neferet acabou de confessar o assassinato do prefeito e daqueles dois homens. Ela gabou-se disso, assim como do massacre na igreja.
O chefe de polícia piscou, surpreso.
– Bem, então por que a porra de uma novata confessou ser a assassina? Ela faz parte dos seguidores de Neferet?
– Duvido muito. Zoey Redbird e Neferet têm uma história de animosidade entre elas. Acho que é provável que Zoey tenha encontrado com os homens e se defendido contra eles e, quando soube que estavam mortos, deve ter acreditado que os tinha matado . Ela é uma garota legal, chefe. Acho que ela se entregou porque estava consumida pelo remorso. Ela nem mesmo queria algum vampiro adulto com ela.
O chefe de polícia olhou para ele sem entender. Marx evitou um suspiro de impaciência e explicou:
– Se uma novata não está próxima a vampiros adultos, existe cem por cento de chance de que o seu corpo vai rejeitar a Transformação e ela morrerá. Zoey se julgou e se condenou; e decidiu que a sua sentença era a morte.
– Eu me esqueço do quanto você sabe sobre vampiros. – O chefe de polícia meneou a cabeça enojado. – Acho que não importa se eles são humanos ou novatos. Adolescentes são completamente incompreensíveis.
Marx abriu a boca para protestar – respeitosamente – que ele, na verdade, conhecia alguns adolescentes completamente compreensíveis e que incluiria Zoey Redbird na lista, quando o grito de um policial uniformizado o interrompeu.
– Ai, meu Deus! Olhem lá para cima!
Marx olhou para cima bem a tempo de ver criaturas negras e grotescas semelhantes a cobras, a não ser pela ausência de olhos – apenas bocas abertas emolduradas por dentes que estavam molhados e vermelhos –, sendo arremessadas por alguma força invisível pelo parapeito na cobertura do Mayo. As criaturas carregavam consigo uma explosão de sangue e tripas e fragmentos corpóreos e coágulos. E, enquanto caíam, elas se expandiam, mudando a forma de cobras sem olhos para uma cortina escura e pulsante, manchada de escarlate. A cortina desceu pela fachada de pedra do hotel, envolvendo-a em trevas e sangue enquanto se desenrolava até o chão.
– Atirem! Matem-nos! – berrou o chefe de polícia.
Marx tentou impedi-lo. Tentou lembrá-lo de que havia cidadãos inocentes lá dentro que poderiam facilmente ser feridos ou, até mesmo, mortos. Tentou dizer que o ataque só serviria para antagonizar a vampira que tinha mais reféns e que já estava tão louca, que acreditava ser imortal. Mas os tiros provocados pelo pânico explodiram à sua volta e suas palavras se perderam no furor do momento.
A princípio, Marx não queria olhar para cima. Não queria ver os tiros acabarem com o Mayo e ter de lidar com as consequências das ordens precipitadas do chefe de polícia. Marx, no entanto, não era o tipo de homem que fugia das coisas; ele fizera uma carreira ao lidar com elas. Resoluto, ergueu o olhar.
As cobras que se transformaram em cortina se expandiram de modo que parecia que o prédio tinha ganhado uma pele negra avermelhada, uma pele tão dura, que nem mesmo as Glocks que os policiais uniformizados carregavam conseguiam penetrar.
Todos observaram enquanto as trevas continuavam a descer pelo prédio até o nível da rua e a se fundir ali com um som sussurrante que lembrou Marx da vez que visitara Nova York e se hospedara no Plaza – e cometera o erro de sair para fumar às três horas da manhã. Ratos. Ele caminhara por uma cerca viva bem-aparada que ficava em frente à grandiosa entrada do Plaza e ouvira o som sussurrante. Olhara para baixo, ficando chocado ao se deparar com dezenas de ratazanas gordas passando por ali. Era com aquele som que a mortalha das trevas criada por Neferet se parecia enquanto se assentava no lugar onde o prédio encontrava a rua, contra pedras dos anos de 1920.
– Atirem nas portas. Vocês têm que passar por essa coisa e estar prontos para entrar! – berrou o chefe de polícia.
– Não! – exclamou Marx, enquanto os policiais uniformizados corriam para obedecer às ordens.
Determinado a sobreviver e lutar por mais um dia, Marx se abaixou atrás de um carro do pelotão.
Acabou em uma questão de segundos. Os policiais correram em direção às portas, disparando contra o vidro que agora estava coberto pela cortina negra e escorregadia salpicada de coágulos. Seu coração se partiu quando os gritos começaram. Marx já estava usando o rádio:
– Vários policiais feridos! Precisamos de mais ônibus no Mayo! E reforços! Mais reforços! Mande todos os policiais de Tulsa para cá! Agora!
Quando o comandante cambaleou para trás e caiu pesadamente no pavimento, atingido no meio da testa por fogo amigo, os olhos revirados e leitosos, sem dúvida morto, Marx fez a única coisa que sabia fazer: assumiu o comando.
– Cessar fogo e retirada! Retirada! – berrou ele, e os homens reagiram com um claro alívio.
Um jovem policial uniformizado se agachou ao lado dele, com a respiração pesada e as mãos trêmulas. Marx achou que o garoto não devia ter mais do que 21 anos.
– Mãe do céu! Aquele treco preto não sofreu nenhum arranhão! Os tiros ricochetearam diretamente para nós, como se estivessem mirando. Que merda é aquela? – Quis saber ele com a voz tão trêmula quanto as suas mãos.
– Magia – respondeu Marx. – Magia negra e maligna.
– E como é que a gente consegue lutar contra isso?
Marx encontrou os olhos do jovem.
– Nós não lutamos. Nós precisamos de ajuda. E, felizmente, eu sei onde conseguir.
Zoey
– Eu queria saber o que está acontecendo! – Stark andava de um lado para o outro em frente à sua cela.
– Por que você não vai até lá fora para ver se a Vovó ainda está na sala de espera? Ela pode descobrir o que está acontecendo. Ela trouxe cookies. Ninguém resiste aos cookies dela – eu disse.
– Boa ideia. Eu já volto.
Stark seguiu pelo corredor e foi a minha vez de ficar andando de um lado para o outro.
Neferet. Se alguma coisa louca estava acontecendo no Mayo, Neferet tinha de ser a responsável. Eu queria agarrar as grades da minha cela, sacudi-las e gritar como uma pessoa histérica: Tirem-me daqui! Tirem-me daqui! Se Neferet estava lá fora fazendo sabe-se lá o quê, eu deveria estar lá, tentando pensar em uma maneira de detê-la.
E eu estaria se eu não tivesse perdido a cabeça e matado dois homens.
Stark voltou correndo e cobriu as minhas mãos, que realmente estavam agarradas às grades, como seu eu fosse capaz de entortá-las.
– Eles devem ter expulsado a Vovó, Thanatos e todos os outros. Não tem ninguém aqui, a não ser um policial na recepção. Este lugar está deserto! Se eu tivesse a chave, poderia tirar você daqui sem nenhum problema. – Suas sobrancelhas, com suas mãos ainda pressionando as minhas. Ele sacudiu um pouco as barras (que nem se mexeram). Então ele deu o seu sorriso maroto. – Mas, já que eu não tenho a chave, será que você não conhece ninguém que poderia, de alguma forma, convocar alguns elementos, sei lá, para derrubar esta porta?
– Stark, eu estou aqui por um motivo. Eu fiz uma coisa muito, muito ruim. Fugir daqui não vai me ajudar em nada.
– Poderia ajudar se Neferet estiver desenfreada, alimentando-se de cidadãos inocentes de Tulsa. Na verdade, eles podem até se esquecer do seu acidente no parque e agradecê-la se você ajudar a derrotar a sra. Louca.
Dei um sorriso triste.
– Eles até podem esquecer, mas eu não vou conseguir. Além disso, eu não posso derrotar Neferet, Stark.
– Você já fez isso antes.
– Não para sempre e não sem ajuda.
– Bem... – Ele abriu os braços. – Você tem ajuda.
Bufei.
– Não é o suficiente. Se fôssemos suficientes, teríamos sido capazes de nos certificar de que Neferet nunca mais voltaria do lugar para onde a chutamos da última vez. – Então, os meus ombros ficaram caídos e eu os encolhi. – Provavelmente, nem é ela. Talvez sejam ladrões de banco.
– No Mayo? Hã, Z. Estamos falando de um hotel, não de um banco.
A porta do corredor se abriu e a estrutura de metal bateu contra a parede. O detetive Marx se apressou na nossa direção. A aparência dele estava péssima. Tipo, péssima mesmo. O paletó estava sujo e a calça, rasgada na altura de um dos joelhos. Senti o cheiro de sangue, o qual me obriguei a ignorar. Na verdade, isso nem foi tão difícil porque a expressão no seu rosto era perturbadora demais.
Ele parecia estar com medo.
– O que aconteceu no Woodward Park? – ele exigiu saber enquanto se colocava ao lado de Stark.
– Eu já disse.
– Conte para ele de novo – interveio Stark.
– Por quê? O que está acontecendo?
– Responda à minha pergunta primeiro.
– Tá legal. Como eu já disse, dois homens me irritaram e eu atirei a minha raiva neles.
– Mas o que eles fizeram para deixá-la tão irritada?
– Não o suficiente para eu matá-los, Ok? – respondi.
– Apenas responda à pergunta! – zangou-se Marx.
Surpresa com o seu tom, eu me ouvi respondendo:
– Eles estavam andando pelo parque procurando garotas para assustá-las e obrigá-las a lhes dar dinheiro. Eles não viram as minhas tatuagens antes de começarem a me assediar. Então, quando perceberam que eu não era apenas uma adolescente indefesa, mudaram de ideia sobre me assustar. Eles basicamente disseram que iriam procurar outra vítima e isso me deixou louca da vida. – Fiz uma pausa e acrescentei: – Mas ainda tem mais. Eu já estava muito irritada quando cheguei ao parque, foi por isso que eu tinha ido para lá. Para tentar me acalmar. Eu... Eu não conseguia controlar o meu temperamento.
– Conte para ele o resto. Conte para ele por que você deu a pedra da vidência para Aphrodite quando se entregou para a polícia – insistiu Stark.
– Eu não percebi na hora, mas agora eu consigo entender que a pedra da vidência, um tipo de talismã que ganhei na Ilha de Skye, estava afetando as minhas emoções. Tipo, amplificando-as ou provocando-as, ou talvez apenas alimentando o meu estresse. Ela fica quente quando funciona e, no parque, ela estava superquente. Foi por isso que consegui erguer os dois homens e atirá-los contra o paredão da gruta.
– Você não consegue fazer isso, digamos, agora, consegue? – perguntou Marx, observando-me atentamente.
– Acho que não. Pelo menos não sozinha. Eu teria que chamar um ou todos os elementos, e eles ficam mais poderosos se o meu círculo estiver comigo e nós cinco canalizarmos a nossa energia para eles.
Marx assentiu, pensativo.
– Você sabia que os dois homens estavam mortos quando saiu do parque?
– Não. Tipo, eu sabia que eu os tinha lançado contra o paredão, mas foi como uma explosão grande e louca para mim. Bem, eu fiquei surpresa com aquilo – respondi. Distraída, esfreguei a palma da minha mão direita na minha perna e, então, olhei para ela. No meio das tatuagens entrelaçadas, um círculo perfeito tinha se formado ali. Ergui a mão para que o detetive pudesse vê-la. – Essa marca no centro, o círculo, foi feita pela pedra da vidência. Aconteceu na hora em que atirei a minha raiva naqueles homens. Era como se o poder dela tivesse saído através de mim. Quando eu percebi o que tinha feito, eu me aproximei deles.
Engoli em seco ao me lembrar.
– E o que exatamente você viu? – perguntou Marx, impaciente.
– Eles estavam deitados lá, aos pés do paredão que dá para a Twenty-first Street. E-eu me lembro de que ouvi um deles gemer, e vi o outro estremecer. Ficou claro que os tinha machucado muito. Talvez até gravemente. Então, eu fiquei com medo e fugi. Eles deviam estar morrendo quando eu fui embora. Sinto muito. De verdade. Eu sei que isso não faz qualquer diferença. E eu também sei que não faz a menor diferença o fato de eles estarem no parque para assediar garotas nem que a pedra da vidência tenha me dado o poder para fazer o que eu fiz. Foi a minha raiva que matou aqueles homens. Eu sou a responsável. – Mordi o lábio com força. Eu não ia começar a chorar.
– Não, Zoey. A verdade é que não foi você que fez isso e não, você não é a responsável pela morte deles.
Ele passou o cartão magnético no painel da porta da minha cela, e a tranca de metal se abriu com um clique.
– Hein? – Pisquei para ele, sentindo que eu devia estar sonhando. Olhei para Stark, que também estava olhando para o detetive.
– Isso tem alguma coisa a ver com Neferet – disse Stark.
– Isso tem tudo a ver com Neferet – concordou Marx. – Ela confessou ter matado aqueles dois homens. Não, essa não é uma descrição precisa. Neferet se gabou de ter matado aqueles dois homens.
Stark comemorou e me envolveu em um abraço.
– Z., você não matou ninguém.
– Eu não matei ninguém! – repeti o grito de Stark, enquanto ele me abraçava, rindo.
Eu estava me sentindo fraca, quase tonta. Eu não tinha matado ninguém! Mas que merda, eu quase tinha rejeitado a Transformação. Eu quase morri. Por causa de Neferet.
Tudo sempre voltava a Neferet.
Bati no ombro de Stark e ele me colocou no chão (mas eu continuei segurando a sua mão).
Eu me virei para o detetive Marx.
– O que mais ela fez?
– Você e seus amigos estavam certos. Neferet matou o prefeito. Ele e os dois homens no parque foram só o aquecimento. Ela massacrou uma igreja cheia de gente, e agora declarou ser uma deusa. Ela tornou o Mayo como seu Templo e está trancada lá dentro com um monte de gente enfeitiçada.
– Merda! – exclamou Stark.
– Aiminhadeusa ! – Neferet finalmente conseguira. Ela finalmente conseguira se superar e mostrar para todo mundo o que ela era de verdade.
– Você está livre, Zoey. Todas as acusações foram retiradas. Mas, antes de você ir, eu tenho um favor para pedir.
Olhei diretamente nos olhos dele.
– Você não precisa pedir. Eu vou ajudá-lo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para detê-la.
Marx suspirou de alívio.
– Obrigado. Eu não vou mentir para você, Zoey. A situação no Mayo é feia. Horrível mesmo. Neferet é poderosa e perigosa.
– E uma louca de carteirinha – terminei por ele. – Eu sei. Eu já sei disso há meses.
– Então, você sabe contra quem vai lutar.
– Todos nós sabemos – disse Stark. – Porque nós fomos os únicos que lutamos contra aquela puta doida.
– Tudo bem, então. Você precisa pegar aquela tal de pedra da vidência antes de eu te levar para o Mayo e...
– Espere um pouco. Não, você não entende, detetive Marx. Quando eu disse que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para deter Neferet, não quis dizer que faria tudo sozinha. – Apertei a mão de Stark. – Uma das coisas que aprendi com certeza é que eu fico mais forte com os meus amigos.
– Só me diga do que precisa e eu farei acontecer – afirmou Marx.
– Tudo de que preciso está na Morada da Noite – respondi.
– Então venha comigo, Zoey. Vou levá-la para casa.

7
Zoey
Eu mal tinha saído do carro do detetive Marx quando a Vovó saiu correndo pela porta da frente da escola e me envolveu em um abraço.
– U-we-tsi-a-ge-ya ! É você! Eu sabia... Eu sabia que você estava voltando para casa.
Eu a abracei rapidamente e demos os braços enquanto entrávamos na Morada da Noite com detetive Marx e Stark seguindo logo atrás. O sol estava se pondo, mas eu estava superconsciente de que ainda poderia provocar dor em Stark. Conforme nos apressamos para dentro do prédio, sorri para a Vovó e contei:
– Eu não matei ninguém! – Então, eu me lembrei de quem os tinha matado e o que mais ela tinha feito, e o meu sorriso se apagou. – Neferet os matou.
– Neferet? – Ergui os olhos do rosto feliz de Vovó para ver Thanatos, Aphrodite e Darius saindo da sala da Grande Sacerdotisa.
– Zoey, detetive Marx, será que poderiam explicar o que aconteceu? – pediu Thanatos.
– Neferet confessou ter matado os dois homens no parque... – começou a explicar detetive Marx, mas eu o interrompi.
– Espere, tem muito mais coisa do que isso, e eu preciso que o meu círculo ouça tudo. – Olhei para Thanatos. – Neferet se revelou. Precisamos nos apressar.
– Darius e Stark, reúnam o círculo de Zoey. Leve-os até a Câmara do Conselho. Chame Lenobia também. Ela é a sacerdotisa mais velha desta morada. Talvez precisemos de sua sabedoria. Vão agora! – orientou Thanatos.
Stark e Darius saíram.
– Detetive, permita que eu o acompanhe até a Câmara do Conselho. Sylvia, eu ficaria muito grata se você pudesse partilhar a sua sabedoria em relação ao que estamos enfrentando com Neferet. Você poderia se juntar a nós?
– É claro – respondeu Vovó em tom irônico. – Eu sei mais do que um pouco sobre Neferet e a sua marca singular do mal. – Vovó me deu um beijo suave no rosto e começou a caminhar com Thanatos e com detetive Marx em direção à escadaria que levava até a Câmara do Conselho.
Isso me deixou sozinha com Aphrodite.
– Eu não vou perguntar se você me quer ou não. Eu vou a essa reunião – afirmou ela antes de começar a seguir os três adultos.
Toquei em seu braço e ela se virou para olhar para mim. Eu não sabia dizer se eu vi mais medo ou raiva nos seus olhos – e as duas coisas fizeram com que eu me sentisse horrível.
– Sinto muito – disse de forma simples. – Eu estava errada. Você estava certa o tempo todo. Estava certa ao procurar Shaylin. Estava certa ao pedir que ela ficasse de olho em mim. Você estava certa em não me contar sobre a sua visão. Eu deveria ter escutado você, mas não escutei, e eu não teria escutado, mesmo se você me contasse sobre a sua visão. Eu estava fora de controle. Fui egoísta. Fui burra. Sinto muito – repeti. – Por favor, desculpe-me.
Enquanto eu estava falando, Aphrodite ficou totalmente parada. Não colocou a mão na cintura, nem zombou de mim ou jogou o cabelo. Ela me ouviu e me observou com seus olhos intensos e claros. Não disse nada pelo que pareceu ser um longo tempo e, quando finalmente falou, o tom de sua voz não estava irônico, nem malicioso, nem sarcástico. Ela estava séria. Os seus modos estavam calmos. Ela parecia a Profetisa de uma Deusa.
– Achei que você fosse minha amiga.
– Eu sou.
– Você me magoou.
– Eu sei. Gostaria de dizer que não foi a minha intenção, mas não vou mentir. Naquela hora, eu queria magoá-la porque eu estava sofrendo muito. Aphrodite, a pedra da vidência fez algo comigo. Não estou usando isso como desculpa pelo que disse e fiz. Eu ainda era eu . Eu ainda estava errada. Estou tentando explicar para você que percebi o que aconteceu... Ou pelo menos como aconteceu. E eu lhe juro que isso não vai acontecer de novo.
Ela continuou me analisando em silêncio.
– Também vou me desculpar com Shaylin – acrescentei.
Aphrodite assentiu.
– É melhor mesmo. Você a assustou muito.
– Não vai acontecer de novo – prometi em tom solene. – Eu juro.
– Você quer a pedra de volta?
– Não! – respondi, dando um passo para me afastar dela. – Eu quero que você a mantenha bem longe de mim.
– Esse é o meu plano – respondeu ela. – Eu só queria saber qual era o seu.
– Eu não tenho nenhum plano, a não ser me desculpar com você e Shaylin e, bem, com todos os outros.
– Bem, já era de se esperar – respondeu Aphrodite, parecendo-se um pouco mais com ela mesma. – Você costuma estar despreparada e mal-arrumada. Eles não têm chapinha na prisão? – Ela lançou um olhar de avaliação para o meu cabelo de quem acabou de sair da cama.
– Não. Cabelo bonito não é uma prioridade na prisão.
– Bem, até agora eu só tinha ouvido falar que o sistema penitenciário de Oklahoma é uma droga. Agora eu tenho certeza.
Isso me fez sorrir.
– Então, você me desculpa?
– Acho que é o que tenho que fazer. Você está horrível. Eu odiaria ter que jogar sal na ferida contra a moda que o seu curto período na prisão já lhe causou.
Eu ri e nós demos os braços.
– Será que existe alguma coisa que você não consiga resumir para a moda?
– Não, e não precisa agradecer.
Eu ri de novo e nós seguimos para a escadaria. Eu me sentia leve e feliz; por alguns momentos, deixei que Neferet saísse da minha mente e concentrei os meus pensamentos em uma oração silenciosa para Nyx: obrigada, Deusa, por ter me dado uma amiga tão boa!
– Ei, não vai ficar pensando que pode me abraçar e coisas desse tipo. Eu não sou de abraços. Vamos considerar isto aqui... – ela passou a mão na frente do seu corpo – ... uma zona de não contato. Darius, é claro, tem uma concessão.
– Entendi – respondi, mas continuei de braço dado com o dela enquanto subíamos as escadas. – Eu nem sonharia em cruzar a sua zona de não contato.
– Muito bem – disse ela, mas não afastou o braço do meu até estarmos na frente da sala de conferências. Então, ela parou e se virou para me olhar de forma séria e declarou: – Eu perdoo você, Zoey.
– Obrigada. – Pisquei rápido, surpresa pelas lágrimas repentinas nos meus olhos.
– Ah, merda – disse ela e, depois de olhar à sua volta para se certificar de que estávamos sozinhas, abriu os braços e me abraçou sussurrando: – Eu amo você, Z.
Eu funguei e retribuí o abraço.
– Eu também amo você.
O barulho da porta da escada se abrindo fez com que ela se afastasse de mim.
– Não chore – pediu ela, em tom sério. – Ficar choramingando não vai ajudar no visual desastroso que você tem agora.
– Tá bom – choraminguei um pouco mais.
– Zo! Ouvi dizer que soltaram você! Uhu ! – exclamou Aurox, feliz, falando de forma estranha e maravilhosamente semelhante a Heath.
Ele correu na minha direção, com a intenção clara de cruzar a minha zona de não contato. Dei alguns passos para trás e, então, parei quando ele vacilou e parou. Eu não sabia o que fazer. Tipo assim, nós decidimos ser amigos. Amigos se abraçavam. Mas nós decidimos ser apenas amigos. Bem, na verdade eu tinha decidido que seríamos apenas amigos e...
– Ah, para de pensar um pouco. Prostrado e pesaroso pra caramba foi como ele ficou sem você. – Aphrodite meneou a cabeça, enojada. – E estou usando aliterações para falar, se eu começar a fazer rimas, vou me jogar de um prédio bem alto. Façam um biquinho ou qualquer outra coisa bem rápido e, depois, vão para a Câmara do Conselho. Infelizmente, não temos muito tempo pra dramas de relacionamento.
Ela jogou o cabelo para trás, abriu a porta e entrou.
Aurox e eu nos olhamos.
– Biquinho? – perguntou ele.
Senti o rosto pegar fogo.
– Ela quer dizer dar um beijo.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Você quer me beijar?
Felizmente, nada do que ele disse depois de uhu parecia nem um pouco com Heath. Limpei a garganta.
– Acho que essa não seria uma boa ideia, mas obrigada por perguntar.
– Bem, estou feliz por você estar de volta – afirmou ele, tentando sorrir.
– Eu também. – Sorri de volta. – E, mesmo tudo sendo confuso, estou feliz por você estar de volta também.
Eu quis dizer aquilo como um elogio – e talvez até como uma piada particular (a situação não ficaria muito melhor se pudéssemos rir dela?), mas o sorriso que Aurox tentara dar desapareceu na hora.
– Você não está se referindo a mim . Mas sim a Heath. E eu não sou Heath. Com licença. Darius disse que eu deveria estar nesta reunião. – Dei um passo para o lado e permiti que ele abrisse a porta. Ele não a segurou para mim, mas a deixou se fechar na minha cara, deixando-me em pé ali, sozinha, no corredor, sentindo-me um cocô.
Tudo bem , disse para mim mesma, a minha vida ficaria bem mais fácil se Aurox continuasse chateado comigo – ou, pelo menos, irritado ou desinteressado. Aphrodite estava certa por vezes demais. Eu não tinha tempo para dramas de relacionamento (embora não achasse que aquilo fosse triste demais).
Passei os dedos pelo meu cabelo muito despenteado, empertiguei-me e entrei na Câmara do Conselho Escolar.
A sala era grande, mas sempre parecia ser pequena por causa da mesa redonda gigantesca que dominava o ambiente. Tenho quase certeza de que a ideia era imitar o rei Arthur (que, é claro, tinha sido o consorte da Grande Sacerdotisa Mogan le Fay), então ela não tinha uma cabeceira de verdade. O que acontecia era que o lugar onde a Grande Sacerdotisa se sentava se transformava automaticamente na cabeceira da mesa.
E por falar na atual Grande Sacerdotisa, fiquei surpresa ao vê-la entrar na sala pela porta dos fundos, assim que eu fechei a porta atrás de mim. Thanatos assentiu para Aurox, que assumiu uma posição de guarda ao se colocar ao lado daquela porta. Então, ela lançou um olhar para mim e indicou um assento vazio entre Vovó e Aphrodite. Thanatos se sentou à esquerda da Vovó, ao lado do detetive Marx. Enquanto eu me acomodava, tentando não ficar inquieta, Thanatos se inclinou para a frente de Vovó e se dirigiu a mim.
– É oficialmente bom tê-la de volta em casa, Zoey – declarou a Grande Sacerdotisa da Morte.
– Eu nem consigo dizer o quanto estou feliz de estar aqui e saber que não matei ninguém – respondi.
– Mas você aprendeu uma lição valiosa com essa experiência – comentou Vovó.
– É. Temos que parar Neferet. Não importa o que tenhamos de fazer – interveio Aphrodite.
– Bem, é verdade. Mas eu acho que a Vovó está falando de sempre escolher a bondade quando houver dúvida – disse eu.
– Eu não acredito que essa lição vá nos ajudar muito com Neferet – resmungou Aphrodite.
– Você ficaria surpresa, criança – respondeu Vovó suavemente, com um sorriso sábio nos lábios.
A porta se abriu e Stevie Rae entrou seguida por Stark, Damien e Shaunee.
– Z! Aiminhadeusa! É tão bom ver você livre! – Stevie Rae correu na minha direção e me envolveu em um grande abraço de urso. – Eu sabia que você não seria capaz de matar aqueles caras.
Eu lhe dei um abraço rápido antes de me soltar. Eu encontrei o seu olhar.
– Eu tenho algo a dizer sobre isso, mas quero esperar até todo mundo estar aqui.
– A espera acabou. O bonitão já está aqui – informou Aphrodite, sorrindo quando Darius entrou acompanhado por Lenobia e Shaylin.
Darius e Stark assumiram seus lugares em cada um dos lados da entrada principal. Stark me deu uma piscadela rápida, e eu fiquei feliz ao ver que ele não estava pálido e seus olhos tinham perdido aquele olhar ferido. Para ele estar assim tão melhor, o sol já devia ter se posto, e imaginei que Rephaim entraria a qualquer segundo agora.
Lenobia se sentou ao lado do detetive Marx, cumprimentando-o com um aceno rápido de cabeça. Shaylin escolheu o lugar mais distante de mim que conseguiu e não olhou na minha direção. Eu me levantei e limpei a garganta.
– Sei que uma emergência envolvendo Neferet está acontecendo no centro da cidade, mas eu preciso dizer uma coisa antes de começarmos a lidar com isso. E vou ser rápida. Como vocês já sabem, descobri hoje que não matei aqueles dois homens no parque. Mas, mesmo que eu não tenha causado a morte deles, sei que poderia ter feito aquilo. Eu estava fora de controle. Isso teve alguma coisa a ver com a pedra da vidência, mas também comigo . Eu estava errada. Aphrodite estava fazendo exatamente o que Nyx esperaria da sua Profetisa: ela informou a Shaylin que havia algo de ruim acontecendo comigo. – Eu olhei para Shaylin até que ela, relutante, encontrasse o meu olhar. – Shaylin, eu já pedi perdão a Aphrodite, mas lhe devo um pedido de desculpas ainda maior. Você estava certa ao me seguir. Você estava certa ao contar sobre as mudanças que detectou na minha aura. Foi muito, muito errado da minha parte empurrar você e perder a paciência daquele jeito, e não estou apenas pedindo para que aceite meu pedido de desculpas. Eu estou fazendo... – Fiz uma pausa e olhei para todos os meus amigos – ... um juramento a você e a todos aqui: farei tudo o que for preciso para me certificar de que isso jamais volte a acontecer.
– Eu perdoo você – afirmou Shaylin sem hesitar, embora o seu sorriso fosse hesitante e ela ainda parecesse estar com medo. – A propósito, as suas cores já voltaram ao normal agora.
– Obrigada – agradeci. – E, por favor, avise a mim, e a qualquer outra pessoa aqui, se perceber que as minhas cores estão bagunçadas de novo. Eu estava errada quando disse que você devia manter esse tipo de coisa para si mesma. Não se trata de uma invasão de privacidade. Você simplesmente está usando o dom que Nyx lhe deu.
– Zoey, onde está a pedra da vidência agora? – perguntou Thanatos.
– Está comigo – respondeu Aphrodite, antes que eu tivesse a chance de falar qualquer coisa.
– E eu não a quero de volta – acrescentei.
– Se ela é tão poderosa quanto você está dizendo que é, Zoey, você talvez não tenha escolha a não ser pegá-la de volta – disse o detetive Marx. – Porque vai ser preciso muito poder, muito poder mágico, para lutar contra Neferet.
– Detetive, é a sua vez. Explique exatamente o que Neferet fez – pediu Thanatos.
Eu me sentei e ouvi com um aperto no estômago e uma estranha premonição de que Marx estava certo.
Zoey
Seguiu-se um silêncio longo e doentio depois que o detetive Marx descrevera, com riqueza de detalhes, a carnificina de Neferet na igreja e, depois, o que acontecera no Mayo Hotel.
– Eu senti as mortes – disse Thanatos, meneando a cabeça com tristeza. – Eu sabia que algum tipo de tragédia humana, de morte em massa, tinha acontecido bem próximo de Tulsa. Eu estava assistindo ao noticiário, esperando ouvir que um avião tinha caído ou que talvez tivesse ocorrido algum tipo de tiroteio trágico em alguma escola. Mas eu não esperava isso. Eu realmente não esperava que Neferet fosse responsável por tudo isso.
– Nós não temos conseguido prever o comportamento dela, mas talvez possamos descobrir algo sobre o que esperar dela no futuro se analisarmos os crimes de Neferet até agora – sugeriu Vovó. – Ela matou o prefeito, e aquele crime a alimentou até Woodward Park. – Vovó fez uma pausa e deu um sorriso triste para Aphrodite. – Desculpe-me por ter de falar da morte do seu pai de uma forma tão objetiva.
– Eu entendo. E quero que continue – respondeu Aphrodite, séria. – Se a morte do meu pai nos ajudar a descobrir como derrotar Neferet, então, pelo menos, ele não terá morrido em vão.
Vovó assentiu e continuou:
– Ela deve ter se escondido no parque até Zoey ter enfrentado problemas com aqueles dois homens.
– Eu estava sentada naquele banco perto da gruta quando eles começaram a me assediar – contei, tentando juntar as peças. – Neferet talvez estivesse escondida na gruta.
– Vou mandar alguns policiais checarem – disse detetive Marx, fazendo anotações no seu bloco preto de espiral.
– As mortes dos dois homens no parque devem ter dado a Neferet o poder de que precisava para chegar à Boston Avenue Church – refletiu Vovó.
– E lá ela encontrou outra fonte maior de poder – acrescentou Lenobia. – Não podemos nos esquecer de que poder é o que há de mais importante para Neferet.
– Ela usa o poder para controlar aquelas criaturas semelhantes a cobras. As coisas que mataram aquelas pessoas na cobertura do Mayo e criaram aquele... Eu nem sei como chamar. – Marx hesitou, pensando. – É uma pele protetora, uma barreira. Mas seja lá o que for, tem muito poder.
– Aquelas criaturas com aparência de cobra são feitas de Trevas. Pense nelas como pensamentos odiosos, horríveis e cruéis que tomaram uma forma física – expliquei para o detetive Marx. – Eles fazem o que ela manda porque ela faz sacrifícios por eles. Eu tenho certeza de que Neferet não se alimentou de todas aquelas pessoas na igreja. Ela as sacrificou para que aquelas criaturas a continuem seguindo e fazendo o que ela deseja.
– Uma Tsi Sgili exige muito mais do que sangue por poder – interveio Vovó.
– Tsi Sgili... Rainha Tsi Sgili – disse Marx –, foi assim que Neferet se referiu a si mesma quando se intitulou Deusa.
– Tsi Sgili é um nome antigo que o meu povo usa para se referir a bruxas que escolheram as Trevas em vez da Luz. Elas vivem segregadas, afastadas de todos. – Vovó estremeceu. – As nossas lendas dizem que elas se alimentam de almas.
– Morte – disse Thanatos. – Eu deveria ter compreendido antes. Neferet se alimenta da energia que é liberada pelo espírito de uma pessoa no instante da sua morte.
– Ai, Deusa! – Lenobia parecia horrorizada e levou a mão ao peito. – Eu conheço Neferet há mais de um século. Ela sempre estava por perto quando um novato rejeitava a Transformação. Achávamos... As Sacerdotisas achavam que o dom de cura de Neferet confortava a passagem dos jovens.
– Ela não os confortava. Ela os usava – expliquei.
– Neferet tinha alguma coisa a ver com a nossa morte e a nossa volta – disse Stevie Rae. – Eu não consigo me lembrar. Talvez porque não consiga me obrigar a isso. Sei lá. – Ela estremeceu. – Mas eu sei que parecia como se algo dentro de mim estivesse se rompendo. – O seu olhar encontrou o de Stark, o único outro vampiro vermelho na sala. – Do que você se lembra?
– Dor. Trevas. Terror. Raiva. – Suas palavras estavam tensas, embora a sua voz permanecesse baixa, e nós nos inclinamos para ouvi-lo. – E, quando saímos daquilo, eu não era mais eu. Não até que Zoey dissesse que acreditava em mim, que confiava em mim.
– E eu também não consegui sair daquilo, até que Aphrodite acreditasse e confiasse em mim – disse Stevie Rae.
Aphrodite bufou.
– Pelo que me recordo, não foi bem assim. O que eu me lembro é que você tentou me devorar e, depois, pegou a minha condição de novata e levou com você.
– Porque você permitiu. Porque você sacrificou a sua humanidade por mim – esclareceu Stevie Rae.
– A parte de querer me devorar não foi legal – murmurou Aphrodite.
– O amor é mais forte que o ódio. Essa é a única verdade absoluta no universo. O amor conquista as Trevas – afirmou Vovó. – Nós só precisamos descobrir como o amor pode conquistar Neferet.
Ouvi um monte de suspiros após os meus.
– Tudo bem, eu sou totalmente a favor de o amor vencer – disse detetive Marx –, mas a gente precisa lidar com o que quer que seja que está acontecendo com aquelas coisas rastejantes.
– Neferet as está alimentando – respondi, sentindo a verdade das minhas palavras à medida que eu as pronunciava. – Ela dá a elas o que elas querem: sacrifícios com sangue fresco. E elas a obedecem. Se conseguirmos chegar a Neferet e a enfraquecermos ou, pelo menos, contê-la e impedi-la de matar mais gente, ela não conseguirá alimentá-las, e elas vão deixá-la.
– Concordo, mas acho que ainda tem mais, Zoey. As gavinhas das Trevas estão mudando, evoluindo, junto com Neferet – disse Thanatos. – Eu jamais, nos mais de cinco séculos que vivo como vampira, ouvi alguém criar o tipo de barreira como a que o detetive Marx acabou de descrever. – Ela se voltou para o policial. – E você disse que elas pareciam sensitivas, que elas, na verdade, direcionaram as balas para policiais específicos?
– Eu não tenho a menor dúvida quanto a isso. Eu estava lá. Eu vi aquilo de perto e tudo foi muito pessoal. Todos os primeiros tiros disparados atingiram o policial que ofendera Neferet, mas apenas nas partes do seu corpo que não estavam protegidas pelo colete à prova de balas. Os outros tiros feriram vários policiais, mas mataram apenas o chefe de polícia, o homem que deu a ordem de atacar o prédio – contou Marx.
– Lenobia, você já ouviu falar de algo assim? – perguntou Thanatos.
– Nunca.
– Então, chame a cavalaria – sugeriu Marx. – Envolvam o Conselho Supremo dos Vampiros. Talvez eles possam nos ajudar a descobrir uma maneira de vencer Neferet.
– O Conselho Supremo se recusou a nos ajudar – informou Thanatos. – Nós somos a cavalaria. – Ela se levantou. – Então, detetive Marx, vamos ao Mayo ver exatamente contra o que estamos lutando.
A porta dos fundos da Câmara do Conselho se abriu e Kalona, com o peito descoberto e olhos âmbar dardejando de raiva, caminhou até Thanatos.
– Já está na hora de você chamar a cavalaria completa. Eu sou um Guerreiro da Morte. Então, aonde você for, eu vou. Humanos e suas consequências que se danem.
Suas asas negras se desenrolaram e ocuparam a sala inteira.
O detetive Marx ficou boquiaberto.
– Merda – sussurrou Aphrodite.
– Eu digo o mesmo – concordei, perguntando-me o que aconteceria em seguida.

8
Detetive Marx
O cara era enorme. E tinha asas. Porras de asas gigantescas.
Marx ficou feliz por já estar sentado porque só de olhar para o... seja lá o que era aquilo... fazia os seus joelhos ficarem moles.
Primeiro, uma vampira-deusa enlouquecida e uma cortina preta sangrenta no Mayo. Agora, um gigante alado que dizia ser Guerreiro da Morte.
Será que estava na porra de um sonho?
Bem, se ele estava, o sonho continuava se desenrolando porque Thanatos caminhou até o gigante alado, e Marx com certeza não estava acordando.
– Ir comigo? Para o centro de Tulsa, diante dos olhares de...
– O que você vai fazer se as gavinhas das Trevas de Neferet atacarem você? Eu entendo essa manifestação das Trevas. Eu já a enfrentei diversas vezes no Mundo do Além. – A voz do gigante trovejava. – O que os humanos temeriam mais, a encarnação do mal ou a presença de um deus batalhando nas ruas de Tulsa?
– Os humanos não acreditam que deuses caminhem sobre a Terra – contrapôs Thanatos.
– Exatamente! – respondeu o gigante alado. – As ações de Neferet negaram a norma. Já passou da hora de os humanos tirarem a cabeça do buraco em que a enfiaram e se darem conta de que este mundo é cheio de magia, mistério e perigos. E também chegou a hora de eu fazer o que fui criado para fazer: ser um Guerreiro e lutar contra as Trevas.
A Grande Sacerdotisa curvou um pouco a cabeça em concordância com o homem alado. Então, ela se voltou para Marx:
– Detetive, gostaria de apresentá-lo ao meu Guerreiro sob Juramento, Kalona. Ele é o meu protetor, assim como o Mestre da Espada desta Morada da Noite. Ele me acompanhará até o Mayo.
Marx hesitou um momento e, então, fez a única coisa que passou por sua cabeça – estendeu a mão e a ofereceu para o grandão.
– Prazer em conhecê-lo, Kalona.
Kalona segurou o seu antebraço no cumprimento tradicional dos vampiros.
– O prazer é meu, detetive.
– Você não é um vampiro, né? – Marx não conseguiu evitar a pergunta.
– Não. Eu não sou.
Marx olhou para as asas do cara, que agora estavam enfiadas sob as suas costas. Aquelas coisas eram tão grandes, que chegavam a tocar o chão.
– O que você é ?
O sorriso de Kalona se abriu e pareceu ser sincero.
– Tem uma resposta complicada para essa pergunta, uma que eu prometo lhe dar depois que lidarmos com Neferet.
– Vou cobrar a resposta – disse Marx, tentando não olhar diretamente nos olhos do cara porque, ao fazê-lo, sentia a cabeça confusa e pesada, como se estivesse cheia de bolas de algodão.
– Você não vai precisar, detetive. Eu aprendi do modo difícil que é melhor que eu mesmo me preocupe em cumprir as minhas promessas.
– Então, nós todos vamos mesmo ao Mayo? – quis saber Aphrodite.
– Não. Kalona e eu vamos, assim como Zoey, Stark e o seu círculo. Darius, Aurox e Aphrodite, vocês vão ficar aqui com Lenobia. Vocês duas vão organizar uma reunião escolar. Atualizem o corpo docente e discente e os guerreiros. Informe apenas o básico e nada mais. Coloquem a escola em alerta máximo. Não sabemos qual será o próximo passo de Neferet.
– Você realmente acha que todos devem saber o que está acontecendo? – perguntou Stevie Rae, ecoando os pensamentos de Marx.
Zoey falou antes que Thanatos tivesse a chance:
– Acho que as Trevas odeiam que a luz brilhe, então vamos colocar muita luz sobre seja lá o que for que Neferet esteja fazendo.
– Essa é uma ótima maneira de descobrir quem quer voltar ao comando de Neferet e quem quer ficar e lutar contra ela junto com a gente – disse Stark.
– Vocês dois disseram exatamente o que penso – concordou Thanatos.
– Muito bem, então. Mas eu vou chamar Kramisha para me ajudar. Ela sempre sabe quem está tramando o quê – informou Aphrodite.
– É sábia a Profetisa que reúne os outros membros com dons dados pela sua Deusa – aprovou Thanatos.
– Também é sábia a Profetisa que mantém o seu celular por perto. Liguem se o inferno sair do controle, literal ou figurativamente – retrucou Aphrodite.
– Pode deixar – assegurou Zoey.
– Nós vamos com você, detetive Marx – declarou Thanatos.
Marx respirou fundo e desligou totalmente o botão de sanidade mental.
– Tudo bem. Vamos nessa.
Lynette
– Lynette, eu realmente adoro uma surpresa... – Neferet hesitou antes de continuar, erguendo um dedo fino. – Se a surpresa for agradável. Se não for, então uma surpresa não passa de uma interrupção irritante. Eu odeio interrupções quase tanto quanto odeio ficar irritada. – Seus olhos se afastaram de Lynette, e ela olhou para o que parecia ser as suas pernas nuas. – Falando em irritação, por que é que vocês estão andando por aí sem objetivo? Eu estou completamente segura, e vocês todos foram perfeitamente saciados. Vão se divertir em outro lugar e parem de ficar me puxando. Vão agora, xô! – Neferet fez um movimento de desprezo antes de voltar a sua atenção para a sua súdita.
Lynette não viu as coisas rastejantes, mas sentiu o roçar frio de algo passando por ela. Controlou um tremor de repugnância.
– Querida Lynette, onde paramos? Ah, sim, eu me lembro. Você anunciou que estava planejando uma pequena surpresa para mim. Por favor, continue se explicando.
Lynette olhou nos olhos da Deusa sem piscar. O pânico que estava concentrado em algum lugar sob o seu esterno estremeceu e recuou, mas ela apertou as rédeas mentais com as quais o controlava e permitiu que apenas o prazer de planejar um evento espetacular ocupasse a sua mente. O sorriso de Lynette estava confiante, assim como a sua voz.
– Deusa, eu sou muito boa no meu trabalho. Mesmo trabalhando em uma circunstância pouco comum e com recursos limitados, realmente acredito que você achará a surpresa agradável.
– Recursos limitados? Isso soa tão de mau gosto e barato. – Neferet franziu as sobrancelhas. – Eu certamente nunca desejei que você sentisse como se a sua Deusa fosse avarenta.
– Ah, mas eu não me sinto assim! – assegurou Lynette, esperando não ter apertado o botão de loucura de Neferet. – Eu coloquei essas restrições para mim mesma porque queria provar meu valor para você. Mas é claro que essa será apenas uma pequena amostra dos eventos que eu poderia planejar diariamente... Se eu tivesse mais tempo e mais dinheiro para fazer o meu trabalho.
Neferet relaxou a expressão.
– Você é uma mulher sábia, Lynette. Mostre-me o que planejou para mim. Se me agradar, pode ter certeza de que permitirei que continue com recursos ilimitados, embora não possa prometer que serei paciente para lhe dar muito tempo. Eu esperei muito tempo para começar o meu reinado. Estou impaciente pela adoração dos meus súditos.
– Isso é totalmente compreensível, Deusa. Em planejamento de eventos, eu nunca fico muito preocupada com o tempo quando tenho dinheiro.
Neferet a analisou.
Lynette se concentrou nos negócios. Ela se sobressaía nos negócios. Ela era confiante nos negócios. Os negócios não a aterrorizavam nem a enojavam.
Neferet sorriu.
– Você está sendo totalmente honesta. O seu negócio e a aquisição de dinheiro têm sido a sua principal preocupação. Continue, minha súdita! Revele a minha surpresa.
Lynette fez uma reverência e levou Neferet da suíte para o elevador, parando no mezanino.
– Por favor, Deusa, aguarde apenas um minuto.
Neferet sorriu e fez um gesto de concordância. Lynette pressionou o botão do elevador, então bateu em um comunicador quase oculto na sua orelha e disse rapidamente e em tom baixo:
– Kylee, aguarde dez segundos e, então, faça o quarteto começar a tocar.
– Sim, Lynette – foi a resposta robótica de Kylee.
Lynette lançou um olhar para a direita e fez um gesto de venha aqui . Judson, o bonito mensageiro, saiu das sombras. Ele trajava um uniforme impecável e passado e carregava uma bandeja de prata reluzente na qual havia uma taça perfeita de cristal cheia de champanhe rosê. Ele fez uma reverência perfeita e mecânica para Neferet e disse:
– Posso lhe oferecer uma taça de champanhe, Deusa?
– Ora, é claro. Obrigada, Judson.
A música começou a tocar no instante em que Neferet ergueu a taça da bandeja. Lynette ficou satisfeita ao ver o sorriso se erguer nos cantos da boca da Deusa.
– Danúbio Azul de Strauss. Uma das minhas valsas favoritas. Ah, Viena. Tão adorável e indulgente no passado.
– Por favor, queira me seguir, Deusa – pediu Lynette formalmente, levando Neferet pelo mezanino até o local para onde o seu trono havia sido colocado, bem acima da plataforma que a Deusa usara para se dirigir aos seus novos “súditos” algumas horas antes e onde, agora, havia um quarteto de cordas do casamento da noite anterior tocando nervosa e lindamente.
Neferet sentou-se com elegância, olhando para o quarteto.
– Eles tocam bem, embora eu prefira uma orquestra completa.
– Tempo e recursos – respondeu Lynette com um sorriso irônico.
Os lábios da Deusa se contraíram.
– Estou notando isso.
Lynette baixou a cabeça para Neferet e discretamente tocou no comunicador no seu ouvido:
– Conte até seis e mande-os entrar.
Então, ela prendeu a respiração e esperou que os doze artistas conseguissem se manter calmos.
As pesadas cortinas de veludo que cobriam o salão abaixo se abriram e, do lado oposto da sala, seis casais se apressaram para o centro do piso de mármore. As mulheres usavam vestidos vermelhos cujo tom fora o mais parecido um do outro que Lynette conseguira encontrar. Os homens trajavam smokings que ela conseguira juntar do que sobrara do casamento; os que estavam limpos o suficiente e servissem nos homens.
Servissem! Aquele tinha sido apenas parte dos problemas daquele evento infeliz. Tinha sido uma tarefa horrenda encontrar seis homens e seis mulheres no que Lynette tinha nomeado silenciosamente de reservatório de prisioneiros, que fossem relativamente atraentes, graciosos e capazes de aprender os passos básicos de uma valsa. Sim, ela poderia ter usado todos os membros da equipe dominados pelas cobras – eles obedeciam tudo que ela dizia para eles fazerem, desde que não tentasse fugir do Mayo. No entanto, o instinto de Lynette lhe disse que uma apresentação dos membros que já estavam sob o seu controle não impressionaria Neferet.
Não, Lynette acreditava que a Deusa queria, precisava , da ilusão de ser adorada. Então, ela ameaçara, insistira e chantageara 12 pessoas com aparência decente a trabalharem para ela.
Lynette percebia que estavam nervosos – duas das mulheres estavam tão trêmulas, que ela conseguia ver os seus braços tremerem –, mas, exatamente como ela instruíra, os casais se posicionaram no grande círculo e conseguiram chegar aos seus lugares depois da primeira contagem até seis. No começo do segundo conjunto de notas, todos os 12 ergueram o olhar para Neferet, pararam, contaram até três e, como se fossem um, cada um dos homens se curvara e cada uma das mulheres fez uma reverência para a Deusa.
Lynette detectou todos os erros. Viu que a mulher chamada Cindi quase caiu, e apenas a rapidez do seu par ao segurá-la pelo cotovelo impediu a queda. Camden, o garoto alto que fora o padrinho do casamento da noite anterior – e azarado o suficiente para estar com uma ressaca que impediu que ele pegasse o voo da madrugada junto com o noivo e a noiva para Dallas –, manteve a cabeça baixa por tempo demais. Lynette apertou os dentes. Se aquele garoto mimado estragasse tudo, ele lamentaria mais do que ela.
Lynette arriscou um olhar para Neferet. Obviamente satisfeita, a Deusa sorriu e assentiu com a cabeça em um gesto nobre para os dançarinos.
Agora dancem e não pareçam estranhos! , pensou Lynette.
Eles dançaram. Todos os 12 conseguiram começar na mesma nota e se moveram pelo salão seguindo um padrão quase circular. Eles estavam longe da perfeição, mas a música era adorável e, se alguns dançarinos vacilaram, “Danúbio Azul” compensou. Quando a nota final tocou, os seis casais se curvaram e reverenciaram Neferet, desta vez mantendo as suas poses como se estivessem congelados, e até mesmo Lynette teve de admitir que a cena estava muito bonita.
Neferet se ergueu e, para imenso alívio de Lynette, aplaudiu e riu.
– Muito bem, todos vocês! Isso foi muito bom. Judson, abra garrafas de champanhe para esses adoráveis súditos.
– Deusa, eles estão esperando a sua autorização para se levantarem – sussurrou Lynette para Neferet.
– Mas é claro que estão autorizados, e obrigada por me lembrar, querida Lynette. Vocês podem se levantar! – permitiu a Deusa. – Aproveitem o champanhe e a gratidão da sua Deusa pela adoração de vocês.
Lynette tocou no comunicador em seu ouvido novamente.
– Kylee, diga ao quarteto para começar a tocar a próxima música.
Em questão de segundos, a música encheu o ambiente de novo.
– “Valsa das flores”, do Quebra-nozes . Duas adoráveis músicas e excelentes escolhas – elogiou Neferet.
– Então, a minha surpresa foi agradável?
– Foi. O candelabro, as flores, os smokings e os vestidos vermelhos. Tudo foi muito bem-escolhido. Lynette, você começou muito bem como a minha planejadora de eventos. Eu aprovo o seu tema e a extraordinária música, o local lindamente escolhido e a homenagem respeitosa a mim.
– Então, posso presumir que gostaria de ter mais eventos desse tipo?
– Sim, mas da próxima vez eu gostaria que o tema fosse a minha época favorita. Os anos 1920. Essa foi uma época que vale a pena reviver. Você consegue fazer o Charleston, Lynette?
– Eu terei acesso à Internet?
– Terá, assim como uma generosa verba para os eventos – informou Neferet, abrindo um sorriso inteligente para Lynette.
– Então, eu consigo fazer o Charleston, assim como os seus súditos.
– Vamos precisar de mais músicos – declarou Neferet.
– Sim, Deusa. Vou providenciar – disse Lynette, já digitando suas anotações no smartphone.
– E fantasias. Vamos precisar de mais fantasias.
– É claro, Deusa – concordou Lynette.
– E eu preciso mais do que apenas dança, embora esse tenha sido um ótimo começo.
Lynette ergueu o olhar das suas anotações e olhou para Neferet, mas a Deusa não estava olhando para ela. Estava acariciando a taça de champanhe enquanto observava os seis casais que se espalharam em pequenos grupos aceitando o champanhe que Judson lhes servia. Lynette seguiu o seu olhar. O garoto mimado estava virando o que parecia ser a sua segunda taça de champanhe. Neferet o devorava com os olhos.
– Fico muito satisfeita que os meus súditos sejam tão atraentes – declarou ela.
Lynette bufou de forma irônica e automática, mas quando o olhar da Deusa pousou nela, ela se arrependeu instantaneamente por ter permitido um deslize de compostura.
Neferet ergueu uma das sobrancelhas ruivas.
– Ah, entendi. Você escolheu os doze com muito cuidado, porque nem todos os meus súditos são tão atraentes, não é mesmo.
Ela não usou um tom interrogativo, mas Lynette sentiu o impulso de responder.
– É isso mesmo. – Ela ergueu os ombros inquieta. – Sinto muito, Deusa, eu só queria me assegurar de que ficasse feliz com o meu primeiro pequeno evento.
– Isso é compreensível, querida Lynette. Na verdade, aprecio o seu esforço, e embora aprecie todos os meus súditos, eu também aprecio coisas, e pessoas, que são agradáveis aos meus sensos. – Neferet se inclinou no seu trono e usou um tom conspiratório para se dirigir à sua súdita: – Você poderia acrescentar isso à sua lista de tarefas como planejadora de eventos.
– Estou disposta a servi-la de qualquer forma que precise, Deusa. – Lynette estava tentando entender o que a Deusa queria. – Mas o que você quer dizer com “isso”?
– Certificar-se de que os meus súditos estejam sempre o mais atraentes possível, é claro. Sim, tenho certeza de que você tem talento para transformações.
– Transformações.
Lynette repetiu a palavra, sentindo-se extremamente sobrecarregada enquanto imagens dos súditos menos atraentes de Neferet passavam por sua cabeça. A mulher de cinquenta e poucos anos que precisava perder uns vinte e poucos quilos... A pré-adolescente ruiva esquelética cujo rosto já estava tomado por espinhas... O empresário careca e barrigudo e com queixo triplo que parecia um bócio...
A risada debochada de Neferet interrompeu o filme na sua mente.
– Pare de se preocupar, querida Lynette. Entre nós duas, conseguiremos separar o rebanho. Afinal, eu posso controlar tudo o que eles comem e tudo o que fazem. Você não concorda que dieta e exercícios são muito importantes?
Lynette assentiu com a cabeça e tentou manter-se focada completamente nos olhos verdes-esmeralda de Neferet.
– Então, além de colocar alguns deles de dieta e nos certificarmos de que passam algum tempo na academia do Templo, estou confiante de que você pode dar dicas de cabelo, maquiagem e moda. Correto?
– Sim, Deusa – respondeu ela automaticamente.
– Excelente. Estou feliz por você ter chamado a minha atenção para esta questão. É importante que os meus súditos sempre tenham a melhor aparência possível. Eles são, de algum modo, um reflexo de mim mesma.
Como se isso resolvesse a questão, o olhar de Neferet passeou pelo grupo abaixo delas, parando, de forma predatória, em Camden.
– Você fez uma excelente escolha com aquele ali, Lynette. Ele é alto, jovem e louro – disse Neferet. – Seu nome?
– Camden – informou Lynette. – Ele foi padrinho do casamento que me trouxe ao Mayo.
– Padrinho ? É mesmo? – Os olhos verdes-esmeralda de Neferet brilharam com uma intensidade perigosa, e Lynette ficou grata por tal intensidade não estar focada nela. – Talvez eu tenha que testá-lo para ver se Camden é realmente um bom súdito.
Lynette controlou um tremor de medo.
– Você gostaria que eu pedisse para alguém trazê-lo aqui?
– Não, querida Lynette. Eu posso muito bem convocá-lo. Talvez ele aprecie uma visita à varanda da minha cobertura. – Seus olhos brilhantes se voltaram para Lynette e o brilho feral neles se endureceu. – A minha equipe já se livrou daqueles vestígios desagradáveis, não é?
Merda! Eu estava ocupada demais organizando essa apresentação para verificar se todos os pedaços de gente tinham sido atirados pela varanda. A mente de Lynette começou a buscar algo para dizer e ela soltou um suspiro de alívio quando encontrou uma resposta:
– Deusa, creio que Kylee era a responsável pela questão da varanda.
– Aquela garota – murmurou Neferet, tomando um gole de champanhe. – Ela é boa para algumas coisas, mas precisa de muita supervisão. Será que você poderia usar essa útil maquininha no seu ouvido para lembrá-la das minhas ordens?
– É claro, Deusa – respondeu Lynette.
– E, enquanto você supervisiona Kylee, creio que eu vá me misturar aos meus adoráveis e atraentes súditos. Você consegue imaginar como o padrinho Camden se sentirá honrado se eu permitir que ele me tire para dançar?
Felizmente, a pergunta de Neferet era retórica e, em vez de concentrar a sua atenção na resposta de Lynette, a Deusa deu as costas para ela, tomou um gole de champanhe e caminhou em direção à grande escadaria dupla que levava ao salão de baile.
Lynette notou que Neferet não deslizou. Isso porque ela mandou as coisas rastejantes saírem para brincar , pensou Lynette. De alguma forma, elas deviam carregá-la – ou canalizar a energia para erguê-la – ou algo igualmente insano.
Ela meneou a cabeça como se quisesse clarear os pensamentos. Não podia se dar ao luxo de ficar pensando muito. Não podia se dar ao luxo de fazer mais nada a não ser sobreviver.
Lynette bateu no comunicador na sua orelha.
– Kylee, Neferet vai inspecionar a varanda da cobertura. Logo. Ela deixou você responsável pela limpeza.
– Compreendo e obedeço – foi a resposta robótica de Kylee.
Lynette suspirou. Deu alguns passos para trás e se apoiou em um dos pilares de mármore deixando-se ficar sem fazer nada por um momento, a não ser respirar.
Ela passara pelo primeiro teste de Neferet. Ainda estava viva e não tinha sido possuída por nenhuma criatura escorregadia. Mas, para continuar assim, não poderia se dar ao luxo de relaxar. Haveria tempo para relaxar depois que tudo isso acabasse. E Lynette conseguiria isso – ela sempre conseguia passar por todas as merdas que a vida atirava em sua direção.
Para começar, Lynette tinha uma lista de coisas a fazer.
Tinha de verificar todas as pessoas no prédio. Elas precisavam ser categorizadas como atraentes e aceitáveis ou aquelas que exigiriam trabalho. Na categoria das que exigem trabalho ela criaria as subcategorias gordo, malvestidos ou apenas feios por natureza. As duas primeiras poderiam ser corrigidas – em tese. Quanto aos que se enquadravam na terceira, bem, eles teriam de aprender algumas habilidades para que pudesse mantê-los nos bastidores.
– Espero que eles saibam cozinhar ou costurar.
Lynette estava falando consigo mesma enquanto digitava as observações no seu smartphone quando ouviu um grito vindo do salão. O que tinha acontecido agora? O que mais Neferet poderia estar fazendo? Com a mente cansada e pesada pelo medo e pela exaustão, obrigou os seus pés a levá-la até a beirada do mezanino.
Neferet estava ao lado de Camden. Ele estava olhando para o decote profundo do vestido curto de veludo da Deusa. As outras onze pessoas olhavam para as cobras escorregadias que se retorciam em volta dos tornozelos nus de Neferet.
– Ah, fique quieta – ordenou a Deusa para a garota que berrara. – Vocês precisam se acostumar com os meus filhos. Eles nunca ficam muito longe de mim, assim como vocês, meus leais súditos, nunca ficarão longe de mim.
– Si-Sinto muito, Deusa. E-eles parecem cobras. E e-eu tenho medo de cobras – gaguejou a menina.
– Eles não são cobras. São muito mais perigosos. E eu não estou pedindo para que você supere o medo que sente deles. Estou lhe ordenando que você não verbalize isso. – Neferet olhou para baixo, para as coisas rastejantes que se retorciam aos seus pés, parecendo excitadas. – O que foi, meus queridos?
– Deusa, o detetive voltou – chamou Judson do vestíbulo de entrada. – E trouxe mais gente com ele.
– Isso não significa nada. Ele pode trazer toda a Guarda Nacional de Oklahoma com ele. Eles não conseguirão penetrar a minha cortina protetora.
– Ele não trouxe um exército. Ele trouxe uma vampira que está fazendo o ar à sua volta brilhar enquanto um homem enorme que parece ter asas ocultas sob a sua capa de chuva caminha perto dela.
– Por que você esperou até agora para me dizer isso? – berrou Neferet. – Filhos! Venham comigo! – Erguida pelo ninho totalmente visível de víboras escorregadias, a Deusa deslizou até a porta da frente.
O corpo de Lynette ficou frio. Ela desceu dos sapatos elegantes de salto alto para que pudesse andar em silêncio pelo mezanino, dirigindo-se às grandes janelas panorâmicas que davam para a frente do prédio, tentando não pensar em nada, mas principalmente tentando não ter esperanças.

9
Zoey
– Que merda! O Mayo está horrível – declarei.
– É como se estivesse encharcado de morte. – Damien soava tão horrorizado quanto eu.
– Não de morte – contradisse Thanatos. – A morte é inevitável para todos os mortais. Ela não é boa nem má; é simplesmente parte da grande espiral da vida. Neferet usou nesse prédio dor e medo, sangue e desespero.
A sua voz estava estranha. Vovó, Stark, Shaylin e eu estávamos todos espremidos no Hummer da escola, e Thanatos estava na frente com Marx. Notei que quanto mais nos aproximávamos do Mayo, mais agitada a Grande Sacerdotisa parecia ficar. Ela estava literalmente inquieta, o que era muito estranho para ela – Thanatos costumava ser uma montanha de calmaria.
O seu óbvio nervosismo fez o meu estômago se revirar.
– Caos – disse Kalona. Olhei por sobre o meu ombro e ele estava sentado com Damien e Shaunee (eles estavam superapertados porque as asas dele ocupavam muito espaço), e vi-o meneando a cabeça enojado. – Neferet usou as gavinhas das Trevas para criar o caos e isso a está protegendo.
– Bem, o caos tem um cheiro horrível – reclamei enrugando o nariz.
– Fede e é horrível – concordou Damien. – E nós não temos nenhuma maneira de entrar.
– Sinto muito – desculpou-se Marx. – Eu devia ter avisado sobre o fedor.
– Não precisa se desculpar, detetive – disse Vovó. – Não creio que existisse qualquer coisa que você pudesse ter feito para nos preparar para isto.
– Você provavelmente está certa, mas é melhor avisar que não temos como saber se todas as partes humanas foram retiradas da área – acrescentou Marx. – Então, é melhor olharem por onde andam.
– Partes humanas? – A minha voz tremeu.
Marx assentiu.
– As coisas rastejantes mataram um monte de gente quando desceram pela varanda, cobrindo o prédio com trevas e tripas até aqui embaixo. Neste início de noite, Neferet tem jogado pedaços de pessoas, com todo o sangue drenado pelo parapeito da sua varanda.
– Eu consigo sentir o feitiço que ela fez com sangue, morte e Trevas – disse Thanatos. – Ela usou a morte daquelas pobres pessoas para construir uma barreira.
– Neferet lançou o feitiço, mas não sujaria as próprias mãos com a limpeza – concluiu Kalona em tom grave. – O que significa que ainda tem gente viva cumprindo as suas ordens.
– Será que importa quem está jogando? Principalmente se Neferet tiver feito reféns? – perguntou Shaunee.
– Tudo o que realmente importa é que todos se lembrem de que se detivermos Neferet, pararemos toda esta loucura também – respondeu Thanatos.
Todos nós concordamos de forma amarga.
Marx passou pelas barreiras da polícia e parou no meio-fio do outro lado da rua do Mayo em uma calçada ampla em frente ao prédio corporativo da empresa Oneok, onde nos sentamos e ficamos analisando o que tínhamos diante de nós.
– Organizamos dois postos de comando dentro da Oneok. O do terceiro andar com todos os equipamentos audiovisuais. E o que está no último andar com atiradores de elite – explicou-nos Marx enquanto nos sentamos e ficamos olhando para o prédio coberto de sangue coagulado do outro lado da rua.
– Atiradores de elite não podem matar Neferet – informou Kalona.
– É, a gente já percebeu – respondeu Marx secamente. – Mas eles podem matar pessoas, até mesmo as que estão sob o feitiço dela.
– Você não pode atirar naquelas pessoas! Elas são vítimas – declarou Vovó, virando-se, agitada. – Elas não são responsáveis pelas próprias ações, mas Neferet é.
– Sim, senhora, nós sabemos disso e não queremos atirar em ninguém, mas se Neferet ordenar que seus servos, ou seja lá como vocês querem chamá-los, nos ataquem ou a qualquer cidadão de Tulsa, seremos obrigados a impedi-los.
– Ela gostaria disso – disse Thanatos enquanto encarava o prédio. Ela parecia estar zangada. Achei que parecia mais pálida do que o usual, mas ela já era vampira havia, tipo, um zilhão de anos. Ela sempre estava pálida, então eu não poderia dizer com certeza. – Ela obteria mais poder com as suas mortes, além da satisfação de ter obrigado vocês a matar pessoas inocentes. – Thanatos olhou para Kalona. – Não podemos permitir isso.
– Concordo – respondeu Kalona.
– Bom – disse ela. – Já chega de ficarmos sentados aqui especulando. Eu preciso ir até lá. Preciso entender exatamente com o que estamos lidando.
Thanatos saiu do Hummer e bateu a porta atrás de si, deixando que o resto de nós a seguisse – de forma relutante.
Kalona se apressou a ficar ao seu lado. À distância, eu ouvia exclamações do tipo “Ei, olha lá aqueles vampiros!” e “Prepare a câmera, tem alguma coisa acontecendo na frente do Mayo!”.
O imortal alado tinha colocado uma longa capa de chuva para cobrir o seu peito tipicamente nu como uma forma bastante bem-sucedida de esconder as asas gigantescas. Eu o vi virar o corpo tentando enfiar as penas enormes lá dentro. Ele lançou um olhar irritado para as pessoas reunidas atrás das barricadas antes de os seus olhos encontrarem os do detetive Marx.
– Creio que seria mais sábio se você retirasse todos os civis dessa área da cidade. Ninguém estará seguro aqui.
– É, eu sei, mas tente dizer isso para a mídia. Conseguimos reunir todo mundo ali atrás, mas é uma merda lidar com a liberdade de imprensa.
Kalona deu de ombros.
– Então, eles terão de aprender a lição por si mesmos.
Com aquela observação agourenta, ele voltou a sua atenção para o Mayo. Thanatos olhava para o prédio, quase como se estivesse hipnotizada por ele. Engoli o meu medo e me posicionei ao seu lado, grata pela presença forte de Stark.
– Eu deveria saber. – A voz de Thanatos estava cansada. Ela deu vários passos na direção ao prédio. – Mas eu raramente era chamada para o local de uma morte humana, e nunca uma morte de tamanha magnitude. – Ela se aproximou mais do prédio, ficando na entrada semicircular de veículos anexa à entrada principal. Thanatos ergueu as mãos e estremeceu. – O terror usado para fazer esta barreira ainda está aqui.
– Sacerdotisa, eu aconselho que não se aproxime mais do prédio – disse Kalona, posicionando-se ao seu lado e gentilmente pegando o seu cotovelo e tentando fazer com que voltasse para a rua.
– Eu preciso ajudá-los – declarou ela, afastando a mão dele.
– Eles? – perguntou Marx.
– Nem todos os mortos se foram. O fim deles foi violento demais, aterrorizante demais, bem além do que qualquer coisa que essas pobres pessoas jamais imaginaram. Sinto os seus espíritos em pânico e eles ficam girando em círculos, incapazes de encontrar uma saída deste reino para o próximo.
– Você pode ajudá-los? – perguntou Vovó, que estava próxima ao Hummer.
– Acredito que sim.
– Tente fazer isso de forma rápida – orientou Kalona.
– Eu devo traçar um círculo? – perguntei.
– Não, Zoey. Você e todos os outros, exceto por Kalona, devem ficar lá trás em segurança. Isso é algo que eu tenho que fazer sozinha. O dom que nossa Deusa me concedeu é tudo de que eu preciso... – Ela fez uma pausa e deu um sorriso de agradecimento para Kalona – ... incluindo um protetor poderoso. Eu preciso acreditar na força que Nyx me dá.
– Façam como Thanatos disse e voltem para o Hummer – pediu Stark, puxando-me com ele. Marx se afastou mais devagar, os seus olhos concentrados em Thanatos.
– Damien! Ei! Damien! – Um humano bonito e jovem chegou correndo.
Damien se virou a tempo de receber um abraço gigantesco.
– Adam! Você não deveria estar aqui. É perigoso demais – repreendeu Damien.
– Ei, sou um jornalista. Eu tenho que lidar com o perigo – declarou ele sorrindo.
Por fim, eu o reconheci. Era Adam Paluka, um jornalista da Fox – o cara que nos entrevistou depois que Neferet deu aquela conferência ridícula. Eu sabia que Damien estava namorando alguém, e pelo modo como aqueles dois sorriam um para outro, acho que as coisas estavam indo bem. Nossa, eu me envolvera tanto com as coisas que estavam acontecendo comigo, que eu nunca pensei em perguntar a Damien como ele estava lidando com o fato de estar namorando tão rápido depois que Jack...
– Você precisa voltar para trás da barreira – disse Marx, aproximando-se de Adam com um olhar carregado.
Mas bem nesse momento, Thanatos começou o seu feitiço, atraindo toda a nossa atenção para si.
A Grande Sacerdotisa ergueu as mãos e fechou os olhos. Quando falou, a sua inquietação acabou. Suas palavras eram rítmicas e hipnóticas; sua voz, calma. Ela era forte, sábia e bonita – e eu tinha orgulho de ser uma novata da Morada da Noite sob o seu reinado.
Espíritos sofredores, venham até mim
Com calma e doçura, que a minha voz os guie assim
E que o meu dom acabe com o sofrimento sem fim
O ar em volta de Thanatos começou a brilhar como se alguém tivesse lançado globos mágicos cheios de purpurina em direção a ela.
– Ai, meu Deus! O que está acontecendo? O que aquela vampira está fazendo?
Eu estava tão concentrada no feitiço de Thanatos, que mal notei o barulho crescente vindo da multidão atrás de mim. Apesar disso, senti que Adam erguera o seu iPhone e ouvi um pequeno clique indicando que ele estava filmando. Stark apertou a minha mão antes de cochichar:
– Acho que Marx está prestes a expulsar os repórteres. Eu vou ver o que posso fazer para ajudá-lo. Certifique-se de que você, o seu grupo e Vovó fiquem perto do Hummer.
Assenti e vagamente notei que Stark estava discutindo com Damien sobre obrigar Adam a sair enquanto Marx caminhava decididamente em direção à barricada. Mas os meus olhos nunca se afastaram da Grande Sacerdotisa. Eu não conseguia parar de olhar. Thanatos comandava toda a minha concentração.
O guia para o fim do sofrimento eu sou sim
O amor atendeu às suas preces e ao terror colocou um fim;
Com calma e doçura, os seus espíritos estão livres assim!
Esferas brilhantes cercavam completamente Thanatos. Quando ela falou o último verso do feitiço e abriu os seus braços, cada uma das esferas precipitou-se para ela. Rindo de alegria absoluta, o rosto de Thanatos se iluminou de amor e ela ergueu os braços. As esferas brilhantes voaram como fogos de artifício para o céu noturno – só que, em vez de deixar para trás um rasto de fumaça, as esferas que desapareciam deixavam para trás um rasto de alívio e felicidade que me fez esquecer o estresse da situação – o horror do sangue e o fedor do Mayo coberto com Trevas –, fez-me esquecer de tudo, a não ser o fato de que, fôssemos humanos ou vampiros, havia sempre uma constante entre todos nós: o amor. Sempre o amor.
E, então, Neferet saiu pela porta da frente arruinando completamente o momento feliz. Antes, pensava que ela parecia uma insana, mas eu estava errada. O que ela era agora fazia a loucura anterior de Neferet parecer não mais que uma excentricidade, como uma velha que gosta de gatos e cheira a urina e mato. Ela estava usando um vestido curto verde. Por um segundo senti certo alívio. Tipo assim, ela não estava nua. Tudo bem, ela estava descalça, mas não achei nada demais naquilo, até que eu realmente olhei para os seus pés. Eles estavam descansando sobre um ninho escorregadio de gavinhas negras que se contraíam e pulsavam ao redor dela, envolvendo seus tornozelos e canelas, e, na verdade, erguendo-a do chão.
Mas aquilo nem era a coisa mais insana em Neferet. Foram os seus olhos que denunciaram a sua loucura. Algo acontecera com as suas pupilas – elas tinham desaparecido. Eram como pedras de mármore, completamente verdes-esmeralda.
– O que há de errado com os olh... – começou Adam, mas o berro de Neferet o cortou.
– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo! – Neferet apontou para Thanatos, e duas das gavinhas correram na direção desta.
Kalona se moveu tão rápido, que tudo ficou um borrão. De repente, ele estava lá, entre Thanatos e as criaturas que a atacavam. Ele tirara o seu casaco e revelara a lança de ébano que tinha amarrada nas costas. Suas asas se desenrolaram enquanto ele se encontrava com as gavinhas, espetando uma delas, e enquanto esta se retorcia na agonia da morte, partiu a outra ao meio.
Neferet gritou, como se sentisse a dor das gavinhas.
– Ignorem Kalona! Matem Thanatos! E, depois, todos os outros!
Tudo explodiu.
As gavinhas das Trevas, como veneno cuspido da boca de uma víbora, saíram dos pés de Neferet, tentando passar por Kalona a fim de atingir Thanatos e o resto de nós. Stark voltou para mim, empurrando-me e à Vovó para trás dele e gritando para Damien, Adam, Shaunee e Shaylin para entrarem no Hummer.
Cambaleei para trás, certa de que eu iria assistir a Thanatos ser partida ao meio pelas criaturas de Neferet, provavelmente segundos antes de elas atacarem Stark e, depois, devorarem o restante de nós.
Mas nada daquilo aconteceu. As Trevas não venceram esta batalha – o imortal alado sim.
Kalona estava em todos os lugares. A sua lança se movia tão rápido, que provocava um som no ar.
– Um sabre de luz – arfou Damien. – E é de verdade, e não um de mentirinha como o do Star Wars.
– Leve-os para um lugar seguro! – ordenou Kalona para Marx.
Marx correu para a Grande Sacerdotisa e, enquanto Kalona usava o próprio corpo, suas asas e sua lança para nos proteger, nos apertamos no Hummer.
– Segurem-se! – Eu vou subir na calçada e tirar ele de lá! – avisou Marx ligando o carro.
– Espere! – disse Thanatos. – Ele está vindo para nós. Olhem para as gavinhas. A força delas acaba quando elas se afastam muito de Neferet.
A Grande Sacerdotisa estava certa. Kalona, ferido e sangrando, ainda estava lutando com as criaturas, mas se aproximava de nós e se afastava do Mayo. E as gavinhas não o estavam seguindo.
Quando Kalona chegou à traseira do Hummer, Neferet ergueu os braços e ordenou:
– Venham para mim, filhos! Eu os ajudarei!
As coisas rastejantes deslizaram para ela, enrolando-se em seus braços e pernas. Ela as acariciou, como se quisesse confortá-las, e antes de desaparecer dentro do Mayo, seus olhos brilhantes verdes-esmeralda se concentraram em nós.
– Obrigada pela lição. Da próxima vez, eu vencerei!
Zoey
– Não, de verdade, eu não preciso ir para o hospital – repetiu Kalona pela enésima vez para Marx. – Como eu já disse, traga-me água ou, melhor ainda, vinho. Eu vou subir até o alto deste prédio e me curar.
Nós contornamos o prédio da Oneok e entramos pelos fundos para nos juntarmos à força-tarefa de Tulsa no terceiro andar. Percebi por que Marx estava estressado com Kalona – ele estava ensanguentado. Todos na sala olhavam para ele, mesmo enquanto tentavam não olhar. Sério, se ele não fosse imortal, estaria em um saco preto para cadáveres.
Marx bufou e passou os dedos pelo cabelo.
– Tudo bem, então, já entendi. Já entendi. Você está bem. Carter! – gritou ele para um policial uniformizado, que imediatamente parou de fingir que estava analisando dados na tela do seu computador e deu atenção ao detetive. – Encontre a sala de reuniões do presidente da empresa. Deve haver bebida lá. – Marx voltou a sua atenção para Kalona. – Serve uísque? Esses caras corporativos preferem esse tipo de bebida.
– Serve – respondeu Kalona.
– Pode ir – disse Marx para Carter. – Tudo bem, então. Enquanto Kalona está se recuperando no telhado, vamos fazer um controle de danos. Paluka, passe o telefone para mim e saia daqui.
– Você não pode simplesmente pegar o meu telefone! Isso é ilegal!
– É uma evidência de uma investigação em andamento de múltiplos homicídios. Eu estou apreendendo o seu telefone – informou Marx.
– Um momento, por favor, detetive – pediu Vovó.
– Senhora? – Marx, assim como todos nós, olhou para Vovó, que deu um sorriso sereno.
– Adam, corrija-me se eu estiver errada, mas acredito que você não seja o único jornalista que testemunhou o que acabou de acontecer lá fora.
– Você não está errada – respondeu Adam.
– Ah, exatamente o que pensei. O que significa que deve haver um monte de equipes de filmagem gravando tudo de trás da barreira, isso sem mencionar as gravações feitas por celulares, como a que você fez.
Ouvi Marx suspirar enquanto Adam respondia:
– Exatamente, senhora.
Vovó e Thanatos trocaram um olhar e, então, a Grande Sacerdotisa assumiu a conversa que Vovó iniciara.
– Sr. Paluka, o que o senhor acha de fazer uma entrevista exclusiva comigo e Kalona?
Os olhos de Adam brilharam de animação, mas ele manteve a postura profissional.
– Eu gostaria muito disso, Grande Sacerdotisa.
– Então, é isso que você terá. – Thanatos lançou um olhar para Marx. – Às vezes é mais fácil abrir mão do controle e deixar o destino lidar com o que quer que venha em seguida.
– Pelo menos limpem um pouco do sangue e me deem um monte de comprimidos de Tylenol.
Zoey
Kalona realmente tentou limpar o sangue que escorria dos seus ferimentos semelhantes a chicotadas e dos arranhões menores e mais profundos que mais pareciam mordidas que se espalhavam pelo seu corpo. Achei que ele parecia bem-acabado, e ele ainda sangrava um pouco, mas estava agindo de forma totalmente normal – forte, silenciosa, intimidadora. Thanatos fez com que ele vestisse o casaco comprido. Disse que as suas asas já tinham aparecido o suficiente no vídeo da batalha que Adam exibiria durante a entrevista. Em silêncio, concordei com ela, mas também pensei que o casaco cobria bastante os ferimentos que estavam ali embaixo. Por uma vez, consegui manter a boca fechada e deixei que os outros lidassem com as consequências da luta com Neferet enquanto eu me afastava dos holofotes. Foi um breve momento de relaxamento para mim enquanto me encolhi ao lado de Stark para assistir com Vovó, Damien, Shaylin e Shaunee àquilo que jamais poderíamos imaginar alguns meses antes – Kalona sendo entrevistado pela TV de Tulsa.
Adam chamara uma equipe de iluminação e um cinegrafista. Achei que estavam fazendo um bom trabalho de não ficar olhando estupidamente para Kalona. Adam explicou para todos que iria carregar o vídeo da batalha e exibi-lo e, depois, começaria a entrevista. Também explicou que ela seria exibida ao vivo no plantão de notícias.
– Cara, ainda bem que não estamos ali – sussurrei.
– Adam está fazendo um excelente trabalho – disse Damien com voz suave enquanto seus olhos brilhavam para o jornalista.
– Eu gosto dele.
O olhar de Damien encontrou o meu.
– Você acha que o Jack teria gostado dele.
Estiquei a mão por sobre Stark e apertei a mão de Damien.
– Tenho certeza que sim.
Damien assentiu e piscou para afastar as lágrimas.
– De alguma forma, isso torna as coisas mais fáceis, apenas um pouco mais fáceis, mas sou grato por esse “pouco”.
Então, a nossa atenção estava em Adam enquanto a luz vermelha na câmera parou de piscar e nós assistimos às cenas da batalha de Kalona sendo exibidas em um monitor portátil.
– Sou Adam Paluka, ao vivo, com a vampira e o Guerreiro que acabamos de ver nesta cena surpreendente gravada há alguns momentos em frente ao Mayo Hotel, no centro de Tulsa, quando a Grande Sacerdotisa conhecida como Neferet atacou diversos cidadãos inocentes, inclusive eu. – Adam fez uma pausa, dando então um sorriso caloroso para Kalona. – Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado a minha vida. Obrigado!
Kalona pareceu surpreso, quase tímido. Ele assentiu uma vez e disse:
– De nada.
– Kalona estava cumprindo o seu dever. Ele é o meu Guerreiro sob Juramento. Neferet, que não é mais reconhecida por nenhuma autoridade vampírica como Sacerdotisa de Nyx, atacou a mim e os que estavam comigo. Era o dever de Kalona nos proteger – declarou Thanatos.
– Thanatos, é muito bom falar com você novamente. Muitos dos nossos espectadores a reconhecerão como a nova Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. Será que você poderia explicar o que estava fazendo na frente do Mayo?
A entrevistada respirou fundo e, então, falou devagar e com clareza, como se quisesse que todos a compreendessem:
– A essa altura, vocês já sabem o que nós apenas suspeitávamos antes, que Neferet está completamente louca e que se tornou uma pessoa malévola. Ela admitiu ter cometido uma matança. Assassinou o prefeito de Tulsa. Assassinou dois homens em Woodward Park. De lá, seus assassinatos se dirigiram para inocentes na Boston Avenue Church no domingo de manhã e, em seguida, para o Mayo Hotel, onde ela se trancou. As mortes que causou no Mayo permitiram que criasse um escudo protetor sobre o prédio. Eu fui até lá por causa do meu dom concedido pela Deusa, que é ajudar as almas a passarem deste mundo para o próximo.
– As luzes brilhantes! Elas eram almas?
Thanatos concordou com a cabeça.
– Exatamente. Elas estavam presas neste reino por causa da forma violenta como morreram. Eu simplesmente as ajudei a se libertarem.
– Nossa! Isso é incrível.
O sorriso de Thanatos foi bonito.
– O ciclo da vida é realmente incrível.
– Sim, é claro que sim. Espere um pouco, Thanatos. Isso significa que eram almas humanas que você ajudou na passagem?
– Isso mesmo – respondeu ela, serena.
– Mas você é uma vampira .
O sorriso da Grande Sacerdotisa se abriu mais.
– Achei que já tínhamos falado disso.
– É verdade. – Adam passou os dedos pelo cabelo perfeito. – Mas uma pessoa da sua raça a atacou porque você estava ajudando almas humanas .
– Adam, já vivi por mais de quinhentos anos, e, nesse tempo, eu aprendi que a humanidade é definida pelas escolhas, e não pela genética. Para colocar de forma bem simples, humanos e vampiros têm mais semelhanças do que diferenças.
– Obviamente Neferet não pensa como você – disse Adam.
– Neferet está louca. Seus pensamentos são excêntricos e perigosos.
– O que são aquelas coisas que ela enviou para nos atacar? – perguntou Adam.
– O mal que tomou uma forma tangível. As criaturas seguem as ordens de Neferet. Desde que ela faça sacrifícios para mantê-las leais a ela. – Thanatos olhou diretamente para a câmera. – Nunca é demais enfatizar que, não importa o quanto Neferet ameace, é imperativo que nenhum humano deve chegar perto do Mayo. O poder de Neferet vem da morte. Fiquem longe do Mayo e a sua fonte de poder vai acabar secando.
Adam parou, pareceu chocado e, então, olhou para alguém que não estava aparecendo na filmagem.
– Detetive Marx, o senhor concorda com o pedido de Thanatos em relação ao Mayo?
O cinegrafista apontou a câmera para um detetive com expressão irritada. Imperturbável, ele respondeu sem hesitar:
– Concordo. O Departamento de Polícia de Tulsa colocou barreiras nas ruas que cercam o Mayo. Ninguém pode se aproximar do Mayo, nem mesmo as equipes policiais ou os militares.
– Mas não é verdade que Neferet está mantendo reféns dentro do Mayo? – quis saber Adam.
– É verdade, mas, nesse momento, não temos nomes nem números – respondeu Marx. – Eu entendo que as pessoas vão sentir falta dos seus entes queridos. O Departamento de Polícia abriu uma linha telefônica 0800 para perguntas e informações de pessoas desaparecidas. O público deve direcionar as suas perguntas por esse número.
– Número esse que o canal Fox 23 vai colocar na parte inferior da tela – informou Adam.
– Obrigado – agradeceu Marx, embora ele não parecesse particularmente grato.
– Detetive Marx, eu preciso perguntar: se o senhor não vai permitir que ninguém se aproxime do Mayo, como é que pretendem deter Neferet?
– Ela será detida por mim, pelos vampiros e pelos novatos que lutam ao meu lado. Neferet é da nossa raça. E somos nós que devemos derrotá-la.
Todos nós, inclusive o cinegrafista, concentraram-se no imortal alado.
– Kalona, o senhor não é um vampiro, certo? – perguntou Adam.
– Certo.
– Então, o que o senhor é?
Ele nem mesmo hesitou. Disse aquilo como se estivesse contando o que comeu no jantar da noite anterior.
– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas fiz escolhas ruins e, por isso, fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.
Seguiu-se um silêncio em que ninguém parecia respirar. Então, Adam perguntou:
– E o que o senhor está fazendo aqui?
Kalona se empertigou e olhou diretamente para a câmera.
– Estou tentando me redimir dos meus erros do passado e obter o perdão de Nyx.
– Bem – Adam engoliu em seco –, parece-me que o senhor está fazendo um bom trabalho aqui. O senhor salvou a Grande Sacerdotisa, um grupo de vampiros e novatos, um detetive. Salvou, inclusive, a mim. Se o senhor conseguir deter Neferet, eu vou começar a chamá-lo de Super-Homem.
Os lábios carnudos de Kalona se ergueram em um sorriso.
– Se você vir Nyx, eu gostaria muito que dissesse isso para ela.
– Pode contar comigo – assegurou Adam. Então, ele se voltou para Thanatos: – A senhora tem mais alguma coisa a acrescentar, Grande Sacerdotisa? Será que existe alguma forma de o público nos ajudar?
– Existe sim – respondeu ela. – Todos podem rezar e enviar pensamentos e energia positiva para nós. A Morada da Noite fará o melhor que puder para proteger o povo de Tulsa, mas nós precisamos de intervenção divina.
– Rezar? Para quem? Para Deus ou para a Deusa? – quis saber Adam.
– Ora, para qualquer um deles ou para os dois, é claro. Gosto de acreditar que as orações não estão presas a questões semânticas.
Adam sorriu.
– Eu também prefiro acreditar nisso. – Ele se virou para a câmera. – Vamos todos rezar pelo fim da insanidade de Neferet e da violência que irrompeu em Tulsa em decorrência disso. E essas foram as últimas notícias sobre a situação no Mayo Hotel. Sou Adam Paluka, lembrando a todos para ficarem ligados no canal Fox 23 para terem uma cobertura completa.
– O irmão de Erebus. Isso não é interessante? – perguntou Vovó, enquanto Adam trocava um aperto de mão com Thanatos e agradecia a ela e a Kalona pela entrevista.
– Você sabia que ele era irmão de Erebus? – sussurrou Damien para mim.
– Hã... Sabia – respondi. – Ele mencionou isso há alguns dias.
– Mas estivemos meio ocupados desde então – completou Stark.
Damien coçou a testa.
– Eu me lembro vagamente de ter lido em uma antiga antologia poética vampírica algumas menções sobre o Filho da Lua e Guerreiro da Noite, junto com as descrições usuais de Erebus como Filho do Sol e Consorte de Nyx. Inicialmente, achei que eram apenas nomes diferentes para Erebus, mas, pensando bem, faz mais sentido que estivessem falando de dois imortais distintos.
– Isso torna os séculos de raiva de Kalona mais compreensíveis – declarou Vovó.
– É. Ter deixado de ser o guerreiro e companheiro de Nyx e não ter nem mais permissão para entrar no Mundo do Além. Isso deve doer de verdade – disse Damien, observando Kalona com olhos grandes e tristes.
– Ele estuprou e matou gente. Quem sabe o que ele fez no Mundo do Além antes de sua Queda – contou Stark.
– Todo mundo merece uma segunda chance, Tsi-ta-ga-a-s-ha-ya – afirmou Vovó, usando o apelido Cherokee que dera a ele. – Eu me lembro de que não faz muito tempo que você teve uma segunda chance.
Stark olhou para o chão.
Eu respirei fundo e disse:
– Eu também.
Vovó levantou as sobrancelhas.
– Hoje eu ganhei uma segunda chance – expliquei. Olhei de Vovó para os meus amigos, um de cada vez, e, por fim, meu olhar encontrou o de Stark. – Nós somos um time que precisa de uma segunda chance. Estou feliz de ter Kalona ao nosso lado.
Vovó tocou o meu braço.
– Algum dia, você deveria dizer isso para ele, u-we-tsi-a-ge-ya . Acho que você vai ficar surpresa com a diferença que suas palavras podem fazer.

10
Zoey
– Que merda! Você não vai acreditar no que acabou de viralizar no YouTube! – Nicole subiu correndo as escadas do auditório para o palco, acenando com o seu iPad como uma louca.
Aphrodite olhou para ela e afastou o iPad de si.
– Sério? A assembleia acabou agora mesmo . Você estava no YouTube enquanto eu estava falando?
– Sério. – Nicole revirou os olhos. – Supere isso. Todo mundo estava no YouTube. Você tem que ver isto. – Ela empurrou o iPad em direção a Aphrodite.
– Ser professora é um saco. Adolescentes são um saco – declarou Aphrodite, ainda ignorando o aparelho.
– Aiminhadeusa! Aquele é o Kalona? No YouTube? – Stevie Rae passou por Aphrodite para dar uma olhada na tela.
– O quê? Kalona? – Lenobia se apressou para ficar ao lado de Stevie Rae, com Darius e Rephaim logo atrás.
– Muito bem. Eu vou assistir. Agora que eu acabei de informar a todo o corpo discente que vamos salvar o mundo. De novo. – Aphrodite olhou para a tela e arregalou os olhos. – Céus! Por que você demorou tanto para nos dizer? Ligue logo! – Ela agarrou o iPad, tocou no botão para tocar e aumentou o volume até o máximo.
Não era um vídeo profissional, mas o início estava muito claro. Primeiro, focava em Thanatos. Ela estava na frente de um prédio com aparência horrível que parecia estar coberto por uma cortina gosmenta preta. Assistiram enquanto a Grande Sacerdotisa concluía o seu feitiço, erguendo os braços e sendo envolvida por um monte de esferas bonitas e brilhantes. Quando elas se ergueram aos céus, o vídeo ainda mostrava Thanatos, mas, ao fundo, dava para ouvir Neferet gritando:
– Velha da morte, você não tem qualquer domínio sobre o meu Templo!
O vídeo mudou e agora dava para ver Neferet em frente ao que devia ser o Mayo.
– Ela parece estar precisando de um McLanche Feliz – disse Stevie Rae.
Aphrodite não afastou os olhos da tela.
– Isso é tudo que você tem a dizer, caipira?
– Eu acho que ela está mais doida que um gato preso num saco – opinou Nicole.
– Ninguém perguntou... – começou Aphrodite, mas a explosão no vídeo interrompeu as suas palavras.
– Aiminhadeusa! Não! – ofegou Lenobia, enquanto assistiam a Neferet lançando uma nuvem de Trevas atrás de Thanatos e de todos os outros.
– Meu pai está salvando todo mundo – disse Rephaim.
– Olhem como ele se move. – A voz de Darius era respeitosa. – Sua velocidade e força são incríveis.
Aphrodite não teve a chance de concordar. O vídeo terminou com quem quer que estivesse filmando parando para entrar no Hummer da escola, embora ainda tenha conseguido filmar Neferet e os tentáculos sangrentos das Trevas deslizando para dentro do Mayo.
Então, começou a entrevista, e Aphrodite teve de se obrigar a fechar a boca, que estava aberta de forma não atraente porque lá estava Kalona – com asas e tudo –, ao lado de Thanatos no canal Fox 23.
– Eu sou Kalona, o irmão imortal de Erebus. Certa vez, quando a Terra era mais jovem, eu era um guerreiro e companheiro da Deusa, Nyx, mas eu fiz escolhas erradas e, por isso, eu fui expulso do meu lugar ao lado da Deusa no Mundo do Além e caí neste reino.
– Irmão de Erebus? Ele só pode estar brincando! – Aphrodite sentiu que sua cabeça iria explodir.
– É verdade – confirmou Darius em voz baixa quando o vídeo chegou ao fim.
A tela ficou escura e Aphrodite olhou para ele.
– Você sabia ?
– Sabia. Kalona contou para Zoey, Stark e eu – admitiu Darius.
– E nenhum de vocês achou que seria importante contar para qualquer um de nós? – perguntou Lenobia, parecendo tão irritada quanto Aphrodite.
Darius encolheu os ombros largos.
– Para dizer a verdade, eu nem pensei muito nisso. A veracidade de Kalona foi mais do que questionável desde o momento em que ele apareceu aqui.
– Mas agora você acredita nele? – quis saber Rephaim.
Darius olhou para ele.
– Acredito.
– Rephaim, você sabia que o seu pai era irmão de Erebus? – perguntou Stevie Rae.
Os olhos do menino-pássaro ficaram tristes.
– O meu pai nunca fala sobre antes .
– O que significa que não, você não sabia? – insistiu Aphrodite.
– Isso – confirmou Rephaim, parecendo tão misterioso quanto o seu pai.
– Isso muda tudo – declarou Lenobia.
– Sim, de forma maravilhosa – animou-se Nicole, assentindo como um boneco bobblehead . [*] – Isso significa que temos um guerreiro de Nyx no nosso time.
– Não – discordou Aphrodite, secamente. – Significa que temos um ex-guerreiro de Nyx que fez tanta merda, que acabou expulso do Mundo do Além no nosso time. E isso não é tão legal assim.
– Ele disse que está tentando se redimir – falou Rephaim.
– E ele salvou Thanatos e os outros – reforçou Darius.
– Sinto muito, mas eu não estou pronta para pular cegamente para o time Kalona – disse Aphrodite.
– Acho que é cegueira ignorar o que está bem na frente dos seus olhos – retorquiu Rephaim, apontando para a tela escura do iPad.
– E eu acho que tem um monte de coisas sobre Kalona que não sabemos. – Ela fez uma pausa e lançou um olhar duro para Darius. – Ou pelo menos a maioria de nós não sabe. Agora, se vocês não têm mais nada que prefiram fazer, eu adoraria que reunissem todos os novatos que apresentem algum talento guerreiro. Tenho certeza de que Thanatos vai querer um exército para a batalha. Depois de assistir à louca no YouTube, tenho a sensação de que Neferet não vai dar a mínima para o time Kalona. – Aphrodite então deu um tapa na própria testa e acrescentou sarcasticamente: – Ah, esperem! A maldita Neferet provavelmente já sabe sobre a relação Kalona–Erebus, assim como praticamente todo mundo menos eu . – Ela jogou o cabelo para trás e se retirou.
Só quando já estava do lado de fora do auditório é que Aphrodite diminuiu o passo e permitiu que os pensamentos acompanhassem as suas emoções. Seu coração estava disparado e seu estômago, apertado. Estava puta da vida. Muito puta da vida.
Não, isso não é verdade. Eu não estou puta da vida. Eu estou assustada e chateada.
Com um suspiro enorme, Aphrodite saiu da calçada e foi até um dos bancos de carvalho. A mão que afastou o cabelo louro do seu rosto estava trêmula.
Darius omitira um segredo, algo importante. Até aquele momento, acreditara que ele era diferente de todos os outros caras nesta Terra. Ele deveria ser honesto. Ele deveria ser leal. E, acima de tudo, ele deveria amá-la o suficiente para nunca mentir para ela ou guardar um segredo dela.
Quando alguém conta uma mentira, é possível medir o quanto esse alguém amou você ou não. Aphrodite sabia disso porque crescera ouvindo uma mentira constante que não parava de crescer. Os seus pais fingiam ser um casal perfeito, mas a verdade era que se odiavam tanto quanto a odiavam. A não ser quando estavam em público, eles viviam vidas totalmente separadas – eles nem compartilhavam o mesmo quarto havia mais de uma década, quanto mais os segredos.
Eles mentiam um para o outro todos os dias.
Quando ela só tinha oito anos de idade, Aphrodite jurara para si mesma que jamais entraria em qualquer relacionamento semelhante ao casamento dos pais. Merda, até conhecer Darius, nunca tinha permitido que um cara se aproximasse o suficiente dela a ponto de importar se ele mentiria ou não. Ela se certificava de mentir para eles primeiro . Ela os traía primeiro . Ela terminava com eles primeiro .
– Eu consigo sentir a sua tristeza, minha bela. Por favor, fale comigo.
Aphrodite ergueu o olhar ao ouvir a voz de Darius, mas não o olhou nos olhos. Olhou por sobre o ombro dele.
– Sobre o que você quer conversar?
Ele se sentou ao lado dela e usou as costas da mão para enxugar uma lágrima que escorria pela bochecha dela. Aphrodite se afastou dele rapidamente, enxugando o outro lado do rosto.
– Eu quero conversar sobre nós – respondeu ele.
– É mesmo? Será que não seria bem mais fácil continuarmos seguindo do jeito que estamos? Fingindo estar “apaixonados para todo o sempre”? – perguntou ela sarcasticamente e usando os dedos para indicar as aspas.
– Nunca foi fingimento para mim. Você sabe muito bem disso, Aphrodite. – O tom dele era calmo e sério.
Ela desejou dar uma tapa na cara dele – machucá-lo –, fazê-lo sentir um pouco do medo que estava sentindo. Mas não fez nada de violento. Isso significaria perder o controle. Isso significaria que tinha se transformado na sua mãe. Em vez disso, Aphrodite o atacou com palavras.
– E como é que eu posso saber disso? Eu não posso entrar na sua cabeça. Eu nem posso compartilhar os seus sentimentos como uma verdadeira Profetisa faria. Mas tanto faz. Não se preocupe com isso. Está tudo bem, e nós dois temos um monte de merda para fazer porque, como sempre, as Trevas estão tentando dominar o nosso mundo.
– As Trevas terão de esperar, porque você é o meu mundo, e se eu perder você, eu vou me perder.
Aphrodite quis se levantar e se afastar dele sem olhar para trás. Ela iria endurecer o coração, deixá-lo tão duro quanto ele costumava ser para, na verdade, protegê-la. Antes da tempestade de Zoey e seu bando Nerd e Darius aparecerem na sua vida.
Era o que ela iria fazer, mas, de alguma forma, Darius disse exatamente a coisa certa. Então, as pernas de Aphrodite, de repente, decidiram ouvir o seu coração em vez de escutar a cabeça.
Aphrodite olhou para ele.
– Você mentiu para mim.
– Não, minha bela. Eu simplesmente não contei uma coisa para você.
– Por quê? Por que você não me contou? Kalona ser irmão de Erebus é uma puta informação importante.
– Eu não estou nem aí para o que Kalona disse ou deixou de dizer. Eu só ligo para você e o que você diz.
– Eu? – Aphrodite franziu as sobrancelhas. – Do que é que você está falando? Eu nunca mencionei qualquer coisa remotamente semelhante à possibilidade de Kalona e Erebus serem irmãos.
O sorriso de Darius foi lento e doce.
– Exatamente. E se você, minha bela Profetisa talentosa, não tem qualquer insight sobre o verdadeiro passado de Kalona, então por que é que eu deveria mencionar um comentário fora de contexto que um imortal alado fez? Aphrodite, se fosse importante que soubéssemos que Kalona era irmão de Erebus, então creio que você teria dito isso para mim .
Aphrodite meneou a cabeça, sentindo-se um pouco tonta quando ela se deu conta do que Darius realmente estava dizendo para ela.
Ele pegou a sua mão.
– Será que eu já disse hoje o quanto eu amo você?
– Não – sussurrou ela, pensando: por favor, não diga isso se não for verdade. Por favor, não faça isso.
– Com todo o meu ser – declarou ele.
Lágrimas escorreram pelo rosto de Aphrodite, mas ela não afastou o olhar dele.
– Não tenha medo – pediu ele.
– Eu tenho. Isso ainda me assusta – admitiu ela.
– Também me assusta, mas, para ficar com você, realmente com você e não apenas fingir para que o meu coração fique em segurança, vale a pena enfrentar e dominar esse medo.
– Mas você é um guerreiro. Eu não sou nada. Não de verdade. Eu sou apenas... – Sua voz falhou. Não conseguiria dizer, mas as palavras enchiam a sua mente: eu apenas sou filha de uma mulher horrível que só me ensinou a odiar, e nunca, nunca confiar no amor.
– Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço – afirmou Darius com voz solene. – E você não é, e nunca será, como a sua mãe.
– E você nunca vai mentir para mim.
Ela não falou aquilo como uma pergunta, mas ele se levantou do banco e se ajoelhou, pressionando a mão dela contra o coração dele, dizendo:
– Aphrodite, Profetisa de Nyx, eu lhe juro que jamais mentirei para você. Se eu não falar a verdade sempre para você, que a Terra me engula inteiro para que o meu espírito jamais encontre o Mundo do Além.
Um calafrio terrível passou por Aphrodite e ela agarrou Darius, puxou-o para os seus braços e sorriu.
– Não, pare já com isso! Qualquer um pode contar acidentalmente uma mentira. Qualquer um! Eu não aceito o seu juramento!
Darius se inclinou um pouco para trás, segurando gentilmente os ombros trêmulos dela, e sorriu.
– Mas eu não sou qualquer um . Eu sou seu. O seu guerreiro. O seu amante. O seu companheiro. Juro que nunca vou mentir para você porque isso a magoaria mais do que poderia suportar, e eu prefiro que a Terra me engula para sempre do que fazer isso com você.
Enquanto olhava para Darius e via a verdade nos seus olhos, algo se libertou dentro de Aphrodite – algo pequeno e afiado que estivera fincado dentro dela por muito, muito tempo. Ela ofegou e inspirou fundo, soltando o ar devagar.
– Acabou – sussurrou ela.
– O que acabou, minha bela?
– O meu medo. Acabou, Darius. Você acabou com ele. – Aphrodite sabia que soava jovem e tola. Mas não ligava. Pela primeira vez na vida, não estava com medo de perder o amor. – Eu não posso perder você! – exclamou ela.
– Não – respondeu ele, sorrindo de novo. – Você jamais vai me perder. E eu não acabei com o seu medo. Você o deixou ir.
– Ah – respondeu ela, suavemente, compreendendo por fim. – Sinto muito por ter demorado tanto.
– Você demorou o tempo necessário, e eu não me arrependo por ter esperado.
Darius a beijou em seguida, e Aphrodite vivenciou a felicidade completa.
Até que Aurox os interrompeu.
– Darius! Aí está você. Venha rápido. Eles estão nos portões.
Aphrodite se apoiou no ombro de Darius e franziu as sobrancelhas para Aurox.
– Ah, que droga! Se você interrompeu este momento porque Zoey e seu bando nerd voltaram, eu vou acabar com você...
– Não é a Zoey! – explicou Aurox. – São humanos! Os humanos estão nos portões pedindo para entrar porque querem que nós os protejamos contra Neferet!
– Bem, neste caso, acho que devemos deixá-los entrar – declarou Darius, levantando-se e oferecendo a mão para Aphrodite. – Você não acha, minha bela?
Ela suspirou e resmungou:
– Tudo bem. Desde que não tenha nenhum político com eles.
[*] Bobblehead refere-se a bonecos que possuem a cabeça presa ao corpo por meio de uma mola, a qual faz com que a cabeça balance quando há qualquer movimento. (N. E.)

11
Zoey
– Ah, que merda! Uma multidão? Isso é tudo de que precisamos agora. – Suspirei, frustrada, enquanto passávamos pelo semáforo na Twenty-first Street em Utica e conseguimos ver a escola.
Foi uma cena superestranha. Já passava da meia-noite, e a rua estava escura. Deveria estar vazia também, mas os grandes portões de ferro da escola estavam abertos, e pudemos ver um monte de gente reunida na frente dele. Os dois lampiões a gás envolvidos por candeeiros de cobre desgastados pelo tempo lançavam sombras bruxuleantes em um semicírculo sobre o grupo. As pessoas também vinham dos dois lados da rua. Fora do alcance das chamas da escola, dava para ver as sombras escuras dos carros que estavam estacionados na calçada, parecendo abandonados e completamente fora de lugar.
– Você está vendo alguma coisa queimando além das nossas lanternas? Tipo um crucifixo gigantesco em chamas? – A cabeça de Shaunee apareceu entre mim e Stark enquanto tentava ver melhor do banco de trás onde estava.
– Parem o carro e deixem-me sair daqui. Eu vou resolver isso! – avisou Kalona.
– Não! – gritaram Thanatos, Marx e Vovó juntos.
– Eles não parecem zangados – disse Thanatos.
O detetive Marx parou e baixou o vidro. Todos apuramos os ouvidos para escutar alguma coisa, e então ele disse:
– Está difícil enxergar alguma coisa, mas não estou ouvindo gritos.
– A minha visão noturna é melhor do que a sua, e eu não estou vendo nenhum tumulto ou pânico. Tudo parece notavelmente calmo – declarou Thanatos.
– Tudo bem, melhor prevenir do que remediar. Então, vamos nos certificar de que saibam de que lado da lei a Morada da Noite está.
O detetive pegou uma sirene portátil que trouxera com ele do Oneok e a acoplou ao teto do Hummer. Ligou-a, e ela começou a girar uma luz azul e vermelha que era familiar demais para qualquer um de nós que não tivesse parado totalmente no cruzamento da rua 101 com a Lynn Lane, em frente à South Intermediate High School. Não que eu tenha qualquer experiência pessoal com isso. Só estou dizendo que é estranho estar em um carro de polícia quando a sirene está ligada.
Marx deu mais um tapa na sirene, que então emitiu um som odioso duas vezes. A luz e o som trabalharam em sintonia perfeita. A multidão se abriu e se virou para nós e, reconhecendo a presença do Departamento de Polícia de Tulsa, as pessoas abriram caminho para que o Hummer pudesse chegar à entrada da escola.
Diante do local onde o portão de ferro deveria estar seguramente trancado estavam Aphrodite, Darius, Stevie Rae, Rephaim, Lenobia e Aurox, todos alinhados na frente da entrada formando uma passagem humana.
– O que eles estão fazendo? – perguntou Stark, ecoando os meus pensamentos.
– Espero que tenham tomado decisões sábias – desejou Thanatos.
Em silêncio, concordei enquanto os meus olhos pousaram primeiro em Aphrodite. Se ela aparentasse estar zangada, ou segurasse uma bebida, eu saberia que o que quer que estivesse acontecendo ali era ruim – com crucifixos em chamas e gritos ou não. Mas ela parecia confusa. Tipo, obviamente confusa. Uma de suas mãos estava no quadril e os ombros, encolhidos. Ao mesmo tempo, Lenobia estava assentindo e conversando com alguém na multidão que eu não conseguia ver direito.
– Aphrodite parece confusa, mas não assustada – expus a minha observação de surpresa. – E Lenobia parece estar de acordo com o que quer que seja que está acontecendo. Não deve ser tão horrível.
– Lá estão a irmã Mary Angela e a irmã Emily. Ah, eu estou vendo! Tem um grupo de freiras lá na frente. – Vovó apontou e acenou. – Está tudo bem se elas fazem parte do grupo.
– É uma boa teoria, mas eu vou parar dentro da escola antes que qualquer um de vocês desça. E quero que vocês permaneçam nas dependências da Morada da Noite, não importa quem possa estar chamando vocês do lado de fora – declarou Marx.
Percebi que Vovó estava fazendo cara feia, mas Thanatos foi rápida em concordar:
– Pode deixar, detetive.
Eu estava feliz. Tudo bem, talvez fosse porque não havia se passado nem 24 horas desde que eu saíra da cadeia, mas uma multidão de humanos em torno dos portões da escola – ainda que fossem humanos conhecidos que pareciam ter vindo em paz – fazia o meu estômago se contrair com o estresse da situação. Isso sem mencionar que já passava da meia-noite e não fazia muito tempo desde que Neferet jogara pedaços de corpos humanos pela varanda da sua cobertura no Mayo. Eu não tinha a menor intenção de olhar de cara feia para Marx nem Thanatos, muito menos desobedecê-los. Na verdade, eu esperava já ter sido desobediente o suficiente pelo que seria o resto de uma vida que eu esperava ser longa e chata.
Então, Kalona saiu do Hummer.
– Ei, não é aquele cara alado? – gritou alguém na multidão.
– Uau! O filho de Erebus! – exclamou alguém mal-informado e pronunciando erroneamente o nome Erebus de forma que soasse como Airbus , o que fez Stark cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso com uma tossida.
Dei uma cotovelada de leve em Stark, e ele me lançou o seu olhar charmoso e sorriso torto dizendo com os lábios “Airbus ”. Revirei os olhos.
– Tudo bem, tudo bem – disse o detetive Marx enquanto erguia as mãos fazendo um gesto para o público se acalmar. – Não tem nada para ver aqui. Vocês precisam se afastar e desbloquear a entrada.
– Ah, não precisa se preocupar, detetive. Não queremos bloquear a entrada da escola. Só queremos entrar na escola. – Uma freira alta, usando véu, deu um passo para a frente com um sorriso maternal nos lábios. – É tão bom vê-lo de novo, Kevin.
– Irmã Mary Angela, senhora. – Detetive Marx fez um gesto antigo de respeito com a cabeça. – É muito tarde para a senhora e as outras freiras fazerem uma visita social.
– Ah, Kevin, não estamos aqui para uma visita – declarou ela de forma enigmática.
Antes que Marx tivesse a chance de interrogá-la, Vovó falou passando por ele para encontrar a freira da fronteira da escola.
– Mary Angela, eu estava pensando em você hoje cedo.
Elas deram um abraço. A freira riu e disse alto o suficiente para que todos ouvissem:
– E quando foi que pensou em mim? Antes ou depois de ter sido atacada pelas Trevas? Você leva uma vida tão interessante, Sylvia.
Aphrodite, que se aproximou para ficar ao meu lado, bufou, dizendo:
– Os velhos deviam ter uma vida menos interessante.
– Nós devíamos ter uma vida menos interessante – retruquei baixinho.
Vovó sorriu como se tivesse nos ouvido.
– Foi depois, quando Thanatos pediu que todos em Tulsa rezassem para nos ajudar.
– Ah, que adorável coincidência, porque foi a oração que nos trouxe até aqui.
– Por favor, explique, cara irmã – pediu Thanatos.
Notei que ela não se juntou à Vovó. Olhei para Kalona, que estava colado ao seu lado como se esperasse que mais gavinhas das Trevas aparecessem a qualquer momento.
– Mas que merda, já chega dessa procrastinação – reclamou Aphrodite, dando um passo para a frente. – Eles querem a nossa proteção.
Eu a segui, embora Stark tenha segurado o meu cotovelo para que eu fosse mais devagar.
– Creio que a palavra correta para o que eles querem seja “santuário” – interveio Lenobia.
– Você quer dizer a palavra politicamente correta – retorquiu Aphrodite.
– Se qualquer um de nós fosse politicamente correto, não estaria aqui. – Do meio das sombras iluminadas pela luz dos lampiões, uma mulher pequena, seguida por um homem esbelto, caminhou até irmã Mary Angela. Ela assentiu educadamente para Thanatos. – Shalom, Grande Sacerdotisa.
– Eu a saúdo com paz, rabina Margaret – cumprimentou Thanatos. Agora que estavam mais perto da luz, o casal me parecia familiar. – Eu também o saúdo com paz, rabino Steven. É sempre um prazer ver os nossos vizinhos do Templo de Israel.
Percebi por que a mulher e o homem pareciam conhecidos. Eram rabinos casados, Margaret e Steven Bernstein, que recentemente se tornaram os líderes no Templo de Israel, localizado, literalmente, do lado da Morada da Noite, que dava para Utica Square. Eu me lembrava de que eles tinham elogiado muito os cookies de chocolate da Vovó durante o nosso evento antes que a noite tivesse, é claro, terminado em desastre e morte.
– Então, é realmente um santuário que vocês buscam nesta noite? – perguntou Thanatos para o casal, mas a sua voz se ergueu para toda a multidão.
– É – respondeu a rabina Margaret, enquanto ela e o seu marido, assim como todos, assentiam em concordância.
– A irmandade das beneditinas também busca um santuário – declarou irmã Mary Angela.
– Assim como a congregação de Todas as Almas – disse uma mulher mais velha, dando um passo para a frente e saindo das sombras. Ela tinha cabelo louro desbotado e comprido, mas os seus olhos eram de um azul tão vívido que, mesmo sob a luz fraca, brilhavam como pequenas águas-marinhas.
Thanatos hesitou. Lançou um olhar para Lenobia, que sorriu. Olhou para Kalona, que franziu o cenho. E, então, ela me surpreendeu ao olhar para mim por sobre o ombro. Encontrei o seu olhar e fiz o que meus instintos me mandaram fazer – sorri e assenti.
Thanatos voltou-se para Suzanne, segurou o seu antebraço na saudação vampírica tradicional e ergueu a voz, repleta com o poder de Nyx:
– Como Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa, eu lhes dou as boas-vindas ao grande santuário para todos que o buscam!
Ao meu lado, ouvi Stark suspirar e sussurrar.
– Ai, que merda...
Zoey
– Não, Bobby! Quantas vezes a mamãe vai ter que dizer? Você não pode tocar nas asas do moço alto! – Uma mulher com aparência cansada pegou o seu bebê que estava cambaleando pelo piso arenoso do ginásio com os braços erguidos, tentando pegar a ponta da asa de Kalona.
Mordi a bochecha para não rir enquanto o imortal alado fazia um som de desagrado e dava um passo para evitar os dedinhos grudentos. O bebê tentou sair do alcance dos braços cansados da mãe. Kalona foi para o outro lado. Como sempre, onde quer que aparecesse, todos os humanos concentravam sua atenção nele, e isso parecia afetá-lo. Ele parecia cansado. Curiosamente, os seus ferimentos ainda não tinham se curado por completo, formando linhas e círculos rosados dolorosos. Achei que talvez ele não tivesse passado tempo suficiente no telhado do Oneok quando um “Psiu!” de Aphrodite chamou a minha atenção.
– Z., caipira, venham comigo, agora! – chamou ela.
Stevie Rae e eu largamos um garrafão de água que levávamos para o ginásio e seguimos Aphrodite até o fim do muro mal-iluminado em cuja abertura ficava a estátua de Nyx.
– Cara, eu estou acabada – declarou Stevie Rae.
– Eu também – concordei.
– Já passou da hora do nosso intervalo – disse Aphrodite, jogando latas de refrigerante marrom para nós duas.
Então, ela me pegou totalmente de surpresa ao abrir uma lata para si.
– Refrigerante? Você? Achei que odiasse.
– E odeio mesmo, e isso não é refrigerante. É champanhe de Sophia – informou ela, tomando um gole pelo canudo cor-de-rosa que tirara da lata fina da mesma cor.
– Quem diria, champanhe em uma lata – comentou Stevie Rae.
– Qualquer um que seja civilizado.
– Eu não sabia – disse eu.
– Exatamente o que eu quero dizer – respondeu Aphrodite. Então, ela lançou um olhar para Kalona que estava no meio do ginásio, com certeza procurando alguém e tentando ignorar as pessoas que o olhavam. – Kalona e humanos, principalmente humanos pequenos, equivalem a um acidente de trem apocalíptico – declarou ela.
– Concordo plenamente – disse eu. – Vocês acham que ele está parecendo cansado?
Aphrodite bufou.
– Nós todos parecemos cansados.
– Acho que ele parece como sempre, só que um pouco ferido, o que torna aquele bebê meio malvado por tentar agarrar uma pena de sua asa – opinou Stevie Rae.
– Kalona é imortal. Ele está bem. E um bebê arrancando a pena dele seria mais que demais – declarou Aphrodite. – Acho que eu poderia convencer aquela criancinha a fazer isso. Ou melhor, convencer a mãe a permitir que o filho faça isso. Você acha que ela gostaria de um coquetel mimosa?
– Aquela mãe parece mesmo estar precisando de um coquetel mimosa, mas sem o suco de laranja. Acho que ela gostaria de uma das suas latinhas cor-de-rosa – disse Stevie Rae.
– Eu não costumo dizer isso com frequência, porque geralmente não é verdade, mas acho que você está certa, Stevie Rae – concedeu Aphrodite. – Embora eu venha a precisar de mais de uma dessas latinhas. Parece um trabalho para a viúva Clicquot.
– Viúva Clicquot? Ela é do Templo de Israel?
– Ah, sua pobre ignorante – lamentou Aphrodite, meneando a cabeça tristemente para Stevie Rae.
Kalona conseguiu passar pelo bebê e estava se movendo de novo. Ai, ele parecia estar vindo na nossa direção!
– Diga que ele não está vindo para cá.
– Quem dera eu poder dizer isso – respondeu Aphrodite.
– Ele parece um pombo gigante voltando para o poleiro – disse Stevie Rae.
– Será que devemos ir ao encontro dele? – sugeri, bocejando.
Olhei para o relógio da escola. Já eram 5h30 da manhã. Tínhamos pouco menos de uma hora antes de o sol nascer, e eu entendi o que era exaustão.
– Salvar Kalona dos humanos? Não mesmo – respondeu Aphrodite.
– Concordo – reforçou Stevie Rae.
Dei de ombros e bocejei de novo.
– Por mim, tudo bem. Estou cansada demais para me mexer.
Thanatos decidira que o melhor lugar para colocar todos os humanos – e realmente havia muitos deles – era no maior prédio do campus , o nosso ginásio. Achei uma boa ideia. O lugar era enorme, e com todos reunidos ali seria mais fácil manter o controle. É claro que a maior parte do piso do ginásio era de areia, porque era usado para o treinamento dos guerreiros, e a areia era um saco. Areia, sacos de dormir e humanos cansados, amedrontados e mal-humorados não constituíam uma boa combinação, então nós todos (quero dizer, quase todo mundo no campus , exceto Thanatos, Vovó, detetive Marx e os líderes religiosos) passamos as últimas horas nos esforçando para cobrir a arena dos guerreiros com lona, transformando o lugar no que parecia ser um abrigo temporário contra furacões. Não que aquilo fosse muito melhor, mas estava menos arenoso e mais limpo para as famílias dormirem.
– Olhe isso. – Aphrodite me cutucou com o ombro. – O rabino Steven Bernstein cercou Kalona. Aposto que está fazendo todo tipo de pergunta maluca sobre o Torá.
– É culpa do Kalona – disse eu. – Ele bem que poderia usar uma camisa.
– Pois é! Qual é a necessidade de ficar exibindo o peitoral? – questionou Aphrodite.
– Olha só, gente – interrompeu Stevie Rae, apontando. – Acho que Nicole e Shaylin estão se tornando boas amigas. Fico feliz. Nicole mudou muito e, bem, Shaylin precisa de uma melhor amiga, principalmente depois que você deu uma de louca para cima dela, Z. – disse Stevie Rae antes de acrescentar: – Sinto muito, Z. Eu não queria colocar o dedo na ferida.
Suspirei.
– Não tem problema. Eu realmente dei uma de louca para cima dela. Fico feliz que ela tenha uma boa amiga.
Aphrodite e eu olhamos para as duas meninas de cabelo escuro. Elas estavam arrumando o saco de dormir e pareciam superamigas. Na verdade, enquanto eu as observava, vi os ombros delas se tocarem e as cabeças se aproximarem. Ergui as sobrancelhas. Nicole ergueu a mão e afastou o cabelo de Shaylin do seu rosto, acariciando o rosto dela ao fazer isso, lembrando-me estranhamente de algo que Stark fazia enquanto me paquerava. Limpei a garganta.
– Hum, acho que elas parecem bem próximas .
– Todo mundo devia ter uma melhor amiga! – declarou Stevie Rae olhando para mim.
– Hum, Stevie Rae – comecei, ainda observando os toques e os olhares que Nicole e Shaylin estavam trocando –, acho que elas talvez...
– Ai, que droga, Z.! – exclamou Aphrodite. – Você fez Shaylin virar gay!
Eu franzi as sobrancelhas para ela.
– Seja legal!
– Aiminhadeusa! – Stevie Rae arregalou os olhos enquanto via Nicole dar um beijinho no pescoço de Shaylin. – Eu não sabia que você podia fazer alguém virar gay!
– Sério, caipira! Eu tenho que perguntar de novo: você é retardada?
– Você sabe como eu me sinto com essa palavra – respondeu Stevie Rae.
– E você sabe que eu não estou nem aí.
– E vocês duas sabem que quando começam a implicar uma com a outra me dá dor de cabeça. Aphrodite, não seja cruel com Shaylin e Nicole. Elas podem amar quem desejarem. Stevie Rae, não. Não dá para fazer alguém virar gay. Caramba.
– Ei, eu não estou nem aí para quem ela ama ou com quem ela anda dormindo, mas vou adorar ver a merda que está por vir. – Aphrodite apontou para o pequeno espaço entre a cama que Shaylin e Nicole estavam arrumando. – E aí vem Clark Kent, bem na hora. E eu acho que ele acabou de ver o beijo.
– É – disse Stevie Rae. – Acho que viu. Olhe só para ele.
– Confuso. Acho que seria isso que Vovó diria sobre a expressão dele. Totalmente confuso – concordei. – Eu sei que não deveria, mas acho que vou gostar de ver isto.
– Você está brincando? Eu quero gravar e assistir várias vezes – declarou Aphrodite.
Erik já estava começando a falar com Shaylin. Mesmo de onde estávamos, dava para perceber que ele usava o seu sorriso de astro de cinema com um brilho de cem watts.
– Sei que ele pode ser um saco às vezes, mas vocês têm que admitir que ele é uma gracinha – declarou Stevie Rae. – Não como Rephaim, mas um gatinho mesmo assim.
Aphrodite fez um som como se estivesse se controlando para não falar nada.
Nicole não hesitou e não se afastou. Parou ao lado de Shaylin e envolveu a sua cintura fina com o braço em um gesto íntimo, olhando diretamente para Erik com uma postura possessiva.
– Sabia que Nicole seria o cara – declarou Aphrodite.
– O cérebro do Erik parece prestes a explodir e passar pela covinha do seu queixo – disse eu.
– Zoey, Thanatos convocou você, Stevie Rae e Aphrodite. Ela pede que vocês três se juntem a ela na Câmara do Conselho. Isto é, se vocês tiverem acabado de tomar conta dos humanos – disse Kalona sarcasticamente, olhando para os não humanos que a gente estava espiando.
Nós três demos um pulo de susto ao som de sua voz. Como sempre, Aphrodite se recuperou primeiro.
– Bem, graças à Nyx e ao menino Jesus por nos tirar daqui antes do nascer do sol – declarou Aphrodite. – Vou levar dias para tirar toda essa areia das minhas sapatilhas Jimmy Choo brilhantes. Sou muito melhor em profetizar do que em arrastar coisas.
Ela jogou o cabelo para trás e se dirigiu à porta. Ouvi enquanto ela sugava o que restava do champanhe com o seu canudinho.
– Tudo bem. Hum, obrigada – disse eu de forma inadequada. – A gente deve chamar Stark, Darius e Rephaim também?
– Os homens estão ocupados. – Kalona olhou para o local onde os três homens lutavam com a extremidade de uma lona imensa.
– Tudo bem então. Vamos sair daqui – disse Stevie Rae acenando para Rephaim.
Eu mandei um beijo para Stark e a segui.

12
Zoey
Passamos pela irmã Mary Angela, a rabina Bernstein e a ministra de Todas as Almas enquanto entrávamos no corredor até a Câmara do Conselho.
– Zoey, Aphrodite e Stevie Rae – cumprimentou a freira, fazendo um gesto para as mulheres ao seu lado. – Permitam que eu apresente vocês três para a rabina Margaret Bernstein e Suzane Grimms.
– Merry meet – respondemos as três, quase em uníssono.
As mulheres pareciam cansadas, mas sorriram.
– Prazer em conhecê-las e em estarmos aqui – respondeu a rabina.
– Sim, obrigada a todas vocês pelo trabalho duro que estão fazendo para ajudar a todos se acomodarem.
Nós assentimos como quem diz “não há de quê” , e as mulheres se afastaram; a irmã Mary Angela olhou para mim.
– Boa sorte, Zoey.
– Ela sabe de alguma coisa que não sabemos – sussurrou Aphrodite.
Concordei com a cabeça, e seguimos para a porta da Câmara do Conselho. Então, quase demos de cara com Shaunee, que saiu olhando para todos os lados menos para onde estava indo.
– Caramba, tenha cuidado – disse eu, segurando-a para que nenhuma de nós duas caísse.
– Mas o que é que você está fazendo por aqui? – perguntou Stevie Rae. – A minha mãe diria que você está agindo como se o seu cabelo estivesse pegando fogo.
Shaunee ergueu a sobrancelha.
– Eu preferia que o meu cabelo estivesse pegando fogo a ter perdido o meu gato. Não consigo encontrar Beelzebub em lugar nenhum.
Eu tinha ficado superfeliz de saber que, enquanto eu estava presa, Shaunee e Kramisha tinham ido ao depósito e recuperado os nossos quatro gatos – além de Duquesa, é claro – e os levado de volta para a Morada da Noite. Nala pulou em mim quando fui para o dormitório trocar de roupa, e eu a apertei com tanta força que ela ficou descontente e espirrou no meu rosto.
– Por que você está estressada? Você sabe como os gatos são. Eles vêm quando querem e vão quando querem. Eu não tenho ideia de onde Malévola está agora – informou Aphrodite.
– Eu só espero que ela não esteja por aqui – desejou Stevie Rae baixinho.
Intervim antes que Aphrodite começasse a brigar com ela.
– Tenho que concordar com Aphrodite. Beelzebub deve estar feliz passeando por todos os túneis e esticando as patas.
– Foi o que pensei também, mas Beelzebub nunca falta ao jantar. Nunca . E eu sempre dou comida para ele bem antes do nascer do sol. Sacudi o pacote de Whiskas, e ele não veio correndo como sempre. Então, comecei a procurar. Vocês notaram que os gatos estão sumidos?
Pensei naquilo. Eu vira Nala antes de ir para o Mayo, mas, desde que voltamos, ela não aparecera. Na verdade, agora que estava pensando naquilo, eu não tinha visto nenhum dos gatos recentemente.
– Hmm, agora que você mencionou, não. Eu não vi nenhum dos gatos. Duquesa estava no ginásio com Damien e Stark, mas Cammy não estava com ele, nem Nala.
– Como se isso fosse alguma surpresa? Façam-me o favor. Não sejam idiotas. O ginásio está cheio de humanos. Eu não sou um gato, mas isso me faz querer sumir também. Eu com certeza não os culpo por quererem desaparecer.
– Faz sentido – concordou Stevie Rae. – Gatos são estranhos assim. Sem querer ofender – completou ela, olhando para Aphrodite.
– Concordo com estranho. Como eu já disse antes, normal é supervalorizado.
– Tudo bem, então eu vou tentar não me preocupar com ele. Sinto muito se esbarrei em vocês, gente. Vejo vocês mais tarde.
– Juntem-se a nós na Câmara do Conselho, jovens novatas. – A voz de Kalona nos surpreendeu.
– Ele é sempre tão furtivo – sussurrou Stevie Rae para mim.
– Obrigada por me convidar, Kalona, mas não, obrigada – declarou Shaunee. – Nunca ninguém sai da Câmara do Conselho dizendo “Uau, que legal! Mal posso esperar para fazer isso de novo”.
Eu ia começar a rir e me despedir de Shaunee, mas meus instintos entraram em ação e me fizeram dizer:
– Na verdade, eu gostaria muito que você se juntasse a nós.
Shaunee parou, suspirou e deu de ombros.
– Tudo bem. Acho que isso é melhor do que ficar arrumando as camas no ginásio.
Sorri em agradecimento, e nós cinco entramos na Câmara do Conselho.
Thanatos e Vovó estavam sentadas uma do lado da outra. Lenobia também estava lá. Fiquei surpresa de ver que o detetive Marx estava em pé, com os braços cruzados, atrás de Thanatos. Achei que não houvesse mais ninguém lá, mas um movimento na porta dos fundos chamou a minha atenção e eu vi Aurox ali de novo, como se estivesse de guarda. Ele não olhou para mim.
– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, Kalona, por favor, entrem e se acomodem – disse Thanatos. – Shaunee, não creio que eu a tenha convocado.
– Eu pedi para ela se juntar a nós – falei eu.
– Então, Shaunee também é bem-vinda – concordou Thanatos, fazendo um gesto para nos sentarmos.
Só quando cheguei à mesa vi que a grande tela plana de computador estava ligada. Pisquei, surpresa, e depois sorri e apressei os últimos passos.
– Sgiach! Oi, que legal ver você! – exclamei.
A rainha sorriu e respondeu de maneira mais formal (e adequada):
– Merry meet , Zoey. Também é um prazer revê-la.
– Chamamos a Rainha Sgiach, desejando falar com um dos seus guerreiros, para que lhe desse o recado de que gostaríamos de encontrá-la – explicou Thanatos.
– E ficamos surpresos, e satisfeitos, quando a própria rainha respondeu ao nosso chamado – acrescentou Vovó.
Fiz um cálculo mental rápido: se eram quase seis horas da manhã em Tulsa, devia ser meio-dia na Escócia. O que Sgiach estava fazendo acordada? Olhei a rainha com mais atenção. Ela estava sentada em uma cadeira enorme de madeira na sua biblioteca particular – que parecia normal. Mas Sgiach não estava com aparência normal. O seu cabelo estava desarrumado, o rosto sujo, e eu me inclinei para mais perto da tela para ver melhor...
– Sangue! Por que está suja e tem sangue em você? Está tudo bem?
– Estou viva – respondeu Sgiach, o que não respondia à minha pergunta.
– Onde está Shawnus ? – perguntou Aphrodite, errando a pronúncia do nome do guardião de Sgiach de propósito.
– Seoras – corrigiu a rainha, estreitando o olhar para Aphrodite – está liderando uma guarda diurna e protegendo a ilha.
– Espere aí, protegendo durante o dia ? – Sacudi a cabeça, confusa. – Mas a sua ilha protege a si mesma, principalmente durante o dia.
– Isso é verdade desde que a Luz e as Trevas estejam em equilíbrio – explicou Sgiach.
– Zoey Passarinha – Vovó tocou a minha mão, como se estivesse me dando força –, Neferet acabou com o equilíbrio no mundo. As Trevas Antigas começaram a extinguir a Luz.
Os meus joelhos cederam, e eu me sentei na cadeira. Stevie Rae se sentou pesadamente ao meu lado. Aphrodite ficou andando de um lado para o outro atrás de nós, quase esbarrando no detetive Marx, e Shaunee escolheu uma cadeira próxima a Lenobia.
– Mas Neferet já estava louca havia um tempão. Eu não entendo por que ela de repente bagunçou as coisas – raciocinei.
– Ah, menina – lamentou Thanatos em tom triste. – Não é uma coisa repentina. É a culminação de uma onda terrível que vem subindo desde que Neferet libertou Kalona de sua prisão.
Eu franzi o cenho para o imortal alado que estava do outro lado da sala, próximo à porta principal, com o peito nu, expressão pétrea e em silêncio.
– Ele está do nosso lado agora. Isso deveria ajudar, e não atrapalhar o equilíbrio – argumentei.
– Isso não é um jogo. Essas forças não podem ser controladas – explicou Sgiach. – Foi o ato de libertá-lo que fez a inundação começar. Kalona foi apenas a primeira pedra a cair em uma represa começando a ruir.
– Então, vamos colocar a pedra de volta! – exclamou Aphrodite.
– Realmente – concordou Thanatos. – Foi por isso que chamamos Sgiach.
– Então, o que vamos fazer? – perguntei.
– Você junta a sabedoria de épocas distintas, de um mundo diferente. Forças antigas estão trabalhando agora. E é com sabedoria antiga que temos que remar contra a maré e restaurar o equilíbrio.
– Será que você pode ser menos enigmática do que uma das minhas malditas visões? – pediu Aphrodite.
– É claro, minha jovem e arrogante profetisa. – Achei que Sgiach fosse dar um belo chute na bunda de Aphrodite via Skype, mas, em vez disso, o seu olhar pousou em mim e, apesar dos milhares de quilômetros que nos separavam, o que ela disse fez os pelos dos meus braços se eriçarem. – O detetive Marx me explicou o que aconteceu entre você e os humanos no parque. Thanatos e a sua avó me contaram que a sua violência contra eles não foi um incidente isolado e que envolveu a pedra da vidência.
– Isso, mas eu não tenho mais a pedra – assegurei para ela rapidamente. – Eu não a uso mais.
– Menina, você nunca a usou. Ela usou você – explicou ela.
Engoli a terrível secura que tomou conta da minha boca.
– Eu sei. Foi por isso que a deixei aos cuidados de Aphrodite quando me entreguei para o detetive Marx.
– Conte-me como estava se sentindo nos dias que culminaram no incidente no parque – pediu Sgiach.
Hesitei e tentei ordenar os pensamentos. Por fim, comecei:
– Eu estava nervosa. Frustrada. Irritada. Parecia que eu estava zangada o tempo todo.
– As coisas pioraram depois que você usou a pedra da vidência para revelar o espelho que refletia o passado quebrado de Neferet para ela?
Arregalei os olhos.
– Eu não tinha pensado nisso, mas sim, ficou pior depois. – Instintivamente, passei a mão pela cicatriz na palma da minha mão. – Ela esquentava com mais frequência. E eu perdia a noção do tempo. – Contei essa última parte rapidamente, sem olhar para os meus amigos, para quem eu não tinha contado aquilo.
– Você via coisas durante o seu tempo perdido? – ela perguntou.
– Via – admiti lentamente, não gostando nada da expressão em seu rosto.
– Coisas como Fey, os espíritos elementares que viu em Skye quando esteve lá comigo?
– Não. – Estremeci. – Até poderiam ser Fey, mas não era como os elementares em Skye. Eram horríveis.
– Alguns Fey são terríveis. Assim como nós, nem todos eles escolhem a Luz. O que você via quando perdia a noção do tempo aconteceu antes ou depois de usar a pedra para salvar a sua avó?
– Antes – respondi.
– Zoey, aqui está a verdade que você precisa ouvir: magia antiga pode restaurar o equilíbrio da Luz e das Trevas novamente, o que significa que a sua pedra da vidência é a chave para se vencer esta batalha.
– Então, eu preciso dá-la a outra pessoa, porque o que eu estava fazendo com ela não funcionou. Tudo piorou em vez de melhorar – disse eu.
– Eu gostaria que as coisas fossem tão simples assim – declarou Thanatos.
Ela, Vovó e Sgiach trocaram um olhar, e eu soube que elas tinham conversado sobre a pedra antes de eu chegar.
Vovó deu uns tapinhas na minha mão e disse:
– Ninguém mais pode ostentar a pedra da vidência, u-we-tsi-a-ge-ya . A pedra só esquenta para você. Isso significa que ela a escolheu, e apenas você poderá ostentar a magia antiga através dela.
– Tudo bem, então. Mas como é que eu faço isso? – perguntei, odiando o aperto que senti no estômago só de pensar em tocar na pedra da vidência de novo.
– Estou com a Zoey – apoiou-me Aphrodite. – Simples ou não, diga a ela o que ela precisa fazer.
– É mesmo. A Z. já derrotou as Trevas e Neferet uma vez. Nós todos derrotamos – concordou Stevie Rae.
– Por causa da natureza volátil da magia antiga, só posso lhe dizer o que sei que não deve ser feito – explicou Sgiach. – Para que o seu poder trabalhe pelo equilíbrio e não se corrompa, ela deve ser comandada por uma Sacerdotisa que não seja nem agressora nem vítima. Sua intenção deve ser pura. Ela não pode ser vingativa nem defensiva.
– Mas Zoey tem de usá-la de forma defensiva! – exclamou Marx. – Neferet é uma assassina sociopata com o objetivo de escravizar Tulsa e talvez até o mundo inteiro.
– Isso não é um talvez, detetive – interrompeu Kalona. – Neferet deseja fazer mais do que forçar alguns poucos humanos azarados a adorá-la. Ela deseja reinar como a única Deusa deste mundo e tornar todos nós os seus escravos.
– Então, como é que a porra dessa pedra pode ser a chave para derrotá-la se Zoey não pode usá-la de forma defensiva? – perguntou Marx.
– Detetive, a magia antiga é neutra. É o poder na sua mais pura essência. E ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a carrega. Se seus motivos não forem completamente altruístas, o caos será o resultado. – O seu olhar pousou em mim. – Você tem evidências disso diante de si. Pelo que sabemos de Neferet no passado, à luz do que ela fez no presente, acredito que haja indicações claras de que ela usou magia antiga por muito tempo, talvez até mesmo antes de ter sido Marcada.
– Mas eu nunca a vi usando uma pedra da vidência – disse eu.
– Uma pedra da vidência é apenas um condutor para a magia antiga. Considere as gavinhas das Trevas que a acompanham sempre. Elas são básicas demais, cruas demais para serem qualquer coisa a não ser que sejam ligadas aos poderes antigos da Luz e das Trevas. Eu sei. No Mundo do Além, lutei contra as Trevas em diferentes formas por várias eras. Elas podem ser sedutoras e astutas. As Trevas usam muitas faces, e algumas delas podem ser vistas, a princípio, como aliadas.
– Eu não consigo entender como aquelas coisas rastejantes nojentas podem ser vistas como algo bom – comentou Stevie Rae.
– Neferet raramente fala disso, mas ela foi estuprada pelo próprio pai na noite em que foi Marcada – contou Lenobia. – Algo a ajudou a passar por aquela provação terrível, e não foi outro novato nem a sua mentora. Os registros da Morada da Noite de Chicago dizem claramente que ela voltou para a casa da sua família e estrangulou o pai antes mesmo de ter completado a Transformação. O investigador registrou que o ataque foi tão forte que a cabeça do pai quase foi separada do corpo.
– E ela se safou disso? – perguntou Marx.
– O crime aconteceu no fim do século XIX em um mundo muito maior, detetive. O Conselho da Morada da Noite de Chicago e o Conselho Supremo dos Vampiros decidiram juntos que seria melhor tirá-la do estado e permitir que ela recomeçasse um novo caminho onde teria a oportunidade de se curar da sua tragédia – contou Thanatos.
Lenobia acrescentou:
– E lembre-se, detetive, de que aquele homem agredira e estuprara a filha de dezesseis anos de idade.
– Os registros do Conselho Supremo relatam que havia diversas marcas de mordidas, mordidas humanas no corpo de Neferet, e que ela estava horrivelmente ferida e violada na noite em que o Rastreador a encontrou – informou Thanatos concordando com Lenobia.
Senti um choque com a lembrança.
– Logo depois que fui Marcada, Neferet mencionou algo comigo sobre ter sido machucada pelos pais.
– Sua mãe morreu ao lhe dar à luz. O seu pai era um monstro – contou Lenobia. – Todos que conheceram Neferet na sua juventude sabiam dos rumores sobre o que acontecera na noite em que fora Marcada.
– Sinto muito pelo seu passado, mas isso não muda o fato de que Neferet é uma imortal instável que precisa ser detida – declarou Marx.
– Não estamos mencionando o passado de Neferet como uma desculpa para os seus atos presentes – respondeu Sgiach. – Nós o mencionamos como uma lição para Zoey. – Os olhos de Sgiach queimaram os meus. – A magia antiga foi levada até Neferet, e ela descobriu que podia ostentá-la. Assim como ela foi levada a você e ostentada por você.
– Tudo bem, mas eu não gosto de ser comparada com a Neferet – declarei.
– Ainda assim, o que tem acontecido com você desde que começou a usar a pedra da vidência é bem parecido com o que aconteceu com Neferet. Ela usa você, e enquanto o faz, a corrompe.
Senti como se eu tivesse levado um soco no estômago.
– Eu jamais serei como a Neferet!
– Você já pensou que se pudesse simplesmente controlar todo mundo à sua volta, então poderia tornar tudo melhor para os seus amigos e para si mesma? – perguntou-me Sgiach de forma direta.
– Já, mas eu não queria que nada de ruim acontecesse! Eu só queria poder fazer com que todos agissem de forma correta para acabar com toda a loucura.
– Agir de forma correta de acordo com quem? – quis saber Thanatos.
– De acordo comigo, eu acho, já que era eu que estava desejando – protestei, sentindo-me encurralada.
– Intenção! – exclamou Sgiach para mim. – A magia antiga é neutra. Ela é moldada de acordo com a intenção da Sacerdotisa que a detém! E a intenção da Sacerdotisa não pode ser vingança, nem frustração, nem qualquer outro sentimento egoísta. A sua intenção deve ser pura e voltada completamente para o bem maior. Mesmo que isso signifique que você possa sobreviver ou não ao ser o instrumento que a magia usa.
– Estou com medo – admiti, e a Vovó apertou a minha mão, dando-me força. – E eu não sei como fazer o que vocês estão me pedindo para fazer. Eu preciso que vocês me ajudem!
– Apenas você pode se ajudar. Cresça, jovem Sacerdotisa. Mostre para nós por que Nyx escolheu lhe dar tantos dons – desafiou Sgiach. – Mas seja rápida. Você precisa comandar a pedra da vidência para termos uma chance de deter Neferet e restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.
O olhar cortante da rainha recaiu em Thanatos.
– Grande Sacerdotisa, compreenda que Neferet precisa ser contida para que esse contágio de maldade diminua.
– Qual é o seu conselho para contê-la sem usar magia antiga? – perguntou Thanatos, fazendo com que o meu rosto ficasse quente.
Eu sabia que ela não devia ter que fazer aquela pergunta a Sgiach – eu deveria amadurecer o bastante para usar a pedra da vidência e ajudá-la.
– Procure pelos rituais e feitiços mais antigos – orientou Sgiach. – Não pense em derrotar Neferet. Isso é impossível sem a magia antiga. Pense em isolá-la, distraí-la, irritá-la. Qualquer coisa que a faça repensar suas tramoias e seus planos, qualquer coisa que a faça tropeçar e a torne mais lenta poderá ajudar vocês.
– E dar a Zoey mais tempo para descobrir o caminho para comandar a magia antiga – concluiu Vovó.
Sorri nervosamente para ela, desejando sentir tanta confiança em mim mesma quanto ela tinha.
– Tentarei o máximo que eu puder. Prometo.
– Você não pode tentar , Zoey. Tentar é perigoso demais. Você não pode fazer nada até que saiba que se livrou de tudo que há de negativo em você: medo, raiva, egoísmo, desejo de vingança, ódio, até mesmo irritação e frustração. Só então poderá comandar e controlar a magia antiga. Até lá, Aphrodite deve manter a pedra da vidência longe de você. Não precisamos ter de lutar contra duas imortais que já foram Sacerdotisas talentosas da nossa Deusa.
Eu não conseguia acreditar no que ela tinha acabado de dizer! Sgiach realmente acreditava que eu poderia virar alguma coisa como Neferet.
– Eu não sou imortal! Eu só sou uma garota que não quer ter nada a ver com magia antiga ou com aquela maldita pedra da vidência.
– Imagino que uma jovem Neferet teria dito exatamente a mesma coisa e ela também estava longe de ser “apenas uma garota” – retrucou Sgiach.
Antes que eu conseguisse me recuperar da afirmação horrível, Thanatos acrescentou:
– Eu só conheci uma outra novata que recebeu tantos dons da Deusa quanto você, Zoey Redbird, e o nome dela era Neferet.
Apertei a mão de Vovó, sentindo como se o meu mundo estivesse se ruindo sob os meus pés.
– Agora, eu tenho que cuidar da minha própria enchente – declarou Sgiach. – Confio em você, Zoey. Acredito que encontrará uma maneira de trazer as forças da magia antiga com você na sua batalha pela Luz. Até que eu a veja novamente, abençoada seja.
Então a conexão via Skype foi desligada, deixando a câmara no mais absoluto silêncio.
– É claro que tudo isso é culpa sua – disse Aphrodite para Kalona, antes de se dirigir a mim, acrescentando: – Se você começar a me chamar de Frodo, eu vou ficar puta da vida.
– Sem querer ser cruel nem nada, Aphrodite, mas você está sendo um Frodo para Z. – declarou Stevie Rae.
– Se isso fosse verdade, então você seria um Sam [*] gordo e baixo – retorquiu Aphrodite.
– Uma adolescente? – soou a voz de Marx atrás de nós. – Por que o equilíbrio de poder entre o bem e o mal tinha que estar nas mãos de uma adolescente?
Franzi o cenho para ele.
– Há meses eu me pergunto a mesma coisa – comentou Kalona.
– Devo insistir que nos atenhamos a questões produtivas apenas! – cortou a voz de Thanatos, fazendo com que Marx e Kalona baixassem a cabeça.
– Na verdade – comecei eu, hesitante –, a pergunta do detetive Marx me fez parar para pensar.
– Eu não quis ser tão grosseiro – insistiu Marx.
– Ah, eu sei – respondi. – O que você disse não foi grosseiro, apenas verdadeiro. Por que o equilíbrio entre o bem e o mal deveria depender de mim? – Eu me apressei para continuar, não querendo que os meus pensamentos fossem interrompidos. – Talvez não seja eu, nem mesmo nós, o que é tão importante. Sgiach disse que a magia antiga é o que importa. Basicamente, eu sou apenas o canal para ela; por algum motivo, que nenhum de nós conseguiu entender, ela funciona através de mim. Então, como disse, não sou eu que sou importante. É a magia.
– Aonde você quer chegar, Zoey Passarinha? – perguntou Vovó.
– Bem, a magia antiga também responde a Sgiach. Thanatos, Lenobia, por favor, corrijam-me se eu estiver errada, mas Sgiach não é a personificação da sua ilha?
– Ela é sim – respondeu Thanatos, e Lenobia assentiu, concordando.
– A magia antiga está na terra – disse Vovó, empertigando-se na cadeira. – Assim como os nossos ancestrais Cherokees acreditavam.
– Oklahoma tem poder antigo em sua terra vermelha – declarou Kalona. – Eu sei disso. Esse poder me atraiu para cá não muito tempo depois que fui criado e, novamente, depois da minha Queda.
– E ele o conteve por séculos – completou Thanatos.
Kalona contraiu o maxilar, mas assentiu.
– Sim.
– No dia em que fui Marcada, fugi para a sua fazenda, lembra, Vovó? – A minha voz estava ficando menos hesitante à medida que os meus pensamentos encontravam um caminho para seguir. – Eu desmaiei tentando encontrá-la.
– Eu me lembro – disse Vovó. – Foi a primeira vez que Nyx apareceu para você.
– Isso! Ela me disse que eu deveria ser os seus olhos e ouvidos no mundo em que eu estava lutando para encontrar o equilíbrio entre o bem e o mal.
– Mesmo naquela época a Deusa estava nos alertando através de você – declarou Thanatos.
– Parece que demoramos muito para compreender – disse Stevie Rae.
– Não só vocês, gente – respondi. – Eu também. Acho que não entendi realmente o que Nyx estava querendo me dizer até este momento. Prestei atenção principalmente à parte em que ela dizia que a Luz nem sempre era boa e que as Trevas nem sempre eram o mesmo que o mal. Acreditei que Nyx estava me avisando para ficar atenta a Neferet, porque ela era tão linda por fora, mas completamente podre por dentro.
– Faz sentido – concordou Aphrodite.
– Totalmente – reforçou Stevie Rae.
– É, mas veja o que mais Nyx disse. Lembro-me de que ela disse que eu era especial, a sua primeira U-we-tsi-a-ge-ya V-hna-I Sv-no-yi
– Filha da noite – traduziu Vovó por mim.
– Mas isso não foi tudo o que ela disse. Nyx afirmou que eu era especial por causa do meu sangue antigo combinado com a minha compreensão do mundo moderno.
– E o seu sangue carrega consigo o poder das Sábias Cherokees – disse Vovó. – As mulheres que tiravam a sua força da terra.
– Desta terra – completou Thanatos.
– Oklahoma é o lugar onde a Trilha de Lágrimas terminou – declarou Vovó.
– E para onde fui atraído, assim como Neferet – disse Kalona. – Não podemos esquecer que Zoey carrega dentro de si um pedaço da alma de A-ya, a virgem formada nesta terra.
Eu não queria pensar muito, mas rapidamente acrescentei:
– Também foi onde Aurox foi criado pelo sacrifício de sangue da minha mãe com o poder tirado da terra pela minha avó.
Marx franziu as sobrancelhas.
– Aurox?
– Eu sou Aurox – disse ele, saindo das sombras.
– Espere um pouco – pediu Marx. – Você nem tem uma lua crescente na testa. Achei que você fosse apenas um cara que era o consorte da Grande Sacerdotisa.
O pensamento de Aurox sendo o consorte de Thanatos fez o meu rosto queimar de vergonha.
Aurox me ignorou e lançou um olhar questionador para Thanatos. Ela fez um breve aceno com a cabeça e ele se virou para encontrar o olhar de Marx. Soando forte e seguro, disse:
– Eu não sou humano nem vampiro. Sou um receptáculo criado pela magia antiga cujo propósito eram a vingança e a destruição.
– Mas que foi criado com uma alma. E, tendo recebido a capacidade de escolher, você optou por se desviar da vingança e destruição – completou Vovó.
– Caramba, isso quase parece bom! – disse Marx, analisando Aurox com cuidado. – Se ele tem esses poderes da magia antiga, será que não pode nos ajudar a lutar contra Neferet?
– A parte da luta não é importante – disse eu, sem olhar para Aurox. – É a parte da criação; ele, assim como eu, veio para cá com o sangue que data de gerações nesta terra.
– Precisamos usar o poder da terra para lutar contra Neferet, pelo menos até Zoey conseguir lidar com a pedra da vidência – disse Aphrodite.
– Aiminhadeusa! Eu tenho a resposta. – Shaunee ergueu a mão. – Desculpem-me, não queria interromper, mas acho que sei o que vocês devem fazer!
– E o que é, Shaunee? – perguntou Thanatos.
Ela baixou a mão, falando rapidamente:
– Sgiach nos disse para procurar os feitiços e rituais mais antigos a fim de confundir Neferet. Você disse que precisamos impedi-la de se espalhar. Está bem na nossa cara! Thanatos, você até nos deu uma aula sobre isso no outro dia.
– Shaunee, será que você poderia ser mais clara? – pediu Thanatos.
– Nós podemos usar o Ritual de Proteção de Cleópatra! Podemos fazer com Tulsa o que foi feito em Alexandria! – exclamou Shaunee, animada.
– Eu não faço a menor ideia do que ela está falando – disse Marx.
– Eu faço – declarou Lenobia.
– Assim como todos nós deveríamos saber – disse Thanatos. – Mas nós também deveríamos saber que o feitiço de Cleópatra exige que a Grande Sacerdotisa que o invoca fique isolada, jejuando e orando por três dias.
– No ritmo que Neferet está matando, não temos três dias – declarou Marx, sombrio.
– Mas nós temos o poder da terra – disse eu. – Será que não podemos usá-lo para acelerar o feitiço e fazê-lo funcionar?
– Ideia interessante – elogiou Thanatos. – O feitiço teria de ser invocado de um lugar de poder extraordinário o mais próximo possível do Mayo. E a sacerdotisa que invocar o feitiço e fizer o ritual teria de se manter isolada e no local em meditação e oração, mantendo a sua intenção determinada e verdadeira.
– Não vou ser eu – disse eu. – E não estou dizendo isso porque estou reclamando de não ser madura o suficiente ou Grande Sacerdotisa o suficiente. O que quero dizer é que tenho que resolver esse lance da pedra da vidência e estar livre para usá-la contra Neferet assim que eu descobrir como.
– Concordo, Zoey. Eu sou a Grande Sacerdotisa da Morada da Noite de Tulsa. É o meu dever invocar o feitiço e mantê-lo enquanto o meu desejo durar – declarou Thanatos.
– O fogo é a base do feitiço de Cleópatra. Eu ficarei com você – disse Shaunee. – Pelo tempo que for necessário.
Thanatos assentiu respeitosamente para Shaunee.
– Vou gostar da sua companhia e o poder que você puder emprestar ao feitiço, filha.
– Oh, agradeça à Grande Mãe Terra! Eu sei o lugar de poder que vocês devem usar! – exclamou Vovó, batendo com a palma da mão na mesa para pontuar as suas palavras. – O Council Oak Tree. Seu poder ancestral reinou nas Terras Isoladas por séculos, e fica a uma curta distância do Mayo Hotel.
– Lenobia, Aphrodite, Zoey, Stevie Rae, Shaunee, o que vocês acham? Vocês concordam com Sylvia Redbird? – perguntou Thanatos.
– Eu concordo – respondeu Lenobia.
– Eu também – disse Shaunee.
– Idem – concordou Stevie Rae.
– Parece um bom plano – assentiu Aphrodite.
Encontrei o olhar da Vovó e vi a sabedoria, o amor e a verdade.
– Com certeza – afirmei.
– Então vamos descansar. No crepúsculo, o círculo de Zoey vai até o lugar de poder, e, enquanto o sol se põe, eu vou preparar o ritual de proteção e invocar o feitiço, e que Nyx nos dê força. Pois assim nós escolhemos; que assim seja.
[*] Sam é o apelido do personagem “Samwise Gamgee” da obra O Senhor dos Anéis , escrita por J. R. R. Tolkien. (N.E.)

13
Zoey
– Stark, você viu a Nala?
– Não. Venha para cama. Ela deve estar ocupada com os outros gatos avisando para os ratos locais que os gatos estão de volta – respondeu ele, sonolento, e batendo com a mão no lugar ao seu lado na cama.
O sol tinha nascido havia pouco mais de uma hora, e Stark estava se enfraquecendo rápido.
– Mas a Nala sempre dorme comigo.
– Não dorme não. Às vezes, ela dorme com Stevie Rae. – Ele deu um bocejo enorme. – Pare de se preocupar e venha aqui. Você está nervosa desde a reunião do Conselho. Você vai descobrir como usar a pedra da vidência. Sei que vai. Ficar preocupada o tempo todo não vai ajudar em nada. Deite-se que eu vou fazer uma massagem.
Olhei para ele e sorri. Além de amar muito quando ele massageava os meus ombros, ele estava totalmente fofo e sexy com o cabelo despenteado e o olhar sonolento. Além disso, ele estava certo. Preocupar-me não me ajudaria a descobrir como usar aquela estúpida pedra da vidência. Cedendo, eu me deitei na cama de costas para ele e depois gemi de puro prazer quando seus dedos fortes começaram a massagear os nós de estresse que tinham se formado nos meus ombros.
– Acho que você deve ser perfeito – declarei.
– Viu só? Quanto menos se preocupa, mais esperta você fica – respondeu ele, bocejando de novo.
– Ei, eu estou bem. Pode dormir agora.
– Eu sei que você está bem, mas vai ficar melhor se ficar quietinha e me deixar cuidar dos seus ombros.
Ele beijou a minha nuca.
– Tudo bem, mas você pode desistir na hora que quiser – disse eu, relaxando sob o seu toque.
– Z., eu nunca vou desistir de você. Você sabe disso.
Ele deu mais um beijo na minha nuca, e eu suspirei feliz.
– Eu amo você.
– Também amo você – respondeu ele.
Quando suas mãos pararam, eu estava relaxada, aquecida e cansada. Fechei os olhos, sorrindo, e adormeci.
Por cerca de dois minutos. Então, os meus olhos se abriram e eu me sentei, aguçando os ouvidos.
– Você ouviu alguma coisa? – perguntei para Stark.
Ele murmurou algo que pareceu ser:
– Gato... Tudo bem... pare de se preo...
Então, ele se virou, puxou as cobertas até o ouvido e começou a roncar baixo.
– Nossa, isso que é um Guerreiro – resmunguei.
Então, bocejei e me espreguicei. Eu realmente precisava voltar a dormir. O meu alarme já estava programado. Nós tínhamos que nos levantar e nos apertar na van da escola sem janelas e seguir o caminho até o Council Oak Tree antes do crepúsculo. Quem poderia saber que tipo de loucura Neferet cometeria diante de um feitiço de proteção. Inferno, ela já estava...
Então, ouvi novamente e soube exatamente o que havia me acordado. Era um som baixo, definitivamente era o ronronar de um gato.
E não havia nenhuma bolinha de pelo laranja encolhida aos pés da minha cama!
Vesti minha calça jeans e peguei meus sapatos da forma mais silenciosa que pude, andando de meia, na ponta dos pés, até a porta. Sem fazer nenhum barulho, me concentrei em pensamentos felizes, abri a porta e fui para o corredor. Desci rapidamente para o andar de baixo e passei pela sala comunal deserta do dormitório e saí, piscando quando os raios de sol atingiram os meus olhos, causando uma ardência. Eu não ia voltar mesmo para pegar os óculos de sol, então protegi os olhos com a mão e chamei:
– Nala! Gatinha! Nala-Nala, venha aqui!
Então, prendi a respiração e agucei os ouvidos.
Ouvi o som de novo! Era definitivamente um ronronar. E, definitivamente, parecia que o gato estava com algum tipo de problema. Não dava para saber se era a Nala ou não, mas eu sabia que o som vinha de algum lugar perto do muro da escola que dava para a direção leste.
Coisas ruins sempre acontecem lá! Corri apressada, contornando os dormitórios e me dirigindo para o muro, chamando.
– Psiu-psiu! Gatinha! Aqui! Nala!
O gato continuou ronronando. Eu me dei conta de que aquilo era bom e ruim. Bom, porque eu poderia seguir o som do seu miado. Ruim, porque quanto mais perto eu chegava, mais sofrido o gato parecia.
O ronronado seguinte fez o meu estômago se contrair. Eu estava perto o bastante do carvalho partido para saber que o gato estava definitivamente em algum lugar no alto daquela árvore. Ah, que droga! Por que é que tinha de ser aquela árvore? A árvore que Kalona partira em duas quando escapara da sua prisão na Terra, a árvore onde Jack morrera, a árvore em que eu vira as criaturas nojentas da magia antiga.
Diminuí o ritmo quando me aproximei da árvore de aparência assustadora. Tudo bem, eu gosto de árvores. Eu realmente gosto. Tipo assim, eu amo a Bosque da Deusa no Mundo do Além. Eu amo a minha afinidade com a Terra, mesmo que não esteja tão em sintonia com ela quanto estou com o espírito, mas ainda assim... Normalmente, eu não tenho problemas com árvores.
Esta árvore é diferente.
A caverna de Kalona ficava ali embaixo, e o jeito como ela se abria em duas fazia com que se parecesse com os ossos de um monstro, congelado na morte, agachado na sua abertura. Todas as outras árvores do campus se erguiam verdejantes. Não esta. Ela era negra e sem folhas, malévola e partida. Seus galhos formavam mais garras do que eu poderia contar.
– Miau-miau!
– Nala!
Eu a peguei nos meus braços e beijei o seu nariz úmido. Ela, é claro, espirrou em mim.
Eu ainda estava abraçando Nala quando ouvi um segundo gato e olhei para baixo.
– Cammy? – Ele se enroscou em mim e se esfregou nas minhas pernas, deixando pelos louros espalhados na minha calça. – Aposto que Damien não sabe que você está aqui fora. Você deveria estar encolhido junto com a Duquesa e ele em um sono profundo.
– Miaaaaaaau!
Aquele miado eu conhecia sem nem ver o animal branco que o emitira. Olhei por cima da base despedaçada da árvore e, com certeza, lá estava uma gata gigantesca com cara achatada e pelos brancos, cheia de atitude.
– Malévola, Aphrodite não ficaria nem um pouco satisfeita de você estar aqui aterrorizando os outros gatos. – Fiz uma pausa. – Bem, isso provavelmente é mentira. Mas ainda assim... Você deveria tentar não ser tão parecida com ela. Nossa, o que é que você acha...
Então, as sombras ao redor da árvore se moveram e eu percebi que o carvalho antigo e assustador estava completamente cercado pelos gatos da Morada da Noite.
Abracei Nala, enquanto sentia um frio gelado descer pela minha espinha.
– Mas o que é que está acontecendo aqui?
– Isso é o que eu gostaria de saber.
A voz de Aurox me assustou fazendo com que eu apertasse Nala forte demais e, com um grunhido zangado, ela pulou dos meus braços e se juntou aos outros gatos em volta da árvore.
– Você fez esses gatos virem até aqui?
– Eu? – Meneei a cabeça. – É claro que não. E se você soubesse qualquer coisa sobre gatos, entenderia que não se pode obrig á-los a fazer nada.
– Eu não sei muita coisa sobre gatos – declarou ele.
– Bem, tudo o que eu fiz foi seguir um grunhido horrível que, na verdade, me acordou. Achei que fosse Nala, mas ela parece estar bem.
– Grunhido? Mas que grunhido? Tudo que ouvi foi você conversando com os gatos.
Eu franzi as sobrancelhas para ele e abri a minha boca para explicar o óbvio – que alguma coisa tinha me atraído até ali e que havia alguma coisa de errado com os gatos e com ele também. Tipo assim, ele não precisava ser tão frio e rude sempre que se importava em falar comigo, mas o gato me interrompeu.
– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – O miado patético pareceu se estender por muito tempo.
– Está vindo lá de cima, da árvore.
Protegi os olhos com a mão e espiei por entre os galhos quebrados.
– Lá! – Aurox apontou. – Estou vendo!
Segui o dedo dele e vi também. Lá, bem no alto, nos galhos do topo da árvore, estava um gato realmente grande. Era um gato malhado de laranja e branco com pelos longos. Não era do mesmo tom de laranja forte de Nala. A cor daquele gato era mais suave, como se o laranja tivesse sido diluído com creme. Ele parecia familiar, e eu apertei os olhos, tentando me lembrar quem era seu dono, quando vislumbrei os seus olhos. Eram de um verde amarelado surpreendente, com um brilho inteligente.
– Que merda! Aquele é Skylar! O gato de Neferet! – disse eu.
– O gato de Neferet? Mas o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar com ela?
– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – berrou Skylar enquanto o vento fazia os galhos estremecerem sob ele, que tentava se manter firme.
– Ele vai cair – disse Aurox, movendo-se tão rápido que os gatos se espalharam.
– Ei, tome cuidado. Skylar é conhecido por morder. Sério, Aurox. Os gatos costumam refletir a personalidade do novato ou do vampiro que escolhem, e nós todos sabemos que Neferet é...
– Zo, eu não posso simplesmente deixá-lo cair.
E isso me fez calar a boca. Ele não apenas soou como Heath, mas estava fazendo uma coisa muito burra e doce e muito parecida com que Heath faria. É claro que ele provavelmente ia causar uma confusão tão grande quanto Heath teria feito, mas não havia muito mais o que eu pudesse fazer, a não ser esperar e tentar resolver a confusão. E pensar. Hmmm .
– Ei! – chamei, enquanto ele escalava a árvore feito um macaco. – Bem, nunca ouvi falar disso, mas talvez se o vampiro de um gato fica mau, talvez ele cometa suicídio ou algo assim. Skylar deve estar aí em cima porque a Neferet ficou desvairada e ele não consegue lidar com isso.
– Eu não vou deixar ninguém cometer suicídio no meu turno, seja um novato, um vampiro, um humano irritante... Nem mesmo um gato com fama de mordedor.
– Tudo bem. Espero que Nyx esteja com você.
– Eu também.
– Miaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuu! – gritou Skylar enquanto Aurox se agarrava em alguns galhos que o mantinham, acrescentando um som horrível e baixo enquanto ele tentava se afastar.
– Tente falar com ele. De forma suave, como os gatos gostam, tipo gatinho.
– Tipo gatinho? O que é isso?
– Caraca, ele está acabado – disse eu para Nala. Ela espirrou e pareceu concordar comigo. Os outros gatos estavam todos olhando para Skylar, como se estivessem ali para testemunharem algo. Eu não fazia a menor ideia do que dizer para Aurox.
– Hum, tente conversar com ele. Eu me lembro de que ele é muito inteligente.
– Tudo bem. Vou tentar.
Aurox subiu mais um pouco de forma a se sentar praticamente na mesma altura em que Skylar se encontrava. Eu ouvi quando ele limpou a garganta e, então, com uma voz completamente normal, que ele usa em uma conversa do dia a dia, começou a falar com o gato:
– Merry meet , Skylar. Pelo que soube, você tinha uma ligação com Neferet. Eu também já tive, então posso imaginar como você deve estar se sentindo. Ela também me magoou. Ela continua machucando os outros. Não posso permitir que você se machuque. Eu escolhi proteger esta escola e você faz parte desta escola.
O que aconteceu em seguida foi uma das coisas mais loucas que eu já vi – e olha que eu definitivamente já vi coisas muito loucas. Skylar inclinou a cabeça para o lado como se estivesse ouvindo Aurox.
– Skylar – continuou Aurox com voz solene –, eu vou protegê-lo, mesmo que seja de você mesmo.
Então, Aurox estendeu a mão.
Lentamente, Skylar se alongou em direção a ele até que pudesse ser tocado por Aurox. Prendi a respiração, esperando que o grande gato começasse a berrar novamente e batesse com a pata na sua mão. Mas não foi isso que ele fez. Na verdade, Skylar farejou a mão de Aurox, parou e, então, começou a esfregar o seu queixo contra a mão dele. Mesmo de onde eu estava lá embaixo, dava para ver o sorriso iluminar o rosto de Aurox quando começou, hesitante, a fazer carinho no gato. Skylar parou por um instante e virou a cabeça, analisando Aurox novamente.
– Você pode escolher não permitir que as Trevas de Neferet destruam a sua vida – insistiu Aurox em tom sincero enquanto acariciava o queixo de Skylar.
Sem mais hesitação, Skylar foi na direção dos braços de Aurox.
E todos os gatos em volta da árvore partida começaram a ronronar.
Quando Aurox chegou ao chão, ele estava segurando Skylar bem junto de si. O gato parecia estar abraçado a ele, e sua cabeça fofinha estava aninhada sob o queixo de Aurox. Quando ele se aproximou de mim, ouvi Skylar ronronando.
– Aconteceu algo lá em cima – contou Aurox, com os olhos brilhando.
– É. – Eu funguei e enxuguei o rosto com a manga da camisa. – Skylar escolheu você. Vocês agora pertencem um ao outro.
Aurox olhou para Skylar, acariciando o gato com movimentos longos a amorosos. Skylar não abriu os olhos. A não ser pelo fato de que estava ronronando loucamente, parecia ter adormecido.
– Zo, ele é demais!
Sorri entre as lágrimas.
– Com certeza é.
Aurox olhou para mim. Então, automaticamente enfiou a mão no bolso da calça jeans e me deu um Kleenex.
– Você está com nariz escorrendo de novo.
– Com certeza – respondi.
Seus olhos encontraram os meus. Ele os afastou depressa, mas não antes de eu ver o sofrimento da sua expressão.
– Sinto muito. Eu não deveria tê-la chamado de Zo.
– Você pode me chamar do jeito que quiser.
Seus olhos encontraram os meus de novo e eu vi um brilho de raiva cruzar o seu rosto.
– Não seja legal comigo porque acha que eu sou Heath.
– Que merda, Aurox, eu estou sendo legal com você porque gosto de você! Você salvou a minha avó. Você está segurando um gato supercruel que acabou de salvar. VOCÊ É UM CARA LEGAL! – Parei de falar para controlar o meu tom de voz antes de terminar. – É por isso que estou sendo legal com você.
– Eu gostaria que isso fosse verdade – disse ele.
– Aurox, eu juro que só vou dizer a verdade para você. Tenho muita merda pessoal para lidar agora para acrescentar mentiras à minha lista.
– Você está sendo sincera, não está?
– Estou. – Enxuguei o rosto e funguei. – Valeu pelo lencinho.
– Não há de quê.
– Você tem coisas de gato no seu quarto?
Ele hesitou, e então disse em tom suave:
– Eu não tenho um quarto.
– Onde você dorme?
– Eu não durmo.
Aiminhadeusa! Ele nem é humano! Senti o choque daquilo, e a lembrança de como ele ficava quando se transformava em touro passou pela minha mente. De forma resoluta, afastei o pensamento.
– Bem, você vai precisar de um quarto agora. Esse gato precisa de um lugar para dormir, comer e... hmm, você sabe alguma coisa sobre caixas de areia?
– Hã?
Sorri para ele.
– Venha comigo. Kalona também não dorme. Vamos encontrá-lo. Ele pode arrumar um quarto para você, comida de gato e uma caixa de areia.
– Chamei Nala e ela, na verdade, veio para mim, pulando nos meus braços. Notei, então, que os outros gatos tinham desaparecido.
– Você acha que Kalona sabe lidar com gatos? – perguntou Aurox enquanto caminhávamos juntos.
– Aposto que sim. Ele costumava ser um guerreiro de Nyx, e gatos constituem uma grande parte do Mundo do Além. A Deusa ama gatos.
O rosto de Aurox ficou sem expressão e ele perguntou:
– Zo, você acha que o fato de Skylar me escolher pode significar que Nyx se importa comigo? Mesmo que só um pouco?
– Pode apostar.
Isso foi tudo que consegui dizer antes de a minha garganta se fechar com as lágrimas, e Aurox me dar outro Kleenex.

14
Kalona
– Tudo bem, eu tenho que dizer para você que aquilo tudo foi muito estranho? Você também achou? – perguntou detetive Marx para Kalona.
Ele estava caminhando ao lado do imortal alado quando ambos deixaram o dormitório dos garotos e saíram para o sol forte e bonito do meio-dia.
Kalona ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de esguelha para o detetive. Não estava acostumado a conversar de forma leve com ninguém – principalmente com humanos. Nem com alguém que não o julgava como monstro por causa do seu passado. Ele me trata como se fôssemos companheiros de batalha , percebeu Kalona com um sobressalto incomum de surpresa.
E foi com outro sobressalto de surpresa que o imortal alado se deu conta de que realmente gostava da companhia do detetive.
– Estranho? Ver um gato de uma vampira imortal e louca escolher uma criatura criada a partir de magia antiga para ser uma arma das Trevas, e, então, ter que explicar para a referida criatura, que parece exatamente como um garoto confuso, como alimentar e limpar uma caixa de areia? – debochou Kalona. – Detetive, acho que “estranho” não é uma palavra forte o suficiente para descrever o que acabou de acontecer.
– Que bom ouvir isso!
O detetive deu um tapa no ombro de Kalona em um gesto amigável. Kalona teve de apertar os dentes por causa da dor que atravessou o seu corpo quando o gesto inocente de Marx abriu um ferimento ainda não curado. Kalona emitiu um grunhido que refletia concordância, e não desconforto.
Ignorando qualquer outra coisa a não ser a conversa que estavam tendo, Marx riu e continuou:
– É, teve uma hora lá, quando o garoto estava acariciando o queixo do gato gigante, que eu tenho quase certeza de que os seus olhos começaram a brilhar.
– Os do gato ou os do garoto? – brincou Kalona, ignorando a dor prolongada.
– Os do garoto. Os olhos dos gatos também podem brilhar? – Marx meneou a cabeça. – Não, não me diga. Agora eu compreendo por que a minha irmã diz que algumas coisas vampíricas são zona proibida para humanos. Não faz bem para a nossa cabeça. Pode nos enlouquecer.
Kalona riu.
– Acho que isso tem mais a ver com a estranheza dos nossos tempos do que com a habilidade dos humanos em compreender o anormal.
– Talvez você esteja certo. Estamos vivendo uma época muito estranha.
Eles caminharam juntos sem falar, embora Kalona não sentisse que o silêncio era pesado. Eram apenas dois homens responsáveis por proteger aqueles que lhe eram caros.
É assim que se deve fazer parte de uma família. Eu gosto desse sentimento! O pensamento chegou à sua mente de forma espontânea, e ele não sabia o que fazer com ele. Como é que a Morada da Noite se tornara a sua família? Kalona não fazia ideia, mas até mesmo Zoey Redbird, a novata que ele tentara seduzir primeiro para depois destruí-la, começou a confiar nele o suficiente para procurá-lo em busca de conselhos e ajuda para Aurox quando o felino de Neferet escolheu o receptáculo como seu familiar.
Assim, Kalona teve o seu terceiro sobressalto de surpresa.
– Pode deixar pra lá. Eu não queria perguntar. A minha irmã vive me dizendo que é um péssimo hábito que adquiri desde que me tornei detetive.
Kalona tentou se recompor mentalmente.
– Desculpe, eu estava pensando em outra coisa. Você me perguntou algo?
– Perguntei, mas era pessoal demais, principalmente considerando quem você é. Esqueça... Preciso dormir um pouco antes da loucura começar de novo – disse Marx depressa.
– Você pode me perguntar o que quiser. Nós lutamos contra as Trevas juntos. Deve haver confiança entre nós.
Chegaram ao dormitório das garotas, e Marx parou apoiando-se no corrimão da escada que dava para a varanda de entrada.
– Tudo bem, então. Eu só estava me perguntando por que Nyx não desce dos céus e detém, ela mesma, Neferet. Ela é a ex-Grande Sacerdotisa da Deusa. Acho que Nyx deve estar puta da vida pelo modo como está usando o seu poder de forma errada.
– Em primeiro lugar, Nyx não mora nos céus, ou, pelo menos, não nos céus da civilização ocidental moderna.
– Certo, desculpe. Eu esqueci. Minha irmã me explicou essa parte há alguns anos. Nyx mora no Mundo do Além, certo?
– O Mundo do Além é o reino de Nyx. Está correto.
– E você já esteve lá?
– Durante éons, aquele foi o meu reino também – contou Kalona devagar, desacostumado a falar sobre a Deusa ou o Mundo do Além.
– Desculpe-me se estou sendo intrometido. Eu vou parar por aqui e...
– Eu não me importo de falar sobre isso – respondeu Kalona, dando-se conta de que estava dizendo a verdade.
– Então, você conhece Nyx muito bem.
Kalona inspirou e expirou longamente várias vezes. A resposta para a pergunta do detetive era tão simples quanto desoladora.
– Eu conhecia a Deusa bem. Muito bem.
– Ah, entendi. No passado. – Marx parecia estar pensando em voz alta. – Isso pode explicar o que está acontecendo. Nyx mudou desde a época em que se conheceram. Talvez ela tenha perdido o interesse no mundo moderno. E quem poderia culpá-la? É por isso que ela está deixando que Neferet escape, mesmo tendo corrompido o poder concedido pela Deusa e ferindo não apenas humanos, mas novatos e vampiros também.
– Isso não é verdade. A nossa Deusa não perdeu o interesse em nós.
Kalona desviou o olhar de Marx e viu Shaunee caminhando pela calçada em direção a eles, carregando um gato cinza nos seus braços. Ela usava óculos escuros e um gorro que escondia o seu rosto; estava claro que a luz do sol a incomodava. Ela deve estar perto de completar a Transformação , pensou Kalona e, então, percebeu que a ideia de Shaunee passar pela Transformação e se tornar uma Sacerdotisa vampira lhe provocava um sentimento muito próximo de orgulho.
Esse pensamento fez com que sua voz ficasse brusca:
– Shaunee, você deveria estar no seu quarto, dormindo. A luz do sol não lhe faz bem.
– Eu estou indo para a cama. Só tinha que encontrar Beelzebub. Mas antes de eu ir, quero deixar algo muito claro para o detetive Marx. – Ela pousou seus olhos castanhos no detetive. – Nyx não perdeu o interesse em nós – repetiu ela.
O olhar de Marx passou para Kalona e, depois, voltou para Shaunee. Antes que pudesse responder, a novata recomeçou a falar:
– Não procure Kalona para obter respostas sobre Nyx. – Ela lançou um olhar de desculpas para o imortal. – Isso vai soar cruel, mas não estou fazendo isso de propósito. – Ela voltou a atenção para Marx antes de continuar. – Kalona caiu . Isso não faz dele uma testemunha perita em Nyx, detetive. Se você tem perguntas sobre a nossa Deusa, faça-as a mim. Eu converso com ela todos os dias, e, às vezes, ela até me responde.
– Tudo bem, então. Você pode explicar por que Nyx permitiria que Neferet causasse tanta dor e tanto sofrimento, assistindo a tudo sem fazer nada a respeito? Ela concedeu a Neferet os dons que permitiram que ela acumulasse tanto poder. Por que Nyx pelo menos não revoga os seus dons? Isso faria sentido. Não fazer nada não faz sentido para mim. Digo isso com todo o respeito pela sua Deusa, mas as ações dela não parecem a de uma divindade amorosa.
– Nyx não tirará os dons de Neferet, nem os dons de qualquer um de nós porque ela ama de forma incondicional e sempre mantém a sua palavra, mesmo quando não cumprimos a nossa e a traímos – explicou Shaunee.
Kalona cruzou os braços e fingiu desinteresse, embora não se mexesse – nem respirasse, apenas ouvisse.
– E ela não desce e salva o dia porque ela nos ama tanto que sempre nos dará o livre-arbítrio. – Ela fez uma pausa e, depois, perguntou: – Você tem filhos, detetive Marx?
– Tenho. Duas filhas. Uma de nove e outra de onze.
– E se você nunca permitisse que elas cometessem erros? Ou, melhor ainda, e se você permitisse que cometessem erros, mas, então, interviesse e resolvesse todas as consequências por elas?
– Acho que eu estaria criando uma dupla de meninas mimadas – respondeu ele.
– Que tipo de mulher você acha que elas se tornariam? – perguntou Shaunee.
– Egoístas e irresponsáveis. Se elas crescessem.
– Exatamente! – Shaunee sorriu. – Como nós poderíamos aprender, crescer e evoluir se Nyx nos resgatasse das nossas decisões erradas? Ou se parasse de permitir que tomássemos as nossas próprias decisões, boas ou ruins?
Kalona não conseguiu ficar em silêncio por mais tempo.
– Seria mais fácil se Nyx resolvesse tudo! Eu ainda a conheço bem o suficiente para assegurar a você que a nossa Deusa seria benevolente e bondosa. E isso é mais do que qualquer um de nós pode garantir em relação ao público em geral, sejam vampiros ou humanos.
– Se Nyx resolvesse tudo, os poderes da Luz e das Trevas ficariam desequilibrados para sempre – disse Shaunee.
– A Luz venceria! Não é esse o objetivo? – perguntou Kalona.
– Aiminhadeusa! Será que não percebe o que está pedindo?
– Sim! Estou pedindo paz! O fim do desejo por carnificina e do derramamento de sangue, da traição e da destruição.
– Não! – argumentou Shaunee. – Você está pedindo o fim do livre-arbítrio. Nós nos transformaríamos naquelas pessoas gordas e flutuantes do filme Wall-E , ou pior.
– Que língua você está falando?
– Eu sei do que ela está falando. É um filme da Pixar. Ela quer dizer que nós nos tornaríamos idiotas preguiçosos e sem motivação. – Marx coçou o queixo. – Na verdade, acho que ela talvez esteja certa. Você tem ido a alguma feira estadual?
Então, o detetive riu da própria piada, que não fez o menor sentido para Kalona.
Shaunee não piscou. Ela nem sorriu para Marx. Seu olhar sombrio pousou em Kalona.
– Você não vai conseguir se aproximar de Nyx dessa forma. Você tem que abandonar esse problema de controle e escolher realmente acreditar, de forma sincera, e amar de verdade. – Então, ela deu um beijo na cabeça do gato cinza adormecido em seus braços. – Então, isso responde às suas perguntas, detetive Marx?
– Não a todas, mas o suficiente por ora – respondeu ele.
– Ótimo! Vou pra cama. Vejo vocês no crepúsculo.
Ela subiu a escada e desapareceu no dormitório das garotas.
– Também vou dormir. Thanatos disse que eu poderia usar um beliche na casa dos professores. Você parece cansado. Você vem também?
– Não. Vou assumir o turno de Aurox e vigiar o perímetro – disse ele.
– Turno dobrado. Esses são difíceis. Você quer companhia?
Kalona olhou para o detetive. A pele sob os seus olhos estava ferida e seus passos, arrastados.
– Talvez numa próxima. Mas obrigado por se oferecer.
– Sem problemas. Tenha cuidado lá fora. Como a garota disse, vejo você no crepúsculo.
Kalona assentiu e começou a caminhar para o muro mais distante da escola, tentando, sem sucesso, não ouvir novamente as palavras de Shaunee ecoando em sua mente.
Lynette
– As fantasias estão péssimas! – disse Neferet enquanto meneava a cabeça e lançava um olhar de raiva para o grupo de pessoas trêmulas que Lynette escolhera para usar o que deveriam ser roupas dos anos vinte.
Se tudo, ou mesmo qualquer coisa , estivesse normal, Lynette teria dito que o seu último evento tinha passado por alguns problemas. Na insanidade em que o seu mundo se transformara, Lynette decidiu que o seu último evento era um colete cheio de explosivos de um homem-bomba prestes a explodir – e era ela quem estava usando o maldito colete.
– Deusa, você se lembra das duas coisas de que eu preciso? Tempo e recursos?
– Eu me lembro de tudo .
Lynette bateu palmas diante de si para que Neferet não percebesse o quanto estava trêmula. Limpou a mente e se concentrou no que fazia melhor – lidar com o cliente para que o evento fosse um sucesso.
– E é exatamente por isso que é tão bom planejar eventos para uma Deusa, e não para um humano ou um vampiro – disse Lynette.
O olhar raivoso de Neferet se suavizou com a bajulação.
– Do que você precisa que eu não lhe ofereci? Nós decidimos o tema da minha próxima adoração ontem à noite. Já está quase no crepúsculo, e tudo que eu pedi foi para dar uma olhada nas fantasias dos meus súditos enquanto eles ensaiam o Charleston. Estou certa de que Tulsa tem lojas de fantasia o suficiente e você tem acesso ilimitado aos meus recursos . Então, explique-me por que nenhuma dessas fantasias se parece remotamente com o estilo dos anos vinte?
– Tulsa tem apenas duas lojas decentes de fantasias: a Ehrle’s e a Top Hat – começou Lynette.
– Apenas duas? – Neferet suspirou. – Eu deveria ter começado o meu Templo em Chicago. Chicago está cheia de excelentes lojas. Kylee! Minha taça está vazia!
A Kybô, que era o modo como Lynette silenciosamente se referia à recepcionista robótica, apressou-se pelas escadas subindo até o local onde Neferet colocara o seu trono, enchendo novamente o líquido escarlate que nunca parecia ser o suficiente para a Deusa.
– Mas eu a interrompi, querida Lynette. Por favor, continue a explicação sobre as roupas. – Ela apontou os dedos com as unhas vermelhas para o grupo de pessoas desarrumadas esperando lá embaixo.
– Entrei em contato com os donos das duas lojas. Eles se recusaram a fazer qualquer entrega para nós.
Lynette deu a notícia rapidamente e então se preparou para a loucura.
Em vez de explodir, Neferet ficou totalmente imóvel. Em uma voz suave e pensativa, perguntou:
– E por que eles se recusaram a me atender?
– Eles explicaram que a polícia cercou todo o Mayo e que não permitem que ninguém se aproxime daqui.
Neferet bateu com uma das unhas afiadas na taça. Ela virou a cabeça em uma postura pensativa. Então, a sua expressão se suavizou e ela sorriu.
– A solução é simples. A polícia está evitando que os humanos entrem. Sua atenção está voltada para fora. Eles não vão esperar que alguém saia.
– Sair?
– Sim, bem, não vai ser qualquer um que vai sair. Será você.
Lynette se apoiou na grade de ferro.
– Eu?
– Minha querida, você está com algum problema de audição?
– N-não – apressou-se Lynette a assegurá-la.
– Kylee, sirva uma taça de vinho para Lynette. Ela está pálida. – Agradecida, Lynette tomou o vinho enquanto Neferet começava a sua explicação insana. – Será bem fácil para você. Você sairá pelos fundos, onde eles empilham aquele lixo horrendo. Pular a cerca não deve ser um problema. Você parece ter se mantido em forma. E, é claro, Judson vai acompanhá-la para ajudar com qualquer problema que possa ter. Judson, certifique-se de que a querida Lynette volte em segurança. E você carregará as sacolas de compras para ela, não é mesmo?
Judson assentiu de forma automática e respondeu:
– Sim, Deusa.
– Excelente! Vou pedir para Kylee chamar um táxi para encontrar vocês... Hum... em frente à Biblioteca Central na Fourth Street com a Dever. É longe o suficiente e não estará dentro do cerco policial, e perto o bastante para que não seja tão cansativo para você na volta. Judson vai carregar todo o peso para você.
A mente de Lynette estava a mil. Ela está mandando Judson comigo para me forçar a voltar. Mas ele não passa de um robô quando Neferet não está por perto. Talvez eu consiga escapar, principalmente quando chegarmos à biblioteca. Alguém lá poderá...
– Permita que eu esclareça uma coisa, Lynette. Judson e você não estarão sozinhos. Eu jamais pensaria em deixá-los tão vulneráveis. Vários dos meus filhos irão acompanhá-los. – A Deusa acariciou uma das coisas rastejantes que estava enrolada na sua perna. – Eles também ficarão ansiosos para se aproximarem de você, se hesitar. Então, você e Judson terão mais em comum do que imagina... Tão mais.
Lynette ordenou os pensamentos. Trabalho! Eu tenho que me concentrar no trabalho!
– Algum problema, querida? Com certeza você não discorda da minha solução.
– Honestamente, eu concordo com a parte de sair. – Lynette se concentrou na única coisa normal que sobrara do seu mundo, concentrar-se em concluir um trabalho. – A polícia não está esperando que ninguém faça isso. Mas eu me preocupo com a volta. Você mesma disse que eles estão concentrados em manter as pessoas do lado de fora.
– Você está certíssima em se preocupar. Eu me esqueço de que você não consegue ler a minha mente, porque posso ler a sua tão facilmente. A resposta para o seu problema é bem simples. Devemos esperar até o sol se pôr para você começar a sua jornada. Na volta, os meus filhos vão fazer uma cortina de neblina e magia, sombras e fumaça, para que as Trevas a ocultem.
Lynette ficou boquiaberta e manteve os pensamentos cuidadosamente em branco, sem saber o que dizer.
– Você não precisa ficar preocupada. Ficar oculta pelas trevas não machuca nem dói. Bem, eu deveria dizer que não vai machucar nem doer para você. Os meus filhos precisam ser alimentados. Nesta noite, um motorista de táxi vai ganhar mais do que uma boa gorjeta! – A risada de Neferet foi cruel e ensandecida.
Lynette ergueu a taça e tomou um grande gole.
– Agora, mande esses súditos desarrumados para os seus quartos. Da próxima vez que os vir, quero ficar encantada. – Neferet bateu as mãos depois de suas ordens, como se fosse um faraó dispensando os seus escravos. – Lynette, talvez seja melhor você trocar o seu vestido por uma calça e uma blusa escura. Eu odiaria se você ficasse acidentalmente exposta demais. Você está liberada até o crepúsculo.
– Sim, Deusa.
Lynette fez uma reverência e se afastou, trêmula, seguindo para o elevador que a levaria até o loft no quarto andar que Neferet lhe dera. Quando entrou no elevador, cobriu a boca com as duas mãos, abafando um grito que não conseguia controlar. Pela primeira vez, Lynette compreendeu que não havia como sobreviver à loucura de Neferet, que a questão não era se ela ia morrer, mas como e quando.

15
Zoey
– Aquela é uma árvore enorme! Estou feliz por aquele estúpido apocalipse de gelo não a ter matado. Li alguma coisa online sobre quantas pereiras foram mortas neste inverno em T-Town, e foi um número insanamente alto – comentou Stevie Rae.
Ela estava espremida ao meu lado na van parecendo estar usando uma fantasia de fantasma de Halloween malfeita com um lençol branco cobrindo-a, a não ser pelos dois buraquinhos para os olhos. O sol já tinha quase se posto e não havia janelas na van, mas Thanatos nos avisara de que não poderíamos nos arriscar de forma nenhuma. Stevie Rae e Shaylin estavam completamente cobertas, e eram as únicas vampiras vermelhas e novatas que tiveram autorização para vir com a gente – contribuindo muito para a raiva de Stark.
– Não podemos arriscar os nossos recursos mais poderosos – explicou Thanatos para Stark quando ele protestou dizendo que com certeza viria comigo. – E o senhor, jovem Guerreiro, já provou ser valioso e um recurso.
Eu preferia que Stark estivesse comigo, mas concordei com Thanatos. Além disso, eu disse que não estaríamos longe da escola. Assim que o sol se pusesse, ele viria até nós.
Thanatos atrapalhou totalmente esse plano ao decidir que não; Stark não precisava vir ao nosso encontro. Era melhor que Stark e Aurox invertessem as posições por um tempo. Stark protegeria a escola. Aurox ia proteger o círculo – e a mim.
Eu teria protestado e ignorado as ordens de Thanatos. Tipo assim, Stark é o meu Guerreiro. Nem mesmo a Grande Sacerdotisa da escola poderia ficar mandando nele. Mas Kalona tinha que estar no Mayo enquanto Thanatos lançava o feitiço para se certificar de que, se, por algum motivo horrível, a magia não funcionasse bem como ela planejou, ele estaria lá para lutar contra qualquer coisa horrível que Neferet pudesse fazer. Então, Thanatos estava dispensando o seu Guerreiro porque aquilo era o melhor para todos. Seria infantil e egoísta se eu não fizesse o mesmo.
Stark sabia disso – eu via nos seus olhos enquanto nos afastávamos da escola, deixando-o para trás. E aquilo não facilitou nem um pouco as coisas.
– Z., você não ouviu uma palavra do que eu disse – reclamou Stevie Rae, esbarrando em mim quando não conseguiu chamar a minha atenção.
– Estou sim. A árvore é grande.
Deu para perceber que ela franziu as sobrancelhas pelos buracos do lençol.
– Eu disse bem mais do que isso, mas deixa pra lá, agora você está ouvindo. Você já esteve aqui antes? É bem mais legal do que achei que seria.
– Eu já vim aqui com a Vovó – respondi, tentando afastar a inquietação por ter deixado Stark para trás. – Ela gosta de vir aqui para assistir ao Busk de Ano Novo, mesmo que seja uma tradição Creek, e não Cherokee. Vovó diz que a tribo não importa tanto quanto a energia positiva.
– A sua avó é uma sábia – declarou Thanatos.
– O que é um Busk ? – quis saber Shaylin de onde estava, ao lado de Stevie Rae.
Ela estava segurando a sua vela azul do elemento água e o cobertor que a protegia do sol que descia no horizonte. Eu não a culpava pelo nervosismo. Eu praticamente roera todas as minhas unhas de nervoso.
– Eu pesquisei – respondeu Damien, pois eu estava ocupada demais com o meu diálogo interior. – É um ritual sagrado e adorável. O mais importante ritual anual dos povos Creek. As tribos se reuniam para fazer tudo, desde a purificação até resolver dívidas e controvérsias. O Busk foi instituído aqui em Tulsa em mil oitocentos e trinta e seis pelo clã Loachapoka da Nação Creek de Alabama. Eles foram forçados a abandonar os seus lares. Foi uma provação terrível para eles, não muito diferente da trágica Trilha de Lágrimas. Os sobreviventes mantiveram a Cerimônia do Busk em torno da árvore onde eles depositaram as cinzas dos seus lares queimados em Alabama, proclamado que eles eram os Tulsa-Loachapoka, e que este era o seu novo lar.
Ficamos todos em silêncio espiando pelo para-brisa da van, analisando a árvore e pensando no que Damien tinha acabado de contar. Eu conhecia a história. Vovó me contara na primeira vez em que vim ao pequeno parque que agora cerca o Council Oak Tree.
– Parece que o lugar é cheio de energia – disse Aurox atrás de mim.
– É mesmo, e vamos nos certificar de que a energia seja positiva – respondeu Thanatos.
– Você vai precisar me dizer o que devo e o que não devo fazer – pediu o detetive Marx.
Ele estava dirigindo. Thanatos decidira que ele e Aurox seriam os guardiões perfeitos para esse ritual. O detetive poderia ocupar-se com qualquer problema com os moradores, e Aurox poderia lidar com qualquer coisa sobrenatural. Nenhum dos dois parecia particularmente assustador. Marx era alto e estava em forma. Na verdade, ele meio que me lembrava John Reese da série Person of Interest (ele só precisava de um terno preto!). E Aurox, bem, Aurox parecia um garoto atraente. Alto, louro, forte. A única coisa estranha nele, a não ser que se transformasse em um touro horrendo, eram os seus olhos, e eles não eram tão ruins. A não ser que você realmente os encarasse. Eles pareciam ser azuis e...
– Zoey Redbird! Você tem que se concentrar!
A voz de Thanatos cortou a bruma mental dos meus pensamentos e eu dei um sobressalto.
– Eu estou concentrada – respondi automaticamente.
– Então, o que eu acabei de dizer ao detetive Marx? – ela quis saber, virando-se no assento para me lançar um olhar austero.
Suspirei.
– Sinto muito. Você está certa. Eu não estava concentrada. Vou tentar mais.
– Não tente! Faça! – ordenou ela.
Damien tornou o clima mais leve ao cochichar:
– Yoda?
Stevie Rae riu, e Shaylin cochichou de volta:
– Você é tão nerd .
Thanatos soltou um suspiro profundo e sua expressão relaxou.
– Estamos todos nervosos. Estamos agitados e não fará bem a ninguém se começarmos a descontar uns nos outros. Peço desculpas pelas minhas palavras duras. Então, permitam que eu comece novamente.
– Obrigada – agradeci. – Você tem toda a minha atenção.
– Assim como a minha – disse Damien.
– Eu estou ouvindo – declarou Stevie Rae.
– Eu também! – afirmaram Shaunee e Shaylin juntas.
Aurox e Marx não disseram nada, pois a atenção de ambos estava concentrada em Thanatos durante todo o caminho.
– Muito bem, todos vocês – disse Thanatos. – Como eu estava dizendo para o detetive Marx, agradeci por ele ter vindo aqui mais cedo para destrancar os portões a fim de que pudéssemos ter acesso à árvore sagrada.
– Não precisa agradecer – respondeu Marx. – Eu também trouxe a mesa de ferro batido que você pediu. Eu a coloquei embaixo da árvore, alguns passos na direção sul de sua base, conforme você disse. Está tudo certo?
Estacionamos no local onde a calçada dava para a escada que levava ao Council Oak Park. O terreno onde a árvore se encontrava formava um pequeno monte, que ficava no meio da vizinhança. Ele recebera grades de proteção, mas o portão estava aberto e uma mesa de ferro batido estava sob a árvore.
– Excelente – elogiou Thanatos. Ela ergueu a cesta que trouxera consigo e continuou a explicação:
– A partir deste momento, é da maior importância que cada um de vocês se concentre naquilo que deseja proteger, ou seja, Tulsa contra as Trevas de Neferet. E no motivo pelo qual desejam protegê-la: porque desejam restaurar o equilíbrio entre a Luz e as Trevas.
– Até Aurox e eu? – perguntou o detetive.
– Com certeza – respondeu Thanatos. – Vocês não estarão no círculo, mas a sua energia o afetará. Por que acham que escolhi vocês dois como Guardiões?
Foi Aurox quem respondeu:
– Você está nos usando porque somos dispensáveis.
Marx ergueu as sobrancelhas. Começou a falar, mas Thanatos foi rápida ao responder:
– Vocês não são dispensáveis – declarou ela em tom sério. – Escolhi vocês porque o caráter de ambos é o de proteção. E é exatamente desse tipo de energia que precisamos para cercar este ritual. E fique sabendo, jovem Aurox, que eu não uso as pessoas.
Aurox assentiu devagar.
– Eu agradeço por ter me explicado isso, Grande Sacerdotisa.
– É, é bom saber – declarou Marx.
– Agora, Shaunee, como você sabe, o elemento mais importante para este ritual é o fogo.
– Eu sei – confirmou Shaunee.
– Gostaria que você levasse o cálice sagrado, os fósforos do ritual e a mistura de óleo e canela que eu trouxe na bexiga de touro e colocasse tudo em baixo da mesa de ferro. – Thanatos passou o grande cálice de cristal, lindamente lapidado, com a imagem de Nyx à sua volta, um tipo de bolsa marrom cheia de um líquido empapado, e uma caixa comprida com os fósforos do ritual para Shaunee. – Antes de assumir o seu lugar ao sul, coloque o óleo de canela no cálice e deixe os fósforos em cima da mesa.
– Eu posso fazer isso – respondeu Shaunee. – E eu reli o ritual no meu Manual do Novato . Estou pronta para fazer o restante da minha parte também.
– Ótimo. Estou contando com o seu apoio e o do seu elemento.
– E você o tem. Eu prometo.
– Obrigada, filha – agradeceu Thanatos. – Além disso, peço apenas que vocês cinco definam e mantenham a sua intenção forte, não importa o que aconteça do lado de fora, ou de dentro, do círculo. Eu farei o resto.
A minha intuição começou a me alertar sobre algo que não compreendi, e não consegui evitar a pergunta:
– Vai acontecer alguma coisa estranha dentro do círculo.
– Estranha? Não. Não é estranho que um Ritual Maior drene a Grande Sacerdotisa que o está lançando. Mas vocês devem se preparar para o que pode acontecer comigo.
– Você vai ficar bem, não é? – quis saber Stevie Rae.
– Acredito que sim, mas talvez não até depois de eu não precisar mais manter o feitiço.
– Até lá, o que nos espera? – perguntou Damien. – Estudei o Ritual de Proteção de Cleópatra. Não aconteceu nada com ela quando o lançou.
– Cleópatra teve tempo de jejuar e se preparar. Eu não tive esse privilégio. Vocês só precisam saber que, mesmo depois de eu falar para vocês fecharem o círculo, não podem me mover. Eu preciso permanecer neste lugar de poder, canalizando a energia protetora da terra para que o feitiço continue eficaz.
– Mas não podemos simplesmente deixá-la aqui sozinha – disse Damien.
Um movimento do lado de fora da van chamou a minha atenção, e meus olhos se arregalaram com a feliz surpresa.
– Não acho que Thanatos vai ficar sozinha – declarei, apontando para o pequeno Fusca azul que tinha estacionado do outro lado da rua.
Enquanto olhávamos, Vovó, irmã Mary Angela, rabina Margaret Bernstein e Suzanne Grimms saíram do meu carro.
Vovó as levou até o lado do passageiro da van, onde aguardaram, pacientemente, enquanto Thanatos abria a janela.
– Merry meet , Grande Sacerdotisa – disse Vovó com um grande sorriso.
– Sylvia? Mas o que você e essas senhoras estão fazendo aqui? – perguntou Thanatos.
– O meu espírito me disse que você precisava de alguém para tomar conta de você. Estamos aqui para isso – respondeu Vovó de forma simples. – Já purifiquei cada uma de nós, e definimos a nossa intenção de proteger Tulsa. Estamos prontas para prosseguir quando você estiver.
Thanatos enfiou a mão pela janela aberta para pegar a mão de Vovó.
– Obrigada, amiga... Amigas – agradeceu ela com voz rouca de emoção.
– O sol acabou de se pôr! – exclamou Stevie Rae, retirando o lençol.
– Chegamos na hora certa – declarou irmã Mary Angela.
– Então, vamos começar – decidiu Thanatos. – Zoey, como espírito, por favor, leve os seus elementos para o espaço em volta da árvore. Você deve ficar à cabeceira da mesa, de costas para Stevie Rae. Você irá girar comigo conforme eu invocar cada um dos elementos.
– Entendi – respondi.
– Todos estão com suas velas? – Nós cinco erguemos nossos pilares rituais. Thanatos sorriu. – Vejo que o meu círculo está pronto. Zoey pode continuar. E que Nyx esteja conosco.
Automaticamente, sussurrei a resposta:
– Que Nyx esteja conosco .
Assim como todos os outros reunidos ali, de forma que a bênção pareceu ecoar à nossa volta com intensidade mágica.
Isso é bom , pensei. Bom demais.
Respirei fundo e abri a porta da van. Esperei na calçada até que os meus cinco amigos estivessem comigo e, então, como o Flautista de Hamelin, eu os guiei pelas escadas, passando pelos portões, até chegarmos à árvore.
O carvalho antigo parecia crescer à medida que nos aproximávamos. Seus galhos se espalhavam acima, para os lados e para baixo. Eu conseguia ver que ele estava se abrindo, mas nenhuma folha se formara ainda. Mesmo assim, alguns galhos grandes tocavam o chão. Eu os contornei até chegar à mesa de ferro colocada sob ele. Shaunee ficou comigo, mas Damien, Shaylin e Stevie Rae tomaram os seus lugares silenciosamente, formando um círculo ao meu redor. Vi Vovó e as outras mulheres entrarem pela cerca, mas elas tomaram o cuidado de ficar do lado de fora da circunferência do círculo que Thanatos logo invocaria. Detetive Marx e Aurox ficaram do lado de fora das grades. Mantendo a atenção para o lado de fora, começaram a andar pelo perímetro, agindo de forma vigilante e preparada.
Shaunee derramou o líquido grosso no cálice de cristal. Inspirei profundamente o cheiro familiar de canela. Nossos olhares se encontraram por um breve instante quando ela terminou.
– Abençoada seja – disse eu de forma suave.
– Abençoada seja também – respondeu ela antes de assumir a sua posição.
Um movimento perto do portão chamou a minha atenção. Thanatos estava tirando o manto que estivera usando. A minha respiração ficou presa na garganta quando ela deu um passo à frente. A grande Sacerdotisa estava usando um vestido longo e escarlate que parecia ter vida própria. Conforme ela se movia, a cauda do vestido se erguia e ondulava. A não ser pela cauda, o vestido se ajustava a todas as suas formas – gola alta e manga comprida –, então parecia que ela tinha mergulhado em sangue fresco e brilhante. Não usava qualquer joia. O único adorno era um cinto de couro trançado ao redor dos quadris, no qual uma bainha estava pendurada. O cabo do punhal, uma adaga de rituais, que descansava ali, era cravejado de rubis que brilhavam sob luz fraca.
Ela começou imediatamente, pegando a caixa de fósforos do ritual e seguindo até Damien. Eu estava voltada para a direção leste junto dela. Thanatos acendeu a vela e tocou a chama na vela amarela do ar de Damien.
– Ar, em nome de Nyx, eu o convoco para este círculo.
O cabelo de Damien se levantou quando o seu elemento se juntou a ele.
Thanatos seguiu no sentido horário para onde Shaunee se encontrava, aguardando-a com a vela vermelha erguida.
– Fogo, em nome de Nyx, eu o convoco para este círculo.
Thanatos nem precisou tocar com o fósforo na vela de Shaunee. Ela se acendeu sozinha, e o sorriso de Shaunee era tão brilhante quanto o seu elemento.
Thanatos continuou seguindo para oeste e para Shaylin.
– Água, em nome de Nyx, eu a convoco para este círculo.
Senti o cheiro do sal do oceano despertado pela vela que tomou o círculo.
A Grande Sacerdotisa seguiu adiante e se postou em frente a Stevie Rae, tocando a sua vela verde com o fósforo dizendo:
– Terra, em nome de Nyx, eu a convoco para este círculo.
O cheiro do campo de lavandas da Vovó emanou no círculo. Ouvi o riso feliz da Vovó, e soube que os nossos elementos estavam tomando o lugar sagrado.
Então, Thanatos estava diante de mim.
– Espírito, em nome de Nyx, eu o convoco para este círculo. – Ela acendeu a minha vela púrpura e eu senti um ímpeto de felicidade me tomar quando o espírito completou a invocação.
– Ah, que lindo isso! – exclamou a rabina Bernstein, e eu ergui o olhar da minha vela para ver um filete prateado flutuando sobre o círculo, ligando cada um dos elementos.
– Obrigada, Deusa. Por favor, continue comigo e me dê forças. Aconteça o que acontecer, eu aceito de bom grado o meu destino. Tenho dito; que assim seja.
Thanatos falou com voz suave e respeitosa. Fechou os olhos e inspirou e expirou três vezes. Então, sem hesitar, pegou o cálice sagrado com a mão esquerda e, entornando o líquido na mão direita em concha, ela se aproximou de Damien e começou a caminhar lentamente pelo círculo, salpicando o óleo no chão. Enquanto caminhava, lançava o feitiço:
Eu invoco o elemento fogo para vigiar, abençoar e guiar este Ritual. Em honra ao fogo, eu unto o círculo com óleo de canela derramado no cálice pela novata Shaunee, adorada pelo elemento fogo. Proclamo a minha Intenção de buscar a proteção do fogo para Tulsa. Para demonstrar a pureza da minha Intenção, proclamo estas verdades antigas declaradas pela primeira vez há muito tempo quando Cleópatra, uma outra filha de Nyx, o invocou.
Em uma voz alta, clara e cheia de poder, Thanatos exclamou as proclamações do Egito antigo:
Salve, Nyx! Ao fazer este feitiço eu não faço nenhum mal!
Salve, Aquela Cujos Olhos Estão em Chamas! Eu não maculo a Deusa em pensamento nem em ações!
Salve, Árbitra das Promessas Vãs! Eu não me inflamei com raiva!
Salve, Deusa que Tudo Vê e que Provê para os Seus Filhos! Eu não amaldiçoo em Seu nome!
Quando Thanatos voltou ao centro do círculo, este estava tomado pelo cheiro de canela e por uma sensação elétrica maravilhosa causada pela magia poderosa que trazia.
Thanatos acendeu o óleo que restou no cálice e ele ardeu com uma chama forte tão vermelha quanto o seu vestido – tão vermelha quanto a vela de Shaunee. Ela ergueu o cálice acima da sua cabeça, dizendo:
– Com a pura Intenção do Ritual, seguro o fogo para este juramento de proteção. A sua força está em mim, e, através de mim, a sua chama durará, consumindo com sua força qualquer um cujo desejo para Tulsa seja malévolo ou violento. Peço especialmente que a chama proteja o coração da cidade, onde as Trevas se encontram. Enterre ali todas as intenções negativas e não permita que o mal escape desta chama!
Enquanto as palavras de Thanatos ainda ecoavam à nossa volta, ela segurou o cabo da sua adaga, retirando-a da bainha. Ainda segurando o cálice em chamas, ela se aproximou de Shaunee, que ofereceu o seu pilar para a Grande Sacerdotisa. Thanatos curvou a cabeça em sinal de respeito, agradecendo:
– Obrigada, Filha do Fogo, pelo dom do seu elemento.
Então, ela pegou o pilar de Shaunee e o jogou no cálice. Enquanto a chama consumia a vela, ficando mais alta e mais quente, Thanatos não piscou. Ela ergueu o cálice e passou três vezes a lâmina da adaga lentamente pela chama, recitando as palavras poderosas:
– Eu e esta chama somos um. Mesmo sob o brilho do sol, eu entro no fogo protetor. Eu saio do fogo, a luz do sol não vai me partir, vós que conheceis a minha intenção pura não me queimais, mas vosso fogo manterá esta cidade segura, cortando como esta faca corta a cera qualquer um que se atreva a desafiar este Ritual!
Com a lâmina da adaga quente e brilhante, Thanatos entalhou a palavra TULSA no corpo da vela vermelha acesa. Então, caminhou até mim. Seu rosto brilhava com o suor. Seu cabelo comprido e prateado estava grudando nele. Sua respiração era ofegante, mas ela não parecia ter se queimado – parecia estar apenas com calor e cansada.
– Obrigada, espírito, pode partir agora. Abençoado seja.
Apaguei a minha vela com um sopro, triste, como sempre, de me despedir do meu elemento favorito.
Thanatos, então, foi até Stevie Rae, Shaylin, Shaunee e Damien – para agradecer e abençoar a cada um dos elementos, até que o filete prateado desaparecesse como uma chuva de purpurina. Thanatos se juntou novamente a mim na mesa no centro do círculo, colocando o cálice com a chama ainda acesa sobre a mesa e observando atentamente enquanto a vela era totalmente consumida pelo fogo. Quando as chamas desapareceram, Thanatos ergueu a sua adaga e a cravou na terra aos seus pés, exclamando:
– E assim eu fiz um feitiço de proteção para você, o que Nyx decretar a seguir, que assim seja!
Enquanto a adaga era enterrada até o cabo, o céu ao norte de onde nos encontrávamos, no coração do centro da cidade de Tulsa, iluminou-se de vermelho em uma explosão de luzes cor de sangue. Foi seguido por um berro cheio de loucura e raiva que ecoou pelo céu noturno.
– Oh, abençoada seja. O feitiço funcionou – informou Thanatos, e então desmaiou, caindo inerte no chão.
– Thanatos!
Eu queria correr para ela, mas, de repente, as minhas pernas pararam de funcionar. Dei um passo, e elas viraram gelatina e eu caí de joelhos. Pasma, eu vi que Shaunee caiu também. Virei-me para chamar Damien a tempo de ver os seus olhos se revirarem enquanto ele desmaiava. E, então, a terra cheia de poder abaixo de mim pareceu girar; de alguma forma, caí de costas ouvindo um som retumbante nos meus ouvidos, olhando para cima por entre os galhos do Council Oak Tree para o céu claro noturno. E vi manchas de luz enquanto a minha visão se fechava e, então, tudo ficou negro e em silêncio.

16
Neferet
– Lynette, querida, você fica linda de preto, e o corte clássico dessa calça combina com você. Acho que calça de tecido é tão mais atraente do que jeans, você não acha?
– Acho. O jeans denigre a moda feminina. – Lynette estremeceu. – Eu detesto particularmente o modelo que chamam boyfriend . Será que essas garotas não se olham no espelho? Onde será que estão as suas mães? É uma vergonha.
Neferet se iluminou ao olhar para a sua súdita. Era aquela franqueza e preconceito em relação à sua própria raça que a Deusa achava tão revigorante em Lynette. Mesmo agora, quando sentia as ondas de medo e nervosismo fluindo pela mulher, Lynette conseguia participar de uma conversa honesta e interessante com ela.
– Quando eu era criança, as mulheres não usavam jeans. Havia muitas coisas que precisavam mudar quando chegamos ao século vinte, mas a aceitação daqueles macacões horrorosos como moda feminina não era uma delas – disse Neferet.
– Eu não poderia concordar mais. Não sou uma deusa, não vivi no século dezenove... – Lynette fez uma pausa e uma reverência graciosa para Neferet, que nunca deixavam de agradar a Deusa. – Mas sei que a moda era mais adequada naquela época.
– Você é tão sábia, minha querida. E é por isso que eu espero participar de um evento de adoração espetacular que você produzirá assim que chegar com as novas fantasias. Está preparada para a sua aventura?
Lynette empalideceu um pouco, mas fez um ligeiro gesto de aquiescência com a cabeça e respondeu exatamente o que Neferet queria ouvir:
– Se você acredita que eu estou preparada, então estou preparada.
– Judson, certifique-se de cuidar bem de Lynette. Ela é a minha súdita favorita e eu ficaria extremamente insatisfeita se qualquer coisa acontecesse com ela.
– Sim, Deusa – foi a resposta automática de Judson.
A sua ordem para Judson foi um recado para Lynette. Neferet não esperava outra resposta do mensageiro possuído. A gavinha das Trevas aninhada dentro dele se certificaria da sua total cooperação e lealdade, mas a querida Lynette precisava ser lembrada de que, mesmo que estivesse longe das suas vistas, não estaria fora do alcance do seu poder. A Deusa adorava a sua humana de estimação. Mas isso não significava que confiava nela.
Neferet olhou para baixo para as suas gavinhas das Trevas que estavam sempre se mexendo à sua volta.
– Você, você e você. – Ela acariciou três das mais robustas coisas rastejantes com o seu dedo, apreciando a sensação fria e maleável do corpo delas. – Ordeno que acompanhem Lynette e Judson. Permaneçam ocultas dos olhares humanos. Cada uma de vocês pode se alimentar de um humano como um sacrifício, depois que Lynette fizer as suas compras e estiver em segurança e fora da loja de fantasias. E se vocês comerem o motorista de táxi, certifiquem-se de que ele já tenha trazido Lynette e Judson para os fundos da biblioteca. Então, essas são as minhas ordens: com a noite e as brumas e a magia tornada realidade, Lynette e Judson devem ser protegidos. Tragam-nos de volta, inteiros e em segurança; então, eu lhes darei as boas-vindas com alegria!
As gavinhas escolhidas estremeceram de prazer enquanto ela as acariciava, recitando as palavras rítmicas que tornavam as suas ordens um feitiço de ligação. Neferet sentiu o medo e o nojo de Lynette. A Deusa sabia que os seus filhos despertavam a repulsa nos humanos, e que o maior medo de Lynette não era a morte, mas ser possuída por um deles. Mas a humana nunca demonstrava a sua repulsa. Ela sempre usava uma máscara mais agradável, e Neferet apreciava o talento e a sagacidade de Lynette ao fazer isso.
Também lhe agradava o fato de que Lynette faria qualquer coisa para Neferet a fim de não ser possuída. Esse era o tipo de lealdade que Neferet compreendia e podia controlar. Ela sorriu para a sua súdita favorita.
– Lynette, para mostrar o grande apreço que tenho por você, decidi eu mesma ocultá-la enquanto deixa o meu Templo. Pensei cuidadosamente sobre isso e acredito que não é certo você ter de pisar no lixo e se sujar ao meu pedido.
– Ora, eu fico agradecida, Deusa – respondeu Lynette, surpresa de verdade.
Neferet riu e fez um gesto para que Lynette a acompanhasse pelo salão até o grande vestíbulo e as portas de bronze e vidro.
– Não seria melhor esperarmos mais um pouco? – perguntou Lynette, tentando, valentemente, esconder o medo. – O sol acabou de se pôr. Ainda não parece ter escurecido completamente.
– Você não precisa se preocupar com nada – assegurou Neferet, envolvendo os ombros de Lynette com um braço. – Não precisa estar totalmente escuro para eu convocar o poder da noite e ocultá-la. – Ela fez uma pausa quando passaram pelo balcão da recepção. Kylee, é claro, estava a postos e atenta no seu lugar. – Tem algum humano espreitando do lado de fora do meu Templo?
– Não que eu tenha visto, Deusa. Até mesmo a polícia está mantendo a distância.
– Excelente, embora eu só esteja perguntando para me divertir. Lynette, fique certa de que eu posso ocultá-la tão completamente que mesmo a força policial inteira a observe e não veja nada, a não ser sobras e brumas.
– É bom saber disso – respondeu Lynette.
– Kylee, chame um táxi para Lynette e Judson. Diga ao motorista para encontrá-los na entrada principal da Biblioteca Central.
– Sim, Deusa.
– Agora, Lynette, preciso que você venha comigo até a porta. Vou convocar as brumas e as sombras aqui de dentro e, quando eu fizer um movimento para você – Neferet estendeu a mão em um gesto nobre em direção às portas –, então você e Judson poderão sair. Sigam depressa para a Denver Street. Não vamos querer que o táxi vá embora deixando vocês lá, sozinhos, com os meus filhos famintos, não é mesmo?
– Não, não queremos isso – apressou-se Lynette a concordar. Então, acrescentou: – Deusa, posso fazer uma pergunta?
– É claro, minha querida.
– Como é que eu vou passar pela sua... – A humana hesitou, obviamente lutando para encontrar a palavra correta. – A sua cortina de proteção? – escolheu ela, por fim.
– Ela se abrirá facilmente ao meu comando. – Neferet percebeu que Lynette ainda estava com alguma dúvida. – Se tem alguma coisa te preocupando, diga-me e eu vou providenciar para que você não se preocupe mais.
– É o sangue e o fedor. Estou preocupada que isso grude nas minhas roupas – confessou Lynette rapidamente.
– É claro que isso iria preocupá-la. Isso não seria nada adequado enquanto você estivesse fazendo as suas compras, além de chamar muita atenção. Não precisa se preocupar com isso, querida, você e Judson vão passar pela barreira sem ser tocados.
– Obrigada, Deusa – agradeceu ela, com alívio sincero.
– De nada, querida. E, agora, eu vou enviar você com o meu feitiço.
Neferet se voltou para as portas e ergueu os braços, olhando pelo vidro coberto de Trevas para a noite lá fora.
Ouçam-me, sombras e trevas do além,
Ao meu comando digam amém.
Ocultem os meus servos com a noite e o negror
Escondidos pela vontade criada pelo meu ardor.
Nenhum olho, que não das Trevas ou meus, os veja
Que as sombras os protejam e que assim seja!
Neferet sentia o poder da noite pulsando além do seu Templo. As coisas que vinham da noite – as sombras mais profundas, a escuridão que nem mesmo a lua cheia conseguia penetrar –, eram as que respondiam ao seu chamado. A reação delas vibrava em seu corpo no ritmo do seu coração. Ela as juntou, concentrando-se na sua vontade, e preparou-se para soltar aquelas coisas escuras e secretas para que elas pudessem ocultar Lynette e Judson, assim como costumavam ocultar os seres que optavam por segui-las.
Foi um instante antes de Neferet liberar o feitiço que ela sentiu. Pareceu que a pele do seu Templo tinha estremecido. O pensamento de que algo estranho tinha acontecido cruzou a sua mente, mas Neferet estava concentrada demais na sombra e na noite para prestar atenção. Em vez disso, abriu os braços em direção às portas e, enquanto o seu feitiço de ocultação da noite aguardava, ela fazia com que os seus filhos jurados e cheios de sangue se abrissem para a passagem de Lynette e Judson.
Como Neferet esperava, Lynette não se permitiu hesitar. A Deusa lera na mente da humana que, para ela, hesitação era o mesmo que franqueza, e Lynette não desejava dar qualquer sinal de fraqueza. Então, ela foi até a porta, abriu-a e caminhou decididamente pela cortina de sague que se abriu e entrou nas sombras que a ocultariam.
– Bem, o que vocês estão esperando? – Neferet lançou um olhar irritado para Judson e as três gavinhas. – Sigam Lynette!
Judson caminhou mecanicamente com as três gavinhas das Trevas grudadas às suas pernas, mas em vez de passar pela cortina do Templo e mergulhar nas sombras de ocultação que Neferet convocara, eles bateram em uma parede de fogo escarlate.
Por um momento, Neferet ficou chocada demais para responder. Ficou ali olhando para Judson, que gritava e batia nas próprias roupas para apagar as chamas. As três gavinhas o deixaram no instante em que o fogo apareceu, rastejando de volta para ela.
– Ocultamento, suma! – Um som como o de um trovão seguiu o comando, e uma explosão de luz prateada passou pelo manto de sombras de Neferet, expondo uma Lynette de olhos arregalados, congelada de terror no meio da calçada.
Também expôs o imortal, que caminhou até o meio da rua, com suas asas abertas e a lança erguida em posição de batalha. Aquele era todo o estímulo de que Neferet precisava.
– Crianças! Detenham Kalona e eu permitirei que se banqueteiem com o seu sangue imortal! – rosnou ela.
Suas gavinhas das Trevas saíram de todos os cantos sombrios, partindo na direção de Kalona. Quando a primeira onda delas bateu na cortina de proteção, a parede de chamas voltou à vida, engolindo-os inteiros.
– Não! Crianças! Voltem. Voltem para mim! – As gavinhas que não tinham sido consumidas pelas chamas rastejaram de volta e se enrolaram no seu corpo. – O que você fez? – berrou ela para Kalona.
– Mudei de lado. Se você não estivesse tão concentrada em si mesma, teria notado antes de agora – disse ele. Então, estendeu a mão para Lynette. – Venha comigo e eu a libertarei dela.
– Ela é a minha Deusa. Eu não posso.
Incrédula, Neferet percebeu que Lynette soava resignada, até mesmo enojada, e nem um pouco respeitosa. Isso a deixou furiosa.
– Volte para mim, Lynette! Eu ordeno!
Kalona ignorou Neferet. Sua mão ainda estava estendida para a humana, enquanto explicava:
– Nós a aprisionamos. Nada que tenha a intenção de fazer o mal poderá sair ou entrar no seu Templo. E Neferet é incapaz de se livrar da sua intenção de fazer o mal. Venha comigo e você estará segura contra ela.
Lynette hesitou. Olhou para Neferet, obviamente avaliando a situação.
– Você é uma súdita! Deve obedecer às minhas ordens.
Sem conseguir se conter, Neferet começou a avançar, determinada a obrigar Lynette a lhe ser leal – até que um muro de fogo explodiu com uma intensidade que a queimou. A Deusa cambaleou para trás, berrando de raiva e de dor tão alto que seus gritos divinos cortaram o céu noturno.
Lynette deu as costas para Neferet e pegou a mão de Kalona.
– Tire-me daqui!
– É isso que eu farei – respondeu ele.
– Lynette, ouça bem! – berrou Neferet para as costas da humana. – Vou conseguir quebrar este feitiço, vou me libertar e, quando eu fizer isso, não existirá nenhum lugar neste reino ou em qualquer outro no qual você poderá se esconder de mim. Vou encontrá-la e tomá-la por minha!
Lynette tropeçou, mas a mão forte de Kalona a manteve em pé. Ele continuou caminhando, ignorando Neferet.
– Kalona, ouça bem! Quando eu me libertar, também vou perseguir você. Nunca se esqueça de que eu já o dominei para fazer os meus desejos uma vez. Eu farei isso de novo!
O imortal alado nem se dignou a olhar para ela. Ele gritou por sobre o ombro:
– Eu me lembro bem. E também lembro que não conseguiu me manter ligado a você.
– Da próxima vez, não serei tão magnânima. Da própria vez que nos encontrarmos, eu juro, vou destruir você como Nyx deveria ter feito quando você a traiu!
Isso fez com que o imortal parasse. Ele se virou para encontrar o seu olhar e, em uma voz que parecia compartilhar do poder da parede de fogo, Kalona trovejou para ela:
– Você sabe por que Nyx não me destruiu quando eu escolhi Cair? Porque Nyx é uma verdadeira Deusa: amorosa, benevolente, leal e bondosa. Você? Você é uma criança petulante, uma impostora e usurpadora. Não importa quanta vingança você cuspa ou quanto caos você crie, jamais será uma Deusa!
Enquanto ele e Lynette se afastavam na noite, Neferet berrava a sua fúria para os céus.
Zoey
Quando acordei, senti o cheiro delicioso e familiar de milho assado e manteiga derretida. Ainda não totalmente desperta, sorri. Eu estava na casa da Vovó. A Vovó preparava o melhor milho do universo.
Então, cometi o erro de abrir os olhos. Eu estava deitada em um dos edredons da Vovó, mas definitivamente não estava na sua casa. Estava olhando para o céu noturno por entre os galhos de um carvalho gigantesco. Então, as lembranças voltaram junto com os meus sentidos, e eu me sentei.
– Devagar, Zoey. Você ainda não deve tentar se levantar – disse a irmã Mary Angela, enquanto se apressava na minha direção e avisava por sobre o ombro: – Zoey acordou.
– Aqui, beba isto.
Ela me entregou um copo de plástico. Senti o cheiro de vinho com sangue e minha boca começou a aguar. Contudo, hesitei ao pegar o copo. Pareceu-me estranho, até mesmo desrespeitoso, aceitar sangue e vinho de uma freira.
Ela deu uns tapinhas no meu ombro.
– Isso vai ajudá-la. Tome, beba e se alimente.
– Obrigada. Eu não disse isso para você ultimamente, mas realmente aprecio como você tem sido ótima. Você... você significa muito para mim. – Funguei, sentindo as lágrimas fecharem a minha garganta.
Irmã Mary Angela sorriu.
– Obrigada, Zoey. Eu sei que você está sendo sincera, mas prometo que não estará mais tão sensível depois que beber isto.
– Tudo bem.
Funguei de novo e peguei o copo. Não gosto muito de vinho, principalmente de vinho tinto, mas, por mais perturbador que isto seja, eu amo sangue . O sangue no vinho fez com que ele parecesse chocolate derretido, escuro e cremoso. Minhas papilas gustativas registraram a gostosura imediata, e então, um instante depois, o poder passou pelo meu corpo, limpando as lágrimas dos meus olhos e afastando as brumas do meu cérebro. Olhei à minha volta e logo vi Stevie Rae, Damien e Shaylin. Estavam todos acordados, diante de uma grelha a carvão e comendo milho assado. Bem, pelo menos não foi a minha imaginação . Sorrindo, Vovó estava vindo na minha direção com uma espiga de milho em um prato de papelão e segurando outro copo de plástico. Abri um sorriso para ela até me perceber quem eu não tinha visto.
– Onde estão Thanatos e Shaunee?
Vovó me entregou o prato e disse:
– Coma e termine de se fortificar, u-we-tsi-a-ge-ya . Thanatos está lá dentro, sendo bem cuidada.
Ela fez um gesto com a cabeça em direção a algum lugar atrás de mim, e eu me virei de forma a olhar para a enorme base do carvalho.
Uma lona branca havia sido presa nos galhos mais baixos, formando uma pequena tenda sobre a mesa de ferro do ritual. Suzanne Grimms e a rabina Bernstein estavam sentadas uma de cada lado da abertura da tenda. As mulheres estavam de olhos fechados e com as mãos cruzadas em oração silenciosa e meditativa. Pela abertura da tenda, vi que as cinco velas foram colocadas na mesa e estavam acesas. Elas conferiam um brilho bruxuleante e quente sobre um monte de cobertores na base da mesa e a figura imóvel que estava deitada na maca. Também vi Shaunee sentada ao lado da maca. Ela estava bebendo em um copo também. Havia duas espigas de milho mordidas no prato de papelão ao seu lado. Nossos olhares se encontraram e ela deu um sorriso sombrio.
Comecei a me levantar, mas Vovó segurou o meu ombro, acomodando-se ao meu lado.
– Coma e beba primeiro. Salvo Thanatos, você foi a última a acordar.
– Então, ela está bem? Ela só está dormindo? – perguntei com a boca cheia de milho.
– Ela parece bem, apesar de não acordar. Diga-me, Zoey Passarinha, você se lembra dos seus sonhos?
Neguei com a cabeça.
– Só me lembro de ter visto todo mundo desmaiando antes de eu mesma desmaiar. Então, senti o cheiro de milho e achei que estivesse na sua casa.
Ela sorriu de novo.
– Trouxe tudo comigo. Sempre se come milho depois da Cerimônia do Busk . Achei que isso seria apropriado para essa cerimônia também.
– É perfeito, Vovó. E gostoso também, como sempre. – Mastiguei rápido e engoli, e então perguntei: – O feitiço funcionou de verdade? Tulsa está protegida contra o Mayo?
– Bem, eu não sei quanto ao Mayo, mas Tulsa está protegida contra o resto do mundo.
Ergui o olhar e vi o detetive Marx se aproximando de mim. Ele estava segurando o telefone e tinha uma expressão chocada no rosto.
– O que você quer dizer com isso? – perguntei.
– Significa que o feitiço antigo que Thanatos lançou está funcionando exatamente como o que Cleópatra lançou em Alexandria. As ligações de emergência não param de chegar. Parece que existe um muro de fogo seletivo prendendo algumas pessoas dentro dos limites da cidade e impedindo que outras entrem em Tulsa. E isso inclui uma equipe do FBI que deveria ser o nosso reforço.
– O feitiço de Thanatos pediu que ninguém com más intenções entrasse ou saísse de Tulsa – respondi. – Uau! Está funcionando mesmo!
– O FBI pode ser um saco, mas eles não desejam o nosso mal – declarou Marx.
– A intenção deles é violenta. Você acha que a violência é algo positivo ou negativo? – perguntou Aurox, juntando-se a nós.
Marx franziu as sobrancelhas.
– Se eu tivesse de fazer uma classificação fora de contexto, diria que a violência é algo negativo, mas existem muito mais coisas além disso. A violência pode ser usada de forma positiva, para proteger e servir. Sei um pouco sobre isso.
Vovó assentiu, concordando.
– Nós sabemos muito bem disso, detetive. Afinal, esse é o seu trabalho.
– E o meu – completou Aurox. – É por isso que eu o compreendo de forma tão íntima. Seja com boas ou más intenções, existem escolhas que podem ser feitas que não incluem violência. Thanatos já viu mortes o suficiente para compreender isso também. Ela lançou um feitiço tão essencial e básico quanto a magia antiga, e, como Zoey poderá explicar para você, a magia antiga funciona com base na intenção mais do que qualquer outra coisa.
– A intenção de Thanatos não foi apenas deter Neferet. Foi também evitar a violência e o caos presentes no nosso mundo desequilibrado – expliquei.
– Você compreende – declarou Aurox.
Comecei a dizer que eu não apenas o compreendia como também concordava com ele, quando o celular em meu bolso começou a vibrar loucamente.
– Sinto muito, achei que tinha desligado – disse eu, pegando o aparelho no bolso para ver a foto de Aphrodite piscando na tela.
– Fale com a sua Profetisa.
– Alô – atendi à chamada.
– Volte para cá. Agora – disse Aphrodite.
– O que está acontecendo?
– Kalona acabou de chegar. O feitiço funcionou. Uma das reféns de Neferet conseguiu sair. E dizer que Neferet está zangada é o mesmo que dizer que Louis Vuitton faz bolsas bonitinhas. Ou seja, é muito pouco para condizer com a realidade.
– Tudo bem. Já estamos indo. – Desliguei o celular e olhei para todos que estavam à minha volta, que agora incluía Stevie Rae, Damien e Shaylin. – Funcionou. Totalmente. E Kalona pegou uma das reféns. Estão esperando por nós na Morada da Noite.
– Neferet vai ficar furiosa – disse Vovó.
– E difícil de conter – reforçou Damien.
Olhei para a tenda em que Thanatos estava a tempo de ver Shaunee se aproximar de nós. Ela parecia cansada, mas bem.
– O feitiço funcionou – contei para ela.
Shaunee assentiu.
– Eu sei. Consigo sentir cada vez que o muro de proteção se acende.
– Você deve comer mais – orientou Damien. – Não parece fortalecida ainda.
– Vou pegar alguns dos sanduíches que eu trouxe e mais milho – disse Vovó, enfiando a mão na sua cesta de piquenique sem fundo.
– Você parece estar muito cansada. Está tudo bem? – perguntei a Shaunee.
Ela não respondeu por um tempo, e eu comecei a me preocupar. Por fim, ela disse:
– Não estou mal, mas também não estou bem. E posso dizer o mesmo em relação a Thanatos.
– Ela já acordou?
Espiei a tenda, atrás de Shaunee, mas tudo que vi foi a forma inerte da Grande Sacerdotisa.
– Ela não está dormindo – explicou Shaunee –, está meditando. É apenas o poder da sua intenção misturado com o poder do meu elemento que está mantendo o feitiço.
– Por quanto tempo vocês vão conseguir mantê-lo? – quis saber o detetive Marx.
Shaunee curvou os ombros.
– Não sei. É muito difícil, de verdade. Drena as nossas forças. É como se eu estivesse correndo uma maratona sem me mexer. Não sei como Cleópatra conseguiu manter o feitiço por todos aqueles anos.
– Ela ostentava magia antiga. – Eu me sentia superculpada. – Queria poder ajudar vocês!
– É claro que você quer, Z. Todos nós sabemos disso. E acreditamos que você vai conseguir descobrir como – declarou Stevie Rae.
– Volte para a escola, Z. Medite, reze, faça tudo que puder para descobrir uma maneira de usar a pedra da vidência – pediu Shaunee. – Thanatos e eu não vamos conseguir manter o feitiço por tantos anos quanto Cleópatra.
– Espere, você não vai voltar para a escola com a gente? – perguntei.
– Vou ficar aqui pelo tempo que Thanatos precisar de mim. Prometi a ela.
Na hora eu pensei: e o que vou fazer se eu precisar lançar um feitiço e o meu elemento fogo não estiver comigo? Mas não tive a chance de responder porque um carro freou e estacionou na rua ao lado do parque. Todos ficaram olhando, boquiabertos.
– É um Mustang 1968. Talvez seja até um Bullit . Prata com uma listra preta, igual ao Eleanor no filme 60 Segundos . Este carro é um monstro – elogiou detetive Marx com aquela expressão apreciativa estranha que os homens costumavam fazer quando viam um carro potente.
Erik saiu.
– Achei que Erik tivesse um Mustang vermelho – disse Shaylin.
– Ele tinha. Mas vendeu e comprou este – explicou Damien.
– É claro que ele tinha – dissemos eu e Stevie Rae juntas.
– Meninas, sejam legais – pediu Vovó. – Erik é um bom rapaz
– Ele está melhorando – cedeu Shaylin. – Mas realmente não faz o meu tipo.
Fiquei superfeliz por Aphrodite não estar conosco, mas só de pensar nos comentários que ela faria me fez morder a bochecha para não rir.
– Oi, gente! Bom trabalho com o feitiço – elogiou Erik. Seu olhar pousou na tenda. – Thanatos está bem?
– Por ora – respondeu Shaunee.
– E isso quer dizer que o feitiço ou ela não ficarão bem por muito mais tempo? – perguntou ele.
Shaunee soltou um suspiro de frustração.
– Olha só, Erik, estamos fazendo o nosso melhor!
– Não, não. Isso soou errado. Eu não quis parecer negativo. O que vocês todos fizeram aqui foi incrível. É só que Kalona me mandou até aqui para liberar Marx e Aurox porque está chamando todos vocês de volta para a Morada Noite, e eu só queria saber quanto tempo vou ter que ficar aqui.
Franzi as sobrancelhas para ele.
– Tipo, como se fosse um incômodo para você ficar aqui?
Ele passou os dedos pelo cabelo, frustrado.
– Não! Isso também saiu errado. Vou começar de novo. – Ele se virou e o Erik que olhou para nós era totalmente um ator: charmoso, sorridente, preocupado. – Oi, gente! Excelente trabalho com o feitiço! Kalona está chamando vocês de volta para a Morada da Noite. Mas vou ficar por aqui para tomar conta de Thanatos e Shaunee, pelo tempo que for necessário .
Continuei com o cenho franzido.
– Ninguém sabe por quanto tempo o feitiço vai durar. Thanatos está em profunda meditação para falar. Shaunee está ajudando com a parte do fogo, mas é o máximo que qualquer um pode fazer.
– E quatro sábias estão em guarda para ambas enquanto elas lutam para manter o feitiço – informou Vovó.
– O restante de nós está pronto para voltar para a escola – disse eu, levantando-me e tirando a poeira do jeans. – Certo, gente?
Todos assentiram, menos Aurox, que estava analisando Erik pensativamente:
– Kalona pediu nominalmente que eu voltasse?
– Pediu. Kalona disse que precisava de você e de Marx na escola e que eu devo assumir o seu lugar para proteger Thanatos.
Aurox olhou de Erik para mim, claramente insatisfeito.
– O que foi? – perguntei.
– Bem, Zo, Erik não é exatamente um guerreiro – explicou Aurox, em um dos seus momentos em que se parecia tanto com Heath.
– Ei, vá tomar banho! – exclamou Erik, estufando o peito como um baiacu. – Eu não preciso ser um guerreiro para impedir humanos intrometidos de atrapalhem Thanatos e o resto das mulheres.
– Sem querer ofender, vampiro – continuou Aurox, ignorando Erik completamente (o que só serviu para piorar a situação) e dirigindo-se a mim. – Só quero me certificar de que o nosso pessoal esteja protegido.
– O nosso pessoal? – perguntou Erik sarcasticamente. – Você não tem nenhum pessoal, menino-touro!
– Tudo bem, já chega – intervim, enquanto Marx se colocava entre os dois porque o idiota do Erik parecia prestes a dar um soco em Aurox. – Vocês não vão começar a brigar agora no terreno sagrado.
– Seria um sacrilégio – declarou Vovó, meneando a cabeça, tristemente. – Erik Night, achei que já tivesse aprendido a sua lição.
Ele deu um passo para trás sem conseguir olhar Vovó nos olhos.
– Sinto muito. A senhora está certa.
– É Aurox que merece o seu pedido de desculpas, não eu – declarou Vovó.
– Eu estava errado. Sinto muito – desculpou-se Erik, estendendo a mão para Aurox.
– Desculpas aceitas. – Aurox segurou o seu antebraço para o cumprimento. – A minha intenção não foi desrespeitá-lo.
– Bem, eu quis desrespeitá-lo – confessou Erik. – Você colocou o dedo na ferida com aquele lance de guerreiro.
– Entendido – respondeu Aurox. – Vou escolher as minhas palavras com mais cuidado no futuro.
– Pronto, é esse tipo de energia que este terreno sagrado representa: a união dos povos e as pazes dos inimigos – concluiu Vovó, satisfeita. Então, ela se virou para mim: – Volte para a escola com o restante do seu círculo, u-we-tsi-a-ge-ya . Nós vamos proteger Shaunee e a Grande Sacerdotisa. Que a mente de vocês esteja livre de todas as preocupações com elas. – Vovó me deu um abraço apertado. – Leve o meu amor com você e permita que ele lhe dê forças e sabedoria.
Agarrei-me a ela, desejando com todo o meu ser que pelo menos um pouco de sua grande sabedoria permanecesse comigo e com os meus amigos.

17
Aphrodite
– Não confio nela. Nem um pouco – foram as primeiras palavras de Aphrodite para Zoey quando ela levou o grupo pela entrada principal da Morada da Noite.
Ela parou de andar de um lado para outro e se colocou diante de Zoey, com as mãos nos quadris, franzindo o cenho para todos eles, sentindo o estresse pesar em seus ombros.
– E da próxima vez que vocês me deixarem para trás para lidar com um grupo de humanos, eu vou embora. Prefiro enfrentar Neferet sozinha sem nenhum maldito poder a que ter que explicar para mais de uma mãe paranoica que Não, novatos e vampiros não estão salivando ao pensar em tantos humanos dormindo sob o seu teto, ninguém vai comer os seus rebentos de nariz escorrendo ! Papo chato! Por que alguém iria querer comê-los? A maioria das pessoas é gorda. Que horror!
– Aphrodite, você precisa ir mais devagar. Não sei a quem você está se referindo quando disse “ela”, ou por que as mães estão fazendo essas perguntas malucas...
– Estou me referindo a Lynette Witherspoon, uma suposta ex-serva de Neferet. E as mães estão me fazendo essas perguntas porque eu sou a única pessoa que não constitui uma ameaça vampira nem novata.
– Elas não a conhecem muito bem se acham que Aphrodite não é uma ameaça para elas – declarou Stevie Rae.
Aphrodite apertou os olhos para Stevie.
– Cale a boca, caipira.
– Você disse Lynette Witherspoon? A dona da Everlasting Expressions? – perguntou Damien.
– Exatamente – respondeu Aphrodite. – E como diabos você sabe disso?
Damien sorriu.
– Eu simplesmente amo a revista Brides of Oklahoma , e a Everlasting Expressions é a empresa de planejamento de eventos para os casamentos mais espetaculares e magníficos.
– Você é tão gay – respondeu Aphrodite.
– Que bom, vocês finalmente estão de volta – declarou Kalona, entrando no vestíbulo.
– Foi o que acabei de dizer. Você quer atualizá-los ou prefere que eu conte tudo? – quis saber a Profetisa.
– Eu vou ajudar Darius e Stark no perímetro. Você informa Zoey e o restante do grupo. – Kalona hesitou. – Vou atualizar os nossos guerreiros. Detetive Marx e Aurox, vocês poderiam me acompanhar?
Os homens assentiram e seguiram com Kalona.
Aphrodite suspirou, desejando que ela fosse se encontrar com Darius, mesmo que isso significasse que teria de aturar Aurox, Kalona e Marx. Parecia uma eternidade desde a última vez em que ela e o seu maravilhoso guerreiro tiveram um dia sem estresse.
– Terra para Aphrodite... Olá? Tem alguém aí? – provocou Damien.
– É, você deveria nos informar sobre o que está acontecendo. Está lembrada? – perguntou Stevie Rae.
– Se acalmem, cambada de nerds . Já vou falar. Vamos até a enfermaria. Lenobia está lá acomodando Witherspoon em um dos quartos. Acho que ela deveria estar era em um calabouço, mas Lenobia e, surpreendentemente, Kalona, me venceram. Parece que lidar com Neferet deixou a mulher à beira de um ataque de nervos. Mas tanto faz. Como se nós já não tivéssemos visto isso antes.
Aphrodite começou a andar enquanto nós nos esforçávamos para acompanhá-la.
– Nós temos um calabouço? – quis saber Shaylin.
– Não temos não – assegurou Damien. – Não deixe que Aphrodite provoque você. – Então, ele esticou a mão e puxou a manga da Profetisa. – Vá mais devagar aí. Estamos todos exaustos por causa do Ritual de Proteção.
Aphrodite estreitou os olhos, mas Zoey interveio.
– Damien está certo. Além disso, nenhum de nós precisa ouvir a história louca que você está prestes a nos contar enquanto a seguimos. E não faz o menor sentindo nos contar o que aconteceu na frente da mulher sobre a qual você está falando. Principalmente se não confia nela. Vamos para a cantina, comer um pouco mais para começarmos a nos sentir normais de novo, e você pode nos contar tudo sobre essa tal de Lynette Witherspoon.
Aphrodite disse para Zoey:
– A cantina está cheia de humanos falando alto, nervosos, irritantes e comendo para lidar com o estresse.
– Tudo bem, então vamos para a sala de jantar dos professores – decidiu Zoey.
– Noooossa! Eu nunca fui até lá! Você tem certeza de que podemos? – questionou Stevie Rae.
– Tenho sim – confirmou Zoey, antes que Aphrodite tivesse a chance de responder.
Aphrodite ergueu uma sobrancelha, deu um passo para o lado e fez um sinal para Zoey assumir.
– Bem, então leve as suas meninas até lá.
E foi o que Zoey fez.
Zoey
Um silêncio longo e estarrecedor seguiu o relato de Aphrodite sobre tudo o que a tal de Witherspoon lhe contara.
Shaylin passou a mão trêmula no rosto e disse:
– A cor da morte... Esta não é apenas a cor da aura de Neferet. É o que ela realmente é, morta por dentro.
– Todas aquelas pessoas – lamentou Damien em voz baixa. – Ela vai acabar matando todos eles.
Aphrodite assentiu.
– Quando Lynette descreveu tudo o que havia acontecido, as peças do quebra-cabeça da minha última visão se encaixaram. Deusa, eu odeio linguagem figurada. – Ela olhou para mim e ergueu uma sobrancelha. – Você estava ocupada demais sendo uma vadia enlouquecida, então eu não tive a chance de contar para você, mas um poema pentelho foi o meu bônus.
Ela fechou os olhos e recitou:
O grande poder, grandes responsabilidades consigo trará
O prazer da liderança e a luxúria com a espada de Damocles pesará
Enquanto ela acreditar que o antigo é a chave de que precisará
Então, é quando tudo ruirá; é quando a Luz sangrará e sangrará.
Aphrodite abriu os olhos e encontrou o meu olhar.
– Achei que fosse sobre você. – Ela ergueu os dedos tocando a ponta de cada um. – Primeiro, você tem bem mais poder do que aparenta ter. Segundo, você às vezes realmente age como uma líder, e nós realmente a seguimos, o que significa que você tem acesso a tudo isto... – Aphrodite fez uma pausa fazendo um gesto para englobar a sala de jantar. – Então, tem a parte final sobre “ela” acreditar que o antigo é a chave, e a Luz está sangrando por causa disso. Bem, essa parte parecia você usando a pedra da vidência e interferindo no equilíbrio da Luz e das Trevas.
– Essa análise parece bem racional – declarou Damien.
– Obrigada, Rainha Damien. Racional? Sim. Correta? Parece que não. Pulei completamente a parte da espada de Damocles, pois eu não queria pesquisar e porque realmente odeio tentar resolver todo simbolismo. Mas, então, descobrimos que você não matou aqueles homens, e Neferet massacrou uma tonelada de pessoas e proclamou o Mayo como o seu Templo e a si mesma como Deusa. Então, li a história idiota de Damocles.
– Isso é como se a gente estivesse, tipo, esperando uma coisa horrível acontecer, não é? – perguntou Stevie Rae.
– A maioria das pessoas acredita que sim – respondeu Damien com sua voz professoral. – Na verdade, trata-se de uma antiga parábola. Damocles era um bajulador cujo trabalho era, basicamente, não fazer nada, a não ser contar mentiras e divertir e adular o seu rei. Um dia, Damocles fez algum comentário sobre como seria fabuloso ser o rei. Basicamente, o rei disse: “Ei, se você acha que é tão bom ser rei, pode seguir em frente, experimente o meu trono”. É claro que Damocles aceitou a oferta. Ele estava se divertindo como um gay ... – Nessa parte ele parou para rir e fazer uma piada: – Gay ! Uhu!
– Ai, caramba, será que dá para contar o resto da história ou você prefere que eu conte? – reclamou Aphrodite.
Damien se controlou e continuou.
– De qualquer maneira, Damocles estava se divertindo tanto que demorou um pouco para notar, mas pendurada sobre a sua cabeça, por um simples pelo de cavalo, havia uma espada. De repente, ser rei não pareceu mais tão legal para Damocles e ele implorou que o rei o deixasse voltar para a sua antiga vida.
– Ah, então a moral da história não é que o julgamento e a escuridão se aproximam – raciocinei, enquanto a minha lâmpada mental se acendia. – É que você deve ficar satisfeito com o que recebeu.
– É isso. E, como o cara do programa de histórias da rádio explicou para que eu pudesse compreender a maldita metáfora, não desejar o que você não recebeu porque aquela vida tão maravilhosa tem o seu lado ruim, em geral, na mesma proporção da responsabilidade e do luxo que você tem. Para concluir, acho que a profecia tem mais a ver com Neferet do que com você – terminou Aphrodite.
– O que significa que estamos muito ferrados porque não é a Zoey – disse Shaylin.
– Hein? – perguntei.
– Zoey, se fosse sobre você, você ouviria o aviso – continuou ela. – E já ouviu. Você sabe que a magia antiga é importante, mas percebeu que a chave para aquele poder é você e a sua intenção, e não apenas ficar presa ao poder. Certo?
– Com certeza – concordei, e a minha lâmpada mental ficou mais brilhante. – Ah, eu entendi! É um aviso sobre o que Neferet pretende. Ela interferiu no equilíbrio da Luz e das Trevas ao despertar a magia antiga.
– E ela não vai parar – disse Damien.
– Verdade – respondi. – Então, a resposta é simples. Nós vamos ter de detê-la para sempre.
– Espero que você tenha um plano para fazermos isso – desejou Aphrodite.
– Graças a vocês eu estou começando a fazer um. Precisamos encontrar a espada de Damocles de Neferet – decidi.
Kalona
– Pelo menos o muro de proteção a contém.
Darius foi o primeiro a falar depois que Kalona explicou para ele, Stark, Aurox e o detetive a extensão completa da charada macabra que Neferet estava realizando no seu “Templo”.
– Apenas temporariamente – lembrou Aurox.
Marx assentiu.
– É verdade, Thanatos e Shaunee estão dando tudo de si, mas estão pagando um preço alto demais. Nem mesmo elas sabem por quanto tempo vão conseguir manter o feitiço. Principalmente porque ele não se restringe apenas ao Mayo. Mas colocou toda a cidade de Tulsa dentro de uma bolha protetora.
– Você percebeu que isso é bom, não é? – quis saber Stark. Quando o detetive lhe lançou um olhar questionador, o garoto continuou: – A última coisa de que precisamos agora é de uma intervenção nacional. Olhe para a situação da seguinte maneira: quanto menos gente testemunhar a loucura de Neferet, mais fácil será o trabalho de limpeza quando a detivermos.
– Você acredita que ela pode ser detida? – perguntou Marx.
– Eu acredito – respondeu Kalona, e ele realmente acreditava. – Já lutei contra as Trevas de uma forma ou de outra por éons no Mundo do Além. A guerra contra elas nunca é vencida porque deve haver Trevas desde que também exista a Luz. Mas a Luz vence batalhas individuais. Neferet é apenas uma batalha individual na qual a Luz deve aniquilar essa forma particularmente sagaz e má das Trevas.
– Mas todo esse lance de equilíbrio e batalha versus guerra significa que você também perde às vezes – raciocinou Marx.
– E eu perdi – contou Kalona, sombrio. – Mas as maiores perdas que sofri foram internas. Eu permiti que as Trevas corrompessem algo que era puro, honesto e verdadeiro, e quando isso aconteceu, venceram a batalha.
– O que faz você pensar que as Trevas não vão mais dominar você para que perca outra batalha? Dessa vez, às nossas custas? – perguntou Stark.
– Você já perdeu uma batalha para as Trevas, garoto – Kalona jogou a verdade na cara do jovem vampiro. – O que faz você acreditar que as Trevas não vão mais dominá-lo fazendo com que perca outra batalha?
Stark se indignou, mas respondeu sem hesitar:
– Porque eu amo a Zoey e me comprometi a seguir o caminho de Nyx.
– E é assim que eu posso assegurar a você, e a mim mesmo, que eu não perderei esta batalha: por causa do meu amor e por causa do juramento que fiz. Eu sei o preço do perjúrio. Não farei isso de novo. Jamais – afirmou Kalona.
O imortal passou a mão pela testa. Ainda estava úmida de suor, a única evidência externa que não conseguia controlar que mostrava que os ferimentos que sofrera na noite anterior ainda não tinham se curado completamente e continuavam provocando dor. Preciso ir para um lugar alto – talvez o teto do Templo de Nyx. Lá a magia imortal do meu sangue pode convocar a cura – eu preciso de um tempo... Preciso de um tempo.
– Ei, grandão, tem certeza de que não precisa descansar um pouco? – perguntou-lhe Marx.
Kalona dispensou o questionamento, evitando a resposta com outra pergunta:
– Detetive, eu gostaria de lhe pedir um favor.
– Claro, qualquer coisa. Principalmente se isso ajudar a nos livrarmos de Neferet.
– Gostaria de interrogar Lynette. Ela não parece ser nada além de uma humana extremamente aterrorizada que acabou de passar pela experiência mais traumática de sua vida. Ela respondeu prontamente a todas as nossas perguntas. Explicou como as criaturas de Neferet estão possuindo os humanos, deu-nos o número exato de quantos humanos estão no Mayo, o que Neferet está fazendo com eles, e quantos estão sob o seu controle.
– Parece que ela está sendo bem cooperativa – comentou Marx.
– Parece, mas tem duas coisas nela que estão me incomodando. Primeiro, ela fica fazendo perguntas sobre Neferet.
– Que tipo de perguntas? – quis saber Marx.
– Tipo, o que aconteceu com Neferet para torná-la louca, como ela conseguiu tanto poder, se ela é mesmo uma deusa e, se for, como vamos detê-la.
– Não posso culpá-la por fazer essas perguntas – disse Stark. – Se Neferet tivesse me mantido como refém, eu também iria querer algumas informações sobre ela.
– Concordo – respondeu Kalona. – E isso não me preocuparia tanto a não ser pela segunda coisa: ela hesitou quando eu pedi para que fugisse e viesse comigo.
– Ela se recusou categoricamente a vir comigo – contou Marx, e, então acrescentou: – O que é compreensível. Não havia o escudo protetor, e Neferet jamais permitiria que ela saísse de lá.
– Verdade, mas a minha intuição diz que tem mais coisas em relação a Lynette do que ela está contanto. Ela disse que esta noite foi forçada a cumprir uma tarefa para Neferet, e que seria acompanhada pelas gavinhas das Trevas e um servo possuído para se certificarem de sua cooperação e retorno. Ainda assim, ela estava do lado de fora do Templo, oculta por um feitiço de Neferet, bem antes de qualquer um deles se juntar a ela.
– E qual foi a explicação que ela deu para isso? – perguntou Marx.
– Que Neferet estava mostrando para todos os outros reféns que ela era a sua favorita ao permitir que saísse do prédio desacompanhada – explicou Kalona.
– Na verdade, isso não é nada bom. Será que Lynette está exibindo alguns sintomas da síndrome de Estocolmo?
– O que é isso? – quis saber Stark.
– É um mecanismo de sobrevivência para reféns que lutam por suas vidas – explicou Darius.
– Estou impressionado – elogiou Marx.
Darius sorriu.
– Detetive, o treinamento para guerreiro inclui muito mais do que espadas, facas e armas. Também inclui psicologia. Tanto vampírica quanto humana.
– Eu não tive nenhum treinamento guerreiro – contou Aurox.
– Nem eu. Eu basicamente nasci um guerreiro. – Kalona fez uma pausa e olhou para Stark, acrescentando: – E o garoto ainda não treinou o suficiente para saber muito sobre qualquer coisa. Por favor, explique essa síndrome para nós.
– Basicamente, certas condições precisam ser atendidas. Vejamos, já faz um tempo que estudei isso. Primeiro, tem que existir uma ameaça definida contra a sobrevivência do refém e a crença de que o captor está disposto a cumprir a ameaça – explicou Marx.
– A mulher atende a esses critérios – concedeu Kalona.
– O próximo passo é que a percepção do refém de pequenas gentilezas do seu algoz esteja inserida em uma atmosfera de terror – acrescentou Darius.
– Eu realmente acho que testemunhar as gavinhas das Trevas atravessarem e explodirem sessenta corpos humanos, enquanto Neferet lhe oferecia uma taça de vinho e discutia os planos do que fariam a seguir, algo que se encaixa nesse critério – disse Stark.
– É, podemos marcar essa opção – concordou Marx. – E o último passo é que ela estivesse isolada da perspectiva de todas as outras pessoas, a não ser a da sua captora, e tenha percebido a sua incapacidade de fugir.
– Também se encaixa – disse Stark.
– Isso poderia explicar a sua curiosidade sobre Neferet. Ela não está perguntando por estar preocupada, mas porque está obcecada.
– Eu vou falar com ela – disse Marx, sombrio. – Vou mantê-la em observação. Mas certifique-se de falar com ela de maneira não ameaçadora. E a sua intuição está certa, Kalona. Não confie nela.
Kalona
Em nome da Deusa, como ele estava cansado! Agora que finalmente estava sozinho, Kalona podia deixar transparecer todo o seu esgotamento. Suas asas se curvaram quase tocando o chão. Sentia dor nos ombros. Na verdade, no corpo inteiro!
O imortal alado ergueu o olhar até o topo do Templo de Nyx, e suspirou alto de exaustão. Apenas faça isso. Não pense. Stark terá de ser rendido depois do amanhecer, e eu tenho de encontrar um jeito para acabar com a dor dos meus ferimentos. Baixou a cabeça, deu longos passos e, com um gemido, deu um salto, forçando as suas asas a baterem contra o ar, erguendo-o do chão até chegar ao topo escuro do Templo. Subiu até lá e deitou-se de bruços tentando recuperar o fôlego.
Quando um raio de sol resplandeceu sobre ele, Kalona não conseguiu controlar a resposta automática do seu corpo enfraquecido de se virar e fazer uma careta. Grosseiro, disse:
– Diminua as suas luzes, Erebus! Você vai chamar a atenção de todo mundo.
O brilho diminuiu para a luz do crepúsculo.
– Irmão, você não parece bem.
Kalona usou o pico do Templo para se apoiar e se sentar, encostando-se na chaminé de pedra em uma postura que esperava parecer indiferente.
– E você está exatamente como sempre quando se aproxima de mim. Não convidado.
Em vez de responder com raiva, Erebus analisou o seu irmão e declarou:
– Aconteceu alguma coisa com você.
– Aconteceu. Eu mudei de lado. Embora eu não tenha mudado o nível da minha paciência. Esta foi a segunda vez hoje que tive que me explicar, o que já é demais. O que você está fazendo aqui, Erebus?
– Nyx me enviou para ver se estava tudo bem com você. Parecia que ela estava certa em se preocupar.
O coração de Kalona disparou. Nyx está preocupada comigo! Mas teve o cuidado de manter a expressão neutra. Erebus poderia explorar qualquer franqueza que demonstrasse – emocional ou física.
– Diga a Deusa que eu aprecio a sua preocupação, mas estou simplesmente seguindo o seu édito. Nyx ordenou que eu protegesse todos aqueles que precisassem, e é o que estou fazendo. Nyx ordenou que eu assumisse a responsabilidade pelo meu papel no mergulho de Neferet na loucura, e é isso que estou fazendo. Como o meu amigo humano, detetive Marx, diria: não tem nada para você ver aqui. Pode dar um fora.
– Me lembro muito bem do édito de Nyx – respondeu Erebus. – Fui eu que o levei para você. Então, também me lembro do que a Deusa proclamou. – Erebus abriu os braços em um gesto largo para o céu noturno e as palavras apareceram queimando com a luz do sol:
SE O SEU CORAÇÃO SE ABRIR E SE DESNUDAR DE NOVO, O PERDÃO PODE SUPERAR O ÓDIO E O AMOR PODE VENCER... VENCER...
Uma vez mais o édito da Deusa queimou diante dos olhos e do coração de Kalona. Ele afastou o olhar das letras resplandecentes e elas desapareceram.
– Assim como você, eu me lembro bem das palavras de Nyx – afirmou Kalona.
– E?
– E o meu coração, assim como o perdão de Nyx, não é da sua conta, Erebus!
Erebus deu de ombros.
– Só estou aqui devido à preocupação da Deusa.
– Diga a Deusa que, se ela realmente está tão preocupada, da próxima vez ela mesma pode vir verificar – Kalona não conseguiu evitar as palavras.
Erebus riu.
– Como você mesmo disse, o que se passa entre você e Nyx não é da minha conta. Diga a ela você mesmo, se acha que a Deusa vai ouvir.
– Farei isso, depois que eu vencer a batalha contra Neferet – disse Kalona.
Com certeza, Nyx vai me ouvir então. Com certeza, vai me perdoar.
– Você parece muito seguro de si, mas despreparado para uma batalha contra as Trevas – provocou Erebus.
Kalona se empertigou e encarou o irmão.
– Pareço alguém que acabou de lutar contra as Trevas e venceu! Não é de se estranhar que você não consiga reconhecer um guerreiro depois de uma batalha. Você nunca esteve em uma batalha, não é?
O tom de zombaria de Erebus tornou-se sério.
– Você caiu, mas eu permaneci ao lado dela. Quem você acha que a manteve protegida por todos esses longos e solitários anos?
Kalona quase respondeu com um insulto, mas as palavras morreram antes de serem ditas. Em vez disso, o imortal alado assentiu, cansado.
– Eu sei bem que manteve a Deusa a salvo. Tem sido muito difícil batalhar contra as Trevas?
Erebus ficou visivelmente surpreso, tanto que demorou um pouco para se recompor e responder.
– Tem sido difícil. Eu não sou um verdadeiro guerreiro. Esse era o seu papel, não o meu. Acho que não tenho sido um bom substituto.
Kalona encontrou os olhos dourados do irmão.
– Ainda assim, Nyx está segura.
– Está.
– Então você tem sido um verdadeiro guerreiro.
Erebus piscou várias vezes.
– Você me deixa sem palavras com o seu elogio.
Kalona deu um sorriso de lado.
– Então consegui o meu objetivo. Calar a sua boca. Agora, volte para o Mundo do Além e continue tentando manter o lugar que eu erroneamente deixei vazio.
– Sempre tão arrogante. Você mal tem forças para se segurar no telhado deste Templo, ainda assim me dá ordens como se estivesse certo. Preste atenção, Kalona! Algum dia desses a sua arrogância vai lhe custar caro.
– Meu irmão, já me custou. Eu perdi a minha Deusa por causa dela – declarou Kalona.
– Então, por que você não aprendeu a controlar a sua arrogância? O que você está fazendo aqui, Kalona? Por que você deve usar o seu poder com esses mortais?
– E você me chama de arrogante? Bem, eu o chamo de tolo cego! O que faço aqui não é por causa da arrogância ou do desejo de usar os meus poderes com esses mortais. O que faço aqui é cumprir o meu dever! E, para alguns de nós, isso quer dizer mais do que tomar sol e ficar pensando em fazer amor e nas borboletas. Para mim, isso significa lutar contra Neferet, e não apenas porque a minha Deusa assim ordenou, mas porque o meu dever por Juramento exige isso de mim.
Erebus olhou para ele com uma expressão que Kalona não conseguiu interpretar.
– Parece que você mudou mais do que de lado, Irmão. Ainda assim, sou obrigado a lembrá-lo de que Nyx acredita que você será o meio pelo qual Neferet será aniquilada, então, cuide-se. As suas ações afetam outras pessoas, além de você mesmo.
– É, eu sei. Eu sou o guerreiro. Serei eternamente o guerreiro. Vá, raio de sol. Você está me dando dor de cabeça.
Kalona estava juntando suas forças para atingir Erebus com um raio de luar, quando seu irmão pulou do telhado, exibindo força e agilidade, plainou no ar por um momento antes de desaparecer com um brilho dourado.
Kalona meneou a cabeça e usou a chaminé como apoio para se levantar, resmungando:
– Como é que nós podemos ser gêmeos? Ele é como um cachorro que não para de latir para proteger o seu osso. Late tanto que ninguém nota a ausência de dentes. – Por fim, de pé, Kalona lançou um olhar arrependido para o céu. – Não que eu a esteja comparando com um osso, Deusa.
Quando Kalona abriu os braços e jogou a cabeça para trás, abraçando a magia imortal que passava pelo éter do céu noturno, convocando a cura e o poder para o seu corpo, teve quase certeza de ter ouvido o riso dela no vento.
Erebus
Invisível para Kalona, Erebus observou enquanto o seu irmão convocava a energia divina de que ambos eram formados. Ele parece cansado. Parece solitário. Mas também parece determinado. Kalona mudou – mudou de verdade.
Sim, Kalona ainda era insuportavelmente arrogante, não importava o que seu irmão tivesse dito, mas ele também o elogiara, dera a Erebus um sinal de respeito pelo papel que vinha desempenhando por Kalona na sua ausência por tantos e tantos anos.
Erebus sorriu. Sempre acreditara que havia um herói enterrado sob aquele exterior detestável e espinhoso. Ele não podia e nem mudaria os ventos que estavam se desenrolando no reino dos mortais. Nyx jamais permitiria isso, e Erebus entendia muito bem o motivo, mas poderia muito bem desejar sorte para o seu irmão
Para ti, uma bênção de irmão
Que o herói escondido entre em ação
Abrace aquele que sempre foi o seu destino
E o perjúrio jamais voltará a ser cometido
Erebus soprou o seu desejo ao vento para que fosse levado para longe dos ouvidos do irmão. Kalona não mudara tanto a ponto de aceitar bem a bênção do irmão gêmeo – o passado deles era cheio de mal-entendidos, ciúme e conflitos. Não, Kalona não deveria ouvir a bênção, mas Nyx sim. E as Trevas também. Nyx devia saber que Kalona, o seu guerreiro caído, tinha dado mais um passo em direção à Luz. E as Trevas – Erebus deu um sorriso inflexível –, as Trevas deviam saber que deveriam tomar cuidado com o poder do herói alado.

18
Shaunee
Shaunee estava tão cansada que se sentia realmente pesada. Estava feliz porque Vovó Redbird e as outras mulheres estavam lá com ela e Thanatos – feliz mesmo. Ela talvez conseguisse olhar pela Grande Sacerdotisa e manter-se concentrada no seu elemento por um tempo, mas, com certeza, não teria conseguido erguer a tenda, alimentar e nutrir todo mundo, e transformar o pequeno parque em um santuário. Vovó Redbird e as outras mulheres fizeram tudo aquilo, e continuavam fazendo. Tudo que Shaunee conseguia fazer era se afastar um pouco de Thanatos até a fogueira que Vovó Redbird acendera para ela, sentar-se no chão e olhar para as chamas dançantes, tentando retirar qualquer força dali para manter para si.
– Uggh – gemeu ela. A onda de poder a atingiu de novo e ela teve de se curvar, abraçando a si mesma.
– Ei, você está bem?
Sem conseguir falar ainda, Shaunee assentiu. Sem olhar para Erik, concentrou-se na fogueira – no seu calor e beleza e familiaridade, canalizando-os e encorajando-os a brilharem cada vez mais. Enquanto o seu elemento passava por ela, pegava um pouco de força para que não desmaiasse. Aprendera aquele truque alguns anos antes, depois de desmaiar – de novo. Shaunee respirou fundo e soltou o ar devagar, inspirou e expirou... até que o seu elemento dissipasse e ela conseguisse se sentar de novo.
Erik estava ao seu lado parecendo impotente e assustado.
– Você vai desmaiar? Você quer que eu chame a Vovó Redbird?
– Não. – A sua voz soou rouca e ela limpou a garganta. – E não precisa chamá-la, mas eu gostaria de algo para comer e beber.
– Ah, sinto muito. Aqui está. – Ele pegou o prato e o copo que colocara no chão ao lado deles. – Eu estava trazendo isso para você.
Shaunee olhou para o prato e deu um sorriso cansado.
– Acho que estou ficando viciada nos cookies de chocolate e lavanda da Vovó. Sério, eu adoro tanto esses biscoitos que parece que temos um relacionamento. – Ela deu uma grande mordida no cookie e tomou um gole da bebida. – Cookies e chá doce. O que poderia ser mais sulista do que isso?
Erik sorriu, obviamente aliviado por ela não estar dobrada e sentindo dor ou desmaiada.
– Acho que a única forma de ficar mais sulista do que isso são biscoitos com refrigerante Dr. Pepper.
Shaunee virou o rosto.
– Isso não é sulista. É interiorano. Eu não sou daqui, mas conheço bem as diferenças.
– Então, você está se sentindo melhor – declarou Erik.
Shaunee deu outra mordida no biscoito e disse:
– Melhor do que quando eu estava curvada? Sim. Melhor de verdade? Não.
– Por que você estava curvada daquele jeito?
– Alguém com intenção ruim tentou entrar ou sair de Tulsa, e o muro de proteção se acendeu. Quando ele faz isso, o fogo passa por mim e eu tenho que me concentrar para intensificá-lo – explicou ela.
– E isso dói?
– Dói. É como se você tentasse fazer mais um circuito de exercícios, mesmo depois de ter dado tudo de si. Só que estou fazendo isso repetidas vezes e não sinto como se eu estivesse conseguindo descansar o suficiente entre os circuitos.
Erik não disse nada por um tempo. Ele só mordiscou o seu cookie e olhou para o fogo. Shaunee não se importou. O silêncio e olhar para o fogo lhe faziam bem.
– Você é forte – declarou ele, por fim. – Muito mais forte do que eu achei que era antes.
– Antes?
– Quando você e Erin... bem, você sabe – disse ele, atrapalhado.
– Quando éramos gêmeas – completou ela.
Ele assentiu.
– É, mas foi burrice falar nisso agora. A última coisa de que você precisa é se sentir triste agora. Sinto muito, eu às vezes sou um balde de água fria mesmo quando não quero ser.
Shaunee sentiu que sorria para ele.
– Ei, esse é um talento. Ser um balde de água fria sem querer.
Ele deu um sorriso hesitante para ela.
– Uma merda de talento.
– Verdade, mas nem todo mundo tem um talento, mesmo que seja uma merda. Além disso, você pode representar. Representar de verdade . Esse lance de balde de água fria acidental provavelmente ajude quando você for para Hollywood.
– Acho que não vou para Hollywood – respondeu ele.
Shaunee viu a expressão chocada que congelou o rosto dele no instante em que pronunciou as palavras.
– Foi a primeira vez que você disse isso em voz alta? – perguntou ela, gentilmente.
– Foi a primeira vez que pensei isso – declarou ele. A expressão do seu rosto se descongelou, mas ele pareceu pálido e inseguro. – Nem sei por que eu disse isso.
Shaunee tomou o restante do chá doce e falou:
– Bem, para começar, por que você queria ir para Hollywood?
– Para ser um astro – respondeu ele, de forma rápida e automática.
– Por quê?
– Porque eu quero ser famoso.
– Por quê? – perguntou ela novamente.
Dessa vez ele demorou mais tempo para responder.
– Para que as pessoas achem que eu sou importante.
– Por que você liga para o que os outros pensam?
Ele olhou para o fogo.
– Por que estou cansado de as pessoas acharem que eu não sou nada além de um rosto bonito e um sorriso brilhante.
Shaunee estudou o perfil dele. Será que alguma vez ela já enxergara além da sua famosa beleza?
Não. Ele sempre fora o cara mais bonito do campus , e tudo que realmente sabia sobre ele era que muitas garotas queriam namorá-lo e que as mais populares conseguiram isso. Na verdade, ela não sabia nada sobre o cara por baixo da aparência famosa de Erik Night.
– Se você pudesse mudar o que as pessoas pensam, o que gostaria que pensassem de você?
Ele afastou os olhos do fogo e olhou para Shaunee, e ela se deu conta de que naqueles lindos olhos azuis via honestidade e vulnerabilidade.
– Eu gostaria que achassem que sou tão forte quanto Aurox, ou corajoso como Darius, ou fiel como Stark. Em vez disso, todos pensam que não passo de um garoto bonito e imprestável.
A honestidade nua do que Erik disse a Shaunee a deixou em um silêncio petrificante, e ela tentou pensar em alguma coisa para dizer quando o seu corpo foi sacudido por uma chama que lhe queimava por dentro, usando-a como supercondutora para reforçar o feitiço de Thanatos.
– Argh – gemeu ela, tentando se controlar novamente e se concentrar... Concentrar... Tentando fortalecer o seu elemento enquanto ele passava por ela.
Mas estava tão cansada! Isso já estava acontecendo por várias horas. Por que havia tanta gente com desejos ruins? Eles estavam drenando toda a sua energia! E provavelmente matando Thanatos. Ela não tinha como continuar assim. Não tinha como...
Um braço forte envolveu os seus ombros, e a voz profunda e bonita de Erik falou com ela em um tom calmo:
– Respire fundo. Tudo bem. Você consegue fazer isso. Você consegue. Lembre-se: o fogo é o seu elemento. Ele faz parte de você. Não lute contra ele... Siga com ele. Você consegue. Você é forte e inteligente. Foi por isso que o fogo escolheu você. Estou bem aqui, e acredito em você, Shaunee. Eu sei que você consegue fazer isso.
A voz dele foi o fio ao qual Shaunee se agarrou e se segurou, seguindo de volta para si mesma e para a fogueira familiar.
– Aqui, beba o meu chá. – Ele colocou a xícara em suas mãos e ela tomou tudo.
– Vou pegar mais cookies .
Ele começou a se levantar, retirando o braço dos seus ombros.
– Não, ainda não – pediu ela, ainda ofegante. – Será que você poderia ficar aqui, assim, por mais alguns segundos.
Erik sorriu para ela. Não aquele sorriso de astro de cinema de um zilhão de watts. Ele realmente sorriu para ela, e, com toda a sua vulnerabilidade, Shaunee viu bondade e compaixão verdadeiras.
– Vou ficar aqui pelo tempo que você quiser – declarou ele, apertando o abraço à volta dela.
– Shaunee, achei que você talvez fosse querer mais um sanduíche e mais chá – disse Vovó Redbird. Seu sorriso se abriu quando viu Erik sentado ao lado dela envolvendo-a com os seus braços. – Bem, eu vou pegar um sanduíche para você também, Erik.
– Obrigado, Vovó Redbird – agradeceu ele.
– Isso seria ótimo – disse Shaunee.
– Não precisa agradecer – declarou Vovó Redbird, e antes de se virar para sair, acrescentou: – Muito bem, Erik Night. Estou orgulhosa de você, filho.
Shaunee olhou para Erik e viu que ele estava ficando vermelho, mas os seus olhos encontraram os dela e ele não os desviou.
– Também estou começando a achar que sinto orgulho de mim mesmo – disse ele, apertando um pouco mais o abraço.
Shaunee se apoiou nele, buscando força e conforto, pensando: Agora eu sei o que eles querem dizer quando falam “quando não estiver procurando, ele achará você”.
Lynette
– Você nos ajudou muito, Sra. Witherspoon – disse o detetive Marx, fechando o seu bloquinho e guardando a caneta no bolso do paletó. – Sinto muito se as minhas perguntas estão lhe cansando. A senhora passou por uma imensa provação.
– Não há o que desculpar, detetive – assegurou Lynette, embora sentisse que os olhos estavam pesados, e ela tivesse certeza de que a injeção que a vampira curandeira adicionara ao soro era um maravilhoso coquetel calmante e sonífero. – Quero fazer tudo que puder para ajudá-lo a deter Neferet. – Lynette parou e tentou ordenar os pensamentos. As malditas drogas estavam fazendo com que as suas palavras saíssem enroladas e a sua mente estava ficando confusa. – Detetive, será que eu poderia fazer algumas perguntas agora?
– Se a senhora quiser.
– Eu quero. Mas peço que me desculpe se as minhas palavras soarem um pouco enroladas. – Ela fez um gesto para a bolsa de soros. – Definitivamente não é sangue o que estão me dando.
O detetive alto sorriu.
– É só uma coisinha para que você consiga descansar. A enfermeira disse que o seu organismo passou por um choque terrível. A senhora precisa dormir para se recuperar.
– Sim, esta é a minha primeira pergunta. Por que estou aqui, em uma enfermaria de vampiros, em vez de ter ido para o hospital St. John no fim da rua?
– Bem, Kalona a trouxe direto para cá depois que a resgatou. Não acredito que um hospital de humanos esteja no radar de um imortal.
– Ele não me resgatou. A Grande Sacerdotisa que ergueu o muro de fogo foi quem fez isso.
– Acho que você pode dizer que Kalona estava no lugar certo na hora certa – concordou o detetive. – A senhora quer que eu chame uma ambulância para levá-la ao hospital?
– Talvez de manhã. Foi a Grande Sacerdotisa que ergueu o muro de fogo, não foi?
– Foi um trabalho de equipe que criou o feitiço.
O detetive parecia determinado a evitar a sua pergunta, então Lynette estava certa.
– A Grande Sacerdotisa e a sua equipe mataram alguém para fazer o feitiço funcionar?
Marx pareceu sinceramente chocado.
– É claro que não! Eu estava lá quando Thanatos lançou o feitiço. Ela usou magia elementar, e não vidas humanas. Neferet enlouqueceu. Ela mata sem o menor remorso porque é uma sociopata, não por ser vampira.
– Neferet tentou vir para a Morada da Noite ou entrar em contato com qualquer pessoa daqui?
– Que eu saiba, não. Assim como qualquer liderança oficial ou dos novatos também não sabe. Neferet não pode deixar o Mayo enquanto o feitiço durar e a sua intenção for malévola.
– E se ela quiser apenas mais uma caixa de vinhos caros? Ou comprar uma ou duas roupas novas da Miss Jackson’s? Ela talvez saia para fazer uma dessas coisas, principalmente agora que não estou mais lá. E a sua intenção seria apenas fazer compras.
Lynette sentia o coração disparado no peito enquanto falava.
– Não importa qual seja o motivo que Neferet tenha para sair do Mayo, a sua verdadeira intenção sempre será a violência, o que, para o feitiço, constitui uma má intenção. Ela jurou matar você e Kalona. Só esse juramento já é o suficiente para mantê-la presa.
– Ela não vai me matar. Ela vai mandar uma daquelas cobras negras entrar na minha boca, envolver o meu cérebro e me possuir!
Quando o corpo de Lynette começou a tremer de terror renovado, o detetive gritou:
– Ei, preciso de ajuda aqui!
A vampira curandeira com tatuagens semelhantes a figuras geométricas entrou apressada no carro, franzindo as sobrancelhas quando olhou para o detetive enquanto verificava os sinais vitais e fazia alguns ajustes no soro.
– Detetive, você já fez perguntas o suficiente para a minha paciente. Está na hora de você ir – declarou a curandeira em tom sério.
– Sem problemas. Estou vendo que a Sra. Witherspoon precisa descansar. Se a senhora tiver mais perguntas, ou se lembrar de mais algum detalhe, aqui está o meu cartão. – Ele colocou-o em cima da mesa de cabeceira. – É só me ligar.
– A Sra. Witherspoon vai descansar agora. Não vai ligar para ninguém – disse a vampira.
– Tudo bem, então. Boa noite, Sra. Witherspoon.
Depois que o detetive saiu do quarto, a curandeira lhe ofereceu um copo de água gelada, segurando-o para Lynette sugar o líquido com um canudo.
– Você está segura aqui – declarou a curandeira em tom calmo. – Você está entre amigos e aliados. O nosso campus está cheio de humanos que buscaram a Morada da Noite para que não fossem capturados por Neferet. Não tenha medo. Descanse e recupere-se. Nós vamos cuidar de você.
A boca de Lynette não conseguiu formar as palavras para agradecer a vampira, então apenas tentou sorrir. A vampira entendeu, pois deu uns tapinhas gentis em sua mão antes de sair do quarto. Por fim, sozinha, Lynette recostou-se nos travesseiros e permitiu-se fechar os olhos e ceder às drogas.
– Ah, que droga! Ela está dormindo.
Lynette manteve os olhos fechados, tendo o cuidado de não se mexer nem mudar o ritmo da sua respiração. Ela dissera aos vampiros e ao detetive tudo o que sabia – e já passara por interrogatórios o suficiente por um dia. Aquela nova voz teria de esperar.
– Eu disse que deveríamos ter vindo direto para cá. Ela estava apagando rapidamente da última vez que a vi.
Lynette reconheceu a segunda voz como a da filha novata do prefeito, Aphrodite. Embora, ao que tudo indicava, a garota tinha de alguma forma mudado o seu status de novata para o de Profetisa.
– Zoey, Aphrodite, Stevie Rae, vocês não podem incomodar a humana – soou a voz da curandeira. – Eu a mediquei para assegurar que ela não seja mais questionada pelo resto da noite.
Lynette ouviu o som do sapato de solado de borracha da curandeira se afastando.
– Medicada para apagar – declarou Aphrodite depois de uma breve pausa. – Sorte dela.
– Sorte? Você não pode achar que essa mulher tem sorte – declarou uma voz com um forte sotaque de Oklahoma. – Neferet vai caçá-la e esfolá-la viva.
– Nós não vamos deixar.
Lynette reconheceu o bufar sarcástico de Aphrodite.
– Então, é melhor você conseguir controlar a magia antiga para impedi-la, Z. Pelo que você descreveu, Thanatos e Shaunee não vão conseguir manter o feitiço por muito tempo. Mas você está certa, caipira. Eu não deveria ter dito que ela tem sorte. Somos nós que temos sorte por causa dela e de Kalona.
– Como assim?
– Simples. Aqueles dois enfureceram Neferet a tal ponto que ela vai atrás deles primeiro. É bom saber que descemos um pouco na lista de alvos de tortura e assassinato de Neferet.
– Eu tenho a sensação de que a gente sempre vai estar perto do topo da lista – disse a garota que deveria ser Zoey.
– Nem me fale – respondeu Aphrodite. – Tudo bem, vamos embora daqui. E eu não vou voltar para o ginásio. Será que mencionei que chegaram mais humanos desde a hora em que vocês saíram para lançar o feitiço?
– Sim, Aphrodite. Você já disse isso.
– Só um zilhão de vezes. Nossa, você definitivamente é uma expert em reclamações .
– Vou procurar Stark enquanto ele ainda está consciente. Não ligo se eu tenho de ficar de guarda com ele, nós precisamos passar um tempo juntos.
– Concordo com você, Z. Preciso encontrar Rephaim antes do amanhecer.
– Por que você não se casa com ele e coloca um GPS na aliança? Assim você sempre vai saber onde ele está. Será como um reality show do canal National Geographic...
Alfinetando-se umas às outras, as vozes das meninas se afastaram, deixando Lynette sozinha e paralisada pelo medo e pelas drogas.

19
Neferet
– Às vezes, não consigo evitar de me perguntar por que desejo ser adorada por humanos. – Neferet ergueu o lábio em um riso de escárnio enquanto olhava para baixo, para o rebanho de pessoas que Kylee ordenara que se reunisse no salão de festas. – Gordos, feios e malvestidos. Aposto que o sangue deles tem gosto de bicho-preguiça. Kylee você tem certeza de que todos estão aqui?
– Deusa, esses são todos os que Lynette colocou na sua lista sob a coluna FEIOS E SEM HABILIDADES.
Neferet cercou a garota, encostou-a na coluna de mármore e a ergueu pelo pescoço de forma que ofegasse para respirar e se retorcesse como um peixe fora d’água.
– Eu já disse que não quero ouvir o nome daquela mulher ser pronunciado na minha frente!
Kylee arregalou os olhos e o seu rosto começou a mudar de cor. Neferet observou, extasiada, enquanto a morte se aproximava, quando a cabeça da gavinha que possuía a humana apareceu pela sua boca. A Deusa soltou a garota, permitindo que ela escorregasse pelo chão, enquanto lutava para respirar, e a gavinha desaparecia dentro dela novamente.
– Você está certa, minha criança. Não vale a pena perder nenhum de vocês por causa de um erro da humana. – Ela olhou para Kylee. – Eu perdoo você. Mas que isso não volte a acontecer. Agora, dê-me outra garrafa de vinho enquanto meus filhos e eu classificamos o nosso rebanho.
Neferet ignorou Kylee enquanto ela rastejava. A Deusa se abaixou e acariciou as gavinhas que ainda estavam agarradas a ela, fracas e feridas por terem sido queimadas pelo muro de chamas.
– Eles se atreveram a me prender. Vão pagar por isso. Eu juro. Para cada um de vocês que eles feriram, vou sacrificar cem deles. E vocês poderão escolher se a hecatombe será de humanos, novatos ou vampiros. – Neferet acariciou as gavinhas feridas e cantou para elas. – E, quando eu destruir o imortal alado, poderão se banquetear com o seu sangue. – Ela se ergueu e apontou para o grupo nervoso de humanos reunidos do meio do salão. – Até lá, aqueles de vocês que foram feridos, alimentem-se deste rebanho e recuperem suas forças.
As gavinhas queimadas se moveram devagar. As mortes foram estranhas. Faltavam-lhes as pontas cortantes – os membros cortados de forma suave –, seguindo a maneira como os seus filhos costumavam matar. Irritantemente, os gritos não paravam.
Estremecendo ao redor dela, ávidas para serem soltas e se juntarem ao frenesi, suas filhas não feridas pulsavam e palpitavam.
– Sejam pacientes como eu. Vocês serão alimentadas.
Quando os primeiros humanos morreram, Neferet fechou os olhos, concentrando-se na onda de poder que sentia enquanto absorvia a energia dos humanos, pensando: bicho-preguiça ou não, eles nos alimentam e nos renovam. Não são sacrifícios notáveis, mas necessários.
Kylee voltou com a garrafa de vinho enquanto os últimos do rebanho paravam de respirar.
– Excelente momento. Vou me retirar para a minha cobertura.
– Sim, Deusa.
– Bem, então dê-me a garrafa e volte para a sua mesa de recepcionista e aguarde as minhas próximas ordens.
Kylee a obedeceu de forma instantânea, e Neferet entrou no elevador para a sua cobertura sozinha. A Deusa meneou a cabeça enojada. Não toleraria ouvir o nome de Lynette pronunciado em voz alta, mas aquilo não mudava o fato de que nenhum daqueles humanos seria capaz de substituí-la.
Irritada, Neferet saiu do elevador, e entrou na sua cobertura imaculada e foi até a varanda de pedras.
A noite estava clara e fria. Ela se aproximou da balaustrada com cuidado. Devagar, estendeu a mão. Quando se aproximou da beirada, o ar começou a ficar vermelho, queimando os seus dedos.
Gritando de raiva, atirou a taça de vinho contra aquela aberração.
– Traidores! Enganadores! Vocês não vão me enjaular! – Sem ser atingida, a taça passou pela barreira e se espatifou na rua.
Enraivecida, Neferet caminhou pela varanda, tendo o cuidado de se manter longe da balaustrada. O poder girava e passava por Neferet. Quanta ironia! Estava mais poderosa do que nunca, mas estava presa.
Deve haver alguma maneira de sair dessa prisão , pensou ela enquanto voltava para a suíte para pegar outra taça de vinho. Até mesmo o traidor do Kalona encontrara uma forma de se livrar do juramento que o ligava ao meu desejo. Derrubar este muro deve ser mais fácil do que quebrar um juramento .
A voz debochada de Kalona soava em seus ouvidos enquanto se lembrava da cena.
O imortal alado nem se preocupara em olhar para ela. Falara por sobre o ombro: “Eu me lembro bem. E também me lembro que você não conseguiu me manter ligado a você”.
Canalha traidor, mentiroso! A lembrança de Neferet mudou para a noite em que ela o descobrira, ferido demais pelo ataque de Zoey para se proteger, ainda assim, egoísta e ambicioso o suficiente para concordar com o pedido dela de se ligar pelo juramento que ela conjurara. “Se você, Kalona, guerreiro caído de Nyx, quebrar este juramento e falhar no objetivo jurado de destruir Zoey Redbird, Grande Sacerdotisa novata de Nyx, eu manterei o meu domínio sobre o seu espírito por toda a sua imortalidade.”
Kalona falhara em destruir a novata, embora, de alguma maneira, tenha conseguido quebrar a sua ligação com ela. Tentando afogar a indignidade da lembrança, Neferet levou a taça aos lábios. A compreensão a atingiu, fazendo sua mão se contrair com tanta força que a taça se partiu, cobrindo o mármore de vinho e cacos de cristal. Kalona não quebrara o seu juramento. O juramento não o ligava mais porque as suas condições não se aplicavam mais.
– Aquele tolo! Ele me mostrou o caminho para a sua destruição. – Neferet ignorou o vidro que cortava os seus pés e as gavinhas das Trevas que pulavam no sangue empoçado. Ela era imortal – cortes e sangue não significavam nada.
Ela ergueu o telefone e discou o número da recepcionista.
Kylee atendeu no primeiro toque.
– Como posso fazer a sua vontade, Deusa?
– Mande Judson subir. Acredito que ele possa me ajudar com uma pequena questão, e você pode me auxiliar com outra. Será que estou lembrando bem e aquela mulher fez anotações especiais sobre a personalidade dos meus súditos mais atraentes, do que gostam e do que não gostam e esse tipo de coisa?
– Sim, Deusa. Aquela mulher fez anotações sobre todos de quem ela achou que você poderia gostar.
– Excelente! Analise a lista e encontre os mais bondosos entre os meus súditos.
– Os mais bondosos , Deusa?
– Sim, Kylee. Você está com dificuldades de entender o que eu digo?
– Não... Não, Deusa.
– Bom. Então, faça o que eu digo. Traga-me os meus súditos que aquela mulher considerou como os com melhor coração e cujas intenções são sempre boas.
– Farei como desejar, Deusa.
– É claro que sim – respondeu ela. – Mas não os traga para mim ainda. Preciso falar com Judson primeiro. Ele vai avisar quando eu estiver pronta para receber os meus súditos mais amorosos. Nesse momento, eu quero que você e todos os membros da minha equipe os acompanhem até a minha cobertura.
– Sim, Deusa.
Neferet desligou o telefone. A sua risada vitoriosa se misturou com o cheiro e o gosto do seu sangue e os seus filhos de regozijaram.
Aphrodite
– Sério, Z. Você tem que parar com essa coisa de coito interrompido. Isso está me deixando nervosa. – Aphrodite soltou Darius e arrumou as suas roupas, mas não se levantou do colo do namorado.
– Vocês não estavam no ato. Ainda. Então, tecnicamente não é coito interrompido.
– Como é que você sabe do que ela está falando? – quis saber Zoey.
– Big Bang Theory . – Stark deu aquele sorriso ridículo e cheio de si para Zoey. – Agora quem é burro?
– Que merda, vocês dois são burros.
– Ah, acho que entendi – disse Zoey ficando vermelha. – Humm, desculpe. Stark e eu só queríamos ficar um pouco sozinhos. Não achei que teria alguém nesta parte do campus . Você sabe, perto demais do Templo de Nyx para os humanos, longe o suficiente do muro para Aurox e Kalona patrulharem.
– E próximo demais do amanhecer para novatos barulhentos ficarem bisbilhotando. É, foi exatamente o que Darius e eu pensamos também – comentou Aphrodite.
– Grandes mentes pensam de forma semelhante, minha bela – concluiu Darius, espremendo-se para que tivesse espaço para os outros dois. – Por que não se sentam conosco?
– Considerando que já interromperam os nossos planos – resmungou Aphrodite.
– Isso seria ótimo! – exclamou Zoey, sentando-se de mãos dadas com Stark. – Acho que não parei para descansar desde que comemos depois do ritual.
– Os humanos dão muito trabalho – comentou Darius.
– E tem tantos deles – completou Aphrodite com um ligeiro estremecimento.
– Queria que Vovó estivesse aqui. Ela sabe como lidar com grandes grupos de pessoas. Ela os faria trançar folhas e bater tambores – disse Zoey.
– Bem, ouvi Lenobia falar alguma coisa sobre bater, mas estou certa de que ela não estava se referindo a tambores – respondeu Aphrodite, esfregando a testa por causa de uma dor de cabeça que acabara de começar.
– É, ela está puta da vida porque eles estão perto demais dos cavalos. Ela e Travis estão se revezando para evitar que as crianças se aproximem dos estábulos – comentou Stark.
– Eu não deveria ter dito para aquelas mães que os vampiros da Morada da Noite não queriam comer os seus filhos. Deveria ter falado que todos nós queremos comê-los, então eles tomariam um Valium e se acalmariam! – disse Aphrodite, desejando que a droga da dor de cabeça passasse logo. – Até ouvi quando Damien quase perdeu a paciência quando algum pentelho pediu para ver as suas presas. Seis vezes, mesmo depois de a Rainha Damien ter explicado pacientemente que vampiros de verdade não têm presas.
Zoey estava rindo quando Aphrodite percebeu que a sua dor de cabeça estava fazendo com que sua visão ficasse borrada e estreita. Só teve tempo de se segurar em Darius quando uma visão caiu sobre ela.
Aphrodite estava no céu, olhando para um muro de nuvens rolando sobre Tulsa. Era noite, mas os relâmpagos no céu brilhavam com frequência, iluminando tudo. Nyx, não quero ser chata, mas Tulsa pode assistir à previsão do tempo com Travis Meyer no noticiário do The News on 6. Não preciso de uma visão para saber que o tempo no sul vai ficar assim .
A cena mudou, concentrada no centro da cidade. Então algo caiu do céu. De repente, Aphrodite não estava mais do lado de fora. Estava dentro do corpo que caía batendo por várias extremidades, em direção à terra lá em baixo. Tentou fazer as suas asas funcionarem (asas?), mas elas não lhe obedeciam. Tentou se preparar, mas o choque de atingir o chão reverberou por todo o seu corpo, quebrando os seus ossos. Ofegando, mas sem conseguir respirar, seu olhar recaiu sobre o próprio corpo. Havia um buraco ensanguentado onde o seu coração deveria estar e suas asas quebradas estavam inúteis; o preto de suas penas tingia-se de vermelho enquanto o sangue se extinguia em seu corpo.
Não , pensou ela, enquanto a mente em que habitava perdia a consciência. Não é o meu corpo, mas o de Kalona!
Avise a Kalona para que ele possa escolher livremente... A voz da Deusa a tirou do corpo dele que morria, e ela estava voltando a si.
– Aphrodite! Fale com a gente! Aphrodite!
Zoey estava segurando a sua mão. Ela não podia vê-la porque os seus olhos estavam cheios de sangue, mas sabia que Z. estava ali. Assim como os braços de Darius a envolviam e Stark estava diante deles em uma posição protetora.
– Kalona – ofegou ela. – Vocês precisam me levar até Kalona.
– Você precisa beber água e ir para a cama – disse Zoey, sua voz parecendo assustada. – E precisamos limpar todo esse sangue.
Aphrodite sabia que aquilo significava algo ruim. Sentia a humidade escorrer pelo seu rosto e empapar a própria camisa. Ela ignorou tudo e apertou a mão de Zoey com força.
– Depois. Levem-me até Kalona agora .
– Ele está em algum lugar do perímetro. Vou encontrá-lo – decidiu Stark.
– Vou carregá-la para o Templo de Nyx. É o prédio mais próximo daqui – disse Darius.
– E eu vou ficar com ela – declarou Zoey, segurando a mão da amiga, enquanto Darius se levantava e já seguia para o Templo.
– E eu vou ficar sonhando com o Xanax e o vinho que me aguardam – comentou Aphrodite, apoiando a cabeça no ombro forte de Darius, mantendo os olhos fechados contra a dor que não passava.
Kalona
– Kalona! Você tem que vir comigo. Aphrodite precisa de você, agora!
Gritando, Stark correu até Kalona enquanto ele e o detetive Marx faziam a varredura do perímetro, discutindo as opções para abrigar o número cada vez maior de humanos que buscavam o santuário da Morada da Noite. Kalona estava gostando da companhia de Marx e do seu senso de humor, sentindo-se renovado e descansado depois de passar um tempo no telhado do Templo de Nyx. A aparição de Stark mudou tudo.
– Houve alguma brecha na segurança do campus ? – perguntou Marx.
– Não. Aphrodite teve uma visão e diz que precisa falar com Kalona.
– Vou até ela – disse Kalona, partindo.
– Espere! – exclamou Stark. – Ela não está no dormitório, mas no Templo de Nyx.
Aquilo não serviu para dissipar o agouro que Kalona começou a sentir, embora mudasse de direção e seguisse para o Templo de Nyx, com Stark e o detetive se esforçando para acompanhá-lo.
Tentou não hesitar na porta do Templo. Queria entrar com passos confiantes, certo de que Nyx permitiria a sua entrada, mas sua mão tremeu quando tocou na maçaneta da porta arqueada de madeira. Ele parou.
Stark quase o atropelou.
– O que você está esperando?
O garoto escancarou a porta e correu lá para dentro. Kalona prendeu a respiração e o seguiu.
A abertura não virou pedra, nem a porta se fechou diante dele. Nyx permitiu a sua entrada.
Agora, bem atrás de Stark, Kalona passou pelo vestíbulo e adentrou o coração do Templo da Deusa. A doçura das velas de baunilha e de lavanda se misturava com o cheiro de sangue fresco. Aphrodite encontrava-se deitada na mesa antiga sobre a qual estava a linda estátua de Nyx. Darius mantinha-se sentado na mesa com a cabeça da Profetisa no colo. Zoey estava colocando uma camisa úmida sobre os olhos de Aphrodite de onde ainda escorria sangue.
– Meu Deus! – exclamou Marx entrando correndo. – Ela está chorando lágrimas de sangue.
– Não estou chorando. Estou tendo uma visão. É uma grande diferença. – Às cegas, Aphrodite virou a cabeça como se estivesse tentado ouvir. – Kalona, você está aqui?
Aphrodite tendia a alternar momentos em que divertia Kalona ou o irritava. Ele nunca tinha conseguido entender por que Nyx tolerava a atitude da garota, que parecia sempre beirar à blasfêmia. No entanto, quando se aproximou dela, um profundo sentimento de reverência o tomou. Esta garota é uma verdadeira Profetisa de Nyx e, assim, merece o meu respeito .
– Sim, Profetisa. Estou aqui conforme a sua convocação – confirmou ele ajoelhando-se ao lado da mesa.
– Bom. A minha visão é sobre você. Na verdade, na minha visão, eu era você. E você morreu – contou ela, franzindo o rosto e arrumando a camiseta que cobria os seus olhos ensanguentados.
– Kalona é imortal. Ele não pode morrer – disse Darius.
– Eu sei que você odeia esse tipo de coisa, mas será que a sua visão não é uma daquelas simbólicas? – sugeriu Zoey.
– Ela não me pareceu nada simbólica. Pareceu bem real. Mortalmente real – respondeu Aphrodite.
– Como foi que eu morri? – quis saber Kalona.
– Você caiu do céu e tinha um buracão no lugar onde deveria estar o seu coração. Não sei o que matou você, se foi o buraco ou a queda. As suas asas também estavam quebradas. De qualquer modo, você estava totalmente morto. E isso não era nada simbólico.
– Cara, isso é ruim – disse Marx. – As visões dela sempre se tornam realidade?
– Ela está bem aqui, e não, nem sempre – respondeu Aphrodite. – O que me leva ao restante da minha visão. Nyx pediu para eu dizer a você... – Ela fez uma pausa. – Você, Kalona, e não Marx, que eu devia lhe avisar sobre o que eu vi para que você pudesse fazer a sua escolha livremente.
O olhar de Kalona passou de Aphrodite para a estátua de Nyx.
– Você tem certeza de que foi isso que a Deusa falou para você sobre mim?
– Foi o que eu disse.
– E tem certeza de que Nyx disse que você estava recebendo essa visão para que eu pudesse fazer a minha escolha livremente?
– Certeza absoluta. Não é como se essa fosse a primeira vez. Sei um pouco sobre Nyx – declarou Aphrodite com seu tom sarcástico de sempre.
– Você sabe por que sempre há velas de baunilha e de lavanda queimando nos Templos de Nyx? – perguntou Kalona para a Profetisa.
Aphrodite deu de ombros.
– Acho que é porque elas são cheirosas.
– Porque elas têm o mesmo cheiro da pele da Deusa – contou Kalona. – Como pode ver, Profetisa, também sei algumas coisas sobre Nyx.
– Tudo bem, você venceu. Mas eu conheço a voz dela, e tenho certeza de que foi Nyx que disse para eu contar sobre a minha visão para que você pudesse escolher livremente.
Kalona olhou para a estátua enquanto as mais dolorosas de suas lembranças passavam pela sua mente. Pela primeira vez, em incontáveis éons, ele abraçou as lembranças e as reviveu honestamente.
Estava de joelhos diante de Nyx, chorando. A sua Deusa olhava para ele não com uma expressão pétrea e sem compaixão, mas com medidas equivalentes de tristeza e resignação.
Não faça isto! Você é minha!
Não faço nada, Kalona. Você tem uma escolha nisso. Eu presenteei até mesmo os meus guerreiros com o livre-arbítrio, mesmo que eu não requeira que eles o usem com sabedoria.
Em vez de pintar Nyx como a vilã, como ele fizera por tantos séculos em que enganara a si mesmo, Kalona se obrigou a reviver a cena de forma sincera. O rosto de Nyx – e o fato de que fora a sua própria expressão que endurecera, a sua própria voz que ficara odiosa, não a dela.
Não consigo evitar. Fui criado para me sentir assim. Isso não é livre-arbítrio. Isso é predeterminação.
Ainda assim, como sua Deusa, eu digo a você que não é predeterminação! A sua vontade moldou você.
Não consigo evitar o que sinto! Não consigo evitar o que sou!
Lembrando-se da cena de modo honesto, Kalona aceitou o fato de que soara como uma criança petulante.
Ele tinha parado de chorar, mas a tristeza de Nyx não podia ser contida. Lágrimas escorriam de seus olhos e banhavam a sua face. Em uma voz engasgada, a sua Deusa dissera: Você, meu guerreiro, está errado. Assim, você deverá pagar as consequências do seu erro. Então, não foi com um simples estalar de dedos que ela se afastou dele, mas com tristeza e lágrimas de sofrimento que ela reunira sua energia divina e lançara sobre ele as consequências da escolha que ele mesmo fizera.
A lembrança se esvaneceu, deixando-o no presente, olhando para a bonita estátua de Nyx.
– Eu acredito em você, Aphrodite. Esta não é a primeira vez que Nyx me pede para fazer uma escolha – declarou ele quando compreendeu o caráter decisivo da visão da Profetisa.
– Será que havia mais alguma coisa na sua visão que poderia nos ajudar a descobrir como Kalona será atacado? – perguntou Darius.
Aphrodite hesitou, e então respondeu:
– É sempre mais difícil quando estou dentro da pessoa que está sofrendo algo de horrível. Tudo fica meio misturado porque o tempo passa muito rápido. Sei que ele estava em Tulsa. Acho que no centro da cidade, pois eu me lembro de ver os prédios abaixo de mim. Ah, e havia uma grande tempestade se formando.
Na distância, ouviram o som de um trovão, e os vitrais do Templo de Nyx estremeceram quando o vento aumentou.
– Que inferno! – exclamou Zoey.
As lembranças recém-despertas de Kalona mostraram outras cenas na sua mente: a invasão ao Mundo do Além... A sua batalha contra Stark... A morte de Stark no poço... A intervenção de Nyx e o preço de sua intervenção tinham sido um pedaço de sua imortalidade.
Em silêncio, Kalona concordou com Zoey.

20
Neferet
– Obrigada, Judson. Eu sabia que você encontraria exatamente o que preciso. Pode deixar tudo ali em cima da mesa, ao lado da porta para a varanda. Ah, e por favor, não vá. Ainda vou precisar de você. Como pode ver, aqui está a Kylee, bem na hora e com o pequeno grupo que pedi para ela formar. – O sorriso de Neferet englobou o grupo assustado de humanos que, relutante, entrava na cobertura, assim como os homens da sua equipe, embora o seu sorriso verdadeiro fosse somente para os seus filhos que possuíam tais pessoas. – Apreciei a sua pontualidade, Kylee. Sirva-me de um cálice de vinho.
Neferet contou os humanos. Havia doze deles. Entre mais de duzentos súditos, doze eram verdadeiramente bondosos o bastante para que Lynette os notasse. A Deusa não ficou chateada pelo número baixo, simplesmente precisava se assegurar de que a sua matemática fosse exata e que haveria pessoas o suficiente.
– Sim – disse ela em voz alta enquanto fazia os cálculos mentais. – Um a cada cinco minutos será de bom tamanho. É uma pequena distância entre o Mayo e a Morada da Noite. Isso lhes dará tempo suficiente e incentivo.
– Deusa? Existe alguma coisa que queira que façamos? Um tipo de dança que gostaria que aprendêssemos? – perguntou uma jovem atraente, fazendo uma bonita reverência.
– Você estava no grupo que dançou valsa, não foi? – perguntou Neferet.
– Sim, Deusa. O meu nome é Taylor.
Neferet deu um suspiro de nojo.
– Ah, não importa. Vou permitir que mantenha o seu nome.
– O-obrigada, Deusa – agradeceu Taylor hesitante.
– E, sim, Taylor, existe algo monumental que quero que vocês doze façam antes do nascer do sol, que será daqui a pouco mais de uma hora. Para celebrar tal evento extraordinário, vou quebrar o meu próprio decreto e falar o nome dela. Lynette. – Neferet pronunciou o nome com cuidado; para ela, ele tinha sabor de traição. – Ela notou que cada um de vocês é especialmente bondoso.
O sorriso de Taylor foi hesitante, mas sincero.
– Isso é muito gentil da parte dela. – A jovem olhou ao redor da cobertura. – Onde está Lynette?
Lembrando-se de que ela precisaria dos doze, Neferet não matou Taylor. Em vez disso, com enorme paciência, explicou:
– Taylor, eu disse que posso quebrar o meu próprio decreto e pronunciar o nome dela. Eu não disse que mais alguém poderia fazer o mesmo.
– Sinto muito, Deusa – apressou-se Taylor a se desculpar fazendo outra reverência.
– Está tudo bem, e é compreensível. Eu deveria ter deixado a minha vontade mais clara. Não se importe com isso, Taylor. Então, como eu estava dizendo, Lynette notou cada um de vocês. Quero que tenham certeza de que só estão aqui por causa dela. – Um estremecimento de medo passou pelo grupo. Neferet sentiu aquilo e sorriu. – Por que não nos sentamos na sala de estar? Prefiro que todos fiquem confortáveis. Kylee, você poderia servir champanhe para os meus súditos, por favor? Judson, você poderia ir até aquela pequena escrivaninha no meu quarto e trazer um daqueles adoráveis cartões-postais de Tulsa e uma caneta?
Enquanto os servos seguiam as suas ordens, Neferet abriu a porta de vidro que levava até a varanda. O vento entrou, carregando o cheiro de chuva consigo. Neferet abriu os braços encantada com o poder da atmosfera que prenunciava uma tempestade.
– Que noite realmente magnífica! Uma tempestade antes do nascer do sol é o meu clima favorito. Adoro Oklahoma na primavera.
– Deusa, aqui estão o cartão-postal e a caneta.
– Obrigada, Judson. – Neferet pegou-os e, com a sua letra fluida, escreveu quatro palavras. Quando terminou, ergueu o olhar, sorrindo para o grupo assustado. – Agora, quem será o primeiro? – Neferet bateu com o dedo no queixo, como se estivesse pensando. – Taylor! Será você!
– O que posso fazer por você, Deusa? – perguntou a garota, nervosa, embora tenha dado o seu sorriso sincero e bondoso.
– Venha até aqui, minha querida. Primeiro, quero entregar-lhe isto.
Taylor tremia enquanto se aproximava de Neferet.
– Vejamos, sim, acho que o bolso da frente da sua calça vai servir muito bem. Ela é feita de um material de boa qualidade e tem bolsos profundos. Lynette estava certa, vou banir o uso do jeans. Vamos esperar que ela esteja certa quanto a este grupo. – Ela sorriu para Taylor e lhe entregou o cartão-postal. – Coloque-o no seu bolso, por favor.
Taylor olhou para o cartão, colocou-o em seu bolso e perguntou:
– O que “um a cada cinco minutos” significa?
– Bem, Taylor, se os meus cálculos estiverem corretos, isso significa que um de vocês vai morrer a cada cinco minutos. Judson e Tony, tragam Taylor comigo.
Neferet foi até a varanda, satisfeita porque o vento carregou os gritos patéticos de Taylor.
– Ali – apontou ela para a parte da frente da varanda. – Jogue-a dali. Balancem-na várias vezes para fazer um bom arremesso. Se eu compreendi corretamente a intenção por trás desse feitiço, a bondosa Taylor passará pela barreira sem ser tocada para que possa cair, berrando, até a calçada lá em baixo.
Sem qualquer emoção, os dois homens balançaram a garota histérica uma, duas, três vezes, e, depois, a atiraram pela varanda. Curiosa, Neferet observou enquanto os braços e pernas se sacodiam até que tivesse caído quase exatamente onde imaginara.
– Da próxima vez, mirem um pouco mais para a direita – ordenou ela aos homens. Então, voltou para a cobertura e para as pessoas que gritavam lá dentro. – Os mais barulhentos serão os próximos! – Como se tivesse soprado uma vela, eles abafaram os próprios gritos. – Kylee, ligue o cronômetro da cozinha para cinco minutos – orientou ela. Neferet fechou a porta da cobertura, pegou a Glock que Judson encontrara no quarto do representante farmacêutico e se sentou na mesa de ferro bistrô que escolhera antes pela altura e estabilidade.
– Venham para mim, meus filhos – ordenou Neferet.
As gavinhas obedeceram imediatamente, voando em sua direção e cercando os seus pés descalços. Ela as analisou com cuidado, por fim, escolhendo uma particularmente robusta. Neferet a colocou sobre a mesa diante de si.
– Isso acabará rapidamente – disse ela para a gavinha que aguardava. – Honrarei o seu sacrifício com o meu próprio sangue. – Embora estremecesse, a criatura não lutou nem tentou escapar. Neferet sorriu. – Você é tão corajosa e forte. Exatamente do que meu feitiço precisa. E que assim comece!
Neferet perfurou a carne negra e escorregadia próxima à boca aberta da gavinha e, então, com um movimento rápido, arrancou um pedaço fino da pele de sua filha.
Pele preciosa cheia de magia
Obedeça ao meu comando; atenda ao meu pedido
O fim de Kalona eu profetizo dentro desta hora
O falso imortal eu hei de abater!
Neferet ergueu a Glock e envolveu o cano da arma com a pele sangrenta, cobrindo a pistola com Trevas. Então, apertou os lábios e soprou ali. Conforme o ar da sua respiração tocava a pele, ela se agitou e desapareceu, sendo totalmente absorvida.
– Se eu estiver certa, e raramente estou errada, isso vai funcionar muito, muito bem.
Distraída, Neferet cortou a parte interna do seu antebraço e ofereceu o corte vermelho para a gavinha ferida, que começou a se alimentar para se curar.
Então, Neferet tomou um gole de vinho e esperou.
Kalona
– Os olhos dela sempre sagram quando ela tem uma visão? – perguntou-lhe Marx.
Antes que pudesse responder, o seu filho falou por ele.
– Sangram. As visões provocam muitas dores. Stevie Rae e Zoey se preocupam muito com ela, principalmente porque a intensidade parece estar piorando.
Kalona e Marx não tinham deixado o Templo de Nyx, mas seguiram para uma das alcovas de meditação iluminadas por velas junto com Rephaim, abrindo espaço para Stevie Rae e Damien, a quem Zoey chamara para trazerem toalhas molhadas, roupas limpas e, depois de muita discussão, uma garrafa de vinho tinto. Aphrodite passou mal quando Darius tentou movê-la, então ele determinou que a sua Sacerdotisa deveria permanecer no Templo da Deusa até a sua recuperação.
Para dizer a verdade, Kalona estava satisfeito com a desculpa para permanecer no Templo de Nyx. Depois de tanto tempo de ausência, parecia não ser possível se satisfazer o bastante com a presença da Deusa, mesmo se fosse apenas através da energia abençoada que, tão certo quanto o cheiro de baunilha e lavanda, permeavam o ar.
– Pai, a visão me deixou preocupado.
A apreensão na voz de Rephaim trouxe a atenção de Kalona do etéreo para o tangível.
Ele sorriu para o filho, gostando da sensação calorosa que sentia ao aceitar a afeição do garoto.
– Não passa de simbolismo. Você sabe o quanto Aphrodite detesta simbolismo. É por isso que ela prefere a interpretação literal.
– Mas ela viu você cair e morrer.
– E ela disse que se tratava de uma morte real, não simbólica – acrescentou Marx.
Kalona deu de ombros.
– Ainda assim, aqui estou eu, bem vivo, com os dois pés plantados no chão.
– Mas não completamente imortal. – Rephaim falou as palavras de forma tão suave que Marx teve de perguntar:
– O que foi que você disse, Rephaim? O seu pai não é o quê?
– O meu filho se preocupa demais – interrompeu Kalona, lançando um olhar ao filho que o impediu de continuar a falar. – A verdade é que Aphrodite já previu a morte de Zoey duas vezes, assim como a de sua avó. Lá está Zoey. E você conhece Sylvia Redbird e sabe que ela está viva e bem. – Kalona pousou a mão no ombro do filho, satisfeito com a sua preocupação, mas também querendo aliviá-lo. – Parece que falta menos de uma hora para o nascer do sol. Você não deveria estar...
O telefone do detetive tocou. Marx olhou para ele e pediu licença para atender.
– Eu não ficarei em silêncio sobre isso, Pai – declarou Rephaim.
– Sobre o quê? – prevaricou ele.
Rephaim franziu o cenho.
– A sua morte iminente.
Kalona riu.
– Imortais não morrem. Ou será que você esqueceu o motivo por que Neferet está causando tantos problemas? Se fosse diferente, Stark simplesmente miraria a sua flecha e a mataria, e tudo se resolveria.
– Você mudou o bastante no Mundo do Além para que o seu juramento em relação à sua imortalidade não o prendesse mais.
– Filho, eu tenho lutado contra as Trevas desde então e sobrevivi ao que, certamente, teria matado qualquer mortal. Entendo a sua preocupação, mas ela é desnecessária.
Marx voltou correndo para o Templo.
– Neferet está lançando reféns vivos pela varanda do Mayo. Um a cada cinco minutos. Dois já morreram. Temos quatro minutos antes que um terceiro aumente o número.
Uma sensação de tranquilidade tomou Kalona.
– Ela deve estar tentando quebrar o feitiço protetor. – Ele se virou para Zoey. – Leve o seu círculo para o Council Oak Tree. Fortaleçam Thanatos e o feitiço protetor. Não importa o que aconteça, não permitam que o feitiço acabe.
– Eu dirijo – disse Stark.
Todos já estavam correndo para a porta.
– Vá com eles! – disse Aphrodite, afastando Darius de si. – Se Neferet sair, estaremos todos mortos.
– Rephaim, vá com Stevie Rae. Certifique-se de que a sua Sacerdotisa fique em segurança – orientou Kalona.
– Você vai comigo? – quis saber Marx enquanto corria em direção ao estacionamento.
– Não – respondeu o imortal. – Eu vou voando. Encontro você lá.
– Tenha cuidado lá em cima – advertiu detetive Marx, oferecendo a mão.
Kalona a apertou.
– Você também, meu amigo.
Então, se voltou para Rephaim e puxou o filho para um abraço.
– Você é a parte da minha vida, da qual eu tenho o maior orgulho. – Ele soltou Rephaim, mas antes de alçar voo, Kalona sentiu um toque suave no seu braço. Olhou para baixo para ver Zoey Redbird observando-o com olhos sábios e grandes.
– Estou feliz por você ter uma segunda chance conosco – declarou ela. – Estou feliz por estar do nosso lado.
Surpreso, Kalona sorriu para Zoe ao perceber o quanto as palavras dela significavam para ele. Ele tocou o rosto da Sacerdotisa.
– Também estou.
Então, levantou voo, batendo as suas asas poderosas com força.
Kalona cortou o céu quase no mesmo ritmo dos relâmpagos. Os ventos da tempestade o fustigavam, mas ele não deu atenção. Tinha um dever para cumprir, uma responsabilidade, um édito da sua Deusa. Protegeria as pessoas que precisavam dele. Não importava o custo. Ele escolhia estar entre Neferet e aqueles que começara a valorizar e até mesmo a amar.
De repente, as nuvens diante dele começaram a mudar de forma até que Kalona estivesse diante dos olhos brilhantes do Touro Branco. O seu corpo era uma enorme nuvem, e seus chifres gotejavam uma chuva de sangue.
Embora façam éons desde o nosso último encontro, você é tão previsível agora quanto naquela época , ressoou a voz na mente de Kalona. Que trato mutuamente benéfico devemos fazer dessa vez, Kalona?
– Nenhum, Touro. Da última vez em que nos encontramos, eu o rejeitei com palavras, mas não com o meu coração ou com as minhas ações. Da última vez, permiti que as suas Trevas se alimentassem da minha fraqueza e envenenassem a minha vida. Dessa vez é diferente. Dessa vez, eu o rejeito não só com palavras, mas com o meu coração e as minhas ações.
É mesmo, filho da Luz? Você ainda me rejeitaria se eu dissesse que tenho o poder de restituir tudo que você perdeu durante os éons em que vagou pelo reino mortal?
– Não há nada que você possa me dar que valha a pena pagar o preço.
Mas você nem ouviu o meu preço. Seria tão pequeno em comparação a tudo que perdeu.
– Ouça-me bem e com muita atenção, Touro, embora você nunca vá entender o que eu digo porque o seu espírito é doente. Mesmo se eu não conseguir o que desejo. Mesmo que eu não consiga controlar tudo à minha volta, os fins não justificam os meios. É impossível conquistar o amor com o mal. De uma vez por todas, eu escolho a Luz! – Kalona ergueu os braços e a sua lança de ônix apareceu. – Agora, vá e deixe-me com as consequências da minha escolha!
Enfiou a lança contra a forma da nuvem de tempestade. Com um grito de dor e raiva, a criatura desapareceu.
Kalona cerrou os punhos para controlar os tremores que sacudiam o seu corpo.
– Não tenho tempo para sentir medo. Tenho o meu dever a cumprir.
Resoluto, continuou o seu voo.
Kalona pousou no telhado mais alto do prédio da Oneok a tempo de ver dois homens arrastando uma garota que esperneava pela varanda do Mayo. Neferet estava sentada atrás de uma mesa no meio da varanda, bebericando em um cálice de cristal.
O que ela está fazendo? Por que está simplesmente atirando pessoas pela varanda? Kalona tentou resolver o enigma enquanto os homens que seguravam a garota lançavam um olhar de expectativa para Neferet, obviamente aguardando o seu sinal. Kalona não conseguia enxergar nada, a não ser loucura por trás das ações de Neferet. Não é estranho para ela torturar humanos. E a morte lhe dá poder. Talvez esteja se divertindo e aproveitando o ganho de energia. Talvez simplesmente esteja entediada e jogando a sua versão macabra de um jogo.
Neferet assentiu. Um dos homens pegou a garota pelos braços e o outro a agarrou pelas pernas. Começaram a balançar a garota para que pudesse ser lançada pela beirada. Mesmo por sobre o som do vento e dos trovões, Kalona conseguia ouvir os seus gritos.
Kalona se ergueu, abriu as asas e se preparou para mergulhar e salvar a garota.
O cálice de Neferet se espatifou no chão quando ela o viu. Ela pegou uma arma e apontou para ele.
Então, Kalona compreendeu o seu jogo.
Ele também entendeu a visão de Aphrodite. A Profetisa estava certa: o significado era literal, e não simbólico.
Obrigada, Nyx, por me dar uma escolha. Mas, desta vez, eu cumprirei o meu dever. Desta vez, eu escolho a Luz, não importa o custo.
Kalona saltou do topo do prédio da Oneok com os braços e as asas abertos, um alvo claro, enquanto mergulhava para salvar mais um ser humano das consequências da loucura de Neferet.
Mas os homens não atiraram a garota. Em vez disso, eles se abaixaram, dando a Neferet a mira certa para o tiro. O laser vermelho brilhou no centro do peito de Kalona instantes antes de ela começar a puxar o gatilho repetidas vezes, descarregando a pistola no seu corpo.
As balas revestidas de Trevas atingiram o corpo de Kalona, perfurando-o e enviando veneno para queimar o seu coração. Ele tentou permanecer ereto, mas o seu corpo, atingido pela força dos tiros, se inverteu, deixando-o de cabeça para baixo e o desorientando. Ele comandou as suas asas para mantê-lo no céu e no ar, mas todo o controle sobre o seu corpo e a sua força natural tinham se rompido.
Pela segunda vez nos seus éons de existência, Kalona caiu.
Detetive Marx
– Ele caiu! O cara alado caiu! Precisamos de um ônibus no Mayo... Agora!
O rádio no carro à paisana de Marx berrou as notícias e ele apertou o acelerador, virando à esquerda na Seventh Street. Pegou o rádio e gritou:
– Aqui é o detetive Marx. Retirem o bloqueio na Seventh com a Boulder... Estou passando.
O seu carro derrapou e ele fez uma prece silenciosa. Permita que o seu aviso o tenha salvado, Nyx... Permita que o seu aviso o tenha salvo...
Enquanto passava pela estrada bloqueada, Marx viu a rua diante do Mayo, acelerando ainda mais no volante. Uma sensação ruim tomou o seu estômago. Kalona estava caído no meio da rua. Sem se importar com a própria segurança, Marx manobrou o carro e o colocou entre Kalona e o Mayo, formando um escudo. Correu para o imortal alado e se ajoelhou. O grandão ainda respirava, mas estava mal. Pior do que mal. Não parecia ter nenhum osso quebrado, e a sua cabeça não se partira em duas. Mas o centro do seu peito formava uma ferida sangrenta, obviamente causada por vários tiros. O ímpeto da queda fora amortecido pelas asas enormes. Elas estavam à sua volta, partidas como se feitas de porcelana negra. O sangue escorria dos ossos partidos que apareciam por entre as penas negras. Marx fez a única coisa que sabia – pressionou as duas mãos contra o ferimento no peito e o comprimiu.
– Aguente firme, Kalona. A ambulância está a caminho.
Os seus olhos cor de âmbar se abriram e focalizaram Marx.
– Diga para Aphrodite que ela estava certa.
Ele tinha de forçar para que as palavras saíssem, e isso o fez tossir e gemer.
– Não fale nada. Você mesmo pode dizer isso para ela. Só fique comigo. Vou levá-lo para o hospital.
– Não. Leve-me até Thanatos.
Então, ele fechou os olhos e não disse mais nada.
No entanto, Marx continuou falando com ele, mantendo a pressão no ferimento, mesmo ao perceber que o sangue de Kalona formava uma poça ao redor deles em um fluxo cada vez maior.
Quando a ambulância finalmente chegou lá, os paramédicos pareciam confusos e temerosos de se aproximarem.
– Mas qual é a porra do problema de vocês? Coloquem ele na maca! – explodiu Marx.
– Detetive, ele é grande demais. Não vai caber na maca – informou um dos paramédicos.
– Vamos levantá-los com você, detetive.
Marx ergueu os olhos e viu o jovem policial Carter e mais uma dezena de policiais uniformizados.
Marx assentiu com um agradecimento sombrio.
– Peguem a maca lá trás. Vamos colocá-lo lá e, depois, pegamos um ônibus. – Sem dar uma escolha para os paramédicos, ele disse a Carter: – Vamos levá-lo para lá. No três, a gente o levanta.
Os policiais cercaram Kalona e o ergueram, deixando para trás as partes quebradas de suas asas e a poça de sangue. Kalona não emitiu qualquer som enquanto o colocavam na ambulância. Marx percebeu que estava vivo, pois acomodou-se ao lado dele e viu que o seu coração ainda batia, fazendo o sangue jorrar do terrível ferimento. Marx abriu embalagens de gaze e as pressionou contra o peito de Kalona enquanto gritava pela janela para Carter:
– Vamos para o Council Oak Tree. Agora!
Neferet
– Para cima, meus filhos! Ergam-me para que eu possa testemunhar o meu plano dar frutos. As gavinhas das Trevas a envolveram e a ergueram alto o bastante para que visse por sobre a varanda a rua lá embaixo, enquanto tomavam o cuidado de mantê-la longe o suficiente da beirada para não se queimarem.
– Magnífico! Ele caiu bem no meio da rua. Quase no mesmo lugar onde ele debochou de mim de forma tão arrogante não há muito tempo, desrespeitando-me e tirando de mim a minha serva favorita. Bem, minhas crianças, ele não fará isso de novo. Nenhum homem jamais me trairá novamente.
A garota que Judson e Tony tinham usado como isca para Kalona soluçava histericamente, ainda caída no lugar onde os dois homens a largaram. Neferet suspirou e fez um movimento para que os seus filhos a descessem.
– Você está segura agora – disse ela para a garota chorosa. – O que eu fiz foi para nos proteger. Kalona era o meu inimigo e, assim, inimigo de vocês também. Você deveria regozijar-se com a minha vitória.
A garota enxugou os olhos com mãos trêmulas, mas não conseguia parar de chorar.
– Kylee! – chamou Neferet, e a serva correu para a varanda até ela. – Eles simplesmente não conseguem compreender que fiz isso para proteger a todos. Livre-se deles. Imediatamente. Estão me dando dor de cabeça. Judson vai ajudá-la.
– Devemos jogá-los todos juntos pela varanda? – perguntou Judson.
– Não, não, não! Não precisa desperdiçá-los. Apenas os acompanhe até os seus quartos.
– Sim, Deusa – entoaram juntos Judson e Kylee, antes de Judson arrastar a garota histérica da varanda e juntar o restante dos mortais chorosos e tirá-los da cobertura.
– Bem melhor – disse ela quando um silêncio feliz retornou ao seu domínio. Neferet se dirigiu a Tony, o chef que aguardava obedientemente o seu próximo comando. – Tony, você pode voltar para a cozinha. Para celebrar a minha vitória, eu gostaria de um bolo. Um bolo de chocolate com flores de jasmim para decorá-lo. Você pode fazer isso para mim?
– Será como você ordena, Deusa – disse ele de forma enfadonha.
Neferet sorriu. A possessão de Tony definitivamente havia melhorado a sua personalidade.
Ainda sorrindo, Neferet voltou devagar à pequena mesa para pegar a sua taça de vinho e franziu o cenho, irritada. Esquecera de que, na pressa para matar Kalona, ela a tinha quebrado.
– Kylee nunca está aqui quando preciso dela – reclamou, com um suspiro. Considerou ordenar um dos seus outros filhos para que trouxesse outra taça para ela. – Ah, se apenas tivessem um polegar em oposição aos outros dedos – resmungou mais para si do que para as coisas rastejantes que nunca ficavam muito longe dela.
Neferet ficou ereta, e a atmosfera na varanda mudou completamente. O vento agradável ficou gelado. O cheiro da tempestade de primavera se perdeu no fedor de um túmulo. Seus filhos voaram para se reunir à sua volta, nervosos.
– Não há com o que se preocupar – ela os tranquilizou.
Neferet dirigiu-se graciosamente para o meio da varanda. Ereta e orgulhosa, aguardou a materialização dele.
O Touro Branco tomou forma diante dela, que estremeceu quando seu corpo forte se solidificou. Seus chifres de opala estavam molhados nas pontas, tocados, mesmo que de leve, com o tom escarlate de sangue fresco. Sua cobertura era luminosa sob a luz que precede a aurora. Cada raio de relâmpago que rasgava o céu brilhava através dele. Branco era um adjetivo simples demais para descrever a sua magnificência. Quanto mais Neferet olhava para o Touro Branco, mais cores iridescentes via nele – e quanto mais olhava, mais vontade sentia de acariciá-lo.
– Meu senhor – disse ela, fazendo uma ligeira reverência. – Bem­-vindo ao meu Templo.
Obrigado, senhora sem coração. Eu estive observando você. Sua voz retumbou pela mente de Neferet, cobrindo de vergonha o poder da tempestade prestes a cair. Você me surpreendeu – duas vezes desde o nosso último encontro.
– Fico feliz de saber, meu senhor. – Neferet se aproximou dele. Estendeu um dos dedos finos e tocou a ponta do chifre afiado. Delicadamente, levou o dedo à boca e provou o sangue. – Vampiro, vampiro antigo. Muito antigo e poderoso. Então, era isso que o mantinha tão longe de mim, embora eu não acredite que este vampiro ancião tenha se entregado a você com tanta boa vontade quanto eu.
A risada do touro ecoou ao redor deles.
Os escoceses nunca se entregam facilmente. No entanto, quando eu os arranco da ilha de Skye, eles ficam particularmente suculentos e dignos do esforço.
Neferet não deu qualquer sinal externo do choque que as suas palavras lhe causavam. Ela sorriu e molhou o dedo outra vez no sangue.
– A ilha de Skye – começou ela, pensativa, parando para lamber o dedo. – Se você está caçando na ilha de Sgiach, isso só pode significar que o equilíbrio entre a Luz e as Trevas está realmente mudando.
Você é tão sábia quanto sem coração – e surpreendente também. Ele lambeu a pele macia na parte interna do braço da Deusa.
Neferet estremeceu de prazer.
– Obrigada, meu senhor. E essa é a segunda vez que menciona a palavra surpresa. Diga-me, o que fiz que seja digno da sua atenção divina?
A primeira vez foi na igreja. Sempre me perguntei se você realmente abraçaria a sua natureza enquanto abraçava a sua imortalidade. Assisti-la fazer as duas coisas em uma exibição espetacular de massacre impressionou até mesmo a mim.
Neferet deu um sorriso sedutor.
– Estou lisonjeada.
Você me surpreende, então gosto de lisonjeá-la.
– E a segunda das surpresas? – insistiu, quando ele parecia mais interessado em provar a sua pele em vez de lisonjeá-la.
Você sabe muito bem que a segunda acabou de acontecer.
– A morte de Kalona – concluiu Neferet pronunciando as palavras com reverência, como se estivesse orando para si. – Eu não me divertia tanto assim... bem, desde a última vez em que eu o adorei.
Ah, agora sou eu que estou lisonjeado , senhora sem coração .
– Sempre, meu senhor. Escolho sempre lisonjeá-lo – declarou Neferet.
Você realmente escolheria sempre me adorar? A voz dentro da sua cabeça se intensificara e estava à beira de provocar-lhe dor.
– O que você propõe? – perguntou ela, acariciando o pescoço musculoso e apreciando a sensação fria de sua cobertura.
Posso tirá-la desta prisão na qual a colocaram. Você poderia passear comigo entre os reinos. Eu a chamaria de Consorte, como certa vez foi o seu desejo .
– Uma proposta tentadora, meu senhor – disse Neferet, mergulhando o dedo no sangue do seu chifre novamente, e conseguindo um pouco de tempo para pensar: por que eu seria a Consorte quando já me proclamei Deusa? Por que me curvar e servir a um deus quando sou imortal? – Será que posso ter tempo para pensar?
É claro que sim, e eu gostaria de lhe dar um presente enquanto você considera a minha proposta. Eu a libertaria do feitiço protetor que a aprisiona.
– Meu senhor, é muita generosidade da sua parte – disse Neferet, enquanto pensava: e assim me ligando a você, já que isso me deixaria em dívida novamente. – Mas prefiro que eu mesma me liberte. Seria outra oportunidade de surpreendê-lo.
Na hora, Neferet sentiu o desprazer do touro.
Ah, uma terceira surpresa.
– Espero que não seja uma surpresa desagradável. – Neferet acariciou o pescoço da criatura novamente.
Não pense nisso, minha senhora sem coração. Pela eternidade, eu descobri que quanto mais desejamos algo, maior é o sacrifício que devemos fazer para conseguir.
Então, ele bateu com o seu casco na pedra da varanda, fazendo o telhado tremer. E, com um som ensurdecedor, o Touro Branco desapareceu por entre as nuvens de tempestade, deixando a marca do seu casco para trás.
Thanatos
– Zoey Passarinha?
Thanatos detectou a preocupação na voz de Sylvia Redbird. Abriu os olhos. Shaunee já estava espiando pela abertura da tenda. O vento aumentara e o trovão retumbava na distância. As mulheres trabalharam para protegê-la contra a tempestade que logo chegaria, e ela e Shaunee descansavam lá dentro.
– O que houve? – perguntou Thanatos, cansada.
Erik, que não se afastara de Shaunee a noite inteira, respondeu do lado de fora da tenda:
– Zoey está aqui, assim como o restante do seu círculo, mais Stark, Darius e Rephaim. É melhor...
– Rápido! – exclamou Zoey por sobre o vento. – Neferet está tentando quebrar o feitiço. Vamos formar um círculo para canalizar mais energia para você.
Thanatos se sentou, segurando-se à mesa para se equilibrar. Estava tonta e fraca, mas não sentira nenhuma força contra o feitiço.
– Zoey, faça o círculo se você acredita que é o que deve fazer, mas não estou sentindo nenhum distúrbio na barreira.
– Nem eu – disse Shaunee. – Na verdade, está melhor, visto que já é tão tarde e obviamente uma tempestade está se formando. As pessoas estão finalmente ficando em casa.
– Vamos formar o círculo – afirmou Zoey para Thanatos, decidida. – Você não precisa invocá-lo. Vou pegar a vela do espírito e canalizar os elementos para você. – Enquanto Damien, Shaylin e Stevie Rae tomavam os seus lugares, Zoey entrou na tenda para pegar a vela do espírito. – Sinto muito quanto a isso, sei que você está muito cansada, então sente-se do lado de fora da tenda. Vou fazer o meu melhor para canalizar tanto fogo quando eu puder para você.
– Vamos, vou ajudá-la. – Erik ofereceu a mão a Shaunee e ela se apoiou nele para dar alguns passos, antes de se sentar no chão diante da tenda.
– Zoey, explique o que aconteceu. Por que você está tão agitada? – quis saber Thanatos.
– Neferet está lançando reféns pelo telhado do Mayo. Ela está tentando quebrar a barreira – explicou Zoey rapidamente enquanto o seu círculo tomava os seus lugares e ela pegava os grandes fósforos de madeira na mesa do alta.
Lutando para clarear os pensamentos, Thanatos se ergueu, apoiando-se pesadamente na mesa.
– Não, como Shaunee disse, a barreira está segura. Não houve qualquer rompimento. Neferet deve ter outros motivos. Ela... – Thanatos ofegou, chocada, e caiu de joelhos.
– Darius! Stark! Ajudem-me! Tem algo errado com Thanatos. Ela desmaiou.
– Não. – Thanatos lutou para falar. – Não sou eu, é Kalona!
– O que ela disse? – quis saber Stark, enquanto ele e Darius tentavam deixá-la confortável.
– Ela disse o nome do Kalona.
A voz de Zoey foi silenciada, como se já soubesse o que Thanatos sabia.
O som da sirene de uma ambulância se aproximava cada vez mais.
– Ajude-me a me levantar! Vamos logo! – pediu Thanatos. – Zoey, prepare o seu círculo. Eu vou precisar tomar o seu poder emprestado, mas não é para a barreira.
– Sinto muito – disse Zoey, apertando a mão da Grande Sacerdotisa, antes de pegar os fósforos do ritual e se postar diante de Damien a leste.
Thanatos se preparou e estava pronta. Zoey voltou para o centro a fim de ficar diante dela, chamou o espírito e invocou:
– Ar, fogo, água, terra e espírito! Por favor, encham a nossa Grande Sacerdotisa, Thanatos, e lhe deem forças para o que está por vir.
Thanatos se empertigou, respirando fundo e sentindo o poder dos cinco elementos correr por suas veias como se substituíssem o seu sangue. Ela se soltou das mãos de Stark e Darius, que a seguravam. A ambulância parou no meio da Cheyenne Avenue.
– Rephaim, venha até aqui, por favor. – O garoto estivera perto de Stevie Rae, bem do lado de fora do círculo.
– Você quer que eu entre no círculo?
– É o que deve fazer. E bem rápido.
Com um olhar preocupado para Stevie Rae, Rephaim se aproximou do fio de prata que unia os elementos e traçava a circunferência do círculo. O fio de luz se abriu e se recompôs, mas apenas o suficiente para que Rephaim entrasse antes de se fechar novamente.
– Tem algo muito errado – disse Rephaim para ela.
Thanatos sustentou o olhar do garoto.
– É o seu pai. Seja forte por ele.
Rephaim empalideceu enquanto as portas traseiras da ambulância se abriram e policiais, liderados pelo detetive Marx, tiravam Kalona lá de dentro.
– Pai!
Thanatos colocou a mão no braço do garoto para evitar que ele saísse.
– Ele precisa vir até nós. O círculo vai aceitá-lo, assim como o aceitou. – Thanatos ergueu a voz e gritou: – Detetive Marx, traga o meu guerreiro até mim.
Ouviram o som terrível de um trovão, e relâmpagos iluminaram o céu, fazendo com que as tochas que Sylvia acendera no parque parecessem tão insignificantes quanto vagalumes.
– Eu não consigo carregá-lo sozinho – disse Marx do lado de fora da circunferência brilhante.
– Todos os que carregam Kalona são bem-vindos ao círculo.
Marx não hesitou e deu um passo à frente. Os seus homens se moveram carregando Kalona consigo e deitando-o suavemente no chão aos seus pés.
Rephaim estava chorando. Thanatos olhou das asas partidas de Kalona para as gazes encharcadas que quase não evitavam que o sangue escorresse pelo seu tórax. Por fim, o seu olhar pousou no rosto sem cor. Ainda sem afastar o olhar do seu guerreiro, ela agradeceu:
– Detetive Marx, obrigada por tê-lo trazido até mim.
– Ela atirou nele quando ele estava voando! Esvaziou uma pistola Glock em seu peito. Kalona estava tentando salvar as pessoas que Neferet atirava pela varanda. Não havia nada que eu pudesse fazer.
– Você fez o que ele precisava. Você foi um bom amigo para ele.
– Gostaria de ter continuado a ser por um pouco mais de tempo – respondeu o detetive, enxugando as lágrimas do rosto.
– Ele está morrendo ? – Os olhos de Rephaim brilharam de choque e tristeza.
– Estou – confirmou Kalona, abrindo os olhos. – Venha aqui, filho. – Ele ergueu a mão sem força.
Rephaim caiu de joelhos ao lado do pai, agarrando a sua mão.
– Não! Você não pode morrer! Você é imortal!
Kalona tossiu, e uma espuma de sangue saiu dos seus lábios.
– Eu sabia que isso poderia acontecer. Foi a minha escolha, Rephaim. Lembre-se: minha escolha. – O olhar de Kalona se afastou do filho por um momento e pousou em Stark, que estava em silêncio, ao lado de Thanatos. – Use o pedaço de imortalidade que eu lhe dei para a Luz. Proteja a sua Sacerdotisa. – Os seus olhos pareciam estar perdendo o fogo. Ele piscou, esforçando-se para olhar à sua volta, então encontrou Zoey. – Perdoe-me... Por toda a dor que provoquei.
– Com todo o meu coração, eu o perdoo – respondeu Zoey.
Kalona tossiu mais sangue e fez uma careta. Então, tocou o rosto do filho.
– Você é a melhor parte de mim. Encontre os seus irmãos. Cuide deles. E cuide de Stevie Rae. Se perdê-la, você se perderá.
– Farei o que me pede, Pai – aquiesceu Rephaim, soluçando. – Eu amo você.
– Eu sempre vou amá-lo. Sempre – declarou Kalona. Por fim, o seu olhar que se esvaía focou em Thanatos. – Obrigado por confiar em mim.
O coração de Thanatos ficou pesado de tristeza, mas ela sorriu para ele.
– Eu nunca aceitei um Juramento de Guerreiro antes de você, e creio que não aceitarei mais nenhum. Você foi um Guardião digno e bondoso.
Os lábios tingidos de sangue de Kalona se abriram em um sorriso satisfeito:
– Eu não quebrei o meu juramento...
Kalona inspirou ofegante, até que seu peito parou de se mover, seus olhos cor de âmbar perderam a luz... e ele morreu.

21
Kalona
Morrer era mais doloroso do que Kalona imaginara que seria – embora, durante os éons de sua existência, raramente tenha pensado naquilo. Ele conhecia bem a morte de uma forma abstrata. Tinha, é claro, matado um sem-número de vezes. Algumas das mortes foram justificáveis; outras, não. Desde que deixara o Mundo do Além, a maior parte das mortes causadas por ele ficava na última categoria.
Foi algo de que se arrependeu enquanto morria... Aquelas mortes injustas que causara. Isso, além do tempo que tinha desperdiçado antes de aceitar o amor do filho, assim como a perda de Nyx. Esses eram os seus três arrependimentos, embora, mesmo no momento de sua morte, não conseguisse pensar na perda de sua Deusa.
Quando não pôde mais respirar, a sua visão começou a ficar cinzenta e preta – por fim, a dor que permanecia em suas asas se dissipou, e a chama da agonia que estava no seu peito começou a esfriar lentamente. Kalona só teve um instante para se preparar para o inimaginável e, então, tudo ficou preto.
– Estenda a mão, Kalona. Pegue a minha mão.
A voz de Thanatos atravessou o negrume que o sufocava. Tentou respirar. Não conseguia. Tentou abrir os olhos. Não enxergava. O espírito de Kalona começou a se debater nas paredes que o aprisionavam.
– Kalona! Você precisa segurar a minha mão.
Eu não consigo ver a sua mão!
– Você não precisar ver. Só tenha fé de que ela está lá. Kalona, pegue a minha mão.
Às cegas, Kalona ergueu a mão. E Thanatos estava lá! Ele não conseguia vê-la, mas podia sentir a sua mão firme e quente. Com toda a sua força, segurou enquanto ela puxava. Com um lampejo de luz e som, a visão de Kalona voltou. Ele cambaleou, mas Thanatos o segurou com firmeza.
– Está tudo bem, guerreiro. Você está livre do corpo ligado a você – declarou Thanatos.
Kalona olhou para baixo e teve uma experiência inesperadamente vertiginosa ao ver o próprio corpo ferido. Seus olhos, então, rapidamente se voltaram para Thanatos.
Eu estou morto .
– Está.
Só consigo ver você e senti-la por causa da sua afinidade.
– Sim e não. Você não pode sentir nada deste reino, a não ser a minha mão que o libertou. Você pode ver os outros, embora eles provavelmente não consigam vê-lo.
Thanatos fez um gesto ao redor deles.
Kalona piscou. Sua visão estava estranha, era como se estivesse vendo tudo, a não ser Thanatos através de uma lente grossa e embaçada. Olhou à sua volta. Conseguia enxergar a árvore e o círculo. Olhou rapidamente pelo seu corpo e, daquela vez, viu que Rephaim estava ajoelhado ao seu lado, chorando de forma sofrida.
Diga a ele para deixar a tristeza. Diga a ele que estou aqui, bem ao seu lado.
– Se esse é o seu desejo, eu farei isso. Mas você deve saber que poderei me comunicar com você por um tempo limitado. Até mesmo o meu dom tem os seus limites.
O que eu devo fazer? Como posso ajudá-lo?
– Você não pode mais ajudar nem a ele nem a ninguém neste reino. Chegou a hora de partir.
Kalona olhou para Thanatos.
Você quer dizer para o Mundo do Além – para o reino de Nyx?
– Sim.
Kalona experimentou o mesmo tipo de pânico que vivenciara quando estivera preso ao seu corpo.
Ela me baniu. N ão permitirá a minha entrada.
– Como é que você pode ter certeza de que Nyx não lhe aceitará?
A sua mente falhou, lembrando-se do que acontecera quando invadira o Mundo do Além e pedira o perdão de Nyx. A resposta dela fora inflexível: “Se você um dia se mostrar digno de perdão, peça-o para mim. Mas não antes disso... seu espírito, bem como seu corpo, estão proibidos de entrar no meu reino”.
Eu já pedi. Nyx não me perdoou. Ela proibiu a minha entrada.
– Você merecia o seu perdão na época?
Não, é claro que não! Mas será que eu mereço agora? Como é que posso reparar séculos de dor que causei à Deusa e aos seus filhos porque escolhi a raiva e o ciúme em vez da confiança e do amor?
– Essa é uma pergunta que você precisa ter a coragem de fazer para a sua Deusa – respondeu Thanatos.
E se ela recusar o perdão? O que acontecerá comigo?
Os olhos de Thanatos de repente pareceram velhos com o conhecimento de muita dor e sofrimento.
– Se Nyx não permitir a sua entrada no Mundo do Além, você irá vagar no reino em que morreu.
Sem poder ser ouvido ou visto?
Thanatos assentiu.
Por quanto tempo.
– Quanto tempo dura a eternidade?
Um estremecimento terrível passou por Kalona, e os seus olhos pousaram novamente no seu filho.
Você vai saber se Nyx me aceitou ou não?
– Vou. Mas perderei a habilidade de me comunicar com você – disse ela, triste.
Se ela me rejeitar, eu olharei pelo meu filho.
– Ele não saberá disso – explicou Thanatos.
Saberá se você disser a ele.
– Farei isso, se é o que deseja.
É. Os seus olhos se encontraram de novo. Estou pronto. O que eu preciso fazer?
– Eu sou a única coisa que o prende a este mundo agora. Simplesmente, solte a minha mão e ascenda.
Obrigado, Thanatos. Por tudo.
– Kalona, eu desejo que seja abençoado eternamente.
Quando a Grande Sacerdotisa da Morte ergueu o seu braço, ele soltou a mão dela, e o seu espírito começou a subir... E subir.
Kalona estava intimamente acostumado a voar. Ele voara nos céus deste reino, assim como nos do Mundo do Além. E, se tivesse tempo ou vontade, poderia contar os outros reinos pelos quais voara, sempre a serviço da Deusa.
Sua ascensão foi diferente de tudo que experimentara antes.
A princípio, a escuridão era completa, tão completa que ele só podia esperar que continuasse subindo. Estava começando a se preocupar – pensar que Nyx já o tinha julgado e o considerado não merecedor –, mas, então, a escuridão se ondulou e brilhou com uma iridescência que o lembrou da cor do mar que cerca a antiga ilha de Capri.
O céu topázio se ondulou de novo e, então, se abriu como uma cortina para revelar um caminho de piso conhecido e cor de ferrugem. Atrás, havia duas árvores: um espinheiro e uma sorveira. Kalona as reconheceu. Ele e Nyx costumavam visitar aquele lugar – uma entrada para o seu Bosque Sagrado. Faixas de tecido colorido e brilhante estavam amarradas nos galhos retorcidos das árvores, com votos de sorte por Nyx, assim como os daqueles que passam para o reino da Deusa. As faixas de tecido dançavam ao vento, mudando de cor, para que um número infinito de desejos fosse representado. Atrás da árvore dos desejos, estendiam-se quilômetros e mais quilômetros da terra mais sagrada de Nyx. Kalona conhecia cada um dos caminhos, cada árvore, cada riacho cristalino e o vale verdejante.
Mesmo que não pudesse ficar ao seu lado, Kalona queria andar por ali de novo e encontrar uma vez mais a paz que esse bosque lhe dava.
A sua ascensão chegou ao fim. Kalona pisou no chão cor de ferrugem e aguardou.
Zoey
Kalona estava morto! Era inacreditável e inegável. Eu estava bem ao lado de Thanatos, segurando a vela do espírito, quando ele morreu – sorrindo e dizendo que não tinha quebrado o seu juramento.
Rephaim se descontrolou. Estava curvado sobre o corpo do pai, soluçando tão descontroladamente que parecia que seu corpo se despedaçaria. Stevie Rae estava atrás de mim, ainda na sua posição ao norte da Terra, mas eu sentia a sua inquietude. Ela ia quebrar o círculo e andaria até Rephaim. Não podia culpá-la. Eu estava prestes a apagar a minha vela do espírito e fechar o círculo quando Thanatos estendeu a mão, como se a estivesse oferecendo para Kalona; parecia que ele levantaria o braço para pegá-la. E me lembrei do que Thanatos me disse quando solicitou que eu invocasse o círculo: “Zoey, prepare o seu círculo. Vou precisar do seu poder emprestado...”.
Thanatos já sabia que Kalona estava morrendo. Ela precisava do círculo para ele!
– Stevie Rae, você precisa ficar no seu lugar – disse eu, olhando por sobre o meu ombro para a minha melhor amiga, que chorava sem parar. – Não podemos fechar o círculo. Thanatos precisa dele, assim como Kalona.
– Mas ele está morto! – soluçou Stevie Rae. – E Rephaim precisa de mim agora.
– Stevie Rae, Thanatos é a Morte. Assim como você é a Terra – expliquei. – Ela pediu que invocássemos o círculo e confiássemos nela para sabermos quando fechá-lo.
A vela de Stevie Rae tremia enquanto ela chorava, mas a garota assentiu e não quebrou o círculo.
Voltei a minha atenção para Thanatos, que parecia congelada com a mão estendida. A sua expressão estava alterada, como se estivesse em uma conversa psíquica com alguém, mas nada mais mudou.
– Você sabe o que está acontecendo? – perguntou-me detetive Marx, pálido e coberto com o sangue de Kalona.
Eu não sabia ao certo, mas arrisquei e falei o que estava no meu coração.
– Thanatos está ajudando a alma de Kalona. Lembra-se? Como na frente do Mayo.
Marx apertou os olhos e baixou a voz até um sussurro.
– Não estou vendo luzes brilhantes.
– Aquelas eram almas humanas. Não importa o que tenha acontecido hoje, Kalona foi imortal por séculos e séculos. A sua alma deve ser diferente.
Mas eu estava errada. Thanatos de repente descongelou e levantou o braço para cima como se jogasse um frisbee para o espaço, e uma órbita brilhante e prateada – bem parecida com as que se juntaram na frente do Mayo – subiu para os céus e mergulhou nas nuvens tempestuosas do céu antes da aurora.
– Thanatos estava certa. Somos mais parecidos do que diferentes – disse Marx.
– Aiminhadeusa! Olhem lá para cima! – Shaylin estava apontando para o céu.
Todos olhamos para o céu sobre o rio Arkansas se ondular e se abrir. Kalona estava de pé em um espaço redondo de terra vermelha em um lugar do qual eu me lembrava muito bem.
– É a entrada para o Mundo do Além e para a árvore de pendurar segredos! – exclamou Stark de onde se encontrava, bem do lado de fora do círculo.
– E para o Bosque Sagrado de Nyx – acrescentei.
O meu olhar encontrou o dele e compartilhamos um sorriso. Conhecíamos bem aquele lugar. Stark quase morrera lá para eu poder viver.
– Filho, tire os seus olhos da concha que era o seu pai e veja o que ele realmente se tornou – orientou Thanatos, descansando a mão no ombro dele.
Ele ergueu o olhar a tempo de ver Nyx sair do bosque e se aproximar de Kalona. Um imortal alado caminhava ao seu lado. Parecia ser idêntico a Kalona, a não ser pelas asas douradas menores e mais delicadas.
– Aquele deve ser Erebus – disse Damien.
Então, Kalona caiu de joelhos e curvou a cabeça, e estávamos hipnotizados demais com a cena que se desdobrava diante de nós para falar.
Nyx, eu me ajoelho perante você e peço o seu perdão . A voz de Kalona viajou facilmente entre os dois reinos. Consegui até perceber o quanto ele se sentia vulnerável.
Você é sincero quando o pede ou está simplesmente aterrorizado de ser forçado a vagar eternamente pelo reino dos mortais? , perguntou Erebus. Ele não parecia odioso, apenas curioso. Mas senti os meus pelos se eriçarem. Por que de repente ele estava falando por Nyx?
A cabeça de Kalona continuou curvada, como se não suportasse olhar para a Deusa, mas ele falou novamente, dessa vez com mais confiança.
Deusa, estou aqui para pedir o seu perdão, e aceito completamente quaisquer consequências que eu tenha de enfrentar pelos erros que cometi.
Quando Erebus abriu a boca para falar alguma coisa, Rephaim se ergueu, gritando:
– Deixe-o em paz! Ele nem está falando com você!
Kalona não pareceu ouvi-lo, mas Erebus foi silenciado.
– Isso mesmo – disse Stevie Rae dando um pequeno soluço. – Deixe o pai de Rephaim em paz. Ele está pedindo o perdão de Nyx, não o seu.
Prendi a respiração quando os olhos lindos e amorosos de Nyx deixaram Kalona e pousaram em nós. Ela deu um passo à frente. Vi Kalona estremecer quando os fios da sua túnica roçaram o seu braço. Nyx ergueu as mãos e fez um gesto abrangente e, de repente, eles não estavam mais lá em cima, mas bem diante de nós!
– Merry meet , queridos – cumprimentou-nos a Deusa.
A nossa resposta, “merry meet ”, passou pelo círculo que agora brilhava com tanta intensidade que era difícil olhar para ele.
Nyx se aproximou de Thanatos, que fez uma reverência profunda para ela.
– Não é necessário tais formalidades entre nós – disse Nyx para a Grande Sacerdotisa com um leve toque no seu braço. – Já nos conhecemos há tanto tempo.
– Obrigada, minha Deusa – respondeu Thanatos.
– Você está se saindo muito bem, Filha – elogiou Nyx. – O feitiço é difícil, mas a sua intenção é pura.
– Farei o meu melhor para mantê-lo firme – prometeu Thanatos.
Nyx sorriu.
– Eu não esperaria nada menos da minha Sacerdotisa da Morte.
Então, ela se voltou para Rephaim, que estava de pé, soluçando, ao lado do corpo de Kalona. Ele olhava para o seu pai – bem, para a versão espiritual dele, que ainda estava ajoelhada. Não pareceu nem ver Nyx, que estendeu o braço por sobre o corpo de Kalona para tocar gentilmente o seu braço, dizendo:
– Você logo sentirá alívio na sua tristeza, meu filho.
Rephaim se sobressaltou com o toque e a sua atenção se voltou para a Deusa. De olhos arregalados, agradeceu:
– Obrigado. – E os seus soluços pararam enquanto olhava fixamente para Nyx.
E, então, ela se voltou para mim. O seu cabelo estava tão claro que parecia quase branco, como uma lua cheia, e os seus olhos eram cor de lavanda. Era difícil olhar para Nyx por muito tempo. Havia algo de incompreensível em sua beleza.
– Zoey Redbird, entre todos os mortais aqui reunidos, Kalona causou mais dor a você. Ele mentiu para você, seduziu-a e tentou matá-la. Por ódio, raiva e ciúme, assassinou aqueles que lhe eram caros. Dentro de você, existe a centelha da virgem criada pelas antigas Sábias e trazida à vida pela Grande Mãe Terra para manter Kalona cativo pelos crimes que ele cometeu contra os seus povos. Você reconhece tudo isso, Zoey?
Engoli em seco.
– Reconheço.
– Então fale do fundo da sua alma e me diga sinceramente, Zoey Redbird, eu devo perdoar Kalona?
Fiquei em silêncio, surpresa demais com a pergunta. Eu? Eu deveria julgá-lo?
Enquanto eu lutava por uma resposta, senti a mão da Vovó deslizar em mim.
– Pense bem e fale a verdade, u-wets-a-ge-ya .
Olhei para Kalona. Nyx estava certa. Ele fizera coisas horríveis não apenas a mim, mas às pessoas que eu amava e também aos Cherokees. Criara todo tipo de monstros, como os Raven Mockers, que aterrorizaram os idosos e os doentes por séculos. Meu olhar caiu em Rephaim. Ele costumava ser um daqueles monstros, mas o amor o salvou. Nyx o perdoara, mesmo quando o próprio Rephaim mal conseguia se perdoar.
E eu soube a resposta certa para a pergunta da minha Deusa.
– Deusa, acredito que você já tenha perdoado Kalona. Você apenas queria que ele fosse digno do seu perdão.
– E ele é, jovem Sacerdotisa? Ele é digno? Posso perdoá-lo?
Apertei a mão da Vovó.
– Sim para todas as perguntas – respondi com toda certeza. – Ele conquistou a sua segunda chance.
Kalona
De joelhos, Kalona viu Nyx sorrir para Zoey, mas, em vez de responder para ela, a Deusa se virou para Erebus.
– Parece que a sua obrigação chegou ao fim, meu velho amigo.
O sorriso de Erebus foi tão brilhante quanto o sol de verão.
– Levou bastante tempo, mas nunca duvidei de que ele conseguiria.
A Deusa ergueu uma sobrancelha fina.
– Nunca duvidou?
– Bem, quase nunca. Mas vou sentir falta de atormentá-lo.
– Você nunca deveria tê-lo atormentado. Deveria ajudá-lo a encontrar o caminho de volta para nós – respondeu a Deusa.
– Bem, nós dois sabemos como Kalona pode ser teimoso. – Erebus foi até Kalona, que estava olhando para o seu irmão, em estado de choque. – Diga-me, o que teria acontecido se tivesse contado para você que, durante esses incontáveis anos, eu era o seu maior aliado?
– Eu não teria acreditado – explodiu Kalona.
Erebus riu a valer.
– Exatamente! Ainda assim, desde o dia em que nós dois fomos criados, eu só queria uma coisa: que a nossa Deusa fosse feliz. Você, meu irmão errante, costumava fazê-la muito feliz.
Confuso, Kalona meneou a cabeça.
– Mas, eu estando fora do caminho, você é o Consorte dela!
– Não, Kalona. Você esteve errado sobre isso por éons. Não importa o que tenha acontecido entre Nyx e você, eu sempre fui amigo dela e companheiro de jogos. Nunca fui o seu Consorte.
– Não brinque comigo, agora – pediu Kalona. Ele não estava zangado, mas sentia que o seu coração partiria se Erebus fizesse mais uns dos seus truques com ele.
Seu irmão suspirou e olhou para Nyx.
– Eu devo continuar?
– Sim, meu amigo – assentiu a Deusa. – Talvez ele esteja pronto para ouvir com um coração fraterno.
Erebus se voltou para Kalona, perguntando:
– Quem é o meu pai?
Kalona franziu o cenho.
– O Sol, é claro.
– E o seu?
– A Lua.
– E qual é o símbolo mais reverenciado da nossa Deusa? O que ilumina o seu céu? Que a segue, sempre mudando, minguando e enchendo-se para o seu eterno prazer?
– A Lua – a voz de Kalona estava rouca.
– Eu sou um calor amigável da sua primavera e verão. Você foi criado para passar a eternidade ao lado dela, protegendo-a e amando-a. Tudo que precisava fazer era escolher ser digno do seu amor. E isso você finalmente fez. Abençoado seja, irmão. – Erebus estendeu a mão para o irmão.
Mas Kalona não a tomou. Em vez disso, olhou para Erebus, finalmente compreendendo.
– Desde o início eu estava errado sobre você. Ainda assim, conseguiu me perdoar?
– Meu irmão, tenho observado você sofrer por éons. Eu o perdoo de boa vontade.
– Obrigado, Erebus. – Kalona se levantou e, em vez de pegar a mão do irmão, puxou-o para um abraço bruto.
Quando eles finalmente se separaram, Kalona não fez nenhuma tentativa de enxugar as lágrimas do seu rosto. Ele sorriu para o irmão, cujo rosto também estava molhado. Então, um movimento ao lado de Erebus atraiu o olhar do seu irmão, e Nyx estava diante dele. Erebus deu alguns passos para trás, deixando o irmão sozinho para encarar a sua Deusa.
Kalona caiu de joelhos.
– Eu estava errado sobre tantas coisas – começou ele, olhando no rosto de Nyx, o corpo trêmulo pela proximidade. – Escolhi raiva e ciúme em vez de amor e confiança. Eu a traí ao permitir que as Trevas entrassem no seu reino. Eu odiava o meu irmão por causa das minhas próprias inseguranças. Depois que caí, cometi atrocidades. – As lágrimas banhavam o rosto de Kalona. – Não tenho o direito de pedir, mas Nyx, minha Deusa, meu único e verdadeiro amor, você me perdoa?
Nyx estendeu a mão para ele e disse com voz suave e amorosa:
– Ah, Kalona, como eu senti a sua falta!
Ele olhou para a mão delicada dela, e de repente ficou incapaz de se mover, incapaz até mesmo de olhar para ela. Quando finalmente ergueu a cabeça, sentiu-se tão cheio de alegria que quase não conseguiu falar.
– Você me perdoa? – pediu ele, com a voz trêmula.
– Perdoo.
– Você me ama?
– Amo. Sempre amei.
Kalona tomou a mão dela nas suas, mas não se ergueu.
– Nyx, Deusa da Noite, eu lhe dou o meu corpo, o meu coração e a minha alma para amá-la e protegê-la. Imploro que aceite o meu Juramento de Guerreiro.
– Fico feliz em aceitar o seu juramento e ele nos ligará por toda a eternidade.
Enquanto Nyx falava, o ar em volta de Kalona tremeluziu. O poder passou por suas asas, mudando-as de negras para o branco luminoso de uma lua cheia.
Rindo de alegria, Kalona se levantou. Antes que a cortina para o Mundo do Além se fechasse, ele tomou a sua Deusa nos braços e se perdeu no seu beijo de boas-vindas.

22
Zoey
Depois que a cortina para o Mundo do Além se fechou, ninguém disse mais nada por longos minutos. Todos estavam fungando, até mesmo os policiais. Detetive Marx finalmente rompeu o silêncio. Ele foi até Thanatos e, surpreendendo a todos – inclusive a própria Thanatos, que indicava isso pela expressão no seu rosto –, puxou-a para um grande abraço.
– Ainda que eu vivesse para sempre, não veria uma coisa tão incrível quanto essa. Obrigada por nos incluir – agradeceu ele.
Os outros cinco policiais assentiram enquanto enxugavam os olhos.
Thanatos sorriu e, gentilmente, se soltou do abraço do detetive.
– De nada, detetive. Embora não tenha sido eu quem permitiu, mas sim, Nyx.
– Então, espero que você não se importe se um dia, depois que toda essa questão com Neferet se resolver, eu visite o Templo de Nyx para deixar uma oferenda no altar dela. Sei que parece loucura, mas depois do que aconteceu hoje, eu me sinto muito próximo da sua Deusa.
– Não é loucura. Nyx e eu aceitaremos a sua oferenda. Veja bem, detetive Marx, Nyx não é apenas a nossa Deusa. Nyx pertence a qualquer um que buscar a ela. – O olhar de Thanatos encontrou o meu. – Zoey você pode fechar o círculo agora.
Eu quase tinha me esquecido de que ainda segurava a vela acesa do espírito. Enquanto eu rapidamente fazia o caminho inverso, agradecendo a cada um dos elementos e os liberando, Vovó pegou um dos cobertores dentro da tenda de Thanatos e, gentilmente, cobriu o corpo de Kalona.
No instante em que apaguei a vela de Stevie Rae, ela correu para Rephaim e o envolveu em seus braços. E, então, Stark estava ao meu lado, abraçando-me e dizendo o quanto me amava.
– Eu nunca vou deixar você. Eu prometo – disse ele. – Eu não ligo para Aurox ou Heath, e nem para o idiota do Erik. – Ele fez uma pausa como se tivesse acabado de notar que Erik estava a apenas alguns passos de nós, ao lado de Shaunee. – Desculpe, cara. Sem ofensas.
Erik deu de ombros.
– Sem problemas – respondeu, porém sem olhar nem de relance para mim ou para Stark. Com uma expressão fofa e preocupada, Erik observava Shaunee.
Eu peguei o rosto de Stark entre as minhas mãos, dizendo:
– Não se preocupe, eu nunca vou permitir que me deixe. Então, eu o beijei como se tivéssemos nos reencontrado depois de uma eternidade.
O vento escolheu aquele momento para soprar as nuvens de tempestade do céu e, de repente, estávamos sob as cores rosadas e amareladas que antecedem a aurora.
– Opa – disse eu. – Você, Stevie Rae e Shaylin têm que chegar ao abrigo.
– Ainda temos sete minutos até o sol nascer – respondeu Stark. – Mas você está certa.
Relutante, saí dos seus braços e fui até Thanatos, esperando ajudá-la a voltar para a tenda. Mas ela não parecia tão cansada como quando lançara o feitiço de proteção. Na verdade, a não ser pelas olheiras, ela aparentava estar mais jovem.
– Você está bem melhor – comentei.
Thanatos assentiu e sorriu.
– Parece que guiar o espírito de Kalona de volta para o Mundo do Além teve um efeito energizante, pelo qual sou grata. Mas temo que não vá durar muito, então sejamos breves, principalmente agora que a aurora se aproxima e os nossos novatos e vampiros vermelhos precisam ficar dentro de casa. O detetive Marx concordou em transportar o corpo de Kalona para a Morada da Noite. Posso contar com você para construir a sua pira e presidir sua imolação?
– É claro – respondi.
– Shaunee –Thanatos chamou por sobre o ombro. – Eu tenho a força emprestada de Kalona, então acredito que seja seguro para você me deixar aqui, voltar para a Morada da Noite e acrescentar o seu elemento na pira de Kalona, se puder fazer isso rapidamente. Você poderia fazer isso para o meu guerreiro?
– Será uma honra acender a pira de Kalona – respondeu Shaunee.
Achei que ela também parecia melhor e enviei um agradecimento silencioso para Kalona.
– E eu guardarei a pira do meu pai, da aurora ao crepúsculo – declarou Rephaim, enxugando os olhos. – Mas precisamos ser rápidos. Eu vou me transformar em seis minutos, e isso significa que Stevie Rae vai queimar.
– No que você vai... – começou Marx, mas depois parou de falar meneando a cabeça. – Deixa pra lá. Você explica depois. Vamos nos encontrar na Morada da Noite.
Dei um abraço na Vovó.
– Você demonstrou muita sabedoria na sua resposta para a Deusa – disse ela enquanto me soltava. – Estou muito orgulhosa de você, u-we-tsi-a-ge-ya .
– Sylvia, se você e as outras precisarem de um descanso, eu tenho quase certeza de que consigo ficar sozinha – ofereceu Thanatos.
Irmã Angela foi até o lado da Vovó, acompanhada pela rabina Bernstein e Suzanna Grimms. O rosto das senhoras estava radiante, como se as suas lágrimas tivessem tirado anos delas.
– Nós escolhemos ficar com você neste terreno sagrado – informou a freira, enquanto as senhoras assentiam.
– Quem é que vai conseguir descansar depois de tudo que aconteceu? – perguntou a rabina Bernstein.
– Eu também vou ficar e me certificar de que ninguém incomodará vocês... – disse Erik, antes de acrescentar: – se vocês quiserem.
– Nós apreciamos muito a sua proteção, Erik – respondeu Vovó.
– Certamente – concordou Thanatos para Erik e para cada uma das quatro Sábias. – Vocês têm a minha gratidão. Obrigada a todos vocês.
Stevie Rae pegou a mão de Rephaim, puxando-o para a van, a fim de que ele não ficasse lá e visse Marx e os seus homens erguerem o corpo do seu pai. Stark, Shaylin, Damien e eu a seguimos, nos espremendo no veículo, enquanto Shaunee entrava no carro de Erik.
Ninguém disse nada. Busquei na minha mente a coisa certa para falar para Rephaim. Será que eu deveria dizer que sentia muito pelo seu pai? Ou congratulá-lo pelo pai que tinha? Já que estavam em silêncio, achei que todos, inclusive Stevie Rae, deviam estar pensando a mesma coisa.
Felizmente, Rephaim nos salvou:
– Estou feliz pelo meu pai – declarou ele, suavemente. – Ele está de volta ao lugar em que sempre quis estar. Mesmo recentemente, depois que decidiu seguir a Luz e fazer o seu juramento para Thanatos, sempre houve uma solidão nele que não melhorava. Na verdade, acho que só piorava.
Stevie Rae disse:
– Acho que quando o seu pai finalmente estava pronto para aceitar o amor, o seu amor, para começar e, depois, o de Nyx, foi como fechar as portas do celeiro após todas as vacas já terem saído.
– Vacas? – perguntou Rephaim. Eu detectei o sorriso em sua voz.
Eu me virei de onde estava no banco do passageiro e vi que Rephaim sorria para Stevie.
– Ela quer dizer que uma vez que ele se deu conta de que precisava de amor, não havia mais desculpas. Tinha de admitir que realmente precisava do amor de Nyx para ser feliz, mesmo que tenha sido ele quem a abandonou, e não o contrário.
Rephaim assentiu.
– Ele está feliz agora. Eu senti. Foi assim que Nyx abrandou a minha tristeza. Ela permitiu que eu sentisse a felicidade dele. – Ele sorriu e enxugou as lágrimas. – E eu sei que o verei de novo algum dia.
– Você tem certeza de que não é imortal? – perguntou Shaylin. – A sua aura parece demais com a dele.
– Eu tenho certeza – confirmou ele abraçando Stevie Rae pelos ombros. – Eu sou só um garoto que tem sorte de se parecer muito com o pai. – Rephaim olhou pra mim. – Zoey, faça o que Thanatos pediu. Construa a pira do meu pai bem rápido para que Shaunee possa voltar ao Council Oak Tree.
– Você sabe que vai ser difícil para a escola se juntar, principalmente se o dia ficar tão ensolarado quanto está parecendo – respondi.
– A escola não precisa testemunhar. Eu estarei lá. Eu farei a vigília pelo meu pai.
Assenti e pisquei, evitando chorar.
Stark parou na entrada da Morada da Noite e só teve tempo de estacionar o Hummer sob a garagem coberta ligada ao prédio, quando Rephaim beijou Stevie Rae e declarou:
– Amo você.
Ele olhou para o restante de nós e explicou:
– Não é tão horrível quanto parece.
Então, ele abriu a porta do carro.
Os seus pés nem tocaram o chão. Seu grito cortou nossos ouvidos, causando um sobressalto em todos, exceto em Stevie Rae. O berro mudou para um grasnar de um corvo, e uma enorme ave negra explodiu de dentro das roupas de Rephaim; grandes asas bateram no ar enquanto ele saía da garagem para o céu matinal, a fim de circular a Morada da Noite.
– Isso foi demais – disse Stark, usando a mão para proteger os olhos contra a aurora, mas ainda tentando seguir o voo de Rephaim.
– É. Ele diz que não dói tanto – contou Stevie Rae, apertando os olhos ao lado de Stark. – Eu não acredito, mas o amo por tentar me fazer acreditar nisso.
– Ei, vocês precisam entrar e ir para a cama – disse eu juntando-me a Stark, Stevie Rae e Shaylin.
– Não se você não vier com a gente – protestou Stark depois de um bocejo gigantesco.
– Eu já vou, mas primeiro tenho que contar para Darius e para Aphrodite tudo o que aconteceu, e pedir para ele chamar Travis e outros humanos para começarem a construir a pira de Kalona. Shaunee precisa voltar para Thanatos antes que a onda de energização acabe – expliquei.
– Eu vou ajudar – ofereceu-se Damien. – Vou contar para Travis e Lenobia o que aconteceu.
– E eu vou supervisionar os humanos que forem construir a pira – declarou Shaunee. – Mas primeiro vou pegar um casaco com capuz e óculos escuros.
– Mas eu posso...
Impedi que Stark continuasse protestando com um beijo e, então, sussurrei nos seus lábios:
– Por favor, vá dormir para que você possa ficar forte e seguro. Eu não sou tão forte quanto Nyx. Eu não posso perder você.
Stark parou e, então, deu-me um abraço e desistiu.
Lynette
– Você deveria estar descansado – aconselhou a curandeira asiática com tatuagens geométricas, cujo nome Lynette descobriu ser Margareta. – Você está sentindo alguma dor?
– Não. Eu estou bem. Eu só não estou acostumada a dormir durante o dia – assegurou Lynette à vampira. Ela estava ao lado da janela e puxou a pesada cortina preta para que pudesse assistir a um grupo de pessoas empilhando toras e placas de madeira no centro do campus . – Margareta, você sabe o que estão construindo lá fora?
A curandeira deu um pequeno passo para a frente, olhando pela janela, mas sem se aproximar o suficiente para que a luz da manhã a tocasse.
– Sei sim – respondeu ela. – Estão construindo uma pira.
– Uma pira? – Lynette sentiu o estômago revirar. – Alguém morreu?
– Alguém foi assassinado – esclareceu a vampira.
– Quem?
Margareta a analisou por um tempo, depois deu de ombros.
– Não vejo problemas em contar para você. Kalona foi morto.
– Por ela? – Lynette mal conseguia formar um sussurro. – Neferet o matou?
Margareta assentiu.
– Ai, meu Deus! Ele não era imortal?
– Aparentemente não – respondeu a curandeira.
Lynette cambaleou até a cama, caindo nela quando seus joelhos cederam.
– Ela quebrou o feitiço? Ela saiu do Mayo?
– Não, o feitiço ainda está mantido. Por ora. Você tem certeza de que não quer um remédio para dormir?
Entorpecida, Lynette negou com a cabeça.
– Não. Eu estou bem. Sério. Estou bem mesmo. Eu... Eu só preciso ficar um pouco sozinha para pensar. – Ela encontrou o olhar preocupado da curandeira e acrescentou: – Kalona me salvou. É um choque pra mim saber que ele está morto.
– Assim como para nós – concordou Margareta. – Vou deixá-la com os seus pensamentos então. Como você sabe, estarei no fim do corredor. Se precisar de mim, é só apertar o botão vermelho ao lado da sua cama.
– Pode deixar que eu chamo se precisar. Obrigada, Margareta.
Quando a vampira saiu, a mente de Lynette começou a funcionar. Neferet conseguiu matar um imortal enquanto estava presa dentro do Mayo! Seria pior, tão pior, se ela escapasse. Lynette deu uma sacudida mental nos pensamentos e se corrigiu. Não se escapasse, mas quando escapasse. A filha de LaFont e aquelas duas outras meninas disseram: era só uma questão de tempo até que o feitiço da Grande Sacerdotisa fosse quebrado. E, então, elas seriam as sortudas, porque Neferet viria primeiro atrás de Kalona e dela. Com Kalona morto, só resta a mim . Lynette ficou tonta de medo. Um guerreiro imortal não tinha conseguido detê-la. Um feitiço protetor não conseguiria detê-la. As paredes de pedra desta escola e um pequeno grupo de adolescentes e professores vampiros com certeza não conseguiriam detê-la.
Se Lynette permanecesse onde estava, estaria no lado perdedor, e seria possuída pelas terríveis serpentes de Neferet.
Não! Lynette obrigou-se a controlar a própria respiração, inspirando longamente e soltando o ar devagar. Lutou contra o pânico, assim como fizera em todos os momentos em que passara como prisioneira de Neferet. Não! Ela se corrigiu. Eu não era prisioneira de Neferet. Eu era sua funcionária. Sua funcionária favorita. Sua organizadora de eventos. Eu tinha valor para ela. E voltarei a ter.
Então, ela seguiu na ponta dos pés até o fim do corredor e parou na porta da sala da curandeira. Lynette viu a parte de trás da cabeça de Margareta, que observava uma grande tela de computador que exibia as notícias locais. Lynette assistiu, em um silêncio horrorizado, enquanto o iPhone de alguém registrava a morte Kalona. Primeiro, as imagens focalizavam o telhado da varanda, como se estivesse esperando alguma coisa acontecer. O imortal entrou, de repente, no campo de visão, plainando com suas enormes asas e os braços abertos, enquanto olhava para a varanda como se estivesse se preparando para pegar alguma coisa. Ou alguém , pensou Lynette na primeira vez em que viu o vídeo. E, então, ela ouviu vários estalos, um depois do outro, e o corpo da Kalona foi lançado para trás. Tiros , Lynette percebeu. Neferet atirou nele! A câmera seguiu a queda de Kalona. Ele girava de um lado para o outro, caindo de costas – quebrado e sangrando – no meio da rua onde não muito antes ele tirara Neferet do Mayo.
Lynette não conseguiu se mexer enquanto assistia ao vídeo de novo. Então, quando Margareta apertou o play mais uma vez, obrigou as pernas a se mexerem. Prendeu a respiração até passar pela porta da saída, fechando-a com cuidado atrás de si.
Mesmo assim, não parou. Sabia que estava no terceiro andar do prédio na extremidade do campus , pois conhecera o caminho quando o detetive e Kalona levaram-na para lá, ocasião em que estivera bem acordada e consciente. Ela também viu a fileira comprida de carros que enchia o estacionamento até a capacidade máxima; as pessoas tiveram de estacionar no meio-fio da Utica Street.
Lynette chegou à porta do térreo e parou, solidificando o seu plano. Se fosse interpelada na saída, diria que tinha decidido ir para casa, que a sua filha, já adulta, precisava dela. As pessoas não eram prisioneiras na Morada da Noite. Se ela não fosse reconhecida, estaria livre para ir e vir.
Se fosse reconhecida e detida, o que faria?
Então, eles vão ter de me manter prisioneira, apesar de não haver motivo para fazer isso. É uma Morada da Noite, mas ainda é América . Eu ainda sou livre!
Contudo, quando chegou aos grandes portões de ferro, Lynette se deu conta de que não precisava ter se preocupado em ser parada ou questionada. Não havia ninguém patrulhando os muros da escola. Toda a atenção estava voltada para dentro.
Era uma distância de pouco mais de cinco quilômetros da Morada da Noite até o Mayo Hotel. Lynette começou a andar. Enquanto caminhava, clareava a mente e, então, ordenava os pensamentos, concentrando-se no que fora mais importante para ela por mais de vinte anos – tornar o seu negócio um sucesso.
Eu vou terminar o trabalho que comecei. Eu vou terminar o trabalho que comecei. Eu vou terminar o trabalho que comecei...
Quando Lynette chegou à West Fifth Street, a sua intenção já estava solidamente definida. Caminhou calmamente, sem pressa, observando o bloqueio na rua e os policiais uniformizados que encostavam-se aos carros, bebendo café e conversando. Havia outros civis no local. Eles usavam crachás, e Lynette reconheceu alguns como repórteres das redes locais de televisão. Ela manteve a calma e continuou caminhando, entrando facilmente no papel que representou inúmeras vezes no decorrer das duas últimas décadas. Lynette desapareceu no fundo. Era um talento importante e único. Ela aprendera anos atrás que, se alguém quer ser bem-sucedido no ramo de organização de eventos, esse alguém tem de ter a capacidade de se misturar à decoração – ficar fora das fotografias –, manter o foco na noiva, e não em si mesma.
Funcionou para Lynette perfeitamente, assim como acontecera tantas vezes antes – até quase chegar, o Mayo entrar no seu campo de visão e ela passar pelo último carro da polícia. Um policial uniformizado estava ao lado de um carro, obviamente tentando acalmar uma mulher loura e gorda, que chorava histericamente e segurava a mão de um homem alto e careca.
– Temos de saber se a nossa filha está bem! – gritou o careca para o policial, enquanto a loura chorava. – Kylee Jackson é o nome dela. Ela é a recepcionista do Mayo.
– Por favor, deixe-nos vê-la! – suplicou a mulher, soluçando.
– Sr. e Sra. Jackson, os senhores devem ficar lá atrás. Por favor, eu compreendo o quanto isso deve ser difícil, mas temos uma força-tarefa na delegacia no centro da cidade que está lidando com as questões das famílias das vítimas.
– Mas eles não dizem merda nenhuma! – exclamou Sr. Jackson.
– Eles estão dizendo tudo...
Prendendo a respiração, Lynette começou a passar pelo policial distraído.
– Ei, espere aí! Você tem que ficar atrás dos carros – o policial a chamou. – Ninguém tem permissão para passar.
Lynette se virou e sorriu para ele.
– Ah, sem problemas, policial. Eu só queria agradecer a vocês todos. Estão fazendo um excelente trabalho em uma situação muito difícil. Eu admiro muito o seu trabalho, assim como o Sr. e a Sra. Jackson.
Ele retribuiu o sorriso. No momento em que os ombros dele relaxaram e ele voltou a atenção para o casal, Lynette saiu em disparada. O sangue dela estava bombeando com tanta força nos ouvidos, que Lynette nem conseguia ouvir o que o policial gritava às suas costas. Apenas corra. Corra como se a sua vida dependesse disso , ordenou a si mesma.
Os prédios passavam como um borrão por ela enquanto corria, esperando ser detida a qualquer momento – ou até mesmo levar um tiro. Sem esperanças de conseguir.
Quando chegou ao Mayo envolto por uma mortalha, Lynette estava chocada demais para hesitar. Atirou-se contra a porta, sem dar atenção à cortina sangrenta e fétida que se tornara a pele do prédio.
– Deusa! Deixe-me entrar! Neferet! Por favor! Eu voltei para você!
Ela bateu com os punhos cerrados na superfície escorregadia da porta.
– Senhora, volte já aqui! – o policial a alcançou e a agarrou pelo braço.
A parede de chamas se acendeu, fazendo com que ele pegasse fogo.
Horrorizada, Lynette observou enquanto ele cambaleava para trás, gritando de agonia, enquanto os outros policiais que seguravam os Jacksons, a fim de impedi-los de seguir Lynette, tirassem o casaco e tentassem apagar as chamas.
Com o som de um curativo sendo arrancado de uma ferida, a cortina negra se abriu, assim como a porta do Mayo.
Lynette entrou ofegante e tentando recuperar o fôlego.
– Como você se atreve a me abandonar?
Neferet estava na plataforma entre o salão do térreo e o mezanino. As serpentes negras se retorciam ao redor dos seus pés, cobrindo o mármore branco da escada, fazendo com que o chão parecesse ter vida própria.
Com uma grande determinação praticada nas duas horas que levara para chegar até ali, Lynette foi até o meio do salão e se ajoelhou, curvando a cabeça.
– Perdoe-me, Deusa. Eu estava errada. Jamais deveria ter partido, a menos que você tivesse dito que o meu trabalho estava terminado e que os meus serviços não eram mais necessários.
– Você permitiu que ele a levasse! Você me traiu!
– Desculpe-me, Deusa. Não por eu merecer, mas porque você merece o que há de melhor.
– Eu merecia a sua lealdade!
Neferet lançou as palavras contra Lynette enquanto deslizava pela escada.
– É o que merece – concordou Lynette. Ela não ergueu a cabeça. Fechou os olhos para não ver as serpentes que a rodeavam. – E é o que tem. Eu voltei para você por vontade própria.
– E por que você faria isso?
– Eu voltei porque deixei um trabalho por fazer, e, durante todo o tempo em que estou no ramo de eventos, eu jamais fiz isso. E eu não tenho a intenção de começar agora – afirmou Lynette com sinceridade.
– Isso é o que veremos!
Lynette sentiu a invasão enquanto a mente de Neferet entrava na sua. Estremeceu e prendeu a respiração até que a Deusa saísse, deixando uma dor latejante nas têmporas.
– Você realmente voltou por livre e espontânea vontade. Você quer concluir o seu trabalho.
Lynette ficou aliviada o suficiente com a surpresa na voz de Neferet e abriu os olhos, mas não levantou a cabeça.
– Por favor, perdoe-me e permita que eu termine o que comecei a fazer para você – pediu ela.
– Não pense que me engana! Sinto a sua lealdade, mas também sinto que ela se baseia no medo. Portanto, ela existe por causa própria.
– Eu não nego isso, Deusa. Desde o instante em que ofereci os meus serviços, eu jamais neguei isso.
– Não, você controla o seu medo e usa a sua natureza egoísta para o meu benefício. Ou assim você fazia, até me trair.
A voz de Neferet estava mais suave.
– Eu ainda faço. Passei pela parede de fogo sem ser queimada. Eu não tenho qualquer intenção ruim.
Lynette conseguia ver que a Deusa estava andando de um lado para o outro porque as terríveis serpentes rastejavam acompanhando cada um dos movimentos de Neferet.
Por fim, ela parou. Tão perto, que Lynette conseguia ver os pés descalços.
– Olhe para mim – ordenou ela.
Lynette ergueu a cabeça e sem vacilar encontrou o olhar da Deusa.
– Tudo que me disse é verdade, mas diga-me por que eu não devo mandar que um dos meus filhos a possua. Você ainda teria a capacidade de realizar as suas obrigações comigo, e eu não teria de me preocupar com a sua fuga. Parece uma boa solução, considerando o histórico questionável da sua lealdade.
Lynette respirou fundo, forçando-se a engolir o pânico que ameaçava sufocá-la. Fingindo uma calma que não sentia, não respondeu o que tinha planejado e praticado tantas vezes até que o pensamento a consumisse. Em vez disso, Lynette disse uma coisa que mantivera enterrada obstinadamente:
– Porque eu realmente acredito que você se importa comigo e sabe o quanto eu temo ser possuída por um dos seus filhos. Deusa, eu posso provar a minha lealdade a você com as informações que trago. Eu estive na Morada da Noite. Ouvi Zoey, Aphrodite e Stevie Rae. Elas disseram que a barreira protetora está drenando as forças de Thanatos. Quanto mais ela tiver de funcionar, mais rápido as forças da Grande Sacerdotisa serão drenadas, até que ela não conseguir mais mantê-la.
O rosto de Neferet ficou sem expressão. Então, lentamente, a Deusa se curvou e pousou as duas mãos no rosto de Lynette.
Lynette congelou, sem conseguir pensar ou se mexer.
Neferet lhe deu um beijo suave, mas diretamente na boca.
– Levante-se, Lynette, querida. E tome o seu lugar ao meu lado, ao qual você pertence e onde você permanecerá até que a sua breve vida mortal chegue ao fim. E saiba que, quando isso acontecer, a sua Deusa vai chorar eternamente por sua perda.
Neferet ajudou Lynette a ficar em pé e a apoiou quando ela cambaleou.
– Kylee! A minha querida Lynette e eu vamos até a varanda apreciar o pôr do sol. Traga-nos o meu vinho favorito e algo nutritivo para comermos. – Neferet fez uma pausa. – Um ensopado? Será que você recuperará as suas forças com isso?
Sentindo-se completamente fora de qualquer realidade que ela já conhecera, Lynette assentiu.
– Sim, Deusa, por favor.
– Você a ouviu, Kylee! Lynette quer ensopado! Providencie isso para ela. E também veja com Tony o meu bolo de chocolate. Chocolate combina muito com o meu vinho tinto favorito.
Enquanto a Kybô saía, Neferet levava Lynette até a cobertura falando de forma doce e suave o tempo todo.
– Minha querida, você disse que esteve na Morada da Noite. Eles foram cruéis com você?
– Não, eles não foram cruéis, mas não confiaram em mim.
– Você viu Thanatos fazer o feitiço?
– Não, eu só vi a filha do prefeito, Aphrodite, e as curandeiras – contou ela.
– Aquelas criaturas desprezíveis não são vampiras de verdade. Não passam de assistentes. Você sabia que uma das minhas habilidades é a da cura?
– Não – respondeu Lynette verdadeiramente surpresa. – Eu não sabia disso.
– Sim, minha querida Lynette. Fique tranquila, pois se um deles se atrever a feri-la, eu poderei curá-la.
– Obrigada, Deusa.
– Imagino que o detetive Marx tenha feito muitas perguntas.
Lynette ignorou o frio que começou a descer por sua espinha e respondeu para a Deusa com total honestidade.
– Fez sim. Ele queria saber quantas pessoas estavam aqui no seu Templo.
– E você contou para ele?
– Contei – respondeu Lynette sem hesitar. – Também disse o quanto os seus servos lhe são leais.
A nuvem que começara a se formar nos olhos verdes-esmeralda de Neferet se dissipou, e ela deu um sorriso carinhoso para Lynette.
– E ele não gostou de ouvir isso.
– Não. E nem Aphrodite nem Kalona.
Isso fez Neferet soltar uma risada malévola.
A essa altura já tinham chegado à cobertura. Neferet indicou que Lynette deveria se sentar em um dos bancos colocados ao lado de uma mesa alta de bar. Na mesa, havia uma arma, uma daquelas coisas com aparência perigosa que as pessoas no cinema estavam sempre sacodindo. Lynette estremeceu. Ela tinha nascido em Oklahoma, mas odiava armas.
A Deusa se sentou ao seu lado e se inclinou intimamente em direção a ela.
– Você sabia que hoje eu matei o Kalona?
Lynette assentiu.
– Sabia. Eu vi no noticiário.
O sorriso de Neferet foi radiante.
– Alguém filmou? Isso é fabuloso! Ah, e isso me lembra de uma coisa, Lynette. Quando estivermos livres deste lugar, eu quero que você contrate a melhor equipe de filmagem que o meu dinheiro infinito pode comprar. Eu simplesmente quero um registro preciso do meu reinado.
– Sim, Deusa – concordou Lynette.
– Hum, sim. Contrate alguém para filmar, mas eu quero editar o filme. Ele deve ter a uma precisão irrepreensível, se é que me entende.
– É claro que entendo – respondeu Lynette à medida que ganhava segurança para voltar ao papel que lhe era conhecido. – Eu não permitiria que algo de mau gosto ou feio passasse pela edição.
– Ah! Por falar em mau gosto e feio... Eu consultei a sua lista enquanto você estava no seu curto período sabático. Temo que encontrará um número menor de súditos do que quando nos deixou. Acho que ficará feliz de saber que eu comecei com aqueles que você listou como feios e sem talento.
Lynette hesitou por um instante. Então, assentiu.
– Bem, Deusa, se você tinha de começar por algum lugar, é exatamente por onde eu a teria aconselhado a começar.
– Você é tão sábia, querida Lynette.
Kylee chegou, carregando uma bandeja de prata com duas fatias de um bolo de chocolate de aparência deliciosa, decorado com delicadas flores brancas, uma garrafa de vinho tinto e duas taças de cristal. Lynette logo notou que o rosto geralmente sem expressão da Kybô parecia preocupado.
– Ah, aí está você, Kylee. Eu estava começando a pensar que você havia se perdido no caminho. Eu acredito que Tony esteja ocupado preparando o ensopado de Lynette... não é?
– Sim, Deusa. Mas temos um problema com o vinho.
Neferet franziu o cenho. Ela olhou para a garrafa e franziu ainda mais as sobrancelhas.
– Kylee, este não é o meu favorito.
– Deusa, o seu favorito acabou – apressou-se Kylee a informar.
– Acabou? Mas como pode?
– Deusa, você bebeu tudo, e não podemos sair e ir até a loja de bebidas, assim como não temos permissão para receber encomendas. E Tony envia suas sinceras desculpas, mas ele pediu que eu a informasse de que os suprimentos da cozinha também estão acabando.
Kylee colocou a bandeja na mesa e se levantou, trêmula, obviamente esperando que Neferet explodisse de raiva. Lynette se preparou também, esperando o mesmo.
A Deusa provou que ambas estavam erradas. Em vez de explodir, falou com calma:
– Sirva-nos este vinho. Teremos de aceitar isso por enquanto. E, então, diga para o Tony que eu já estou ciente das suas preocupações.
As mãos de Kylee estavam trêmulas enquanto obedecia às ordens de Neferet. Depois que a garota partiu, a Deusa ergueu a taça, girando-a e analisando-a como se ela pudesse conter a resposta para um grande mistério. A Deusa cheirou delicadamente o vinho, tomou um gole e fez uma leve careta.
– É um vinho extremamente medíocre, mas bebível – concluiu ela. – Vamos lá, Lynette, beba um pouco e me dê a sua opinião.
Lynette girou o copo, cheirou e bebeu.
– Concordo com você, Deusa. Não é o seu vinho, mas dá pra beber.
– Exatamente – concordou Neferet, olhando para um ponto do meio da varanda enquanto girava o vinho e continuava a bebericar.
Lynette sabia quando devia ficar calada. Parou de olhar para a Deusa e bebeu o seu vinho. Que, na verdade, era muito bom.
– Lynette, minha querida, se eu dissesse para você “quanto mais desejamos algo, maior é o sacrifício que devemos fazer para consegui-lo”, como você interpretaria isso?
A falta de alimentos misturada com o vinho tinto saboroso foi o suficiente para deixá-la embriagada o suficiente para dizer:
– Essa é fácil. É por isso que estou aqui agora. Nada nem ninguém significa tanto para mim quanto ser bem-sucedida e sobreviver. Eu sacrifiquei tudo na minha vida por essas duas coisas. E valeu a pena.
– Nada nem ninguém... – meditou a Deusa. Então, um longo e lento sorriso iluminou os lábios carnudos de Neferet. – Depois de ouvir o que você e um associado meu disseram, eu acabei de perceber como posso quebrar o feitiço de Thanatos. Agora, vamos comer o nosso bolo enquanto planejamos o evento mais espetacular que Tulsa já testemunhou.

23
Zoey
O funeral de Kalona foi triste e feliz ao mesmo tempo, e aconteceu muito rápido. Travis e Shaunee trabalharam juntos e tão bem que, às vezes, um parecia ler a mente do outro. Darius e Aurox colocaram um toldo para proteger Shaunee contra a luz do sol, e de lá ela dava as orientações para Aurox, Travis e uma equipe de humanos, entre eles o detetive Marx e os policiais que se colocaram a serviço do corpo de Kalona, assim como um grupo de homens que, de alguma forma, eles convenceram a ajudar.
Durante todo o tempo, o enorme corvo, obviamente Rephaim, estava empoleirado no telhado da tenda, bem acima de Shaunee, inclinando a cabeça com interesse e supervisionando tudo em silêncio.
Era o meio da tarde quando Shaunee concluiu que as toras e as placas estavam perfeitas e chamou o corpo de Kalona. Detetive Marx e Darius carregaram a parte da frente da liteira. Os policiais de Tulsa, com uniformes impecáveis, e Aurox, todo de preto, seguravam os lados da liteira, enquanto caminhavam lentamente, com passos sincronizados, até a pira. Esperei ao lado da pira com Shaunee, Damien, Lenobia e Erik. No último minuto, usando óculos de sol Chanel de lentes bem escuras, Aphrodite se juntou a nós.
– Você está bem? – perguntou suavemente.
– Não, mas muitos dos nerds não estão aqui. Alguém tem de representá-los.
Sorri para ela e lhe dei um abraço rápido.
– Eu agradeço por eles.
– Pare com isso. Sério. Eu não consigo lidar com muitos toques quando estou de ressaca. E até mesmo quando não estou de ressaca.
Então, a atenção de todo mundo se concentrou no corpo de Kalona enquanto eles o carregavam até o centro da grama. Ele estava coberto com um tecido prateado retangular enorme. A luz do sol da tarde parecia ficar mais forte à medida que eles se aproximavam da pira, e o material brilhava e flutuava como se fosse feito de mercúrio líquido.
– Esse tecido é incrível! – exclamei. – Nunca vi nada igual.
– Eu o encontrei na sala da aula de teatro e entreguei a Damien para servir como mortalha para Kalona – explicou Erik. – Mas ele não brilhava assim lá dentro.
– É Erebus – concluiu Damien. – Ele colocou magia nos raios de sol para o irmão.
Eu pisquei rapidamente, tão concentrada em não chorar, que não notei as pessoas até Shaunee mostrá-las.
– Uau! Vejam todos esses humanos!
Liderados por Travis, uma fila longa de pessoas tristes saía do ginásio.
– Elas gostavam dele – disse Lenobia. Quando lancei um olhar interrogativo, ela explicou: – Kalona fascinava os humanos, mas também parece que eles realmente gostavam dele. Ele teve paciência para responder às suas perguntas e nem se zangava quando as crianças puxavam as suas penas.
– Então, as crianças realmente puxaram as suas penas – comentou Aphrodite. – Eu queria ter visto isso.
– Além disso, vocês também devem se lembrar da entrevista que fez com que ele parecesse um herói – disse Lenobia. – E o vídeo do YouTube viralizou.
– Kalona era um herói – afirmou Shaunee com convicção. – Ele salvou Rephaim, empenhou-se ao máximo para salvar Vovó Redbird. Ele salvou muitos de nós em frente ao Mayo e até morreu tentando salvar alguém que nunca conheceu. Ele cometeu erros terríveis nesta vida, mas, no final, estava do lado certo. Kalona fez a coisa certa.
– E Nyx o perdoou – acrescentei, concordando com ela.
O corvo que sobrevoava acima de nós grasnou como se também concordasse com Shaunee. Então, ele pousou no carvalho mais próximo da pira, escolhendo um galho grosso que se estendia na sua direção.
– Zoey, eu vou ajudar Travis a organizar as pessoas. Você pode começar quando estiver pronta. – Eu assenti e me voltei para Shaunee.
– Acho que você deveria falar. Ele e eu temos uma longa história. – Ela começou a protestar, mas eu a interrompi. – Eu não quero dizer que tenho qualquer sentimento negativo em relação a Kalona agora. Na verdade, não tenho já há algum tempo. Mas isso é diferente de ser amiga dele. A amiga dele deveria falar no seu funeral, e acho que você é essa pessoa.
– Concordo com a Zoey – disse Aphrodite.
– Eu também – reforçou Damien.
– Mas eu não sei o que dizer – confessou Shaunee.
– É claro que sabe. – Erik pegou a mão dela e lhe deu um sorriso íntimo. – Você é boa em dizer o que sente. Faça isso por Kalona mais uma vez.
Ah! Tinha alguma coisa rolando entre eles! Eu realmente fiquei feliz.
– Tudo bem, eu falo – concordou Shaunee.
– Eu vou segui-la com a tocha. Avise-me quando quiser que eu a entregue pra você – disse eu.
Shaunee assentiu, ergueu o queixo e, decidida, caminhou pelo círculo de pessoas, até ficar diante da pira de Kalona.
A multidão já quieta ficou no mais absoluto silêncio. Ouvi Shaunee respirar fundo e, então, ela começou:
– Kalona era o guerreiro da nossa Grande Sacerdotisa e o Protetor desta Morada da Noite. Ele foi meu amigo e um pai para o seu filho, Rephaim. Essas coisas são importantes: guerreiro, amigo e pai. Mas Kalona era algo mais. Ele era um ancião que caminhava nesta Terra entre nós, para o bem ou para o mal, um lembrete constante de que o nosso mundo está repleto de forças mágicas. Kalona era uma prova tangível de que essas forças podem ser inspiradoras e maravilhosas, aterrorizantes e admiráveis, extraordinárias e terríveis, tudo ao mesmo tempo. Ele era o nosso super-herói, e até mesmo um super-herói comete erros às vezes. O nosso cometeu, mas, no final, manteve o seu juramento e se sacrificou para nos proteger. Quando me recordo de Kalona, eu me lembro dele com respeito e amor, sempre amor.
Shaunee fez um gesto para mim, e eu dei um passo à frente, entregando-lhe a tocha que eu carregava.
– Agora, vocês devem dar alguns passos para trás. Vou acender a pira de Kalona, e ela ficará brilhante e quente. Mas não precisam ter medo. O fogo me ouve, e eu juro a vocês que apenas o usarei para proteger e servir ao bem e à Luz. – Vi quando ela trocou um sorriso com o detetive Marx e os policiais uniformizados. Quando todos tinham se afastado o suficiente, Shaunee disse: – Fogo, eu o convoco para mim. Acenda uma chama que Kalona verá até o Mundo do Além!
Ela levou a tocha até a pira, e o fogo brilhou, como se ela tivesse acabado de acender um lançador de chamas. No mesmo instante, um feixe de luz se iluminou no leste, intensificando ainda mais a chama resplandecente de Shaunee. Todos demos um passo para trás, mas ninguém agiu como se estivesse com medo ou em pânico. Sobre nós, o filho de Kalona, na forma de um corvo, grasnou tristemente repetidas vezes. Quando formas escuras circularam acima de nós, lançando sombras estranhas sobre a pira, os gritos de Rephaim ecoaram no vento, e eu me dei conta de que não havia apenas um corvo, mas centenas deles.
Zoey
Com a ajuda do fogo e, suspeitávamos, com uma dose maior de raios solares, a pira queimou mais rápido do que qualquer outra que eu já vira. Aphrodite, Damien, Erik e eu ainda não tínhamos partido, embora já tivéssemos feito muito e estivéssemos bocejando. Ninguém disse nada, mas achei que todos se sentiam como eu. Eu não queria deixar Rephaim empoleirado lá sozinho, grasnando pateticamente. Stevie Rae iria querer que ficássemos. Inferno, Kalona provavelmente gostaria que ficássemos. Então, ficamos.
Os humanos já tinham entrado, embora algumas das crianças tivessem encontrado cordas de pular no ginásio dos guerreiros e estivessem brincando na calçada.
Aphrodite olhou por sobre a armação dos óculos para as crianças.
– Eu não sei por que as pessoas têm o desejo de procriar.
Eu fiz uma careta quando uma das crianças soltou uma risada muito aguda, a ponto de eu ter quase certeza de que Duquesa uivou em resposta.
– E esse é o momento certo para eu sair e voltar para Thanatos – disse Shaunee. – Mesmo que eu meio que goste de crianças. Eu trabalhei como babá pra uns amigos do meu pai que tinham uma sala de brinquedos tão grande quanto uma loja da Toys “R” Us.
Aphrodite estremeceu delicadamente.
– Por que os seus pais a odiavam tanto?
O detetive Marx se juntou a nós.
– Foi um funeral muito bonito, Shaunee. As suas palavras foram perfeitas.
– Obrigada – agradeceu ela, sorrindo para o detetive alto.
– Ei, eu vou levar a ambulância de volta para o St. John’s, e os outros policiais estão de folga. Vou pegar a minha caminhonete e voltar aqui à noite.
– Você não deveria ir para casa ver as suas filhas? Elas devem estar com saudades – sugeriu Shaunee.
Marx sorriu.
– A minha esposa e as minhas filhas estão bem ali – mostrou ele apontando para o grupo de meninas que pulavam corda.
– É claro que estão – resmungou Aphrodite.
Mas nós a ignoramos.
– Você quer uma carona? – ofereceu Marx para Shaunee. – Eu posso deixá-la na Council Oak Tree quando estiver voltando para a delegacia.
Erik limpou a garganta.
– Se vocês permitirem, eu posso levar Shaunee e ficar lá por um tempo.
Eu dei de ombros.
– Por mim, tudo bem.
– Legal! – exclamou Erik, sorrindo para Shaunee. – E pode dizer para Aurox que ele não precisa me render até a aurora de amanhã. Eu sei que os guerreiros têm um monte de coisas para fazer com todos esses humanos.
– Pode deixar que eu digo.
E todo mundo foi embora, menos Aphrodite.
– Quando é que eles viraram um casal? – quis saber Aphrodite.
– Né? Eu estou me perguntando a mesma coisa.
– Acho que ele precisava de um plano B, já que Shaylin virou gay.
– Aphrodite, você sabe que está repetindo um monte de estereótipos?
– Eu sei. Eu só odeio linguagem figurativa, não o inglês em geral – respondeu ela, revirando os olhos.
Eu franzi as sobrancelhas e meneei a cabeça.
– Shaunee é uma pessoa maravilhosa e linda. Erik poderia querer ficar com ela por esses motivos, e não porque quer compensar ter perdido Shaylin.
Aphrodite começou a dizer algo, mas parou, pensou melhor e começou de novo.
– Na verdade, você pode estar certa. Erik mudou desde que passou a ser o “nosso Erik” – Ela fez aspas com os dedos. – Ele está parecendo ser um cara legal. Mas só não conte para ele que eu te disse isso.
– Pode deixar.
– Além disso – acrescentou ela, olhando os dois caminhando juntos na calçada –, eles lembram um pouco a Olivia e o Presidente da série Scandal . Eu gosto de todo esse lance de garota negra e rapaz branco. Isso sem mencionar como isso amplia a visão do típico garoto branco. A Deusa sabe do quanto precisam disso.
– Essa é coisa mais politicamente correta que eu já ouvi você dizer.
– Pois é, sua retardada – respondeu ela. – Vá dormir um pouco. Vejo você depois do crepúsculo.
Contudo, antes que ela pudesse se afastar, Kramisha chegou correndo com as suas botas de couro de salto sete centímetros e segurando o capuz sobre a cabeça para não desarrumar a sua peruca ruiva. Mesmo com os óculos de sol de lente espelhada dourada, dava para ver que ela estava zangada.
– As suas botas são uma loucura – disse Aphrodite.
– Nem vem. Eu não consegui dormir. – Kramisha pegou um papel roxo de dentro da sua bolsa enorme e nos entregou.
– Ai, merda, não! – Aphrodite deu um passo para trás. – É para Z.
– Aja como se você estivesse entendendo alguma coisa. Eu não estou aqui porque quero estar. Aqui, Z. – Ela me entregou um pedaço de papel. – É para você.
Eu queria gritar e soltá-lo como se fosse uma aranha, mas estava tentando ser madura e entender algumas coisas. Então, em vez disso, suspirei, peguei o papel e li o poema:
Inevitável como a noite
Use a magia antiga
O sacrifício dele foi aceito.
– Hã, um pouco atrasado, não? – comentou Aphrodite. – Até eu consigo perceber que esse poema fala de Kalona, e ele já está morto.
– Não. Fale. Nada. – Kramisha ergueu um dedo para Aphrodite. Obviamente achando que a tinha sob controle, ela se virou para mim. – Tenho uma forte sensação de que você deve pegar a pedra de volta do seu Frodo ali.
– Eu vou espancá-la com a minha escova se você me chamar de Frodo de novo.
– Shhh! – pedi para Aphrodite. – Eu não posso usá-la até descobrir como não virar outra Neferet.
– Neferet é doida. Você não é. A magia antiga é a única chance que temos de derrotar uma deusa. Então, é melhor usá-la; caso contrário, você não precisará se preocupar em se transformar em uma vaca enlouquecida, porque todos seremos escravos de uma vaca enlouquecida. – Kramisha virou-se para lançar um olhar fulminante a Aphrodite. – Estou indo embora, antes que ela faça alguma piada idiota sobre escravidão. Aí eu terei de dar uma de Jackie Brown para cima dela – disse Kramisha antes de se afastar.
– Quem é Jackie Brown?
– Não faço a menor ideia – respondi.
– Talvez a gente deva perguntar para Shaunee.
Suspirei.
– Talvez devêssemos nos preocupar em como posso usar aquela pedra idiota.
– Você quer a minha opinião?
Dei outro suspiro e respondi:
– Quero.
– Use a pedra. Você já sabe do que ela é capaz agora. Controle-se. Nós todos podemos controlar você também. Desta vez, de forma aberta. Se você começar a ficar ríspida, um bando de nerds vai detê-la. Literal e figurativamente.
– Eu realmente não tenho escolha, não é?
– Não mais. Você não tem. Neferet descobriu como poderia matar Kalona. Ela logo vai descobrir como quebrar o feitiço protetor. Então, virá atrás de nós. Principalmente de você, mas vai sobrar para todo mundo.
– Você está certa. Devolva-me essa pedra idiota.
Aphrodite puxou de dentro da camisa um delicado cordão de prata, longo o suficiente para não ter que abrir o fecho. Pendurada ali estava a pedra da vidência, com sua aparência enganosamente inocente.
– Ela sempre me lembra de uma bala Life Saver – comentei, relutante em tocá-la. – Esse cordão é muito bonito.
– É de platina. Tente não estragá-lo, porque eu vou querer de volta. O cordão, não a pedra. Pare de enrolar e pegue logo isso. – Ela estendeu o cordão para mim e foi o que tive de fazer. – Sabe, a primeira coisa que tem a fazer com todo esse lance de usar magia antiga tem a ver com você trabalhar um pouco a sua autoconfiança, Z. Se você não acreditar que é capaz de fazer isto, não terá a menor chance de conseguir.
– Eu sei.
Coloquei o cordão no meu pescoço e enfiei a pedra embaixo da camiseta. Então, esperei alguma coisa acontecer.
Aphrodite bufou.
– Fala sério. Você andou com essa coisa durante semanas antes de ficar doida.
– Bem, podia ter acontecido alguma coisa – respondi na defensiva.
– Ah, é claro, e Oklahoma elegeria uma Democrata para o senado, o inferno poderia congelar e porcos voariam e blá-blá-blá. Relaxe. Ficar estressada não vai adiantar nada.
– Tudo bem. Você está certa.
– Adoro ouvir isso duas vezes na mesma conversa.
– Melhor não se acostumar. – Aphrodite revirou os olhos e começou a se afastar. Eu a chamei. – Olha, eu vou mandar uma mensagem de texto para o grupo. Precisamos muito de um brainstorming. Todo mundo precisa se encontrar na sala de jantar dos professores para o café da manhã. Cinco minutos depois do crepúsculo.
– Marque para uma hora e quinze minutos depois do crepúsculo e eu mesma mando o texto por você.
– Aphrodite, precisamos de um plano.
– Zoey, nós realmente precisamos dormir.
Mordi o lábio e pensei em como ela parecia cansada e em como eu me sentia cansada.
– Feito – concordei.
– Ah, e eu já percebi que você está usando toda essa coisa de fim do mundo como uma desculpa para dominar a cantina dos vampiros. E eu estou adorando!
Ela ergueu as sobrancelhas e foi embora.
Meneando a cabeça e bocejando, caminhei em direção ao dormitório das garotas – então, dei meia-volta, refiz o trajeto que já tinha percorrido e fiz um desvio gigantesco quando notei que um bando de crianças pulando corda estava me observando como se estivessem se preparando para puxar as minhas penas.
– Que pena que Kalona parece mais legal que eu – resmunguei comigo mesma.
– Você costuma ser legal, Zo.
– Que merda, Aurox! Você quase me matou de susto.
– Eu estava correndo pelo perímetro – disse ele. – Você estava falando sozinha e tão alto, que não me ouviu, nem ouviu Skylar. – Ele fez um gesto para o muro da escola, onde o gato laranja gigantesco caminhava com suas patas de tigre, acompanhando Aurox. – Por que você acha que Kalona era mais legal que você?
Eu fiz um gesto na direção de onde vinha o riso, já distante, das garotas.
– Ele deixou as crianças puxarem as suas penas. Eu fiz um desvio enorme até aqui para evitá-las.
Aurox sorriu.
– Isso não a torna menos legal. Isso a torna esperta. Jovens humanos também fazem o meu ouvido doer.
Eu ri para ele, feliz que as coisas estivessem mais fáceis entre nós do que quando descobrimos Skylar.
– Jovens humanos iriam gostar de você. Principalmente as meninas. Elas iriam achar que você é um gato – provoquei. E, na hora, desejei poder pegar as palavras de volta, porque a sensação fácil e amigável entre nós se evaporou.
– É melhor eu continuar a patrulha. Abençoada seja, Zoey.
Ele começou a se afastar, mas eu segurei o seu pulso.
– Ei, espere um pouco. Eu não quis deixar você zangado.
Os ombros dele se curvaram.
– Eu não estou zangado. Só estou cansado disso.
– Disso? – perguntei sem entender.
– Disso. Do fato de que não sou o que pareço ser. Se aquelas garotas soubessem no que posso me transformar, elas ficariam aterrorizadas.
– Ah – respondi, entendendo. – Mas elas não sabem, e você não está se transformando em nada agora. Por que você não faz como Rephaim? Ele vive todos os momentos da vida humana totalmente, e não permite que o fato de ser um pássaro todos os dias arruíne sua vida.
Percebi que dei para Aurox algo no que pensar. Pelo menos, não estava se afastando ou ficando frio e distante. Ele caminhou ao meu lado sem dizer nada. Quando finalmente me respondeu, o fez em uma voz que mal passava de um sussurro.
– Eu gostaria de ser assim, mas Rephaim tem duas coisas que eu não tenho e acho que jamais terei.
Quando ele não continuou falando, estimulei:
– Que coisas são essas?
– O perdão de Nyx e o amor de uma mulher.
Eu comecei com a que não era uma bomba-relógio.
– Por que você acha que Nyx não o perdoou? Você já pediu isso pra ela?
– Todos os dias – respondeu ele –, eu acendo uma vela aos pés da sua estátua e peço o seu perdão. Todos os dias.
– Bem, então por que você acha que a Deusa ainda não o perdoou? Você escolheu trilhar o caminho dela, só está fazendo o bem. Até salvou a minha avó de Neferet.
– Ela nunca falou comigo.
A tristeza na voz dele o fez parecer ter um zilhão de anos.
– Nyx não fala com muitas pessoas – respondi.
– Isso não é verdade por aqui. Nyx apareceu várias vezes. Ela apareceu hoje.
– Bem, é, mas...
– A Deusa sabe o que eu sou. Ela não quer saber de mim.
– Aurox, isso não é verdade. Nyx permitiu que o espírito de Heath entrasse em você para que pudesse escolher ser mais do que um receptáculo.
O seu olhar encontrou o meu.
– Ela não fez isso por mim. Ela fez isso por você.
Eu não sabia o que dizer para ele. Eu já falara com a autoridade de Nyx antes, quando eu ouvia a sua voz ou sentia uma intuição que me dizia estar no caminho certo. Não senti nada daquilo naquele momento. Eu só me sentia mal por Aurox.
– E quanto à segunda coisa, você sabe por que eu nunca a terei – concluiu ele.
– Aurox, eu me importo com você, mas estou com Stark. E as coisas entre nós são complicadas demais para isso mudar.
– Não, Zoey. Você não se importa comigo . Você se importa com Heath . E é por isso que as coisas são complicadas demais para mudar. Agora eu vou terminar a minha patrulha. – O seu sorriso era triste e doce. – Abençoada seja.
Foi apenas quando ele se afastou que notei a ausência do calor que estivera se espalhando a partir da pequena pedra circular que descansava entre os meus seios.
– Magia antiga – sussurrei, olhando para ele. – Aurox definitivamente é feito de magia antiga. – Mas como isso poderá me ajudar?
Eu não fazia ideia. Mas descobriria. Peguei meu celular e enviei uma breve mensagem de texto para Aphrodite: Inclua Aurox na mensagem para o grupo. Aguardei até o meu celular tocar com a resposta: Ok. Vá dormir . Então, caminhei o resto do caminho até o dormitório.
Meus pés pareciam pesar uma tonelada enquanto eu os arrastava pelas escadas até o meu quarto. Estava fresco e silencioso lá dentro. Stark estava apagado. Eu fiquei feliz. Não queria que ele sentisse a minha tristeza e a minha preocupação. Eu logo teria de dar explicações suficientes sobre a pedra da vidência, e não queria falar sobre Aurox. Escovei os dentes, lavei o rosto e fiquei me preocupando em silêncio.
Tive de mover Nala para que eu pudesse me deitar ao lado de Stark. Ela apenas resmungou por um segundo, depois circulou pelas cobertas aos meus pés, fazendo um pequeno ninho para si, relaxou o corpo gordo e ligou a sua máquina de ronronar. Fechei os olhos.
Eu preciso dormir. Eu preciso dormir. Eu preciso dormir.
Suspirei, afofei o travesseiro e me afastei de Stark para que a minha inquietação não o acordasse.
– Você está se preocupando de novo.
A voz de Stark estava sonolenta. Ele me puxou para si e suas mãos encontraram os meus ombros, que ele começou a massagear devagar.
– Você não precisa fazer isso. Sei que está supercansado.
Ele afastou o meu cabelo e beijou a minha nuca.
– Eu sei que não preciso fazer isso, mas eu quero.
– Obrigada por tomar conta de mim – sussurrei.
– Sempre, Z. Sempre – respondeu ele.
E o seu toque embalou o meu sono.

24
Lynette
– Lynette, minha querida, você está adorável! – Neferet sorriu e caminhou à sua volta. – Eu sabia que o meu vestido ia combinar com você. Você é bem mais magra do que as suas roupas antigas mostravam.
– Bem, eu perdi um pouco de peso – respondeu ela, alisando o vestido de seda. Lynette se viu no longo espelho de Neferet. Eu estou bem, mesmo que a única maneira de esse vestido me servir tenha sido esticar totalmente a cintura franzida. – E você está certa. Faz bem para o moral me vestir bem e apresentar a melhor aparência.
– É claro que estou certa. Eu sou a Deusa!
Lynette observou enquanto Neferet fazia um giro gracioso pela sala. O seu longo vestido dourado rodou em torno dela e as serpentes se ondularam aos seus pés, entusiasmadas, como se fossem uma versão pervertida de animais de estimação.
Kylee entrou na cobertura.
– Deusa, os seus súditos estão reunidos do salão de baile, esperando a honra de sua presença.
Lynette assentiu a sua aprovação ao olhar a Kybô – a garota tinha se dirigido à Neferet exatamente como lhe ensinara – quando Neferet girou por ela, pegou a recepcionista abobada pelo braço e ordenou:
– Dance comigo!
Ela está assim desde que descobriu como quebrar o feitiço protetor. É como se estivesse tendo um episódio maníaco. O júbilo de Neferet preocupava Lynette. Ela sabia muito bem que quando o humor se erguia assim, o tombo costumava ser grande. Eu não vou estar no caminho quando ela cair , prometeu Lynette para si mesma. O meu instinto de sobrevivência é uma das coisas que Neferet aprecia em mim – ela mesma me disse isso.
– Lynette, pare de pensar com os seus botões e preste atenção.
Imediatamente, Lynette se concentrou em Neferet, esperando ter de lidar com mais uma de suas demonstrações de temperamento. Mas Neferet não foi nem um pouco desagradável. Ela fez Kylee girar mais uma vez e, então, abanando-se e sorrindo, simplesmente repetiu o que tinha dito – sem exibir raiva nem irritação:
– Eu perguntei se você se certificou de que Tony fez o que eu mandei. Você sabe que ele não passa de um brinquedo de criança.
– Ah, sim, Deusa. É claro que eu me certifiquei – assegurou Lynette. – Eu verifico tudo duas vezes antes de vir até você. Tony fez exatamente o que mandou. Preparou um banquete, usando o restante da comida e servindo vinho e bebida para todos os seus súditos.
– Até mesmo para a minha equipe? – Neferet deu um sorriso carinhoso para Kylee.
Lynette assentiu.
– Sim, até para a sua equipe.
– Você gostou do seu banquete, Kylee? – perguntou Neferet, como se realmente se importasse com a resposta.
– Gostei, Deusa. Gostei sim.
– Excelente! – Ela soltou um riso feliz e fez um gesto para mandar Kylee embora. – Vá antes de nós para o salão de baile, Kylee. Faça com que o quarteto de cordas comece a tocar a música que escolhi da última cena do balé Giselle .
– Sim, Deusa.
Quando estavam sozinhas, Neferet pediu:
– Venha, Lynette. Você me ajudaria a garantir que o meu cabelo está perfeito?
– Eu ficarei feliz em ajudar, embora seja obrigada a admitir que não sou muito boa com penteados.
– Ah, basta se certificar de que nenhuma das flores que a cabeleireira colocou no meu cabelo caiu enquanto eu estava dançando. Qual é o nome da cabeleireira? Ela foi muito habilidosa.
– Allison – respondeu Lynette, colocando um broto de flor de volta no cabelo ruivo-escuro de Neferet.
– Isso mesmo. Allison. Um lindo nome. Estou muito feliz por ela ter conseguido participar do banquete.
– Assim como eu – concordou Lynette.
Apenas uma das quatro cabeleireiras que foram contratadas para o casamento que as levaram para o Mayo ainda estava viva. Para Lynette, aquela noite parecia ter acontecido uma eternidade atrás.
– Lynette, sinto muito por você não ter conseguido ir ao banquete, mas fiquei feliz por nós dois termos tido tempo de jantar juntas mais cedo. Espero que não tenha se importado com o ensopado e vinho serem tão simples.
– A nossa refeição foi maravilhosa. Eu gostei muito, até do vinho – assegurou Lynette, maravilhando-se por Neferet parecer sincera. Era como se um botão tivesse sido apertado na Deusa. Toda a sua atitude mudara.
Lynette temia ter esperanças de que aquilo durasse.
– E agora é quase meia-noite. Todos estão vestidos com suas melhores roupas e saciados com comida e bebida. A cena está preparada para o perfeito evento de saída – declarou Neferet.
– Esse é o meu maior desejo – declarou Lynette. Então, ela decidiu se arriscar e fazer uma pergunta: – Deusa, você tem certeza de que não tem nada que eu possa fazer para ajudá-la com a nossa saída?
– Ah, minha querida Lynette, não. Eu já expliquei para você que a sua obrigação era preparar todos para a nossa saída espetacular. O restante do evento é comigo, já que exige a magia de uma Deusa.
– Como desejar, Deusa.
Lynette fez uma reverência enquanto Neferet e suas gavinhas das Trevas passavam por ela. Obedientemente, ela a seguiu até o elevador, ignorando a pele gelada das serpentes que passavam pelos seus pés na pressa de se manterem perto de Neferet. Na verdade, Lynette ficou muito orgulhosa de si mesma. Estava ficando cada vez mais fácil esconder a repulsa que essas criaturas lhe causavam. E Neferet apreciava isso. Qualquer coisa que ela apreciasse era uma boa coisa.
Lynette estava preocupada com o que Neferet faria para libertá-los do Mayo. Ela não fazia a menor ideia do que a Deusa planejara. Tudo que sabia era que Neferet agia como se não tivesse a menor dúvida de que conseguiria quebrar o feitiço e tirar a todos do Mayo, e ela estava muito feliz com isso. E, assim como o apreço de Neferet, sua felicidade também era sem dúvida uma coisa boa.
– Lynette, querida, você já foi à Itália?
Lynette piscou, surpresa com a pergunta inesperada.
– Já. Na verdade fui. Visitei Roma, Veneza, Sorrento e Capri.
– Você gostou da Itália?
– Muito – assegurou ela. – Deusa, gostaria que eu começasse a preparar uma viagem para você?
– Ah, vamos ver como essa noite será, não é? Como você sabe, precisamos de tempo e recursos para planejar o evento perfeito.
Um pouco confusa, Lynette assentiu, concordando. Achando que Neferet citar as suas palavras seria um bom sinal, alisou o adorável vestido que a Deusa lhe dera e ajeitou o cabelo. Aquele era um evento em que Lynette definitivamente queria estar com a sua melhor aparência.
Zoey
– Então, de algum modo, eu virei a secretária de um bando de nerds . Vamos recapitular a nossa tentativa patética de fazer um plano – começou Aphrodite, fazendo uma pausa para olhar para o bloco amarelo. Nele eu havia visto o nome do Darius várias vezes escrito por ela. – Não temos nada. Absolutamente nada. Nadinha. E estamos conversando há horas, embora eu esteja ficando extremamente ligada à sala de jantar dos professores. – Ela espetou o garfo na ponta de um brownie que o chef trouxera para nós havia uma hora. – Mas se eu ficar mais tempo aqui, o meu traseiro vai ficar quadrado.
– Não é verdade – discordei. – Bem, a parte sobre o seu traseiro deve ser. Mas a parte do nada, nadinha, não é. Nós sabemos que eu tenho que usar magia antiga para matar Neferet. Eu estou usando isto – ergui a pedra da vidência como Evidência A – e não me descontrolei nem fiquei zangada com nada. Então, talvez consiga usar a pedra sem me transformar em alguma coisa horrível. Tipo assim, não sei como ainda, mas já é alguma coisa.
– A pedra da vidência se aquece perto do Aurox – acrescentou Stark, lançando um olhar irritado para ele.
– Mas nem sempre – completou Damien.
– Z, ela está quente agora? – perguntou-me Stevie Rae.
Fechei os meus dedos em volta dela para me certificar antes de responder meneando a cabeça.
– Não. É só uma pedra. Nem quente, nem fria.
– Neferet não pode ser morta – interveio Aurox.
Todos olharam para ele, surpresos. Ele estava ali sentado com o grupo, ouvindo, mas sem dizer muita coisa por horas.
– Tudo bem, gênio. Sabemos disso. Ela é imortal – devolveu Aphrodite.
– Mas a Zoey acabou de dizer que precisa usar magia antiga para matar Neferet. Damien comentou o mesmo há uma hora. Até você disse isso quarenta e cinco minutos antes. Stevie Rae mencionou isso assim que nos sentamos...
– Tudo bem, já entendemos – interrompi-o sentindo que o nível de irritação na sala estava se elevando a cada comentário dele.
– Sabemos que ela não pode ser morta.
– Pelo menos, achamos que não pode – interveio Rephaim. – O meu Pai era imortal e está morto.
Seguiu-se um silêncio longo e triste. Então, quando Aurox falou, pareceu muito alto e muito estranho.
– Acho que essa é exatamente a questão. Vocês não estão se fazendo a pergunta certa por causa do que aconteceu com Kalona. Vocês sabem que Neferet é imortal. Ainda assim, acreditam que, se Zoey ostentar poder o suficiente, Neferet poderá ser morta. Acho que esse é o erro que os está impedindo de traçar um plano. – Como se estivesse se aquecendo, Aurox inclinou-se na cadeira, olhando para Rephaim. – Ninguém me explicou, mas todos vocês parecem saber a resposta não dita. Sinto muito se isso é doloroso, mas será que você pode me dizer como o seu pai foi morto, mesmo sendo um imortal há éons?
Stark se levantou e pousou a mão no ombro de Rephaim.
– Eu vou responder à sua pergunta – disse ele lançando um olhar duro para Aurox. – Quando Heath, o garoto cuja alma está dentro de você, foi morto por Kalona, a alma de Zoey se partiu e ela ficou presa no Mundo do Além. Eu a segui para tentar trazê-la de volta. Kalona também o fez, porque Neferet tinha controle sobre ele e o enviou até lá para se assegurar de que Zoey jamais voltasse. Kalona e eu lutamos no Mundo do Além. Eu perdi. Ele me matou. Nyx intercedeu porque Kalona trapaceou. Ele nem deveria estar lá, para começo de conversa. Ele tinha sido banido do Mundo do Além pela Deusa, e conseguira voltar por causa de uma tecnicalidade.
Vi a confusão na expressão de Aurox e expliquei:
– Nyx baniu Kalona fisicamente, mas ela não disse que o seu espírito não era permitido no Mundo do Além. Ele voltou como espírito, não com o seu corpo.
Aurox assentiu.
– Entendi.
– Porque o meu Pai desobedeceu ao édito da Deusa, ela ordenou que ele desse a Stark um pedaço da sua imortalidade – explicou Rephaim.
– E porque Kalona obedeceu às suas ordens, eu estou vivo hoje – concluiu Stark.
– Mas ele está morto por causa disso – disse Aurox. – Entendi.
– E você também entendeu que esse é um assunto meio delicado agora? – perguntou Stevie Rae, pegando a mão de Rephaim e se aproximando mais dele.
– É claro que entendo isso. Eu não quis provocar mais sofrimento, Rephaim, aceite as minhas desculpas – pediu Aurox.
– Tudo bem – aceitou Rephaim. – Todos nós sabemos que o meu Pai cometeu muitos erros. É muito difícil revivê-los agora.
– Ainda assim, precisamos de todas as informações que conseguirmos para derrotar Neferet, e isso inclui compreender se a sua imortalidade está intacta – declarou Aurox.
– Então, ela não tem um calcanhar de Aquiles como Kalona tinha – concluí.
– Ela não tem uma fraqueza literal, como Kalona e Aquiles – raciocinou Damien com sua voz professoral. – Mas talvez encontremos algo do seu passado que possamos usar contra ela.
– Já tentamos isso. A pedra da vidência se transformou em um espelho que mostrou a ela o seu passado, quando ela fora surrada e estuprada pelo próprio pai – respondi. – O motivo por que isso funcionou antes foi ela ter ficado chocada o suficiente para que Aurox tivesse uma chance de dar-lhe uma chifrada e jogá-la pela varanda da sua cobertura. Ela não ficará surpresa com isso novamente.
– Mas ela ficou enfraquecida o suficiente para ser derrotada. Mesmo que temporariamente – argumentou Aurox.
– É isso que eu chamo de lutar contra loucura com loucura – disse Aphrodite. – Não quero ofender nem nada, garoto-touro, mas você consegue ser nojento como aquelas aranhas quando você se transforma naquela coisa.
Estremeci, não gostando da lembrança do que havia por baixo da fachada normal de Aurox.
– Não ofendeu – disse Aurox.
– Aurox, você pode matá-la? – perguntei.
Ele meneou a cabeça devagar.
– Eu usei todo o meu poder contra ela na cobertura, e não a matei. Necessitamos de algo como o que você e eu fizemos contra ela, só que mais permanente. Precisamos de uma prisão capaz de segurar um imortal, e não de uma arma para matá-lo.
– Merda – disse eu, me sentando ereta. – A-ya!
– O que é A-ya? – quis saber Aurox.
– É quem, e não o quê – respondi, falando rápido, tentando acompanhar os meus pensamentos. – A-ya era uma virgem criada da Terra e que recebeu o sopro da vida...
– Com magia antiga – concluiu Aphrodite.
Assenti.
– Isso, com magia antiga. Ela atraiu Kalona para baixo da terra.
– Porque, a não ser que tenham ligações com a terra, os imortais ficam mais fracos embaixo da terra – explicou Damien, com sua voz espelhando a minha animação.
– Neferet não tem ligação com a terra. Ela rouba o poder das almas quando elas morrem – disse Shaylin. – Ela é uma sanguessuga de almas.
– A virgem A-ya foi capaz de aprisionar o meu Pai porque foi criada com magia antiga da Grande Mãe Natureza e com um poder elementar concentrado das Sábias que estavam defendendo o seu povo – disse Rephaim. – Ele ficou preso por séculos.
– Até que Neferet o libertou – disse eu.
– Acho que ela nunca foi uma vampira – comentou Stevie Rae. – Ela é mais uma feiticeira, e uma louca, manipuladora e mesquinha.
– Aiminhadeusa! – exclamou Damien, passando os dedos pelo seu iPad. – O aprisionamento de Merlin por Nimue na caverna de cristal foi criado pela própria magia dele! É mais do que uma alegoria chata ou um clichê ou uma parábola usada demais. É a nossa resposta!
– Ah, será que dá pra falar inglês? Inglês contemporâneo? – pediu Aphrodite.
Damien nem teve tempo de franzir o cenho para ela.
– Merlin era o conselheiro do rei Artur, lembra?
– Lembro – respondi. – Ele não era um vampiro?
Damien negou com a cabeça.
– Não, não, não, embora seja comum as pessoas cometerem esse erro. As lendas do rei Artur se baseiam em um rei humano que viveu na era medieval. Foram romanceadas por autores como Alfred Lord Tennyson, T. H. White e Marion Zimmer Bradley, que realmente transformou tudo em ficção, incluindo o próprio Merlin.
– Eu me lembro – disse Stark. – Eu li a trilogia que Mary Stewart escreveu sobre ele. Ela conta que Merlin praticamente transformou Artur em rei, e então ele não está lá para impedir a queda de Camelot, pois está aprisionado por sua própria magia usada por Nimue, a aprendiz por quem se apaixonou. Pelo menos, acho que a história era mais ou menos assim. Eu a li quando era criança.
– Eu assisti ao filme da Disney, A espada era a lei – contou Stevie Rae. – Gostei, mas não me lembro de Nimue.
– Os detalhes não são importantes – interrompeu Damien. – O coração do mito é a pista de que precisamos.
– Nós usamos a magia da própria Neferet para aprisioná-la – concluí.
– Nós não, Zo. Você – corrigiu-me Aurox.
– Ah, merda – disse eu. Suspirei e dei grande gole do meu refrigerante marrom.
Essa seria uma noite longa.
Lynette
O elevador se abriu para o mezanino, e Neferet caminhou graciosamente pelo corredor semelhante a uma varanda, chamando toda a atenção do salão de baile para si, enquanto descia pela ampla escadaria de mármore e chegava até o nível no qual se encontrava o seu trono. Lynette a seguiu mais devagar, seus olhos automaticamente procurando na multidão lá embaixo qualquer coisa ou qualquer um que pudesse estragar o ambiente festivo que ela se dedicara a criar.
Deu um suspiro longo e satisfeito quando tudo parecia estar o mais próximo possível da perfeição. Bem, pelo menos as únicas pessoas que continuam vivas são as mais atraentes. Isso definitivamente facilitava bastante o seu trabalho. Analisando-o, Lynette foi obrigada a admitir que era um grupo bonito – se ninguém olhasse detidamente para os rostos pálidos e preocupados, ou notasse o modo nervoso como tendiam a se juntar em pequenos grupos, como se quisessem se tornar tão pequenos e imperceptíveis quanto possível. Lynette imaginou que a ausência de luz provavelmente os ajudava a se sentir mais seguros. As velas estavam acabando, então ela pedira a Judson que se certificasse de colocar a maioria dos candelabros próximos à plataforma de Neferet, esperando que ela estivesse iluminada e não notasse a falta de luz no salão de baile.
Parecia que o seu plano estava funcionando. Havia luz o suficiente nas pessoas para que as joias das mulheres brilhassem, deixando todos banhados de sépia, exceto a Deusa.
Neferet ergueu os braços. Lynette estava em um canto da plataforma atrás dela, então não conseguia ver o rosto da Deusa, mas a voz de Neferet brilhava de alegria.
– Meus leais súditos, uma Deusa grata está diante de vocês!
Lynette ergueu as mãos, imitando aplausos. Os servos de Neferet imediatamente a imitaram e o restante das pessoas seguiram, embora com menos entusiasmo.
– Obrigada, obrigada. Que adorável! – exclamou Neferet. Os aplausos acabaram e ela continuou: – Nós ficamos muito próximos. Eu quero que vocês, meus primeiros súditos, saibam que a sua Deusa se lembrará eternamente de que o seu reinado na Terra começou aqui, em Tulsa, com vocês.
Lynette decidiu não interromper com mais aplausos. Ainda mais considerando que eles acabaram tão rapidamente. Resolveu guardar até o fim do discurso de Neferet, e então dar a dica para uma ovação final.
– Gostaria de mostrar um apreço especial para a minha equipe. Judson e Kylee, será que vocês e o restante da equipe poderiam vir até o centro do salão, por favor?
Isso foi inesperado , pensou Lynette. Ela devia estar agradecendo aos seus súditos com um discurso longo, e esperando que o relógio soasse a meia-noite... Lynette olhou para o grande relógio do vestíbulo, suspenso na sua moldura elaborada de art déco . Faltam 15 minutos para a meia-noite. Neferet não disse nada sobre reconhecimento especial. Merda! Estava rezando para que ela não estivesse esperando presentes da minha parte para dar aos súditos.
O estresse começou a lhe causar dor no estômago. Não é nada bom Neferet ter saído do roteiro . Lynette observou os membros da equipe irem para a frente do salão, deixando os seus lugares usuais no fundo. Ela fez uma careta. Eles eram tão mecânicos, sem nenhuma vontade própria dentro de si! Ela não queria imaginar o que as serpentes dentro deles estavam fazendo com as pessoas que ainda permaneciam lá dentro.
Lynette suprimiu um tremor, olhando para onde deveria haver um ninho daquelas coisas nojentas ao redor dos tornozelos de Neferet.
Elas tinham ido embora. Não havia qualquer serpente perto da Deusa.
Isso é muito estranho. Talvez elas estejam invisíveis . Mas não, Lynette estava próxima a Neferet desde que deixaram a cobertura. Ela não dissera qualquer coisa para as criaturas.
– Ah, minha leal equipe. – Neferet olhou para as dezoito pessoas possuídas pelas serpentes que estavam lado a lado, bem abaixo da plataforma. – Como vocês estão ótimos em seus uniformes bem passados. A sua Deusa está muito satisfeita com vocês.
Apenas parte da atenção de Lynette estava em Neferet porque ela encontrara as serpentes. Elas tinham formado um círculo negro ao redor do salão, ondulando-se devagar e girando e girando.
– Quero reconhecer a sua obediência. Sim, sim. Eu compreendo que ela se deve ao fato de estarem possuídos pelos meus filhos. Vocês não têm escolha, a não ser serem obedientes. – Neferet falava amorosamente com eles. – Ainda assim, eu demonstro o meu apreço por vocês.
O estômago de Lynette se contraiu. As pessoas no salão não tinham notado que estavam cercadas pelas serpentes de Neferet. Ainda. O salão não estava bem iluminado, e a atenção deles voltava-se para a Deusa.
– Agora, para demonstrar o meu apreço, decidi que eu daria a esses dezoito membros da minha equipe a maior honra. Vocês sabem o quanto amo os meus filhos, não sabem?
Cada um dos dezoito assentiu mecanicamente.
– Então, compreendem o quanto os amo quando sacrifico-vos para o meu filho que descansa dentro de vocês.
A voz de Neferet mudou para um ritmo de declamação:
Dezoito filhos, eu vos liberto do suplício!
Tomai e comei cada um dos sacrifícios!
A bile subiu pela garganta de Lynette, quando os membros da equipe começaram a gritar e a ter convulsões. Então, suas bocas se abriram e abriram, até que fosse impossível que se abrissem mais. A pequena Kylee, Judson, Tony e o restante deles explodiram num banho de sangue e tripas, e as enormes serpentes emergiram, consumindo cada um de dentro para fora.
O salão se encheu de gritos. Neferet pareceu não notar. Ergueu os braços e estremeceu de prazer enquanto cada um dos membros da sua equipe morria. Um movimento ao longo das paredes chamou a atenção do olhar chocado de Lynette. Uma cortina preta pulsante escorria pelas paredes do salão, movendo-se em direção ao círculo de serpentes.
É a cortina que Neferet criou com o sacrifício da varanda. A mente de Lynette girava em pânico, mas o seu corpo estava congelado e a mantinha no lugar. De alguma forma, ela chamou aquelas criaturas de volta para ela.
Com os braços ainda erguidos, a voz de Neferet se amplificou por um terrível poder que suas palavras ecoavam, lançando o caos e o pânico abaixo de si. Então, ela iniciou outro feitiço:
É chegada a hora
Criem para mim o caos
O poder me chega através da morte
E à meia-noite é a minha sorte.
Eu vos perco agora.
Meus súditos, diante de vós eu me curvo.
Saciai-vos! Alimentai-vos!
Nesta noite, satisfazei-vos!
Neferet abriu os braços. As horrendas criaturas que ela chamava de filhos se transformaram em uma armadilha viva que envolvia a todos, massacrando-os, cada um deles.
Neferet se virou para olhar para Lynette. Ondas de energia fluíam pela Deusa. A sua pele estremecia e pulsava com ela, como se o seu corpo estivesse mudando, crescendo sob ela. Seus olhos brilhavam como uma esmeralda sólida.
Lynette pressionou o seu corpo contra a parede, aterrorizada demais para falar.
– Ah, querida Lynette. Eu realmente reservei a melhor parte para o final.
– Por favor, não permita que eles me possuam! – exclamou ela, deixando as palavras escaparem.
Neferet pareceu chocada.
– É claro que eu não vou permitir que nenhum dos meus filhos a possua. Esse é o seu maior medo. Eu sei disso. Eu sempre soube. – A Deusa se aproximou dela, deslizando, até que conseguiu estender um dos seus dedos compridos como a pata de uma aranha para acariciar o rosto de Lynette. – Você voltou para mim. E, por isso, eu a recompenso. O seu sacrifício será feito apenas para mim. Você nunca mais sentirá medo. Você nunca mais precisará lutar contra o que o passado lhe causou. E, minha querida, eu hei de lembrar-me de você por toda a eternidade.
Lynette sentiu uma pressão no pescoço. Não doeu. Estranhamente, era prazeroso e calmante para os seus nervos em pânico. Então, ela sentiu o calor de algo quente escorrendo pelo seu corpo, encharcando o bonito vestido que Neferet lhe dera. As pernas de Lynette pararam e cederam, mas a Deusa não permitiu que caísse. Neferet tomou Lynette em seus braços e começou a se alimentar dela, e o seu mundo ficou preto e Lynette chorou, em silêncio, lágrimas de sangue.
Neferet
Neferet não permitiu que o corpo de Lynette caísse no chão depois que a drenou. Em vez disso, ela a ergueu e a colocou, gentilmente, no seu trono, arrumando os seus membros sem vida para que qualquer pessoa que a visse soubesse que a Deusa honrara o seu sacrifício.
– Vou sentir a sua falta, minha querida – declarou Neferet para o corpo, tirando o cabelo do seu rosto e lhe dando um beijo reverente na testa. – Você foi a primeira a compreender que é impossível fugir de mim. Haverá tantos outros depois de você que chegarão a essa mesma conclusão, mas você foi a primeira e será, eternamente, a minha favorita.
Ela acariciou mais uma vez o rosto de Lynette antes de descer as escadas de mármore e entrar no salão de festas.
Havia pedaços de corpos espalhados pelo chão de mármore preto e branco, mas muito pouco sangue para manchar o piso tão bem cuidado. Seus filhos realizaram um excelente trabalho, e não era de se estranhar. As gavinhas, que tão valentemente cobriram o seu Templo com a proteção, não se alimentavam havia dias, pobres queridos. Ainda assim, eles se mantiveram firmes como ela ordenara – vigilantes, protetores, amorosos.
Eles farão isso para mim. Eu sei que farão. Os meus filhos me amam, assim como eu os amo .
Neferet parou no vestíbulo diante das portas de latão e cristal, diretamente sob o bonito relógio tão artisticamente suspenso do teto.
– Filhos, venham até mim – chamou ela.
Eles correram para ela, pulsando com o poder que ganharam com o seu banquete, e encheram o vestíbulo ávidos para atender ao seu próximo comando. Neferet se ajoelhou, juntando-os ao seu redor, acariciando a pele familiar e amada, maravilhando-se com a sua força. Realmente se tornaram seus filhos.
– Eu sei como quebrar o feitiço de Thanatos e nos libertar – contou ela. O rosto deles sem olhos se virou para ela, enquanto seus corpos se retorciam e a envolviam. – Mas eu não conseguirei fazer isso sozinha. Vocês precisam ajudar a sua Deusa, a sua Mãe. Lynette deixou claro que Thanatos não tem poder suficiente para manter o feitiço. Até ela mesma acredita que Thanatos vai eventualmente quebrar. Como vocês sabem, meus queridos, eu não sou uma Deusa paciente. E por que deveríamos esperar? – Ela acariciou os filhos mais próximos a ela, enquanto explicava tudo para eles. – Bem, não precisamos esperar. As palavras do Touro Branco me inspiraram, e eu sei a resposta. Ele disse: “Pela eternidade, eu descobri que quanto mais desejamos algo, maior é o sacrifício que devemos fazer para conseguir. Eu nunca desejei nada com mais força do que me livrar desta prisão para que eu possa, de uma vez por todas, reinar sobre este reino mortal como a Deusa das Trevas e estar em pleno controle do meu próprio destino. E não há nada que me seja mais caro do que vocês, meus filhos queridos.
Neferet se ergueu.
– Então, eu vou pedir para vocês, e não ordenar . Vocês vão me salvar? Vocês vão quebrar o feitiço e me libertar? Se a sua resposta for sim, nem todos sobreviverão a esta noite, mas os que sobreviverem irão comigo para a Morada da Noite que me traiu, onde vamos nos banquetear com novatos, vampiros e humanos. Então, seguiremos juntos para reinar no reino mortal! Saibam que:
Juro pela minha imortalidade,
Ao vosso lado ficarei por toda eternidade.
O ar em volta de Neferet se agitou com a força do seu juramento. Seus filhos pararam de se retorcer. Era um silêncio que podia ser ouvido – um silêncio à espera de algo – e aquele silêncio encheu Neferet de alegria.
A Deusa se virou e ficou diante das portas.
– Abram-nas! – exclamou ela.
Seus filhos dispararam para obedecê-la, mantendo as portas duplas do Mayo bem abertas para que Neferet conseguisse ver a noite tranquila e escura adiante; enquanto falava, o poder nela começava a aumentar, amplificando as suas palavras, fazendo o seu cabelo levantar e deslizar sob a sua pele, pulsando com Magia das Trevas em volta dela.
Eu declaro,
Ó, filhos meus,
que meu sangue são,
Em frente vão
Sempre leais são
Eu declaro,
Ó, filhos meus,
Que minha espada são,
Ataquem com devoção
Comigo um novo mundo farão.
Eu declaro,
Ó, filhos meus,
Que minha vida são
Avante vão
Então, finalmente, eternamente, receberei o meu quinhão!
Neferet abriu os braços e, como relâmpagos escuros, os seus filhos voaram adiante. A parede de fogo se acendeu, engolfando a primeira onda dos seus filhos. Neferet gritou a perda enquanto eles pereciam. Mas a sua morte não impediu que os outros avançassem. Seus filhos seguiam, lutando contra as chamas. Onde um queimava outro tomava o seu lugar, e embora as lágrimas banhassem o rosto de Neferet, os seus gritos de raiva e perda se transformaram em gritos de vitória quando, de forma lenta e inevitável, as chamas ficaram cada vez mais fracas, até que, finalmente, com um sibilar de gelo cobrindo uma vela, a parede protetora se extinguiu.

25
Shaunee
– É difícil parar de pensar nisso, né? – perguntou Shaunee, quando ela e Erik mergulharam em outro silêncio enquanto observavam o local que Vovó Redbird e as outras mulheres cobriram com sálvia e lavanda – o local em que Kalona morrera.
– É espantoso. Eu sei que Zoey e vocês todos já viram Nyx algumas vezes, mas minha cabeça parece estar girando.
– Eu entendo completamente. Sim, já vi Nyx antes, mas não é como se eu estivesse acostumada com isso. Acho que a gente nunca se acostuma.
– Kalona e Erebus... Uau!
Shaunee assentiu, concordando, e feliz por ele ainda estar tão surpreso com o que presenciara. A garota o observou com o canto dos olhos. Ele mudara, e ela gostava da mudança.
– Obrigada por ficar aqui comigo – agradeceu ela, olhando para os quatro montículos que as mulheres formavam em seus sacos de dormir e, depois, dentro da tenda para Thanatos, que tinha voltado à sua meditação silenciosa não muito depois de todos terem partido. – Me sentiria tão sozinha aqui se não fosse por você.
– Estou feliz de estar aqui – respondeu Erik. – Gosto de estar com você e...
Ondas de calor e dor atingiram Shaunee, e ela se dobrou com um grito horrível. Use-me. Canalize o seu poder através de mim. Permita que eu fortaleça o feitiço , recitou Shaunee repetidas vezes para si mesma enquanto balançava para frente e para trás, tentando controlar o calor, o caos e a dor que explodiam através dela.
– Está tudo bem. Você consegue fazer isso, sei que consegue. Apenas se concentre e respire. Tente relaxar, como fez antes – estimulou Erik.
– Não! – ofegou Shaunee. – Diferente... De... Antes! Ruim – gemeu ela, caindo no chão. – Não posso... controlar.
– Shaunee, ouça-me com atenção! – A voz de Erik tinha deixado o tom calmo e, agora, soava preocupado. – Você consegue. O fogo é o seu elemento. Lembre-se disso. Concentre-se nisso.
A dor inundava Shaunee. Era como ser queimada de dentro para fora. Aquilo estava exigindo demais dela; não tinha mais o que dar. De repente, se deu conta que, assim como Cleópatra, seria engolfada pelo seu próprio elemento.
Então, tão rapidamente quanto passou por ela, ele foi embora, deixando-a ofegante, deitada no colo de Erik. Os seus braços a envolviam e, com a mão trêmula, ele acariciava-lhe os cabelos, afastando-os da testa suada, murmurando:
– Você consegue... Você consegue...
Vovó Redbird e irmã Angela estavam ajoelhadas ao lado dele, cada qual segurando uma de suas mãos.
– Querida, você voltou para nós? – perguntou Vovó Redbird.
– V-voltei – gaguejou Shaunee. – Acabou. O que quer que tenha acontecido, acabou.
– Shaunee! – Thanatos estava na entrada da tenda. O rosto completamente branco. Ela chorava lágrimas de sangue. – Neferet quebrou o feitiço. Avise Zoey. – Então, ela desmaiou.
Shaunee lutou para se levantar e correr até Thanatos. Todos fizeram isso. Mas antes que chegasse a ela, uma bruma de fumaça se ergueu do chão na frente da Grande Sacerdotisa. A bruma escorreu como água e assumiu a forma de uma mulher bonita e etérea, mas assustadora. Ela estendeu a mão. Thanatos abriu os olhos, sorrindo, feliz.
– E, então, finalmente é a minha vez de pegar a sua mão – disse Thanatos. – Venha comigo para um lugar onde este mundo não mais a prenderá. Eu aliviei a carga que você carregou por tanto tempo e tão bem. Por você, filha amada, os cuidados deste reino por fim, por fim, terminaram.
Ainda sorrindo, Thanatos abraçou a mulher e as duas viraram fumaça e depois bruma. Então, ambas lentamente escorreram até serem absorvidas pela terra.
Irmã Angela se benzeu com reverência. Shaunee ouviu quando ela começou a rezar o terço.
– Aquela era a Morte – disse Erik. – Ela levou Thanatos embora... Toda ela!
Shaunee olhou para onde o corpo da Grande Sacerdotisa caíra. Ele estava certo. As roupas estavam caídas, vazias, no chão.
– Avisem Zoey! – exclamou Vovó Redbird, sacudindo os ombros. – Agora!
Shaunee se recompôs e fitou o olhar preocupado de Vovó.
– É o que vou fazer. Nós vamos deter Neferet. De algum jeito, é o que vamos fazer. – Ela agarrou a mão de Erik. – Leve-me para a Morada da Noite. Rápido!
– Nós vamos rezar por vocês – prometeu a rabina Bernstein.
Todas as mulheres se ajoelharam sob o círculo do Council Oak Tree.
– Abençoados sejam todos vocês! – gritou Vovó.
Zoey
– Ok, cada um de vocês tem uma tarefa – disse Damien enquanto nos levantávamos e nos alongávamos, finalmente prontos para deixar a sala de jantar.
– Exatamente, Rainha Damien, Shaylin e eu vamos ficar com Kramisha e Lenobia. Uniremos nossos superpoderes de Profetisas ao que Lenobia sabe sobre o passado de Neferet e tentaremos descobrir o calcanhar de Aquiles daquela insana. Depois que eu me exercitar – explicou Aphrodite, enfiando mais um brownie na boca.
– Antes – retorqui. – Isso é muito mais importante que a sua bunda!
Aphrodite lançou um olhar indicando claramente que nada era mais importante do que sua bunda. Felizmente, ela estava ocupada demais mastigando, e não dava pra falar.
– Pedirei ao Professor P. que venha comigo ao centro de mídia para pesquisarmos mitos e lendas antigos. Talvez encontremos alguma coisa que nos ajude – retomou Damien.
– Aurox, Rephaim e eu vamos render Darius, detetive Marx e os Guerreiros novatos que estão patrulhando os muros – disse Stark.
– E nós vamos discutir mais sobre o passado do meu Pai – completou Rephaim.
– Odeio que você tenha que fazer isso – reclamou Stevie Rae.
– É o que ele gostaria que eu fizesse. Ele ia querer que fizéssemos tudo para ajudar a deter Neferet – explicou Rephaim.
– E Stevie Rae vai conversar com Sgiach via Skype. De novo. – Ergui o bloco amarelo que Aphrodite me dera. – Sim, anotei todas as perguntas que decidimos fazer.
– Excelente – elogiou Damien. – E eu pensei, mais de uma vez, que ele se tornaria um excelente professor algum dia.
– Faltam alguns minutos para a meia-noite. – Vamos nos encontrar aqui por volta das quatro e meia. Isso nos dará a chance de conversar sobre o que descobrimos e jantar antes da aurora.
– Tudo bem, vejo vocês em algumas... – começou Stark, inclinando-se para me dar um beijo de despedida, quando Nicole entrou na sala, seguida por Shaunee e Erik.
– Thanatos morreu. O feitiço foi quebrado. Neferet está livre! – contou Shaunee, sem fôlego.
– O que aconteceu? Você está bem? – quis saber Stark, enquanto Erik a ajudava a se sentar.
– Eu vou ficar bem. E tudo que eu sei sobre o que aconteceu é que um monte de coisas grandes e ruins bateram na parede ao mesmo tempo. O fogo não foi suficiente, e a força do ataque matou Thanatos.
Shaunee tomou um gole do vinho que Aphrodite lhe ofereceu.
– Quase matou Shaunee também – contou Erik.
Marx e Darius entraram correndo.
– É Neferet. Ela se libertou e está vindo em nossa direção! – disse Darius.
– Estou recebendo atualizações dos policiais uniformizados nas barricadas. Ela está passando por todos eles – informou Marx.
Senti uma calma dentro de mim. Meus pensamentos ficaram mais claros e concentrados.
– Damien, Shaunee, Shaylin e Stevie Rae, venham comigo – decidi.
– Você não vai a lugar nenhum sem mim – declarou Stark. – Por que não ficamos todos aqui? Pelo menos há muros nos protegendo.
– Um muro não vai nos proteger contra Neferet. Ela passará por cima dele. Vai matar todo mundo, começando pelos humanos que nos procuraram em busca de proteção – expliquei a ele. – Não, nós não vamos ficar aqui. Você vem comigo, isso sim. Bem como você, Rephaim, e você, Aurox.
– Você só pode estar completamente doida se acha que vou ficar aqui – reclamou Aphrodite.
– Você precisa ficar. Se ela passar por nós, você, Darius e Marx precisarão tirar as pessoas daqui. Vão para o Mosteiro Beneditino. Escondam-se nos túneis. Ela terá menos poder lá embaixo. Avise o Conselho Supremo. Avise Sgiach. Merda, avise todas as Moradas da Noite do mundo. Se não conseguirmos deter Neferet, ela não será apenas um problema de Tulsa. Será um problema para o mundo inteiro – eu disse, caminhando até Aphrodite. Eu lhe dei um abraço e ela retribuiu. – Reze para Nyx nos ajudar a encontrar uma maneira de deter Neferet – sussurrei para ela.
Aphrodite me pegou pelos ombros e me olhou nos olhos. Em uma voz firme, mas alta, ela disse:
– Eu vou rezar para que você seja tão inteligente e forte quanto acho que é desde que a conheci. Você pode detê-la. Eu sei que pode. Apenas acredite em si mesma.
– E em nós – completou Stevie Rae. Ela e o restante do meu círculo estavam em pé perto da porta. – Acredite em todos nós, Z. Nós não vamos decepcioná-la.
– Então, vamos – disse eu. – Vamos detê-la para sempre.
– Para onde nós vamos? – quis saber Stark.
– Para Woodward Park. – Olhei para Marx. – Pegue o seu rádio. Diga para os homens saírem de lá. E que, enquanto estiverem fugindo de Neferet, devem gritar uns aos outros que Zoey e seus vampiros estão fazendo um círculo em volta do parque, a fim de apanhá-la numa armadilha.
– Ela vai direto para vocês – avisou Marx.
– Esse é o plano – respondi.
– Abençoados sejam – desejou Darius.
– Merry meet , merry part , e vamos nos ver de novo – declarei.
Então, corremos todos para o estacionamento e entramos no Hummer.
Levamos apenas alguns minutos para chegar ao Woodward Park.
– Dirija o Hummer até a parte mais alta que fica de frente para o centro da cidade.
Enquanto eu dava as direções para Stark, pensei em algo. Merda! Deve ser isso!
– Não foi lá que você achou que tinha matado aqueles dois homens? – perguntou Stark.
– Isso! Leve a gente até lá. Rápido!
Stark subiu no meio-fio, afundou o pé no freio, fazendo o veículo derrapar até parar sob um carvalho enegrecido. Todos saímos correndo do carro.
– Tudo bem, gente – comecei. – Eu tenho um plano. É bem simples, mas já é alguma coisa. Na base do cume tem uma gruta que Neferet usou para se esconder antes de matar aqueles dois homens.
– Você quer que a gente faça um círculo ali, Z.? – quis saber Stevie Rae.
– Não. Eu vou ficar no alto dessa escada de pedra, bem ali. – Apontei.
Havia apenas uma luz da iluminação pública funcionando no parque. O lugar tinha sido bem atingido pelo fogo e pelo raio que eu causara. Mas aquela luz era o suficiente para enxergarmos o caminho de pedras entre as moitas de azaleias chamuscadas, abrindo-se em degraus rudimentares que levavam ao nível da rua e à gruta.
– Definam as direções rapidamente – pedi
– O norte fica para lá! – mostrou Stevie Rae.
– O restante de vocês tem as suas posições a partir dali?
Ar, fogo e água assentiram.
– Tudo bem, espalhem-se. Convoquem os seus elementos para si. Eu não vou invocar um círculo, não até que ela esteja próxima o suficiente para ficar presa lá dentro.
– Dentro da gruta, você quer dizer – concluiu Aurox.
Eu assenti.
– A nossa caverna de cristal – percebeu Damien.
– Como é que vamos mantê-la lá dentro quando a enfiarmos lá? – perguntou Stevie Rae.
– Magia antiga – respondi, com muito mais confiança do que eu sentia.
– Como é que vamos fazê-la chegar perto o suficiente da gruta? – questionou Stark.
– Bem, o seu calcanhar de Aquiles vai estar no alto das escadas, falando um monte de merda até ela ficar com raiva o suficiente para se aproximar – expliquei.
– Você é o calcanhar de Aquiles de Neferet – disse Damien.
– Sou – respondi. – Ela me perseguiu desde que fui Marcada. E vai continuar me perseguindo.
– Eu não estou gostando desse lance de você servir de isca – declarou Stark.
– Então, mantenha-me em segurança até que ela esteja perto o bastante para eu invocar um círculo ao redor dela – pedi.
– Ela terá de passar por mim para chegar até você – afirmou Stark.
– E por mim – reforçou Aurox.
– Obrigada – agradeci. – Acredito em vocês dois. – Voltei-me para Stevie Rae e Rephaim. – Rephaim, mantenha Stevie Rae em segurança. Nós vamos prender Neferet dentro da terra. Isso significa que o elemento dela é a chave para fazermos isso.
Rephaim assentiu.
– Eu sempre a protegerei.
– Damien, Shaunee e Shaylin. Façam com que o seu elemento oculte vocês até que eu avise que podem convocá-los para o círculo. Vocês três serão os menos protegidos entre todos nós.
Damien pegou a mão de Shaunee e de Shaylin.
– Nós compreendemos e não vamos decepcioná-la.
Fui até Shaunee e segurei a sua mão. Stevie Rae se juntou a mim, completando o nosso círculo.
– Eu amo vocês. Amo vocês todos. Não importa o que aconteça comigo, se o nosso círculo quebrar, saiam daqui. Vão para os nossos túneis sob o depósito. Stevie Rae, leve-os até lá. Use a terra como selo de proteção até que consigam se reagrupar.
– Não sem... – começou Stevie Rae.
– Não! – Minha voz se encheu de poder, fazendo os quatro se sobressaltarem, surpresos. – Vocês têm que me ouvir. Se o círculo quebrar, eu ficarei como Thanatos. É o meu círculo, o meu feitiço e vai me matar. – Enquanto eu dizia as palavras, sabia que eram verdadeiras. Os meus olhos encontraram os de Aurox. – Se eu morrer, proteja todos eles.
Aurox não disse nada, apenas assentiu uma vez.
Os meus olhos encontraram os de Stark.
– Se você ainda estiver vivo, ajude Aurox a levá-los para um lugar seguro.
– É o que farei, minha Grande Sacerdotisa, minha Rainha, e então eu a seguirei para o Mundo do Além – declarou Stark, curvando-se sombriamente para mim.
– Dessa vez, pelo menos, você saberá onde me encontrar. – Sorri para ele. – Na entrada, sob a árvore dos desejos. Esperarei por você.
Um grito agudo soou na distância.
– Neferet está se aproximando – avisei. – Eu sou o seu centro. Formem o círculo ao redor de mim, mas se escondam! Agora! E abençoados sejam todos vocês.
Meu círculo se espalhou para norte, sul, leste e oeste, deixando-me sozinha com Aurox e Stark. Peguei a pedra da vidência por baixo da minha camiseta e passei o fino cordão de platina pela cabeça, segurando-a firmemente na minha mão. Olhei de Stark para Aurox.
– Se essa coisa começar a me transformar, matem-me antes que eu fique como ela.
– Será como você diz – respondeu Aurox.
Stark parecia pálido, mas assentiu.
– Não permitirei que ela a transforme num monstro.
– Obrigada – agradeci. – Agora vamos deter essa louca antes que ela machuque mais alguém que a gente ama.
Stark e Aurox me acompanharam enquanto eu seguia rapidamente pelo caminho de pedras. Tive uma estranha sensação de déjà-vu . Sério que se passaram só alguns dias desde que andei por este caminho, puta com o mundo? Parecia ter sido há um século, e eu aparentava ser uma pessoa totalmente diferente.
Eu sou uma pessoa diferente. O que aconteceu me mudou. O que aconteceu aqui me fez crescer , compreendi por fim.
Cheguei ao topo de uma ampla escada de pedra e parei. Apontando lá para baixo pela abertura do cume, mostrei:
– Estão vendo ali? Dentro daquela pedra arredondada existe uma gruta e é lá que vamos prendê-la.
Ouvimos outro grito mais próximo do parque.
– Eu vou lá para baixo. – Aurox apontou. – Vou me esconder atrás das pedras da escada. Neferet espera ver Stark e não estará procurando por mim. – Ele olhou para Stark. – Eu vou me transformar. Se eu perder o controle e me voltar contra qualquer um de vocês, façam o que for preciso para me impedir.
– Aurox, você não vai perder o controle. – As palavras foram sussurradas na minha mente e eu as repeti. Aquela voz nem parecia ser a minha. Soava mais antiga, sábia e forte e completamente repleta de amor. – O seu touro mudou. Ele não é mais uma criatura das Trevas. A sua magia antiga agora é de Luz.
Quem é você? Como sabe disso?
Os sussurros me deixaram e, com a minha própria voz, respondi:
– Bem, eu sou uma Sacerdotisa da sua Deusa. Ela me diz coisas. Dessa vez, ela disse para você.
– Tudo terá valido a pena se isso for verdade – disse Aurox.
– Então valeu a pena, porque a sua Deusa nunca mente – respondi.
Stark estendeu a mão para Aurox.
– Boa sorte. Fico feliz de tê-lo conosco no final. É certo que você me ajude a proteger Zoey.
Aurox segurou o seu antebraço.
– Quando tudo isso terminar, acho que poderíamos tomar uma cerveja... ou seis.
Stark sorriu.
– Fechado.
– Ótimo – disse eu, meneando a cabeça para ambos. – Morte, destruição, a sua Deusa falando e tudo que vocês querem é uma cerveja.
– Não comece, Zo. Depois – pediu Aurox falando como Heath. Então, ele desceu os degraus de três em três.
Virei-me para Stark, mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele me tomou nos braços e me beijou.
– Apenas fique viva – pediu ele, quando finalmente me soltou.
– Eu fico se você ficar – declarei.
– Negócio fechado.
Então, um movimento sobre o seu ombro chamou a minha atenção. Sob o poste de luz na Twenty-first com a Peoria Street, as gavinhas das Trevas fervilhavam.
– Ela está aqui – afirmei.
Agarrei minha pedra da vidência, pensando... pensando... E, então, eu soube – pelo menos parte do que eu precisaria fazer.
– Tem que ser como em Skye. O Fey está ligado à magia antiga!
– O que eu posso fazer para ajudar?
– Preciso de algo afiado.
– Não se preocupe. Posso resolver isso.
Stark correu até o Hummer, abriu a porta e pegou uma bolsa de lona cheia de flechas que trouxera. Então, ele voltou para mim e tirou uma das suas flechas de dentro dela.
– Tome cuidado. É bem afiada.
Ele me deu um beijo rápido, pegou seu arco e se posicionou três degraus abaixo de mim. Deu um sorriso de lado e disse:
– Eu não posso matá-la, mas, com certeza, posso machucá-la.
– Ela é vaidosa. Lembre-se disso. Mire na cara – orientei. – É isso que vai deixá-la puta da vida.
Então, toda a minha atenção se concentrou nas gavinhas das Trevas. Elas estavam se espalhando pelo parque, como óleo negro na superfície do oceano. No centro delas, sendo carregada para a frente na sua onda de crueldade, estava Neferet.
Eu não deveria ter ficado surpresa com o quanto ela mudara. Nós todos mudamos desde a última vez em que a vimos. Eu só não esperava que a loucura dentro dela tivesse começado a transparecer do lado de fora.
Neferet estava maior do que antes. Seus braços e pernas estavam desproporcionais em relação ao resto do corpo. Os membros tinham se alongado, principalmente os dedos. Eles se moviam sem parar, como se não conseguisse ficar parada.
Uma aranha! Ai, Deusa, ela me lembra uma aranha!
– Espírito, venha para mim – conjurei, antes que o medo me dominasse.
Instantaneamente, senti o meu elemento favorito acalmar-me os nervos.
Nyx, farei todo o resto se você apenas me ajudar a ser sábia e forte. Por favor!
A voz da Deusa passou pela minha mente junto com o espírito que me enchia, afastando o que ainda restava do meu medo.
Você tem a minha bênção, Zoey Redbird. Lembre-se, o amor é mais forte que tudo...
Confiante, eu dei um passo até a beirada da escadaria de pedra.
– Neferet! É Zoey Redbird. Estou aqui porque já estou de saco cheio das suas merdas. O seu tempo de matar as pessoas chegou ao fim. Agora!
O olhar verde-esmeralda de Neferet pousou em mim na hora. O seu sorriso era reptiliano.
– Será que você não quer dizer que já teve o suficiente da minha caquinha , pirralha ridícula e insípida?
– Na verdade, não – respondi. – Ao contrário de você, o que eu falo é pra valer. E se eu disse merda, é merda mesmo o que você é!
– Que madura você – debochou ela. – E que surpresa adorável encontrá-la aqui tão rápido e facilmente. Achei que teria de arrancá-la do meio do seu círculo depois que cada um dos seus amigos se sacrificasse estupidamente e de boa vontade por você.
– Bem, Neferet, você está errada. De novo.
Enquanto ela ria e deslizava pela calçada, entrando no parque, respirei fundo.
Eu posso fazer isso. Eu sei que existe magia antiga em Tulsa, e onde existe a mais antiga das magias, também existe Fey .
Ergui a pedra da vidência e, pensando naquilo que Sgiach me ensinou tão bem, assim como o que Nyx me lembrara, cortei a palma de minha mão com a ponta da flecha. Coloquei a mão em concha, deixando o sangue empoçar. Então, ergui o artefato, dizendo:
– Seres do espírito! Venham até mim! – Dei um sopro na minha palma, fazendo com que uma cascata de sangue atingisse a pedra da vidência. Como se o sangue estivesse preso no vórtice, ele passou através do centro da pedra e saiu do outro lado, onde um houve uma explosão de luz forte e roxa.
Sorri para os seres.
– Obrigada por me ouvirem. Eu peço uma coisa do Fey. Espalhem a sua Luz naquelas Trevas. – Apontei para o ninho de criaturas que se retorciam e cercavam Neferet.
Os duendes se afastaram de mim. Segundos depois, luzes roxas explodiram ao redor de Neferet, fazendo sangue e gosma voarem pelos ares.
– Não! – berrou Neferet.
Com seus dedos estranhos e alongados, ela acariciou as criaturas feridas que se aproximavam dela, murmurando com elas, como se realmente fossem seus filhos. Então, ela se empertigou. Sua raiva brilhou para mim.
– Você pagará por ter feito isso! – Neferet começou a deslizar na minha direção. – Finalmente, finalmente , matem Zoey Redbird!

26
Zoey
O comando de Neferet liberou o caos total. Gavinhas das Trevas se moveram em uma onda de dentes que se retorcia, enquanto os seus corpos se aproximavam da escada de pedra.
Ouvimos um bramido ensurdecedor, e Aurox saiu de trás das pedras que o ocultavam. Ele não hesitou. Partiu direto para o meio delas, rasgando-as com os seus chifres e pisoteando-as com suas patas fendidas.
Ele era tão aterrorizante quanto magnífico.
– O receptáculo traidor! – exclamou Neferet para ele. – Quebrado! Você será quebrado para todo o sempre!
Sem poder falar, a única resposta de Aurox foi um bramido, enquanto ele continuava a carnificina ao seu redor.
Era difícil para mim, afastar o olhar. Enquanto eu olhava, me dei conta de que ele também tinha mudado.
– Os chifres dele – gritei para Stark. – Eles não são mais daquele branco repugnante!
– Não – respondeu Stark. – São negros, como as noites de Nyx.
– E como aquele outro touro. O bom.
– Fique atenta, Z. Touro do bem ou não, elas estão passando por ele – alertou-me o Guerreiro. – Fique de olho em Neferet. No instante em que ela estiver perto o suficiente, convoque o círculo. – Então, Stark ergueu o seu arco e disse: – Matem essas filhas da puta das Trevas!
As flechas choveram sobre elas, em volta de Aurox, mas a mira de Stark era verdadeira. O touro não foi atingido por elas, embora as gavinhas das Trevas à sua volta ficassem caídas no chão.
– Mais! – gritou Neferet na noite. – Preciso de mais filhos.
Parecia que as sombras vomitavam Trevas. As coisas pululavam de todos os lados.
E, ainda assim, Neferet não estava perto o suficiente.
– No rosto dela! Atire! – exclamei.
– Atinja a vaidade de Neferet – comandou Stark enquanto puxava a corda e soltava duas flechas de uma só vez.
As duas traçaram um bonito arco, caindo em sincronia perfeita uma com a outra. Juntas cortaram as bochechas, abrindo uma ferida sangrenta em cada um dos lados do rosto de Neferet, rasgando as suas tatuagens de safira.
Gritando sem parar, Neferet cambaleou segurando o rosto com as mãos, tentando manter a pele sobre a face para evitar que a ferida abrisse mais.
Achei que feri-la pelo menos deixaria as suas gavinhas das Trevas confusas, fazendo com que parassem caso ela fosse incapaz de dar as suas ordens.
Eu estava errada.
O ferimento funcionou como esporas em um cavalo. De repente, elas estavam em todos os lugares, e o bramido de Aurox não era mais de desafio, mas sim de dor.
– Zoey! Vá para o Hummer! Tranque-se lá dentro! – gritou Stark. – Eu vou estar logo atrás de você.
– Eu não vou a lugar nenhum – respondi.
Ele olhou para mim e deu um sorriso inflexível.
– Então, eu também não vou.
Stark plantou os dois pés no chão e ergueu os punhos, prontos para lutar contra as gavinhas com as próprias mãos.
Instantaneamente, uma longa espada se materializou diante dele, brilhando com uma beleza mortal.
A mão de Stark se fechou no punho da Espada do Guardião e, com um grito triunfante, ele começou a fatiar as gavinhas das Trevas que se atreviam a tentar passar por ele.
Ainda assim, Neferet não estava perto o suficiente.
Resoluta, passei a ponta da flecha pela palma da minha outra mão. Dessa vez o corte foi mais fundo, fazendo o sangue encher a minha mão.
– Seres do ar, fogo, água e terra. Venham para mim! – Soprei o meu sangue pelo centro da pedra, e os Fey apareceram à minha volta na forma de pássaros e fadas, povos das águas e ninfas da floresta. – Não importa o custo, eu pagarei. Apenas levem-me até Neferet.
O custo a pagar
Será do seu amor verdadeiro se separar
Eu não tinha escolha. Ou Stark morre ou o mundo como eu conheço morre.
– Vocês têm o meu juramento. Eu concordo! – exclamei, prometendo silenciosamente para mim mesma: quando tudo isso acabar, eu vou seguir Stark. Eu saberei onde encontrá-lo. Sob a árvore dos desejos...
Os Fey curvaram suas cabeças brilhantes por um instante, reconhecendo o meu juramento, então formaram um círculo à minha volta.
Vá para a Deusa das Trevas .
Eu fiz como eles ordenaram, passando por Stark.
– Zoey? Mas que droga você está fazendo!
– Fique aí, Stark! Continue lutando. Eu vou até ela.
Eu não conseguia olhar para Stark. Sabia que ele não ia me ouvir. Sabia que ele não ficaria no alto da escadaria, onde tinha uma chance contra as gavinhas.
– James Stark, eu sempre amarei você! – gritei.
Então, eu corri. Os Fey me cercaram e se moveram comigo, um escudo sólido de poder antigo, repelindo qualquer gavinha que se aproximasse deles. Eu dei a volta por trás de Neferet. E então, usando o meu escudo de Fey como aríete, eu me lancei sobre ela.
Os Fey a atingiram por trás. Cegada pelo sangue e pela dor, ela não nos viu chegando. Eu a empurrei em direção à gruta, um passo depois do outro.
Sibilando contra mim como se fosse uma cobra, ela se virou e os seus terríveis dedos longos estraçalharam o Fey mais próximo a ela.
Era um Fey da água, uma sereia, e o lindo ser azul emitiu um grito horrível e não humano de dor e se dissolveu no chão.
Cerrei os dentes e dei outro passo em direção a ela.
– Sua vadiazinha! É você aí dentro. Você acha que a magia antiga vai impedir que eu te mate? Eu realmente comando a magia antiga! Uma mortal não pode me derrotar!
Ela atacou de novo, e um ser de fogo explodiu.
Consegui que desse outro passo, e ela atingiu o Fey que tinha a forma de uma graciosa garça.
Tendo apenas a ninfa da floresta entre mim e Neferet, eu corri para ela. Neferet enfiou suas garras através do Fey, que gritou e desapareceu, mas a Deusa das Trevas perdeu o equilíbrio no arenito desnivelado de Oklahoma sob os seus pés e caiu.
Finalmente! Perto o suficiente!
– Damien, onde você está? – gritei.
– Aqui! – A sua cabeça apareceu por trás de uma moita de azaleias à minha esquerda.
– Ar, eu o convoco para o nosso círculo! – exclamei, e o vento nos envolveu.
– Estou aqui! – gritou Shaunee, saindo de trás de uma árvore enegrecida pelo fogo.
– Fogo, eu o convoco para o nosso círculo! – senti o calor do seu elemento.
– Filhos! Detenham-na! Matem-na! – ordenou Neferet.
Mantive o meu espaço, mesmo quando senti uma gavinha das Trevas morder a minha perna.
– Shaylin!
– Bem aqui! – Ela pulou e acenou do alto do cume à minha direita.
– Água, eu a convoco para o nosso círculo!
– Stevie Rae! – exclamei, enquanto agarrava uma das criaturas nojentas que mirava no meu pescoço e a atirava contra uma pedra.
– Estou bem atrás de você, Z., e vou protegê-la.
Eu me virei. A espada de Rephaim desenhou um arco entre nós enquanto eu dizia:
– Terra, eu a convoco para o nosso círculo! – Senti o cheiro de uma campina enquanto concluía o círculo: – Espírito, eu o convoco para o nosso círculo!
Uma grande fita prateada de luz ganhou vida, conectando nós cinco e concluindo o círculo que envolvia Neferet.
– Você acha que esse círculo vai me segurar? – Neferet estava de quatro, seu rosto ensanguentado, mas já se curando. Ela olhou para mim e riu. – Você só está facilitando as coisas. Eu destruo esse círculo e destruo você. Venham para mim, filhos! Todos vocês! Venham!
As suas criaturas obedeceram. Elas deslizaram de todas as sombras do parque, e uma onda de Trevas se erguia em volta dela.
Ignorei Neferet e as criaturas que ela convocara para me executar. Ergui os braços.
– Ar, fogo, água, terra e espírito, ouçam-me! Eu sou Zoey Redbird. Minhas ancestrais dançaram sob o céu, evocando vocês em nome da Grande Mãe Terra, com respeito e amor, elas mesmas sendo cuidadoras desta terra, cuidadoras do equilíbrio da Luz e das Trevas no reino mortal. Nesta noite, eu invoco a sua ajuda como uma filha dessas cuidadoras antigas. Esta Tsi Sgili e suas criaturas sujam a todos nós e causam o desequilíbrio. Então, como as Sábias antes de mim fizeram, eu imploro a você, Grande Mãe Terra, e aos poderes da magia antiga, aprisionem Neferet e seus filhos! – Imaginando-me como uma fonte e os elementos como a corrente de poder que saía dos confins da terra e passava por mim, lancei o ar, o fogo, a água, a terra e o espírito contra Neferet.
A fita prateada que me ligava ao círculo se afastou de mim, fechando-se como um nó corrediço ao redor de Neferet e suas gavinhas das Trevas, deixando-as todas juntas bem diante da abertura da gruta.
– Stevie Rae, ajude-me!
Instantaneamente, ela estava ao meu lado, pegando a minha mão.
– Terra – ordenou ela –, feche-os aí dentro!
Um brilho verde iluminou as rochas em volta da gruta. A terra sob os nossos pés começou a tremer, cada vez mais forte, até as pedras se soltarem como uma avalanche para selar a entrada da gruta.
O silêncio que seguiu foi incrível. Eu estava cambaleante. Meus joelhos estavam fracos. Stevie Rae e eu ainda estávamos de mãos dadas.
– Stark! – chamei. – Onde você está?
Meus olhos já estavam se enchendo de lágrimas. Eu sabia que ele não ia me responder. Cambaleei e Aurox me pegou.
Ele era um garoto de novo; ensanguentado, mas vivo.
– Calma – disse ele, enquanto ele e Stevie Rae me ajudavam a sentar. – Tudo vai ficar bem.
Não, nada vai ficar bem.
– Respire fundo algumas vezes, e, antes de fechar o círculo, pegue um pouco de energia do espírito – orientou-me Aurox.
Concordei, entorpecida, olhando para a fita prateada que ainda estava à minha volta.
– Z.! Nós conseguimos! – exclamou Damien.
– Isso foi muito assustador – disse Shaylin.
– Mas espetacular – concordou Shaunee.
Todos eles estavam em volta de mim – todos do meu círculo. E nós tínhamos conseguido. Nós prendemos Neferet. Eu era a única que sabia o preço, porém.
– Pode crer, foi espetacular e doloroso – disse ele.
Ergui o olhar e, através das minhas lágrimas, vi Stark. Ele estava em pé ali, sorrindo para mim. Ele tinha um monte de cortes nas pernas e nos braços, e estava sangrando pra caramba, mas estava vivo !
– Stark! Aiminhadeusa!
Eu estava começando a me levantar para me jogar nos braços dele, quando um monte de pedras que deveria estar selando Neferet dentro da gruta começou a se mexer.
– Ah, merda! – exclamou Stark. – As gavinhas, elas estão abrindo buracos pelas rochas.
Eu fiquei de pé, no centro do meu círculo, e ergui as mãos de novo. Eu notei que estavam ensanguentadas, mas não liguei. Stark estava vivo!
O custo a pagar
Será do seu amor verdadeiro se separar
As vozes dos Fey ecoaram na minha mente, e eu entendi por que Stark estava vivo.
A intenção deles não era levar Stark de mim. O que disseram era que eu iria. Era a minha vez. Dessa vez, eu tinha que amar os meus amigos e o meu mundo o suficiente para me tornar o sacrifício que consertaria tudo. Eu tinha que trocar a minha vida pelo sepultamento de Neferet.
– Você prometeu que os deixaria em segurança – disse eu para Stark.
Ele estreitou os olhos.
– Z., o que você está pensando em fazer?
Respirei fundo, preparando-me. Ergui a pedra da sabedoria e comecei a caminhar para a frente. Vovó disse isso. Sgiach também. E, o mais importante, Nyx disse isso. O meu sangue é especial. Há poder antigo nele, vivendo no mundo. E eu vou usar o meu sangue para selar aquele túmulo.
– Não vai funcionar – avisou Aurox de repente diante de mim, bloqueando o meu caminho.
– Saia da minha frente – ordenei. – E mantenha Stark fora do meu caminho também. Você estava certo. Vai ficar tudo bem.
– Não, Zoey. Você é forte e sábia, mas está errada quanto a isso. Você não é imortal. Não importa o que faça. Não importa o que está disposta a sacrificar, você não tem poder suficiente para prendê-la. Mas eu tenho. Eu fui criado da magia antiga como uma ferramenta das Trevas.
– Mas você escolheu a Luz. Você mudou.
– Porque o espírito de Heath dentro de mim me deu uma escolha. E eu estou fazendo essa escolha por amor. Não apenas por você, Zo, mas por todos vocês. Esta é a coisa certa a se fazer. Eu sei que estou certo, Zo. Faça Stark tomar conta de Skylar por mim, Ok? – Ele sorriu, e eu vi Heath dentro dos seus olhos de pedra da lua. – Ah, e você se lembra das duas coisas que eu queria? Consegui uma hoje à noite. Nyx falou comigo através de você. – Ele esticou a mão e pegou a pedra da vidência de mim, passando-a pela cabeça para pendurá-la no seu pescoço de modo que brilhasse, prateada, no meio do seu peito. – Eu sou a magia antiga que você tinha de usar.
– E quanto à segunda coisa que você queria? E quanto à garota? – perguntei com os olhos já marejados.
– Da próxima vez, Zo. Que tal se você e eu marcarmos um encontro para a próxima vez? Porque é verdade. A única coisa que nunca morre é o amor, sempre o amor!
Então, Heath desapareceu nos olhos doces e sérios de Aurox. Ele se virou, baixou a cabeça e bramiu um antigo desafio. Enquanto Aurox seguia para a gruta, o seu corpo entrava em convulsão, mudando e transformando-se, de modo que, quando chegou às pedras pelas quais as gavinhas estavam tentando passar, ele já tinha tomado a forma de um touro poderoso, bonito e negro. Ele chifrou as pedras e o seu corpo mudou de novo, expandindo-se em um grande escudo negro que se dobrava sobre a gruta, fechando-a e selando Neferet para sempre lá dentro.
Houve um estrondo terrível que se tornou um trovão ensurdecedor, vindo do leste e do oeste.
– O que foi isso? – gritou Stark.
Comecei a responder que não sabia e, então, vi a sombra. Ela se espalhava do leste – uma enorme sombra preta, tomando forma à medida que crescia – chifres, peito poderoso e patas fendidas.
– O oeste! Olhem para o oeste! – exclamou Shaunee.
O meu olhar foi para lá, e eu vi outro touro tomando forma, só que este era branco de gelo, de morte, de túmulo.
Os dois touros se encontraram no céu acima de nós com um estampido que nos fez cobrir os ouvidos, mesmo que o som não pudesse ser abafado. Senti dor na minha testa, e ouvi os meus amigos gritarem junto comigo. Caí no chão, sentindo como se a minha cabeça fosse explodir. Stark estava me segurando, olhando à nossa volta, e vi que Rephaim também tinha ido até Shaylin, e Stevie Rae estava correndo de Damien para Shaunee. Todos eles caíram de dor junto comigo.
O que está acontecendo com a gente? Aiminhadeusa! O que é agora?
Quando achei que não conseguiria mais resistir a tanta dor, o céu brilhou com uma luz cegante e os dois touros desapareceram juntos, levando com eles a terrível agonia na minha cabeça.
Trêmula, eu me sentei.
– Z., você está bem? O que aconteceu... – Seu sorriso interrompeu as suas palavras. – Ah, foi isso que aconteceu!
Franzi as sobrancelhas. Do que ele estava falando? Esfreguei o rosto. Cara, a minha testa estava doendo.
– Aiminhadeusa! Essa é a coisa mais legal que eu já vi! – Stevie Rae praticamente gritou.
Ainda confusa, olhei para onde ela estava, ajoelhada ao lado de Shaunee, que estava tão pasma quanto eu. Piscando, ela virou a cabeça para mim, e eu entendi.
O meu olhar foi dela para Damien e de Damien para Shaylin.
– Todos eles! – exclamei. – Todos eles completaram a Transformação!
– Todos vocês. Todos completaram a Transformação, Z. Até você! – Stark estendeu a mão e traçou com um dedo a linha delicada que agora enfeitava o meu rosto. Uma Marca de verdade para uma vampira de verdade .
Ergui o rosto e, através dos meus olhos transbordando em lágrimas de agradecimento, vi a lua cheia, brilhante e gloriosa acima de nós.
– Obrigada, Nyx. Oh, muito obrigada! – exclamei para a lua.
Zoey Redbird, que você e seus amigos sejam abençoados por toda a eternidade...
FIM. DE VERDADE.

Subsequentemente
Nyx riu.
– Posso olhar agora?
Kalona pensou que ela parecia uma jovem sem preocupações que era incrível e eternamente atraente. Ele riu, mas conseguiu manter a voz séria, dizendo:
– Ainda não, Deusa.
– Mas eu quero ver o que você está aprontando! – exclamou Nyx.
– Não seria uma surpresa se você soubesse o que nós estamos aprontando.
– Erebus, o que você está fazendo aqui? – rosnou Kalona para ele.
– Eu não vou deixar você levar todo o crédito por isso. Afinal de contas, fui eu que achei essa coisa há eras e a mantive aqui, esperando o seu retorno – declarou Erebus, rindo do olhar furioso do irmão.
– Já chega. Vou simplesmente olhar!
Antes que a Deusa pudesse abrir os olhos, Kalona a virou de modo que ela ficasse diante do lago mais adorável do Mundo do Além. Ele estava atrás dela, segurando os seus ombros macios, quando ela ofegou e aplaudiu de prazer.
– O meu barco! Aquele que você fez para mim há tanto tempo! – Ela se virou e atirou os braços em volta de Kalona, rindo e beijando-o. – Obrigada!
Erebus limpou a garganta.
– E quanto a mim?
Nyx abriu um dos braços, convidando Erebus a dividir o seu abraço.
– Eu agradeço a você também, Erebus, pela fé inabalável que teve em Kalona.
– Ah, não foi nada – disse Erebus abraçando os dois.
Kalona retribuiu o abraço antes de dar um empurrão provocador.
– Não foi nada? Só se foi para você, mas eu passei dias restaurando o resultado de séculos de negligência.
– Bem, quando você fala assim, posso dizer que sei exatamente o que você quer dizer – respondeu Erebus devolvendo o empurrão bem-intencionado do irmão.
– Eu amei a minha surpresa – afirmou Nyx, indo até o pequeno barco e passando a mão pelos entalhes de flores, estrelas e luas e outros símbolos que Kalona criara havia tanto tempo como uma lembrança para ela. – E você trouxe um tapete e uma cesta de piquenique! Isso torna este presente perfeito.
– Eu encontrei – disse Kalona. Então, ele olhou para o irmão e sorriu. – Mas Erebus sugeriu néctar em vez de vinho, e ele foi até o reino mortal para pegar para você.
– Para pegar para vocês dois – corrigiu Erebus, retribuindo o sorriso do irmão. – E agora vou deixar vocês dois velejarem. Eu subornei as ninfas das águas para ficarem longe deste lago nesta noite. E eu ainda tenho outra viagem ao mundo mortal para pagar o suborno.
Ele deu um beijo gentil no rosto de Nyx, saudou o irmão, e desapareceu em uma explosão de purpurina dourada.
Kalona tossiu e sacudiu o pó do seu cabelo.
– Eu queria que ele parasse de fazer isso.
Nyx não conseguiu ocultar o riso atrás da mão.
– Acho que você fica lindo com pó de raios de sol.
Kalona foi até a sua Deusa e a tomou nos braços.
– Se você gosta, eu preciso pedir que Erebus exploda com mais frequência.
Ele abafou o riso com um beijo e, então, pegou Nyx no colo e a colocou no barco no tapete macio e grosso de pele. Ele empurrou o pequeno barco no lago e se juntou a Deusa lá dentro, remando devagar nas águas brilhantes cor de turquesa.
– Se quiser, poderíamos voltar ao lago que você tanto amava – ofereceu ele. – Embora eu tivesse de pedir para chamar os elementos para nos ocultar. Eu fiz uma visita mais cedo. Sabia que ele agora é chamado lago Crater e fica cheio de humanos?
– Sabia sim – respondeu Nyx deixando os seus dedos tocarem a água. – Eu costumava ir até lá quando você já não estava mais aqui. – Os seus olhos encontraram os dele, e neles Kalona viu uma grande tristeza. – Eu esperava que algum dia talvez visse você lá, mas nunca vi.
Kalona largou os remos e pegou as mãos dela nas suas.
– Isso nunca mais vai acontecer de novo. Eu juro que bani o meu ciúme e a minha raiva. Nunca mais vou cometer o erro de dar ouvidos a essas emoções básicas novamente e permitir que as Trevas fiquem entre nós.
Ele beijou cada uma das mãos da Deusa, devagar e com reverência, desejando que a tristeza abandonasse os seus lindos olhos.
– O erro não foi só seu, meu Guerreiro, meu amor – disse ela. – Eu também errei. Eu era jovem demais. Inexperiente demais. Permiti que um segredo se interpusesse entre nós.
– Um segredo? Como assim? – O estômago de Kalona se apertou. O que Nyx poderia estar escondendo dele?
– Naquela noite, naquela terrível noite em que você me encontrou com Erebus. Você interpretou erroneamente as minhas palavras para ele. Eu nunca mais falei sobre isso, mas deveria ter falado, mesmo que fosse apenas para assegurar a você que o seu irmão e eu não o estávamos traindo.
– Não, nós todos juramos silêncio por causa do que aconteceu naquela noite. Foi certo manter o juramento – afirmou Kalona, sentindo certo alívio. – Além disso, eu não teria ouvido. Naquela época eu só ouvia o ciúme.
– Bem, foi errado obrigar você e Erebus a jurar silêncio, mas acho que o que criamos naquela noite se saiu muito bem, mesmo que não possamos falar sobre o assunto.
Kalona a olhou nos olhos.
– Os seus filhos, os vampiros, são notáveis e diferentes, e admito que desenvolvi grande afeição por eles.
– Você não quer dizer os nossos filhos, os vampiros? Nós dois estávamos juntos na sua criação.
– Eu mantive o juramento, Nyx. Nunca falei sobre isso para eles, nem para outro ser vivo – declarou Kalona.
– Eu sei. – Nyx se inclinou e o beijou. – Você não quebrou esse juramento, nem mesmo quando estava repleto de Trevas e de raiva. Foi nesse momento que eu comecei a ter esperanças de que você encontraria o seu caminho de volta para mim.
– Eu nunca mais vou me perder.
Nyx foi para os seus braços, descansando em completa felicidade no círculo do seu amor e da sua força.
– Mas eu sinto falta deles. Dos nossos vampiros – disse ele. – E, é claro, do meu filho.
Ela sorriu para ele.
– Você deveria visitar Rephaim.
Kalona piscou, surpreso.
– Você não se importa?
– É claro que não! Ele é o seu filho, feito com uma das minhas favoritas.
Kalona deu um abraço apertado na sua Deusa.
– Eu me esqueço que você nunca sente ciúme ou ódio.
– E eu nunca sentirei, meu amor – afirmou Nyx. Então, a sua expressão se iluminou. – Vamos dar uma olhada neles, nos nossos filhos?
– Agora? – O olhar de Kalona pousou no barco, no lago calmo e na linda Deusa.
Ela sorriu.
– É, agora, mas podemos fazer isso sem estragar a surpresa que você preparou para mim.
Nyx mudou de posição para que, mesmo que ainda permanecesse no círculo dos braços dele, suas costas pudessem repousar em seu peito. Ele espiou por sobre o ombro dela, quando Nyx se inclinou para a ponta do barco e acenou com a mão sobre as águas do lago do Mundo do Além.
Lago mágico, o poder do cristal eu vou convocar
Para o meu desejo iluminar
Os meus queridos desejo ver
Embora distantes, vê-los de perto vou querer
Pelo véu temporal e espacial,
Mostre-nos nossos filhos no seu mundo mortal
As águas formaram ligeiros círculos, como se Nyx tivesse atirado uma pedra no lago. Então, tudo ficou parado, como um vidro verdadeiro. Era o equivalente mágico de uma tela de televisão dos mortais: uma cena era mostrada diante deles, totalmente em cores e com som.
– É Zoey e Stark e Vovó Redbird! – exclamou Kalona. – Eles estão nos bastidores do auditório da Morada da Noite.
– Psiu! Meu amor! – admoestou Nyx suavemente. – Vamos assistir sem nos intrometermos.
– O que Zoey Redbird está aprontando dessa vez? – sussurrou Kalona no ouvido da sua Deusa.
Nyx deu uma risada silenciosa. Kalona a abraçou com mais força, admitindo para si mesmo como estava ansioso por notícias daqueles que passou a considerar a sua família.
Zoey
– Eu estou nervosa. Droga, e o meu estômago está doendo – reclamei, tentando não roer as unhas. – Eu estou bem? Talvez eu devesse colocar uma calça jeans. Esse vestido é meio exagerado. – Olhei para mim e peguei um pelo comprido creme-alaranjado do meu vestido superformal, e olhei de cara feia para o grande gato laranja e creme que estava tentando parecer inocente enquanto se esfregava na calça de Stark. – Skylar, você não me engana. Você está soltando pelos de propósito.
– Você está maravilhosa, Z. Não troque de roupa. De novo. Você não tem tempo. E o pelo de Skylar é longo, ele não tem culpa se eles se espalham, muito – disse Stark, inclinando-se para acariciar a cabeça do bichano.
Nala caminhou delicadamente pelo quarto, espirrou em Skylar e, então, sacudindo a barriga, a minha gata gorducha partiu. Agindo de forma bem semelhante a um gato, ele partiu feliz atrás dela.
– Ele realmente está me conquistando – confessou Stark, sorrindo para o gato. – E ele não é cruel como costumava ser.
– Bem, melhor não contar isso para a Duquesa. O seu nariz ainda está sangrando onde Skylar a acertou na outra noite.
– Ela tem que aprender a deixá-lo em paz. A nova coleira dele diz claramente MORDEDOR CONHECIDO.
Stark tentava parecer indiferente, mas notei que ele também estava incomodado com o kilt que decidira usar.
– Acho que as suas pernas estão melhores do que as minhas – brinquei.
– Não diga isso para Rooster, u-we-tsi-a-ge-ya . Ele já se pavoneia muito – provocou Vovó, dando uns tapinhas carinhosos no rosto de Stark.
Ela se aproximou de mim e alisou o vestido curto de veludo vermelho e decote de coração que Aphrodite me convencera a usar. Então, ela tirou outro pelo de gato da imagem da Deusa bordada em prata com as mãos erguidas até a lua crescente que descansava sobre o meu coração.
– Pronto, este era o último pelo de Skylar. Você está absolutamente adorável, Zoey Passarinha. Este vestido combina com a primeira Grande Sacerdotisa do novo Conselho Supremo dos Estados Unidos.
Grande Sacerdotisa do Conselho Supremo dos Estados Unidos – quando é que o meu estômago vai parar de se contrair quando eu ouvir o meu novo título?
Como se estivesse lendo a minha mente, Vovó pegou o meu rosto entre as mãos.
– O seu título cairá bem em você quando se sentir bem consigo mesma. Eu acredito que isso vai acontecer quando você terminar o que precisa fazer hoje.
– É, Z. Você sabe o que precisa fazer. Quanto mais cedo o fizer, melhor será – concordou Stark.
Encontrei os seus olhos, procurando sinais de ciúme ou raiva, e não vi nada disso. Tudo que vi foi amor e confiança. Respirei fundo.
– Você está certa. Vocês dois estão. Vamos parar de perder tempo. Não vai ser tão ruim.
– Ruim, Z.? Você está brincando? Vai ser maravilhoso! Ei, lembre-se... O mundo é pequeno. Não estamos perdendo ninguém. Nós só vamos inovar. – Stark riu e me deu um sorriso maroto. – Entendeu? Inovar.
Meneei a cabeça, mas consegui não revirar os olhos para ele.
– Entendi.
– Zoey Passarinha, você não deve pensar nisso como fim de algo, mas sim como o início de uma grande aventura para todos vocês – aconselhou Vovó.
– Tudo bem, eu sei, você está certa, Vovó. E, de qualquer forma, vamos invocar um círculo mais uma vez antes de todos partirem. Vamos fazer isso.
Com Stark de um lado e Vovó do outro, entrei no palco do auditório.
O lugar estava lotado, e dava para ver gente em pé no final do teatro e nas laterais.
– De onde eles vieram? – sussurrei para Stark, tentando não mexer os lábios.
– Hã, Z., o seu microfone está ligado – chegou a voz de Stevie Rae de algum lugar na frente da plateia.
– Ah, droga – sussurrei e, depois, pressionei os lábios, enquanto as minhas palavras ecoavam.
Ouvi risos, mas não senti que fossem de deboche. Pareciam amigáveis. Eu pisquei e, quando os meus olhos se acostumaram à iluminação do auditório, vi que sim, o público era enorme, mas todos sorriam para mim. Olhei para os rostos até achar uma loura de cabelo enrolado, sentada ao lado de outra loura cujo cabelo era liso e comprido e perfeito, de maneira quase impossível. Encontrei os olhos de Aphrodite. Ela ergueu uma sobrancelha loura e fez um cumprimento com a cabeça. Então, eu encontrei os olhos azuis brilhantes de Stevie Rae. Ela abriu um amplo sorriso e ergueu os polegares para mim. Soltei o ar que eu estivera prendendo e comecei:
– Quero agradecer a todos vocês por terem vindo a esta sessão de juramento do Conselho Supremo dos Vampiros dos Estados Unidos, principalmente os humanos que estão aqui e se tornaram bons amigos desta Morada da Noite.
Foi fácil encontrar o detetive Marx na plateia. Ele era mais alto do que quase todo mundo. Eu sorri para ele e ele tocou um chapéu imaginário. Gostei de ver que cerca de meia dúzia de policiais uniformizados o acompanhavam, e fiz uma anotação mental para me lembrar de comprar entradas para o próximo evento de arrecadação de fundos para o Departamento de Polícia de Tulsa.
– Hoje nós faremos algo que jamais foi feito na sociedade vampírica. Vamos fazer um novo começo para nós mesmos, e incluiremos os humanos nesse novo começo.
Fiz uma pausa quando aplausos espontâneos começaram; estava tão surpresa que senti o rosto quente.
– Então, bem, vou começar a chamar aqui no palco os novos membros do nosso Conselho Supremo. – Encontrei os seus olhos e comecei com a minha melhor amiga para sempre. – Stevie Rae!
Ouvimos um monte de “Uhus!”, acompanhados de alguns assovios vindos dos lugares atrás de Stevie Rae. Sorri, percebendo que a sua família viera de Herietta. Stevie Rae deu um beijo rápido em Rephaim e subiu no palco.
– Aphrodite!
Todos os Guerreiros Filhos de Erebus, liderados por Darius, levantaram-se e aplaudiram bem alto enquanto Aphrodite jogava o cabelo para trás e, com elegância, subia ao palco.
– Shaunee!
– Isso mesmo! Bom trabalho, Shaunee! – gritou o detetive Marx, enquanto ele e os outros policiais, junto com Erik Night, aplaudiam e assoviavam.
– Shaylin!
Fiquei feliz de ver que Erik se levantara e batera na sua mão quando ela passou por ele – depois que Nicole lhe beijou na boca.
– Lenobia!
Um grande cowboy assoviou e acenou com o seu chapéu, adequadamente branco, enquanto a Senhora dos Cavalos, parecendo etereamente linda, abriu caminho até o palco.
– E o último nome que eu chamarei é o primeiro membro do sexo masculino de um Conselho Supremo. Damien! – exclamei.
E eu me juntei aos aplausos e assovios, enquanto Damien, corado mas sorrindo, alisava a sua camisa de corte impecável, abraçava Adam Paluka, e se apressava para se juntar a nós.
Os meus amigos se colocaram dos meus dois lados, todos olhando para mim para o que viria a seguir. Engoli o nervosismo e me sentei. Eles me imitaram, tomando os lugares destinados a eles.
Tudo bem, não era como o Conselho Supremo dos Vampiros que ainda regia a Europa da ilha de San Clemente. Nós não tínhamos tronos de pedras e grandes regras sobre como cada um na multidão deveria agir. Também não excluímos os humanos do nosso auditório na Câmara do Conselho Supremo. Logo de cara, decidimos fazer as coisas de forma diferente por aqui. Para começar, decidimos que os nossos “tronos” seriam bancos com almofadas confortáveis forradas com o xadrez roxo, azul e verde na escola contra um fundo preto. Enquanto eu me sentava no meu, continuei a cerimônia.
– Agora, eu quero chamar para o nosso palco, a nossa laureada poetisa vampira, Kramisha, que também é uma Profetisa de Nyx. Ela fará o nosso juramento como membros deste novo Conselho Supremo. Kramisha, pode subir!
As novatas vermelhas aplaudiram bem alto quando Kramisha subiu os degraus para o palco. Ela estava com as suas botas douradas de salto agulha de 15 centímetros, que combinavam com a peruca dourada enrolada. Segurava um dos seus cadernos cor de lavanda e pegou o microfone que Vovó lhe oferecia. Ela abriu o caderno e olhou para nós.
– Vocês estão prontos?
– Estamos – respondemos.
– Então, repitam as minhas palavras e saibam que este juramento é válido a partir de agora até a sua morte.
– Hã, ou até que o nosso primeiro mandato de quatro anos termine e as Moradas da Noite dos Estados Unidos votem para nos reeleger – apressei-me a corrigi-la.
– É como Z. disse – assentiu Kramissa, sem se afetar.
Quando ela começou a dizer as palavras do juramento, a sua voz tinha mudado, estava mais alta, e era como se Nyx estivesse assistindo a tudo em silêncio e tivesse, de repente, soprado poder nela.
Novos tempos exigem novos lugares, novos rostos
O equilíbrio restaurado, vamos olhar para o futuro proposto.
Kramisha fez uma pausa e, juntos, nós sete repetimos as palavras do juramento.
Nosso teste foi extenso, mas nos mantivemos fortes
Conseguimos vencer, apesar das inúmeras mortes
Ela fez outra pausa e nós repetimos as suas palavras.
Esta noite, na luz juramos ficar
Com sabedoria, amor e justiça liderar.
Enquanto eu repetia as palavras com os meus seis amigos, rezei para Nyx me ajudar, ajudar a todos eles a continuar crescendo em sabedoria, continuarmos cheios de amor, e sempre demonstrar o respeito que os outros merecem enquanto uso o poder concedido a mim pela Deusa.
Atenção! Eis o novo Conselho Supremo
Assim nós escolhemos e que assim seja.
Enquanto repetíamos os últimos versos do juramento, nós sete nos levantamos e cada um se curvou para a plateia, que explodiu em aplausos e comemoração.
– Tudo bem, Z. Agora, conte para ele o resto – disse Stevie Rae. – Afinal foi uma ideia maravilhosa que você teve.
Assenti, nervosa novamente, mas virei-me para o público e terminei o que comecei.
– Como vocês sabem, planejamos ser um tipo totalmente novo de Conselho Supremo porque queremos que o mundo veja um tipo totalmente novo de vampiros. – A multidão logo ficou em silêncio, ouvindo atentamente. – Parte do que decidi, bem, que nós decidimos, nós sete, é que não vamos ficar aqui, trancafiados e longe do que realmente está acontecendo no mundo.
– E criar teias de aranha nos traseiros – acrescentou Stevie Rae, fazendo todos rirem.
– Bem, é algo assim – concordei, rindo para a minha melhor amiga. – Então, a partir de amanhã, o seu Conselho Supremo vai sair pelo país, visitando diferentes Moradas da Noite, ouvindo os problemas e preocupações do dia a dia de vampiros e novatos normais, assim como dos humanos que moram em comunidades próximas.
Respirei fundo e separei, irrevogavelmente, os meus amigos.
– Damien, você vai para o leste.
– Que assim seja – concordou ele solenemente.
– Shaunee, você vai para o sul.
– Que assim seja – entoou ela.
– Shaylin, você vai para o oeste.
– Que assim seja – disse ela, com um sorriso bondoso para mim.
– E eu ficarei aqui contigo – declarou Aphrodite, seu olhar sábio e estável em mim.
– Que assim seja – concordei. Virei-me para a plateia e disse – Merry meet , merry part , merry meet again . E abençoados sejam todos vocês.
Todos aplaudiram, dessa vez de forma mais sóbria do que antes. Obviamente, muita gente estava chocada com a decisão que meu Conselho e eu tomamos, mas eu me sentia bem com isso, e, julgando pela expressão do rosto dos meus amigos, eles também estavam se sentindo bem. Nós todos vimos como as coisas podiam ficar quando um Conselho Supremo se afastava do seu povo. Nós estávamos determinados que isso não aconteceria com a gente.
Mas eu tinha uma última tarefa a cumprir, uma sobre a qual eu não falara com os meus amigos. Eu me virei para eles e comecei:
– Gente, antes de vocês irem, precisamos convocar um círculo uma última vez.
– Círculo? Agora, Z.? – quis saber Stevie Rae.
– É. Precisamos fazer o círculo agora – respondi. – Será que vocês poderiam vir comigo? É mais fácil mostrar do que explicar.
– Z., se você precisar de nós, sempre viremos até você – declarou Damien.
– Eu vou pegar o Hummer – ofereceu Stark.
– Eu já peguei as velas do ritual e coloquei no cesto – informou Vovó.
– Tudo bem, vamos. O bando de nerds se une novamente – disse Aphrodite.
– Achei que a prefeitura tinha concordado em construir um muro ao redor dessa parte para manter as tietes a distância – declarou Aphrodite, franzindo a sobrancelha para a frente negra da gruta selada de pedra.
– E concordou mesmo. Mas eu pedi para esperarem até depois de hoje – expliquei.
– O que houve Z.? – perguntou Stevie Rae.
– Bem, o lance é que Aurox não me deixa em paz – contei.
– Aurox? Mas ele não está lá, evitando que Neferet saia dali? – perguntou Shaylin, apontando para a gruta.
– Está, mas ele também aparece nos meus sonhos – expliquei.
– Que tipo de sonhos? – quis saber Aphrodite.
Meneei a cabeça.
– Eu não sei. Não consigo me lembrar deles. Eu só me lembro que Aurox está sempre me chamando; não importa quantas vezes eu tente responder, não consigo alcançá-lo. Mas eu sei que ele está lá. Eu sei que ele precisa de mim.
– O que você acha que isso significa? – quis saber Damien.
– Bem, acho que significa que ele está preso e eu preciso libertá-lo.
– Espere, não. Se você deixar que ele saia – Aphrodite fez um gesto com o queixo em direção à gruta –, Neferet e seus servos nojentos escaparão.
– Na verdade, eu acho que não é isso que vai acontecer. Eu não vou liberar a magia antiga de Aurox. Só vou libertar a alma dele.
– Mas a alma dele já foi. Nós a vimos naquela noite, um pouco antes de ele correr para a gruta, e era Heath que definitivamente saíra do corpo daquele Touro – afirmou Stevie Rae.
– Pois é, mas veja bem, o lance é que eu não acredito que Aurox tenha ficado sem alma quando a de Heath saiu. Acho que ele desenvolveu uma alma própria por causa das escolhas que fez. E é essa alma que está presa lá dentro – declarei.
– E como Thanatos morreu, você está disposta a agir no seu lugar e ajudar Aurox a ir para o Mundo do Além – concluiu Damien.
– Bem, eu estou disposta a tentar, se vocês me ajudarem.
– Ah, vamos logo! Formem esse círculo, bando de nerds. Qual é a pior coisa que pode acontecer? As Trevas serem libertadas no mundo? De novo? – Aphrodite começou a fingir um bocejo. – Já estive lá, já me dei bem.
– Vamos ajudá-la, Z. – declarou Stevie Rae.
– Tudo bem, confiamos em você – concordou Shaunee.
– Se você está dizendo que Aurox precisa de ajuda, então estamos aqui com você – declarou Damien.
– Com certeza – confirmou Shaylin.
– Obrigada. Eu tenho tanto orgulho de fazer parte desse bando de nerds – declarei, fungando e enxugando as lágrimas.
– Z., você é a nerd do bando. Façam logo esse círculo antes que o seu nariz comece a escorrer – disse Aphrodite. – E não xingue, sempre soa estranho em você.
Eu sorri para ela, enquanto o meu círculo se espalhava tomando os seus respectivos lugares. Vovó nos entregou as nossas velas. Eu fui até Damien e iniciei de onde tudo começara; parecia fazer tanto tempo.
– O ar está em todos os lugares, então faz sentido que seja o primeiro elemento a ser invocado ao círculo. Peço que me ouça, ar, e eu o convoco para este círculo.
Toquei a vela amarela com o meu fósforo aceso e o ar soprou em volta de mim e de Damien, fazendo os nossos cabelos voarem.
Ele sorriu para mim através das lágrimas que se formaram nos meus olhos, mas que ainda não tinham escorrido.
– Foi isso que você disse da primeira vez que invocou o ar para o nosso círculo. Aquela primeira vez que o meu elemento se manifestou em mim.
– Você se lembra! – exclamei, piscando para não chorar.
– É claro que me lembro. Todos nós lembramos, Z. – respondeu Damien.
Sorrindo através das lágrimas, eu me virei para o sul e segui até Shaunee.
– O fogo me lembra das noites frias de inverno, e do calor e da segurança de uma lareira que aquece a cabana da minha avó. Eu peço que me ouça, fogo, e eu o convoco para este círculo.
A chama da vela vermelha de Shaunee se acendeu antes que eu tivesse a chance de tocar nela. Ela sorriu.
– Vai lá, Zoey. Estamos aqui por você.
Continuei caminhando pelo círculo até Shaylin.
– Água é um alívio em um dia quente de verão de Oklahoma. É surpreendente o oceano que eu finalmente vi , e é a chuva que faz a lavanda crescer. Peço que me ouça, água, e eu a convoco para este círculo.
A vela azul de Shaylin se acendeu facilmente, e o cheiro das chuvas de primavera tomou o espaço à nossa volta.
– Estou feliz por Nyx ter me dado esta afinidade – declarou Shaylin. – Estou feliz por fazer parte do seu círculo.
– Eu também Shaylin – respondi.
Então, fiquei diante da minha melhor amiga.
– Mais uma vez, Z. Vamos fazer isso e fazer direito – declarou ela.
Engoli o nó que se formou na minha garganta e disse:
– A Terra suporta tudo que nos cerca. Nada seríamos sem ela. Peço que me ouça, terra, e eu a convoco para este círculo.
Os cheiros de um campo gramado encheram o ar. Eu e minha melhor amiga trocamos um sorriso.
Então, segui para o centro do círculo e concluí a invocação, erguendo a minha vela roxa.
– O último elemento é um que preenche tudo e todos. Ele nos torna únicos e é o sopro de vida de todas as coisas. Peço que me ouça, espírito, e eu o convoco para este círculo.
O espírito girou à nossa volta e passou por mim enquanto o meu círculo se fechou com uma luz prateada brilhante. Fechei os olhos e rezei:
– Nyx, não será surpresa para você saber que não sei bem o que estou fazendo aqui. Eu só preciso ter certeza. Por favor, guie-me e dê-me forças.
Abrindo os olhos, caminhei até ficar diante das pedras enegrecidas que selavam o túmulo vivo de Neferet. Pensando em Thanatos, e lembrando-me do que a vi fazer para Kalona, estendi a minha mão e disse:
– Aurox! Você deve pegar a minha mão!
Aconteceu mais rápido do que eu previra. Um globo de luz com brilho cegante da cor de pedra da lua emergiu do centro das pedras enegrecidas e se alongaram e se expandiram até virarem Aurox!
– Aiminhadeusa! Z estava certa! – ofegou Stevie Rae.
– Oi – cumprimentei. – Você consegue me ver?
Consigo , respondeu ele. Um sorriso brilhante iluminou o seu rosto. Você me ouviu. Você voltou para mim.
– Sim, eu voltei. Eu não deixo ninguém do bando de nerds para trás – declarei.
Parte do bando de nerds. Gostei disso. Vou me lembrar.
– Lembre-se de outra coisa. Lembre-se de que eu voltei por você.
Aurox pareceu extremamente chocado e, então, o seu sorriso voltou.
Você se importa comigo de verdade .
– De verdade mesmo.
Do lado de fora do círculo, Stark acrescentou:
– Todos nós nos importamos, Aurox.
Aurox voltou os seus olhos brilhantes para Stark.
Nós ainda podemos tomar aquela cerveja juntos um dia desses?
– Com certeza! – concordou Stark. – Da próxima vez.
Da próxima vez , repetiu Aurox. Então, ele olhou para mim. E agora?
– Agora você para de deixar a sua Deusa esperando – expliquei. – Aqui, pegue a minha mão de novo.
– Eu não sei se estou pronto – disse ele.
Sorri.
– Eu tenho certeza.
Ele pegou a minha mão, e eu a ergui, imaginando que o estava jogando para o céu. A luz prateada do círculo se canalizou através de mim e, com um grande empurrão de energia, Aurox foi lançado para cima.
O céu acima de nós estremeceu e, então, se abriu como uma cortina, revelando Nyx diante de um lindo lago azul. Kalona estava ao seu lado, sorrindo para nós. Assisti à Deusa enquanto ela abria os braços para receber Aurox como se fosse uma mãe recebendo o amado filho de volta.
– Eu finalmente fiz a coisa totalmente certa! – exclamei, enxugando as lágrimas que escorriam pelo meu rosto.
Antes que a cortina para o Mundo do Além se fechasse, os olhos de Nyx pousaram em mim. A Deusa sorriu. Ela parecia mais jovem e mais feliz do que eu jamais vira. Então, de maneira muito distinta, Nyx, a Deusa da Noite, piscou para mim.

 

 

                                                                                                    P. C. Cast e Kristin Cast

 

 

 

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